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No escuro, todos os gatos

Moacyr Scliar

Clientes jantam de olhos vendados em restaurantes de São Paulo. A experiência de comer com
os olhos vendados tem como objetivo fazer com que os clientes apreciem texturas, aromas e pequenos
detalhes que dificilmente notam nas refeições do dia a dia. Cotidiano.
AOS quarenta anos, depois de três casamentos e incontáveis namoros, ela se considerava uma
mulher experiente, preparada para enfrentar as surpresas da vida, inclusive e sobretudo as mais
desagradáveis. Não tenho medo do desconhecido, dizia às amigas, ao contrário, é o que me dá tesão.
Assim, não estranhou quando, no bar, o rapaz começou a olhá-la de maneira insistente e sedutora.
Mais que isso: sentiu-se atraída por ele.
Era um legítimo gatão, como se dizia antigamente, e ela, ao menos naquele momento, era uma
gata no cio.
Com um gesto, convidou-o para sua mesa. Ele veio, apresentou-se; chamava-se André, era
engenheiro eletrônico. Descreveu-se como um jovem refinado, que gostava de arte, de música, de
cinema, que tinha viajado muito; e que, finalmente, estava à espera do grande amor de sua vida.
Ela não acreditou em nada daquilo, mas não iria submetê-lo a um detector de mentiras. Mulher prática,
foi logo informando que morava ali perto, e que poderiam ir para o apartamento, se ele quisesse. Sim,
ele queria. Foram para lá, fizeram sexo, tudo muito bom, muito satisfatório.
Quando terminaram, ela, naturalmente, esperava que ele fosse embora; naquele momento não
estava interessada em qualquer tipo de ligação, mesmo porque daí a dois dias viajaria para o exterior.
Mas ele tinha uma proposta: ainda era cedo, 20h, por que não iriam jantar juntos? Ali perto havia um
restaurante que adotara a moda do jantar de olhos vendados, graças à qual os gourmets -e ele se
considerava um gourmet- poderiam apreciar texturas, aromas e pequenos detalhes que normalmente
passam desapercebidos do convencional cliente de restaurante.
O primeiro impulso dela foi recusar o convite. Mas aquela coisa de jantar de olhos vendados lhe
pareceu fascinante, uma experiência pela qual nunca tinha passado. Vamos, decidiu. Arrumou-se e
foram.
O restaurante, para ela desconhecido, não ficava longe. Era um lugar relativamente pequeno, mas
cheio de gente; obviamente a proposta atraía muitas pessoas. Sentaram, veio o garçom, deu-lhes duas
vendas para os olhos e o cardápio. Ele realmente parecia entender daquilo: escolheu um prato
sofisticado. A seguir, e com um sorriso, fez um pedido: gostaria que comessem em silêncio, sem
conversar, para que pudessem se concentrar melhor nas texturas, aromas e pequenos detalhes da
comida. Ela riu e concordou.
O garçom trouxe os pratos, eles colocaram as vendas. Por vários minutos ela ficou entregue ao
prazer representado pelas texturas, aromas e pequenos detalhes da comida, mantendo-se em silêncio
conforme ele tinha solicitado. Finalmente terminou de comer e tirou a venda.
O rapaz já não estava lá. Tinha sumido, e bem assim a bolsa dela, aliás recheada dos euros que
levaria na viagem. Suspirou. Tinha aprendido uma lição. No escuro, descobre-se qual a melhor comida.
E, no escuro, todos os gatos, incluindo os gatões, são pardos.

MOACYR SCLIAR escreve para a Folha de São Paulo, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado
em notícias publicadas na Folha .

Fonte: Folha de São Paulo – segunda-feira - 08 de março de 2010.


Texto base para a crônica acima:

23/02/2010 - 19h47
Nesta semana, clientes jantam de olhos vendados em dois locais de SP

da Folha Online

Blés d'Or (foto), na região sul de São Paulo,


realiza Jantar no Escuro neste sábado (27)

O restaurante Capim Santo (região oeste da cidade de São


Paulo) e o bistrô Blés d'Or (região sul) recebem o evento Jantar
no Escuro nesta quinta-feira (25) e neste sábado (27),
respectivamente.

A experiência de comer com os olhos vendados --proposta


realizada pelo Ateliê No Escuro Gastronomia-- tem como
objetivo fazer com que os clientes percebam texturas, aromas e
pequenos detalhes que eles dificilmente notam nas refeições do
dia a dia.

O cardápio é formado por uma entrada, dois pratos principais e uma sobremesa. Água e vinho
também ficam disponíveis.

Os dois jantares ocorrem a partir das 20h. No Capim Santo, os clientes pagam R$ 130 (sem vinho)
ou R$ 150 (com vinho) para participar desta peculiar reunião. Já no Blés d'Or, o valor é de R$ 90
(sem vinho) ou R$ 110 (com vinho).

As reservas devem ser feitas por e-mail ou pelo telefone 0/xx/11/3845-0141.

Fonte: http://guia.folha.com.br/restaurantes/ult10051u697222.shtml

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