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RBSE - Volume 14 - Número 40 - Abril de 2015 - ISSN 1676-8965

Sumário

Artigos .................................................................................................................................................. 3

Notas sobre o conceito de ação comunicativa ......................................................................................... 5


Jürgen Habermas [Tradução de Mauro Guilherme Pinheiro Koury]

Jürgen Habermas e a teoria do agir comunicativo ................................................................................ 29


Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Coração de mãe é terra que ninguém anda: um estudo das redes, “tramas” e conflitos de mães em luto
nas favelas à beira-mar ........................................................................................................................ 39
Hosana Suelen Justino Rodrigues; Leonardo Damasceno de Sá

Samba do Irajá: samba de amigos, feito por amigos: uma etnografia do samba na Grande Porto Alegre
............................................................................................................................................................ 48
Marcelo da Silva

“Quilomberos… pero bien educados”: La buena educación como competencia moral de sectores de elite.
Un estudio de caso sobre una escuela secundaria de la ciudad de Córdoba, Argentina .......................... 64
Guido García Bastán

Las emociones como expresión de la desigualdad social en situaciones de conflicto social comunitario
ch’ol..................................................................................................................................................... 81
Gabriela Eugenia Rodríguez Ceja

As emoções desnaturadas do sujeito: o bonito, o feio e a arte de viver na sociedade contemporânea ... 100
Regina de Paula Medeiros

Um número no Lager: um estudo sobre a literatura da Shoah ............................................................. 110


Alecrides Jahne Raquel Castelo Branco de Senna

A noção de pessoa na moda e na publicidade: fronteiras, embates e dilemas morais............................ 118


Fabiana Jordão Martinez

A sociologia durkheimiana e a tradição conservadora: elementos para uma revisão crítica................. 136
Sidnei Ferreira de Vares

A origem - o que virá depois da “economia verde”? ........................................................................... 159


Décio Soares Vicente

Resenhas ........................................................................................................................................... 185

A aurora da vida de meu tio na cidade moderna: uma leitura dialogada dos filmes Mon Oncle e Aurora -
uma Resenha ...................................................................................................................................... 187
Rossana Honorato

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Resenha: MARTINS, José de Souza. Linchamentos: a justiça popular no Brasil. São Paulo: Contexto,
2015 ................................................................................................................................................... 196
Raoni Borges Barbosa

Sobre os autores ................................................................................................................................. 202

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Artigos

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HABERMAS, Jürgen. “Notas sobre o conceito de ação comu-


nicativa”. [Tradução de Mauro Guilherme Pinheiro Koury].
RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 14, n.
40, pp. 5-27, abril de 2015. ISSN 1676-8965

Notas sobre o conceito de ação comunicativa*

Jürgen Habermas
Tradução de Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Recebido: 08.01.2015
Aprovado: 01.02.2014

Resumo: Neste importante texto o autor faz uma revisão das teorias da ação nas ciências sociais
para neles estabelecer um parâmetro crítico onde situa as bases do conceito de ação comunica-
tiva no interior de sua teoria da ação comunicativa. Palavras-chave: teorias da ação, ação co-
municativa, mundo, mundo da vida

*
Tradução a partir do artigo de Habermas, Jürgen. Remarks on the concept of communicative action. In:
G. Seebass e T. Tuomela (Orgs). Social action. Boston: D. Reidel, 1985, pp. 151-177.

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Para as teorias sociológicas da ação im- ceitos relacionados de agência ou de capaci-


porta clarificar o conceito de ação social. dade de ação e de escolha racional). Além
Um caso exemplar de ação social se encon- disso, a teoria sociológica da ação não se
tra, certamente, na cooperação entre (pelo interessa por esses problemas básicos rela-
menos) dois atores que coordenam as suas tivos à liberdade de vontade e oportunidade,
ações instrumentais para a execução de um à relação entre mente e corpo, à intenciona-
plano de ação comum. Portanto, de acordo lidade, etc., que são susceptíveis de serem
com este modelo, por exemplo, podem ser esclarecidos no contexto da ontologia, da
analisados casos elementares do trabalho teoria do conhecimento e da teoria da lin-
social. Mesmo nas sociedades simples, guagem, como na teoria filosófica da ação.
contudo, o trabalho é apenas um dos vários Através da tarefa de explicar uma ordem
casos típicos de interação. Então, se parte social intersubjetivamente compartilhada, a
aqui da questão geral de como se torna pos- teoria sociológica da ação, em última ins-
sível a ação, enquanto social. A pergunta: tância, não tem escolha senão a de se utili-
"Como a ação social se torna possível" é zar também das premissas da filosofia da
apenas o reverso de outra pergunta: “Como consciência. Portanto, ela não está vincu-
a ordem social se torna possível?”. Uma lada, com a mesma intensidade que a teoria
teoria da ação que tente responder a estas analítica da ação, ao modelo de um sujeito
questões deve ser capaz de identificar as solitário, capaz de conhecimento e de ação,
condições sob as quais o alter pode “conec- que se enfrenta frente à totalidade de esta-
tar” as suas ações com as ações do ego. dos de coisas existentes e pode se referir a
Esta expressão revela um interesse pe- algo do mundo objetivo, mediante a per-
las condições da ordem social, na medida cepção, bem como intervir nele. Uma teoria
em que estas condições se encontram no da ação abordada em termos de uma teoria
nível de análise das interações simples. Para da intersubjetividade pode, por sua vez,
a teoria sociológica da ação, assim, importa melhor contribuir para reformular as ques-
não só as características formais da ação tões que a filosofia até então havia conside-
social em geral, mas, também, os mecanis- rado como de seu domínio (BLAU, 1964).
mos de coordenação da ação que permitam Com os rótulos “acordo” e “influência”
uma concatenação regular e estável das se começa aqui por caracterizar dois meca-
interações. nismos de coordenação subjacentes aos
Os padrões de interação são formados, conceitos mais importantes da ação social
apenas, quando as sequências de ação, onde (1). Estes conceitos de ação também deci-
distintos atores fazem a sua contribuição, dem sobre como se pode pensar a ordem
não se quebrem de forma contingente e social. Os conceitos de sociedade neles
sejam coordenadas de acordo com regras. inerentes caracterizam, por seu turno, a
Isto se aplica, também, tanto para o com- suposições que hoje competem entre si, a
portamento estratégico quanto para o com- saber: a teoria da troca social e o funcio-
portamento cooperativo. A busca por meca- nalismo sistêmico; a teoria da ação ligada
nismos de “conexão” não significa uma aos papéis e a fenomenologia da autorrepre-
predecisão em favor de uma abordagem em sentação ou da apresentação que o sujeito
prol de uma teoria do consenso versus uma faz de si; e, finalmente, o interacionismo
abordagem relativa a uma teoria do con- simbólico e a etnometodologia (2). As uni-
flito. No entanto, a ótica tipicamente ado- lateralidades e as debilidades destas abor-
tada pelo sociólogo é a de prejulgar a teoria dagens teóricas são aqui tomadas como uma
da ação, na medida em que este se limita a oportunidade de introduzir os conceitos de
analisar os conceitos de ação social apenas ação comunicativa e de mundo da vida (3).
em conexão com os conceitos relativos à Estas considerações intuitivas necessitam
ordem social. de uma explicação que, no contexto deste
Isso explica algumas das diferenças mais artigo, não é possível tentar dar. Mas, é
marcantes entre a teoria sociológica da ação possível enumerar e anotar aqui, pelo me-
e a teoria filosófica da ação. A primeira nos programaticamente, os passos que pre-
pressupõe o que a segunda converte em cisariam ser dados para tal explicação, pas-
tema: especialmente, o esclarecimento da sos estes desenvolvidos pelo autor no livro
estrutura da atividade teleológica (e os con- Teoria da Ação Comunicativa (4). Em duas

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digressões se adentrará, por um lado, na mento que funda um acordo, tendo tal acor-
questão sobre qual é a relação que, no que do como termo de um reconhecimento in-
diz respeito à teoria da sociedade, mantêm tersubjetivo de pretensões de validade sus-
as categorias de "ação estratégica" e de cetíveis de crítica. Um acordo significa que
"ação comunicativa", assim como as cate- os participantes aceitam um conhecimento
gorias de “sistema” e de “mundo da vida”; como válido, ou seja, como inter-
e, por outro lado, para apontar os problemas subjetivamente vinculante. Somente, graças
filosóficos cujos esclarecimentos podem a este, pode um conhecimento comum,
servir a uma teoria da ação abordada em atender e cumprir - na medida em que con-
termos de uma pragmática formal (5). têm componentes ou implicações relevantes
para uma sequência de interações, - as fun-
1 - Os mecanismos de coordenação da
ções de coordenação da ação. As vincula-
ação. As teorias sociológicas da ação acima
ções recíprocas apenas surgem de convic-
mencionadas coincidem em algumas deci-
ções intersubjetivamente compartilhadas.
sões básicas. Em primeiro lugar, optam por
Em contrapartida, o influxo externo (no
uma análise que parte da perspectiva interna
sentido de influência causal) sobre as con-
dos agentes. Uma ação pode ser entendida
vicções do outro participante da interação
como a realização de um plano de ação, que
tem apenas um caráter unilateral.
se baseia em uma interpretação da situação.
As convicções compartilhadas intersub-
O ator, ao levar adiante o seu plano de ação,
jetivamente vinculam os participantes da
domina uma situação. A situação da ação
interação em termos de reciprocidade; o
constitui um fragmento de um ambiente
potencial de razões associado às convicções
interpretado pelo ator. Este fragmento se
constitui, então, uma base aceita, em que se
constitui à luz das possibilidades de ações
pode estar para apelar para o bom senso do
que o ator percebe como relevantes para a
outro. Este efeito de vínculo não pode estar
execução do seu plano de ação. Das aborda-
presente em uma convicção onde um se
gens sobre teoria do comportamento as
limita a induzir no outro (por meio de uma
teorias da ação se distinguem porque atri-
mentira, por exemplo). As convicções mo-
buem ao ator um conhecimento sobre a
nológicas, ou seja, aquelas que, em seu foro
estrutura proposicional. O ator deve ser
íntimo, cada um possui como verdadeiro ou
capaz de repetir in foro íntimo os enuncia-
correto, só podem afetar as atitudes próprias
dos de um observador - (Por exemplo: ‘A’
de cada um. No modelo do influxo ou da
acredita ou pensa, quer ou pretende, deseja
influência unilaterais (ou de uma influência
ou teme, que ‘p’) - e os dirige a si mesmo.
recíproca) as razões, por melhores que se-
Finalmente, as teorias sociológicas da ação
jam, não podem constituir instância de ape-
exigem para os participantes da interação ao
lação. Neste modelo, as boas razões não
menos um conhecimento concordante: as
ocupam nenhuma posição privilegiada. Não
suas interpretações da situação devem se
é o tipo de meios que conta, mas o êxito da
manter suficientemente dissimuladas. Por
influência sobre as decisões de um opo-
conseguinte, todas estas abordagens permi-
nente, mesmo que se deva tal êxito ao di-
tem ou admitem também a comunicação
nheiro, à violência, ou às palavras.
linguística, ou, em todo caso, a troca de
Acordo e influência são mecanismos de
informações. Além do mais, as abordagens
coordenação da ação que se excluem um ao
sobre teoria da ação se distinguem segundo
outro, ou, ao menos, a partir do ponto de
o acordo postulado pela coordenação da
vista dos participantes. Os processos de
ação, ou seja, um conhecimento comum,
compreensão não podem se realizar simul-
ou, simplesmente, as influências externas
taneamente com a intenção de chegar a um
de uns atores sobre os outros.
acordo com um participante da interação e
Um conhecimento "comum" deve satis-
de exercer influencia sobre ele, quer dizer,
fazer condições bastante rigorosas. Pois,
de obrar causalmente algo nele. Na pers-
não apenas se estar ante um conhecimento
pectiva do participante, um acordo não
"comum" quando os participantes concor-
pode ser forçado, não pode ser imposto por
dam em algumas opiniões; tão pouco,
uma parte ou pela outra - seja instrumen-
quando sabem que concordam com elas.
talmente, por intervenções diretas na situa-
Chama-se aqui de comum a um conheci-
ção de ação do outro, seja estrategicamente,

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por meio de um impacto calculado sobre as uma decisão entre as alternativas de ação.
atitudes do próximo. Objetivamente, é ver- Esta estrutura teleológica é constitutiva de
dade que um acordo pode vir forçado ou todos os conceitos de ação, porém, os con-
induzido; porém, o que a olhos vistos se ceitos de ação social se distinguem pelo
produz por influência externa, através de modo como propõem a coordenação das
recompensas, ameaças, sugestão ou engano, ações individuais. Uma primeira classifica-
não pode se contar subjetivamente como ção deve se iniciar a partir do ponto de vista
acordo. A sua capacidade de coordenar a se as abordagens sobre a teoria da ação con-
ação perde, assim, sua eficácia. Um acordo tam com a influência empírica do ego sobre
perde o caráter de convicções comuns o alter, ou com o estabelecimento de um
quando o afetado se dá conta de que este acordo racionalmente motivado entre ego e
acordo é resultado de influência externa que alter. Pois, de acordo com que se conte com
outro exerceu sobre ele. um ou com o outro, os participantes da
Um ator só pode intentar tal intervenção interação adotam uma atitude orientada
se na execução do seu plano de ação adota para o êxito ou adotam uma atitude orien-
uma atitude objetivante em direção ao seu tada para a compreensão. Pressupõe-se
entorno e se orienta diretamente pelas con- aqui, além, que estas atitudes também po-
sequencias que a sua ação terá, quer dizer, dem se identificar, em circunstâncias apro-
se orienta diretamente para o êxito de sua priadas, recorrendo ao conhecimento intui-
ação. Em contrapartida, os participantes da tivo dos participantes.
interação que tratam de coordenar de co- O modelo estratégico de ação se satisfaz
mum acordo os seus respectivos planos de com a explicitação das regras da ação ori-
ação e só os executam sob as condições do entada para o êxito, enquanto os outros
acordo alcançado, adotam a atitude realiza- modelos de ação especificam condições de
tiva (performativa) de falantes e ouvintes, e consenso e acordo, sob os quais os partici-
se entendem entre si, uns aos outros, sobre a pantes da interação podem executar seus
situação dada e a forma de dominá-la. A respectivos planos de ação. A ação regulada
atitude de orientação para o êxito isola o por normas pressupõe um consenso valora-
agente dos outros atores que encontra em tivo entre os participantes, a ação dramatúr-
seu entorno; porque, para ele, as ações de gica se apoia na relação consensual entre
seus adversários, assim como o resto dos um "ator" que de forma mais ou menos im-
ingredientes da situação, são simples meios pressionante coloca-se entre o palco e seu
e restrições para a realização do seu próprio público, e a interação linguisticamente me-
plano de ação; os objetos sociais não se diada que exige o estabelecimento de um
distinguem neste aspecto dos objetos físi- consenso, seja por assumir o papel do tipo
cos. A atitude de orientação para a compre- interpretativo e uma projeção ou execução
ensão, ao contrário, torna os participantes do papel do tipo criativo, ou através de
da interação dependentes um dos outros. processos cooperativos de interpretação. As
Estes dependem das atitudes de afirmação teorias de poder e de intercâmbio desenvol-
ou de negação de seus destinatários, porque vidas a partir do modelo de ação orientada
só podem chegar a um consenso com base para o êxito pressupõem que os participan-
no reconhecimento intersubjetivo das pre- tes da interação coordenam as suas ações
tensões de validade. através de influências recíprocas (a), en-
quanto as teorias não empiristas da ação
2 - O conceito de ação teleológica o-
substituem os processos de influência por
cupa, desde Aristóteles, o centro da teo-
processos de compreensão (b).
ria filosófica da ação. O ator realiza os
(a) O modelo teleológico da ação se
seus fins ou faz com que se produza o es-
amplia e se converte em um modelo de
tado desejado elegendo, em uma determi-
ação estratégica quando, no cálculo que o
nada situação dada, os meios que ofereçam
agente faz do seu próprio êxito, pode entrar
perspectivas de êxito, e os aplicando de
expectativas sobre as decisões de pelo me-
forma adequada. Central nesse processo é o
nos outro ator, que também é agente e atua
plano de ação apoiado na interpretação de
orientando-se à consecução de seus fins.
uma situação e endereçado à realização de
Este modelo de ação é muitas vezes inter-
um fim, plano de ação este que permite
pretado nos termos utilitaristas; então, se

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supõe que o ator escolhe e calcula os meios (1959) compreende a dominação no sentido
e fins a partir do ponto de vista da maximi- integralmente weberiano de um poder ins-
zação de utilidade ou de expectativas de titucionalizado que necessita legitimação.
utilidade. Mas, desse conceito de ação es- Ambos, em seus esforços teóricos, forne-
tratégica não se pode obter um conceito de cem componentes normativos que alteiam
ordem social se não se juntam a ele outros uma ordem concebida, de outro modo, em
pressupostos adicionais. Da interpenetração termos instrumentais, mas, no modelo de
de cálculos egocêntricos de utilidade só ação estratégica que sustenta ambas as teo-
podem resultar padrões de interação, ou rias, se tratam de corpos estranhos.
seja, concatenações regulares e estáveis de Uma solução mais consequente é ofere-
interações desde que as preferências dos cida pelo funcionalismo sistêmico que subs-
atores envolvidos se complementem e as titui o conceito de ação estratégica pelo de
respectivas constelações de interesses se interação regida por meios. A ordem social
equilibrem. é entendida de antemão conforme o modelo
Os dois casos exemplares, para os quais, de sistemas que conservam os seus limites,
em termos gerais, isso pode levar a supor, ou seja, com independência da perspectiva
são as relações de intercâmbio que se esta- conceitual de uma teoria da ação. Melhor
belecem entre ofertantes e demandantes que dito, o conceito de ação social é, por seu
competem livremente entre si, bem como as turno, cortado no molde de um conceito de
relações de poder que, no marco das rela- meio de comunicação ou de meio de regu-
ções de dominação admitidas, se estabele- lação, erguido nos termos da teoria dos
cem entre os que mandam e os que obede- sistemas (HABERMAS, 1980).
cem. Na medida em que as relações inter- Tal meio possui as propriedades de um
pessoais entre sujeitos que atuam visando o código com cuja ajuda se transmitem as
seu próprio êxito vêm reguladas pela troca e informações do emissor ao receptor. Mas,
pelo poder, a sociedade se apresenta como ao contrário do que acontece com as ex-
uma ordem instrumental. Esta especializa pressões gramaticais de uma língua, as ex-
as orientações da ação em termos de con- pressões simbólicas de um meio de regula-
corrência por dinheiro e por poder e coor- ção ou de controle, por exemplo, os preços,
dena as decisões por meio de relações de levam incrustada algo assim como uma
mercado ou de relações de dominação. estrutura de preferências - podem informar
Chamo de instrumentais as ordens pura- o receptor sobre uma oferta e, simultane-
mente econômicas ou abordadas exclusi- amente, motivá-lo a aceitar a oferta. Um
vamente em termos de política de poder, meio de regulação ou de controle possui
porque surgem de relações interpessoais, uma estrutura tal, que as ações do alter
nas quais os participantes da interação se permanecem conectadas com as ações do
instrumentalizam uns aos outros como mei- ego evitando os riscos que os processos de
os para atingir os seus próprios fins. formação de consenso comportam. Este
Pois bem, Durkheim, Weber e Parsons automatismo se produz porque o código do
insistiram, repetidas vezes, que as ordens meio só vale:
instrumentais não podem ser estáveis, e que
Para uma classe bem delimi-
as ordens sociais, exclusivamente assenta-
tada de situações padrões,
das sobre a interpenetração de constelações
de interesses, não podem ser duradouras. E, Que vêm definidas por uma
de fato, as teorias sociológicas do poder e constelação unívoca de inte-
da troca não sabem se ajustar sem tomar resses
alguns empréstimos do conceito de uma Que as orientações de ações
ordem normativa. Assim, por exemplo, P. dos participantes vêm afixa-
Blau (1964) complementa as categorias uti- das por um valor generali-
litaristas básicas de sua teoria da troca in- zado;
troduzindo ideias de justiça, sobre cuja base
os atores podem avaliar como mais ou me- Que o alter só pode decidir
nos "justo" o que recebem de outras pessoas basicamente entre duas op-
em troca do que lhes dão; e, em sua teoria ções alternativas;
do conflito, por outro lado, R. Dahrendorf

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Que o ego pode controlar es- labutam diretamente, quer dizer, sem qual-
sas posturas ou opções do al- quer mediação, para a realização de seus
ter por meio de ofertas e planos de ação, a comunicação linguística é
um meio, como qualquer outro, que se ser-
Que os atores só podem se
ve da linguagem para provocar efeitos per-
orientar através das conse-
locutórios. Sem dúvida que existem nume-
quências que suas ações pos-
rosos casos de entendimento indireto: seja
sam ter, quer dizer, eles pos-
no caso, por exemplo, em que um ator dá a
suem a liberdade de tomar
entender algo a outro por meio de sinais, o
suas decisões, exclusiva-
que indiretamente provoca este outro, atra-
mente, a partir de um cálculo
vés de uma elaboração inferencial da per-
sobre as probabilidades de
cepção da situação, para uma idéia particu-
êxito de sua ação.
lar ou para conceber uma intenção específi-
No caso exemplar do dinheiro, a situa- ca; ou porque um ator, com base em uma
ção padrão vem definida pelo processo de prática cotidiana de comunicação já estabe-
troca de produtos. Os participantes no pro- lecida, logre atar o outro a seus próprios
cesso de troca se atêm aos interesses eco- fins, quer dizer, o motive, através da mani-
nômicos, tratando de otimizar, no emprego pulação dos meios linguísticos, a adotar o
de recursos escassos para fins alternativos, comportamento desejado, instrumen-
a relação entre gasto e rendimento. A utili- talizando-o, portanto, para o próprio êxito
dade aqui é o valor generalizado, ou seja, de sua ação. Só que o uso da linguagem
significando o termo generalizado aquilo orientado às consequências a que se pre-
que liga por igual, em todos os lugares e em tende, perde o telos (inscrito na própria
todos os momentos, todos os atores que linguagem) de um acordo a que os partici-
participam das operações monetárias. O pantes da interação podem alcançar entre si
código dinheiro esquematiza as possíveis sobre algo.
tomadas de posição de alter, de modo que (b) Os modelos de ação não estratégica
este pode aceitar ou recusar a oferta de tro- pressupõem como componente essencial da
ca de ego e, com ele, adquirir uma posse ou coordenação da ação um uso da linguagem
renunciar a esta aquisição. Sob estas condi- orientado ao entendimento, mesmo sob
ções, os participantes da troca podem con- aspectos unilaterais de acordo com o tipo de
dicionar as suas ofertas através de suas ação em questão. Na ação regulada por
tomadas de posição recíprocas, sem ter que normas o entendimento serve como uma
se apoiar na disponibilidade à cooperação, atualização de um acordo grupal normativo
que é o pressuposto da ação comunicativa. já vigente na ação dramatúrgica, que se
O que se espera dos atores é, antes, uma refere a uma autorrepresentação para um
atitude objetivante frente à situação da ação público, onde os "atores" se impressionam
e uma orientação racional para as conse- uns aos outros. Utiliza-se aqui esses dois
quências da ação. A rentabilidade constitui conceitos tal como eles foram introduzidos,
o critério no qual se calculam as chances de respectivamente, por Parsons (1949) e
êxito da ação. Goffman (1959; 1967).
O conceito de uma interação regida pelo O conceito de ação regulada por nor-
meio dinheiro surge da idéia de ação estra- mas não se refere ao comportamento de um
tégica mediada pelo mercado, ao mesmo ator em princípio solitário, que encontre a
tempo em que a substitui, e se encaixa a um sua volta outros atores, mas, a membros de
conceito de sociedade articulado nos termos um grupo social que orientam sua ação
da teoria dos sistemas, que não precisa ser através de valores comuns. O ator particular
complementado por quaisquer princípios ou segue uma norma (ou a transgride), no inte-
por conceitos básicos do tipo normativistas. rior de uma dada situação, onde se estabele-
As interações estratégicas também são cem as condições nas quais a norma se apli-
entendidas, normalmente, como linguisti- ca. As normas expressam um acordo vigen-
camente mediadas, mas, dentro deste mo- te em um grupo social. Todos os membros
delo os atos de fala mesmo são assimilados de um grupo, em que norma se aplica, tem
como ações orientadas ao êxito. Pois, para o direito de esperar uns dos outros que, em
os sujeitos que atuam estrategicamente, que determinadas situações, executem ou omi-

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tam as ações a que a norma se refere. O A ação regulada por normas responde a
conceito central de observância de uma uma ordem social entendida como um sis-
norma significa o cumprimento de uma tema de normas reconhecidas ou de institui-
expectativa generalizada de comportamen- ções vigentes. E, certamente, nas institui-
to. Um comportamento esperado não possui ções que se consideram mais sólidas e me-
o sentido cognitivo da expectativa de um lhor integradas permanecem as orientações
sucesso prognosticado, mas, o sentido nor- valorativas normativamente exigidas atra-
mativo de que os membros do grupo têm o vés das constelações de interesses.
direito de esperar um determinado compor- Este conceito de sociedade é posto, no
tamento. Este modelo normativo de ação é entanto, em termos tão estreitos que não
o que se encontra subjacente à teoria do deixa espaço para as operações construtivas
papel social. do próprio ator; se expondo, então, à obje-
O conceito de ação dramatúrgica não se ção de pressupor um sujeito de ação "super-
refere primariamente a nenhum ator solitá- socializado" (D. Wrong). Em vez disso, o
rio, nem a um determinado membro de um ator pressuposto na ação dramatúrgica se
grupo social, mas, aos participantes da inte- encontraria “subsocializado”. Neste último
ração que constituem um público, uns para modelo de ação não há lugar categorial ou
os outros, onde realizam apresentações de si conceitual para as ordens institucionais. O
mesmos. O ator suscita em seu público uma modelo conta, em vez disso, com uma plu-
determinada imagem e certa impressão de ralidade de identidades que se afirmam a si
si, revelando a sua subjetividade de forma mesmas, e que se comunica entre si por
mais ou menos calculada no sentido de uma meio da autoapresentação.
imagem com que quer si apresentar. Todo Certamente este modelo expressivista
agente pode controlar o acesso público à outorga um espaço às operações criativas
esfera de suas próprias intenções, pensa- do ator, mas, revela deficiências que resul-
mentos, atitudes, desejos e sentimentos, tam simétricas às debilidades do modelo
etc., a que só ele tem acesso privilegiado. normativista. Enquanto os sujeitos superso-
Na ação dramatúrgica os participantes cializados se limitam a reproduzir as mes-
aproveitam essa circunstância e controlam a mas estruturas institucionalizadas na ordem
sua interação por meio da regulação e do social; as identidades, tão ricamente faceta-
controle do acesso recíproco à subjetividade das, fazem exibição de si mesmas, e são
de cada um. O conceito central da autorre- concebidas como seres que estão acima da
presentação significa, portanto, não um sociedade ou que, por assim dizer, pene-
comportamento expressivo espontâneo, tram-na de fora.
mas, a estilização da expressão de suas pró- Estas deficiências complementares são
prias experiências, realizadas visando à superadas pelo interacionismo simbólico.
imagem que alguém quer dar de si a um Por assumir e desempenhar papéis se en-
espectador. Este modelo de ação dramatúr- tende o mecanismo de um processo de a-
gica serve, em primeiro lugar, para descri- prendizagem que um neófito constrói o
ções de interação orientada em termos fe- mundo social durante o desenvolvimento de
nomenológicos; porém, até o momento não sua própria identidade.
tem sido desenvolvido em uma abordagem Este conceito de assunção e desempenho
teórica capaz de fazer generalizações1. de papéis, ou role-taking, permite compre-
ender a individuação como um processo de
1
Ademais, Goffman faz um uso equivocado socialização e vice-versa, a socialização
deste modelo de ação. A escala de como um processo de individuação. O inte-
autoapresentação varia desde a comunicação racionismo simbólico suprime a oposição
sincera das próprias intenções, desejos e
sentimentos, etc, até a uma manipulação cínica entendimento. Caso contrário, é uma forma sutil
das impressões que um ator provoca nos outros. de exercício simbólico-expressivo do poder, ou
Ainda mais, tais impressions manegement seja, de uma versão especial de ação orientada
subsumem sob o conceito de ação dramatúrgica, ao êxito, de onde se pode deduzir (um bom
quando parece estar dirigida a um público que, exemplo desse segundo caminho pode ser
candidamente,quer dizer, sem dar-se conta de encontrado nos trabalhos de Pierre Bourdieu)
intenções estratégicas, se imagina estar um conceito correspondente de sociedade
assistindo a una representação orientada para o articulado em relação a uma teoria do poder.

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abstrata entre as ordens institucionais e a uma teoria da sociedade, já desenvolvida,


pluralidade de identidades individuais, e em detalhe, em outro lugar (HABERMAS,
isso em um processo de formação circular 1987)2.
que constitui por igual a ambas as partes,
3 - Tanto o interacionismo simbólico
isto é, as ordens sociais e os atores. Este
quanto a etnometodologia de inspiração
modelo reage com estas inovações concei-
fenomenológica assumem a tarefa de es-
tuais às já mencionadas deficiências de
clarecer o mecanismo de coordenação lin-
conceituação da ordem social, porém, sem
guística da ação orientada ao entendimento;
renovar, no entanto, o conceito mesmo de
mas, com os conceitos de role-taking e
ação social. No interacionismo simbólico
interpretação, causam um redemoinho à
todas as ações sociais são compreendidas de
análise se direcionando para outros fins, e
acordo com o modelo de interações sociali-
apresentam a ação comunicativa como um
zadoras; mas, não se encontra nele expli-
meio pelo qual vagueiam os processos de
cado como a linguagem pode funcionar
socialização ou se fingem ordens normati-
como um meio de socialização.
vas. Este desvio da finalidade original da
As abordagens fenomenológicas e her-
teoria da ação, no entender do autor, tem o
menêuticas, especialmente a etnometodolo-
seu começo na falta de cuidado das tradi-
gia fundada por H. Garfinkel têm abordado
ções de pesquisa, que se iniciam a partir de
este problema. Entendem as ações sociais
G. H. Mead e A. Schütz, em distinguir entre
como processos cooperativos de interpreta-
os conceitos de mundo e mundo da vida;
ção em que os participantes da interação
isto é, aquele no qual os participantes da
negociam definições comuns da situação
interação se entendem entre si, não deve ser
para coordenar os seus planos de ação. Es-
contaminado com o a partir de onde os
sas abordagens, porém, se concentram de
participantes iniciam e discutem suas ope-
forma exclusiva sobre as operações inter-
rações interpretativas.
pretativas dos atores, o que faz parecer que
A ação orientada ao entendimento é re-
as ações se dissolvem nos atos de fala, e as
flexiva, daí que as ordens institucionais e as
interações sociais tacitamente se dissolve
identidades dos sujeitos agentes apareçam
nas conversações.
em dois pontos. Como ingredientes temati-
A partir desta perspectiva, a ordem so-
zaveis da situação da ação, podem se tornar
cial se esfuma em uma sequência contin-
explicitamente conscientes pelos agentes.
gente de ficções geradas intersubjetiva-
Como recursos para gerarem o processo de
mente, que só emergem da corrente de in-
comunicação em si, permanece em segundo
terpretações para, a seguir, de novo desmo-
plano e, deste modo, igual aos padrões de
ronar. No interior de cada sequência de
interpretação culturalmente acumulados, só
interação os intérpretes renovam a aparên-
se encontram presentes como conhecimento
cia de uma sociedade normativamente es-
implícito. Certamente o interacionismo e a
truturada, mas, na verdade, não fazem mais
fenomenologia elegeram uma abordagem
do que tatear a partir de um frágil consenso
que os obriga a distinguir entre temas e
instantâneo para outro. Porém, uma ação
recursos, quer dizer, em manter separados
comunicativa que se torne assemelhada à
os planos que representam o conteúdo e a
hermenêutica de um eterno diálogo, que dá
constituição dos processos de entendi-
volta sobre si mesma, só fornece, na melhor
mento. Contudo, como analiticamente não
das hipóteses, um conceito de ordem social
desenvolvem tais complexos suficiente-
que coincide sociedade com proteção, re-
mente, em cada um dos casos acaba por
flexivamente refratada, das tradições cultu-
autonomizar um destes aspectos.
rais.
Em um caso, cobra primazia ao ponto de
Começar-se-á mostrando por que o inte-
vista da constituição. A estrutura de pers-
racionismo simbólico e a etnometodologia
pectivas inscritas nos papéis sociais ocupa
falham na sua tarefa de desenvolver um
tanto a atenção que a ação comunicativa se
conceito de ação social em que a construção
encolhe e reduz a dimensão relevante para
linguística de um consenso cumpra a função
de coordenar a ação. Esta explicação serve 2
No que se segue, não se apontará como cita-
como um conceito-chave da ação comuni-
ções as reproduções literais de conceitos desen-
cativa, cuja fertilidade será demonstrada em volvidos pelo autor em outros trabalhos.

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os processos de socialização, ou seja, a As mesmas premissas ontológicas tam-


dimensão da assunção de papéis. No outro bém se aplicam ao conceito de ação estra-
caso, a elaboração cooperativa de temas tégica. Os sujeitos que agem estrategica-
passa para o primeiro plano, tanto que, tudo mente, que não se limitam a intervenções
o que resta como recurso é o conhecimento instrumentais, mas que perseguem os seus
cultural; e a ordem social, por assim dizer, objetivos por meio da influência sobre as
submerge em diálogos. decisões de outros atores, têm que expandir
A reprodução cultural do mundo da vida o seu aparato categorial em relação ao que
só pode ser conceituada adequadamente se pode se apresentar no mundo3. Com a com-
(a) se identifica as referências ao mundo ou plexidade das entidades intramundanas,
as relações com o mundo onde se encon- porém, não aumenta a complexidade do
tram os sujeitos que atuam comunicativa- conceito do mundo objetivo em si mesmo.
mente, (b) se si reformula o conceito de A atividade teleológica diferenciada em
situação a partir da perspectiva da ação ori- atividade estratégica continua a ser um con-
entada à compreensão, como forma de dis- ceito que conta apenas com um mundo. Em
tinguir, nas contribuições do mundo da vez disso, os conceitos de ação regulada por
vida, entre contribuições formadoras de normas e de ação dramatúrgica pressupõem
contexto e contribuições constitutivas, e (c) relações entre um ator e, em cada caso, um
se si abandona, no final, a perspectiva do mundo a mais.
ator, para ver qual é a contribuição que a Porquanto, no primeiro caso, no caso da
ação comunicativa permite, por seu lado, à ação regulada por normas junto ao mundo
manutenção e à geração do mundo da vida. objetivo dos estados de coisas existentes,
(a) As relações com o mundo. A partir aparece um mundo social, que é atribuído
de Frege e do primeiro Wittgenstein um ao ator como um portador de papéis, junto a
conceito semântico de mundo como totali- outros atores que podem participar com ele
dade foi imposto. Ao se acrescentar ainda o de relações interpessoais legitimamente
conceito intervencionista de lei e de causa- regulamentadas. Um mundo social consiste
lidade (WRIGHT, 1971), desenvolvido a deste modo, em ordens institucionais que
partir de Peirce, se pode prover o mundo fixam quais as interações que pertencem à
objetivo de um índice temporal e defini-lo totalidade das relações sociais e que podem
como totalidade dos estados de coisas co- se considerar justificadas, de um lado, e,
nectados conforme às leis, que existem ou simultaneamente, de todos os destinatários
que podem surgir em um determinado tem- deste complexo de normas que são afetados
po, ou pode se produzir por intervenção. pelo mesmo mundo social.
No plano semântico, tais estados de coi- Idêntico ao sentido do mundo objetivo,
sas são considerados como representados que pode ser explicado por referência à
pelo conteúdo ou como conteúdo propor- existência de estados de coisas, também o
cional das orações enunciativas ou das ora- sentido de mundo social pode ser explicado
ções de intenção. Os pressupostos ontológi- por referência à validade normativa das
cos relacionados ao modelo da atividade regras (no sentido de serem dignas de reco-
teleológica introduzido acima pode ser ex- nhecimento). No plano semântico, as nor-
plicitados, então, com a ajuda deste con- mas vêm representadas por orações norma-
ceito de mundo. tivas universais (ou preceitos), que são acei-
Para poder entender um processo como tas como justificadas pelos destinatários das
uma ação teleológica, se deve atribuir ao regras, de forma similar a como os fatos
ator (pelo menos implicitamente) a capaci- vêm representados por orações assertóricas
dade de formar opiniões e de submetê-las à verdadeiras.
apreciação, assim como de conceber inten- Ao descrever um processo como intera-
ções e as executar. Com esta atribuição se ção dirigida por normas se pressupõe que
pode supor que o ator pode adotar, em prin- os participantes distingam os componentes
cípio, duas relações com o mundo objetivo: factuais da sua situação de ação, quer dizer,
pode conhecer os estados de coisas exis-
tentes e pode trazer à existência os estados 3
Pois, agora, podem apresentar-se no mundo
de coisas desejados.
atores capazes de tomar decisões e não apenas
coisas e eventos.

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os meios e as condições, dos direitos e de- mentos no mesmo sentido em que se diz
veres. O modelo normativo de ação parte do que um objeto observável tem extensão,
principio de que os participantes podem peso, cor e outras propriedades semelhan-
adotar uma atitude objetivante em direção a tes. Um ator tem desejos e sentimentos no
algo duvidoso, bem como uma atitude de sentido de, se assim o quiser, poder ma-
conformidade em relação às normas frente a nifestar essas experiências ante um público,
algo que, com razão ou sem razão, é envi- de modo que esse público possa atribuir
ado. Mas, como no modelo de ação teleoló- esses desejos e sentimentos ao agente (na
gica, a ação é concebida essencialmente medida em que lhe dê crédito) como algo
como uma relação entre um ator e um mun- subjetivo.
do, - aqui, como uma relação com o mundo Ao descrever um processo como ação
social em que o ator se enfrenta em seu dramatúrgica se propôs que o ator isenta o
papel de destinatário da norma e de onde seu mundo interno do mundo externo. No
pode estabelecer relações interpessoais mundo externo o ator pode certamente dis-
legitimamente reguladas. tinguir entre os componentes normativos e
Nem aqui nem ali, porém, se pressupõe os não-normativos da situação de ação. No
ao ator em si um mundo, sobre o qual o modelo de ação de Goffman, contudo, não
próprio ator pode existir reflexivamente. está previsto que o ator possa enfrentar o
Somente o conceito de ação dramatúrgica mundo social através de uma atitude de
exige um pressuposto a mais, um pressu- conformidade com as normas. O ator leva
posto de um mundo subjetivo, ao qual se em consideração as relações interpessoais
refere o ator que, em sua ação, coloca em legitimamente reguladas, mas, apenas, co-
cena a si mesmo. mo fatos sociais. Parece também apropriado
No caso da ação dramatúrgica o ator classificar a ação dramatúrgica, então, co-
ação há de inventar-se, sobre o seu próprio mo um conceito que pressupõe dois mun-
mundo subjetivo, para se apresentar ante dos, a saber: o mundo interno e o mundo
um público com um aspecto de si mesmo. externo, ou o mundo subjetivo e o mundo
Esse mundo subjetivo pode ser definido objetivo.
como o conjunto de experiências do qual o As relações ator-mundo discutidas até
agente possui acesso privilegiado, em cada agora pertencem aos pressupostos ontológi-
caso. Mas, nesse âmbito da subjetividade, cos das descrições onde aparecem os con-
só se pode dar o nome de "mundo" se o ceitos correspondentes de ação. Ao empre-
significado de um mundo subjetivo pode ender, como cientistas sociais, tal descrição,
ser explicado de modo análogo ao de como se supõe que os atores entram em relações
o significado de mundo social pode ser com mundos concebidos como representa-
explicado por referência à vigência de nor- dos por uma totalidade de orações assertó-
mas (análogo, por seu turno, à existência de rias ou normativas ou expressivas válidas.
estados de coisas). Talvez se possa afirmar Enquanto se emprega o modelo de ação
que o subjetivo é representado por orações orientada ao entendimento tem-se que atri-
de vivência emitidas como verdadeiras, do buir aos atores às mesmas relações ator-
mesmo modo que os estados de coisas po- mundo, mas, desta vez como relações refle-
dem ser representados por enunciados ver- xivas. Pode-se supor, então, porquanto, que
dadeiros e as normas válidas por orações de os atores também dominam linguistica-
dever justificadas. mente as relações que estabelecem com o
As experiências subjetivas não devem mundo e as mobilizam para o fim coopera-
ser entendidas como estados mentais ou tivamente seguido de se entenderem.
episódios internos. Ao assim serem enten- Os próprios sujeitos descritos fazem uso
didas apareceria, porquanto, próximas a daquelas orações, se valendo das quais o
entidades, a ingredientes do mundo obje- cientista social, ao descrevê-las, foi capaz
tivo. de esclarecer aqui o status dos fatos, as
O ter experiências pode ser entendido normas e as experiências, quer dizer, os
como algo análogo à existência dos estados referentes da ação endereçada à consecução
de coisas, mas, não se deve assemelhar um de fins, da ação regida por normas e da ação
ao outro. Um sujeito capaz de se expressar dramatúrgica. Os participantes da interação
não "tem" ou "possui" desejos ou senti- utilizam tais orações em atos comunicativos

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com aqueles que buscam entender a sua O falante pretende, assim, a verdade aos
própria situação, de modo que lhes sejam enunciados e as pressuposições de existên-
possível coordenar de comum acordo os cia, retidão para as ações legitimamente
seus próprios planos de ação. reguladas e para o seu contexto normativo.
O conceito de ação comunicativa força Bem como, veracidade em relação à mani-
ou obriga a considerar também os atores festação de suas experiências subjetivas.
como falantes e ouvintes, que se referem a (b) Mundo e mundo da vida. Se se en-
algo no mundo objetivo, no mundo social e tende a ação como o domínio de situações,
no mundo subjetivo, e se envolvem recipro- então o conceito de ação comunicativa des-
camente a este respeito pretensões de vali- taca, sobretudo, dois aspectos no domínio
dade que podem ser aceitas ou postas em da situação: o aspecto teleológico de execu-
causa. Os atores não se referem com inten- ção de um plano de ação e o do aspecto
tione recta para algo no mundo objetivo, no comunicativo de interpretação da situação e
mundo social ou no mundo subjetivo, mas de obtenção de um acordo. Essencial para a
relativizam suas transmissões sobre este ação orientada ao entendimento é a condi-
algo no mundo tendo presente a possibili- ção de que os participantes a realizem de
dade de que a validade delas possa ser posta acordo os seus planos, em uma situação de
em questão por outros atores. ação definida em comum.
O entendimento, então, funciona como Os participantes tentam, no seu desen-
um mecanismo coordenador da ação da volvimento, deste modo, evitar dois riscos:
seguinte forma: os participantes da intera- o risco de uma compreensão falha, ou seja,
ção concordam com a validade que preten- de discordância ou mal-entendido, e o risco
dem para as suas emissões, ou seja, reco- de um plano de ação fracassado, quer di-
nhecem intersubjetivamente as pretensões zer, o risco de fracasso. Evitar o primeiro
de validade que reciprocamente estabelem risco é uma condição necessária para cum-
uns com os outros. Um falante afirma uma prir a segunda condição. Os participantes,
pretensão de validade suscetível de crítica assim, não podem alcançar os seus objeti-
ao se referir, com a sua emissão, a pelo vos sem atender a necessidade de entendi-
menos um mundo e faz uso da circunstância mento indispensável para fazer uso das
de que essa relação entre o ator e o mundo é possibilidades de ação que a situação ofe-
acessível, em princípio, a um juízo objetivo rece, - ou, pelo menos, não pode alcançar
para desafiar o seu próximo a uma tomada esse objetivo por meio da ação comunica-
de posição racionalmente motivada. Ao tiva.
ignorar que a expressão simbólica utilizada Uma situação representa um fragmento
deve ser bem formada, um ator que se ori- de um mundo de vida delimitado em rela-
ente para o entendimento, no sentido indi- ção a um tema. Um tema, por seu turno,
cado, envolve implicitamente, com a sua surge em conexão com os interesses e os
emissão, exatamente, três pretensões de objetivos da ação de (pelo menos) um parti-
validade. A saber, a pretensão: cipante. Um tema, assim, circunscreve o
âmbito de relevância dos componentes da
i. De que o enunciado que faz é
situação suscetíveis de ser tematizado e
verdadeiro (que cumpre, de
vem sublinhado pelos planos que os partici-
fato, as condições de existên-
pantes concebem sobre a base da interpreta-
cia do conteúdo proposicio-
ção que fazem da situação, no intuito de
nal mencionado);
realizar os seus próprios fins.
ii. De que a ação proposta é A situação de ação interpretada circuns-
correta por referência a um creve um âmbito tematicamente aberto de
contexto normativo vigente alternativas de ações, quer dizer, de condi-
(ou de que o contexto nor- ções e de meios para a execução de planos.
mativo a que a ação se atém À situação pertence tudo o que é sentido
é consistente e legítimo), e como restrição às iniciativas de ação cor-
iii. De que a intenção manifesta respondentes. Enquanto o ator mantém
do falante é, de fato, a que o sobre as suas costas o mundo da vida, como
falante expressa. um recurso da ação orientada ao entendi-
mento, as restrições que as circunstâncias

