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São Paulo, segunda-feira, 22 de março de 2010

MOACYR SCLIAR

Um mundo só de mulheres

Com isso, elas não seriam mais oprimidas e marginalizadas. Não precisariam mais correr atrás dos machos

 
Uma equipe de pesquisadores nos EUA resolveu o mistério de uma população de lagartos na qual
só existem fêmeas, que se reproduzem sozinhas, dispensando a fertilização por machos -uma forma de
reprodução sem sexo conhecida como partenogênese. Os cientistas descobriram que elas produzem
células germinativas -as que dão origem a espermatozoides e óvulos- com o dobro de cromossomos. Diz
Peter Baumann, coordenador da equipe do Instituto Stowers de Pesquisa Médica, responsável pela
investigação: "Uma espécie partenogenática se reproduz mais rápido porque cada fêmea pode ter crias e
não gasta tempo nem energia na busca de um parceiro". Ciência, 17 de março de 2010
QUANDO o terceiro marido a deixou, em meio a brigas e insultos, ela chegou à conclusão que era
o momento de dar o basta: não queria mais saber de homens, seres vis, mesquinhos, grosseiros, egoístas.
Uma decisão penosa, difícil. Sem filhos, sem família próxima, teria de viver sozinha. Claro, não lhe
faltavam amigas na mesma situação; elas, porém, não haviam renunciado ao sonho de encontrar o
príncipe encantado, o macho de suas vidas.
Equívoco, doloroso equívoco que, contudo, fazia parte da própria história das mulheres. Afinal,
Eva havia sido criada por Deus para fazer companhia a Adão. Ou seja, ela remava contra a maré. O que a
deixava muito deprimida e desanimada.
Foi então que leu a notícia sobre as fêmeas de lagartos que se reproduziam sem sexo, sem a
incômoda e arrogante participação dos machos.
E aquilo lhe deu novas esperanças. Por que não introduzir aquele método de reprodução, a
partenogênese, na espécie humana? Mulheres simplesmente dariam origem a outras mulheres, seu
número crescendo cada vez mais. E isso teria consequências fantásticas.
Em primeiro lugar, homens se tornariam desnecessários. Com isso, as mulheres não seriam mais
oprimidas e marginalizadas. Não precisariam correr atrás dos machos. Continuariam se vestindo bem,
continuariam indo ao cabeleireiro e se maquiando; mas fariam isso simplesmente para satisfazer a própria
autoestima, não para agradar a um potencial parceiro. As mulheres se reuniriam, mas para conviver
amistosamente, não para competir no selvagem mercado do sexo. Poderiam desenvolver seus atributos,
suas qualidades.
Os homens se tornariam uma espécie em extinção. Incapazes de se reproduzir (afinal, falta-lhes o
útero), morreriam aos poucos, um fim que seria acelerado pela inveja e pela frustração. Em algumas
gerações, o mundo seria só das mulheres. Final feliz, portanto?
Para seu desgosto, ela suspeitava que não. Suspeitava que um dia, naquele mundo só povoado por
mulheres, uma nave especial, vinda de um planeta distante, pousaria na praça central de uma cidade
qualquer. A porta se abriria, e quem dali emergiria? Os homens, claro. Homens altos, fortes, bonitos.
Num primeiro momento, as mulheres ficariam imóveis, paralisadas. Mas em seguida uma delas
correria ao encontro dos recém-chegados. E logo outra, e mais outra. Seriam inúteis as repreensões e
advertências das líderes: naquele momento o reino da partenogênese, e das mulheres, teria chegado ao
fim. Como ao fim chegaram tantos belos sonhos.

MOACYR SCLIAR escreve nesta página, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha.
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2203201005.htm

Notícia base para a crônica “Um mundo só de mulheres de Moacyr Scliar:


17/03/2010 - 11h47

População feminina de lagarto duplica genes para se


reproduzir sem sexo
RICARDO BONALUME NETO
da Folha de S. Paulo
Uma equipe de pesquisadores nos EUA resolveu o mistério por trás de uma população de lagartos na
qual só existem fêmeas que se reproduzem sozinhas, dispensando a fertilização por machos --uma
forma de reprodução sem sexo conhecida como partenogênese.
Os cientistas descobriram que elas produzem células germinativas --as que dão origem a
espermatozoides e óvulos-- com o dobro de cromossomos dos lagartos que fazem sexo.
Toda reprodução sem sexo é intrigante para aos biólogos, pois a menor variabilidade genética
poderia diminuir a capacidade da espécie de se adaptar ao ambiente e lidar com novos parasitas e
predadores.
Sexo também traz problemas: a eficiência da transmissão de genes cai e há grande custo energético. Mas isso é
compensado pela variabilidade genética, que leva a indivíduos potencialmente mais aptos.
Peter Baumann

Quatro gerações de fêmeas de lagarto geradas sem machos; elas


duplicam genes para reprodução sem sexo
Os lagartos da espécie Aspidoscelis tesselata vivem no sudoeste dos EUA e norte do México e têm
cerca de 10 cm.
A equipe liderada por Peter Baumann, do Instituto Stowers de Pesquisa Médica, mostrou que, com o
dobro de cromossomos na divisão celular, é possível haver recombinação de genes entre
cromossomos geneticamente idênticos.
Outra tática
"Nosso trabalho mostra que animais podem abandonar a reprodução sexual, pelo menos por muitas
e muitas gerações, se outras táticas forem usadas para gerar e preservar a diversidade genética",
disse Baumann à Folha. O estudo foi publicado na semana passada na revista científica "Nature".
A partenogênese ("nascimento virgem", em grego) ocorre em plantas e animais, incluindo vespas,
peixes, salamandras e répteis, mas não há casos entre mamíferos.
"Se estima que 0,1% das espécies multicelulares se reproduzem via partenogênse", diz Baumann.
"Nos lagartos com que trabalhamos há uma incidência muito alta. Cerca de um terço das 50
espécies próximas são partenogenéticas." O porquê disso é algo que ainda se pesquisa.
"Se um animal está bem adaptado ao seu ambiente e este não muda muito, a diversidade genética
dentro da espécie se torna muito menos importante do que o grau de reprodução. Uma espécie
partenogenética pode se reproduzir mais rápido porque cada indivíduo pode ter crias e não se gasta
nem tempo nem energia na busca de um parceiro", afirma Baumann.
Isso ajuda as explicar o porquê de espécies partenogenéticas conseguirem se espalhar e competir
com as sexuais em alguns habitats. Basta uma fêmea para colonizar uma ilha, enquanto seria
preciso um macho e uma fêmea para fazer o mesmo na espécie sexuada --e eles teriam de se
encontrar e "gostar" um do outro.
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/folha/ciencia/ult306u708114.shtml

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