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impõem à execução do seu plano se colo- nizadas para que um ouvinte possa compre-
cam como ingredientes da situação. Ingre- ender o seu significado literal, tem proprie-
dientes estes que, no sistema de referência dades curiosas. É um conhecimento implí-
dos três conceitos formais de mundo, po- cito, que não pode ser exposto em uma
dem ser classificados como fatos, normas e multiplicidade finita de proposições. É um
experiências. conhecimento, assim, holisticamente es-
Ao se introduzir este conceito de situa- truturado, a cujos elementos remetem-se
ção, contudo, cabe distinguir aqui entre uns aos outros, e é ao mesmo tempo um
"mundo" e "mundo da vida" a partir do conhecimento que não se encontra à dispo-
ponto de vista da tematização dos objetos e sição direta do ator, no sentido de que não
da restrição dos espaços de iniciativa. Em se pode torná-lo consciente à vontade, nem
primeiro lugar, os conceitos de "mundo" e tão pouco se pode pô-lo em dúvida, à von-
"mundo da vida" servem à demarcação de tade.
áreas que são acessíveis, aos participantes O mundo da vida se encontra presente
de uma dada situação, à tematização ou dela na forma de autoevidências com as quais,
são subtraídos. os que agem comunicativamente, estão
A partir da perspectiva dos participantes, intuitivamente familiarizados, de modo que
vertida para a situação, o mundo da vida não se pode sequer contar com a possibili-
aparece como um contexto formador de dade de que se tornem problematizáveis. O
horizontes dos processos de entendimento, mundo da vida não é "conhecido" no sen-
que delimita a situação de ação e, portanto, tido estrito, pois o conhecimento explícito
permanece inacessível à tematização. Com se caracteriza porque pode por-se em ques-
os temas, são deslocados, também, os frag- tão e porque pode se fundamentar. Apenas
mentos do mundo da vida relevantes para a o fragmento do mundo da vida relevante,
situação. Para os quais surge uma necessi- em cada caso, para uma dada situação,
dade de entendimento com vista à atualiza- constitui um contexto suscetível de temati-
ção das possibilidades de ação. zar-se à vontade, nas emissões que os agen-
Apenas o que, deste modo, pode se con- tes comunicativos convertem em temas, isto
verter em um ingrediente da situação, per- é, como algo no mundo.
tence aos pressupostos tematizaveis (à von- Mas o mundo da vida não tem apenas a
tade) das emissões comunicativas com as função de formar um contexto. Oferece
que os participantes da interação se en- uma provisão de convicções, onde os parti-
tendem sobre algo no mundo. É bem ver- cipantes em comunicação recorrem para
dade que estas pressuposições dependentes cobrir, com interpretações susceptíveis de
da situação formam um contexto, mas, ain- consenso, a necessidade de entendimento
da não é um contexto suficiente, não é sufi- surgida em uma determinada situação. Co-
ciente para completar o significado literal mo recurso, o mundo da vida cumpre, por-
das expressões linguisticamente padroniza- tanto, um papel constitutivo no processo de
das, de modo que estas cobrem o signi- compreensão. O "mundo" e o "mundo da
ficado perfeitamente determinado de um vida" se diferenciam, assim, não só do pon-
texto. Então, convém distinguir assim entre to de vista da tematização dos objetos, mas,
o contexto que condiz uma situação e o também, a partir da restrição de espaços de
contexto que condiz o mundo da vida. ação. O mundo da vida, na medida em que
Como Searle (1969) demonstrou, a par- entra em consideração como recurso de
tir do último Wittgenstein, o significado de processos de interpretação, pode ser repre-
um texto só pode ser apreendido dentro do sentado como um acervo linguisticamente
contexto de uma pré-compreensão que se organizado de panos de fundo, que se re-
desenvolve na medida em que se cresce em produzem na forma de tradição cultural.
uma cultura dada. Pré-compreensão esta O conhecimento de fundo transmitido
que possui o status de pano de fundo pró- culturalmente ocupa, frente às emissões
prios do mundo da vida. comunicativas geradas com a sua ajuda,
Este conhecimento de fundo, funda- uma posição de certo modo transcendental.
mental, que tacitamente complementa o Provê que os participantes da interação
conhecimento das condições de aceitabili- encontrem, já de antemão interpretada, - em
dade das emissões linguisticamente padro- relação ao que o conteúdo se refere, - a

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conexão entre o mundo objetivo, o mundo Algo diferente do que sucede com as
social e o mundo subjetivo. tradições culturais, é o que acontece com as
Quando os participantes transcendem o instituições e as estruturas de personalidade.
horizonte de uma situação dada, deste mo- Estas podem, supostamente, limitar o es-
do, não se movem em um vazio. Todavia, paço de iniciativa dos atores, ficar em seu
voltam imediatamente a se encontrar em caminho como ingredientes da situação. Daí
outro âmbito, agora atualizado, mas, no que apareçam, também, como algo norma-
entanto, já pré-interpretado, através do cul- tivo ou como algo subjetivo, por assim di-
tural autoevidente. Na prática comunicativa zer, de nascimento, sob um dos conceitos
cotidiana não ocorrem situações absoluta- formais do mundo.
mente desconhecidas, e as novas situações Mas esta circunstância não deve levar à
emergem, também, de um mundo da vida suposição de que as normas e as experiên-
que é construído através de uma provisão cias (como os fatos ou as coisas e eventos)
de conhecimento de antemão sempre fami- se apresentem exclusivamente como algo
liar. Frente ao mundo da vida quem atua sobre o que os participantes da interação se
comunicativamente não pode adotar uma considerem. Podem adotar um status duplo,
atitude extramundana, nem pode tão pouco - como ingredientes de um mundo social ou
o fazer frente à linguagem, como meio de de um mundo subjetivo, por um lado, e
seus processos de entendimento. como componentes estruturais do mundo da
Ao executar ou ao entender um ato de vida, por outro. O pano de fundo, que cons-
fala, os participantes de uma comunicação titui o mundo da vida, consiste de habilida-
se movem até tal ponto no interior de sua des individuais, de conhecimento intuitivo
língua, que uma emissão atual não pode pô- sobre como lidar com uma situação, e de
la ante si como "algo intersubjetivo", do práticas socialmente conhecidas e exercita-
mesmo modo como pode ter a experiência das, - quer dizer, do conhecimento intuitivo
de um evento como algo objetivo, ou da sobre o no em que se pode apoiar ou o no
forma como uma expectativa de comporta- em que se pode confiar em uma determi-
mento vem ao encontro deles como algo nada situação, - de convicções, de fundo,
normativo, ou, ainda, do modo como vivem trivialmente conhecidas.
(ou atribuem a outro) um desejo, um senti- A sociedade e personalidade não apenas
mento, etc. como algo subjetivo. Os meios operam como restrições, mas cumprem,
do entendimento se mantêm através de uma também, a função de recursos. A aproble-
peculiar semitranscendência. maticidade do mundo da vida, no e desde o
Embora os participantes da interação que se age comunicativamente, é explicado
mantenham a sua atitude realizativa, a lin- pela segurança que o ator credita a solidari-
guagem por eles usada no momento conti- edades e a competências comprovadas.
nua no entorno, à suas voltas. Assim, a Pode-se mesmo dizer que a caráter pa-
cultura e a língua, não contam normalmente radoxal do conhecimento de que se compõe
como ingredientes da situação. Não restrin- o mundo da vida, um conhecimento que
gem, de modo algum, o espaço de ação, apenas proporciona o sentimento de certeza
nem tão pouco caem sob um dos conceitos absoluta porque não se sabe dele, se deve
formais de mundo com cuja ajuda os parti- ao fato de que o conhecimento sobre o do
cipantes se entendem sobre uma determi- em que se pode apoiar e sobre o de como se
nada situação. Não existe necessidade, as- faz algo, se encontra ainda entrelaçado, de
sim, de nenhum conceito sob o qual os par- forma indiferenciada, com o aquilo que
ticipantes pudessem apreender como ele-
mentos de uma situação de ação4. mundo da vida que se tornaram disfuncionais
(transmissões ininteligíveis, tradições que per-
4
Apenas nos raros momentos em que fracassam deram sua transparência e, no caso limite, uma
como recursos, a cultura e a linguagem desen- linguagem não decifrada), podem recorrer a
volvem a peculiar resistência que se experimen- algo além dos três conceitos de mundo conheci-
ta nas situações de um entendimento conturba- dos. Esses elementos do mundo da vida que
do. É quando se precisam, então, de trabalhos de falharam como recursos têm de ser identificados
reparação de tradutores, intérpretes ou terapeu- como fatos culturais que restringem o espaço de
tas. Mas, nem eles, contudo, quando tentam ação.
levar, a uma interpretação comum, elementos do

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prerreflexivamente se conhece. Mas, se as o aspecto de socialização, finalmente, a


solidariedades dos grupos integrados por ação comunicativa serve ao desenvolvi-
meio de valores e normas e as habilidades mento das identidades pessoais. As estrutu-
dos indivíduos socializados afluem por trás ras simbólicas do mundo da vida se repro-
da ação comunicativa, o mesmo que o faz duzem, então, através da continuidade do
as tradições culturais, o mais conveniente é conhecimento válido, da estabilização da
corrigir o estreitíssimo conceito culturalista solidariedade grupal e da formação de ato-
de mundo da vida. res capazes de responder por seus atos.
(c) Foi introduzido o conceito de mundo O processo de reprodução conecta as
da vida como pano de fundo da ação co- novas situações com as condições existen-
municativa. Embora o fragmento do mundo tes do mundo da vida, e isso tanto na di-
da vida, relevante a uma dada situação, em mensão semântica dos significados ou dos
relação ao agente que atua comunicativa- conteúdos (da tradição cultural), quanto nas
mente, parece impor-se a ele, e seja por ele dimensões do espaço social (dos grupos
abordado como um problema que tem de socialmente integrados) e do tempo histó-
solucionar, por assim dizer, por trás, con- rico (das gerações que se sucedem umas às
tudo, o mesmo agente se vê sustentado pelo outras). A estes processos de reprodução
pano de fundo que é o seu mundo da vida. cultural, de integração social e de socializa-
O domínio das situações se apresenta como ção correspondem como componentes es-
um processo circular onde o ator, simulta- truturais do mundo da vida, a cultura, a
neamente, é o iniciador de ações atribuíveis sociedade e a pessoa.
e o produto das tradições culturais de onde Chama-se de cultura a provisão de co-
se encontra, quer dizer, dos grupos de soli- nhecimento por onde os participantes da
dariedade a que pertence e dos processos de interação, ao se entenderem entre si sobre
socialização e aprendizagem a que está algo no mundo, fornecem interpretações.
sujeito. Chama-se sociedade às ordens legítimas,
Em vez da perspectiva do agente, con- através das quais os participantes da intera-
tudo, se adotar a perspectiva do mundo da ção regulam o seu pertencimento aos gru-
vida, se pode transformar a questão articu- pos sociais e, desta forma, asseguram a
lada nos termos de uma teoria da ação em solidariedade. Por personalidade se entende
uma questão estritamente sociológica: na as habilidades que convertem um sujeito em
qual as funções adotam a ação orientada ao uma pessoa possuidora e capaz de fala e de
entendimento para a reprodução do mundo ação, quer dizer, de colocar o sujeito na
da vida. Os participantes da interação, para situação de participante nos processos de
entender um ao outro em uma situação, se compreensão e de afirmar neles a sua pró-
movem dentro de uma tradição cultural, da pria identidade.
qual fazem uso ao mesmo tempo em que a O campo semântico dos conteúdos sim-
renovam. Os participantes da interação, bólicos, o espaço social e o tempo histórico
deste modo, ao coordenar as suas ações constituem as dimensões de onde se esten-
através do reconhecimento intersubjetivo dem as ações comunicativas. As interações
das pretensões de validade suscetíveis de que se entrelaçam até formar uma rede de
crítica, as apoiam em seus pertencimentos a práticas comunicativas cotidianas consti-
grupos sociais e reforçam ao mesmo tempo tuem os meios através dos quais se repro-
a integração destes. No caso das crianças, duzem a cultura, a sociedade e a pessoa.
nesse aspecto, ao participarem de interações Estes processos de reprodução se referem às
com pessoas que agem competentemente, estruturas simbólicas do mundo da vida, e
internalizam as orientações valorativas de deles se tem de distinguir a manutenção do
seu grupo social e adquirem a capacidade substrato material do mundo da vida.
generalizada para a ação. A reprodução material se efetua por
Sob o aspecto funcional do entendi- meio da atividade teleológica, com que os
mento a ação comunicativa serve, então, indivíduos socializados intervém no mundo
tanto à tradição quanto à renovação do co- para alcançar os seus fins. Como afirmou
nhecimento cultural. Abaixo o aspecto de Max Weber, os problemas que o agente tem
coordenação da ação serve à ação social e que dominar em cada situação, se divide em
ao estabelecimento de solidariedade, e, sob problemas de "dificuldades internas" e em

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problemas de "dificuldades externas". Para de fala pode proporcionar. Os atos de fala


estas categorias de tarefas, decorrentes da só podem servir a um fim perlocucionário
perspectiva da ação correspondem, - se si de exercer uma influência sobre o ouvinte,
considerar as coisas a partir da perspectiva se eles resultam aptos para a consecução de
da manutenção do mundo da vida, - os pro- fins ilocucionários. Se o ouvinte não en-
cessos de reprodução simbólica e de repro- tende o que o interlocutor diz, tão pouco um
dução material. falante que atue teleologicamente pode
movimentar o ouvinte, através de atos co-
4 – A autor deste artigo desenvolveu,
municativos, para se comportar de uma
intuitivamente, os conceitos de ação co-
forma qualquer desejada. Neste sentido, o
municativa e de mundo da vida partindo
uso da linguagem orientado às consequên-
do contexto da discussão atual no inte-
cias não representa um uso original, mas, a
rior da sociologia. Com isso não fez mais
subsunção de atos de fala, que servem a fins
do que tornar plausível certa pré-compreen-
ilocucionários, sob as condições da ação
são que, no máximo, pode abrir o caminho
orientada para o êxito (HABERMAS, 1984,
para uma análise conceitual em termos de
v. 1, pp. 387-397).
pragmática formal, que não se pode levar
(b) Acordo racionalmente motivado. O
adiante neste trabalho. O que se segue se
conceito de ação comunicativa depende
referirá a algumas tentativas de reconstru-
inteiramente da demonstração de que um
ção, empreendidas pelo autor em outro
acordo comunicativo6 pode cumprir funções
lugar.
de coordenação da ação. Com o seu "sim"
(a) Orientação para o êxito versus ori-
um ouvinte estabelece um acordo que, por
entação para o entendimento. Em relação à
um lado, se refere ao conteúdo da emissão
estratégia para a delimitação da ação comu-
e, por outro lado, se refere a garantias ima-
nicativa, é necessário explicar o que signi-
nentes ao ato de fala e a vínculos que re-
fica agir em uma atitude orientada ao en-
sultam relevantes para a interação subse-
tendimento. Designa-se esta ação, então, à
quente, ou seja, relevantes para sequência
atitude dos participantes na comunicação,
da interação. O potencial de ação típico do
onde, nos casos elementares, um realiza um
ato de fala, deste modo, se expressa na pre-
ato de fala e o outro toma uma posição com
tensão que o falante encaixa, - com a ajuda
um "sim" ou com um "não".
de um verbo performativo, - no caso de atos
Agora se seja aqui claro, nem toda a in-
de fala explícitos, em favor do que diz. O
teração linguisticamente mediada repre-
ouvinte, ao reconhecer essa pretensão, acei-
senta um exemplo de ação orientada ao
ta a oferta feita através do ato de fala.
entendimento. O ato de fala elementar ape-
Este êxito ilocucionário só é relevante
nas pode servir de modelo para uma orien-
para a ação, na medida em que, com ele, se
tação ao entendimento5, se o uso da lingua-
estabelece uma relação interpessoal entre o
gem orientado ao entendimento representar
falante e o ouvinte. A qual ordena espaços
o modo original de emprego da linguagem
de ação e sequências de interação, e que,
no geral, em respeito ao qual o uso da lin-
através de alternativas gerais de ação abre
guagem orientado às consequências ou ao
para o ouvinte possibilidades de conexão
entendimento indireto (o dar a entender) se
com o falante.
comporta parasitariamente. A tarefa con-
A questão é: de onde os atos de fala reti-
siste, portanto, em mostrar que não se pode
ram a sua força para coordenar a ação,
entender o que significa provocar linguisti-
quando essa autoridade, à diferença do que
camente efeitos sobre o ouvinte, se não se
acorre no caso dos atos de fala institucio-
sabe anteriormente o que significa uma
nalmente ligados, não é recebida direta-
relação em que o falante e o ouvinte possam
mente da validade social das normas. Ou,
vir a chegar a um acordo sobre algo com a
como ocorrem no caso das manifestações
ajuda de atos comunicativos.
imperativas da vontade, é devido a um po-
É precisamente sobre isso o que uma in-
vestigação detalhada das forças ilocucioná-
rias e dos efeitos perlocucionário dos atos
6
No caso mais simples de uma tomada de posi-
5
Que, por sua vez, não seja susceptível de deri- ção de um ouvinte frente a uma oferta que re-
var de uma ação orientada para o êxito. presenta o ato de fala de um falante.

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tencial de sanção contingentemente dis- a oferta que comporta o seu ato de fala e,
posto. com ele, conseguir um efeito de ajunta-
Ao analisar as coisas de forma mais de- mento que assegura o contato para o prosse-
talhada vê-se que a força, racionalmente guimento da interação.
motivadora da oferta que um ato de fala Os efeitos ilocucionários de vínculo, no
comporta, não resulta da validade do já entanto, só podem alcançar eficácia empí-
afirmado anteriormente, mas, dos seus efei- rica em um grau socialmente relevante,
tos coordenadores. Efeitos coordenadores porque as ações comunicativas estão inseri-
estes que trazem em si a garantia, a que o das em contextos do mundo da vida que
falante assume sempre que necessário ao se asseguram um amplo consenso de fundo. O
esforçar no desempenho da pretensão que o que implica que o peso dos riscos de falta
seu ato de fala está afirmando. de acordo entre duas ou mais pessoas, - ou
Nos casos das pretensões de verdade e da falta de aceitação de uma situação, de
das pretensões de justiça, esta garantia tam- uma decisão ou de uma opinião, - inscritos
bém pode ser desempenhada pelo ouvinte na ação comunicativa, depende não só da
em termos discursivos, ou seja, através de pressão exercida pelos problemas decor-
argumentos racionais. E, nos casos das pre- rentes dos conflitos de interesse que possam
tensões de veracidade, pode realizá-la atra- contingentemente eclodir, mas, também do
vés de um comportamento consistente7. aumento estrutural trazido pela progressiva
Na medida em que os ouvintes se atem a racionalização do mundo da vida, especial-
essa garantia oferecida pelo falante, entra mente, com a reflexivação das tradições
em vigor toda uma classe de vínculos rele- culturais e com a desvinculação da ação
vantes para a sequência da interação, que comunicativa em relação aos contextos
se encontram contidos no significado desta. normativos.
Por exemplo, no caso dos mandatos e das (c) Pretensões de validade e modos de
ordens, as obrigações da ação se referem comunicação. O núcleo da pragmática for-
principalmente aos destinatários; no caso mal constitui a análise dos pressupostos
das promessas e dos contratos se referem pragmático-universais dos atos de fala.
simetricamente a ambos os lados; e, no caso Trata-se, em primeiro lugar, do papel
das recomendações e das advertências, car- pragmático das pretensões de validade sus-
regadas de conteúdo normativo, se referem cetíveis de crítica, que se endereçam para
assimetricamente a ambas as partes. um reconhecimento intersubjetivo e reme-
Ao contrário do que ocorre nos atos de tem para a um potencial de razões. Deve-se
fala regulativos, o significado dos atos de mostrar, aqui, que todo ato de fala pode ser
fala constatativos apenas resultam em vín- rejeitado em conjunto, isto é, se pode negar,
culos na medida em que o falante e o ou- sob três aspectos: sob o aspecto da justiça
vinte concordarem em apoiar a sua ação em que, em referência a um contexto norma-
interpretações da situação que não contra- tivo, o falante pretende para a ação que
digam os enunciados que, em cada caso, projeta (ou indiretamente para estas mes-
são aceitos como verdadeiros. Do signifi- mas normas); sob o aspecto da verdade, que
cado dos atos de fala expressivos também o falante pretende, com a sua emissão, para
se seguem diretamente obrigações de ação, um enunciado (ou para pressuposições de
porque o falante especifica aquilo que não existência do conteúdo propossional do
pode ser contrariado ou cair em contradição anunciado nominalizado), e, finalmente,
no seu comportamento. sob o aspecto da veracidade que o falante
Graças à base de validade da comunica- pretende para a emissão ou manifestação de
ção endereçada ao entendimento, pode, experiências subjetivas a que tem acesso
portanto, um falante, ao assumir a garantia privilegiado. Na intenção comunicativa do
de desempenhar uma pretensão de validade falante está presente (a) executar a ação
suscetível à crítica, fazer um ouvinte aceitar apropriada em relação ao contexto norma-
tivo dado, para que possa ser estabelecida
7
entre ele e o ouvinte uma relação interpes-
O fato de que alguém pense na realidade o que soal reconhecida como legítima; (b) fazer
diz é algo que só pode se afirmar vendo se é
um enunciado verdadeiro (ou pressupo-
coerente na sua ação, e não pedindo razões ao
interessado. sições de existência pertinentes), de modo

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que o ouvinte possa aceitar e compartilhar o tamento (HABERMAS, 1984, v. 1, pp. 390-
conhecimento do falante; e (c) manifestar 420) 8.
veridicamente as suas opiniões, intenções, (d) Prática comunicativa cotidiana e
sentimentos, desejos, etc., para que o ou- mundo da vida. Por fim, a análise praticada
vinte possa dar credibilidade ao dito. nos termos da pragmática formal, que parte
A análise das pretensões de validade que dos atos de fala altamente idealizados, iso-
tem por meta primeira a comunidade de lados e elementares, tem que ser desenvol-
convicções normativas, conhecimento pro- vida até a circunstância de onde resultem
posicional e confiança recíproca, fornece, reconhecíveis os pontos de contato para
em segundo lugar, a chave para a identifi- uma pesquisa das tramas complexas da ação
cação das funções básicas do entendimento e das formas e estilos de vida comunicati-
linguístico. A linguagem serve (a) para o vamente estruturadas. Trata-se aqui, em
estabelecimento e para a renovação de rela- primeiro lugar, do problema fundamental
ções interpessoais em que o falante se re- de como se relaciona o significado contex-
fere a algo no mundo das ordens legítimas; tual de um ato de fala com o significado
(b) para a exposição ou pressuposição de literal dos elementos da oração e das ora-
estados e eventos, com os quais o falante ções referidas. Busca-se mostrar que o sig-
faz referencia a algo no mundo dos estados nificado literal depende dos complementos
de coisas existentes; e (c) para a demonstra- fornecidos pelo contexto que representa a
ção de experiências, ou seja, a autorrepre- situação e pelo pano de fundo que repre-
sentação do próprio sujeito, no qual o fa- senta o mundo da vida. Mas, essa relativi-
lante faz referencia a algo no mundo subje- zação do significado das expressões linguis-
tivo, a que tem acesso privilegiado. ticamente estandardizadas não conduz a
A estas funções respondem, em terceiro uma dissolução contextualística de cons-
lugar, os modos básicos do emprego da tantes semânticas, quer dizer, para um con-
linguagem; destes modos devem derivar um sequente relativismo do significado. Isso
amplo espectro de forças ilocucionárias porque, as formas e os estilos de vida parti-
cunhadas em cada idioma. Só alguns tipos culares não apenas oferecem os ares de
ilocucionários possuem um caráter tão uni- família, mas, também, neles se repetem as
versal, que resultam diretamente aptos para infraestruturas universais do mundo da vida
caracterizar um modo básico. Neste sentido, (HABERMAS, 1987, v. 2, p. 429 e ss.; v. 2,
as promessas e os mandatos podem repre- p. 193 e ss.).
sentar o uso regulador da linguagem, as Para esta forte tese não basta considera-
constatações e as afirmações ao uso cons- ções relativas à teoria do significado. É
tatativo, e as confissões ao expressivo. necessário, nessa direção, em segundo lu-
Os tipos puros do uso da linguagem ori- gar, mostrar que, entre os componentes
entado à compreensão, sobre todos os casos estruturais dos atos de fala elementares, por
típicos de emprego de orações normativas, um lado, e as funções que os atos de fala
orações assertivas e orações expressivas, podem cumprir na reprodução do mundo da
oferecem, em quarto lugar, bons modelos vida, por outro, se dão as conexões internas.
para a análise das referências ao mundo ou Fez-se corresponder assim, até agora, os
a relações com o mundo e com as atitudes componentes proposicionais, ilocucionários
básicas que o falante adota ao se referir a e expressivos, que devem ser reconhecidos
algo no mundo. Para os conceitos de mundo no formato normal de qualquer ato de fala
objetivo, mundo subjetivo e mundo social elementar, em relação às cognições ou co-
correspondem uma atitude objetivante, que nhecimentos, e em relação às obrigações e
um observador neutro possui sobre algo que expressões. Mas, se si trás junto os corre-
acontece no mundo; uma atitude expres- latos pré-linguísticos que são conhecidos
siva, que um sujeito que faz uma apresenta-
ção de si mesmo manifesta algo do seu
8
interior diante de um público, a que tem O autor ainda não fez nenhum estudo sobre
acesso privilegiado; e, finalmente, a atitude uma lógica pragmática que pudesse explicar a
de conformidade com as normas, em que conservação de validade no trânsito regulado de
um modo de comunicação para outro. Sobre as
um membro de um grupo social atende ou
transferências intermodais de validade, ver,
viola as expectativas legítimas do compor- Habermas (1984, v. 1, p. 422, nota 84).

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através das investigações sobre o comporta- dade suficiente para lidar com a complexa
mento animal, - a partir da perspectiva de prática cotidiana. Caso contrário, o conceito
uma história evolutiva, e de forma a esta- normativo de ação orientada à compreensão
belecer uma comparação, - se vê como estes pode ser usado para uma pesquisa sistemá-
tiveram que experimentar uma mudança ao tica dos níveis linguísticos da realidade
acederem ao nível linguístico. (como o jogo, a ficção, as piadas, a ironia,
As percepções e as representações, de etc.) e para as patologias da linguagem
forma semelhante ao comportamento adap- (HABERMAS, 1984, v. 1, pp. 419-427).
tativo, adotam uma estrutura proposicional.
5 - digressões (a) Os planos da ação so-
As solidariedades geradas ritualmente, e as
cial e da integração social. Considera-se a
obrigações frente a um coletivo, são cliva-
ação comunicativa e a ação estratégica co-
das, no plano de ação regida por normas,
mo dois tipos de ação social, que repre-
pelo reconhecimento intersubjetivo das nor-
sentam uma alternativa a partir da perspec-
mas vigentes, por um lado, e por motivos
tiva do próprio agente; os participantes da
de ação em conformidade com as normas,
interação, mesmo que de forma intuitiva,
por outro lado.
têm que escolher entre uma atitude orien-
As expressões relacionadas ao corpo,
tada ao êxito ou uma atitude orientada para
que surgem espontaneamente, perdem o seu
o entendimento. No entanto, é necessário
caráter involuntário, deste modo, quando
frisar, as estruturas da atividade teleológica
são substituídas por emissões linguísticas
e as estruturas da comunicação só podem
ou interpretadas por meio delas. As emis-
ser separadas por fins analíticos.
sões ou manifestações expressivas servem
Estas estruturas, contudo, são diferente-
assim a intenções comunicativas, e podem
mente compostas, segundo o tipo de ação.
ser usadas intencionalmente.
Nas interações estratégicas, também, os
Este assentamento das cognições, obri-
meios de comunicação são usados no sen-
gações e expressões, sobre uma base lin-
tido de um uso da linguagem orientada
guística, pode explicar por que os meios
pelas consequências. Aqui, a formação
linguísticos de comunicação cumprem de-
linguística do consenso não funciona, como
terminadas funções: à parte da função de
um mecanismo de coordenação da ação, do
compreensão se encontram também, agora,
mesmo modo que na ação comunicativa.
a de coordenação da ação e a da socializa-
Na ação comunicativa os participantes
ção dos atores. Sob o aspecto da compreen-
da interação executam os seus planos tendo
são, os atos comunicativos servem para o
em vista um acordo comunicativamente
fornecimento de um saber culturalmente
alcançado, embora que as ações coordena-
acumulado: a tradição cultural, como já
das mesmas mantenham o seu caráter de
observado, se reproduz através do meio que
atividades teleológicas. A atividade teleoló-
representa a ação orientada à compreensão.
gica constitui, portanto, um componente,
Sob o aspecto de coordenação da ação esses
tanto da ação orientada para a compreensão
mesmos atos comunicativos servem ao
como da ação orientada para o êxito. Em
cumprimento de normas ajustado ao con-
ambos os casos, as ações implicam em in-
texto definido em questão: a integração
tervenções no mundo objetivo.
social também se cumpre através desse
Segundo a finalidade da ação estas po-
meio. Sob o aspecto de socialização, final-
dem incluir, também, ações instrumentais,
mente, os atos comunicativos servem à
quer dizer, mudanças manipulativas de
construção de controles internos de com-
objetos físicos. As ações instrumentais po-
portamento, e, em geral, à formação de es-
dem, portanto, apresentar-se como com-
truturas de personalidade: uma das ideias
ponentes em ações sociais de ambos os
básicas de Mead é a de que os processos de
tipos.
socialização se realizam através de intera-
Na reprodução material do mundo da
ções linguisticamente mediadas (HABER-
vida, que se efetua por meio da atividade
MAS, 1987, v. 2, pp. 91-111).
teleológica, participam tanto ações estraté-
Resta, como terceira tarefa, a de por a
gicas quanto ações comunicativas. Em con-
pragmática formal em relação com as abor-
trapartida, a reprodução simbólica do mun-
dagens empíricas, de modo que os instru-
mentos analíticos veiculem uma flexibili-

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do da vida depende apenas da ação orienta- ação e dos resultados da ação, que vai além
da para o entendimento. do emaranhamento ou da concatenação das
A manutenção do substrato material, na- orientações da ação.
turalmente, é um prérrequisito para a manu- As sociedades podem ser consideradas,
tenção das estruturas simbólicas de um assim, sob o aspecto do mundo da vida e
mundo da vida. Entretanto, a apropriação de sob o aspecto de sistema. No interior de
tradições, a renovação da solidariedade, e a cada um desses aspectos, tem-se que contar
socialização dos indivíduos necessitam da com diversos mecanismos de integração
hermenêutica natural da comunicação coti- social neles contidos.
diana e, portanto, do meio que representa a De novo, apenas se dá uma correspon-
formação linguística de consenso. dência unívoca entre a ação comunicativa e
Uma interação em que um trata o outro a integração social. No entanto, os meca-
como objeto de influências passa por essa nismos de integração sistêmica partem ou
dimensão da intersubjetividade linguistica- operam sobre os resultados e as consequên-
mente gerada. Deste modo, no marco das cias da atividade teleológica, ou seja, sobre
influências causais recíprocas, não têm os efeitos sobre que, tanto as ações comuni-
como e não podem transmitir conteúdos cativas como as ações estratégicas podem
culturais, nem integrar grupos sociais ou provocar no mundo objetivo.
socializar nenhum sujeito. Mas, há uma classe de mecanismos sis-
Embora que, para a reprodução material têmicos que não são igualmente compa-
do mundo da vida, o relevante da ação so- tíveis com os dois tipos de ação: aqui são
cial seja o aspecto da atividade teleológica, destacados, especialmente, os meios de
para a reprodução simbólica do mundo da controle ou de regulação, tais como o di-
vida, porém, o importante é o aspecto da nheiro e o poder. Estes meios de comunica-
compreensão. Daí se segue a correspondên- ção amplamente deslinguistizados gover-
cia aqui proposta entre as formas de repro- nam um tráfico social amplamente fora das
dução e os tipos de ação. normas e dos valores sociais e dos meca-
Uma correspondência biunívoca apenas nismos de formação linguística de con-
ocorre entre o mundo da vida simbolica- senso, - especialmente tendo em vista os
mente reproduzido e a ação comunicativa. subsistemas de ação econômica e de ação
Esta imagem se complica um pouco mais administrativa "racionais com orientação a
quando não se considera os plexos de re- fins", que têm sido autonomizado frente aos
produção material a partir da perspectiva contextos do mundo da vida. Assim, como
interna dos sujeitos agentes, que tratam de estes meios de regulação ou controle for-
dominar a sua situação orientando-se a con- çam a passagem da ação comunicativa a
secução de um fim, mas que os objetualiza uma interação regida por meios resulta,
como sistemas. aqui, por sua vez, uma correspondência
A reprodução material do mundo da vi- unívoca, ou ao menos clara, entre a ação
da não se reduz, assim, nem mesmo nos estratégica, por um lado, e os sistemas de
casos limites, às dimensões tão abarcáveis ação diferenciados através de meios, por
que possam ser entendidas como o resul- outro lado.
tado pretendido de uma cooperação cole- (b) Consequências filosóficas. A teoria
tiva. Geralmente, ela se efetua como um da ação comunicativa é talhada no molde
cumprimento de funções latentes, de fun- das necessidades da teoria da sociedade,
ções que vão além das orientações de ação mas, se o programa desenvolvido pelo autor
dos participantes. Agora, na medida em que no Erste Zwischenbetrachtung9 (HABER-
os efeitos agregados das ações cooperativas MAS, 1984, v. 1, pp. 351 e ss.) pode ser
atendem aos imperativos de manutenção do
9
substrato material, estes plexos de ação Habermas se refere aqui ao capítulo III do tomo
podem se estabilizar funcionalmente, quer I do seu livro Teoria do agir comunicativo. Na
dizer, por conexão retroalimentativa por tradução em português da Martins Fontes a
reconhecimento das consequências colate- tradução dada para Erste Zwischenbetrachtung
rais funcionais. Estas funções latentes das se encontra como ‘Primeira Consideração In-
termediária’. Consultar a tradução para o portu-
ações exigem que se introduza o conceito
guês em Habermas (2012, v.1, pp. 473-581).
de um plexo sistêmico das consequências da [Nota do tradutor].

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realizado, assim, esta teoria também tem conceito mais amplo de racionalidade que
consequências para a resolução de proble- se conecta com as velhas ideias sobre o
mas filosóficos. Contudo, em primeiro lu- logos.
gar, esta teoria pressupõe, do mesmo modo, O conceito de racionalidade comunica-
uma contribuição à teoria do significado. tiva traz consigo conotações que, em última
Ao dar prosseguimento no interior de instância, se remontam à experiência central
uma abordagem da semântica veritativa, a da capacidade de unir sem coações e de
pragmática formal faz derivar a compreen- fundar consensos que possui um discurso
são de uma emissão linguisticamente estan- argumentativo em que diferentes partici-
dardizada do conhecimento das condições pantes superam a subjetividade inicial de
gerais em que um ouvinte pode aceitar a suas concepções e, graças à comunidade de
emissão. Um ato de fala é entendido, assim, convicções racionalmente motivadas se
quando se sabe o que o torna aceitável. Do asseguram, simultaneamente, da unidade do
ponto de vista do falante, as condições de mundo objetivo e da intersubjetividade do
aceitabilidade são idênticas às condições do plexo da vida social em que se movem.
seu êxito ilocucionário. A aceitação não Mas, essa contraposição é já o resultado da
vem definida em um sentido objetivista a tentativa disparatada de interromper o mo-
partir da perspectiva do observador, mas, mento cognitivo-instrumental da razão des-
desde a atitude performativa dos partici- se conceito mais amplo de razão.
pantes na comunicação. Certamente que, no plano das culturas
Um ato de fala será chamado de "aceitá- de especialistas, as orientações racionais
vel" se satisfizer as condições necessárias têm-se separado hoje até tal ponto que a
para um ouvinte tomar uma posição com elaboração reflexiva sobre questões de ver-
um "sim" frente à pretensão de validade dade, questões de justiça e questões de gos-
trazida pelo falante. Estas condições não to se atêm a uma lógica interna distinta para
podem ser satisfeitas de forma unilateral, cada uma destas três esferas. Mas, também,
nem relativamente ao falante, nem relati- nesse plano, a unidade da razão vem asse-
vamente ao ouvinte; antes, se trata de con- gurada processualmente, quer dizer, medi-
dições de reconhecimento intersubjetivo de ante o procedimento que representam o
uma pretensão linguística que, de um modo desempenho e as resoluções argumentativos
típico para cada classe de atos de fala, fun- de pretensões de validade. Uma teoria da
dou um acordo, especificado em termos de argumentação erguida nos termos de uma
seu conteúdo, sobre as obrigações relevan- pragmática formal pode, deste modo, com
tes para a interação que acompanha. base nos diferentes papéis das pretensões de
A teoria da ação comunicativa se pro- validade na ação comunicativa, distinguir
põe como tarefa, ademais, investigar a "ra- entre distintas formas de discurso e esclare-
zão" inscrita na própria prática comunica- cer as relações internas entre esses tipos de
tiva cotidiana e reconstruir, a partir da base discursos.
de validade do discurso, um conceito não Por fim, a teoria da ação comunicativa
reduzido de razão. Ao se partir do emprego torna os seus determinados impulsos críti-
não comunicativo do conhecimento propo- cos que, - desde Humboldt (até Austin e
sicional em ações orientadas à consecução Rorty), - vêm ocorrendo no seio da filosofia
de fins, se toma uma predecisão em favor da linguagem. A teoria da ação comunica-
do conceito de racionalidade cognitivo- tiva critica a orientação unilateral da filoso-
instrumental que, cunhou com tanta força fia ocidental pelo mundo do ser. A este pre-
através do empirismo a autocompreensão domínio do pensamento ontológico cor-
da modernidade. responde o privilégio de que é objeto o co-
Este conceito traz consigo conotações de nhecimento em epistemologia e em teoria
uma autoafirmação acompanhada pelo êxi- da ciência, assim como da importância me-
to, ativadas por um controle informado, e todológica que cobra oração assertiva da
uma inteligente adaptação, às condições de semântica.
um entorno contingente. Ao se partir, no O estudo pragmático-formal dos proces-
entanto, do emprego comunicativo do co- sos de compreensão pode, enfim, dissolver
nhecimento proposicional em atos de fala, essas fixações. Contra estas unilateraliza-
toma-se uma predecisão em favor de um ções ontológicas e cognitivistas pode fazer

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valer essa compreensão descentrada do


mundo que entrelaça, a limine, o mundo
objetivo com o mundo social e o mundo
subjetivo e exige uma orientação simultâ-
nea visando às pretensões correspondentes
de validade, que são a verdade proposi-
cional, a justeza normativa e veracidade ou
a autenticidade.
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the Philosophy of Language. Cambridge:
University Press, 1969.

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Abstract: In this important text, the author reviews the theories of action in the social sciences
to establish in them a critical parameter which lays the foundation of the concept of communi-
cative action within his theory of communicative action. Keywords: theories of action, commu-
nicative action, world, world of life

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KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. “Jürgen Habermas e a


teoria do agir comunicativo: breves notas introdutórias”. RBSE
– Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 14, n. 40,
pp. 29-37, abril de 2015. ISSN 1676-8965

Jürgen Habermas e a teoria do agir comunicativo


Breves notas introdutórias

Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Recebido: 10.01.2015
Aprovado: 15.02.015

Resumo: Neste ensaio se tenta apresentar, em breves notas introdutórias o autor Jürgen
Habermas, sua importância para a teoria social contemporânea, a novidade trazida por sua
teoria do agir comunicativo a problemas sociológicos e das ciências sociais, sua revisão crí-
tica da teoria crítica da Escola de Frankfurt, de quem é herdeiro, e as críticas por ele diri-
gidas às teorias de ação na história da análise sociológica para adequação e novidades trazi-
das por sua proposta-síntese de ação comunicativa ao pensamento social contemporâneo.
Palavras-chave: Habermas, teoria do agir comunicativo, teorias da ação

Habermas é considerado, um dos últi- No conjunto de sua obra podem ser desta-
mos representantes da escola de Frankfurt10. cadas três ideias fundamentais: a primeira
reside na construção de uma Teoria da A-
10
Jürgen Habermas, filósofo e sociólogo ale- ção Comunicativa; a segunda, na defesa da
mão, nasceu em Düsseldorf, Alemanha, no dia existência de uma esfera pública, na qual os
18 de Junho 1929. É considerado um dos mais cidadãos, livres de domínio político, pode-
importantes filósofos e sociólogo do século XX. riam expor ideias e discuti-las. Neste con-
Cursou filosofia, sociologia, história e literatura, texto, Habermas se preocupa com o poder
e manteve interesse em toda a sua trajetória da mídia na contemporaneidade, e destaca
acadêmica pela psicologia e economia. Termi- que ela (a mídia) exerce influência no sen-
nou o seu doutorado em Filosofia, no ano de tido de diminuir este espaço.
1954, aos 25 anos, na Universidade de Bonn,
Por fim, a terceira ideia, onde defende
com uma tese sobre Schelling, intitulada O
Absoluto e a História. Entre 1956 a 1959, foi que as ciências naturais seguem uma lógica
assistente de pesquisa de Theodor Adorno no objetiva, enquanto as ciências humanas, –
Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt. No
início dos anos 1960, realizou uma pesquisa Condições de Vida do Mundo Técnico e Cienti-
empírica sobre a participação estudantil na polí- fico, em Starnberg, Baviera. Em 1983, transfe-
tica alemã, intitulada O Estudante e a Política. riu-se para a Universidade Johan Wolfgang
Em 1961 obteve a licença para ensinar pela Goethe, de Frankfurt, onde se encontra até hoje.
Universidade de Marburg e logo após, foi no- Escreveu, entre outros livros, Lógica das Ciên-
meado professor extraordinário de filosofia da cias Sociais [1967]; Técnica e Ciência como
Universidade de Heidelberg, onde atuou entre Ideologia [1968]; Discurso filosófico da moder-
os anos de 1961 a 1964. Posteriormente, foi nidade; A ética da discussão e a questão da
nomeado professor titular de filosofia e sociolo- verdade; O futuro da natureza humana; A Teo-
gia da Universidade de Frankfurt, de 1964 a ria do Agir Comunicativo [1981]; Consciência
1971. Desde 1971, Habermas é codiretor do Moral e Agir Comunicativo [1983]; O Passado
Instituto Max-Plank para a Investigação das como Futuro [1990].

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uma vez que a sociedade e a cultura são É bom frisar que, refletindo sobre essa
baseadas em símbolos, – seguem uma ló- dica irônica, quase anedota, ela não deixa
gica interpretativa, seguindo a divisão pro- de conter um que de verdade, pois os mes-
posta por Weber (1974). Em cada um des- mos são capítulos sínteses. Por outro lado,
ses temas se expressa à herança da Escola porém, esses leitores, em busca de sínteses
de Frankfurt e a sua crítica a ela. rápidas, perderiam o melhor do seu desen-
A sua obra, deste modo, prossegue a a- volvimento e crítica, expostos ao longo da
bordagem crítica a respeito das teorias, das construção dos seus dois volumes.
ciências e do próprio presente, tradição Os capítulos aqui referidos, e que encer-
frankfurtiana, e ao mesmo tempo, elabora ram os dois tomos do A teoria do agir co-
uma crítica a esta própria tradição, abrindo municativo, são, de um lado, o capítulo:
um caminho próprio para o seu pensa- “De Lukács a Adorno – Racionalização
mento. O conjunto dos seus trabalhos cons- como Reificação”, - constante do volume
trói, assim, um conhecimento crítico, enga- 01, (HABERMAS, 2012, p. 583 a 686, da
jado e revolucionário da construção das última edição brasileira da Martins Fontes).
ciências sociais, e, aqui, especificamente, E, de outro lado, o desfecho final, no capí-
da sociologia no seu seio. tulo intitulado: “Consideração final – De
Ao perseguir este eixo e introduzindo Parsons a Marx através de Weber”, cons-
uma nova visão a respeito das relações en- tante do volume 02, (HABERMAS, 2012,
tre a linguagem e a sociedade, em 1981, p. 543 a 728, da mesma edição brasileira
Habermas publica aquela que é considerada citada).
sua obra mais importante: Teoria da Ação Nestes dois capítulos Habermas situa o
Comunicativa. Neste trabalho, desenvolveu essencial do projeto lançado no desenvol-
um plano de pesquisa e análise que é consi- vimento de sua obra. Projeto este que pode
derado como um dos diagnósticos e planos ser capitaneado em dois pontos centrais: o
teórico-metodológicos centrais para a com- primeiro se refere ao esforço monumental
preensão do pensamento contemporâneo. A de reconstrução da Teoria crítica; e o se-
Ação Comunicativa habermasiana, pode ser gundo, diz respeito à necessidade de atuali-
delimitada, em termos gerais, como a teoria zar o diagnóstico de época, proposto pela
da sociedade moderna fundamentada por teoria crítica até então, concentrando-se na
métodos da sociologia, filosofia social e proposta de modernidade e seus desdobra-
filosofia da linguagem. mentos, para enfrentar e desvendar os ca-
O livro Teoria da Ação Comunicativa minhos até então tomados pelas análises das
foi editado em dois volumes: o primeiro é sociedades capitalistas modernas mais a-
dedicado à temática da “racionalidade da vançadas. O impacto da obra não poderia
ação e racionalização do social”; e o se- ter sido maior quando lançada em 1981.
gundo, “a crítica da razão funcionalista”. Como já comentei anteriormente, Jürgen
Nos dois volumes citados da Teoria do Agir Habermas foi assistente de pesquisa de
Comunicativo, Habermas (2012) busca reler Theodor W. Adorno no Instituto de Pes-
a obra de Lukács e Adorno e ataca as limi- quisa Social de Frankfurt, o centro institu-
tações da Escola de Frankfurt. cional da Teoria crítica desde os anos 1930.
Em um impulso irônico, se poderia dar Durante as suas pesquisas e estudos Ha-
uma dica aos possíveis leitores de Haber- bermas arquitetou uma crítica severa a seus
mas, apressados, ou que têm ou estão com antecessores, principalmente Max Horkhei-
preguiça de ler. Quase como uma anedota mer, e o seu mentor, Theodor Adorno. Cri-
se pode afirmar que se um leitor, pouco tica esta que tinha por intuito demonstrar
disposto a vencer os dois volumes da Teo- que a Teoria crítica, estruturada pela Escola
ria do Agir Comunicativo de Habermas, de Frankfurt, se encaminhara para um beco
perguntar sobre um atalho possível para sem saída, e que o diagnóstico de época,
chegar ao âmago da obra, a melhor proposta proposto por ela e pelos que a fizeram, per-
seria a de saltar de paraquedas sobre os dera seu prazo de validade.
topos. Ou seja, esses leitores deveriam co- Nesse sentido, de acordo com Antonio
meçar a leitura pelos capítulos finais de Berthier (2006), Habermas pode ser lido
cada um dos volumes. como um sociólogo-filósofo interessado em
elaborar uma nova síntese teórica e defen-

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der uma visão normativa da sociedade. rar o perfil teórico da Teoria crítica, procura
Síntese teórica esta que tem a intenção de de modo original, resolver e superar certas
suceder e superar as deficiências da teoria lacunas deixadas pelos seus fundadores.
crítica de Adorno e Horkheimer. Esse possível quarto momento, aqui as-
sinalado, pode ser estabelecido tendo na
A teoria crítica na Escola de Frank- figura de Jürgen Habermas, o seu principal
furt e seus três principais momentos representante, cuja preocupação central se
Antes de dar prosseguimento a esta nova concentra na reformulação da teoria crítica,
síntese proposta na Teoria do Agir Comuni- com o objetivo de suprir suas lacunas.
cativo habermasiano, convém falar um pou- Para Habermas, assim, a teoria deve ser
co sobre os momentos principais da Escola crítica, deve estar engajada nas lutas políti-
de Frankfurt, no interior de um ponto de cas do presente, e deve se constituir e ser
vista ou da uma perspectiva harbemasiana. construída em nome do futuro revolucioná-
Para Habermas, a Teoria crítica caracteriza- rio para o qual trabalha. Ou seja, a Teoria
se por três grandes momentos: crítica nada mais é do que um exame teó-
rico da ideologia, e, simultaneamente, tam-
I) Os escritos de Adorno, Horkhei- bém, uma crítica revolucionária do pre-
mer e Marcuse, da década de sente.
1930: como um período marcado Voltando ao raciocínio principal em que
por preocupação acerca da teoria estávamos submetidos antes do apêndice
do conhecimento; para situar os momentos da Escola de
II) Os trabalhos da década de 1940, Frankfurt, sobre o beco sem saída em que a
de Horkheimer e Adorno, cuja teoria crítica se metera, com Adorno e Hor-
característica fundamental é o kheimer, de um lado; e o de perda de vali-
distanciamento da teoria mar- dade do diagnóstico proposto pelos seus
xista, deixando de lado o tema da mentores, principalmente Adorno e Hor-
luta de classes e a substituição da kheimer.
teoria crítica da economia polí- Vale lembrar que o diagnóstico proposto
tica pela crítica da civilização por esses dois autores, Adorno e Horkhei-
técnica, buscando a origem do mer, que para Habermas se encontra crista-
fenômeno totalitário oriundo do lizado na expressão “mundo administrado”,
nazismo, não apenas na crise e- caminhava para um distanciamento da sín-
conômica, política e social ou no tese marxiana que até então vigorara no
erro da estratégia das forças de pensamento da Escola de Frankfurt, e que,
esquerda alemãs, mas no fe- nesta expressão já havia uma considerável
nômeno metafísico; divergência em relação ao diagnóstico de
Marx.
III) A partir da década de 1950: perí- Para os dois autores mencionados, as
odo em que as ideias originais da
tendências que, de acordo com Marx, leva-
Teoria crítica são abandonadas e
riam a uma sociedade emancipada não se
as reflexões frankfurtinianas vol-
comprovaram. Pelo contrário, segundo suas
tam-se a respeito das tendências avaliações, elas deixaram de projetar uma
no mundo moderno para o totali-
crise sistêmica do capitalismo dada às pos-
tarismo, mundo homogêneo, uni- sibilidades de intervenção e administração
forme, sem oposição, que anula estatal sobre a economia.
os indivíduos, acabano com a sua
Para estes dois autores, ainda, estas ten-
autonomia e a liberdade de ação
dências marxianas, tampouco consideram
na história, nas obras de Marcu-
plausível a intensificação da luta de classes
se, Adorno e Horkheimer.
entre proletariado e burguesia, uma vez que
A esses três momentos, indicados por são visíveis não a pauperização e a homo-
Habermas, podemos acrescentar um quarto geneização da classe trabalhadora, mas,
período, que não se fundamenta apenas no antes, a diferenciação social interna nessa
pensamento dos integrantes da Escola de mesma classe e uma melhora notável no
Frankfurt, mas, também, como uma espécie padrão de vida de grande parte da popula-
de prolongamento deste. Que, sem desfigu- ção. Além disso, de acordo com Habermas,

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lendo criticamente Adorno e Horkheimer, ceito de racionalidade. Só é possível criti-


contrariando o teorema de Marx, o desen- car o predomínio da racionalidade instru-
volvimento das forças produtivas, o desen- mental se o critério da crítica se situa em
volvimento da técnica e da ciência foi co- um conceito de razão que vá além da rela-
lossal desde meados do século XIX, mas ção entre meios e fins. Para tanto, Haber-
não acarretou conflitos estruturais com as mas desenvolve, recorrendo a diversos au-
relações de produção. Em vez disso, a ciên- tores da filosofia da linguagem, o conceito
cia e a técnica se tornaram instrumentos de racionalidade comunicativa.
privilegiados de dominação. Por fim, toda Abrindo mais um parênteses: eu acon-
consciência crítica se vê acuada diante da selho a todos a apreciarem a argumentação
fabricação consciente de ideologias, a qual sintética traçada por Habermas sobre o con-
Adorno identificou com o conceito de “in- ceito de racionalidade comunicativa con-
dústria cultural”. tida no artigo que se encontra neste número
Para Habermas, o diagnóstico proposto da RBSE: “Observações sobre o conceito
pela Escola de Frankfurt, se dá nos termos de ação comunicativa” (HABERMAS,
de uma crítica da razão, embora os seus 2015). A relevância prática e social desse
argumentos precisem ser revistos e reinter- conceito é atestada, por sua vez, por uma
pretados para se revalidarem enquanto teo- teoria do agir (ou da ação) comunicativo/a.
ria e prática de ação. A explicação e sua É bom frisar que, para a sua construção
possível interpretação revigorada, para Ha- conceitual, Habermas passou em revista as
bermas, talvez possam ser encontradas em teorias da ação presentes e significativas
uma releitura crítica da obra de Max Weber enquanto teorias sociais. Esta revisão con-
e de Georg Lukács. voca desde Karl Marx, Max Weber e Sim-
Para Habermas, a modernização capita- mel, passando pelo individualismo meto-
lista pode ser vista, segundo Weber e Lu- dológico, e sua teoria de interações estraté-
kács, como um processo de racionalização gicas, - desenvolvidas como uma espécie de
crescente, isto é, um processo pelo qual a ordem instrumental, como ações orientadas
sociedade se estrutura e se reproduz se- ao êxito, e referentes aos processos intera-
gundo critérios tidos por racionais. É por tivos puramente econômicos: a sociedade
isso que a crítica filosófica da razão coin- vista como sendo puramente um mercado,
cide com uma crítica social da realidade ou relacionados à política de poder e man-
moderna. do.
É nesse contexto que surge em Haber- Continua a sua revisão através da critica
mas, o conceito-chave de razão instrumen- a teoria de ação parsoniana, e a teoria da
tal, cujos princípios teria se imposto no ação dos interacionistas simbólicos, princi-
processo de modernização, na racionaliza- palmente Erving Goffman em sua busca de
ção e no esclarecimento científico do mun- conceituação de ação não estratégica, mas
do, cujas origens remontam, porém, às rela- reguladas por normas. Estabelece um co-
ções mitológicas do homem com a natu- mentário crítico dirigido à forma que estes
reza. Seguindo esse padrão de racionali- autores leram o conceito de ação em Dur-
dade, então, só é possível decidir racional- kheim e Weber, afirmando que o conceito
mente sobre os melhores meios para alcan- de ação regulada por normas, não se re-
çar determinados fins. Refletir sobre os fere, como parece indicar a análise goffma-
próprios fins, porém, não pode ser feito niana, ao comportamento de um ator iso-
além de previsões utópicas ou a partir de lado, que se encontre no entorno de outros
crenças, não há fundamentação racional possíveis atores, mas, a membros de um
para tal. grupo social que orientam as suas ações
Enfim, o mundo administrado seria a- por, e através, de valores comuns (Haber-
quele mundo assentado em um contexto de mas, 2015).
ofuscamento. Contexto esse em que predo- Deste modo, as normas expressam um
mina a racionalidade instrumental e reifi- acordo vigente em um grupo social, e o ator
cadora. particular segue, ou transgride a norma do
Para Habermas, no entanto, a crítica da seu grupo, enquanto um sujeito formado no
razão instrumental só ganha sentido pleno interior deste grupo a que pertence desde o
se acompanhada de uma ampliação do con- seu nascimento. Para Habermas, esse tipo

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de teoria da ação peca por ser sobre ou Habermas considera que elas não atin-
supersocializado e respondem a uma ordem gem um nível de autonomia e reflexibili-
social, entendida como um sistema de nor- dade necessária para o entendimento e vali-
mas reconhecidas e mantidas por institui- dação, enquanto sujeitos em reciprocidade
ções vigentes e mais solidas, portanto mais interativa: que ele chama de racionalidade
integradas, de que os atores fazem parte e comunicativa e, através desse conceito, o
são sujeitos. seu desenvolvimento em uma nova teoria
Outro tipo de ação não estratégica, en- do agir comunicativo. Nesse tipo de ação
contrada por Habermas em sua crítica das social, na ação comunicativa, a linguagem
teorias da ação social, é encontrado por ele como tal implica uma lógica intersubjetiva
entre os etnometodologistas, principalmente onde os agentes têm de se relacionar entre
Garfunkel, que ele chamará de ação dra- si como sujeitos iguais e diferentes ao
matúrgica. A ação dramatúrgica não se mesmo tempo, e, levar em consideração os
refere, diretamente, nem a um ator solitário, mundos e objetivos onde se situam e dialo-
nem a um membro de um grupo social, gam, em uma lógica reflexiva e voltada
mas, para participantes de uma interação para o entendimento e construção de sua
que constituem um público, de uns atores validade simbólica e prática (HABERMAS,
para os outros, de onde fazem uma repre- 2003, p.143-233).
sentação de si mesmos, visando à imagem Desta forma, segundo Habermas, uma
que querem passar uns para os outros. vez que ninguém pode disponibilizar a lin-
De acordo com Habermas, nesta forma guagem a bel-prazer, a ação comunicativa
de interação, os atores controlam a cir- não seria de modo algum episódica. Na
cunstância interacional por meio da regula- visão habermasiana, assim, toda vez que
ção e controle de acesso recíproco à subje- alguém realiza um ato de fala, ou seja, faz
tividade de cada um, isto é, através da au- um pronunciamento para outro qualquer,
torrepresentação: O que significa, nada não pode escapar à lógica intersubjetiva, -
mais, nada menos, a estilização da expres- segundo a qual se reivindica a perspectiva
são das próprias experiências, realizadas do outro, uma pretensão de validade para o
com vista à imagem que um quer oferecer que se profere.
de si para outro espectador. Isso se aplica desde as manifestações
Segundo Habermas, esse tipo de teoria mais banais, como simples constatações,
da ação, de base fenomenológica, encon- por exemplo, até os enunciados mais com-
trada em Garfunkel e seus seguidores, dife- plexos. Nesse sentido, seguindo o raciocí-
rente da teoria da ação não estratégica nio de Habermas, se ergue com os atos de
regida por normas, dos interacionistas sim- fala cotidianos pretensões de validade como
bólicos (Goffman) e do estrutural-funcio- verdade, correção normativa e veracidade.
nalismo parsoniano, que vê a interação Os atos de fala podem ser aceitos ou re-
como uma relação subsocializada, pois jeitados, - no que concerne à referência
conta com um pluralismo de identidades verdadeira aos estados de coisa descritos, à
que se afirmam a si mesma, e que se comu- relação correta com o conjunto de normas
nica entre si por via da autorrepresentação. pressupostas na interação, ou, simples-
Nos tipos de teorias, passadas em revi- mente, à relação veraz dos agentes com
seus respectivos mundos subjetivos. O re-
são:
conhecimento da validade do que é dito,
portanto, é importante para o prossegui-
1. As interações estratégicas dirigi-
mento da interação.
das ao êxito;
Ele significa um acordo, geralmente im-
2. As teorias não estratégicas, sobre plícito, que orienta a ação de cada um dos
ou supersocializadas e regidas por agentes envolvidos. No entanto, segundo a
normas, e pelo consenso de insti- lógica habermasiana, esse acordo só poderia
tuições sociais; motivar cada um a agir em confiança mú-
3. As teorias não estratégicas, de ba- tua.
se dramatúrgica e subsocializadas. Isso porque cada um dá implicitamente a
garantia recíproca de que há razões para a
validade, que foi associada ao ato de fala.

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Deste modo, no caso de contestações ou porque já não existe nelas um saber capaz
dúvidas, os agentes passam a argumentar de predeterminar todas as esferas da vida,
para sustentar ou rejeitar a validade do que como era o caso das visões míticas e religi-
foi dito. osas do mundo nas sociedades tradicionais.
Segundo Habermas, na prática comuni- Aqui cabe mais um lembrete rápido. Es-
cativa cotidiana, as argumentações – ou, te lembrete vai ao sentido de que se deve
usando a sua linguagem, os discursos – são buscar aqui aproximações e divergências
raras, porém, explicitam todas as dimensões com autores como Elias e Giddens. O que
de racionalidade inscritas na ação comuni- pode ser um caminho investigativo dos
cativa. Essas dimensões se referem aos mais interessantes, embora não perseguido
procedimentos que devem possibilitar um aqui, neste artigo.
consenso entre os participantes, tais como: Mas, voltando ao raciocínio do que ví-
nhamos apresentando, para Habermas, -
 Máxima liberdade de expressão,
quando falávamos sobre a estruturação da
 Máxima igualdade de direitos, ação comunicativa nas sociedades moder-
nas no capitalismo avançado, - a fragmen-
 E inclusão de todos os possíveis tação dos saberes predeterminadores das
concernidos, isto é, a todos os par- esferas de vida, segundo ele, impôs aos
ticipantes do consenso a que os pesquisadores a necessária significação de
procedimentos se referem. que o processo de racionalização não repre-
Se esses procedimentos não são recipro- sentou, apenas, o desenvolvimento da ciên-
camente pressupostos pelos participantes, cia e da técnica, como enfatizaram Adorno
eles próprios não consideram que parti- e Horkheimer, mas, também, uma depen-
cipam de uma discussão efetiva. dência cada vez maior de todos os contex-
A racionalidade e – nesse sentido parti- tos de interação social em relação aos pro-
cular, em Habermas, o ponto mais impor- cedimentos argumentativos12. Analisado
tante e significativo para a teoria crítica – dessa forma, o processo de racionalização
isto é, os potenciais de emancipação, não se implica também a dependência da legitima-
encontram nos consensos alcançados, os ção do poder em relação aos procedimentos
quais são sempre falíveis, mas, nos proce- democráticos, o que significa dizer, que o
dimentos da discussão livre e igualitária. capitalismo tem de lidar sempre com a de-
Por isso, fazendo uma pequena digressão mocracia de massa. E esta, por sua vez,
compreensiva, é um equívoco associar, ou com uma esfera pública que remete, em
melhor, imputar a Habermas a pecha de princípio, ao potencial de discussões cada
sociólogo e filósofo do consenso, já que vez mais abertas e livres.
estão em jogo para ele as possibilidades Com isso, Habermas pode absorver o
libertadoras contidas na discussão11. conteúdo de verdade do diagnóstico de
De acordo com Habermas, esse poten- Adorno e Horkheimer, sem concordar com
cial de emancipação não pode ser subesti- o esgotamento dos potenciais emancipató-
mado, visto que nenhuma socialização é rios nele proposto. Habermas concorda com
possível sem recurso à linguagem. E, con- os seus antecessores sobre a caducidade das
comitantemente, nenhuma linguagem pode perspectivas revolucionárias de Marx, mas
ser privada de seu uso comunicativo. não conclui daí que a emancipação tenha
Nenhuma tradição cultural, assim, pode desaparecido do horizonte13.
ser pensada como independente da lingua- O lamento pela revolução perdida cede
gem, e nenhuma norma pode se impor so- lugar à atenção para as ambivalências mo-
mente à força, mas, depende também de dernas e no sentido das conquistas demo-
consensos considerados legítimos. No caso
das sociedades modernas, a ação comuni-
12
cativa se torna ainda mais estrutural. Isso Ver, por exemplo, nesse sentido, Habermas
(2011, p. 142-262), principalmente, o cap. III
“Sobre a problemática da compreensão de sen-
11
Vê a esse respeito, a Introdução de Barbara tido nas ciências empírico-analíticas do agir”.
13
Freitag e Sérgio Paulo Rouanet (1980, p. 9-67), Ver, especificamente, Habermas (1983, p.
na coletânea por eles coordenada e dirigida a 219-247), principalmente, o capítulo IV, sobre a
Habermas. problemática da legitimação.

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cráticas. Trata-se, então, seguindo Haber- estimulou teóricas feministas, como Nancy
mas, de pensar em formas de vida emanci- Fraser, e teóricos do reconhecimento, como
padas no plural e ligadas a movimentos Axel Honneth14, a repensarem os conflitos
sociais com demandas que não se vinculam em que se envolvem os movimentos soci-
mais – ou pelo menos não diretamente – à ais.
transformação das relações de trabalho. Serviu, também, de base para o desen-
As formas de vida emancipadas têm de volvimento de um conceito de sociedade
ser analisadas, deste modo, em Habermas, civil que se diferencia tanto do mercado
no contexto de um novo conflito: isto é, no como do Estado. E possibilitou, ainda, no-
embate entre o mundo da vida e o sistema, vos impulsos para um modelo de democra-
central ao seu pensamento e constituição cia deliberativa que serviria de alternativa
teórico-metodológica. Nesse novo diagnós- às ideias de democracia representativa e
tico, proposto na teoria do agir comunica- participativa.
tivo habermasiano, então, as patologias e os Por outro lado, a crise do Estado de
conflitos modernos podem ser reportados, Bem-Estar Social, já pressentida desde o
na maior parte, a uma tendência de coloni- lançamento da teoria do agir comunicativo
zação sistêmica do mundo da vida. de Habermas, em 1981, se intensificou a tal
Isso quer dizer que, os sistemas dinheiro ponto que dificilmente se pode tirar da or-
e poder, isto é, a economia capitalista e dem do dia a premência das questões mate-
burocracia estatal, se autonomizam, em riais e distributivas. Soma-se a isso a dimi-
relação aos contextos de interação comuni- nuição do espaço de ação política que os
cativa, e passam a penetrar os âmbitos do Estados nacionais sofrem por conta da glo-
mundo da vida. Isto é, a esfera privada da balização.
família e das amizades e a esfera pública. Ambos, conflitos pouco analisados pela
Cuja reprodução dependem do uso comuni- teoria do agir comunicativo, de 1981, como
cativo da linguagem. os ligados ao caráter ideológico com que é
Como os sistemas dinheiro e poder se tratado o fundamentalismo religioso, apare-
reproduzem por meio de ações estratégicas cem hoje, de maneira significativa, mesmo
e instrumentais, a monetarização e a buro- em sociedades supostamente racionalizadas.
cratização das relações sociais que eles A obra posterior de Habermas aborda essas
acarretam levam inevitavelmente a distúr- novas problemáticas, o que demonstra sua
bios e reações de resistência no mundo da disposição incomum de atualização contí-
vida. Levam, em geral, a formas distorcidas nua.
de comunicação, de maneira que os partici- Para Habermas, por fim, os potenciais
pantes sofrem uma coerção sistemática de emancipação não se encontram nos con-
para considerar os outros e a si mesmos sensos, mas, como já vimos anteriormente,
como objetos manipuláveis. na discussão livre e igualitária entre os in-
Por outro lado, os novos movimentos divíduos sociais. O que por si denota a
sociais, como o feminista, o ecológico, os grandeza significativa da sua obra e o le-
que trabalham sexualidade e diferença, gado para a teoria sociológica e das ciências
entre outros, representam reações do mundo sociais em geral.
da vida à invasão sistêmica, e lutam por
formas autônomas de convívio social. Referências
Assim, a teoria da ação comunicativa BERTHIER, Antonio E. Jürgen Habermas:
habermasiana, tem de ser lida como uma el giro lingüístico de la sociología y la te-
teoria sobre um novo tipo de conflito es- oría consensual de la verdad. Revista mexi-
trutural, relativamente desligado das classes cana de observações filosóficas, n.3, 2006.
sociais e atravessando a sociedade por in- http://www.observa cionesfilosofi-
teiro. cas.net/jurgenhabermas.html #1not [con-
Esses trinta e quatro anos passados, des- sultado em 20.02.2015].
de o aparecimento da Teoria do Agir Co-
municativo de Habermas, permitem uma
visão mais clara tanto de sua fecundidade 14
Assistente de pesquisa por muitos anos de
quanto dos limites históricos desta teoria.
Habermas, e continuador do pensamento crítico
De um lado, a teoria da ação comunicativa da Escola de Frankfurt.

RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 14, n. 40, abril de 2015


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RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 14, n. 40, abril de 2015


37

Abstract: This paper presents the author Jürgen Habermas, its importance for contempo-
rary social theory, the novelty brought by his theory of communicative action to sociologi-
cal problems and social sciences, a critical review of Habermas to the critical theory of the
Frankfurt School, who is successor, and the criticism he directed the action theories in the
history of sociological analysis for adequacy and novelties brought by its proposal synthesis
of communicative action to contemporary social thought. Keywords: Habermas, theory of
communicative action, action theories

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RODRIGUES, Hosana Suelen Justino e Leonardo Damasceno


de Sá. “Coração de mãe é terra que ninguém anda: Um estudo
das redes, ‘tramas’ e conflitos de mães em lutos nas favelas à bei-
ra-mar”. RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção,
v. 14, n. 40, pp. 39-47, abril de 2015. ISSN 1676-8965

Coração de mãe é terra que ninguém anda


Um estudo das redes, “tramas” e conflitos de mães em luto nas favelas à
beira-mar

Hosana Suelen Justino Rodrigues


Leonardo Damasceno de Sá

Recebido: 10.09.2014
Aprovado: 08.01.2015

Resumo: Dona Ana, 65 anos, moradora de favela, até hoje pranteia a morte de seu filho as-
sassinado. A rotina de Dona Ana depois de dois anos da morte de seu filho nos permite per-
ceber o modo com ela vivencia e concebe a dor e o sofrimento por perdê-lo em situações de
violência. Esse sentimento é compartilhado por várias mães em situação de luto, como ela,
que se comunicam devido, entre outras situações, serem parentes, amigas, vizinhas, conhe-
cidas e às vezes cresceram juntas. Elas interagem como mães em luto por meio da dor re-
sultante da perda, formando uma microrrede de interações sociais e simbólicas (GOFF-
MAN,1983) que se realiza, principalmente, por conversas informais e práticas de fofocas
(BAILEY, 1971). A comunicação das mães em luto é limitada, por vezes truncada e mar-
cada por silêncios (VENNA DAS, 1999). Uma das razões para isso é que em alguns casos
os filhos de umas mataram os filhos de outras. Os homicídios desses jovens fazem parte de
uma rede de homicídios que são alimentados pelo sentimento de vingança. Neste contexto,
nosso objetivo é analisar como as mães por causa de seus filhos mortos em situação de vi-
olência de morte matada por armas de fogo, vivenciam, representam e experienciam o luto
formando uma rede informal de mães que funciona como elo de aproximações e de disputas
entre as mesmas. O lócus da nossa pesquisa foi o Serviluz, localizado no bairro Cais do
Porto em Fortaleza, CE, lugar onde realizamos uma pesquisa etnográfica durante o ano de
2014. Palavras chaves: mães de assassino, mães de assassinados, dor, microrrede de mães.

filho em situações de violência15. Esse sen-


Mães de filhos do assassino e mães de timento é compartilhado por várias mães 16
filhos assassinados
Dona Ana, 65 anos, moradora de favela, 15
O mapa da violência do Ceará (2013) mostra
até hoje pranteia a morte de seu filho assas- os impactos da violência e da morte sobre as
sinado. A rotina de Dona Ana depois de cidades. Conforme o levantamento feito dos
dois anos da morte de seu filho nos permite homicídios ocorridos entre 1980 a 2011. Houve
perceber o modo com ela vivencia e con- um crescimento de 326,1% de homicídios de
jovens entre 15 e 25 anos por mortes violentas
cebe a dor e o sofrimento por perder seu
em todo o Brasil. No Ceará, neste mesmo recor-
te foram computados um aumento de 44,5% de
mortes de jovens entre 15 e 24 anos. Para ter-

RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 14, n. 40, abril de 2015


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em situação de luto, como ela, que se co- as mães que trazem em comum a perda de
municam devido, entre outras situações, seu filho por morte violenta armada e/ou
serem parentes, amigas, vizinhas, co- por terem os seus filhos assassinados pelos
nhecidas e às vezes cresceram juntas17. filhos umas das outras.
Para as mães, a morte de um filho pode Formulando estas questões procuramos
modificar as relações afetuosas que ela pensar as situações em que as redes de mães
tinha anteriormente com a mãe do assas- se formam e se alimentam em configura-
sino. A colega, vizinha ou até mesmo o ções18 de contato face a face ou de intera-
familiar passa a receber uma nova classifi- ções marcadas pelos silêncios e ausências.
cação: “mãe do assassino do meu filho”. (GOFFMAN,1983) Partimos do pressu-
Por causa da morte de um filho, mães de posto que antes mesmo de qualquer evento
filhos assassinados e/ou assassinos podem de morte, existe entre as pessoas no Servi-
tecer redes de afeto e de compreensão umas luz diversas redes que servem a diferentes
com as outras, unidas pelo fato de “só sabe finalidades. Com a morte abrupta de um
quem passa o que é perder um filho que filho há uma intensificação de um circuito
você carregou por nove meses.” Em ambas de mães, que aparentemente trazem como
as situações ocorrem laços recíprocos de função a busca do consolo, apoio moral e
solidariedade e de tensões, porém, de inten- partilha de histórias de saudade. O fenô-
sidades e formas diferentes. Foi essas rela- meno da morte do filho faz com que pes-
ções o objeto de análise desta pesquisa. soas que antes eram distantes socialmente
Tentamos aqui compreender como se da família façam parte da rede de informa-
desenvolvem e funcionam as redes de mães, ções sobre as mulheres que estão de luto,
às vezes silenciosas e invisíveis, que se pois, estar de luto no Serviluz, é pertencer
formam após a morte de seus filhos. Anali- ao domínio público dentro dessa rede, por
sando os laços de afetividade, solidariedade meio das fofocas de outros indivíduos.
e, também, de intrigas e indiferenças entre As dores que as mães em luto sentem
terminam por uni-las informalmente em
mos uma ideia real foram em 2011, 442 mortes redes. Estas redes carregam como traço
de jovens por causas externas violentas, e em comum à morte de filhos jovens em situa-
2011 foram 1105 jovens mortos. Comparado a ção de violência armada. Mesmo sabendo
outros estados o Ceará está na 7º posição neste que as redes de mães em luto se entrelaçam
ranking. O ranking se constitui da seguinte com outras redes de interações mais am-
forma: Alagoas com 66,2%, Espírito Santo com plas. Sendo por elas influenciadas e influ-
58,8%, Paraíba com 53,6%, Distrito Federal
enciando sua dinâmica. Como por exemplo,
com 52,1%, Bahia com 51,9%, Rio Grande do
Norte com 50,1% e o Ceará em 7º lugar com as interferências das instituições e grupos
44,5% de aumento de mortes entre os jovens por da escola, religião, projetos sociais, polícia,
causas de violência. (WAISELFISZ, 2013) família e amigos.
Dados estatísticos da Secretaria de Segurança Na formação desta rede um laço de ten-
Pública afirmam que o Serviluz está entre as são parece incontornável, pois emerge entre
localidades mais perigosas de Fortaleza. a mãe do assassino e a mãe do assassinado.
16
Entendemos por “mães” as mulheres que cui- Após a morte do filho mais velho de D.
dam dos filhos, netos, parentes ou vizinhos
considerando como seus filhos. A relação mãe-
18
filho para fins desta pesquisa será definida me- Para captar esse processo de construção social
diante a prerrogativa do laço e da consideração do luto e das redes de mulheres que dividem
social entre eles. Segundo Fonseca (2000) nas sentimentos afins, o conceito de figuração social
favelas do Rio Grande do Sul é uma prática tornou-se fundamental. Para Elias a sociedade
comum às mulheres cuidarem coletivamente dos pode ser vista como uma teia de relações em
filhos umas das outras como se fossem os seus que os indivíduos estão ligados uns aos outros
próprios filhos. por um modo específico de dependência recí-
17
H. Becker (2008) sugere que a vida social não proca e cuja reprodução supõe um equilíbrio
consiste apenas em encontros face a face. As móvel de tensões. Para ele os indivíduos em
pessoas podem se envolver em interação intensa diversos contextos sociais se encontram em
e persistente ainda que nunca tenham se encon- situação de interdependência. No caso dos jo-
trado pessoalmente. Um exemplo do campo era vens e das mães do Serviluz podemos apontar a
Dona Socorro que sabia de toda a trajetória de rede de assassinato e luto que se formam, conec-
Dona Ana, sem nunca ter conversado com ela. tando várias famílias e gerações.

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Ana, sua família entrou numa difícil tensão. mento. Porém, o sentimento de vingança
Pois, o filho de D. Ana foi morto por seu que a mãe do assassinado carrega diz res-
genro. Sua filha, que é casada com o assas- peito apenas ao assassino. Não há entre a
sino, teve que modificar suas relações com mãe do assassino e a mãe do assassinado
D. Ana porque o sentimento de vingança uma relação de ódio, raiva e vingança. O
que essa mãe deseja é incompatível com o foco está nas dores, na sua própria e na da
desejo que a filha alimenta para sua família. mãe do assassino, na qual ela se põe no
Percebe-se com este caso, que a morte pode lugar. “Às vezes eu fico pensando na dor
gerar silêncios, distâncias, tensões e até que essa mulher (mãe do assassino) deve
outras mortes entre os moradores. sentir quando olha para o filho (vivo) que
É uma prática bem conhecida no Servi- ela cuidou com tanto gosto.” O que o tra-
luz que as famílias precisam “limpar a sua balho de campo mostrou foi que para as
honra”, vingando a morte de seu assassi- mães dos assassinos há pensamentos e sen-
nado. Falar de “quem foi que morreu dessa timentos de empatia e solidariedade. Uma
vez” é uma conversa rotineira para os mo- interlocutora afirma que:
radores deste bairro. A política de vida en-
“para ela esta situação também é
sina para os jovens que às vezes se você
muito difícil. Ela saber que é mãe de
não matar primeiro, você vai morrer depois.
um monstro. Porque me diga o que é
A família de D. Ana vive esse momento de
uma pessoa que tira a vida outra nes-
ansiedade, por conta do filho do falecido,
ta terra? Só pode ser um monstro. Por
que tem nove anos, mas afirma que deseja
isso que a coitada morreu três meses
matar o companheiro da tia pela morte de
depois do filho. Só pode ter sido de
seu pai. A respeito disso, D. Ana sabe que
desgosto” (Entrevista na casa de Do-
uma nova morte está para acontecer, seja
na Lúcia, maio de 2014.)
ela a do assassino ou a do próprio neto.
Estas são as regras da favela que vão cons- A dor que estas mães sentem não é ape-
truindo circuitos de morte. Esta rede de nas a da perda de seu filho, mas também é
morte está invisivelmente entrelaçada com uma dor que emerge como reação diante da
a rede das mães em luto. Com isso, vale se rotulação de seus filhos e delas próprias.
perguntar: qual a finalidade desta rede de Rotulação de “mães inadimplentes” que são
mães, para que ela serve? Ela ajuda a passar responsáveis direta ou indiretamente pela
a dor ou a nutrir o ódio? vida de criminalidade dos filhos. Estas
Existe nestas interações sutis e simbó- mães enfrentam o preconceito contra a fa-
licas uma situação interessante que influen- vela e os favelados tendo que romper com a
cia algumas mães nos seus relatos. Algumas condição de falar de um lugar despossuído
destas mães se colocam no lugar da mãe do e de um território criminalizado. Algumas
assassino com a qual em alguns casos já mães transformam o luto em prática reivin-
tiveram alguma interação afetiva e\ou social dicativa de justiça enquanto outras não con-
anterior ao evento. A morte deu a essas seguem expor sua dor e vive uma expe-
mulheres uma nova roupagem para sua riência silenciosa e traumática do luto20.
relação, separando-as em dois grupos:
“mães de assassinos” e “mães de assassina-
dos”.
que compõe o luto não pode ser entendido se
Vale ressaltar que por motivo de vin-
não compreendermos as ações internas e exter-
gança familiar - crime de honra - ou por nas que ele envolve e é envolvido.
outros conflitos sociais, o filho que é assas- 20
È importante grifar que o foco que trazemos
sino pode morrer deixando a sua mãe numa na pesquisa é de mães que nas suas relações
nova situação, passando a ser uma mãe de cotidianas interagem em forma de rede de soli-
luto19, incluindo-a na rede de dor e sofri- dariedade e tensão, e trazem a morte de um filho
como a característica comum que as unem. No
campo em questão, não há uma organização
19
Tomamos o luto como uma grande família de política destas mães com a finalidade especifica
emoções que incluem diversas variantes de de cuidar do seu luto ou de busca por justiça,
sentimentos como tristeza, saudade, angústia, como se observa nas Mães do Acari (Rio de
solidão, medo e sentimentos que envolvem o Janeiro), Mães de Maio (São Paulo) ou Mães na
dar e o receber afeto. O conjunto de emoções dor (João Pessoa). As redes as quais observo no

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Caminho metodológico: as matizes da morte dos outros pode ser vista como um
dor problema que acompanha relações políticas
e de poder. O silêncio dos moradores quan-
O Serviluz está inserido na região in- do questionados sobre se conheciam mães
dustrial do complexo portuário do Mucu- cujos filhos foram mortos retrata as áreas de
ripe - Fortaleza. Formado por vilas de pes- forças simbólicas invisíveis que demarcam
cadores, ele é composto por famílias que os limites do que pode ser dito e comentado
em sua maioria são despossuídas de recur- abertamente. Conforme os dias se passa-
sos sociais e econômicos, que convivem ram, pude receber aos poucos novos ele-
cotidianamente com a violência em suas mentos sobre como os jovens foram mortos.
diversas manifestações, especialmente ho- Porém, estas informações eram dadas com
micídios. Em uma rua, por exemplo, em cuidado, sem dizer os nomes, nem dos as-
quase todas as casas, segundo relatam os sassinados, nem de suas mães. Ao longo
moradores, existem famílias que perderam dos meses essas informações foram sendo
os filhos ou parentes muito próximos por compartilhadas de modo mais aberto. Falar
causa da violência por morte matada. O luto de quem morreu, é falar de quem matou, os
das famílias passa a ser algo pertencente ao porquês que estavam envolvidos no pro-
cotidiano, especialmente, das mães. Mães cesso. Isso fere a intimidade das regras de
que são em sua maioria mulheres sem ou poder estabelecidos entre eles, seguir estas
com pouco estudo que vivem das atividades normas mantém os moradores a salvos de
do lar e algumas delas trabalham como situações de violência e assegura a ajuda
faxineiras para complementarem a renda da que por ventura eles possam necessitar.
família. Possuem entre três e cinco filhos, Nestas visitas ao Serviluz surgiu o pri-
participam ativamente das redes de mulhe- meiro desafio metodológico apontado pela
res da comunidade responsável pela criação própria situação de campo. Percebemos que
dos filhos umas das outras e na troca de acessar as histórias de dor, as lembranças
favores e conflitos. do filho morto acessavam sentimentos de
Tomamos a abordagem qualitativa, por- angústia, tristeza e vingança. Se fosse outra
que ela se mostrou a mais adequada para situação fora da pesquisa talvez nós fosse-
dar conta da complexidade da dor e da rede mos cobrados a tomar um posicionamento,
de mães que se formam durante o luto dos oferecer afeto, apoio, concordar ou discor-
filhos. Com esta metodologia trabalhamos dar com a vingança. Mas, de que maneira a
com as matizes da dor e de todas as rela- nossa posição de pesquisador podemos
ções que estão envolvidas no luto. Cap- fazer isso, se nós tínhamos em mente a
tando os sentidos das narrativas, as experi- intenção de visitar outras mulheres na
ências dos rituais de luto e o entrelaçamento mesma comunidade? Não podemos apoia-
simbólico e afetivo das mães de luto. las abertamente, pois cruzamos no seguinte
As idas ao campo começaram em ja- problema: teríamos apoiado a mãe de um
neiro de 2014, onde realizamos várias visi- filho que matou o filho de outra interlocu-
tas ao Serviluz, no qual tivemos um contato tora.
significativo com a trajetória de dor de Do-
na Ana. Visitei-a diversas vezes, por meio Escolhemos então o trabalho de cam-
dela fizemos contato com moradores locais, po etnográfico com o detalhamento
e obtivemos outras indicações de mães com em diário de campo, que permitiu a
as quais mantivemos conversas informais formulação de reformulações meto-
buscando firmar um primeiro contato para dológicas e criações de mapas men-
as posteriores entrevistas. Conversamos tais, fizemos grupos focais de dis-
sobre as influências que a dor do luto pro- cussão, por acreditar que é um modo
vocou nas suas relações familiares e pesso- de perceber as singularidades de dor
ais. da rede destas mães. Consciente da
Em conversas informais com os morado- complexidade que o problema do luto
res, a expressão dos sentimentos sobre a é como tema de pesquisa, como su-
gere Irlys Barreira “as redes integran-
tes de fatos dessa ordem envolvem
campo são formações simbólicas de interação valores ou sentidos nem sempre ime-
entre elas.

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diatamente captados a primeira ob- Ao relacionar os estudos de violência e


servação”. (p.p 98: 2001) Por isso conflito sociais com as abordagens socio-
optamos pela pesquisa qualitativa por antropológicas das emoções, percebemos
nos permitir alcançar os períodos de como ambos os campos podem dialogar de
silêncio, as zonas de interdito (AL- maneira frutífera. Uma releitura das obras
BERTI, 2005; POLLAK, 1989). dos clássicos como Durkheim, Mauss,
Simmel e Weber denotam a importância das
A importância desta pesquisa está em
emoções como moldagem direta das ações
dar visibilidade à trajetória de sofrimento
entre o indivíduo e a sociedade, ou, ao con-
destas mulheres que muitas vezes por causa
trário permitindo a racionalidade na qual o
do contexto de desigualdade social em que
indivíduo se erige como pessoa social.
vivem não conseguem dar destaque aos
A emoção participa do “adestramento
homicídios de seus filhos por conta da ina-
civilizatório” e os indivíduos sociais nele
dimplência e do preconceito dos setores
erigidos são produtos políticos do jogo con-
públicos responsáveis pela investigação e
figuracional em um dado contexto cultural.
punição dos culpados.
Autores contemporâneos como Goffman
Tecendo redes de silêncio e de dor (1983; 2010; 2013b), Elias (1997; 2001;
2000), Foucault (2007; 2011a; 2011b) e
Como decorrência das mortes de seus fi-
Bourdieu (2009a; 2009b), entre outros, con-
lhos as mães passam por um período de
tinuam a discussão e abrem novas questões
luto, e traçam redes de convivência, solida-
interpretativas sobre as relações entre a
riedade, reciprocidade e silêncio. Para Ven-
emoção na estruturação do social, do cultu-
na Das (1999) o silenciar é uma forma de
ral e do individual na modernidade. Temá-
falar. “O silêncio envolve a violência feita
tica que se aprofunda com Catherine Lutz
contra as pessoas” (idem:33). As situações
(1988), Brigitt Rottger (2008), Venna Das
de violência dentro da análise da autora não
(1999; 2007; 2011), Lila Abu-Lughod
gera a quebra de comunicação e sim gera
(1990). No âmbito nacional contamos de
novos modos de comunicação, guiados pelo
maneira significativa com as pesquisas de
controle sobre as narrativas. Existe, deste
Guilherme Koury (2012), e Claudia Coelho
modo, uma habilidade de falar sobre a vio-
(2010).
lência que faz parte do domínio das conver-
No contexto social do luto as vivências
sas familiares.
das emoções podem ser usadas como fer-
A habilidade que delimita os limites in-
ramentas de poder e controle social. As
visíveis do que pode ser dito a quem, e em
emoções na vida pública proporcionam o
que situação, se encaixa com uma possível
entendimento de como as relações de poder
“voz do olhar”. Para Goffman (2013) a
que as emoções carregam, agem como es-
“desatenção civil” consiste no olhar trei-
tratégia de vida dessas mulheres (RE-
nado e orientado para determinados aspec-
ZENDE & COELHO, 2010). O campo
tos da realidade que são determinados como
mostrou que as mulheres têm usa-
não importantes, desinteressantes ou indife-
do/canalizado seus sentimentos de dor para
rentes nosso corpo para deixa fluir ou im-
conseguirem superar as consequências da
pedir determinadas emoções e interações
morte indesejada dos filhos. Existe nas falas
sociais.
delas todo um ritual de disciplina das emo-
As emoções que transcrevemos e vive-
ções, no sentido daquilo que ela pode de-
mos são expressões sociais que se imis-
monstrar para os outros. Seus familiares
cuem no nosso corpo criando padrões cultu-
funcionam como “agentes do panótico” que
rais para a vivência das emoções. apresen-
inibem certas apresentações das emoções,
tando-se como criações culturais (SARTI,
em determinados contextos e situações,
2001). Elas obedecem a uma teia de signifi-
como por exemplo, o choro escondido, ou
cados simbólicos que são direcionados a
não falar sobre as várias noites seguidas de
outras pessoas (KOURY, 1999). Com isso,
insônia. Emoções podem dominar e mani-
as experiências emocionais singulares des-
pular os outros tanto pelo afeto, quanto pela
tas mães são produtos relacionais entre
codependência e a humilhação, entre os
indivíduo, cultura e sociedade.
outros aspectos. Machucar a alma é mais

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eficaz que machucar o corpo (FOUCAULT, solidão é aprendido e vive sujeito às regras
2011). específicas de cada grupo e contexto so-
Com esta manipulação das emoções há cial22. O luto que se prolonga ou que se
uma performance dos indivíduos em busca acaba dentro de meses é produto da socie-
de uma “representação do eu” na rede de dade que delimita o que é o certo e o espe-
mães e de familiares. Segundo Goffman rado pela vida social. Em referência ao
(2010), as performances de comportamento campo biológico espera-se que os mais
social nos fazem escolher máscaras sociais novos enterrem os mais velhos, mas o que
apropriadas a determinadas situações para ocorre na esfera social quando o ciclo de
todos os comportamentos. Existindo regras vida de um jovem é interrompido por um
que nos limitam a agir de determinada for- assassinato? Como a sociedade espera que
ma. A manifestação ou tentativa de es- essa mãe se relacione com sua perda e com
conder as “verdadeiras” intenções do seu os outros que ficaram?
comportamento dos demais. pode revelar
que “Às vezes seu coração pode não estar Referências bibliográficas
onde a ocasião social exige que esteja” ABU-LUGHOD, Lila & C. Lutz. Lan-
(GOFFMAN, 2010:47) A partir dessa situ- guage and the politcs of emotion. Princiton
ação teatralizamos comportamentos dentro University, New Jersey, 1990.
do esperado nas situações. Em campo, al-
gumas narrativas de mães em luto intenso, a ALBERTI, Verena. Manual de história
mais de dois anos, dizem realizar essa es- oral. Rio de Janeiro: FVG editora,
tratégia “para estar viva no mundo, sem 2005.
estar”. ÀRIES. Philippe. O homem perante a
O luto que demora anos ao invés de me- morte. Tradução de Luiza Ribeiro. Rio
ses é uma maneira desta mãe, nesta situação de Janeiro, RJ: Francisco Alves, 1990.
de violência específica responder a exigên-
BADINTER, Elisabeth. Um Amor con-
cia social do Serviluz que diz que “mãe é a
quistado: o mito do amor materno. Rio de
que cuida e a que não abandona os seus
Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
filhos.”21 parece nessa chave interpretativa
que o luto “exagerado” destas mães é uma BAILEY, F.G. Gifts and poison: the poli-
forma delas demonstrarem a sua culpa tics of reputation. Oxford: Basil Blackwell,
consciente ou inconsciente. Elas se autoava- 1971.
liam como uma “mãe perfeita”, porém, ela
BARREIRA, Irlys. Política, memória e
culpa o marido de ter sido um péssimo pai,
espaço público: a via dos sentimentos.
corresponsabilizando a sociedade e os ami-
Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol.
gos dos filhos por sua morte.
16, n. 46. São Paulo: 2001.
Marcel Mauss (1979) fala sobre a ex-
pressão dos sentimentos das pessoas de BECKER, Howard. Outsiders: estudo
luto. Para ele, no ritual fúnebre há a de- de sociologia do desvio. Rio de Janeiro:
monstração obrigatória dos sentimentos por Zahar, 2008.
meio de modos específicos de apresentar a
sua dor para a coletividade. O sentimento BOURDIEU, Pierre. A dominação mas-
de luto composto pela angústia, tristeza e culina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2009a.
21
BANDITER (1985) analisa o amor materno BOURDIEU, Pierre. O senso prático. Pe-
assim como qualquer outro sentimento passível trópolis: Vozes, 2009b.
de sofrer transformações, sendo mais ou menos
valorizados conforme o contexto social, poden- COELHO, Maria Cláudia. As emoções
do receber influencias das mudanças que ocor- e a ordem Pública: uma investigação
rem nos costumes e aspectos sociais, políticos, sobre modelos teóricos para a análise
econômicos, científicos e filosóficos. Ela des-
constrói o caráter natural da maternidade e do
22
amor materno, relevando as relações de saber e ÁRIES (1990) realizou um estudo que descre-
poder incorporados nos discursos e praticas dos ve às diversas manifestações do luto e do sofrer
agentes e o papel de mãe que fora historicamen- da perda de parentes e conhecidos ao longo dos
te atribuídos à mulher. séculos.

RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 14, n. 40, abril de 2015


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RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 14, n. 40, abril de 2015


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Abstract: Mrs. Ana, 65, slum resident, today mourns the death of his murdered son. Rou-
tine Dona Ana after two years of his son's death allows us to see the way she experiences
and sees the pain and suffering of losing his son in violent situations. This feeling is shared
by several mothers in mourning situation, like her, that communicate due to, among other
situations, they are relatives, friends, neighbors, known and sometimes grew up together.
They interact as a mother in mourning by pain resulting from loss, forming a micro-net-
work of social and symbolic interactions (GOFFMAN, 1983) which takes place mainly
through informal conversations and gossip practices (BAILEY, 1971). Communication be-
tween mothers grieving is limited, sometimes truncated and marked by silences (VENNA
DAS 1999). One reason for this is that in some cases the children of a killed the children of
others. Homicides of these young people are part of a network of homicides that are fed by
the feeling of revenge. In this context, our goal is to analyze how mothers because of their
dead children killed in death by firearms violence situation, experience, and experience rep-
resent mourning forming an informal network of mothers who works as a liaison ap-
proaches and disputes there between. The locus of our research was the Serviluz, located in
the Quayside district in Fortaleza, CE, where we conducted an ethnographic research dur-
ing the year 2014. Keywords: killer mothers, murdered mothers, pain, micro-network mo-
thers

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SILVA, Marcelo da. “Samba do Irajá: samba de amigos, feito


por amigos: uma etnografia do samba na Grande Porto Alegre”.
RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 14, n.
40, pp. 48-62, abril de 2015. ISSN 1676-8965

Samba do Irajá: samba de amigos, feito por amigos


Uma etnografia do samba na Grande Porto Alegre

Marcelo da Silva

Recebido: 30.12.2014
Aprovado: 16.02.2015

Resumo: Este trabalho busca lançar um olhar sobre a cultura popular negra da Grande Por-
to Alegre, a partir do Samba do Irajá, um evento sociocultural itinerante realizado todos os
fins de semana em Porto Alegre e arredores nas quadras das escolas de samba, nos clubes e
associações comunitárias. Esta paisagem visual e sonora produzida pelas rodas de samba
do Irajá organizada por esse grupo de amigos é o lugar onde se deve aprender o samba, é a
escola onde o sambista aprende e articula suas sociomusicalidades. Foi através de inúmeros
encontros, participações e conversas com o Samba do Irajá que este artigo foi elaborado,
buscando compreender quais pedagogias o Samba do Irajá elabora na construção de uma
forma de tocar samba na Grande Porto Alegre e adjacências. Palavras-chave: Samba de
Porto Alegre; Etnomusicologia; sociomusicalidade.

Num dos encontros semanais que tive Fixoc e seu João 7, todos que já se
com os músicos do “Samba do Irajá”, no foram (morreram). E ela me disse
bar chamado Judeu - na Azenha, próximo que o Irajá sempre repetia a mesma
ao Centro de Porto Alegre - Jesus Machado, frase:
um dos integrantes deste grupo de amigos, “o samba não pode morrer Cláudia, o
que fazem samba todos os sábados nas co- samba não pode morrer minha filha”.
munidades da Grande Porto Alegre23, me Depois de ela ter me contado o sonho
contava um sonho que a sua companheira ficamos pasmos, sentados, pensando
Cláudia teve com o falecido Irajá 24. Se- no que o Irajá queria dizer com aqui-
gundo Jesus, lo. Bem, então resolvemos nos orga-
no sonho dela (da Claúdia) ela pas- nizar e fazer aquilo que o Mestre Ira-
sava pelo cemitério e estavam to- já havia começado, que era fazer o
cando numa roda de samba o Irajá, o samba nas escolas de samba fora do
Pitoco, o Nego Feio, o Adauzinho período do Carnaval. Já que o nosso
carnaval parava em fevereiro e as
23
nossas quadras das escolas de samba
A região da Grande Porto Alegre compreende ficavam ociosas e sem samba de fe-
as cidades de Viamão, Alvorada, Guaíba, Gra-
vereiro até o mês de novembro todos
vataí.
24
“Irajá” ou Guterres Irajá era o nome do funda- os anos, quando se dava a arrancada
dor do Samba do Itinerante, que mais tarde dará de novo para o carnaval do próximo
o nome ao evento sociomusical pesquisado, o ano. Por isso resolvemos retomar o
Samba do Irajá.

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projeto inicial do Irajá (Entrevista grande contingente, este evento de samba


com Jesus, em maio de 2013). traz outras mensagens implícitas através de
seus encontros, tal como aproximar as pes-
Ao acordar, Cláudia, sua companheira,
soas e as comunidades, trazendo para o
lhe descreveu o que sonhara. Contou os
espaço das agremiações carnavalescas,
detalhes de seu sonho, da roupa branca que
homens mulheres e crianças que estão nas
todos vestiam na roda de samba no cemité-
suas comunidades, desarticulados, sem
rio, simbolizando a passagem dos sambistas
perspectivas e lazer. Conforme nos lembra
para o mundo dos espíritos, dos desencar-
o sambista Jesus, “nós trazemos a família,
nados ou para a “cidade do pé junto” para
os amigos, compadres e gente de outras
usar uma expressão de um samba de Zeca
comunidades numa grande comunhão tão
Pagodinho, gravado na década de 1980.
comum ao samba”.
Após ouvir cuidadosamente sua mulher,
Por isso, neste artigo, inicialmente irei
Jesus resolveu marcar uma reunião com os
falar sobre a construção do Samba do Irajá
partícipes do antigo samba itinerante25,
(Como o Itinerante passou a se chamar
afastados das suas atividades musicais há
Irajá) a partir de sua sociomusicalidade, ou
dois anos, devido alguns desentendimentos
seja, de sua relação com a cidade e com as
entre seus sócios e integrantes, principal-
comunidades do samba da Grande porto
mente porque afetava a circularidade do
Alegre, apontando a circularidade do evento
projeto inicial, que era a de jamais se fixar –
enquanto um elemento aglutinador e impor-
tocar eu um único lugar - em qualquer que
tante elo na elaboração de uma linguagem
fosse o estabelecimento, bar, associação ou
sociocultural para os sambistas e para a
clube.
comunidade do samba de Porto Alegre. É a
Quando finalmente todos os sambistas
partir do entendimento do local, acerca das
se comunicaram – Jesus Machado, Rui da
rodas de samba da Grande Porto Alegre
Silva Corrêa, João Carlos Nunes, o “Pé”,
relacionadas com o Samba do Irajá que pre-
Marino A. da Silva, “Seu Chumbo” do Ban-
tendo compreender como a socialidade
jo, Ademar J. Dos Santos, “Tomatt” da
deste grupo de amigos cria uma forma de
Viola –, decidiram dar continuidade ao que
solidariedade, de comunhão e de identifica-
o Mestre Irajá havia iniciado, que era levar
ção com uma maneira de fazer samba no sul
o samba a todas as comunidades de Porto
do Brasil. O que implica em dizer que fazer
Alegre e do Brasil, de uma forma alegre,
samba, tocar numa roda de samba em Porto
descontraída, organizada, e com muito
Alegre não é mera repetição de tocar o
compromisso. Fizeram algumas reuniões,
samba de Florianópolis ou o samba Paulis-
chamaram mais amigos interessados em
ta26. Os encontros produzidos pelo Samba
abraçar a proposta do Samba Itinerante e
do Irajá nos dizem o que os sambistas de
finalmente retomaram esse projeto que já
Porto Alegre fazem não só nas rodas de
acontecia há quase duas décadas na cidade.
samba, mas também como essa socialidade
Essa etnografia é sobre este evento so-
engendrada a partir dessa paisagem sonora
ciomusical, que nas palavras de Rui Corrêa,
e visual, se manifesta para além do evento
percussionista e cantor, “já levou mais de
musical per se.
cinco mil pessoas para uma única quadra de
Por isso, mas adiante, busco compreen-
escola de samba”, aos sábados das 4 da
der suas influências musicais e as inspira-
tarde às 11e meia da noite, horário em que
ções do Samba do Irajá, já que estas con-
acontece o samba de mesa, organizado pelo
cepções sociomusicais são os elementos
Samba do Irajá, nas comunidades da Gran-
que a cultura popular negra de Porto Alegre
de Porto Alegre. Além de mobilizar um
reelaborou, e que influenciam a forma co-
mo estas práticas musicais de afrodescen-
25
O Samba Itinerante era uma samba circular; dentes gaúchos (Prass, 1998, 2004 apud,
todos os sábados apresentava-se em uma nova Lucas, 2013) de maneira pedagógica, dialo-
comunidade da Grande Porto Alegre. Um grupo gam e apresentam o samba (gênero musi-
de Amigos se reunia sob a liderança de Guterres cal) como uma forma de aprendizado dialó-
Irajá, Seu Chumbo, João 7, Tomatt, entre outros
e organizavam vários sambas de mesa nas qua-
26
dras de Escolas de Samba de Porto Alegre e Para uma abordagem antropológica sobre o
adjacências. samba de Florianópolis ver Silva (2012).

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gico do “mundo do samba” (a cidade) com tas: ‘Como vai?’, ‘Quanto tempo não nos
as demais comunidades (coletividades) da falamos?’, ‘Onde você anda meu compa-
Grande Porto Alegre por onde o samba dre?’ – demonstrando o espaço de tempo
passa. em que os amigos e compadres não se en-
contravam para curtir uma roda de samba
O Samba do Irajá é um Samba Itine- ou simplesmente botar a conversa em dia.
rante Esta socialidade intrínseca ao “mundo
Todos os sábados Rui Corrêa anuncia o do samba”, frequentes nesses momentos de
início do samba de mesa numa comunidade interação é o que liga as pessoas às comu-
diferente de Porto Alegre e adjacências. nidades, aos vários espaços de lazer e de
Antes da arrancada para mais uma tarde de entretenimento das comunidades do samba
samba com o Irajá, o coordenador de mesa de Porto Alegre, se estendendo para além
anuncia com voz de locutor de rádio: destes lugares e se configurando nas rela-
“Samba do Irajá, samba de amigos feito ções de vizinhança, de solidariedade e de
para amigos”. A primeira música que os amizade. Uma grande “comunidade” se
sambistas começam a tocar é de Nei Lopes forma em torno destes sambistas que dialo-
de Wilson Moreira, sempre tocada dando ga através da roda de samba, do ‘samba de
início ao Samba do Irajá. A letra deste clás- mesa’, como prefere o sambista Rui.
sico do samba carioca e que ficou conheci- É na roda de samba, nas ‘trocas’ de ins-
da depois do lançamento do LP em 1980 trumentos musicais, no convite para uma
“A Arte Negra de Wilson Moreira e de Nei canja (cantar uma música como convidado),
Lopes”, é: nos gestos para acelerar ou reduzir a cadên-
cia do samba, nas muitas mensagens corpo-
tem pressa no meu rosto rais ou verbais que os músicos lançam no
e no peito lado oposto ao direito uma transcorrer do evento, que é possível esta-
saudade belecer as regras de socialidade da comuni-
que saudade, sensação de na verdade dade do samba, através dos eventos musi-
não ter tido nem metade daquilo que cais do Samba do Irajá. Segundo M. Moura
você sonhou. (2004) em sua reflexão sobre o lugar da
Que sonhou, são caminhos são es- roda de samba na história do samba,
quemas, descaminhos e problemas
é o rochedo contra o mar ao situar a roda entre as matrizes do
é isso aí, meu Irajá, meu samba é a samba, o que se pretende afirmar é
única coisa que posso lhe dar que os tipos de música – polca, ma-
é isso aí, meu Irajá, meu samba é a xixe, modinha, lundu, habanera, tan-
única coisa que eu posso lhe dar”. go - foram suas raízes estéticas, en-
quanto que a roda foi sua origem físi-
A letra deste samba fala do Irajá, subúr- ca. Foi na roda que aqueles gêneros
bio do Rio de Janeiro, um cantinho de se fundiram até produzirem uma ou-
grandes sambistas cariocas, mas neste con- tra forma musical (2004, p. 34).
texto cantado por Rui, remetia a figura do
Mestre Irajá, sempre homenageado pelos Portanto, a roda de samba é também
sambistas de Porto Alegre como o criador uma escola na qual os aprendizes de cada
de uma forma de brincar com o samba, comunidade onde estes sambas ocorrem,
também num cantinho de bambas, porém têm a oportunidade de aprender a cantar e a
nos subúrbios, nas “quebradas” de Porto tocar os instrumentos musicais. Todos os
Alegre. Enquanto o samba do Irajá dava partícipes do Irajá são incentivados a fazê-
suas primeiras batidas, os últimos ajustes, o lo, mesmo sem a habilidade que é normal-
cheiro da costela e das linguiças assadas mente tão exigida naquelas rodas de sambas
tomava conta do ambiente. No rosto das que são frequentadas pelos verdadeiros
pessoas que aos poucos vinham chegando bambas do samba brasileiro. O que o Sam-
de suas casas após seus compromissos do- ba do Irajá faz é aproximar músicos, a co-
mésticos, era possível ver um sorriso es- munidade, os aprendizes e grandes sambis-
tampado. A maioria se cumprimentava com tas e pô-los num mesmo patamar, inverten-
apertos de mão, abraços acalorados, que do esta lógica dos bambas e contrariando a
normalmente vinham seguidos de pergun- máxima, “samba não se aprende no colé-

RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 14, n. 40, abril de 2015


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gio”, tão cantada e afirmada pelos sambis- que preferem dançar a malevolência do gin-
tas no Brasil. É claro que a roda de samba é, gado do pagode ou do samba de mesa.
para o Samba do Irajá, este colégio.
É na roda de samba que os partícipes do Girando nas Rodas de Samba com o
Samba do Irajá aprendem – participando e Irajá nas Rodas da Vida
tocando sem a preocupação de serem bam- Muitas pessoas com quem pude conver-
bas. Nos termos de Certeau (1994), apren- sar me diziam que não participavam dos
dem através do “fazer-fazendo”, como o eventos do Irajá desde o tempo em que
cozinhar de doces e salgados da culinária ainda se chamava Samba Itinerante, já que
afro-brasileira, no lavar de pratos e panelas inicialmente o Samba do Irajá tinha esse
antes e depois das atividades musicais e nome. Tomatt do violão 6, lembra que na
familiares, varrendo o chão e arrumando os época eles faziam sambas no ‘Tarzan’27, ou
terreiros de umbanda e de candomblé, nas seja, segundo o violonista,
conversas sobre as mazelas da vida e as
alegrias do dia-a-dia. Morando e conviven- nós cantávamos sem microfone, nada
do com os vizinhos e parentes, caminhando era plugado né, amplificado. Depois
pelos morros e comunidades, numa trajetó- começamos a ligar o violão, cavaqui-
ria que lhes constitui enquanto pertencentes nho e agora é que a maioria dos ins-
à comunidade, estes partícipes/sambistas trumentos está ligado bem alto. Mas
transmitem dentro de seu sistema cultural, antigamente, dificilmente nós tínha-
as informações necessárias a reelaboração mos como ligar os instrumentos, can-
das práticas para, através destas trans- tar em microfones e tudo mais. Agora
formações, manterem alguns elementos que já é normal, sempre tem aparelhagem
refaçam a história dos negros, do samba e pro samba começar. (Entrevista com
da cultura popular na Grande Porto Alegre o músico Tomatt, do Samba do Irajá
de hoje. em maio de 2013).
Essa pedagogia do “fazer”, presente nas Interessante perceber nesta fala que não
práticas como a arte culinária, a arte dança há por parte destes sambistas um preconcei-
e do corpo, da música, representa de certa to com relação à utilização de aparelhagens,
forma um “comportamento restaurado” instrumentos eletroeletrônicos. Os sambis-
(Schechner, 2003) assim como, de certo tas mais velhos se adaptaram muito bem a
modo, se torna uma forma de “antidiscipli- estes recursos, que segundo eles vieram
na” nos termos propostos por Certeau para facilitar a divulgação, a execução e o
(1990). A partir desse mote, interpreto estas próprio samba como um todo, ou seja, con-
festas como sendo uma estratégia que evi- forme nos indica Gilroy (1993), temos que
dencia, ou melhor, que engendra identida- construir um caminho que dê conta de a-
des. bordar estes fenômenos na pós-moder-
Esta “comunidade” de sambistas fala nidade, justamente por não haver “con-
num mesmo idioma, tal qual Monson tradição entre a produção de culturas e de
(1996) aponta sobre a improvisação no jazz identidades negras neste contexto”. Para
em New York. Segundo a autora de Saying ele, “os processos de modernização/de glo-
Something: Jazz, Interação and Improvisa- balização, criam novos espaços, assim co-
tion, uma comunidade seria estabelecida, mo novos desafios, para o intercâmbio de
terreno das interações entre sons, pessoas e idéias – redes” (p.45). É o que acontece
suas histórias culturais e musicais. A ideia com o Samba do Irajá, em meio à criação
central é a de que os músicos dizem algo destes novos locais de divulgação do samba
sobre eles mesmos através da música, iden- (terreiros de batuque, centros comunitários,
tidade, política e raça, e o fazem através de quadras de escolas de samba). Ou como nos
variados níveis de interação. Com o samba afirma Hall, no contexto de pós-moder-
isso é evidenciado em diferentes níveis: nas
batidas destes sambas, influências musicais 27
cariocas, paulistas ou gaúchas, nos sotaques O Tarzan é uma expressão usada pelos músi-
rítmicos da percussão uma levada com mais cos do Samba do Irajá atualmente, mas que
remonta o Samba do Itinerante, já que se refere
ou menos swing, no corpo dos partícipes
ao tempo em que os músicos tocavam sem apa-
relhagem de som.

RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 14, n. 40, abril de 2015


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nismo, “as identidades são formadas e pego na mão já sei se tem 6, 7 ou 10


transformadas, continuamente, em relação kilos. Muitas vezes vinha bem menos
às formas pelas quais somos representados que o combinado, mas nós fazíamos
ou interpretados nos sistemas culturais que tudo como se fosse o certo. O nosso
nos rodeiam” (Hall, 2006, p.13), ficando trabalho era garantido. Não tinha er-
muitas vezes, - o Samba do Irajá - atrelados ro. Mas tínhamos que tomar uma ati-
e julgados pelos rótulos tradicionais do tude, e quanto a isso resolvemos pe-
samba raiz ou samba tradicional. dir então 20 kilos, porque se viesse à
Enquanto realizava a pesquisa de campo metade, já chegava aos 10 kilos de
acompanhando o Irajá28, entre os meses de antes que havíamos pedido no co-
março e julho de 2013, pude verificar o meço, certo! (Entrevista com Pé em
quanto a circularidade musical influenciava maio de 2013).
a sonoridade do grupo em suas apresenta-
Restava ao Samba do Irajá, depois da es-
ções nos diversos espaços socioculturais. A
trutura toda organizada, movimentar o e-
afirmação de Tomatt, sobre o ‘tarzan’ é
vento com bom samba, que afinal de contas
sintomática neste sentido, já que em suas
era o que interessava para quem vinha de
rodas de samba, a intensidade forte do som
longe participar dos seus encontros socio-
é um dos elementos que dialogava frequen-
musicais. Com a roda de samba aberta, as
temente com o público. Cada semana, de
pessoas eram convidadas a cantar três mú-
acordo com o lugar em que era anunciado
sicas de sua escolha. Nestas canjas estavam
mais um samba, um conjunto de questões
incluídos sambas, samba-canção, partido
como planejamento e organização da estru-
alto, samba-enredo, e vários gêneros de
tura do evento era de responsabilidade da
samba eram cantados pelos convidados.
diretoria da associação, clube ou escola de
Alguns pegavam o microfone e ensaiavam
samba que sediava o Samba Itinerante do
os primeiros tons, outros que já cantavam já
Irajá.
há algum tempo, apresentavam novas can-
Neste ‘acordo de cavalheiros’, o Irajá
ções e dinamizavam a grandiosidade do
trazia os sambistas, sócios e amigos, além
evento.
da participação sempre muito forte do pú-
Contudo, conforme citei antes, a sonori-
blico nas canjas, e, em contrapartida, as
dade advinda desta circularidade musical,
direções de associações e clubes se encarre-
acabava por causar alguns problemas, na
gavam de fornecer a aparelhagem de som, a
medida em que cada espaço físico apresen-
carne para os churrascos e as bebidas. Se-
tava uma característica acústica diferente,
gundo Rui,
dificultando em muito a dosagem e a altura
nós pedíamos cerca de 10 kilos de exata/certa do som em cada evento. A di-
carne, cerveja, uma 2 caixas e a sono- versidade de espaços nos quais acontecia e
rização. Só que com o tempo nós ía- acontece o samba do Irajá é muito grande.
mos nas quadras e clubes e os 10 ki- O último samba do qual participei aconte-
los se transformavam em 5 kilos, e ceu na quadra da Escola de Samba Vila
cerveja também não vinha toda. En- Isabel, em Viamão, no início de julho. A
tão tivemos que aumentar os pedidos, coordenação do Irajá alugou um ônibus
a quantidade mesmo das coisas para para o deslocamento dos integrantes – mú-
que nós pudéssemos garantir a co- sicos, amigos e sócios, que saiu pela manhã
mida e a bebida dos músicos (Entre- e retornou ao término do evento, deixando
vista com Rui em junho de 2013). as pessoas o mais próximo de suas residên-
cias, na medida do possível.
E acrescenta Pé, o responsável por assar
o churrasco aos sábados:
na verdade quem assa conhece o peso
da carne, já faço isso há muito tempo
e a quantidade de carne quando eu

28
É comum as pessoas que frequentam os even-
tos musicais se referirem ao Samba do Irajá
somente por Irajá.

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da Vila Isabel, enfim, a circularidade do


evento tem seus prós e contras.
É neste período, entre as tardes de sába-
do e o início da noite, que os sambistas
atraem, encantam, integram participantes e
admiradores, e, consequentemente, o coti-
diano é interrompido temporariamente,
introduzindo-os num tempo especial por
meio de elaborada linguagem artística e
simbólica (Castro, p.01). Evidentemente
que não se trata de esquecer/suspender o
cotidiano, até porque há laboriosos prepara-
Quadra da Escola de Samba Vila Isabel em tivos para sua organização. No caso do
Viamão. Foto do autor. samba, uma das coisas corriqueiras é contar
A passagem de som começou por volta os espetos e separar as carnes (e uma boa
das três e meia da tarde, os primeiros ins- costela gaúcha ou uruguaia é indispensável
trumentos a serem testados são as cordas, para estas situações), selecionar os salsi-
violão, cavaquinho, banjo, depois a voz e chões e as linguiças, além do cuidado com
em seguida a percussão. Nesta imagem as churrasqueiras sempre improvisadas de
abaixo, o núcleo de cordas do Irajá está chão. Mas trata-se de manter com esse coti-
completo, este é, normalmente, o grupo que diano uma licença poética (ibdem), sem
inicia as apresentações. dele se esquecer.
No calor das rodas de samba organiza-
das por esses partícipes do samba de Porto
Alegre, entre sons, cheiros e sabores perce-
be-se um universo marcado pelos laços de
amizade, solidariedade, numa atmosfera de
lazer e de emoção. Estes afetos que emer-
gem através das músicas, nestas rodas de
samba, remetem os sambistas a outros mo-
mentos históricos, tempos em que o samba
era perseguido, como nos fala o samba de
Nelson Sargento, “samba agoniza mais não
morre, alguém sempre te socorre, antes do
Da esquerda para direita, Carlos (violão 7), Vera suspiro derradeiro”. E quem socorre o sam-
(banjo), ‘Seu Chumbo’(banjo), Tomatt (violão ba de Porto Alegre, da Grande Porto Ale-
6) e Márcio (cavaquinho), de pé com o gre? São sambistas como Jesus, Rui, To-
microfone Jesus.
matt, Pé, Seu Chumbo e que formam o
Há nesta ordem, uma hierarquia entre Samba do Irajá.
os instrumentos musicais, ficando as cordas Serão estes partícipes do samba, que a-
com o privilégio de serem afinadas primei- través das rodas que promovem, gentilmen-
ramente, e em seguida, os outros instrumen- te chamada por Rui de ‘Samba de Mesa’,
tos. Na Vila Isabel, os lados da quadra que que irão articular os eventos musicais do
correspondem ao quadrado formado pelo “mundo do samba” de Porto Alegre. Sua
imóvel são abertos e o som acaba por ‘vazar articulação com os integrantes do Antigo
para fora’ do espaço da agremiação. Con- Samba Itinerante29, com o universo das
forme apontado por Seeger, o contexto da escolas de samba, das comunidades de ter-
produção musical (1987), “como algo que reiros, associações de futebol e demais con-
altera o som e, ao mesmo tempo, que é gêneres, propiciou um ambiente favorável à
alterado por ele” (p.41), manifesta-se na circularidade musical constituinte do Samba
medida em que a circularidade musical do do Irajá, na medida em que as muitas rodas
samba do Irajá faz com que a cada semana de samba acontecem, a cada semana, em
os músicos se encontrem num ambiente
distinto: um dia fechado, outro dia aberto,
às vezes um ambiente misto, como a quadra

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lugares diferentes. É nos sambas de mesa texto de minha inserção em campo teriam
que o Samba do Irajá organiza sua relação menos agudez, já que este trabalho, em
com sambistas, amigos e com a cidade. alguma medida, trata-se de uma etnografia
Enfim, partindo para meu primeiro bre- de imaginação histórica31 - na ausência de
que, deste enredo ‘sambístico’, uma ima- um termo mais adequado -, cujo desenrolar
gem etnográfica ilustra bem o que busquei precoce de alguns pontos, poderia minimi-
delinear até agora, antes de chegar o refrão, zar a importância desta pesquisa.
momento coletivo de êxtase e de explosão
musical deste gênero chamado samba.
Um violão de 7 cordas e o Samba do
Ao chegar à quadra da Vila Isabel, uma Irajá
mulher disse à outra o seguinte: Quando cheguei a Porto Alegre em ou-
- Oi Liz, quanto tempo? A última vez tubro de 2012, para fazer a seleção de Dou-
que nos encontramos tu ainda desfilava na torado para o Programa do qual hoje faço
Imperadores (referência a Escola de Samba parte, o PPGAS - UFRGS, acabei me hos-
Imperadores), lembra? pedando alguns dias na casa de meu com-
- Claro, eu ainda era casada com aquele padre, Raggamano Koya, que tem um traba-
traste, o Valdir. Agora, graças a Deus, além lho musical ligado ao rap, ragga e ao regga-
de não mais estar com aquele sem vergo- e, entre outros estilos de música negra. Ele
nha, também briguei lá na escola e me (Raggamano) me disse que no sábado ante-
mudei aqui pra Viamão. Fui bem recebida rior a prova de seleção, na Banda do Be-
aqui na Vila Isabel, e por isso fiquei tanto co32, haveria o Samba do Irajá e me avisou
tempo sem te encontrar. Só o Irajá mesmo que o Tomatt também tocaria.
pra fazer a gente se encontrar né? Conheci o Mestre Tomatt, do violão 6
- Sim, ainda bem que agora já tem agen- cordas no Clube Itinerante quatro anos an-
da do Irajá aqui pra Vila Isabel em novem- tes, numa situação muito interessante, e
bro, dia 30, já soubesse? quem me apresentou foi meu compadre. Era
- Não, mas pelo menos já temos como no inverno de 2009 e eu estava em Porto
nos falar logo, logo!. (risos) Alegre para participar do CONEB – Con-
gresso Negro Brasileiro. Terminado o even-
As Influências Musicais do Samba do
to, numa quinta-feira, resolvi não retornar à
Irajá Florianópolis, permanecendo em Porto
Para identificar e analisar as influências Alegre para ir ao Samba Itinerante, sexta
musicais do Irajá, irei apresentar como se feira à noite, sábado e domingo durante o
deu minha inserção na pesquisa de campo dia.
com o Samba do Irajá. Optei por fazê-lo Quando chegamos ao Itinerante, eu e o
somente neste momento, por dois motivos. Koya nos sentamos próximo à roda de sam-
O primeiro deve-se ao fato de que as pró- ba que recém se formava e observamos
prias influências musicais que serão apre- enquanto os músicos passavam o som, tes-
sentadas pelos músicos neste trabalho, no tavam a sonoridade dos instrumentos musi-
contexto do samba do Irajá, é que fizeram cais – cordas e percussão – e faziam os
com que eu me aproximasse dos seus even- últimos ajustes para o início do samba. To-
tos sociomusicais e, consequentemente, que matt logo nos avistou e convidou-me para
eu fosse aos poucos interagindo com todos, sentar do seu lado, puxou uma cadeira e
já que como músico, costumava levar meu pediu que eu ligasse ou, como se fala na
violão de 7 cordas para tocar um pouco roda de samba, que eu ‘espetasse ou plugas-
junto com os sambistas, sempre que possí- se minha viola’. Fiquei meio preocupado,
vel, nas rodas de samba em que participei pois muitos sambistas me olhavam des-
inicialmente lá no Clube Itinerante, próxi-
mo ao Beira Rio30. 31
O segundo motivo, talvez o mais prag- Utilizo-me do termo etnografia de imaginação
mático, é de ordem organizativa, pois desta histórica, nos termos de Jean e John Comaroff
(1990).
forma, os apontamentos referentes ao con- 32
A Banda do Beco é um clube no bairro Cefer,
próximo a Av. Antônio de Carvalho, onde orga-
30
Campo de futebol do Internacional Futebol niza-se eventos, rodas de samba e festas dos
Clube (IFC). moradores de comunidades próximas.

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confiados, uns trocavam olhares, outros dades de descrever e de refletir sobre meu
viravam a cabeça, querendo dizer, “é, quero Campo com o Irajá são mudanças oca-
só ver no que vai dar”. sionadas pela forma como a etnomusi-
Enfim o samba começou, era uma músi- cologia, primeiramente com Merriam34
ca do Lupicínio Rodrigues, “Se acaso você (1964), e depois com Nettl, (2005), se posi-
chegasse”, muito conhecida. O cavaquinho cionaram sobre o Trabalho de Campo en-
iniciou, fez a chamada e o normal era que o quanto “um conceito teórico que não apare-
violão de 6 ou 7 cordas fizesse a baixaria cia com frequência como um tema que de-
para que os instrumentos de percussão en- vesse ser debatido, a partir de um contexto
trassem no samba. Notei que os outros dois mais amplo do projeto de pesquisa” (p.
violões, o Mestre Tomatt e o Carlos 7 não 139). Portanto, Conforme nos aponta Prass
entraram harmonizando o samba e não fize- (2013), “o Paradigma Etnomusicológico
ram a ‘baixaria’ que lhes cabia. Como só veio transformar as possibilidades teóricas
restava eu, não perdi a oportunidade e fiz o de olhar para os objetos e para os sujeitos
que os sambistas chamam de “costurar o musicais” (Prass, p. 296, apud Lucas,
samba com as baixarias”. Todos me olha- 2013).
ram espantados, não acreditando que era eu Coincidentemente, não só a forma como
quem estava fazendo os acordes. Seu a Etnomusicologia refletia sobre a Pesquisa
Chumbo, que tocava banjo, me disse depois de Campo mudou, como também o formato
que fizemos um intervalo: “- Bah nego, do Samba do Irajá, conforme citei acima. É
mandou ver naquele fado33 do “Lupe”, gos- claro que estes fenômenos apesar de serem
tei da viola! ordens distintas, o primeiro de ordem teóri-
Depois da primeira música senti que to- ca (etnomusicológica) e o outro de ordem
dos relaxaram, tocaram mais à vontade e organizativa, de concepção (do Irajá), nos
começaram a sorrir. Lembrei-me da idéia mostram que se os dados não forem cuida-
de Geertz (1973), que “ser caçoado em Bali dosamente planejados item por item na
é ser aceito (p.182)”. Ou seja, no início fui pesquisa, outros interesses em questão po-
recebido com um pouco de estranheza pelos dem demandar muitos problemas e gerar
sambistas do Itinerante, com olhares des- inúmeros conflitos.
confiados e após as baixarias terem sido Enfim, O repertório do Irajá havia mu-
desferidas no momento certo, cravadas dado, devido ao incentivo à participação do
entre as melodias e as batidas do samba de público e o estilo da roda de samba tam-
Lupicínio, fui aceito por todos como se bém. Agora não havia mais cantores ‘fixos’,
fizesse parte do samba há muito tempo. o número de músicos também aumentou,
Daí em diante, todos os anos seguintes assim como a coordenação do evento tam-
eu vinha a Porto Alegre e frequentava o bém. Após o início do samba, a cada três
Itinerante, até que no fim de 2012, confor- músicas os cantores eram alternados, fican-
me citei acima, me hospedei no bairro Ipê e do as canjas como a principal forma de cir-
reencontrei o pessoal do Samba Itinerante, cularidade apresentada nos sambas de mesa
agora sob um novo formato: era o Samba do Irajá. Aliás, a circularidade física do
do Irajá. samba do Irajá – todas as semanas em co-
Portanto, eu conheci os sambistas de munidades distintas – por outro lado e em
Porto Alegre como pertencentes ao Samba menor escala, é seguida pela alternância de
Itinerante e finalizei minha Pesquisa de músicos na roda, que podem ser substituí-
Campo para a elaboração deste artigo como dos a todo o momento.
Samba do Irajá, já que neste novo formato, Cabe ainda lembrar que esse receio de
foram mais de 4 meses acompanhando o entrar numa roda de samba é uma caracte-
evento sociomusical nômade. As possibili-
34
Outros autores durante este período que vão de
33
Fado é uma expressão nativa utilizada pelos Merriam (1964) até os trabalhos de Nettl
músicos e sambistas para se referir a qualquer (2005), contribuíram para uma maior reflexão
música que pode ser cantada numa roda de sobre os procedimentos do trabalho de Campo
samba. Em vez de dizer que é um bom samba, na pesquisa Etnomusicológica. Chernoff, Mon-
em Porto Alegre o sambista ou músico diz que é son, Nketia (1974), Shaffer (2001), Feld (2004),
um bom Fado. Bolhman (2000).

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rística muito comum entre a maioria dos conosco. Além disso, o pai dele está
músicos iniciantes. No livro “A Roda de aí, todo orgulhoso, a mãe também, ou
Samba”, Moura (2006) não só mostra que a seja, a família dele está aqui contri-
roda de samba foi um importante elemento buindo com a escola, com o Irajá e
de aglutinação para sambistas, composito- com o samba, que é quem mais ga-
res e partícipes, como também um lugar de nha com isso tudo (Entrevista com
bamba, ou seja, só entra na roda de samba Rui em junho de 2013).
quem tem competência para “não deixar o
E na realidade, atitudes como as que o
samba cair”, para cantar um refrão de parti-
Rui tomou, como a de manter o menino
do alto e versar também, ou ainda tocar
cantando, assim como outras pessoas com
somente um instrumento, é claro sob os
algumas dificuldades na roda de samba tem
olhares e ouvidos atentos dos sambistas
surtido efeito, provando que a pedagogia do
mais velhos.
Irajá é muito eficaz e estimulante. No fim
É principalmente neste aspecto que o
de junho, quando o Irajá se apresentou na
Samba do Irajá difere das outras rodas de
Banda do Beco, no bairro Ipê I, havia um
samba em que participei por todo o país. Os
cantor que me contou sobre sua primeira
sambistas do Irajá pensam nos seus sambas
vez, e que agora não perde um samba por-
de mesa ou rodas de samba como um a-
que pode sempre cantar, o que em outras
prendizado contínuo, e em suas levadas e
rodas seria impossível. Carlos me disse o
batidas fazem de sua musicalidade uma
seguinte:
sistemática pedagogia cotidiana, onde as
pessoas acabam sempre se sentindo convi- A primeira vez que cantei eu ainda
dadas a participar. era muito desafinado. Depois come-
Na quadra da Vila Isabel, em Viamão, cei a estudar um pouquinho e fui me-
presenciei um momento tenso entre músi- lhorando. Uma das coisas que me
cos e instrumentistas da escola de samba chamou atenção era que eu comecei a
que estava recebendo o Irajá e os integran- ouvir minha voz, não sabia como ela
tes da coordenação do samba. Um menino, era no microfone. Foi muito estranho
com aproximadamente 16 anos, pediu para mesmo. Então fui participando, es-
cantar algumas músicas e cantou durante colhendo músicas novas para cantar e
uns 15 minutos. Foram cerca de 3 ou 4 mú- agora já está bem melhor, pelo menos
sicas, quando um dos músicos da escola de é o que eu acho né (risos)!(Entrevista
samba chamou o Sr. Rui e disse: com Antônio Carlos, em julho de
2013, na Banda do Beco, Cefer).
se não dá pra cantar, não deixa cantar
porque o samba cai, o menino não Enquanto me falava isso, ao nosso lado
têm condições, desafina e fica muito estava Jesus, também coordenador do Irajá,
feio. Não dá, não dá e pronto. Senão que balançava a cabeça e confirmava o que
todo mundo que não canta vai vir a- o aprendiz de samba me descrevia. E com-
qui e vão acabar com o samba meu pletou,
véio (Conversa de Jajá, da Vila Isabel da primeira vez que ele cantou, tu
com Rui em julho de 2013). não acredita na diferença. Bem, tu já
Logo que ouviu atentamente o que o viu ele cantando né. É isso aí, é isso
músico havia dito, Rui virou-se para mim e que o nós queremos. Que as pessoas
falou: participem e aprendam, porque nin-
guém aqui é melhor do que ninguém.
eles não compreendem a filosofia, os
Isso pra nós é sério, mas também é
objetivos do samba do Irajá. Aqui es-
brincadeira (Entrevista com Jesus,
tamos todos aprendendo, ninguém
em julho de 2013).
aqui é bamba disso ou daquilo. Se eu
tirasse o menino, ou não o deixasse Umas das coisas que também me cha-
cantar, ele nunca iria aprender. Nosso mava muito atenção, entre tantas com as
papel não é reprimir, mas sim ensi- quais convivi acompanhando o Irajá, prin-
nar, dar oportunidade para que ele cipalmente como pesquisador – lugar do
possa aprender e sempre queira vir qual jamais posso prescindir, pois é desse

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lugar epistemológico que falo – é sobre as Sul. O que Rui relata sobre o samba é fruto
influências musicais que percebo nas rodas de experiências com o Irajá e experiências
de samba comandadas pelos percussionis- próprias, assim como relata Seu Chumbo.
tas, cordistas e cantores do “samba de ami- Numa outra ocasião em que estive na
gos, feito para amigos”. Perguntei sobre es- quadra do Goianazes35, na Azenha, próximo
tas influências para Sr. Rui e ele me disse ao antigo campo do Grêmio, ouvi o Rui
que dizendo para um rapaz que iria dar uma
canja: “olha, só não pode cantar swing, tem
nós tocamos samba, samba novo,
que ser samba”. O rapaz começou a cantar e
samba velho, partido, alto, samba-
fez sua participação, quando chegou ao fim
canção. Pra nós o que importa é fazer
do evento anotei o que eu havia escutado, e
samba e boa música. Agora, nosso
meses mais tarde, perguntei para os co-
samba daqui de Porto Alegre é mais
ordenadores do Irajá, no bar do Judeu o que
swingado, porque temos influência
significava a frase: “não pode ser swing”.
do Bedeu, da Banda Pau-Brasil, o
samba do Lupicínio mesmo era dife-
rente. Então nós temos uma influên-
cia diferente do samba do Rio, por
exemplo. Tu vens de Santa Catarina,
lá também é diferente. Quando eu ti-
ve no bar do Kal, e nós íamos muito
pra lá no tempo que o Irajá era vivo,
eu notei que o samba de vocês (Santa
Catarina) era mais rápido do que o
nosso. Então, na batida, é diferente
mesmo e isso é que é bonito (Entre-
vista com Rui em julho de 2013).
Da esquerda para direita: Seu Chumbo (Banjo),
A circularidade musical do Irajá também Jesus (Cantor e percussionista), Tomatt (violão
transcendeu os limites do Estado do Rio 6) Pé (percussionista), Márcio(cavaquinho) e
Grande do Sul, segundo Seu Chumbo toca- Rui (Cantor e percussionista).
dor de cavaco-banjo,
Tomatt me perguntou: “você conheceu o
o Irajá organizava tudo, ele era sindi- Bedeu, a Banda Pau-Brasil? Eles eram os
calista, trabalhava na antiga empresa reis do swing de Porto Alegre e o nosso
que fornecia energia elétrica para ci- samba tem muita influência deles na levada,
dade. Era uma pessoa também muito sabe”. Por isso as pessoas misturam o
séria e rígida, se ele falasse que você swing com o samba. Segundo Jesus, “pra
estava suspenso do samba por algum muitas pessoas cantar um Bebeto, ou um
motivo, era bom que você nem apa- Bedeu é cantar samba, mas nós não mistu-
recesse, porque não tocava mesmo ramos, a roda é de samba e por isso não
(Entrevista com Chumbo, em julho queremos que cante swing”. Para Seu
de 2013). Chumbo, muitos pensam que o Bebeto era
E segue dizendo Seu Chumbo, o rei do swing, já que ele era paulista, mas
os primeiros e mais conhecidos neste gêne-
nós fomos para muitos lugares do ro foram o Bedeu e a Banda Pau Brasil aqui
Brasil com o samba Itinerante. Fo- de Porto Alegre. “O problema é que, pra
mos para Alagoas, Maceió, Rio de eles da mídia, eles são do sul, né”?
Janeiro, São Paulo, pra Bahia, Santa Essa tensão entre o swing e o samba só
Catarina, além de várias cidades no pude perceber aqui em Porto Alegre. O
Rio Grande do Sul (Idem).
35
Neste sentido, os músicos do Irajá pude- Goianazes é uma das últimas tribos de carna-
ram conviver com sambistas de muitos val que saíam vestidos de índios e que hoje
lugares do Brasil, de Alagoas, São Paulo, restaram somente os camanches, do Morro de
Rio de Janeiro, Paraná, Florianópolis, entre São José, Morro da Cruz e os Goianazes, na
várias cidades do próprio Rio Grande do Azenha. Todas as outras tribos estão extintas do
carnaval de Porto Alegre.

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samba raiz enquanto um fenômeno de clas- veem no samba uma forma de inserção e de
se média, tem bem demarcado suas frontei- identidade com o país.
ras, e seria praticamente impossível tocar Porém, o que difere o Irajá destes outros
uma música de Bebeto ou da Banda Pau- grupos ou movimentos é o fato de se consti-
brasil numa roda de samba no Rio de Janei- tuírem enquanto uma espécie de entidade
ro ou em São Paulo, visto que nestes luga- ou associação de amigos, que juntamente
res o samba chamado de raiz, praticamente com as comunidades onde seus sambas são
criou todo um itinerário musical e uma organizados, fazem da musicalidade cultura
linguagem própria do qual estariam de fora popular da cidade, uma possibilidade de
outros gêneros que não fossem os que com- entretenimento, cujo ápice encontra-se no
põem as raízes do samba, gênero musical ato de cantar o samba, comemorar com os
criado e estilizado, segundo a literatura amigos e viver a vida numa boa. Além dis-
etnomusicológica e histórica, no Rio de so, a circularidade do evento musical, a
Janeiro. forma como as rodas de samba se organi-
Por não se tratar de um trabalho sobre as zam e a dinâmica destes encontros musi-
raízes musicais e estéticas do samba, não cais, nos mostra que o Samba do Irajá preo-
cabe aqui citá-las ou explicá-las. Este é, cupa-se com os ensinamentos que podem
sobretudo, um trabalho que aponta para ser tirados de seus eventos, da musicalidade
uma forma única de se fazer samba que construída a partir do congraçamento de
músicos de Porto Alegre produzem através todos, da união das pessoas e das comuni-
de eventos musicais que acontecem nas dades.
quadras de escolas de samba, nas associa- Para os sambistas e partícipes do Irajá,
ções comunitárias, nas sedes de times de sua sociomusicalidade retoma, de alguma
futebol, entre outras agremiações congêne- maneira as antigas rodas de samba do tem-
res. E esta musicalidade ímpar vem do po em que o samba nem se chamava samba.
Samba do Irajá. Era um maxixe, uma marcha, um balanço,
ou mesmo um samba. Para eles o samba é
Algumas Considerações um eterno aprendizado e não um “Dom”. É
Ao estudar este fenômeno que é o Sam- uma forma de levar a vida numa boa ou
ba do Irajá, na região da Grande Porto Ale- mesmo com dificuldade. Como diria Zeca
gre, pude perceber este universo sociomusi- Pagodinho, “Deixa a vida me levar, vida
cal das escolas de samba, das comuni- leva eu”, ou parafraseando Paulinho da
dades onde estão as rodas de samba, dos Viola, “Não sou eu quem me navega, quem
pequenos clubes e associações comunitárias me navega é o mar, não sou eu quem me
e as interações destes espaços culturais, na navega, quem me navega é o mar.
composição de um itinerário musical ligado
Referências
as práticas musicais cultura popular negra
de Porto Alegre. Longe de pensar nessa BOHLMAN, Ph. & RADANO, R. Music
reflexão como um fenômeno homogêneo, and the Racial Imagination. Chicago: Uni-
que abarca toda região da Grande Porto versity Chicago Press, 2000.
Alegre, este trabalho é sobre o Irajá, ou
CASTRO, Maria Laura Viveiros. Su-
Samba do Irajá, um dos inúmeros grupos
perproduções Populares. In: Francisco Wef-
que fazem samba neste pedaço do sul do
fort; Márcio Souza (Orgs.). Um olhar sobre
Brasil. Conforme disse antes, um samba de
a cultura brasileira. Rio de Janeiro: FU-
amigos feito para amigos.
NARTE, 1998.
É claro que existem outros espaços de
samba na cidade, e muitos destes estão nos CARDOSO, Vânia Z. Narrar o mundo:
bares da Cidade Baixa, da Glória, do Bon- Estórias do “Povo” de Rua e a Narração do
fim, entre outros lugares mais conhecidos e imprevisível. Mana: v. 13, n. 2, pp 317-345,
redutos de samba da cidade, como também 2007.
um forte movimento de samba tradicional CHERNOFF, J. M. The relevance of eth-
ou samba raiz, como aponta Lopes (2005), nomusicology to anthropology: strategies of
um movimento organizado pelos jovens das inquiry and interpretation. In: Jacqueline
classes médias urbanas em todo Brasil, que DjeDje (ed.) African musicology: current

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Westview Press, 1992. São Paulo: Editora UNESP, 2001.
FELD, Steven. Doing Anthropology in SILVA, Marcelo. Ué Gaúcho! Em Floripa
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pp. 461-474, 2004. do choro na Grande Florianópolis ontem e
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Abstract: This paper seeks to cast a glance at the black popular culture of Greater Porto Alegre,
from Samba Irajá, a traveling socio-cultural event held every weekend in Porto Alegre area at
the samba schools, clubs and community associations. This visual landscape and noise pro-
duced by samba circles of Irajá organized by this group of friends is where one should learn the
samba is the school where the samba learn and articulates their socio-musicality. It was through
numerous meetings, participations and talks with Samba Irajá this article was prepared, trying
to understand which Irajá the Samba pedagogies out on construction of a way of playing samba
in Greater Porto Alegre and vicinity. Keywords: samba, Porto Alegre RS, ethno-musicology;
socio-musicality

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BASTÁN, Guido García. “’Quilomberos... pero bien educados’ –


La buena educación como competencia moral de sectores de elite.
Un estudio de caso sobre una escuela secundaria de la ciudad de
Córdoba, Argentina”. RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da
Emoção, v. 14, n. 40, pp. 64-80, abril de 2015. ISSN 1676-8965

“Quilomberos… pero bien educados”


La buena educación como competencia moral de sectores de elite. Un
estudio de caso sobre una escuela secundaria de la ciudad de Córdoba,
Argentina

Guido García Bastán

Recebido: 23.12.2014
Aprovado: 12.02.015

Resumo: Este trabalho tematiza a dimensão moral que atravessa à conflitividade cotidiana em
instituições de ensino de elite, inserindo-se na perspectiva da antropologia das moralidades. A
investigação sobre a dinâmica de escolarização das classes superiores na Argentina e no Brasil
começou a ganhar impulso nos últimos anos, juntamente com a necessidade de compreender a
reconfiguração da sociedade e da escola no contexto de transformações das últimas décadas do
século passado. A partir de uma abordagem etnográfica de uma escola na cidade de argentina
de Córdoba Capital, analiso os modos pelos quais os membros da “comunidade imaginada” em
torno da escola (alunos, pais e professores) utilizam à ‘boa educação’ como uma competência
moral: um princípio de efetividade das ações em que se revela sua capacidade metapragmática,
habilitando-os para localizar determinadas atuações ‘violentas’ ou ‘indisciplinadas’ dos jovens
num plano circunstancial ou de contingência, e não como características identitárias ou cultu-
rais. Assim, de maneira irreflexiva, os atores “eclipsam” certos aspectos da conflitividade esco-
lar que, si se tornassem visíveis, encontrariam semelhanças com a realidade cotidiana de comu-
nidades escolares que acreditam distintas. Palavras-chave: conflitividade escolar, escolas de e-
lite, ensino médio, boa educação, competência moral, capacidade metapragmática

próximos a egresarse habían provocado un


Introducción ‘lodazal’ en una plaza pública como parte de
Hacia mediados del mes de octubre de su festejo, arruinando en ese mismo acto una
2014 los medios de comunicación y prensa porción sustancial del césped de dicho espa-
argentinos (aunque con mayor intensidad en cio. La noticia terminaba de componerse con
la provincia de Buenos Aires) hacían eco de un dato presentado como crucial: los jóvenes
un suceso respecto de cuya gravedad no había eran estudiantes del ‘Liceo Franco-argentino
claro consenso: estudiantes secundarios Jean Mermoz’; un prestigioso establecimiento

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educativo de modalidad bilingüe-bicultural, Este trabajo36 tematiza la dimensión moral


conocido por su calidad académica y sus par- que atraviesa la conflictividad cotidiana en
ticularmente onerosos costos de matricula- establecimientos educativos de elite37 posi-
ción. Aspectos que colocan al colegio en un cionándose desde la perspectiva de la antro-
lugar de exclusividad. En esa ocasión el pe- pología de las moralidades. Como señala
riodismo entrevistó al abogado apoderado de Didier Fassin (2008) una antropología tal no
la escuela: debe ser “moralista”, por el contrario, debe
tener a la moral por objeto, refiriendo con ello
Periodista: ‘¿A quién le cabe la respon-
específicamente a “la creencia humana en la
sabilidad por el festejo? ¿A la escuela o
posibilidad de distinguir el bien del mal y en
a los chicos como individuos?’
la necesidad de actuar a favor del bien y en
Abogado apoderado: ‘Todos somos contra del mal” (p. 335). Esta simple defini-
responsables…’ ción comporta una serie de dificultades a la
Periodista: ‘¿Qué responsabilidad le hora de efectivizar nuestros análisis. Pues si
cabe al colegio?’ bien podemos asumir que en toda formación
social existen concepciones de bien y de mal,
Abogado apoderado: ‘… es una insti- no menos cierto es que podemos identificar
tución de las más prestigiosas que hay en ellas formas alternativas de bien que se
en el país, de excelencia, alguna auto-
crítica deberá hacer…’ 36
A lo largo del este trabajo se recuperan testimo-
[Abogado escolar en entrevista televi- nios y observaciones de campo correspondientes al
siva] curso de 3º año de la escuela privada. En la provin-
cia de Córdoba el nivel medio consta de 6 años
En su declaración el abogado reconocería organizados en dos ciclos (Ciclo Básico y Ciclo de
la gravedad de este incidente contra el orden Especialización). La escuela caso es un estableci-
público. Así como también que la responsabi- miento bilingüe de la zona norte de la ciudad de
lidad por el mismo cabía parcialmente a la Córdoba Capital con una matrícula de aproximada-
escuela que, en tanto establecimiento de exce- mente 200 estudiantes en todo el nivel medio. La
lencia, merecía hacer una ‘autocrítica’. Con- población que asiste a dicho establecimiento proce-
cretamente pondría bajo sospecha que se tra- de de zonas aledañas. Se trata de barrios que con-
tase de una ‘buena escuela’, por cuando en centran familias de clase media alta y alta, algunos
countries y barrios cerrados. Tratándose de una
esta coyuntura no era posible constatarlo, al
escuela con modalidad bilingüe los jóvenes pasan la
menos no en la ‘buena educación’ de sus mayor parte de su día en ella. La jornada de clases
estudiantes. Sin embargo un grupo de madres en la escuela caso comienza a las 7:30 hs y finaliza
de estos jóvenes en un reportaje para un pe- entre las 15 y 16:30 horas.
riódico de la ciudad, mostraría su desacuerdo 37
Mediante el calificativo “de elite” refiero a que sus
cuando argumentara que ‘las cámaras no destinatarios pertenecen a sectores “que histórica-
están en los lugares donde está la inseguri- mente han habitado en espacios apartados donde
dad. Están acá, en un festejo de egresados’. han desarrollado una sociabilidad de tipo comunita-
En una demostración magistral de economía rio, destinada a la conservación de posiciones y a la
de palabras relativizarían la importancia del reproducción social dentro de un espacio determi-
nado” (TIRAMONTI y ZIEGLER, 2008, p. 27). En
incidente y simultáneamente descalificarían a
ello no desconozco que existen diversas clases de
un periodismo distraído de los temas “verda- elites (intelectuales, artísticas, económicas, acadé-
deramente” importantes y graves, intro- micas, etc.). Señalan las autoras que la elección de
duciendo “de contrabando” un enemigo im- las instituciones escolares estuvo siempre asociada
personal: ‘la inseguridad’. Alegando así que para estos sectores a prácticas que buscan garantizar
“otras personas que integran la sociedad que la homogeneidad social. Como señalan Martínez,
[…] condena [a sus hijos] incurren en actos Villa y Seoane (2009) “los procesos de elección
similares o peores, sin que por ello se los escolar expresan tanto las aspiraciones de las fami-
detenga o castigue” (SYKES y MATZA, lias como la posibilidad de las instituciones de ele-
citado en SCOTT y LYMAN, 1974, p. 152). gir el perfil de los grupos sociales que está interesa-
da en reclutar” (p. 52).

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ponen en juego en situaciones de conflicto aproximación etnográfica a dicho estable-


potencial o manifiesto (WERNECK, 2011). cimiento39.
La referencia al conflicto resulta clave para Como señalan Paes de Carvalho y Martí-
una antropología de las moralidades. Jarret nez (2009) la investigación sobre la dinámica
Zigon (2007) entiende a la moral como un de escolarización de sectores altos en Argen-
conjunto de ‘disposiciones’ que se tornan tina y Brasil comenzó a tomar impulso en los
conscientes en momentos de ruptura (break- últimos años, junto con la necesidad de com-
down)38. La indagación del conflicto que se prender la reconfiguración societal y escolar
hace manifiesto guarda una potencialidad por en el contexto de transformaciones de las
cuanto, como dirá Austin (1961), ayuda a últimas décadas del siglo pasado. En mayor
“penetrar el velo enceguecedor de obviedad medida los trabajos que toman este tipo de
que esconde los mecanismos del acto natu- escuela como escenario han abordado aspec-
ralmente existoso” (p. 128). En esta misma tos vinculados a la reproducción de las rela-
línea y desde la Psicología Social dirá Rom ciones de poder y de diferenciación social.
Harré (1989) que “sólo en la ruptura social Para ello, han observado las estrategias me-
[(social breakdown)] se revelan las conven- diante las que determinados grupos sociales
ciones tácitas” (p. 9). Premisa que desde la ‘dominantes’ procuran garantizarse ciertos
etnometodología y en la antropología de las niveles de ‘homogeneidad social’ (TIRA-
moralidades ha sido elevada a nivel de máxi- MONTI y ZIEGLER, 2008, CONNELL et.
ma metodológica, ya sea para el estudio del al., 1995, citado en PAES DE CARVALHO y
orden y disposiciones morales (GARFIN- MARTÍNEZ, 2009), han reparado en el des-
KEL, 2006; ZIGON, 2007) o de las formas en pliegue de prácticas ‘meritocráticas’
que los actores movilizan determinados re- (MÉNDEZ, 2013) o incluso en los procesos
pertorios o competencias morales (WER- de construcción de experiencia escolar, pro-
NECK, 2011; NOEL, 2011). yectos biográficos y sentidos acerca de la
En el presente trabajo asumiremos este escuela por parte de los jóvenes (CONTRE-
presupuesto metodológico. Por ello entrare- RAS, 2014; D’ALOISIO, 2014). General-
mos en contacto con situaciones de conflicto mente las etnografías argentinas centradas en
en una escuela de elite de la ciudad argentina el estudio de la conflictividad escolar (MAL-
de Córdoba Capital. Intentando desentrañar DONADO, 2006; NOEL, 2008; PREVITALI,
algunos de los repertorios que los actores 2008), posiblemente por no ser las escuelas
involucrados (jóvenes y adultos) movilizan en de elite un contexto predilecto para los cien-
estas situaciones. A lo largo de esta comuni- tistas sociales (MARTÍNEZ, VILLA y SEO-
cación se recuperarán testimonios y observa- ANE, 2009), han tendido a escoger escuelas
ciones de campo construidos a partir de una cuya población de estudiantes provenía de los
sectores que padecen la mayor vulnerabilidad
socioeconómica.
Sin embargo, reparar en escuelas de elite a
38 la hora de estudiar la conflictividad ofrece la
Para el autor postular el carácter disposicional de posibilidad de interrogarse por procesos que
la moral en ningún momento supone pensar que se
trate de disposiciones encarnadas o estáticas. En
en principio no podrían ser explicados por
este sentido las distingue del concepto bourdiano de apelación a distancias socioculturales entre
habitus a partir de la recuperación de la noción objetivos institucionales y expectativas de los
heiddegeriana de “Estar-en-el-mundo”. El caracter destinatarios de la educación, como lo han
irreflexivo de dicha condición se vuelve abierto y hecho ya algunas perspectivas centradas en
nunca estático en lo que el autor denomine momen-
tos de “ruptura” (breakdown), que conducirán a la
39
persona, movilizada por la incomodidad, a retornar Por ser un objetivo el resguardo de la identidad
a la posición irreflexiva de estar “en” el mundo. Sin quienes aportaron sus voces a esta investigación,
embargo este retorno nunca es hacia las mismas tanto los nombres propios como el nombre del esta-
disposiciones morales irreflexivas, necesariamente blecimiento educativo utilizados a lo largo del escri-
éstas habrán cambiado. to son ficticios.

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escuelas de sectores vulnerables (DEBAR- terroga ella a sus estudiantes – ‘Con


BIEUX, 2001; TAVARES DOS SANTOS, todos… ¿por qué crees que se fue [(que
2001; DUSCHATZKY y COREA, 2009). Al renunció)] la otra ‘miss’?’ - Contesta
apuntar a los sectores altos tratamos con gru- Fernando. Mientras tanto Eugenio se
pos sociales cuyas demandas han sido históri- para sobre su mesa, la docente voci-
camente satisfechas por el sistema educativo. fera: “Eugenio: What are you doing?!!!
Se trata de actores que aspiran a una educa- [(¡¿qué estás haciendo?!)]”. Extenuada
ción ‘de calidad’ que consiguen exitosamente ante una atmósfera de caos Sonia le or-
a través de complejos mecanismos de “mutua denará a otro alumno (Benjamín, quien
selección” con los establecimientos (TIRA- acaba de proferir un insulto) que se re-
MONTI y ZIEGLER, 2008; MARTÍNEZ, et. tire del aula. Orden que este joven des-
al., 2009) configurando lo que ha sido deno- acata con una seguridad propia de
minado como una “circularidad virtuosa” quien sabe que nada está siendo puesto
(MANDELERT y DE PAULA, 2009). en juego – “ok ¿no te vas a retirar?
A lo largo de esta presentación tomaremos Bueno…” - concluye Sonia. Sin avizo-
contacto con dos ‘repertorios morales’ que se rar otro recurso al que apelar intentará
ponen en juego en la dinámica cotidiana de continuar con su clase durante los 15
este establecimiento educativo. Referiré así a minutos que restan para la hora del al-
conjuntos más o menos abiertos o cambiantes muerzo.
de recursos con los que los actores entran en
[Nota de campo – Observación de cla-
contacto a través de sus procesos de so-
se]
cialización (NOEL, 2013). Intentaré, a partir
del análisis de un “incidente crítico” en esa Esta primera nota de campo posiblemente
dinámica, dar cuenta de algunos modos en podría utilizarse para retratar la realidad que
que los miembros de la comunidad educativa experimentan a diario muchos docentes en las
configurada en torno a esta escuela apelan a escuelas públicas y privadas en Latinoaméri-
tales repertorios. Si bien los estudios de caso ca. Sin embargo sería de poca honestidad
no permiten efectuar generalizaciones, coin- decir que es esa la realidad predominante; no
cidimos con García Salord y Vanella (1999) todas las clases tienen dinámicas de ese tipo.
respecto de que “hacen referencia a lo que La docente del anterior relato pregunta a sus
sucede [o puede suceder] en ese tipo de inter- alumnos si ese comportamiento es el mismo
acción social”. Veremos que la movilización con el que sus colegas deben lidiar, esperando
alternada de los repertorios que conoceremos posiblemente de los jóvenes una respuesta
ofrece a los distintos actores de esta comuni- afirmativa que quite algo de la responsabili-
dad (estudiantes, padres, docentes) ciertos dad que pesa sobre sus espaldas o una expli-
márgenes de maniobra para proyectar defini- citación sincera de los motivos que hacen de
ciones de situación favorables a su presenta- ella una docente con la que sostienen un trato
ción de sí (GOFFMAN, 1989). Comenzare- “singular”. Sin embargo la respuesta que So-
mos introduciéndonos en la dinámica coti- nia recibe de Fernando no resulta tran-
diana del establecimiento para luego abordar quilizadora, toda vez que le informa del des-
la situación incidental: tino que puede esperarle; tener que irse de la
escuela como “la otra miss”.
Son las 13:10 hs. Nos encontramos en
Decir que esta situación no sea predomi-
el tramo final de la clase de inglés pre-
nante en ningún momento supone afirmar que
via al almuerzo. Sonia, la docente,
la responsabilidad por su ocurrencia quepa a
apenas consigue que momentánea-
la docente. Si el relato resulta verosímil ello
mente sus estudiantes dejen de gritar y
se debe a que encontramos en él cierta fami-
hacer bromas e intenta infructuosa-
liaridad con situaciones experimentadas, pre-
mente avanzar en la lección del día:
senciadas, narradas o presentadas a veces de
‘¿Ustedes se portan así con todos los
modo sensacionalista por la prensa en titula-
profesores o conmigo nada más?’ – In-
res tales como ‘¿Por qué mandan más los

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chicos que los grandes?’ o ‘La indisciplina como que a inglés todos lo toman co-
pone en jaque a los docentes’ 40. mo la hora para relajarse”
A pesar de la imagen que nos devuelven
estas miradas apocalípticas algunas clases
Investigador: Pero ¿es por la mate-
transcurren con total tranquilidad y a veces ria o por la profe?
basta con que el docente cruce la puerta del Lisandro: “Es la materia pero tam-
aula para que, como por arte de magia, se poco la profe sabe mucho cómo
altere dicho orden dando lugar al caos: frenarnos, si tuviéramos con Sandra
Tan pronto como la docente de lengua [(otra docente)] sería distinto”
se retira del curso varios jóvenes co-
mienzan a golpear la puerta y el pi- Investigador: ¿por qué con Sandra
zarrón frenéticamente. Virginia, una frenan?
joven que percibe mi cara de descon- Lisandro: “ya todo el mundo dice
cierto, se adelanta a explicarme antes que es mala, tiene la fama de que
de que yo formule mi pregunta: - “Así pone “unos” por todo, entonces
empieza una clase de música” – dice
asusta”.
esbozando una sonrisa. En seguida lle-
ga Amalia, la docente de música, me [Nota de campo – Conversación
saluda y me invita a quedarme a su cla- con Lisandro]
se en tanto no me importe “escuchar un
poco de lío”. Sandra, la docente en cuestión, aparente-
mente sabe cómo frenarlos. Sus clases trans-
[Nota de campo – Observación de cla- curren con plena y ordenada participación. Su
se] llegada al aula genera que automáticamente
Si no todas las clases transcurren de la los 35 jóvenes se paren como soldados para
misma forma, ello indica que no habría una saludarla. Sin embargo, debe destacarse que
“civilidad juvenil” que se expresa de manera no se trata de cualquier docente; ella trabaja
irrestricta. Cuestión que implicaría además en el establecimiento desde hace muchos
pensar, en clave de una sociología de la des- años. Es una persona que goza de reconoci-
viación como la de Becker (2012), en la exis- miento por su trayectoria, tanto entre los es-
tencia de una “subcultura juvenil desviada”. tudiantes como entre sus pares docentes y
Tal parece que los jóvenes construyen “oficio superiores. Incluso algunas personas de la
de alumno” (PERRENOUD, 1990) apren- gestión de la escuela tienen menor antigüedad
diendo a distinguir entre otras cosas en qué que ella en el establecimiento. Así, la docente
clases y ante qué docentes pueden realizar se conduce en la escuela con seguridad y
determinadas transgresiones así como a iden- firmeza, permitiéndose a veces eludir algunas
tificar los casos en que deben abstenerse de prescripciones de la dirección sin que ello
transgredir las normas dispuestas. Para lo acarree consecuencias para ella (o al menos
cual, como veremos, apelan a distintos reper- eso consigue que perciban sus estudiantes);
torios que encuentran disponibles. Las con- administra exámenes recuperatorios cuando
versaciones informales con estudiantes ofre- la dirección lo prohíbe, modifica discrecio-
cen algunas pistas iniciales para reconstruir nalmente la disposición de los bancos en el
estos repertorios. La siguiente conversación aula siendo que ésta responde a un ‘criterio
fue previa a la clase de inglés que retrata la pedagógico’ ideado por la directora. A ello se
primera nota de campo: suma que dicta asignaturas en los últimos 4
años del nivel medio, cuestión que le permite
Lisandro: “Tenés que venir a la hora de dar tiempo suficiente a que los estudiantes
Inglés. Esa hora es cualquier cosa. Es sepan de su ‘fama’ antes de ser sus alumnos.
Por otro lado, el temor a futuras represalias
40
Titulares extractados del periódico local “La voz (producto de su continuidad en la progresión
del interior” durante el año 2014. de los años sucesivos) dota a esta docente de

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cierta “impunidad” que la protege de ser de- “Los Quilomberos”


nunciada por sus estudiantes ante los padres o
la dirección. Sandra ocupa un lugar en la Al realizar trabajo etnográfico en un esta-
blecimiento educativo de nivel medio hay
escuela desde el que puede oficiar como ‘em-
prendedora moral’ (BECKER, 2012): algo que se revela como si de una caracterís-
tica universal se tratase; generalmente los
Pía: a mí no me daría para ir a delatar a jóvenes interpretan que la llegada del investi-
Sandra que hizo “tal cosa”. Si la de gador resulta de una información (en sus elu-
música hace algo voy y le digo a la di- cubraciones, seguramente provista por la
rectora “hizo tal cosa”, pero con San- gestión directiva) de acuerdo con la cual éste
dra… se encontraría ante la presencia del ‘peor
Investigador: ¿por qué con Sandra no? curso’ de la escuela. Percepción que termina
de ensamblarse tan pronto como toman cono-
María: perdés la confianza que te tiene cimiento de que quien los observa es nada
Verónica: aparte llegás a hacer eso y menos que un psicólogo. Sin embargo, es
ella se entera… [Pone cara de asustada] interesante reparar en el hecho de que para
los jóvenes, lejos de constituir un insulto, la
Pía: ella se entera de que vos hablaste y idea de imaginarse observados por ser ‘los
ya está: estás fichado peores’ resulta atractiva y generalmente du-
[Entrevista con Pía, María y Verónica] rante el primer día de observaciones pocos
resisten la tentación de preguntar al investi-
Las otras docentes a las que nos referimos, gador por sus anotaciones de campo, especí-
Amalia y Sonia trabajan en la escuela desde ficamente si estás versan sobre ‘cuando nos
hace mucho menos tiempo. Sonia de hecho portamos mal’ o si registran ‘los mocos que
ingresó recientemente luego de que otra do- nos echamos’42.
cente (también joven como ella) renunciara a Hago referencia al ‘mal comportamiento’
sus horas. Desde la perspectiva de los jóvenes precisamente porque ‘Quilombo’ es en Ar-
la renuncia de la docente se vio motivada gentina una expresión “lunfarda”43 que en una
pura y exclusivamente por el mal comporta- de sus acepciones denota ‘lío’ o ‘desorden’.
miento del curso; cuestión de la que se jacta- En este sentido es ‘quilombero’ quien ‘hace
ban orgullosos en nuestras conversaciones lío’ o genera problemas. En el contexto esco-
durante los recreos. Tanto Sonia como Ama- lar este término es utilizado por los jóvenes
lia serían ejemplos de docentes que no logran para denotar específicamente la cualidad de
‘frenar’ a este grupo de jóvenes. Sin embargo, quienes incurren en prácticas que (más por
a pesar de lo que los jóvenes informan, ‘saber acción que por omisión) contrarían o desco-
frenar’ parece tener menos relación con las nocen el orden normativo de la escuela.
intervenciones concretas que un docente pue- Si en el subtítulo decidí hablar de “qui-
da instrumentar y guardar mayor grado de lomberos” en masculino no fue por omitir el
correspondencia con los repertorios morales uso de un vocabulario sensible a las diferen-
que los jóvenes opten por movilizar dentro de cias de género. En este grupo, tal como ha
las posibilidades contingentes que cada situa- sido observado por otras investigaciones
ción de clase les ofrece. 41 Cuestión que nos (DUBET y MARTUCCELLI, 1998; LO-
conduce a un primer repertorio que conoce- MAS, 2007; MARRERO, 2008; AUTOR,
remos a continuación: el repertorio “Quilom-
bero”. 42
En la jerga juvenil la expresión ‘echarse un moco’
da cuenta de la incursión en una falta, generalmente
41
De hecho en una oportunidad Amalia tomó una como producto de un juego o divertimento.
43
determinación que disgustó a los jóvenes y estos El ‘Lunfardo’ es una jerga originada en la ciudad
trasladaron el conflicto al espacio de tutorías. Situa- de Buenos Aires a mediados del siglo XIX cuyo uso
ción a partir de la cual la dirección toma cartas en el era asociado inicialmente con el ámbito delincuencial
asunto en favor de los estudiantes, desautorizando así popularizándose luego, principalmente, a través de su
el accionar de la docente. empleo en las letras del tango.

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2014a), las actuaciones de “indisciplina” mayor medida a un modelo femenino tradi-


muestran estar inequitativamente distribuidas cional (pasivo, obediente, asexuado).
entre géneros. Así, si bien algunas chicas Las valoración positiva de la ‘maldad’ y
también se identifican como “quilomberas” de la transgresión observadas en este grupo
en general se observa que rara vez cometen de jóvenes convergen con lo relevado por
acciones que sean objeto de intervención otras investigaciones locales que han caracte-
disciplinaria por parte de la escuela. Más bien rizado ciertas actuaciones denominadas nati-
en muchos casos parecería que con ello indi- vamente como ‘hacerse el malo’ o ‘hacerse
can una adhesión “simpatizante” hacia las respetar’ (TOMASINI, 2013; PAULÍN y
actuaciones masculinas. En las chicas se ob- MARTÍNEZ, 2014) observando en ellas im-
serva (en mayor medida que en los varones) perativos identitarios anclados en construc-
un posicionamiento estratégico hacia el respe- ciones de masculinidad, que se articulan con
to por las normas. demandas juveniles de respeto y re-
Si bien el mote de ‘peor curso’ (al que conocimiento en el espacio de sociabilidad.
apelan a veces incluso los docentes buscando Elías y Scotson (2000) notarían que la au-
ineficazmente “disciplinar” por la vía del to-imagen grupal tiende a “modelarse en su
menosprecio) tiene una relación más que sector ejemplar, más nómico o normativo, en
evidente con el repertorio ‘quilombero’, no la minoría de sus mejores miembros” (p. 23).
todos los jóvenes cuentan con recursos para No sorprende entonces que el grupo completo
movilizar este último. Los ‘varones quilom- (incluyendo a las chicas) pueda identificarse
beros’ reúnen un conjunto de características ocasionalmente como “quilombero” incluso
consonantes con modelos hegemónicos de cuando no todos sus integrantes pueden dar
masculinidad. Esto los distingue de otros cuenta de esta cualidad en los hechos.
varones para quienes caben caracterizaciones El señalamiento anterior es importante
peyorativas tales como ‘raros’ o ‘tranquilos’, precisamente porque el episodio que analiza-
debido a que poseen estilos e intereses disi- remos fue protagonizado por dos varones
dentes respecto de esa masculinidad hegemó- “quilomberos”, sin embargo las consecuen-
nica. En el primer caso se trata de varones cias recayeron sobre todo el grupo de estu-
que practican deportes considerados “mascu- diantes. Esta situación conflictiva, en la que
linos” (Futbol o Rugby), salen a bailar a dis- la profesora Sandra participó ‘frenándolos’,
cotecas o clubes para los que todavía no tie- resultó productiva para acceder a un reperto-
nen edad suficiente (lo que supone, al margen rio latente; el de la ‘buena educación’ que
de la ilegalidad de la acción en que incurren, exploraremos a continuación.
que su aspecto físico es el de varones lo sufi-
cientemente grandes como para burlar el con- La ‘Buena Educación’ en sus dos ver-
trol del ingreso), se relacionan fluidamente tientes: familia y escuela
con sus compañeras y en general concentran Para los actores que de algún modo parti-
los peores desempeños académicos y la ma- cipan de la dinámica cotidiana de la escuela
yor cantidad de registros disciplinarios. Con- San Pablo (estudiantes, docentes y padres)
siguen así aproximarse a un modelo masculi- parece haber algunas certezas básicas. Dos de
no imperante: activo, desafiante, que ostenta ellas; que el establecimiento es una ‘buena
su sexualidad (LOMAS, 2007). Los varones escuela’ y que las familias que envían allí a
‘raros’ son jóvenes que no hacen deporte, se sus hijos son ‘buenas’ en la misma medida.
interesan por la tecnología y los videojuegos En tiempos en que legos y expertos debaten
y cuyas interacciones con chicas se encuen- acerca de la ruptura de la “alianza familia-
tran supeditadas a cuestiones de índole esco- escuela”, en el establecimiento caso dichas
lar. Al tratarse generalmente de buenos estu- instituciones parecen sostener una alianza 44
diantes se sospecha de las chicas un uso es-
tratégico de los intercambios con este grupo. 44
Cuestiones que aproximan a estos varones en Considero que no se trataría de un proceso singu-
lar que atañe a este establecimiento particular. En
este sentido Tiramonti y Ziegler (2008) en su estu-

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que se efectiviza como la unión de sus res- nes, pueden leerse artículos acerca de la im-
pectivos repertorios morales en tanto vertien- portancia de la familia en la inculcación de
tes que confluyen en el repertorio de la ‘bue- valores, o apreciarse imágenes del último
na educación’, de factura compartida. ‘family day’; día en que la ‘familia del San
En Brasil, el Grupo de Pesquisa em Socio- Pablo’ se reúne con el objetivo de que quie-
logía da Educación (SOCEd/PUC-Rio) ha nes “recién se incorporan al colegio se conoz-
estudiado las modalidades de producción de can y estrechen lazos con aquellas familias
imágenes de “excelencia escolar” en que se que forman parte de la institución desde hace
asienta el prestigio de este tipo de escuela años”45. En la misma proporción encontramos
(MANDELERT y DE PAULA, 2009). Sus “noticias” acerca de adquisiciones del mobi-
análisis acerca de las estrategias familiares de liario y reformas en la infraestructura escolar,
inversión en la escolaridad de los hijos y el así como modificaciones en la oferta curri-
seguimiento de dicha escolaridad por parte de cular (nuevos exámenes internacionales, me-
las escuelas, brindan apoyo a que afirmemos jorías en convenios con entidades que homo-
aquí que la expresión nativa ‘buena escuela’ logan los títulos a los de escuelas europeas).
constituye un eufemismo de “escuela de eli- Cabría preguntarse cómo es posible que en
te”. La cuota mensual de la escuela “San Pa- “la buena escuela de la buena familia” la
blo” así como el barrio en que el estableci- indisciplina constituya un elemento perma-
miento se encuentra ubicado constituyen ba- nentemente presente. Concretamente de qué
rreras que restringen el acceso. Así, con inde- modo logran coexistir y ser movilizados re-
pendencia de la calidad de la formación im- pertorios en principio antagónicos; ‘Quilom-
partida en este establecimiento, el hecho de beros’ (que se ‘comportan mal’) y “Bien edu-
que se trate de un bien de difícil acceso pare- cados” (que se ‘comportan bien’). Para ello
ce funcionar para jóvenes, padres y educado- nos ayudará el análisis de un episodio cuyo
res como indicador certero del valor social y carácter incidental responde a que en él se
personal que comporta respectivamente asis- produjo un cese momentáneo de dicha co-
tir, enviar a sus hijos y dar clases en él. A existencia:
medida que docentes y estudiantes tomaban
Al llegar a la escuela algunos jóvenes
conocimiento de que mi investigación con-
me cuentan que en la jornada del día
templaba paralelamente el trabajo en una
anterior, durante la hora de la docente
escuela de sectores vulnerables, se mostraban
Sandra, dos varones comenzaron a pe-
interesados en conocer detalles acerca de
learse. Aparentemente lo que comenzó
dicho establecimiento, aventurándose en oca-
como un juego de palabras e insultos
siones a expresar que se trataría seguramente
terminó en golpes y trompadas. La do-
de ‘una realidad completamente distinta’ e
cente intervino en la situación sepa-
implícitamente (aunque a veces de modo
rando a los jóvenes y llevándolos a la
explícito) peor a la propia.
dirección. Inmediatamente después re-
La revista de la escuela (una publicación
unió al resto del grupo en el aula y muy
semestral en la que un comité editorial con-
enojada los retó diciéndoles que eran
formado por docentes de la casa selecciona
unos ‘mal educados’, que la escuela
artículos y contenidos confeccionados por
puede educarlos hasta cierto punto pero
alumnos, docentes y padres) dedica páginas
que algunas cosas ‘deben venir de la
completas a destacar el valor de la familia y
casa’, y culminó con una pregunta re-
la calidad de la escuela. Así, de modo interca-
tórica que hizo temblar al auditorio:
lado con columnas de interés para los jóve-
‘¿Acaso en sus casas sus padres se pe-
gan?’.
dio sobre estrategias educativas de sectores de elite [Nota de campo]
se refieren a una “dinámica de selección de doble
vía que realizan las escuelas y las familias […] que
procura un acople y homogeneidad satisfactoria
45
entre ambas agencias” (p. 65). Extractado textualmente de la revista institucional.

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Si señalo al episodio como “incidental” sospecha sobre la “buena familiaridad” de


ello no responde sólo a una valoración perso- estos jóvenes al sugerir (mediante una pre-
nal sino a la que corresponde a los propios gunta retórica) la posibilidad de que sus pa-
actores, quienes de modo espontáneo conver- dres sean violentos y que por ende lo ocurrido
saron conmigo acerca del episodio tan pronto es día no fuese otra cosa que la reproducción
como tuvieron oportunidad de hacerlo. A su de modalidades “reprobables” de vinculación
vez, pude conversar en profundidad acerca familiar en el espacio escolar. Del testimonio
del mismo en instancias de entrevistas gru- de los jóvenes puede inferirse la percepción
pales. En el siguiente fragmento podemos de cierta ausencia de solidaridad dramática
apreciar el registro juvenil de desconcierto (GOFFMAN, 1989) en la intervención de
por lo ocurrido: Sandra; la docente actuó como sería admisi-
ble que lo hiciera un ‘no-miembro’ de este
Benjamín: La profe [Sandra] se enojó
equipo de actuantes:
tanto que terminó enojándose con to-
dos. Nos dijo “¡Sus padres no les die- Valeria: … Si una persona que no nos
ron educación!”. A mí un poco me do- conoce entra justo al aula y ve esa si-
lió. tuación [(Valeria se refería a la pelea a
golpes de puño relatada anterior-
Valeria: […] Yo creo que el colegio
mente)], puede decir: “estos chicos…
sabe cómo viene uno de atrás, por el
no hacen nada en su casa para que sean
lado familiar… porque dentro de todo
educados”, pero… gente que ya tiene
somos todos bien, la educación que nos
un seguimiento de nosotros [como la
dan en la casa está bien, pero bueno,
profesora Sandra], es diferente…
nos sorprendió que nos haya dicho eso.
Dijo: “¿acaso sus padres se pegan en Guillermo: Es una escuela chica enton-
sus casas?”… ces más o menos se conoce a la fami-
lia, se conoce a los hermanos y se sa-
[Nota de campo]
be…
Al igual que Benjamín, varios jóvenes in-
Marcos: … La situación económica
formaron haberse sentido ofendidos por los
dichos de la docente, pero quizá sea más inte- Guillermo: Se saben las situaciones
resante reparar en lo que del testimonio de familiares […] saben quiénes somos,
Valeria en la viñeta anterior puede inferirse de dónde venimos
como lo “consabido” dentro de este “orden
Marcos: El aspecto te dice todo
moral escolar”: ese mundo de vida que Gar-
finkel (2006) define como compuesto por [Entrevistas con jóvenes de 3° año]
escenas familiares y cotidianas ‘dadas-por-
Sobre las fronteras de una “comunidad
sentadas en común con otros’ (p. 47). Si
normalmente los educadores que participan imaginada”
de la dinámica cotidiana de la escuela “San Hasta aquí identificamos dos repertorios
Pablo” dan por sentado que los jóvenes son que son movilizados en la cotidianidad la
‘todos bien’ y que provienen de familias ‘bien escuela y cuya composición e interacción son
educadas’, en este episodio Sandra se permi- representadas en el siguiente esquema:
tió poner en cuestión la “buena educación” de
los jóvenes por tres vías relacionadas: 1.
Cuestionando directamente su capacidad para Buena
Familia
Buena
Educación
Buena
Escuela
movilizar dicho repertorio (‘son unos mal
educados’), 2. Apelando al repertorio de ‘la
buena escuela’ librando así al establecimiento
(e indirectamente a sí misma) de responsabi- Quilomberos
lidad por una actuación que pasa a adjudicar-
se a la familia y 3. Poniendo un manto de Figura 1. Repertorios morales

RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 14, n. 40, abril de 2015


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En el esquema pueden apreciarse las dos Repertorio ‘Quilomberos’


“vertientes” que configuran el repertorio de la Presentarse de un modo desafiante ante la
‘buena educación’. Este último parece fun- autoridad docente. Esto ocurre en las
cionar, en el mismo sentido propuesto por Varones clases de algunas docentes “novatas”. En
Hegemónicos estas ocasiones suelen actuar acorde con
Garfinkel (2006) como un marco “dado-por- una identificación ‘quilombera’ que otorga
sentado” (taken-for-granted) dentro del cual prestigio y un lugar de superioridad en el
el comportamiento de los jóvenes (sea bueno espacio de sociabilidad juvenil.
Varones Adherir subsidiariamente al sector ejem-
o malo, ‘disciplinado’ o ‘indisciplinado’) Disidentes plar, más nómico y normativo del grupo
puede desplegarse de modo irreflexivo (ZI- Y (‘ser el peor curso’ o ‘los más quilombe-
Mujeres ros de la escuela’).
GON, 2007). En otras palabras, coti-
dianamente estos jóvenes pueden actuar como
‘mal educados’ sin ser considerados como Repertorio ‘Buena Educación’
tales. En los casos en que los límites “topoló- Varones
Presentarse ‘educados’ frente a un/a do-
cente de quien se temen represalias, res-
gicos” de dicho marco son excedidos, familia Hegemónicos
guardándose de quedar ‘fichados/as’.
y escuela blanden su parte respectiva adjudi- Repudiar ser juzgados como parte de un
cando a la contraparte la ‘mala educación’. Varones
colectivo moralmente cuestionable (‘nos
Disidentes
Así, mientras que, como mostró el caso de Y
metieron a todos en la misma bolsa’, ‘se la
agarró con todos). Rehuyendo al riesgo de
Sandra, ante un comportamiento indeseado Mujeres
“contaminación” (Elías y Scotson, 2000).
una docente puede apelar al repertorio de la
‘buena escuela’ poniendo en suspenso el de la
Como explica Alexandre Werneck (2011)
‘buena familia’, inversamente algunos padres
la circunstancialidad es una cualidad que está
de los estudiantes ante situaciones similares
ligada a distintas formas de bien. Aquello que
movilizan este último repertorio interpelando
denomina capacidad metapragmática se ver-
a la “buena escuela” desde su lugar de clien-
ía reflejado en que las elecciones morales de
tes:
los actores no optan entre bien o mal sino
Renata: [Refiriéndose a la “desapari- entre clases alternativas de bien. El autor
ción” de su teléfono celular durante explica que se trata de “una capacidad cogni-
una clase la semana anterior] Mi mamá tiva de los actores sociales para operacionali-
vino a hablar con la directora. Se sor- zar la distancia existente entre la dimensión
prendió mucho de que en una escuela utópica y universalista […] y la dimensión
como ésta haya pasado eso. circunstancialista […] que nos permite tener
Pedro: [Refiriéndose a los episodios de un “juego de cintura” y operacionalizar
enfrentamientos físicos entre varones] “márgenes de maniobra””. (p. 178).
Mi papá dice que no deberían pasar es- En otro trabajo (Werneck, 2012) el autor
tas cosas siendo que es un buen cole- ubica este margen de maniobra en la diferen-
gio… cia entre dos tipos de account (o explicacio-
nes): la justificación y la disculpa. Austin
[Entrevista con Renata y Pedro] (1961) desde la filosofía y más tarde Scott y
Decía al comienzo de este escrito que una Lyman (1968) contribuirán a distinguir estos
de las dificultades al abordar la dimensión dos mecanismos. En el primer caso se admite
moral de la vida social tiene que ver con la la responsabilidad sobre una acción pero se
complejidad que implica lidiar con distintas dan razones para haberla hecho, por lo tanto
clases de bien. Mi trabajo etnográfico en tor- se discurre con la valoración peyorativa de la
no a los repertorios morales me permite iden- acción. En el segundo caso se admite que la
tificar hasta aquí los siguientes “bienes” que acción fue mala pero no se admite completa
de modo intermitente (y atendiendo a los responsabilidad sobre la misma. Según Aus-
recursos disponibles para movilizar determi- tin (1961) la investigación de las excusas
nados repertorios) los jóvenes consiguen rei- contribuye a esclarecer la relación entre liber-
vindicar (GOFFMAN, 1979): tad y responsabilidad. En este sentido, desde

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la sociología de la moral, Werneck (2012) plina’ sin mayores consecuencias para su


señala que si bien tanto la excusa como la construcción identitaria es precisamente su
justificación serían dispositivos empleados carácter construido como eventual y circuns-
siempre que se sujeta una acción a una inda- tancial. En tanto competencia moral, la buena
gación valorativa, la primera constituye una educación permite ubicar cuestiones recurren-
afirmación de la agencia de sí, mientras que tes (la indisciplina, los malos comportamien-
la segunda afirma la agencia externa46. tos o los enfrentamientos físicos) en un plano
A su vez, este autor conceptualiza como circunstancialista o de contingencia y por
competencia al principio de efectividad de las ende no como rasgo identitario atribuible al
acciones en el que se revela la capacidad colectivo de jóvenes:
metapragmática de los actores. Otorgar en-
[En instancia de grupo de discusión los
tonces al repertorio de la ‘Buena Educación’
jóvenes debatían acerca de un titular
el estatus de una competencia permite tratarlo
del periódico que decía “La indisci-
como una facultad presentada por los actores
plina pone en jaque a los docentes. Ca-
para el desenvolvimiento en una determinada
da vez se registran más hechos de vio-
lógica de acción. Lógica dentro de la cual es
lencia en las escuelas”]
posible renegar de la calificación peyorativa
de un acto (dar una justificación) o recusar la Joaquín: En nuestro curso hay violen-
responsabilidad sobre las consecuencias pe- cia…
yorativas del acto (ofrecer una disculpa) Victor: Creo que es mínimo. Acá tenés
(WERNECK, 2012).
de todo un poco pero es mínimo. Hay
En relación al episodio analizado, lo ante- colegios en los que les pegan a los pro-
rior nos permite pensar que si la intervención fesores. En la tele muestran que si no
de la docente fue disruptiva para los jóvenes les gustan las clases de van, se agarran
y no suscito la emergencia de una labor co- con armas blancas a la salida de la es-
rrectora (GOFFMAN, 1979) que en un afán cuela.
por exonerar de culpa operase por medio de
justificaciones o excusas, esto quizá pueda Investigador: ¿Por qué creen que acá
deberse a que la valoración de la docente esas cosas son mínimas?
(‘son unos mal educados’) no sólo calificó Joaquín: Por ahí tiene que ver con la
peyorativamente a la pelea. Impugnó en el educación que nos dan en la casa. Esos
mismo acto la capacidad de agencia de los problemas se dan en colegios en los
jóvenes al proveer del account, sugieriendo que la educación de los padres no es la
que lo que hicieron fue propio de quien no ha misma que tenemos la suerte de recibir
recibido ‘buena educación’ en su familia y, nosotros. Todos venimos de familias
por ende, determinado por tales circunstan- que son ‘bien’; padres que se preocu-
cias. Cuestión ajena a la lógica de acción de pan por nosotros, nos prestan atención.
los agentes competentes de la buena educa- Las cosas más graves pasan cuando no
ción. reciben educación en la casa.
El análisis de este episodio nos permite
pensar que lo que habilita a estos jóvenes Anabel: o cuando no tienen padres
para “practicar” cotidianamente la ‘indisci- Victor: o tienen la mala suerte de que
lo que no tienen en la casa tampoco lo
46
Dirá el autor que “si tomados como modelos de tienen en las escuelas a las que pueden
descripción y explicación de la manera como funcio- ir.
na la genética de la vida social, agencia del agente y
agencia de la estructura son realidades opuestas mu- Investigador: ¿y esta otra cuestión [que
tuamente anulables, ellas pueden, por otro lado, ser destaca el titular]? Que los docentes
consideradas como representaciones que los propios están “en jaque”…
actores […] utilizan para entender el mundo” (p.
707). Lo que torna a esas visiones de mundo en dis- Victor: acá eso no pasa.
positivos morales.

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[Grupo de discusión] Reflexiones finales


Vemos así que esta competencia morigera En un trabajo anterior llevado a cabo en
para todos los participantes de esta “comuni- una escuela de sectores populares (AUTOR,
dad imaginada” (NOEL, 2011) los riesgos de 2014b), indagué la perspectiva de docentes
ser arrastrados hacia el terreno de “las malas sobre la conflictividad cotidiana en el esta-
familias/escuelas”, y por ende de la ‘mala blecimiento; específicamente sus miradas
educación’. Fenómeno similar a lo que Elías acerca de ciertos comportamientos connota-
y Scotson (2000) observaron en relación con dos como ‘indisciplinados’ o interpretados
la conformación de la auto-imagen de los como actuaciones ‘insolentes’. Pude recons-
grupos establecidos o a lo que Barth (1976) truir entonces un conjunto de “teorías nati-
señala como propio de la distinción de los vas” sustentadas en explicaciones en las que
grupos étnicos, donde “algunos rasgos cultu- se responsabilizaba a las familias de los jóve-
rales son utilizados como señales y emblemas nes por una socialización percibida como
de diferenciación [y] otros [como la violencia deficitaria; procesos de “inducción social”
en este caso] son pasados por alto” (p. 15). que ya no serían ‘como eran antes’ debido a
La obra de Elías y Scotson (2000) nos una pérdida de ‘capacidad cultural’. Otro
legó un marco conceptual para comprender la trabajo argentino (NOEL, 2009) observó
complejidad de los procesos de configuración diferencias en las maneras en que los docen-
de relaciones de poder intergrupales y el peso tes evalúan la relación de la escuela con los
que acarrea el grado de cohesión interna en la sectores vulnerables, que sintetizó en las tipo-
definición y delimitación de una comunidad logías docentes de ‘normativos’ y ‘pragmáti-
imaginada virtuosa (Noel, 2011). A la luz de cos’47. Incluso con diferencias antagónicas
estos desarrollos podemos pensar que el epi- respecto del lugar en que la responsabilidad
sodio que hemos tomado como objeto analíti- por la inclusión/exclusión educativa es ubica-
co pone también de manifiesto el modo de da (en los individuos o en el estado y sus
funcionamiento de una comunidad imaginada instituciones), es común a ambas tipologías el
y la manera como la identidad tiende a refor- reconocimiento de una distancia socio-
zarse ante un comportamiento que atenta con cultural entre la escuela y los sectores popula-
transformar la geimenshaft en gesellshaft res. En síntesis y tal como lo describe otra
(TONNIES, 1979, citado en NOEL, 2011). etnografía local (PREVITALI, 2008) estas
Cuando la docente dijo ‘la escuela puede “percepciones folk […] parecen comprender
hacer una parte pero hay algo que tiene que el sentido de [las] conductas como parte de
venir de la casa’ en el mismo acto excusó a la un trato cotidiano y esperable dentro del con-
escuela al dar cuenta de la imposibilidad de texto cultural del que provienen los chicos”
sostener el repertorio de la buena educación (p. 156). Habría así una relación lineal entre
sin un trabajo mancomunado que involucre a las condiciones de pobreza del alumnado y
la familia en la misma medida. Por ende po- ciertas modalidades de interacción.
demos pensar que tras la ofensa a esta docen- De este modo, mientras que en estableci-
te se aloja una potencial ofensa mayor hacia mientos de sectores vulnerables parecería
un colectivo imaginado más amplio. El com- prevalecer entre los docentes una mirada
portamiento de los jóvenes ciertamente ame- signada por ‘teorías nativas’ que, en clave
nazó con rebajar “su propio estatus […] hacia
un estatus inferior en su propia estima” 47
(ELIAS y SCOTSON, 2000, p. 167). Sandra De acuerdo al autor, los docentes normativos
priorizan la norma por sobre las prácticas y, allí
por su parte se limitó a cumplir con sus labo-
donde la práctica no se sujete a la norma, la falta de
res como emprendedora moral, manteniendo ajuste será adjudicada en términos individuales
“los patrones y compromisos elevados que se (como desvío o patología). A la inversa Los
esperan” (p. 169) de un comunidad ‘bien pragmáticos consideran que las normas deben ade-
educada’. cuarse a las prácticas, por ende, si la escuela es
excluyente, esto se debe a que no se ha flexibilizado
lo suficiente.

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culturalista, explican el mal comportamiento larmente conflictiva de esas escuelas. Imagen


por apelación a aspectos deficitarios de la que eclipsa la observación de procesos simi-
socialización familiar48, podríamos pensar lares que en los sectores altos (“competentes”
que en escuelas de elite lo que conceptuali- de buena educación) se encontrarían ya disi-
zamos como el repertorio de la buena educa- mulados por la movilización táctica de reper-
ción funcionariía para los miembros del co- torios morales a través de los cuales los acto-
lectivo educativo (jóvenes, docentes y padres) res consiguen, de modo irreflexivo, identifi-
como ‘competencia moral’ (WERNECK, carse como parte de ‘comunidades virtuosas’,
2012) que dota a estos actores de un margen ‘educadas’ y no violentas.
de maniobra. Cuestión que permite ubicar
ciertas actuaciones de ‘indisciplina’ en un Referencias
plano circunstancial y por ende no como ras- AUSTIN, John. Philosophical Papers.
go identitario atribuible al colectivo de jóve- Londres: Oxford University Press, 1961.
nes, ni propio de una ‘comunidad virtuosa’
BARTH, Frederik. Los Grupos Étnicos y sus
(NOEL, 2011).
Fronteras: la Organización Social de las
Observamos así que la cualidad de ser
Diferencias Culturales, México: FCE, 1976.
agentes competentes de buena educación
permite a estos jóvenes una construcción de BECKER, Howard. Outsiders. Hacia una
oficio de alumno desde la que efectúan un sociología de la desviación. Bs. As.: Siglo
despliegue táctico y situacional pudiendo XXI, 2012.
escoger el repertorio que eventualmente per-
CONTRERAS, Facundo. “La Experiencia
mita la mejor presentación de sí con menos
Escolar de alumnos del último año de un
márgenes de fracaso que los jóvenes de secto-
colegio preuniversitario nacional de la Ciudad
res vulnerables, a quienes toda una serie de
de Córdoba: Procesos de construcción de
“teorías nativas” los significan desde la ca-
proyectos de vida a futuro”. I congreso Inter-
rencia familiar, material y cultural. Aunque,
nacional de Psicología “Ciencia y Profe-
como pudimos apreciar, la utilización táctica
sión”, Congreso realizado en la Facultad de
de esta competencia no sería exclusiva de los
Psicología de la Universidad Nacional de
jóvenes; también es efectuada por las familias
Córdoba, Córdoba Capital. Abril, 2014.
y la escuela.
Para finalizar, estas reflexiones conducen D’ALOISIO, Florencia. Mirar el porvenir a
a interrogarnos sobre los efectos performati- través de la secundaria: la concreción de pro-
vos que la investigación cualitativa sobre la yectos biográficos, ¿una cuestión de voluntad
conflictividad escolar pueda tener, toda vez individual?. En Paulin, H. Tomasini, M.
que, al enfocar privilegiadamente en estable- (2014) Jóvenes y Escuela. Relatos sobre una
cimientos de sectores vulnerables, esté con- relación compleja, pp. 19-50, Córdoba: Bru-
tribuyendo a construir una imagen particu- jas, 2014.
DEBARBIEUX, Eric. “A violencia na escola
48
En este sentido Míguez (2008) señala que “en el francesa: 30 anos de construcao social de
contexto de escuelas radicadas en enclaves margina- objeto (1967-1997)”. Educação e Pesquisa,
les, con población de bajos ingresos, [… se percibe] São Paulo, 1(27), pp. 163-193, 2001.
que a las diferencias intergeneracionales se le suelen
sumar las sociales. Éstas emergen del contacto entre DUBET, Francois. MARTUCCELLI, Danilo.
los alumnos y sus progenitores, provenientes de las En la escuela. Sociología de la experiencia
clases humildes, y docentes que suelen surgir de los escolar. Barcelona: Losada, 1998.
sectores medios. Estas diferencias generacionales y DUSCHATZKY, Silvia. COREA, Cristina.
sociales no se manifiestan tan solo en sus dimensio-
nes objetivas […] sino también en las formas de
Chicos en Banda. Los caminos de la subjeti-
percepción o sistemas de representación de la reali- vidad en el declive de las instituciones. Bs.
dad que son prototípicos en cada grupo generacional As. Paidós, 2009.
y en cada sector social” (p. 17).

RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 14, n. 40, abril de 2015


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80

Resumen Este trabajo tematiza la dimensión moral que atraviesa la conflictividad cotidiana
en establecimientos educativos de elite, insertándose en la perspectiva de la antropología de
las moralidades. La investigación sobre la dinámica de escolarización de sectores altos en
Argentina y Brasil comenzó a tomar impulso en los últimos años, junto con la necesidad de
comprender la reconfiguración societal y escolar en el contexto de transformaciones de las
últimas décadas del siglo pasado. A partir de una aproximación etnográfica a una escuela
secundaria de la ciudad argentina de Córdoba Capital, se analizan los modos mediante los
cuales los miembros de la “comunidad imaginada” en torno a esta escuela (estudiantes, pa-
dres y docentes) utilizan a la “buena educación” como una competencia moral: un principio
de efectividad de las acciones en el que se revela su capacidad metapragmática, habilitán-
dolos para ubicar ciertas actuaciones juveniles ‘violentas’ o ‘indisciplinadas’ en un plano
circunstancial o de contingencia, evitando considerarlos como rasgos identitarios o cultura-
les. Se observa así que, de manera irreflexiva, los actores consiguen “eclipsar” ciertos as-
pectos de la conflictividad escolar que, de ser visibilizados, encontrarían similitudes con la
realidad cotidiana de las comunidades escolares de las que creen distinguirse. Palabras
clave: conflictividad escolar, escuelas de elite, escuela media, buena educación, competen-
cia moral, capacidad metapragmática

Abstract: This paper focuses on the moral dimension implied in everyday conflicts in elite
educational institutions, from the perspective of the anthropology of moralities. Research
on the dynamics of schooling of upper classes in Argentina and Brazil began to gain mo-
mentum in recent years, along with the need to understand the societal and school reconfig-
uration in the context of transformations on the last decades of the past century. From an
ethnographic approach to a secondary school establishment in the city of Cordoba, Argen-
tina, I analyze the ways by which the members of the “imagined community” built around
the school (students, parents and teachers) use the ‘Good Education’ as a moral compe-
tence: a principle of effectiveness of actions in which their metapragmatic capacity is re-
vealed, enabling them to locate certain ‘violent’ or ‘undisciplined’ youth performances in a
circumstancial or contingent level, avoiding considering them as cultural or identity fea-
tures. It is thus seen that, unreflectively, actors “overshadow” certain aspects of school con-
flict which, if made visible, would find similarities with the everyday reality of school com-
munities from which they believe are distinct. Keywords: school conflict, elite schools,
secondary school, good education, moral competence, metapragmatic capacity

RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 14, n. 40, abril 2015


81

CEJA, Gabriela Eugenia Rodríguez. “Las emociones como


expresión de la desigualdad social em situaciones de conflitcto
social comunitario ch’ol”. RBSE – Revista Brasileira de So-
ciologia da Emoção, v. 14, n. 40, pp. 81-98, abril de 2015.
ISSN 1676-8965

Las emociones como expresión de la desigualdad social en situacio-


nes de conflicto social comunitario ch’ol 49

Gabriela Eugenia Rodríguez Ceja

Recebido: 20.10.2014
Aprovado: 15.02.2015

Resumo: Este artigo analisa a função social da dimensão emocional no contexto de conflito
social da comunidade no Ejido El Carmen II, localizada em Calakmul, Campeche, que é
habitada por indígenas ch’oles. A abordagem de Arlie Hochschild sobre a análise do
contexto tridimensional para compreender o significado da experiência emocional
localizada: Me refiro às regras, expressiva e política. A autora considera a dimensão
emocional como uma construção sociocultural em volta das experiências que
proporcionam direção e orientação de pessoas no mundo, e estão situados historicamente,
socialmente e culturalmente. O artigo mostra que a experiência emocional articula os
individuos ch’ol com códigos culturais comuns para os membros do grupo, gerando uma
experiência compartilhada dos temas do evento, e do corpo. A dimensão emocional é
desenvolvida em contextos sócio-culturais, econômicas e políticas em particular, onde as
condições de marginalização, pobreza e desigualdade têm um papel crucial. Também se
relaciona com os costumes da cidade a fim éticos, morais e legais. Estes elementos
constroem uma complexa teia de relações que ligam o local e translocais. Foi utilizado o
método etnográfico para analisar um estudo de caso, a partir do qual podemos identificar
como a dimensão emocional contribui para a reorganização das dinâmicas locais em
situações de conflito. O papel que as emoções como a inveja (ts'alentiel), raiva (michlel), o
ódio (ts'a k'el), medo (bʌk'eñ), vergonha (Kisin) ou preocupação, tristeza (Pensal), é
identificado agências de construir, enquanto as emoções experimentadas são vários gatilhos
de estratégias que visam alterar a localização dos atores no espaço social e, portanto, têm
um papel muito importante nas relações de poder que são encenadas. Palavras-chave: a
desigualdade, a inveja, conflitos sociais, relações de poder, ch’oles.

49
Este trabajo fue realizado con el apoyo del Programa de Becas Posdoctorales de la UNAM. Agradezco
igualmente a mi maestra, Dra. Oliva López Sánchez por su apoyo y enseñanzas, que han sido fundamen-
tales para la realización de la presente investigación.

RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 14, n. 40, abril 2015


82

se cuenta de sus experiencias y consciente-


Introducción 50 mente responde a sus emociones conside-
Este artículo tiene como objetivo anali- rando las expectativas culturales que se
zar la función social de la dimensión emo- tienen sobre de él (op. cit., p. 283). Hochs-
cional en situaciones de conflicto social child considera a la dimensión emocional
comunitario a través de un estudio de caso como una construcción sociocultural que
en el ejido ch’ol El Carmen II (ECII) 51, en alude a experiencias que proveen de sentido
el municipio de Calakmul, en Campeche, y orientación a los sujetos en el mundo, y
México. Parto de considerar que dicha di- que se encuentran situadas histórica, social
mensión forma parte de la experiencia y culturalmente. El significado de las dichas
humana en cualquier contexto (Hochschild, experiencias se construye en relación con
1975), y se refiere a la vivencia compartida diversas dimensiones del contexto, su pro-
de los sujetos en el acontecimiento, en el puesta es analizar la normativa, la expresiva
ser siendo (Illouz, 2007), lo que remite a y la política, las cuales serán retomadas en
culturas específicas que tienen semánticas y el análisis de este trabajo.
códigos al respecto, en los cuales se confi- Por otra parte, el conflicto social ha sido
gura la experiencia. ampliamente estudiado dentro de las cien-
La dimensión emocional local incorpora cias sociales, y ha sido considerado un ele-
procesos subjetivos e intersubjetivos rela- mento intrínseco de las relaciones humanas
cionados profundamente y de forma com- (Austin, citado en Berruecos, 2009; De
pleja con contextos históricos, políticos, Haro, 2012; Simmel, 2010). Retomo la
económicos y sociales más amplios, así definición que lo considera como un “esta-
como también se vincula con los órdenes do antagónico entre dos o más partes, que
ético, moral, jurídico y de usos y costum- surgen de intereses incompatibles” (Hunter
bres de la localidad (Enríquez, 2008 y y Whitten, 1981, p. 107), “en torno a recur-
2011; López, 2011a; Lutz, 1988; Lutz y sos, poder y status, creencias y otras prefe-
AbuLughod, 1990); debido a ello, las emo- rencias y deseos” (Bisno, citado en von
ciones juegan un papel determinante en los Bertrab, 2010, p. 57), las cuales afectan
intercambios humanos, pudiendo operar elementos fundamentales de los sistemas
como generadoras de acciones sociales sociales (Gluckman, 1978).
estratégicas. El análisis de esta dimensión El conflicto social ha sido estudiado
en relación con situaciones de conflicto principalmente en torno a dos posibilidades:
permite visualizar los procesos de negocia- como elemento restaurador del orden social
ción a que se ven sometidos los contenidos de una comunidad al ser resuelto dentro de
socioculturales locales, lo cual posibilita los valores y normas locales (Gluckman,
dar cuenta de procesos de reproducción y op. cit.; Balandier, 1974 y 2004), o como
transformación del orden social (Enríquez, un elemento generador de procesos de
2011). cambio social (Beattie, 1964; Gramsci,
En trabajo me he enfocado en las cate- 1999; Coser, 1961). En este trabajo se ana-
gorías analíticas propuestas por Arlie lizará cómo el conflicto social comunitario
Hochschild en su artículo “The Sociology ilumina precisamente las pugnas que surgen
of Feeling and Emotion: Selected Possibili- en una sociedad que está en tensión al al-
ties” (1975), las cuales tienen como objeti- bergar simultáneamente tanto procesos que
vo aproximarnos al “actor sintiente” (sen- buscan reproducir cierto orden ético, moral
tient actor), el cual es consciente y a la vez y jurídico, como también otros que buscan
capaz de sentir afectos, es decir, puede dar- cuestionarlo y subvertirlo.
La propuesta de esta investigación colo-
50
Trabajo presentado en el Cuarto Coloquio de ca a la dimensión emocional como eje teó-
Investigación. Las emociones en el marco de las rico y metodológico para analizar el con-
Ciencias Sociales: perspectivas interdisciplina- flicto, debido a que permite profundizar
rias, organizado por la FES-Iztacala y el ITE- tanto en estructuras individuales y subjeti-
SO, en septiembre 2014. vas, como también en las socioculturales,
51
Este ejido se conforma aproximadamente por estableciendo relaciones entre ambas; tam-
500 personas, y se ubica en Calakmul, munici-
bién se integra el impacto que tienen aspec-
pio que colinda en la frontera sur de México con
los países de Belice y Guatemala. tos sociales, económicos y políticos en la

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relación que establece lo local con lo trans-


local.
Se retomará la dimensión emocional
como elemento clave en la construcción de
las experiencias, las cuales son entendidas
como la vivencia compartida de los sujetos
en el acontecimiento. A partir de la expe-
riencia emocional del “sujeto sintiente” es
posible aproximarnos a la vivencia compar-
tida de las personas, de forma tal que resul- Mapa 1 - Campeche, México
ta viable comprender cómo las emociones http://georgeinmexico.wordpress.com /2010/06/28/george’s-guide-
to-mexico-campeche-state/. Consultado en octubre de 2014
contribuyen a reorganizar la vida de la co-
lectividad ch’ol en situaciones de conflicto,
es decir, nos permiten aproximarnos a la La dimensión emocional y el conflicto
forma como se construyen las agencias de social.
los actores sociales.
El objetivo planteado fue abordado a El conflicto (t’an, leto, periyal) para los
través del método etnográfico, observando, ch’oles de ECII está íntimamente relacio-
participando y cuestionando52: por un lado, nado con dinámicas emocionales nombra-
en interacción con diversos miembros de la das como wokol, es decir, de sufrimiento,
comunidad en múltiples contextos de la dificultad o problema. El wokol constituye
vida cotidiana; por otro, enfocándome en el un concepto de “experiencia próxima” (Ge-
tema de investigación, con actores cerca- ertz, 1984) que está encarnado en la viven-
namente relacionados con el caso de estu- cia cotidiana de las personas, pues remite a
dio, así como también analizando otras muchos significados, tanto corporales, co-
situaciones de conflicto para tener más mo emocionales y cognitivos. Algunos
elementos de análisis. ch’oles reconocen que los conflictos entre
Para abordar el objetivo que ha sido compañeros (lakpi’ilob) generan sufrimien-
formulado, a continuación se describe la to, pues de ellos deriva la experiencia de
forma como se ha organizado el trabajo. En bʌk’en (miedo), michlel (enojocoraje), pen-
el siguiente apartado, titulado “La dimen- sal (preocupacióntristeza), o kisin (ver-
sión emocional y el conflicto social”, se güenza). El conflicto suele estar presente
analizan las narrativas que explican el sen- como un fantasma que tiene múltiples for-
tido del conflicto, de donde surge una estre- mas, y que amenaza con aparecer en diver-
cha relación entre algunas emociones y las sas circunstancias a lo largo de la vida de
condiciones de desigualdad que se constru- las personas, pudiendo llegar a provocar
yen desde lo local, pero también en la com- escenarios adversos donde esté presente la
pleja relación que se desarrolla con el con- enfermedad e incluso la muerte.
texto translocal. Posteriormente se describe Asimismo, las explicaciones locales so-
brevemente el caso de estudio, y se con- bre el origen del conflicto suelen referir que
tinúa con el análisis de la dinámica emo- las personas sienten ts’alentiel (envidia),
cional local siguiendo las categorías pro- ts’a k’el (odio) o michlel (corajeenojo) con-
puestas por Hochschild: normativa, expre- tra sus enemigos (contra). Sus explicacio-
siva y política. Para finalizar se integran las nes aluden a formas de sentir53 (Lutz, 1988;
reflexiones finales. Rosaldo, 1980) que remiten a dinámicas
locales muy densas en significados, prácti-
cas y experiencias.
Posteriormente, se identificó que la en-
vidia, el odio o el coraje de que eran objeto,
53
No he identificado en ch’ol algún término
para la categoría “emoción”; sin embargo, sus
52
Desde agosto de 2008 he realizado trabajo expresiones se refieren a formas de sentir, las
etnográfico en el ejido de forma intermitente. cuales han sido conceptualizadas por las disci-
Para esta investigación permanecí 9 semanas, plinas sociales bajo la categoría de “emocio-
entre noviembre de 2013 y marzo de 2014. nes”.

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solían referir a las condiciones de desigual- de selva virgen, sin ningún apoyo del go-
dad que se viven en la localidad. Es decir, bierno para sobrevivir, ni para establecer
la diferencia en cuanto al acceso al capital los primeros contactos con el resto del
simbólico54 provoca que las personas expe- mundo. Con los años, el ejido se ha acerca-
rimenten emociones que reflejan la molestia do cada vez más a la sociedad mexicana
que esto les genera, ya que suele derivar en mestiza, con lo cual también se han incor-
relaciones de poder. El ejido ECII está or- porado elementos que actualmente se en-
ganizado en torno a una aguda estratifi- cuentran en disputa con aquellos que han
cación basada en el género, la edad y la organizado tradicionalmente a la localidad,
posición social de las personas. Esto impli- situación que ha impactado fuertemente en
ca que los hombres, de mayor edad y ejida- las dinámicas afectivas locales.
tarios, han controlado la toma de decisiones El ejido ha ido transitado de una eco-
sobre cuestiones que competen a toda la nomía de autoconsumo a una de mercado,
comunidad; mientras que las mujeres, los aproximándose cada vez más a la propuesta
jóvenes y la gente sin tierra han vivido de capitalista neoliberal. Sin embargo, lo ha
facto como ciudadanos de menor rango que hecho en gran medida desde la lógica de la
deben subordinarse, sufriendo en ocasiones explotación y como proveedora de mano de
la violación de sus derechos. obra barata, ya que el pago por sus produc-
Sin embargo, la desigualdad también se tos agrícolas es muy bajo 55. Por otra parte,
configura a través de las relaciones que el gobierno ha implementado diversas polí-
establecen con el contexto translocal, en ticas asistencialistas que no modifican su
cuyo entramado se gestan numerosas con- condición de subordinación, sino que los
tradicciones y dificultades para localidades vuelven dependientes de los pocos recursos
como ésta: pequeña, de vocación campesi- que deciden otorgarles. Asimismo, existen
na, con población indígena, históricamente pocas fuentes de trabajo en la localidad o en
marginada y empobrecida, aunque también los entornos inmediatos; los jóvenes que
inmersa en importantes procesos de trans- emigran se emplean en trabajos mal paga-
formación. En estos espacios, la mayoría de dos, y sólo unos cuantos logran consolidar
las personas tiene gran dificultad para acce- cierto capital que les permite iniciar proyec-
der a recursos básicos que les permitan tos que redundan en mejor calidad de vida.
sobrevivir y reproducirse, y también para Dichas condiciones socioeconómicas
adquirir objetos de prestigio, los cuales han generado que la mayoría de las perso-
provienen en su mayoría de la sociedad nas tenga acceso restringido a muchos re-
mestiza, con la que históricamente se han cursos, mientras que unas cuantas los tienen
relacionado los grupos indígenas en térmi- con cierta abundancia. La escasez, la des-
nos de desigualdad y exclusión, lo que ha igualdad y la incorporación de elementos
contribuido a generar las condiciones de provenientes de la sociedad mestiza contri-
pobreza en que se encuentran. buyen a que las personas experimenten
ECII se fundó a mediados de los años 70 emociones como envidia, odio o enojoco-
del siglo pasado en el contexto del reparto raje, lo que las lleva a emprender acciones
de tierras baldías, destinadas a campesinos encaminadas a dañar a otros, generándose
que carecían de este recurso. En aquel relaciones de competencia, de desconfianza
tiempo, los ch’oles se encontraron rodeados y en ocasiones de fuerte hostilidad. Algunas
de las acciones empleadas para dañar, son:
54
Para Bourdieu (1986), el capital simbólico el chisme, amenazas, descalificaciones en
incorpora a los otros tipos de capital: económi- reuniones públicas, discusiones, violencia
co, cultural o social, y se refiere a propiedades física, acciones encaminadas a afectar el
intangibles inherentes a los agentes sociales, las patrimonio de otros. Sin embargo, la brujer-
cuales cobran valor en la medida en que son ía –tʌ’lentiel es el recurso más poderoso
conocidos y reconocidos por un grupo humano
que comparte el mismo habitus. La distribución
55
de los distintos tipos de capital configura la El chile jalapeño es el principal producto co-
estructura del espacio social y determina las mercial de los campesinos del municipio, y en
oportunidades de vida de los agentes sociales muchos casos el único. En la cosecha del 2013
(Fernández, 2013). se pagó un kilo aproximadamente a 20 centavos
de dólar.

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para afrontar el conflicto, pues puede pro- muestre cierta apariencia de ser “buena
ducir enfermedad e incluso la muerte. gente” (wen kixtiaño), es sabido que no
Sin embargo, quienes son agredidos siempre se trata de lo que “verdaderamente
también sienten emociones que las pueden dice su corazón” (isujmlel mi yʌl ipusik’al),
llevar a cometer acciones en contra de sus por el contrario, la gente suele ocultar sus
agresores, como sucede con el enojo; aun- intenciones, principalmente cuando se trata
que también pueden buscar la reparación de hacer daño a otros.
del daño, o protección cuando experimen- El panorama se complejiza cuando se
tan miedo, preocupacióntristeza o vergüen- sabe que hay acciones encaminadas a per-
za. En este sentido, la dimensión emocional judicar a otros, pero que no son tan eviden-
puede surgir como causa del conflicto y tes a simple vista; por el contrario, se dan
también como una consecuencia de éste, ya de forma oculta, y a través de una lógica
que expresa las confrontaciones que se ges- distinta, lo cual alude directamente a la
tan en estos escenarios, por lo que constitu- forma en que opera la brujería, el daño o la
ye uno de los principales motores de la “maldad”, conocida en ch’ol como tik’lan.
dinámica local que se organiza en buena Entre la gente ch’ol existe una concepción
medida en torno a relaciones de poder en bastante generalizada que considera que los
donde las personas despliegan diversas seres humanos no están confinados en sen-
estrategias para tratar de modificar y mejo- tido estricto a sus cuerpos (bʌc’tal), sino
rar su posición en el espacio social. que se extienden más allá de éstos,
Las acciones emprendidas dependen de “haciendo que las personas aparezcan como
muchos factores: como la evaluación que entidades extendidas y a la vez porosas, en
hagan sobre qué tan grave y peligrosa es la constante riesgo” (Escalona, 2009, p. 189);
situación en que se encuentran; las emocio- esto sucede debido a que también se en-
nes experimentadas; el capital simbólico cuentra integrada por el ch’ujlel, entidad
con que cuenten dada su posición social, su anímica o “espíritu”, que está en relación
edad y género. permanente con el cuerpo, y cuya interac-
En ECII, la dimensión emocional expre- ción recíproca con éste y con el entorno
sa el malestar, el sufrimiento y la dificultad genera que la persona57 pueda ser afectada a
en que están inmersas las personas de forma través de sueños, emociones, caídas, chis-
constante al encontrarse en un entorno que mes, aires, sustancias o seres que pueden
no garantiza a todas por igual la satisfac- penetrar y vulnerar, o atacar al ch’ujlel
ción de sus necesidades, y donde las inter- cuando éste se encuentra fuera del cuerpo,
acciones cotidianas entre los mismos com- pudiendo producirse trastornos graves co-
pañeros ch’oles pueden llegar a poner en mo enfermedades, y en última instancia la
peligro la vida de las personas. Esto último muerte.
se condensa en una frase expresada con En casos de brujería, el ataque lo realiza
frecuencia: “ma’anik mi mejlel lajkʌn ipu- alguien que cuente con wʌy, “nagual” o
sik’al yambʌ lak pi’ʌlob”, “no podemos “sombra”, el cual pertenece sólo a algunos
llegar a conocer el corazón de las (otras) sujetos considerados xiba’, “brujos” o “dia-
personas”; con ello se refieren a la dificul- blos”. El wʌy dota de poder a quienes lo
tad para saber lo que realmente piensasien- poseen, ya que pueden transformarse en
tedesea alguien56, pues a pesar de que uno o varios animales, y/o fenómenos como
56
El corazón es la parte de la persona donde se
encuentran sus principales capacidades, como el escuchar; kʌñ: conocer, aprender; ‘om: desear,
pensamiento, sensación, emoción, deseo, re- querer; kajtisan: recordar.
57
cuerdo o conocimiento. Cuando se dice que el Se considera que la noción de “persona” inte-
corazón habla (chon ti t’an ipusik’al), expresa gra la experiencia del cuerpo (bʌc’tal-baketal),
los deseos, pensamientos, emociones, sensacio- del ch’ujlel o espíritu y del wʌy, nagual o se-
nes, recuerdos de la persona. Existen palabras gundo espíritu -para quienes cuentan con esta
específicas para nombrar cada una de estas entidad-, así como de la relación con el entorno
capacidades: ña’tan: saber, pensar, comprender, planteado a través de las interacciones con otros
recordar, extrañar, conocer; ubin/ ubintel: sentir humanos –principalmente los mismos ch’oles-,
corporalmente, lo que se refiere tanto a emocio- y con el medio ambiente personificado por seres
nes como a sensaciones, también se refiere a sobrenaturales o “dueños”, yumob o witsob.

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rayo, viento o remolino, adquiriendo las El caso de estudio


características de estas entidades. Los xiba’
tienen poder para comunicarse directamente El conflicto inició en el 2012 cuando el
con los “dueños” (yum) a través de proce- ganado de Mario58 invadió los sembradíos
dimientos rituales, quienes son seres sobre- de varios campesinos, destruyéndolos y
naturales duales que habitan el cosmos arruinando buena parte de la cosecha. Julio
ch’ol, es decir, pueden emplear su poder fue a verlo en varias ocasiones para pedirle
tanto para beneficiar como para dañar a las que amarrara sus animales; la respuesta fue
displicente, quedó de amarrarlos pero nunca
personas; algo similar sucede con quienes
lo hizo. Tiempo después acudió con el Co-
tienen wʌy, pues ellos encarnan la dualidad
misario Municipal para poner una demanda,
curanderobrujo o xwujtijelxiba’, ya que
pero Mario no acudió al llamado de la auto-
pueden usar su poder para contribuir a que
ridad, por lo que Julio decidió enviar el
alguien sane, pero también para provocarle caso a la cabecera municipal, llegando con
enfermedad o muerte. el Ministerio Público. Ahí se determinó que
Para lograr lo anterior, una de las posibi- tendría que pagar dos mil pesos por el daño
lidades más eficaces es que los dueños apri- causado a su cultivo, aunque finalmente
sionen los ch’ujlelob de las personas, sólo pagó $500, ya que al parecer las auto-
dejándolos cautivos en las profundidades de ridades municipales no dieron seguimiento
la tierra o del agua, espacios donde ellos
al asunto. Meses más tarde, Mario tapó con
habitan y cuyos recursos controlan; mien- alambre el camino por donde muchos cam-
tras tanto el individuo se debilita, enferma y
pesinos del ejido pasan diariamente hacia a
muere. Es importante considerar que estos su parcela; como el terreno le pertenece,
seres no parecen tener candados morales ni
decía que podía hacer con él lo que quisie-
estar regidos por algún sentido de justicia ra. Los afectados firmaron un acta descri-
para realizar sus acciones, como también biendo los hechos y la llevaron al Ministe-
plantea Imberton en su estudio sobre suici-
rio Público en la cabecera municipal; ahí se
dio entre ch’oles de Tila, Chiapas. Lo que determinó que debía abrir el camino para el
parece motivarlos a actuar a favor de al- libre tránsito de las personas.
guien es la entrega de mayor cantidad de
Al año siguiente, el ganado volvió a in-
regalos u ofrendas (majtan), sin importar vadir y a destruir los chilares de varios
“si esta persona es víctima o victimaria, si
campesinos. En esa ocasión, Julio decidió
actúa para atacar o para defenderse, con no demandar. Ese mismo año Mario quemó
motivos justificados o sin ellos” (Imberton,
la cerca que Ana, hija de Julio, tenía alre-
2012, p. 128).
dedor de su pequeño rancho, ya que colin-
Esta forma de comprender las relaciones dan ambos terrenos y Mario no hizo guar-
humanas tiene un fuerte impacto en las daraya para proteger el terreno vecino del
interacciones y en la vida cotidiana en ge- fuego. Ella decidió no demandar porque
neral, pues se suele vivir en alerta constan- consideraba que el señor lo había hecho
te, con desconfianza, percibiendo atenta-
intencionalmente y que no pagaría por el
mente lo que sucede en su entorno, con los daño, tal como había sucedido con Julio.
miembros de su familia y con su persona, Asimismo, según el testimonio de padre e
acechando señales que indiquen la acción hija, durante las reuniones que se llevaron a
de algún enemigo. Es aquí donde algunas cabo desde que inició el conflicto, cuando
emociones aparecen como indicadores de ellos coincidían con Mario, éste hacía co-
que algo importante está sucediendo. mentarios negativos sobre lo que ellos hab-
Atendiendo a la problemática que ha si- ían dicho antes, descalificándolos a veces
do expuesta, a continuación se presentará con burlas. La lectura generalizada que ha
brevemente el caso de estudio, y posterior- surgido sobre el conflicto es que Mario
mente serán retomadas las categorías pro- envidia a Julio y a miembros de su familia,
puestas por Hochschild (normativa, expre-
lo cual es evidenciado por sus acciones y
siva y política) para analizar el contexto en
que surgen las experiencias emocionales,
con el fin de aproximarnos a la forma como
se construye su significado. 58
Los nombres verdaderos han sido cambiados
para proteger la identidad de las personas.

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por el contexto en el que éstas se han des- baluartes para poder continuar como comu-
arrollado. nidad organizada.
Mario ha enviado el mensaje de que no Ellos lo resumen en la frase “lajalonla”,
tiene miedo a las consecuencias que podr- “somos parejos”, lo cual implica que todos
ían generar sus actos, es decir, a lo que han participado de la construcción del teji-
Julio y su familia pudieran emprender con- do que da sentido a la vida comunitaria, así
tra él. Sin embargo, sus mismas acciones lo como también remite al ordenamiento que
muestran ante la localidad como alguien han llevado a cabo de su espacio vital, co-
envidioso, con el que se debe tener cuidado. mo campesinos comprometidos con un pro-
Eso mismo puede provocar que pierda alia- yecto de vida. Ser “pi’il”, “compañero”,
dos, que pierda prestigio, o que aumenten implica un reconocimiento del otro como
sus enemigos, los cuales pueden realizar alguien que comparte valores, sentidos,
acciones que generen contrapeso, como objetivos, actividades, derechos y obliga-
sucedió cuando alguien mató una de sus ciones. La palabra jpi’il, “mi compañero”
reses con una carabina, dejando un mensaje tiene múltiples significados que remiten a
de venganza que buscaba generarle miedo. relaciones de parentesco: puede tratarse de
Aunque Mario culpó a Julio de haberlo la pareja, pero también de la familia que
hecho –lo cual fue negado por él, intentan- conforman todos los ch’oles de la localidad
do desprestigiarlo. Como se aprecia, las como parte de un mismo cuerpo social. No
acciones tienen consecuencias a nivel emo- se debe envidiar a un miembro de la propia
cional, y los sucesos puede ser interpretados familia.
en diversos sentidos, generando consecuen- Es importante recordar que las emocio-
cias tanto a favor como en contra de los nes están relacionadas con el orden ético y
involucrados. moral de los grupos humanos, ya que con-
A continuación presento el análisis del tribuyen a que los sujetos evalúen las situa-
caso. ciones que se les presentan e interpreten sus
experiencias a partir de ciertos valores esta-
Dimensiones del contexto para anali- blecidos y reconocidos colectivamente, por
zar la construcción de significados lo que contribuyen a regular las relaciones
afectivos. sociales (Enríquez, op. cit.; Hochschild, op.
Dimensión normativa cit.; López, op. cit.; Lutz, op. cit.). En este
sentido, aludiendo a la categoría de lo “mo-
Hochschild (op. cit.) plantea que las ralmente apropiado” para las emociones
emociones son inducidas por acuerdos so- (Hochschild, op. cit.), es posible afirmar
ciales, por lo que éstos orientan nuestras que desde los valores de la localidad, la
emociones cuando nos encontramos en envidia no es legítima.
determinadas circunstancias; pero también No obstante, la realidad es muy distinta,
establecen reglas sobre lo que deberíamos pues desde los usos y costumbres, la envi-
sentir en contextos particulares, con lo cual dia está planteada como una forma de sentir
buscan controlar nuestras emociones. Lo muy común frente a las condiciones de
ideal es que ambos coincidan, lo que senti- desigualdad y de competencia que suelen
mos y lo que deberíamos sentir; sin embar- mediar las interacciones, además de que
go, eso no siempre sucede. cuenta con instancias encargadas de su re-
En el caso de estudio es posible plantear gulación en el ámbito local: me refiero al
que los órdenes ético y moral de la locali- curanderobrujo, y al comisario municipal.
dad establecen que la envidia no es bien El primero trabaja para que las personas
recibida: “mach yomik lakts’aleñ lak- recuperen la salud perdida producto de las
pi’ilob”, “no debemos envidiar a nuestros acciones dañinas producidas por los envi-
compañeros”, ya que contradice valores y diosos, aunque también puede él mismo
prácticas que han sido fundamentales para provocarlas a través de brujería. El segundo
organizar la vida social. Me refiero a aque- es el encargado de mediar los conflictos,
llos que articulan la identidad de los ch’oles tratando de llegar a acuerdos y establecien-
como grupo cultural particular y que tiene do multas.
en la participación colectiva uno de sus Mario se encuentra disputando con la
familia de Julio la supremacía del lugar de

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poder en la localidad, lo cual se manifiesta familia, aunque cualquiera de sus miembros


a través de sus emociones, como el odio, el podría ser el destinatario.
corajeenojo y sobre todo la envidia, y de las La controversia en torno al orden jerár-
acciones que derivan de éstas. Desde que se quico en que se había basado la vida social
fundó el ejido, Mario siempre contó con ch’ol ha surgido a través de los años debido
mayores recursos económicos y de prestigio a diversos eventos, entre los que se encuen-
que el resto de las personas. Él fue el líder tran la migración de muchos jóvenes hacia
de la movilización de varias familias polos de desarrollo ubicados en la Penínsu-
ch’oles sin tierras, pues indagó dónde había la de Yucatán y en Estados Unidos, también
terrenos susceptibles de ser otorgados en a la presencia de servicios básicos como la
dotación. Más tarde fue el primer comisario luz la cual introdujo a su vez a la televisión,
ejidal, encargado de realizar los trámites las carreteras, los servicios de salud y de
ante el gobierno para conseguir el título de educación del Estado, así como la existen-
propiedad ejidal, eso implica que hablaba cia de escasos empleos remunerados y la
español, además de que tenía decisión y presencia de grupos protestantes de diver-
fuerza para enfrentarse con las instancias de sos cultos. Estos elementos han contribuido
gobierno, elementos de los que carecían la a una mayor diferenciación socioeconómica
mayoría. Tiempo después fue el primero y cultural entre los habitantes de la locali-
que obtuvo un salario fijo al ser reconocido dad, ya que han promovido la integración
como enfermero de la clínica, con lo cual se de nuevos valores, expectativas, formas de
convirtió en intermediario entre la instancia relacionarse, estilos de consumo y formas
gubernamental y la comunidad, obteniendo de prestigio, los cuales han cuestionado los
un nuevo lugar de poder. También fue el roles tradicionales basados en el género, la
primero que estableció una cantina en el edad y la posición social, incidiendo en las
ejido. Asimismo, fue de los primeros en dinámicas afectivas de la localidad. Los
apoyar a sus hijos para que migraran a Es- cambios han ido generando confrontaciones
tados Unidos. Todo ello lo colocó como la y disputas de diferente índole, ya que algu-
persona más rica y con más influencia del nas personas se resisten a los cambios pues
lugar. quisieran mantener sus posiciones de privi-
Sin embargo, desde hace algunos años, legio.
Jesús y Ana, hijos de Julio, han ido acumu- Por otra parte, es importante considerar
lando capital simbólico que les ha permiti- que el ámbito jurídico de la localidad y del
do colocarse en una posición de privilegio municipio no cuenta con mecanismos que
frente a la escasez con la que vive la mayor- garanticen la impartición de justicia. Ha
ía de la gente. Ambos han tenido importan- habido casos de corrupción e ineficiencia
tes experiencias migratorias que les han en ambas instancias, además de miedo en
permitido adquirir herramientas que han las autoridades locales al considerar que
cimentado su desarrollo personal y laboral, podrían ser objeto ellas mismas de acciones
posibilitándoles ir más allá de las alternati- de brujería. Esto se aprecia cuando Julio no
vas que tradicionalmente ofrecía la comu- logra que las autoridades resuelvan su caso
nidad, lo que ha generado que surjan envi- favorablemente. Por el contrario, después
diosos como Mario. de tratar de gestionar un acuerdo que lleva-
Con su ascenso, ellos también han cues- ra a la resolución pacífica del conflicto,
tionado el ordenamiento estratificado de la Julio se da cuenta de que eso es imposible,
sociedad ch’ol, que establece que los hom- pues la multa que se le había impuesto a
bres tienen mejor posición social que las Mario no fue pagada en su totalidad y no
mujeres, y que el lugar de los mayores es de existió ningún mecanismo que pudiera
mayor relevancia que el de los más jóvenes. obligarlo a ello. Los acontecimientos adver-
Al transgredir este orden se ha planteado la sos poco a poco le fueron dejando entrever
disputa por la posición privilegiada que que las intenciones de Mario iban más allá
tenía Mario, exponiéndose a su envidia, de los daños a su cultivo, que entonces se
corajeenojo y odio, pues él ha realizado volvieron insignificantes.
diversas acciones encaminadas a dañar, Numerosas personas del ejido me asegu-
principalmente a Julio por ser el jefe de la raron que Mario ha realizado acciones de
brujería contra Julio y contra miembros de

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su familia, lo que significa que desea que puestas emocionales se dan espontá-
enfermen y de esa forma encuentren la neamente cuando el individuo recibe el
muerte. Lo anterior habla de una lógica en contenido simbólico que las activa, sin que
la que las entidades anímicas “interactúan necesariamente atraviesen por la conscien-
entre ellas en una clase de relación social cia o la intencionalidad.
paralela donde la vida es frágil y está ex- En este sentido, el miedo, la vergüenza y
puesta a los deseos de los demás, donde los el pensal son experiencias que suelen estar
bordes de las personas aparecen lo suficien- atadas a ese circuito de significación que
temente porosos como para que las perso- busca reforzar el control social, pues pue-
nas estén expuestas a los ataques de los den surgir de forma automática ante agre-
vecinos envidiosos o de brujos (…) La per- siones, inhibiéndolos y generándoles en-
sona es una entidad porosa y las interaccio- fermedad. Sin embargo, las emociones
nes traspasan los cuerpos y se extienden también abren a las personas a múltiples
más allá de ellos” (Escalona, op, cit., p. posibilidades, además de que expresan ne-
189). Estas condiciones contribuyen a gene- cesidades que necesitan ser satisfechas
rar vulnerabilidad y sufrimiento, pues la (Heller, 2011); con lo cual orientan hacia el
posibilidad de ser lastimados a través de desarrollo de acciones estratégicas, es decir,
esta lógica anímica se encuentra latente de contribuyen a poner en marcha mecanismos
forma permanente; sin embargo, se incre- de protección frente a los ataques recibidos.
menta cuando hay una persona que muestra Una de las alternativas es el “trabajo de
intenciones de dañar, como sucede en el la emoción”, emotion work planteado tam-
caso que se presenta. bién por Hochschild, op. cit. Se trata de una
En cuanto a las personas afectadas por herramienta a través de la cual la persona
las agresiones de Mario, siguiendo a procura de forma consciente, cambiar en
Hochschild (op. cit.), las “reglas emociona- grado o cualidad una emoción con el fin de
les” ch’oles plantean que Julio y los miem- cumplir con las normas sociales, afectando
bros de su familia deberían sentir miedo, no sólo la expresión de la emoción, sino la
preocupacióntristeza y vergüenza, ya que emoción misma. Al respecto, desde la vi-
con ello estarían expresando el peligro per- sión hegemónica ch’ol existe una grieta que
cibido y la humillación a que se han visto permite rebelarse frente al guión de la en-
sometidos con los chismes y las descalifi- fermedad y la vulnerabilidad, pues las per-
caciones recibidas. Asimismo, muchos sonas que tienen espíritu fuerte (pʌtʌlel i
ch’oles consideran que sentir dichas emo- ch’ujlel), casi siempre hombres, pueden
ciones con mucha intensidad les puede evitar sentir las emociones nocivas.
producir enfermedad, con lo que vulnerar- Al respecto, es posible apreciar el “tra-
ían su posición frente al ataque de que están bajo” que realiza Julio, quien expresa:
siendo víctimas.
Como se mencionó, las emociones se ar- “Yo no hago caso (ríe), (Mario) quie-
ticulan con valores que son relevantes para re hacer maldad, está rezando aho-
las comunidades que las experimentan. En rita, está prendiendo vela, está dando
este sentido, los grupos dominantes buscan aguardiente a la tierra59. Pero no pasa
asegurar el seguimiento de un orden social nada (a) uno, solamente Dios lo sabe.
apegado a los valores que los sostienen en A veces ya pierdo la vista, ya me
un lugar de poder; esto se puede lograr más quedo un rato la mente así como bo-
fácilmente cuando se tiene como aliadas rracho uno, pero ya vuelvo a decir:
ciertas emociones, con lo cual se trata de ‘señor Jesús, por qué estoy así, por
garantizar el control de los individuos qué estoy enfermando así’, al rato es-
(Hochschild, 1979). La dimensión emocio- toy bien otra vez, estoy feliz otra vez
nal se integra en las personas a nivel simbó- (ríe). Pero ya ves que se pone uno
lico y también corporal, pues cuando suce- triste, más se va a enfermar uno. Es-
de una experiencia se evalúa la situación a toy más tranquilo, que sólo Dios lo
través de la información que se recibe en sabe todo, lo que hace uno así como
todo el cuerpo, no sólo a través de pensa- él hace. No tengo miedo. (…) Si está
mientos. Esto implica que los significados
están encarnados, de tal forma que las res- 59
Se refiere a la brujería.

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haciendo maldad, solamente Dios lo además ha tenido una relación muy cercana
sabe, si muere primero, él lo buscó, con mestizos desde hace varias décadas,
nada más digo así. Él va a morir pri- cuando decidió irse del ejido ECII para
mero porque está haciendo maldad. vivir en otro cerca de Chetumal, donde hay
Por eso yo estoy feliz, yo no hago muy pocos ch’oles. Con el tiempo fue ad-
nada, no pienso nada. Alomejor se quiriendo múltiples habilidades que le per-
muere él, tiene diabetes, sube su pre- mitieron ir concretando poco a poco sus
sión, ya tiene muchos años enfermo. planes de desarrollo, pues siempre tuvo un
No ha muerto todavía, pero tiene que espíritu emprendedor. Para él ha sido más
morir (ríe), porque es gente (ríe). fácil no inmiscuirse en las dinámicas de
Tanto pensar qué cosa estás hacien- daño, pues su proximidad a otro tipo de
do, va a morir, de tanto pensar”60. ideologías, además del trabajo constante y
su impecable visión para los negocios lo
Julio cuenta con un ch’ujlel fuerte, por
han llevado a no depender de ese tipo de
ello puede decir que “no piensa nada”, es
cuestiones para ser exitoso; por el contrario,
decir, no se preocupa; él trata de mantener
se ha podido mantener ajeno a este tipo de
alejadas las emociones que podrían hacerlo
experiencias, a pesar de estar mucho tiempo
enfermar y que lo debilitarían en la situa-
en el ejido y de tener contacto muy cercano
ción delicada en que se encuentra; por el
con su familia.
contrario, dice estar tranquilo y feliz. Asi-
Por otra parte, las palabras de Julio re-
mismo, además de creer en la capacidad
sultan ambivalentes en cuanto a la expe-
dual de los dueños, él también cree en la
riencia del enojo, ya que por una parte con-
existencia de un Dios que puede saberlo
dena el uso que hace Mario de la brujería,
todo, que castiga a quienes hacen mal pero
pero no reconoce explícitamente experi-
que ayuda a quienes no lastiman a los de-
mentar dicha emoción, a pesar de las agre-
más, ya que cuenta con un código ético
siones de que ha sido objeto. Sin embargo,
basado en ciertas nociones de bien y mal.
expresa su deseo de que su contrincante
Debido a ello, piensa que Mario podría
muera, aunque tampoco reconoce estar
morir próximamente, y lo dice mientras ríe,
interesado en utilizar él mismo la brujería
mostrando el deseo de que así suceda, aun-
para lograrlo. Esto sucede porque, a pesar
que hasta el momento de nuestra conversa-
de que es de uso corriente buscar venganza,
ción no había buscado un brujo que pudiera
existe una condena ética y moral para quien
tratar de provocarlo. En este último punto
decida hacerlo, por lo que no se suele ex-
se mezclan creencias en dos vertientes reli-
presar públicamente. Debo mencionar que
giosas, una más cercana a los seres sobrena-
una de sus hijas me comentó que Julio hab-
turales del panteón mesoamericano, y la
ía hablado en varias ocasiones de su deseo
otra relacionada con el Dios Judeocristiano.
de buscar a un especialista ch’ol de Chiapas
Asimismo, cuando menciona que “no
que pudiera realizar el trabajo necesario
hace caso”, trata de hacer suya la actitud
para provocar la muerte de su adversario, lo
que tiene su hijo Jesús frente a estas situa-
cual no había sucedido hasta el momento en
ciones, pues este último expresa:
que realicé el trabajo de campo.
“yo no creo en la brujería, la verdad A pesar de lo que Julio se empeña en
no hago caso de las personas que dis- mostrar y en evitar, muy probablemente ha
que hacen maldad… y nunca me ha estado experimentando todas las emociones
pasado nada, nunca me he enfer- planteadas, ya que el asedio al que se ha
mado, nunca he sentido nada así. Yo visto sometido ha sido muy fuerte,
sólo me pongo a trabajar, sin hacer mostrándose las consecuencias de múltiples
caso de todo eso”61. formas. Julio se ha resistido fuertemente a
Jesús se convirtió desde hace años al enfermar y a “caer”62 (yajlel), para ello ha
culto pentecostal, en el cual se deslindan de movilizado muchos de los recursos que ha
creencias relacionadas con la brujería; tenido a su alcance: primero hacer la de-
nuncia con las autoridades locales y muni-
60
Conversación llevada a cabo en noviembre
62
2013. Con esta expresión refieren con frecuencia al
61
Conversación llevada a cabo en febrero 2014. declive corporal, espiritual y moral.

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cipales; después enfocarse en el “trabajo de los recursos con que cuenten según su posi-
sus emociones” para tratar de evitar aque- ción social, condición de género y edad, así
llas que podrían llegar a enfermarlo, como también con las ideologías a que se
haciendo lo posible por ignorar las eviden- encuentren sujetos. Finalmente, el objetivo
cias de los ataques implementados en su que buscan los diversos actores es mejorar
contra; más tarde vio que sus recursos eran su posición en el espacio social, es decir,
insuficientes, pues sintió malestares corpo- Mario quiere ver caer a Julio y a su familia
rales fuertes y empezó a escuchar voces que del lugar privilegiado en que se encuentran
le decían que tenía que matarse, con lo que para mostrarles su poder y recuperar el
trató de movilizar a sus hijos para que ac- lugar de primacía; Julio quiere vengarse y,
cedieran a invertir en un viaje para buscar como Ana, defenderse de las acciones de
un especialista que pudiera ayudar a sanarlo brujería que Mario realiza, y Jesús quiere
y también que pudiera devolver el mal que seguir trabajando como lo ha venido
él había estado recibiendo. Como se puede haciendo.
apreciar, sus estrategias han sido muy di-
versas y se enmarcan en distintas ideolog- Dimensión expresiva
ías. Esta segunda dimensión contextual se
Por otra parte, es posible aproximarnos a refiere a la posibilidad de poder interpretar
lo que ha estado experimentando Ana. Ella las expresiones emocionales de las personas
reconoce abiertamente que el conflicto le ha de manera correcta, de tal forma que sea
generado miedo, preocupación, tristeza, y posible distinguir si alguien realmente sien-
mucho enojo; por momentos siente que va a te una emoción o no. El contexto expresivo
caer, pero luego se recupera y se afianza en se sostiene en las interpretaciones consen-
la lucha. A pesar de haber vivido mucho suadas llevadas a cabo por la colectividad,
tiempo fuera de su ejido y de estar casada es decir, en la confianza que tiene el grupo
con un hombre que no cree en la brujería, respecto a la validez de una interpretación.
ella sigue reconociendo las normas emocio- En el caso que nos atañe, la diversidad
nales ch’oles como propias, pues considera de acciones que Mario ha emprendido, lo
que ciertas experiencias afectivas provocan han evidenciado claramente como envidio-
que las personas quieran hacer daño, y que so ante la gente de la localidad. Para ellos
algunas otras experiencias pueden produ- no existen dudas al respecto: cuando al-
cirle enfermedad, por lo cual ella necesita guien realiza acciones que dañan a otros es
protegerse. En su caso, sus propias emocio- que siente envidia como emoción principal,
nes la han llevado a buscar protección con a la cual se agregan el odio y el enojocora-
el espiritista veracruzano que vive en un je. Sin embargo, la certeza se va constru-
ejido vecino, quien a través de diversos yendo con más solidez cuando empiezan a
procedimientos, puede brindar protección a manifestarse las consecuencias de las ac-
cambio de elevadas sumas de dinero. Ana ciones promovidas por dichas emociones,
se ha encargado de pagar “tratamientos” especialmente las que se refieren a la bru-
para sus hijos y otros miembros de su fami- jería.
lia que como ella, confían en que así podrán Luego de meses de que Julio y su fami-
detener el daño que Mario intenta hacer lia fueron reuniendo evidencias de las ma-
contra ellos, y no enfermarán. las acciones de Mario, el hijo menor de la
Como se puede apreciar, cada persona es familia tuvo un periodo de agresividad y
susceptible de acatar o no las reglas emo- consumo de alcohol en exceso, solía estar
cionales proporcionadas por el contexto enojado todo el tiempo, ya no quería traba-
sociocultural en que se encuentran, ya que jar y amagó con suicidarse; un día amenazó
se cruzan distintos órdenes que no siempre a uno de sus hermanos mayores con un
coinciden, me refiero al moral, el ético, el cuchillo, además de insultarlo y también a
jurídico, y el de los usos y costumbres. Así su esposa. Ana habló con él, y el joven dijo
mismo, las personas pueden afrontar las sentirse desesperado, con deseos de matarse
situaciones de conflicto a través de múlti- pues no quería vivir ahí, quería irse lejos.
ples estrategias que comprenden diversas Ana sospechó que todo ello se debía a la
formas de gestionar las emociones; la di- brujería implementada por Mario contra su
versidad de posibilidades se relaciona con familia. La confirmación llegó por el espiri-

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tista, quien mencionó que el daño había En este sentido, la envidia de Mario tie-
sido recibido por el joven por ser el más ne como objetivo a las personas que tienen
débil de la familia. Posteriormente, él inició más poder, más recursos económicos y
un tratamiento, con lo que pronto dejó de mejor status de la comunidad, como sería la
tomar, de estar enojado, y dijo sentirse me- familia de Julio, por lo que busca rebajarlos
jor. No todos los miembros de la familia para colocarse en su lugar de forma indiscu-
estuvieron de acuerdo con esta interpreta- tible. Sin embargo, también es posible ob-
ción; sin embargo, para algunos fue una servar que dentro de esa misma familia
prueba de la “maldad” de Mario. existen diferencias y jerarquías, las cuales a
Ana también se ha sentido afectada por su vez determinan quién se convierte en el
la brujería. Ha tenido sueños en los que es objeto de las acciones destructivas. En este
atacada por algunos animalesnaguales; por caso, Julio ha sido uno de los más afectados
momentos se ha sentido sumamente pre- ya que, a pesar de ser el jefe de la familia,
ocupada, triste y enojada. Su mayor temor no cuenta con recursos económicos como
es que sus hijos enfermen por ser más débi- sus hijos Ana y Jesús, además de que des-
les que ella, lo mismo que sus padres u confía de la eficacia del espiritista pues se
otros miembros de su familia; asimismo ha trata de un hombre mestizo que cobra caro,
sentido diversos malestares corporales. Ella lo cual desde la ética y la moral ch’ol no
considera que la protección que le provee el debería suceder. Por ello, sus estrategias
espiritista ha disminuido la gravedad de los para afrontar las dificultades se han remi-
ataques; sin embargo, no considera que eso tido de forma crucial al trabajo emocional.
la haga invulnerable. En la medida en que se ha intensificado
En cuanto a Julio, sus malestares han si- el conflicto, sus malestares han ido en au-
do mencionados en un apartado anterior. mento y su vulnerabilidad se ha vuelto evi-
Los hechos que se han explicado han dente al plantearse el peligro de un suicidio,
confirmado que, al sentir envidia contra sus por lo que sus hijos se han ido involucrando
compañeros, Mario ha desarrollado accio- más y se han planteado la necesidad de
nes que han producido fuerte impacto en invertir recursos para proteger a su padre,
ellos. Las consecuencias se muestran en el tal vez pagando a un brujo en Chiapas para
cuerpo en forma de malestares, en sueños, tratar de devolver el mal, o buscando espe-
en las emociones que experimentan, en las cialistas que puedan tratar de curarlo. Asi-
voces que escuchan; sienten miedo, pre- mismo, el hijo menor, también ha sido con-
ocupación de saber que una amenaza pende siderado alguien vulnerable al ser el más
sobre sus vidas, que alguien está trabajando joven y el que cuenta con menos recursos
para que ellos se vean afectados negativa- para defenderse, por lo cual fue fácilmente
mente, que incluso está haciendo lo posible objeto de la brujería.
para que mueran. Al saberlo, al tenerlo Por el contrario, Ana cuenta con el apo-
como certeza, inevitablemente comienzan a yo del espiritista, al cual le remunera
sentir los efectos de la brujería, incluso económicamente, y Jesús prácticamente
independientemente de que los enemigos resulta intocado con este tipo de situacio-
realicen o no las acciones esperadas. nes, colocándose en la supremacía de las
relaciones de poder al haberse distanciado
Dimensión política de la ideología que permite a la brujería
En esta última dimensión, Hochschild volverse eficaz. Asimismo, como se men-
(1975) menciona que la expresión de las cionó en el apartado anterior, los choles
emociones se relaciona con la posición que tienen claro que las personas con el ch’ujlel
tienen las personas en la jerarquía social, más débil suelen ser las destinatarias de las
por lo que la distribución diferenciada del agresiones, lo cual plantea también una
poder también determina en quiénes se jerarquía entre las personas donde las rela-
imprime con más o menos fuerza el impac- ciones de poder se hacen presentes, siendo
to que deriva de la experiencia de ciertas más vulnerables las mujeres y los más
formas de sentir. Es decir, hay emociones jóvenes.
cuyo impacto se expresa más fácilmente en
personas con menor nivel jerárquico, mien-
tras que en otras resulta al revés.

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Reflexiones finales que relaciona lo local con contextos más


amplios.
En este trabajo se ha analizado la fun-
ción social de la dimensión emocional en Referências
situaciones de conflicto en una localidad
BALANDIER, George. Antropología Polí-
ch’ol. Para lograrlo, se ha retomando la
tica. Buenos Aires: Ediciones del Sol, 2004.
propuesta de Hochschild (op. cit.) quien
sugiere el análisis de tres dimensiones del BALANDIER, Georger. Antropológicas.
contexto para comprender cómo se constru- Barcelona: Península, 1975.
yen los significados de las experiencias BEATTIE, John. Other cultures: Aims,
emocionales, retomando los contextos so-
methods and archievements in social anth-
cioculturales de las personas involucradas. ropology. New York: Free Press of Glen-
Como ha sido mostrado en el análisis coe, 1964.
del caso, las emociones pueden ayudar a
expresar las tensiones que se dan de forma BERRUECOS, Luis. H. Max Gluckman,
permanente en el espacio social, pues éste las teorías antropológicas sobre el conflicto
se caracteriza por contener posiciones en- y la escuela de Manchester. El Cotidiano, n.
contradas, donde “no todos los sujetos tie- 153, pp. 97 a 113, 2009.
nen las mismas condiciones de acción y BOURDIEU, Pierre. “The forms of Capi-
negociación” (López, 2011b, p. 246). Por lo tal”. Richardson, J. G. (ed.). Handbook of
tanto, la dimensión emocional contribuye a Theory and Research for the Sociology of
reorganizar la vida de la colectividad en Education. Nueva York: Greenwood Press,
situaciones de conflicto al cobrar existencia 1986.
en sujetos sintientes que implementan estra-
tegias para tratar de mejorar su posición en COSER, Lewis. Las funciones del conflicto
el escenario social. Esto lleva a escenificar social. México: Fondo de Cultura Econó-
relaciones de poder que plantean la disputa mica, 1961.
respecto al sostenimiento del orden jerár- ENRÍQUEZ, Rocío. El crisol de la pobre-
quico tradicional, basado en las diferencias za. Mujeres, subjetividades, emociones y
de género, edad y posición social, frente a redes sociales. ITESO: Guadalajara, 2008.
las posibilidades de transformación que se
han ido integrando en la medida en que el Enríquez, Rocío. “Prólogo”. López, O.
ejido se ha ido incorporando a la sociedad (coord.). La pérdida del paraíso. El lugar
mexicana capitalista y globalizada. de las emociones en la sociedad Mexicana
A partir de ello es posible considerar que entre los siglos XIX y XX. Pp. IVIII. Méxi-
las emociones pueden constituir un disposi- co: UNAM, Facultad de Estudios Superio-
tivo analítico que permite aproximarnos a la res Iztacala, 2011.
forma como éstas son experimentadas en el Escalona Victoria, José Luis. Política en el
acontecimiento, desde el cuerpo y desde el Chiapas rural contemporáneo. Una
sujeto sintiente, a través de lo cual se cons- aproximación etnográfica al poder. Méxi-
truyen las agencias de las personas. Las co: UNAM, 2009.
emociones se encuentran ancladas en códi-
gos culturales compartidos que validan Fernández, José. El capital simbólico,
ciertas formas de sentir en contextos parti- dominación y legitimidad. Las raíces
culares, y que reconocen ciertas expresio- weberianas de la sociología de Pierre
nes emocionales, por lo cual la comunidad Bourdieu. Papers. Revista de Sociolog-
cuenta con instancias específicas para tratar ía, v. 98, n.1, pp. 33 a 60, 2013.
de regularlas. Es por ello que las emociones
permiten establecer puentes entre la viven- Geertz, Clifford. “From the Native’s Point
cia individual y la dimensión emocional de of View”. R. A. Shweder and R. A. LeVine,
una colectividad, la cual incorpora a su vez (eds.), Culture Theory: Essays on Mind,
elementos morales, éticos, jurídicos y de Self and Emotion. pp. 123 a 136. Cambrid-
usos y costumbres, así como también ge: Cambridge University Press, 1984.
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98

Resumen: Este trabajo analiza la función social de la dimensión emocional en el contexto


del conflicto social comunitario, en el ejido El Carmen II, ubicado en Calakmul, Campeche,
México, el cual está habitado por indígenas ch’oles. Se retoma el planteamiento de Arlie
Hochschild, sobre el análisis de tres dimensiones del contexto para comprender el signifi-
cado de la experiencia emocional situada: me refiero a la normativa, la expresiva y la polí-
tica. La autora considera a la dimensión emocional como una construcción sociocultural
que alude a experiencias que proveen de sentido y orientación a los sujetos en el mundo, y
que se encuentran situadas histórica, social y culturalmente. En el artículo se muestra que la
experiencia emocional articula al ser sintiente ch’ol con códigos culturales comunes para
los integrantes del colectivo, generándose una vivencia compartida de los sujetos en el
acontecimiento, y desde el cuerpo. La dimensión emocional se desarrolla en contextos so-
cioculturales, económicos y políticos particulares, donde las condiciones de marginación,
pobreza y desigualdad tienen un papel fundamental. Asimismo, se relaciona con el orden
ético, moral, jurídico y de usos y costumbres de la localidad. Estos elementos construyen
un complejo entramado de relaciones que articulan lo local con lo translocal. Se ha utiliza-
do el método etnográfico para analizar un estudio de caso, a partir del cual es posible identi-
ficar la forma como la dimensión emocional contribuye a la reorganización de la dinámica
local en situaciones de conflicto. Se identifica el papel que tienen emociones como envidia
(ts’alentiel), enojo-coraje (michlel), odio (ts’a k’el), miedo (bʌk’eñ), vergüenza (kisin) o
preocupación-tristeza (pensal) en la construcción de agencias, en tanto las emociones expe-
rimentadas constituyen detonantes de múltiples estrategias que buscan modificar el lugar de
los actores en el espacio social, por lo cual tienen un papel muy relevante en las relaciones
de poder que se escenifican. Palabras clave: desigualdad, envidia, conflicto social, relacio-
nes de poder, ch’oles.

Abstract: This article analyzes the social function of the emotional dimension in the con-
text of a community social conflict, located in El Carmen II, Calakmul, Campeche, Mexico.
This place is inhabited by ch’ol native people. The analysis is made considering the three
dimensional proposal, by Arlie Hochschild, to reach the meaning of the emotional experi-
ence: that is the normative, the expressive and the political. The autor considers the emo-
tional dimension as a sociocultural construction related to experiences that give sense and
orientation to social agents. It is also historically and socioculturally located. The article
shows that emotional experience links ch’ol sentient human beings with commun cultural
codes, generating a shared experience, coming from within the body. The emotional dimen-
sion is developed in specific economical, political and sociocultural contexts, where mar-
ginalization, poverty and inequality have a very important place. It is also related with ethi-
cal, moral and legal local orderings. All these elements build a complex framework of rela-
tionships that joint the local with the translocal issues. The job was developed by the ethno-
graphic method, analyzing one case study. There we can identify how the emotional dimen-
sion contributes to reorganize the local dinamics in conflict situations. Some of the ana-
lyzed emotions are: envy (ts’alentiel), anger-rage (michlel), hatred (ts’a k’el), fear (bʌk’eñ),
shame (kisin) or worry-sadness (pensal). All of them have an important position in setting
up social agencies, since emotions trigger strategies trying to modify the actor’s place in the
social space. Keywords: inequality, social conflicto, envy, ch’oles, power relationships.

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MEDEIROS, Regina de Paula. “As emoções desnaturadas do


sujeito: o bonito, o feio e a arte de viver na sociedade contempo-
rânea”. RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção,
v. 14, n. 40, pp. 100-108, abril de 2015. ISSN 1676-8965

As emoções desnaturadas do sujeito


O bonito, o feio e a arte de viver na sociedade contemporânea *

Regina de Paula Medeiros

Recebido: 10.07.2014
Aprovado: 09.10.2014

Resumo: Este artigo propõe discutir as imagens construídas sobre a beleza em contraposi-
ção a feiura e o diálogo entre a moral e a emoção que expressa de modo singular as formas
de conceber a corporeidade e de formar, deformar e reformar os vínculos sociais. Na se-
gunda metade do sec. 20, o culto ao corpo ganhou uma dimensão impressionante em decor-
rência da mercantilização, da difusão de informações e da supervalorização da imagem. A
mídia cria mensagens sedutoras e sensuais com o objetivo de despertar paixão pela moda,
motivar o consumo de produtos de beleza e de outras mercadorias para minimizar os "in-
cômodos" provocados pelo tempo. Esses dispositivos são arranjos intencionais que visam
conferir ao sujeito a responsabilidade pelo seu próprio corpo, forjando a ideia de autonomia
individual e maleabilidade para recriar, mudar, decidir, alterar e transgredir as possibilida-
des biológicas. Temeroso do fracasso, o sujeito se implica com uma serie de ações obsessi-
vas para manter ou atingir o imaginário contemporâneo ou para afastar e dissimular “defei-
tos” corporais com o objetivo de proteger-se, o indivíduo recorre aos recursos oferecidos
que têm a capacidade performativa e desnaturada de reproduzir a imagem social e a autoi-
magem do sujeito contemporâneo. A regra é o culto ao corpo e o “cuidado de si mesmo”,
cultura narcísica, mecanismo importante no processo de construção das identidades indivi-
dual e social e na definição do estilo de vida cotidiana. Palavras-chave: imagens sociais,
sujeito contemporâneo, corpo

*
Trabalho apresentado no GT 007 Antropologia das Emoções e da Moralidade, durante a 29ª Reunião Brasileira de
Antropologia, Natal, RN, de 03 a 06 de agosto de 2014.

RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 14, n. 40, abril 2015


101

As imagens construídas socialmente so- formas simétricas e proporcionais que ins-


bre a beleza em contraposição a feiura inci- pirava a ordem, a harmonia e a forma de
ta o diálogo ancorado em conceitos morais compreensão do mundo, ou seja, pela per-
e na emoção e são reproduzidas nos discur- feição das medidas. Geralmente o nariz era
sos articulados e nas práticas cotidiana. A desenhado com detalhes e traços finos, os
veiculação dessas imagens interfere na sub- cabelos eram ondulados e bem alinhados e
jetividade e nas interações sociais e, de o perfil era perfeito como Apolo no templo
modo singular, nas formas de conceber a do Delfo. Na idade média, o bonito estava
corporeidade, de formar, deformar e refor- associado à boa alma e ao comportamento
mar os vínculos sociais. devoto, o rosto tinha o aspecto angelical e
Os estudos sobre beleza enquanto uma puro, os olhos recebiam a expressão de
categoria abstrata, materializada no corpo, piedade e os lábios eram finos. Essa ima-
foi preocupação dos diferentes campos de gem simbolizava fragilidade e doçura e
conhecimento científico, além de ter sido ao ausência de desejos carnais como a figura
longo da história uma necessidade inerente de Vênus, de Lucas Cranach. No período do
aos seres humanos de classificar determina- renascimento, o belo era representado pelas
dos padrões sociais. Falar sobre o belo é re- formas roliças com ombros largos, busto
fletir sobre a construção social de uma ima- proeminente e os quadris dilatados e arre-
gem em oposição ao feio, pois tanto a bele- dondados significando a volúpia, a nobreza
za quanto a feiura são propriedades con- e a ostentação alimentícia, que poucos ti-
templativas que só podem ser compreendi- nham acesso, como pode ser observado no
das e comunicadas pela visibilidade da si- quadro As três Graças, de Rubens. No mo-
lhueta, seja por meio do corpo, que segundo dernismo a beleza adquire feição geométri-
Breton (2010) é o lugar privilegiado de ca, as formas tinham um aspecto descontí-
contato com o mundo ou difundida pela nuo e fragmentado, que apresentavam cará-
arte. O corpo é a estética da cultura (forma, ter provocativo e desafiante. Os corpos e os
deforma e reforma) que implica a experiên- rostos eram traçados pelos artistas de ma-
cia sensível dos indivíduos e dos grupos neira que dava idéia de movimentos insti-
sociais. Com efeito, o conceito de belo e de gantes, graciosos e estimulantes muito bem
feio consolidado no corpo só pode ser com- representado pelo quadro Les demoiselles
preendido por uma variedade de concep- d’Avignon, de Pablo Picasso.
ções baseadas nas vivencias, sensibilidades Por fim, na contemporaneidade o belo
coletivas e no sistema de significados cultu- está diretamente relacionado à figura jo-
rais que são fundamentais na interpretação vem, de corpo magro e com a expressão de
de uma realidade social (Geertz, 1989). alegria inabalável, quase mecânica dando a
As representações de beleza e de feiura, impressão de felicidade. Ser feliz é a dis-
que varia de contexto histórico e social, são cursiva central que compõe o cenário con-
edificadas por elementos atribuídos social- temporâneo e a felicidade pode ser traduzi-
mente e se concretizam na relação entre o da na busca obsessiva pela elevação da
sujeito que os adquire e aqueles que o ob- autoestima entendida por meio dos padrões
serva ou com qual ele se relaciona. Portan- de beleza definidos culturalmente. Assim, a
to, compreender esses significados é enten- beleza é a senha para o sucesso profissional
der e indagar sobre a estética, o lugar que e para o reconhecimento social, é a declara-
eles são produzidos, sobre a idéia e a pers- ção de saúde, da realização e do prestígio
pectiva das concepções em um contexto pessoal e a possibilidade do amor e de pra-
específico, é dizer sobre o corpo, espaço e zer.
tempo, é falar da expressão da sensibilidade Na atualidade, a beleza feminina é re-
e da maneira de uma determinada sociedade presentada pela figura da Barbie, um brin-
visualizar o mundo. quedo criado nos Estados Unidos em 1959
A construção do belo e do feio é tão an- que se transformou em uma boneca adoles-
tiga como é a existência do homem, que cente ou adulta, que usa maquiagem e aces-
embora universal, ela varia de contexto sórios, diferente da boneca bebê, que co-
histórico e social. mumente era apreciada pelas crianças. O
Até o século VI a.C o bonito era baseado novo brinquedo ganha destaque entre o
nas ciências exatas e era apresentado em público infantil e persiste ao longo do tem-

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po exatamente pela capacidade de acompa- loirisse, associada à chegada dos imigrantes


nhar as transformações do mundo, dos cos- europeus e o fim da escravatura, passa a ser
tumes e dos valores que exigem flexibilida- fundamental para reforçar os aspectos físi-
de de adequações e inovações no cenário cos marcadores da beleza brasileira, ou seja,
social. O sucesso da boneca pode ser inter- o belo é simbolizado pela pele alva, cabelos
pretado pela a aproximação da figura hu- finos, lisos e loiros e, ao contrario, aqueles
mana como ideal de feminilidade apontado que possuem cabelos anelados e a pele ne-
em uma infinidade de estilos. A Barbie tem gra se aproximavam da categoria dos escra-
família registrada na figura das três irmãs, vos e africanos representando a feiúra
tem um namorado Ken, moderno, atualiza- (Queiroz e Otta, 2000).
do que acompanha a moda, usa os últimos O conceito de beleza não é universal e
estilos de vestimenta, corte de cabelo e nem tão pouco rígido, ao contrário, é abs-
interesses musicais. A Barbie tem fantasias trato e mutável e varia com o discernimento
(Barbie fada), é romântica (apaixonada, coletivo, com o conjunto de significados e
noiva); tem carreira profissional (fisiotera- os aspectos históricos e socioculturais, com
peuta, médica, policial, jogadora de tênis); é as percepções e interpretações sobre si
inteligente e culta, acompanha as artes, mesmo e sobre o contexto social. De toda
cinema e música como exemplo: Barbie forma, a beleza está diretamente relaciona-
crepúsculo, Elvis Presley, entre tantas ou- da com a eterna busca da perfeição, defini-
tras configurações. O ultimo modelo Barbie da por meio de paradigmas sociais, traduzi-
lançado em 2013, trata-se de uma boneca da na possibilidade de aproximação do
careca criada com o objetivo de ajudar as transcendental e do ideal que é solidificado
crianças e adolescentes a lidar com a perda e se expressa no corpo, que, em ultima ins-
dos cabelos ocasionada pelo tratamento de tancia, é a espacialidade visível, manipulá-
câncer a que são submetidos, ou de alopeci- vel e versátil. Na leitura de Mauss (2003),
as de causas diversas que podem provocar “o corpo é o primeiro e o mais natural ins-
esse tipo de problema capilar. Independen- trumento do homem”, pois ele pode ser
temente da configuração da boneca, inclu- transformado “em um objeto a ser moldado,
sive a careca que perdeu sua linda cabeleira modificado, modulado conforme o gosto do
dourada, a Barbie trás sempre uma expres- dia, o corpo se equivale ao homem, no sen-
são de felicidade, é magra, tem os cabelos tido em que, se modificando as aparências,
lisos e louros, alegre, bonita, inteligente, o próprio homem é modificado” (Le Bre-
amiga, companheira, meiga e correta. A- ton, 2010:87). Segundo o autor, o corpo é o
lém de todos esses atributos, a boneca pos- “parceiro” fiel do sujeito, pois é ele que
sui carro, bicicleta, casa, animais domésti- confere sentido a existência humana.
cos, raquete de tênis, sapatos, maquiagens, No campo da antropologia Marcel
roupas variadas e uma infinidade absoluta Mauss inaugurou o estudo das técnicas
de produtos que podem ser encontrados nas corporais entendendo que seria necessário
prateleiras dos diferentes estabelecimentos realizar uma espécie de catálogo sobre os
comerciais. O corpo da Barbie pode e deve modos como os seres humanos, nas varias
ser manipulado, recriado e adaptado ao sociedades e contextos históricos, fazem
contexto social, portanto é flexível ou dócil, uso de seus corpos no cotidiano. Argumenta
na leitura de Foucault, assim como deve ser o autor que é no corpo que se institui a di-
o corpo humano na sociedade contemporâ- cotomia entre a natureza e a cultura, ou
nea. seja, a unidade biológica e a construção
De acordo com os estudos de Freyre social. E é por meio dele que a identidade
(1986) e Schump (1999), o Brasil tem uma cultural é apresentada tornando possível
tendência a supervalorizar a figura feminina compreender os significados simbólicos de
da loira. Explicam que isso se deve à che- uma sociedade. Segundo Helman existem
gada das bonecas de porcelana, de olhos dois corpos: o individual que é o físico e o
azuis e vestidos de seda, importadas dos psicológico-aquele que o sujeito recebe ao
países europeus para as crianças ricas, fi- nascer-e o social, que por meio do qual “a
lhas de personagens com o alto poder aqui- fisiologia do individuo é influenciada e
sitivo, e que passaram a ser um modelo controlada pelos princípios que regem a
ideal de formosura feminina. A brancura e a sociedade em que vive” (Helman, 1994:33).

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O corpo ordena e é ordenado pelo sistema Ainda que essas partes sejam classificadas
simbólico, espiritual, pelo lugar e pelos de acordo com os parâmetros de cada soci-
valores sociais e, ao mesmo tempo, ele é edade, usualmente, o rosto e as mãos são as
alvo da percepção de uma pessoa, de um partes públicas, que exibidas no contato
grupo e uma sociedade. A forma de ex- com o “outro” pode representar um facilita-
pressão gestual, o comportamento, os códi- dor, quando aproxima do ideal de esmero:
gos de comunicação e a maneira de expri- bonito, agradável, meigo, etc. Ao contrário
mir a afetividade e os sentimentos são de- pode ser um dificultador quando distancia
correntes de um processo de socialização do normal e do modelo de perfeição: man-
que varia de uma sociedade a outra dando chado, envelhecido, mal cuidado, nojento e
um caráter singular e local a um contexto gordo que está associado à feiura, à indo-
particular. Assim construída, a maneira de lência e à incapacidade de controlar seus
revelar a lógica social e cultural de dentro e desejos (Schupn, 1999; Giddens 1997; Del
de fora dos próprios grupos se evidencia na Priori 2000). É no rosto onde estão centra-
relação dos homens com o mundo por meio dos os sentidos da visão, audição, olfato e
de rituais de interação e de sociabilidade e, comunicação que permitem o sujeito con-
nesse quesito, o corpo/estética é o elemento cretizar o mundo em que está inserido, de
essencial nas relações humanas. se expor (ser visto) e de testemunhar a exis-
A estética pode ser compreendida como tência do outro (ver). Segundo Breton, “o
uma dramatização sociocultural que implica rosto é, de todas as partes do corpo humano,
a afetividade e a fisiologia e ser interpretada aquela onde se condensam os valores mais
coletivamente, ou seja, é a modelagem in- elevados. Nele cristalizam-se os sentimen-
terna percebida e apropriada pelo indivíduo tos de identidade, estabelece-se o reconhe-
e a externa que afeta o outro que o vê ou cimento do outro, fixam-se as qualidades da
com o qual se relaciona e desperta emoções sedução, identifica-se o sexo, etc.” Conti-
e reações. Exemplificando, um rei a partir nua o autor “ é o lugar mais valorizado, o
do momento em que é coroado, deve se mais solidário do Eu” (Breton, 2010:71).
comportar de acordo com as representações As mãos possibilitam o tocar, aproximar e
que esse lugar social exige, adotar uma distanciar-se de acordo com os interesses e
postura corporal, fazer uso de acessórios e situações cotidianas. Por essas razões, essas
apresentar uma oratória peculiar correspon- mesmas partes são comumente manipuladas
dente à imagem idealizada para o referido para apresentar e representar socialmente
personagem. Além disso, cabe ao rei incor- imagens positivas, para ocultar imperfei-
porar os atributos a ele concedidos, não só ções e para comunicação sobre a posição
pelo exercício do poder, mas pela licitude social a que o individuo se situa, como e-
que um líder deve ter. Nesse caso, um des- xemplo, as maquilagens, botox, joias, cirur-
lize das normativas sociais pode provocar gias, acessórios, manicures, etc. Ademais, o
uma reação coletiva para exigir do rei uma rosto e as mãos protegem as partes internas
conduta correspondente ao personagem que ou privadas que, de acordo com os padrões
ele representa e ao status social a ele confe- culturais, não devem ser exibidas publica-
rido. Assim, a legitimidade do reinado é mente. Essas mesmas partes, exatamente
um processo individual e ao mesmo tempo por estarem expostas e serem importantes
coletivo que implica necessariamente a na interação social, devem receber um cui-
interação social adequada aos padrões cul- dado especial, particularmente no que con-
turais particulares. Nesse caso, a imagem do cerne à pele, para exibir o aspecto agradá-
rei construída subjetiva e socialmente é vel, bonito, higiênico e funcional. Assim, a
anunciada pelo corpo ou por partes visíveis pele passa a ser um elemento fundamental
dele de acordo com o que ele pretende pro- quanto à proteção das partes internas, na
pagar desde o lugar em que está inserido. estética, na imagem construída, no toque
Segundo Helman (1994), o corpo é dividido com o corpo do outro, na sensibilidade e na
em partes internas (invisíveis e privadas) e constituição de uma barreira simbólica nas
externas (visíveis e públicas) e isso tem interações e na aproximação ou distancia-
uma influencia capital na forma de interpre- mento do “outro”. Clastres (1988), em seus
tar a estrutura orgânica, sua funcionalidade estudos sobre as sociedades primitivas,
e a construção das imagens em torno delas. explica que a pele funciona como um sinal

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a ser considerado enquanto um marcador cirúrgicas, motivada pela fantasia de uma


simbólico importante para a compreensão vida melhor e mais alongada de juventude e
de uma coletividade. Por exemplo, em de- de beleza, comumente utilizada, funciona
terminadas sociedades, certos rituais de como máscaras e, na leitura de Campbell
passagem ou de iniciação da vida adulta, a (1997), pode também ocultar o estado cons-
pele é marcada com faca ou com pedra para tante de tensão e romper com a impessoali-
demonstrar que aquele sujeito está apto para dade social tão característica da sociedade
viver em sociedade, ser considerado cida- atual.
dão ou casar-se. Em outras sociedades, Na segunda metade do sec. 20, o culto
quando uma pessoa transgride alguma nor- ao corpo em favor da beleza ganhou uma
ma social é torturada e em sua pele é im- dimensão impressionante em decorrência da
presso um símbolo identificador do desvio mercantilização, da difusão de informações
ou infração cometido. Foucault (1987) em e da supervalorização da imagem. Nesse
seus estudos ressalta que a tortura inclui a cenário, a mídia, como veículo de mensa-
marcação com ferro quente ou com brasa na gens ideológicas, cria narrativas sedutoras e
pele dos condenados, para impedi-los de sensuais com o objetivo de despertar paixão
fugir e para dar visibilidade social ao perigo pela moda, motivar o consumo de produtos
que eles representam. de beleza, de cirurgias plásticas, de fre-
De todas as formas, as marcas na pele quência às academias de gi-nástica, as ati-
são uma espécie de inscrição de regulamen- vidades esportivas, o uso de maquiagens,
to que sinaliza o desvio ou classifica as tatuagens, os regimes rigorosos de emagre-
pessoas definitivamente como um estorvo cimento, o uso de aparelhos ortodônticos,
ao esquecimento de determinada ação ou os cílios e unhas postiças, as próteses dentá-
comportamento. Nessa perspectiva, a pele rias, o controle obsessivo do peso e o uso
é uma espécie de envelope de correspon- de medicação para os mais variados “incô-
dência enviada a outrem que, ao mesmo modos”. É notável também o consumo de
tempo em que esconde ou protege uma uma infinidade de produtos diet e light exis-
intimidade, comunica algo ao seu receptor. tentes nos mercados, da moda efêmera para
Então, a pele é um fato moral, uma máscara os gostos flexíveis, roupas de marcas e eti-
que segundo Mauss pode “significar pesso- quetas importantes para a classificação das
a, mas pode ser também personagem que pessoas e dos lugares sociais. Todos esses
cada um é ou gostaria de ser. A máscara dispositivos são arranjos construídos pelas
acrescenta o sentido moral ao sentido jurí- mensagens midiáticas com a intenção de
dico do direito, de ser consciente, indepen- conferir ao sujeito a responsabilidade pelo
dente, autônomo, livre e responsável" seu próprio corpo, por sua beleza, juventude
(2003). e saúde, forjando a idéia de autonomia indi-
Nos estudos de Lévi Strauss (1981) so- vidual e maleabilidade para recriar, mudar,
bre os índios norte americanos da Costa do decidir, alterar e transgredir as possibilida-
Pacífico, é realçado o uso das máscaras e os des biológicas. Como único encarregado,
mitos a elas associados. Para o autor, a quando o individuo não tem sucesso em
máscara esconde o rosto real do sujeito seus empreendimentos pessoais, experimen-
imobilizando a forma, a expressão das e- ta sentimentos de vergonha de si mesmo,
moções, do sentido dado e das representa- incompetência, humilhação, aflição ou sen-
ções sociais. O fato de escolher a máscara timento de culpa. Temeroso, ele se implica
escolhe também o personagem, o caráter e a com uma serie de ações obsessivas para
simbolização, assim é uma ação consciente. manter ou atingir um imaginário contempo-
O uso da “máscara” ou de uma alegoria não râneo ou para afastar e dissimular “defei-
quer dizer que a pessoa quer apagar-se, tos” corporais que podem comprometer sua
desaparecer, ao contrario, quer afastar da imagem ou distanciar - se do ideal de beleza
sua normalidade, da natureza e deseja mos- que são ancorados nos seguintes parâme-
trar-se ou aproximar-se do “normal”, ou tros: 1) - de magreza que, na atualidade,
seja, quer desnaturalizar as emoções para pode ser concretizada por meio da lipoaspi-
facilitar a visibilidade e o pertencimento. ração, intervenções cirúrgicas, aplicação de
Na contemporaneidade a prática consumi- produtos e clínicas de massagens; 2) - de
dora de produtos variados e de intervenções beleza facilmente solucionada por meio de

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uma parafernália de mecanismos de apoio vos exclui determinados grupos e classes


às “incorreções” físicas naturais ou produ- sociais que não dispõe de posses suficientes
zidas pelo tempo ou pelo uso abusivo de para se incluir e participar desse processo.
uma lista infinita de produtos farmacêuti- Então a autonomia expressa nas referidas
cos; 3) - de juventude eterna aparada no uso narrativas como, por exemplo, “Hoje só é
de dispositivos técnicos que podem ocultar feio quem quer”; “Reconheça como quem
ou fazer desaparecer especialmente as mar- tem cuidado de si mesmo e mude suas ati-
car temporais como, por exemplo, o botox, tudes”, ou apoiados na discursiva da felici-
as atividades esportivas, academias e a ali- dade associada ao auto cuidado “Ser feliz é
mentação; 4) - de saúde traduzida na dispo- cuidar de si mesmo” entre tantas outras, fun-
sição e ânimo para qualquer tipo de atração, cionam como verdadeiro manual composto de
exercícios físicos, viagens e trabalho. Nesse dicas e truques sobre os modelos, marcas,
quesito é considerável o uso de estoque de estilo e cores mais adequados para determi-
antidepressivos, reposição hormonal, vita- nados tipos de corpo, especialmente para
minas e os estimulantes; 5) - da forma física disfarçar as formas ou deformações naturais
delineada de acordo com o ideal desenhado e acercando ao autoconhecimento, o controle
de um corpo sarado, com os músculos à das ações e, simultaneamente, dando a ideia de
mostra e com baixo teor de gordura, obtido democratização da saúde, da juventude e do
por uma sucessão de variados tipos de re- deleite a que todas as pessoas podem e devem
gimes, uso de produtos dietéticos e anaboli- desfrutar. O auto cuidado passa a ser um dever
zantes, 6) - de virilidade apresentado nos moral que associa a beleza, a obrigação e o prazer
modelos muito bem divulgados nos diferen- e pode ser traduzido na presença e na centralida-
tes programas de televisão e propagandas de do próprio sujeito destacando e retroalimen-
difundidas, motivando o uso especialmente tando a autonomia que fica comprometida
de medicação como, por exemplo, o Viagra, quando colocado em questão o que é ser
os hormônios, implante de silicones e estra- autônomo, em relação a que, diante de que
tégias similares. Esses parâmetros são em- e em que contexto específico. Ser autônomo
pregados pela indústria cultural do corpo a implica uma ação coletiva e relacional co-
fim de criar um padrão único de estética mo explica Castoriadis (1991). Para o autor,
infligindo ao homem o dever para consigo a autonomia é a capacidade de apropriação
mesmo. pela refletividade sobre a experiência de
O culto ao corpo e o “cuidado de si sujeitos e a habilidade para transformá-la a
mesmo” pode ser interpretado como cultura partir de projetos coletivos construídos
narcísica (Lasch 1979) e passa a ser um eticamente. Castoriadis ressalta que uma
mecanismo importante no processo de sociedade autônoma é aquela que, a partir
construção das identidades individual e da participação coletiva, elabora questões,
social e para definir o estilo de vida urbano toma decisões, cria e define códigos norma-
e contemporâneo. Nesse contexto, o corpo tivos e regras de conduta, construindo assim
que não tem boa forma, o gordo, sujo, com uma espécie de gramática cultural, com
os cabelos sem tintura, desalinhados e o base nos sistemas de significados e na lógi-
rosto sem maquiagem inspira a imagem de ca particular de cada grupo. Na perspectiva
debilidade, do feio, descuidado, deprimido, contemporânea, de maneira especial quando
é um símbolo de falência moral e vulgar. se refere à beleza, a autonomia não está
Assim, o corpo que consome e que é con- inscrita na ação coletiva, ao contrário, o
sumido tem um valor simbólico, biológico, autônomo é relacionado à capacidade de um
social e emocional/psi-cológico na raciona- indivíduo se manter independente e único
lidade pós-moderna. em relação ao mundo exterior e, como tal, é
O cuidado de si na ditadura contempo- capaz de negar a humanidade e produzir
rânea da beleza e da felicidade implica ne- certa transfiguração de si mesmo, enquanto
cessariamente um investimento financeiro prerrogativa do autoconhecimento e do
para o consumo de to-dos os dispositivos controle de seu corpo em busca da beleza,
necessários e disponíveis para atingir o não da beleza natural ou espiritual, mas do
ideal imaginário. Embora as mensagens belo fabricado de acordo com os padrões
midiáticas sejam divulgadas indiscrimina- culturais. É uma condição, dever e obriga-
damente, o acesso aos inúmeros dispositi- ção cuidar e ocupar-se de si com autoridade

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para desenhar sua própria imagem confor- FREYRE, Gilberto. Modos de homem, mo-
mada às representações simbólicas. Segun- das de mulher. Rio de Janeiro: Record,
do Featherstone (1992) a cultura do consu- 1986.
mo prende-se a uma concepção autopreser-
GEERTZ, Clifford. A interpretação das
vacionista que encoraja as pessoas incorpo-
culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1989
rar estratégias para combater o desgaste
natural do corpo. Ser autônomo é um exer- GIDDENS, Antony. Modernidade e identi-
cício de solidão, de aprisionamento em si dade pessoal. Oeiras: Celta, 1997
mesmo, é uma liberdade constrangida e
GOLDENBERG, MIRIAN. Nu E Vesti-
maquiada que dá contorno à individualida-
de obsessiva afastada da idéia da coletivi- do. Rio de Janeiro: Record, 2003.
dade. Nesse contexto, a beleza e as emo- HELMAN, Cecil. Cultura, saúde e doença.
ções que se transformou na impossibilidade Porto Alegre: Artes Medicas, 1994.
de comunicar-se e reconhecer o outro é
retroalimentada nas narrativas que visam LASCH, Christopher. The culture of nar-
cissism. Nova York: WW Vorton, 1979.
subsidiar uma pratica social com intencio-
nalidade de reproduzir padrões baseados no LE BRETON, David. A sociologia do cor-
mito contemporâneo do consumo. po. Petrópolis: Vozes, 2010
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imaginária da sociedade. Rio de Janeiro:
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Tirésias: corpo, pessoa e as metamorfoses
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de gênero. Texto apresentado na Mesa Re-
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RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 14, n. 40, abril 2015


108

Abstract: This article aims to discuss the images constructed on beauty versus ugliness.
Also discusses the dialogue between morality and emotion that expresses the ways of
conceiving corporeal, and its form, deform and reform of social bonds. In the second half of
sec. 20, the cult of the body gained an impressive dimension due to the commercialization,
diffusion of informations and the overvaluation of the image. The media creates seductive
and sensual messages in order to awaken passion for fashion, motivating the consumption
of beauty products and other goods to minimize "nuisance" caused by time. These devices
are intentional arrangements that endow subject responsibility for your own body, forging
the idea of individual autonomy and flexibility to recreate, change, decide, change and
break the biological possibilities. Fearful of failure, the subject is implied with a series of
obsessive actions to maintain or achieve contemporary imagery or to remove and conceal
"defects" body. To protect yourself, the individual uses the resources offered to have the
performative and denatured ability to play social image and self-image of the contemporary
subject. The rule is the cult of the body and the "care of yourself" is the narcissistic culture,
an important mechanism in the construction of individual and social identities and the
process to define the style of everyday social life. Keywords: social images, contemporary
individual, body

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SENNA, Alecrides Jahne Raquel Castelo Branco de. “Um


número no Lager: Um estudo sobre a literatura da Shoah”.
RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 14, n.
40, pp. 110-117, abril de 2015. ISSN 1676-8965

Um número no Lager
Um estudo sobre a literatura da Shoah

Alecrides Jahne Raquel Castelo Branco de Senna

Recebido: 08.08.2014
Aprovado: 09.10.2014

Resumo: O presente artigo é parte de uma pesquisa de doutorado que está sendo realizada,
sobre a literatura da Shoah (para alguns, literatura do Holocausto). Foram selecionados al-
guns relatos para um primeiro momento: os de Primo Levi e Chil Rajchman, sobreviventes
de Auschwitz e Treblinka, respectivamente. A leitura é feita sob a luz do pensamento Ben-
jaminiano, tendo como referência a discussão de Georg Otte sobre os conceitos de citação e
rememoração, de Walter Benjamin. O ponto em discussão na leitura apresentado no artigo é
o significado do nome/alma para o judeu, sob o prisma do judaísmo chassídico e no que is-
so implica quando se trata do numero atribuído aos prisioneiros no Lager. Palavras-chave:
literatura da Shoah, sobreviventes de Auschwitz e Treblinka, Walter Benjamin, pensamento
chassídico, sociologia

O que significou para o judeu a substitu- O autor mobilizado para dissipar um


ição do nome pelo número no Lager? Com pouco e melhorar a visibilidade – nos pri-
uma pergunta aparentemente simplória, meiros passos - foi Seligmann-Silva (sobre
pretende-se adentrar no significado do no- a classificação da literatura). Márcio Selig-
me e a alma e sua relação, no contexto do mann-Silva (2007), em um interessante
judaísmo – olhando em especial para o artigo “Literatura da Shoah no Brasil”, dis-
movimento chassídico; trilhando, para isso, tingue dois grupos dessa literatura, que ele
o caminho que levou alguns sobreviventes chamou de primária e secundária. Entre os
do gueto aos campos de concentração e, que sobreviveram e os que contam os rela-
pensar sociologicamente como se operou tos dos sobreviventes, ele classifica os esti-
essa fragmentação do ponto de vista do los principais: relatos e narrativas com teor
indivíduo. literário. Aquelas se detêm em descrever os
A primeira leitura consultada, de um fatos, sem se preocupar com um estilo ou
texto referente à literatura da Shoah, foi O mesmo com alguma ordem cronológica,
pianista de Wladislaw Szpilman (2008). havendo mesmo muitas repetições; o se-
Em seguida, o texto de Chil Rajchman Tre- gundo procura dar ao relato uma caracterís-
blinka: Eu sou o último judeu (2010). Esses tica literária, a fim de deixar os fatos mais
livros e alguns artigos levaram aos textos de compreensíveis ao leitor.
Primo Levi Se isto é um homem, Os afoga- Entre os livros citados por Seligmann-
dos e os sobreviventes e A trégua, mais Silva (2007), preocupações semelhantes às
tarde também aos quadrinhos de Art Spie- dos relatos selecionados para o projeto,
gelman, Maus (2009). Logo após, vieram também se fazem presentes. Lembrar aque-
outros autores, entre eles Janusz Korczak les que morreram e honrar sua lembrança
com Diário do Gueto, citado por Szpilman através do testemunho é uma delas – é o
em seu livro. pedido de muitos que morrem, que aquele
fato não seja esquecido. Os sobreviventes

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escrevem seus relatos, dentre os muitos mo- Entretanto, ao contrário das preocupa-
tivos, para tirar um peso de si, para memó- ções de Levi em entender o que foi o La-
ria dos que morreram, para que o fato não ger 63, a maioria dos textos que tive contato
seja esquecido e não se repita. Este é o caso até o presente momento apontam apenas
da literatura primária, ou seja, escrita pelos para uma atitude de ‘desabafo’. É o caso de
sobreviventes de próprio punho – e após a Chil Rajchman (2010). Os sobreviventes
Segunda Guerra Mundial. apenas pretendem compartilhar suas experi-
As narrativas da Shoah trazem algumas ências para que ‘isso não se repita’ – que
questões essenciais. Como usar uma lin- aparece com bastante frequência, e que
guagem que favoreça um entendimento lembra a expressão de Theodor Adorno:
mútuo, que seja inteligível para aqueles que “para que Auschwitz não se repita” (2003).
não vivenciaram aquela situação fora do Levi não se conforma em apenas contar, ele
comum? Como imaginar o inimaginável? analisa, questiona, argumenta. É dele o
Narrar seria admitir a realidade daquilo que desabafo em “Se isto é um homem” (2010):
parecia irreal, quando vivido. Como diz
Já nada nos pertence: tiraram-nos a
Márcio Seligmann-Silva (2008): “Veremos
roupa, os sapatos, até os cabelos; se
que o testemunho de certo modo só existe
falarmos não nos escutarão, e se nos
sob o signo de seu colapso e de sua impos-
escutassem não nos perceberiam. Ti-
sibilidade” (p.67). E mais: “O trauma en-
rar-nos-ão também o nome: se qui-
contra na imaginação um meio para a sua
sermos conservá-lo, teremos de en-
narração.” (p. 70).
contrar dentro de nós a força para o
Segundo Primo Levi (2010b) ao se ve-
fazer, fazer com que, por trás do no-
rem livres, eles estavam afoitos para contar
me, algo de nós, de nós tal como é-
às pessoas o que havia ocorrido. Entretanto,
ramos, ainda sobreviva. (p. 25-6)
ressalta que aquele pesadelo tão recorrente
no cativeiro, era agora confrontado: as pes- A narração de Vladek Spiegelman no li-
soas não queriam ouvir. Uma situação em vro publicado em 1987 por Art Spiegelman,
que o próprio narrador questiona-se da ve- sob o título “Maus” (2009), possui um tre-
racidade de seu testemunho. É um dos mo- cho significativo para citar aqui, por estar
tivos pelo qual o trabalho de Levi é bastante relacionado à questão do nome e número:
estudado. Em Os afogados e os sobreviven- enquanto chora, sentando a um canto, Vla-
tes (2004), ele admite que muita coisa pode dek é abordado por outro prisioneiro, um
rever, desde o seu primeiro livro Se isto é padre. O padre pede para ver o número em
um homem (2010), memórias que o Lager seu braço: 175. 113 e lhe faz observações:
havia acinzentado. começa com dezessete e é um ótimo pres-
Primo Levi fala de uma necessidade de ságio; acaba com treze, quando os meninos
falar, de narrar, de exteriorizar suas memó- judeus se tornam homens, e, a soma dá
rias, como uma forma de exorcizar o seu dezoito, que em hebraico é “Chai”, que
passado. Mas, como diz Seligmann-Silva quer dizer vida. O padre não tinha certeza
“Na situação testemunhal o tempo passado quanto a si mesmo, mas Vladek certamente
é o tempo presente [...] Mais especifica- sairia vivo dali. A partir de então, sempre
mente, o trauma é caracterizado por ser uma que passava por dificuldades no Lager, Vla-
memória de um passado que não passa.” dek olhava para o número e sentia-se ani-
(2008, p. 69). Silenciar seria a melhor op- mado. O número adquire um significado
ção? Esquecer é superar, deixar para trás? específico: é uma promessa de vida (p.118).
Para este autor, não seria o caso: Em todas as narrativas utilizadas na
construção desse projeto, há uma preocupa-
A linearidade da narrativa, suas re-
ção dos autores com a numeração dos prisi-
petições, a construção de metáforas,
tudo trabalha no sentido de dar esta
nova dimensão aos fatos antes enter- 63
Lager (Konzentrationslager) será utilizado ao
rados. Conquistar essa nova dimen- longo do texto desse projeto para fazer jus à
são equivale a conseguir sair da posi- literatura de Primo Levi – pois, não sei se por
ção de sobrevivente e voltar à vida. causa da tradução, a expressão não aparece no
(Seligmann-Silva, 2008, p.69) livro de Chil Rajchman e nem do de Art Spie-
gelman.

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oneiros. É um incômodo que aparenta ser econômico, os campos de concentra-


maior para uns do que para outros. E não é ção existem principalmente para si
apenas um motivo de eficiência administra- mesmos. (idem, p.495)
tiva – como pode ser visto no texto de Ed-
Há também a questão religiosa que al-
win Black (2001), ou um plano maquiavéli-
guns apontam, e, uma, em especial, que se
co para desumanizar os prisioneiros (Levi,
destaca inicialmente como o centro do pro-
2010). É algo muito mais profundo, como
jeto inicial: o nome para o judeu. Em que a
aparece na citação de Primo Levi. A partir
substituição do nome pelo número afetou o
dessas narrativas, no que diz respeito à
judeu nos campos de extermínio nazistas?
substituição do nome por um número nos
O que significa “ser humano”? Ser indiví-
campos de concentração, pode-se elaborar
duo, pertencer a Israel? – estas perguntas se
uma compreensão? Ou mais especificamen-
agregam, quando muitos deixam de acredi-
te: o que significou para esse sobrevivente
tar no Deus de Israel, o que aparece em
judeu a imposição desse número?
muitos relatos.
E mais: qual a importância do próprio
A reza pelos mortos possui algumas re-
nome para o judeu? É preciso entrar um
gras específicas, entre elas a citação do
pouco no que diz o judaísmo sobre a alma e
nome do falecido no serviço religioso na
os ritos relacionados à atribuição dos no-
Sinagoga, e o morticínio em massa nos
mes. Em alguns relatos já observados, a
campos de extermínio coloca em ameaça a
numeração dos prisioneiros em detrimento
identificação dos mortos, em que a recupe-
do uso do nome é vista como uma ofensa à
ração do nome e local de morte ou sepulta-
alma, à individualidade da pessoa. Enten-
mento das vítimas torna-se quase impossí-
dendo ainda, que o judeu que não se apre-
vel. A reza pela alma dos parentes falecidos
senta como religioso é conhecedor do juda-
torna-se praticamente inviável. Na Shoah,
ísmo. O religioso citado aqui é aquele que
milhares de judeus foram para valas co-
se ocupa em seguir todos os ritos judaicos.
muns – e, antes disso, tiveram seus nomes e
No contexto do Lager, a capacidade de
identidades suprimidos.
compreensão de Primo Levi identifica uma
Nachman Falbel (2001), em seu livro
lógica própria do sistema, admitindo não se
Kiddush HaShem: crônicas hebraicas sobre
tratar de um absurdo, de uma irracionalida-
as cruzadas, também analisa, resumida-
de. Entretanto, a sensação ainda é de que
mente, essa questão do nome no Holocausto
tudo foi um pesadelo. Nas palavras de Han-
e diz que, para os judeus: “o desejo de lutar
nah Arendt, em Origens do Totalitarismo
contra a morte anônima, a morte sem “no-
(2000):
me”, permanece como um elemento de
Não há paralelos para comparar com longa duração em sua história” (Falbel,
algo a vida nos campos de concentra- 2001, p.19). E como aconteceu na Idade
ção. O seu horror não pode ser intei- Média, as carroças carregadas de corpos
ramente alcançado pela imaginação para ser enterradas em valas comuns, tam-
justamente por situar-se fora da vida bém foi uma imagem recorrente na Shoah.
e da morte. Jamais pode ser inteira- O que me faz lembrar a observação de Pri-
mente narrado, justamente porque o mo Levi, no início do seu livro “Se isto é
sobrevivente retorna ao mundo dos um Homem”: “A história dos campos de
vivos, o que lhe torna impossível a- extermínio deveria ser interpretada por
creditar completamente em suas ex- todos como um sinal sinistro de perigo.”
periências passadas. (p.494) (2010, p.09).
Neste segundo momento, a intenção é
Entretanto, com suas devidas reservas,
adentrar aos relatos, percorrendo com estes
como nos mostra Arendt:
as questões propriamente ditas. Sua forma-
Como instituição, o campo de con- tação ainda está sendo pensada, mas a ideia
centração não foi criado em nome da inicial é promover um diálogo intertextos a
produtividade; a única função eco- partir de citações com base nos temas a ser
nômica permanente do campo é o fi- discutidos na tese. Walter Benjamin (2012)
nanciamento dos seus próprios su- apresenta algumas concepções que se mos-
pervisores; assim, do ponto de vista tram interessantes para essa reflexão. Como

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a preocupação era pensar a questão da his- retirar significados e explicações, mas, fa-
tória oficial, e, para além desta, como os zer uma nova leitura que remeta a um apro-
relatos fazem parte (ou, possam fazer parte) fundamento sobre as questões referente à
de uma história da Shoah. alma e o nome no judaísmo.
Afinal não existe uma história única, Do ponto de vista de uma leitura basea-
mas várias – e, como foi dito anteriormente, da na fenomenologia bachelardiana, pode-
como grupo (s) os judeus contam suas pró- se realizar um exercício que proponha uma
prias visões do fato (eu diria mesmo, dos compreensão dos elementos significativos
fatos). Os relatos são partes constituintes de das narrativas. Repercussão e Ressonância,
histórias, de um mesmo período cronológi- apresentados por Gaston Bachelard em A
co, localizadas nas circunvizinhanças uns poética do espaço (2008) é um par concei-
dos outros. Diz Benjamin: “Articular histo- tual que dá conta desse aspecto, conside-
ricamente o passado não significa reco- rando a leitura do pesquisador; não significa
nhecê-lo “tal como ele foi”. Significa apo- um “entrar na mente do outro”, mas enxer-
derar-se de uma recordação (Erinnerung) gar o que é significativo para aquele que lê.
quando ele surge como um clarão num Por isso a repercussão é o que desce às
momento de perigo.” (2012, p. 11). São profundezas (do leitor) e as ressonâncias
estes momentos que interessam nesse mo- refletem em vários aspectos da consciência
mento, o momento do clarão. (daquele que lê).
Para isso, é preciso pensar os relatos Ao ter em mente que parte-se de um lu-
com um conceito de história e abri-los em gar específico do presente, tanto deles, os
paralelo, deixar que falem por si, para, jun- autores, quanto do pesquisador, é mister a
tamente com a teoria, pensar os fios de construção de um meio para realizar tal
Ariadne que ligam essas histórias. Pois, elas análise. Assim, é que o desafio proposto na
estão interligadas não só por versarem sobre disciplina supracitada retira do comodismo
a Shoah enquanto acontecimento culmi- e do adiamento o pesquisador em questão e
nante de um planejamento estratégico da a elaboração inevitavelmente necessária
Alemanha Nazista. É preciso pensar o que desse instrumento de estudo.
os liga, seja nas questões que discutem se- Segundo Otte (1996), em suas teses so-
jam religiosas, as próprias angústias huma- bre a história, Benjamin aponta que “Citar é
nas, o sentimento de pertencer a essa huma- rememorar o passado a partir do ponto de
nidade. E como diz Benjamin: “O cronista, vista específico de um determinado presen-
que narra os acontecimentos em cadeia, te” (p. 211). Assumindo, assim, uma posi-
sem distinguir entre grandes e pequenos, ção em relação a um passado que não é
faz jus à verdade, na medida em que nada apenas um fato numa linha cronológica,
de que uma vez aconteceu pode ser dado mas também é espaço, olhar para trás a
como perdido para a história.” (2004, p.10) partir do presente, com uma visão específi-
ca determinada pelo esforço da construção
Os fios de Ariadne do objeto de pesquisa.
O presente artigo encontra-se em um A Eingedenken significa “um lembrar”.
momento de busca por um estilo discursi- Mas não se trata de um lembrar qualquer,
vo-analítico para a construção da tese de ela carrega consigo uma ideia bem específi-
doutorado. Para a escrita deste texto, tem-se ca sobre tempo, sobre presente e passado. É
em mente a discussão de Georg Otte reanimar o passado relacionando-o ao pre-
(1996), sobre citação e rememoração em sente. E como esta poderia estar relacionada
Walter Benjamin64. O que se propõe não é à citação? Porque a visão do passado se
apresenta de acordo com uma visão do pre-
64
Algumas discussões realizadas no âmbito das sente. É um olhar para trás, de um lugar
disciplinas na academia, trouxeram uma preo- bem definido.
cupação latente para a incorporação no projeto
de pesquisa, que é o cuidado de não produzir Contrariando as aparências, a reme-
um “explicacionismo” dos relatos – que seria, moração não é um procedimento
dentro dos avanços atuais, dizer que na religião conservador no sentido de uma pre-
judaica (no Chassidismo, especificamente), servação do passado, uma vez que
estão as justificativas para as preocupações dos não existe um ‘passado em si’, mas
sobreviventes.

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apenas um passado visto com os o- nome aquilo que liga o judeu ao Israel de
lhos do presente. (Otte, 1996, p.214) Deus, que diz quem ele é, de onde veio, que
designa seu futuro enquanto futuro de Isra-
Uma citação se apresenta como um
el. A sua personalidade anteriormente defi-
momento e ela surge por estar relacionada o
nida pela força do nome escolhido pelos
texto não de forma explícita. A citação per-
pais, sob a inspiração divina, diz o Rabino
feita é aquela que produz um choque, que
Zushe Wilhelm (2009). O nome que rece-
parece produzir uma ruptura no correr do
beu, é registrado pertencendo eternamente a
texto, mas, ao levar o leitor até a fonte ori-
essa pessoa.
ginal, há então uma revelação das ligações
Existem raras exceções em que o nome
entre ambos. Entretanto, “a citação não se
pode ser modificado, como é o caso de uma
limita à repetição literal de algum fragmen-
doença grave, com o risco de morte. Um
to, mas ‘chama’, via metonímia, todo o
nome é acrescentado ao original, o que
texto de origem do qual foi extraído”
implica uma “espécie de mudança de iden-
(p.218), não sendo necessária uma re-
tidade do paciente” (Wilhelm, 2009, p. X).
construção do texto de origem. Assemelha-
Os filhos podem receber os nomes de pa-
se muito ao estilo utilizado por Bachelard,
rentes já falecidos65, mas alguns costumes
(o chamado “Bachelard noturno”) em suas
impedem de que os filhos recebam nomes
obras sobre os devaneios poéticos. Ele a-
de parentes vivos – o que diminuiria o tem-
presenta pequenos trechos dos poemas ao
po de vida destes.
discorrer e apresentar suas imagens poéti-
O rabino Zushe Wilhelm (2009) ainda
cas, não apresentando, para isso, o poema
acrescenta:
por completo.
Não que os relatos serão tratados como Os sefarim sagrados afirmam que o
poemas, mas como fragmentos do passado, nome pelo qual a pessoa é chamada
mas a metodologia bachelardiana aponta constitui sua alma e sua força vital.
para esse elemento de imobilização, pensa- Isso significa que, enquanto reside no
do em Walter Benjamin. Encontrar o signi- corpo a alma infunde vida nele por
ficado não implica numa construção ou meio do nome, ou seja, mediante
reconstrução dos fatos de forma linear, mas uma combinação correta das letras do
que possuam significado em si – em cada nome. (p.XI)
construção, de cada fato. A citação seria o
Existem longas explicações sobre a im-
momento de imobilização dessa idéia, fa-
portância mística do nome judaico, especi-
zendo com que este tome fôlego, uma força
almente no Tanya. O que não caberia aqui,
significativa, ampliando-se á luz da consci-
evidentemente66. Pode-se observar, entre-
ência presente. Uma explosão do continuum
tanto, que se trata de um elemento funda-
(Otte, 2010, p. 50).
mental dentro do universo simbólico do
Assim, os fios que ligam os relatos, es-
judaísmo, pois, quando se trata da pessoa,
tão sendo ligados, lentamente. Primo Levi
“O nome pelo qual ela é chamada é o reci-
diz, em Se isto é um homem:
piente que contém a força vital condensada
Já nada nos pertence: tiraram-nos a inerente às letras do nome” (idem, p.XI).
roupa, os sapatos, até os cabelos; se O nome é, também por esse motivo,
falarmos não nos escutarão, e se nos fundamental nos rituais fúnebres. O Kaddi-
escutassem não nos perceberiam. Ti- sh deve ser rezado referindo-se ao nome
rar-nos-ão também o nome: se qui- dos falecidos. Seus nomes são citados nos
sermos conservá-lo, teremos de en- serviços das sinagogas e as preces são reali-
contrar dentro de nós a força para o zadas67.
fazer, fazer com que, por trás do no-
me, algo de nós, de nós tal como é- 65
Um costume de judeus Ashkenazi. São duas
ramos, ainda sobreviva. (2010, p. 25- orientações das tradições: Ashkenazi e Sefaradi,
6) que estão relacionadas às origens europeia e
oriental, respectivamente.
Mas, qual a importância desse nome? 66
E com as quais também não estou familiariza-
Que se conservado há de manter o indiví- da.
67
duo ancorado, seguro de si mesmo? Seria o O que parece é que se faz necessário acrescen-
tar uma reflexão sobre os ritos fúnebres no juda-

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Mas, por que rezar o Kaddish? Chil Raj- FALBEL, Nachman. Kidush HaShem: crô-
chman (2010): nicas hebraicas sobre as Cruzadas. São
Paulo: Edusp; Imprensa Oficial do Estado,
A quem se dirige sua prece? Ainda
2001.
crêem? Em quê? A quem agradecem
por isso? Vocês louvam o Senhor por FRANKL, Viktor Emil. Em busca de senti-
Sua clemência, vocês O louvam por do: um psicólogo no campo de concentra-
lhes terem tomado irmãos e irmãs, ção. 31ed. São Leopoldo, Sinodal; Petrópo-
pais e mães. (2010, p.47) lis, Vozes, 2008.
Louvar a Deus pela morte dos entes que- KOLATCH, Alfred J. Livro judaico dos
ridos? Agradecer ao Eterno pelas agruras de porquês. 3ed. Vol. 1. São Paulo: Editora
ser roubado, espoliado, agredido? Agrade- Sêfer, 2001.
cer mesmo sem poder realizar os rituais
KORCZAK, Janusz. Diário do Gueto. São
fúnebres, sem poder enterrar de forma dig-
Paulo: Perspectiva (Coleção ELOS – 44),
na os seus mortos. Ver os corpos serem
1986.
cremados, sendo isso proibido pela Lei68,
quando os corpos deveriam retornar à terra LEVI, Primo. Os afogados e os sobrevi-
de forma natural (Kolatch, 2001, p.53). ventes: os delitos, os castigos, as penas, as
impunidades. 2ed. São Paulo, Paz e Terra,
Pouco a pouco o silêncio prevalece, e
2004.
então, da minha cama, no terceiro
andar, vê-se e ouve-se que o velho LEVI, Primo. Se isto é um Homem. 8ed.
Kuhn reza, em voz alta, com o boné Lisboa, Editorial Teorema, 2010a.
na cabeça e abanando o corpo com LEVI, Primo. A trégua. São Paulo, Compa-
violência. Kuhn agradece a Deus por nhia das Letras, 2010b.
não ter sido escolhido (...). Se eu fos-
se Deus, cuspiria para o chão a ora- OTTE, Georg. Rememoração e citação em
ção de Kuhn. (Levi, 2010, pp.133-4) Walter Benjamin. Revista de Estudos de
Literatura, v.4, p. 211-223, Outubro, 1996.
Ficamos de pé, curvados e cinzen-
tos... (idem, p.153) OTTE, Georg. Natureza e História em Wal-
ter Benjamin. Revista eletrônica Literatura
Bibliografia e Autoritarismo. Pp. 40-51, 2010.
ADORNO, Theodor W. Educação após RAJCHMAN, Chil. Eu sou o último judeu:
Auschwitz. In: Educação e Emancipação. Treblinka (1942-1943). Rio de Janeiro:
3ed. São Paulo: Paz e Terra, 2003. Zahar, 2010.
ARENDT, Hannah. Origens do Totali- SELIGMANN-SILVA, Márcio. Auschwitz:
tarismo. São Paulo, Companhia das Letras, história e memória. Revista Pro-Posições,
2000. v. 01, nº 05 (32), p. 78-87, 2000.
BACHELARD, Gaston. A poética do Espa- SELIGMANN-SILVA, Márcio. Narrar o
ço. 2ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008. trauma: a questão dos testemunhos de catás-
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de trofes históricas. Revista de Psicologia Clí-
História. IN: O anjo da história. Or- nica, vol. 20, n.1, p. 65-82, 2008.
ganização e tradução de João Barrento. SELIGMANN-SILVA, Márcio. História,
Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012. Memória, Literatura – o Testemunho na
BLACK, Edwin. IBM e o Holocausto. 2ed. Era das Catástrofes. Campinas: Editora
Rio de Janeiro, Editora Campus, 2001. Unicamp, 2003.
SELIGMANN-SILVA, Márcio. Teste-
munho e a política da memória: o tempo
depois das catástrofes. Revista Proj. Histó-
ísmo. E, igualmente, o que se diz sobre o desti-
ria, (30), p. 71-98, Junho de 2005.
no da alma. Sobre isso, existem boas informa-
ções, mas incipientes, no livro de Alfred Kolat- SELIGMANN-SILVA, Márcio. Literatura
ch “O livro judaico dos Porquês”. da Shoah no Brasil. Arquivo Maaravi. Re-
68
Lei rabínica.

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116

vista de Estudos Judaicos da UFMG, v.1, n


1, outubro, 2007.
RABINOWICZ, Harry. Chassidismo, o
Movimento e seus mestres. Rio de Janeiro:
A. Koogan, 1990.
SPIEGELMAN, Art, Maus: a história de
um sobrevivente. São Paulo: Companhia
das Letras, 2009.
SZPILMAN, Wladyslaw. O Pianista. 2ed.
Rio de Janeiro: BestBolso, 2008.
TAVARES, Enéias Farias. Literatura de
testemunho no primeiro volume de Maus,
de Art Spiegelman: a impossibilidade da
narrativa factual. Revista Eletrônica Litera-
tura e Autoritarismo, n. 14, Julho-Dez de
2009.
WILHELM, Rabino. Nomes. Tradução de
Claudia Caon. São Paulo: Editora Lubavit-
ch. (Ziv HaShemot), 2009.

RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 14, n. 40, abril de 2015


117

Abstract: The following study constitutes the preliminary results of an ongoing doctoral
research on the literature of the Shoah ("Holocaust Literature", for some). Some witness
narratives/reports were, at first, selected: Primo Levi's and Chil Rajchman's, survivals of
Auschwitz and Treblinka, respectively. The texts are read in the light of the Benjaminian
thought and Georg Otte's discussion on the concepts of citation and remembering coined by
Walter Benjamin. The main argument in the following readings is the meaning of
name/soul for the jewish people, in the Hasidic perspective, and what the number assigned
to each prisoner in Lager implies. Keywords: literature of the Shoah, survivals of Ausch-
witz and Treblinka, Walter Benjamin, thought Hasidic, sociology

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118

MARTINEZ, Fabiana Jordão. “A noção de pessoa na moda e


na publicidade: fronteiras, embates e dilemas morais”. RBSE –
Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 14, n. 40, pp.
118-135, abril de 2015. ISSN 1676-8965

A noção de pessoa na moda e na publicidade


Fronteiras, embates e dilemas morais*

Fabiana Jordão Martinez

Recebido: 14.09.2014
Aprovado: 06.10.2014

Resumo: Este paper trata dos processos ontológicos de constituição da pessoa no universo
da moda e da publicidade. Retomando questões sobre noção de pessoa nas Ciências Soci-
ais, utiliza os dados de uma pesquisa etnográfica concluída em 2009 sobre a construção de
gênero entre modelos profissionais na cidade de São Paulo. Neste universo, a subjetividade
se exerce a duras penas, pois se inscreve no dilema de constituir-se como sujeito em campo
marcado por embates morais, pela objetificação de gênero e pelo esvaziamento quase total
da subjetividade. Nele, a categoria de pessoa comporta significados múltiplos que deslizam
por vias diferentes e opostas. Na doxa do campo, a “boa modelo” é aquela que sabe “ser vá-
rias”, termo que alude a capacidade profissional e ao potencial performático de projetar i-
magens e incorporar personagens. Também diz respeito à forma com que cada modelo in-
corpora as regras do campo e nele aprende a diferenciar-se enquanto “produto”. Por outro
lado, este projeto de plasticidade segue incorporado a outro, diametralmente oposto: o pro-
jeto de unicidade. A ele corresponde o projeto de tornar-se, ou de continuar sendo “uma só
pessoa”, ou, de “ser várias, sem perder a personalidade”, e, sobretudo, de “encontrar-se”
neste labirinto de imagens e prescrições. Entre modelos, isso só se torna possível quando
consegue separar a pessoa da personagem, a mulher da modelo. Decorre disso que o mundo
dos afetos (a saber, a intimidade, a sexualidade, a família e a domesticidade) é um contra-
ponto necessário à sobrevivência psíquica; é por assim dizer, o substrato da “alma” e da
condição de pessoa. Esta ontologia remete a necessidade de uma cisão entre um mundo pú-
blico e outro privado em um universo onde a feminilidade só se constrói de forma pública,
através das imagens e dos olhares de Outro impessoal, espectador/ consumidor. Embora se
trate de um contexto muito especifico, é possível afirmar que, em plena era de “ficcionali-
zação do real” (AUGÉ, 1998) e de instabilidade do eu (JAMESON, 1991; LE BRETON,
2003; BUTLER, 2003), as reflexões que ora se apresentam, interseccionam duas importan-
tes reflexões das Ciências Sociais, a saber a categoria de pessoa e a questão da objetificação
feminina, que certamente podem contribuir com os debates da agenda dos estudos de gêne-
ro, das formas de subjetividade, da moralidade, das emoções e da categoria de pessoa na
contemporaneidade. Palavras-chave: noção de pessoa, gênero, consumo

*
Trabalho apresentado no GT 007 - Antropologia das Emoções e da Moralidade, durante a 29ª Reunião Brasileira de
Antropologia, Natal, RN, 03 a 06 de agosto de 2014.

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Introdução tropológica) vem se empenhando há um


bom tempo em produzir esta noção de pes-
A noção de pessoa sempre constituiu um soa enquanto realidade, sem se dar conta
importante objeto de analise antropológico. que na prática o que emerge em diversos
Esta discussão, unanimemente costuma ser outros campos epistemológicos (psicanáli-
situada no trabalho pioneiro de Marcel se, filosofia, ciências naturais) tem sido
Mauss de 1938 (1979), que traça a historia uma concepção diversa desta, “um ser divi-
social das categorias do espírito humano dido em elementos, cuja síntese coloca um
acerca das concepções da individualidade.
problema” (GOLDMAN, 1999: p.28).
Ele possui caráter relativista quando situa a Mas nos últimos tempos, e mais preci-
noção de pessoa ocidental de caráter racio-
samente, desde os trabalhos de Foucault
nal, monádico e autônomo como uma das sobre modos de subjetivação, observa-se
muitas variações das representações sociais certo recrudescimento desta concepção
em torno do individuo humano (GOLD- cartesiana dos sujeitos. As teorias pós-
MAN,1999). estruturalistas que cada vez mais tem insis-
A discussão adquire consistência ao lon- tido no caráter fantasioso de um “centro
go das quatro linhas teóricas da disciplina, interno”, ou, de uma essência interior como
sendo geralmente balizada pela preocupa- definidor da pessoa (FOUCAULT, 1984;
ção em compreender como diferentes soci-
HALL, 1995; BUTLER, 2003). Nesta pers-
edades e grupos representariam a individua- pectiva, mais que cristalizações unificadas
lidade. Assim, o funcionalismo, representa-
estáveis, as culturas e suas significações
do em autores como Lévy Bruhl e Lee- sociais (de gênero, sexualidade, raça, etnia,
nhardt, seguiria os passos de Mauss, anali-
classe social) investem diretamente nos
sando as variações empíricas das noções de corpos e ganham sentido socialmente. As-
pessoa e enquadrando-as em moldes mais
sim, toda e qualquer separação de níveis é
ou menos evolutivos. O estruturalismo, negada e dissolvida. O corpo então aparece
representado na figura de Louis Dumont,
como um arcabouço para os processos de
teceria uma crítica à universalidade da no- subjetivação. Assim, a constituição do ser
ção de individuo opondo-o a sistemas tradi-
humano, como um tipo específico de sujei-
cionais holistas. Na vertente culturalista, os to, subjetivado de determinada maneira, só
esforços se concentrariam em postular uma
é possível pelo "caminho" do corpo. No
realidade infraestrutural em torno da qual as limite, estas vertentes defendem que não
culturas trabalhariam de formas variáveis
existe nada de pré-discursivo ou substanci-
produzindo diferentes tipos de “perso- al: tudo desde sempre são efeitos de práti-
nalidade”. E, por fim, no estruturalismo cas linguísticas e reguladoras; inclusive
britânico Radclife-Brown diferenciaria o noções de corpo, sexo e de interioridade
individuo e a pessoa entre os aspectos bio- (BUTLER, 2003).
lógicos de um lado, e de outro, a existência Esta mudança provocaria um produtivo
social humana. (Idem) deslocamento nas teorizações sobre a noção
Mas embora o tema sempre tenha sido de pessoa, que ao invés de captar a substan-
tão obviamente importante para os antropó-
cia de ideologias englobantes, empreendem
logos, costuma-se esquecer da enorme uma analítica dos processos imanentes às
quantidade de problemas que se ocultam praticas múltiplas (GOLDMAN, 1999). Ao
atrás de sua simplicidade. Parte destes pro- deslocar a noção de pessoa para processos e
blemas residiria na crença que os antropó- modos de subjetivação, é possível compre-
logos depositam no par individu- ender que os sujeitos se constituem de di-
o/sociedade, que produziria uma falsa sepa- versas formas nas mais variadas esferas,
ração entre dimensões físicas, psíquicas, e
saberes e práticas sociais - loucura, delin-
sociais na analises das noções de pessoa. quência, sexualidade – e, portanto, são rela-
Deve-se atentar, contudo, que tudo isso não tivos e se formam no contexto de poder em
passa de um conjunto de representações que que estão inseridos. Nesta constituição sem
suprem uma ambição totalizante da disci- duvida está em jogo a linguagem, uma
plina, ao mesmo tempo em que tornam tais “consciência” e deliberações morais. Mas
analises reféns de uma universalidade limi- menos que o reflexo de algo exterior, a
tante. A sociedade ocidental (e a teoria an-
interioridade aparece como um espaço de

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elaboração de forças extrínsecas, onde leis e gênero e subjetividade entre modelos pro-
ficções reguladoras são incorporadas, resul- fissionais na cidade de São Paulo69. Em
tando em corpos que as expressam por meio primeiro lugar, descrevo a noção de pessoa
deles. As leis se manifestam como essência neste campo enquanto sujeito ético e estéti-
do eu e nunca aparecem como externas aos co do consumo para em seguida analisar os
corpos que sujeita e subjetiva. modos de subjetivação que inscrevem e
No entanto, o fato de sabermos que a in- sustentam esta noção. Neste modo de subje-
terioridade se elabora através da inscrição tivação toda interioridade é elaborada e
corporal, não retira o caráter deificante destinada a ser projetada para fora, inscre-
(enquanto ficção reguladora) das represen- vendo-se nas superfícies corporais e demar-
tações cartesianas em nossos processos de cando os sujeitos como imagens singulares
subjetivação, seja nas noções de interiori- em seu campo. Chamo este processo de
dade, ou nas formas com que os sujeitos estetização do eu, seu produto de personali-
vivenciam suas experiências e dão sentido a dade-imagem. Por fim, mostro que os sujei-
elas. Em determinados contextos é a noção tos, longe de serem meios passivos a espera
de ser uno e indivisível, instituído a partir de significações, atuam, negociam e resis-
de um “centro” sentido como essencial e tem a estes processos criando estratégias de
autêntico, que institui um sentido de pessoa. manutenção de si.
O universo da moda e da publicidade é
um espaço exemplar deste tipo de ambiva- A noção de pessoa na moda e na pu-
lência. Nele, os processos de inscrição de blicidade: sujeitos estéticos do con-
corpos descritos por Foucault (1984) são sumo.
orientados por práticas e discursos que de- O rosto da modelo brasileira Mi-
notam uma noção de pessoa extrínseca, no chelle Alves virou a tradução exata
sentido estrito das acepções pós- para Cinema, o novíssimo perfume
estruturalistas. Mas neste campo, enquanto de Yves Saint Laurent que, depois de
as pessoas são fabricadas de modo a se meses de segredo, vem a público em
constituírem enquanto sujeitos estéticos e breve. Michelle é a estrela absoluta
éticos e do consumo, ou mais propriamente, do lançamento da nova fragrância, e
superfícies onde as significações sociais do nesse caso, tira proveito de uma vir-
consumo são inscritas, controladas e exteri- tude que vários de seus admiradores
orizadas, emerge daí, extremamente vigoro- eventualmente verbalizam. “Dizem
sa, a noção de pessoa cartesiana ocidental que tenho alguma coisa de Ava
como um foco de resistência, estabilidade e Gardner, de Catherine Hepburn, do
coerência do sentido do eu. Neste universo, glamour e do look dos anos 40, 50”.
a produção social dos sujeitos é demarcada Importantíssimo lembrar aqui: im-
por uma doxa que prescreve um projeto de provável uma época, qualquer que
plasticidade e multiplicidade em que a “boa seja, na qual a beleza, o carisma, a
modelo” deve saber “ser várias”, aludindo doçura e uma atitude naturalmente
ao potencial performático de projetar ima- elegante como as de Michelle passas-
gens e incorporar personagens, e a incorpo- sem despercebidos. Imensos e bri-
ração das regras do campo. Ao lado deste lhantes olhos verdes, ela tem aquele
projeto, há embates morais constitutivos da carisma que se confunde com natura-
profissão, como objetificação de gênero. lidade pura e simples. [...] Michelle,
Por outro lado, este projeto de plasticidade que vive em Nova York, também a-
segue incorporado a outro, diametralmente bala a temporada fashion americana
oposto: o projeto de unicidade. A ele cor- com outras campanhas importantes:
responde o projeto de tornar-se, ou de con- está na nova de Ralph Lauren (para a
tinuar sendo “uma só pessoa”, ou, de “ser linha Black label) e na da Gap, cli-
várias, sem perder a personalidade”, e, so-
bretudo, de “encontrar-se” neste labirinto de 69
Martinez, Fabiana J. De menina a modelo, entre
imagens e prescrições. modelos e meninas: gênero, imagens e experiência.
Neste paper, analiso estes processos on- Tese defendida no Programa Doutorado em Ciências
tológicos utilizando os dados de uma pes- Sociais do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
UNICAMP.
quisa etnográfica concluída em 2009 sobre

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cada por Peter Lindenberg. No Bra- bildade entre sua imagem e os produtos que
sil, é a cover Girl da Zoomp nesta representa. Sujeito estético do consumo
temporada. (“Michelle”, Vogue, no mediando produtos e consumidores, a figu-
314, 2004). ra da modelo emerge nas referências a um
“estilo de ser e viver” que conota elementos
Apesar de ser uma celebridade no
diversos: características físicas, como “os
mundo da moda, a modelo Fernanda
olhos verdes de Michele Alves”; traços de
Tavares, 24 anos, se mostra uma jo-
caráter, como a “simplicidade e discrição de
vem simples e discreta. Ela não pisa
Fernanda Tavares”; virtudes que conotam
numa passarela por menos de 80 mil
modos de ser (seja a “atitude naturalmente
reais. Já desfilou para algumas grifes
elegante” de Michele Alves” ou a “sensua-
mais famosas do mundo, como Va-
lidade vulcânica” de Adriana Lima); vestu-
lentino e Dior e foi estrela de campa-
ário; lugares por onde transitam, ou ainda,
nhas publicitárias de grandes marcas,
relacionamentos afetivos. Neste processo,
como Dolce e Gabbana, Louis Vitton
se estabelece uma simbiose em que um
e Versace. Além disso, já apareceu
“estilo” balizado pelas referencias de pes-
na capa de mais de 50 publicações ao
soa se transfigura na estética do produto.
redor do mundo, entre elas as badala-
Por isso, o perfume Cinema é intrínseco as
das edições européias de Vogue, Ma-
referências cinematográficas da imagem de
rie Claire e GQ. E há cerca de quatro
Michelle Alves (sua suposta semelhança
anos é um dos rostos da marca de
entre ela e as divas do cinema francês e
cosméticos L´Oreal, da qual é em-
hollywoodiano); a “sensualidade vulcânica”
baixatriz internacional. (“Boa Moça”,
de Adriana Lima se conjuga com a reno-
Contigo, n. 1538, 2005).
mada grife de lingeries Victoria´s Secret; e
Ela é explosiva, uma bomba, um vul- através de uma interessante metonímia,
cão que anda. A sensualidade repleta Fernanda Tavares se torna um dos “rostos
de predicados da soteropolitana A- da marca de cosméticos L´Oreal”.
driana Lima é o cartão de visitas dela A modelo só se torna concebível através
na moda e tem um preço bem alto. Só dos produtos que representa. Sua “persona-
de Victoria´s Secret, para quem foto- lidade”, estilo e corpo são concebidos de
grafa de lingerie toda semana, esti- forma intrínseca às marcas e vice-versa.
ma-se que ela receba U$ 3 milhões Esta vinculação se assenta na idéia, bastante
por ano. Outros dois contratos milio- vigorosa neste campo, de que modelos são
nários _ TIM e Maybeline, uma das análogas a mercadorias. Assim um manual
maiores companhias de cosméticos _ da carreira de modelo a define:
praticamente ocupam o restante da
“Conforme-se, você é um produto.
agenda da modelo e completam seus
Claro, em diferentes escalas, todos
rendimentos. [...] Adriana passa o
nós somos. Mas uma modelo é, antes
maior tempo entre Nova York, Itália
de mais nada e acima de tudo, uma
e Paris. Na capital francesa, comprou
mercadoria. E aqui vai a primeira e
um apartamento recentemente, na a-
provavelmente a mais valiosa das li-
venida mais chique, a Champs-
ções: você é exatamente igual a calça
Elysées. Assim, está mais próxima do
jeans exposta na arara da loja. Você
namorado, o príncipe Wenzeslaus, de
será observada, avaliada, julgada e
Liechtenstein, que mora na França,
talvez, escolhida. Uma vez entendido
da Dior e da Chanel. (“As 10 mode-
o conceito, você terá dado um gi-
los mais bem pagas do Brasil”. Isto É
gantesco passo em direção ao su-
Gente. 4 de julho de 2005).
cesso.” (PASCOLATO & LACOM-
BE, 2003: p.17)
Embora estas narrativas sobre modelos
consagradas em seu campo provenham de A força desta analogia reside no papel
fontes variáveis, costumam manter uma das imagens em nossa cultura e na posição
estrutura semelhante. Nelas, o renome é que a modelo ocupa nos processos de
edificado através das grifes às quais a mo- (re)produção das mesmas. Sistema de signi-
delo se liga, criando assim uma indissocia- ficação da economia por excelência, as

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imagens representaram um novo modo de volta para o seu “devir imagem”, na relação
circulação das mercadorias e uma nova profunda entre o significante _ sua materia-
forma de consumo. Segundo Jameson lidade enquanto ser, nas palavras de Fou-
(1996), já não consumiríamos somente bens cault, a matéria investida (corpo, alma,
em sua forma material, mas também servi- vontade) _ e os significados que se trans-
ços, espetáculos e imagens, estas últimas, a formam em imagens. A exemplo do que
forma final da reificação da mercadoria70. A ocorre com os bens, sua produção social é
apropriação da modelo como mercadoria em primeira instância um processo de “esti-
não é um processo literal, nem metafórico, lização das superfícies”: ela deve possuir
mas uma operação de transcodificação em um “estilo”, um rótulo arranjado através de
que ela é considerada fonte potencial de características que lhe conferem singulari-
imagens para o consumo. dade tornando-a uma “personagem”, porta-
Inscrita nesta profunda relação entre su- dora de uma “marca”71.
jeitos, imagens e produtos, a fabricação da
Em primeiro lugar temos que identi-
pessoa no campo da moda e da publicidade
ficar que tipo de imagem a gente po-
congrega dois componentes fundamentais: a
de projetar; qual é a característica da
corporalidade e um “devir imagem”. É a-
modelo e trabalhar em cima disso em
través do significante material e corpóreo
nível de imagem. O que é isso? Cor-
que a modelo será apropriada e classificada
tar o cabelo dela de acordo com o
para se tornar efetivamente uma imagem.
que a gente acha melhor, fazer teste
Entram nesta avaliação seu biótipo, traços
fotográfico para ela entender como é
físicos, idade, sexo, composição gestual e
que funciona sua imagem. Montar o
postural. Através do corpo ela é compreen-
book. Aí você montou o book de a-
dida enquanto “devir imagem”: uma “tela
cordo com o ideal pra imagem dela,
em branco” em que serão inscritas e veicu-
que isso também pode ser mudado.
ladas as marcas do consumo através da
Você tenta com isso, aí você começa
gama de estereótipos que ela poderá repre-
apresentar, você vai mostrando como
sentar em fotografias, desfiles ou vídeos.
é que funciona essa coisa da imagem,
Seu corpo é geralmente modificado con-
da identidade, do profissionalismo,
forme prescrevem os agentes de modelos:
tal. Daí você começa introduzi-la no
poderá ter o cabelo cortado ou tingido, fazer
mercado; fazer um trabalho de apre-
alguma cirurgia corretiva (orelhas de abano,
sentação dela pra vários clientes. Aí
dentes), deverá mudar seus hábitos alimen-
você começa ter um retorno: “a essa
tares, sua rotina e, via de regra, terá de e-
menina é feia”; “essa menina não tem
magrecer _ a obrigação de chegar aos no-
nada a ver”; “é horrorosa”. Aí você
venta centímetros de quadril geralmente faz
começa a ter o retorno e vai fazer um
com que a grande maioria tenha que perder
feedback em cima disso. Vamos in-
peso. Neste processo, olhar do campo se
sistir e ver o que está errado. Vamos
fazer uma foto assim, assado, vamos
70
Esta relevância atribuída às formas midiáticas en- mudar isso, vamos mudar aquilo e
quanto elemento estruturante do atual estágio do você vai insistindo até acertar a mão.
capitalismo tem sido analisado e descrito na Teoria (J. diretor de agência.)
Social Contemporanea como parte da “modernidade
tardia” (GIDDENS, 1991), ou “pós-modernidade” A lógica que rege o pensamento de um
(JAMESON, 1996). Jameson (1996), apoiado nas agente de modelos e de todos os envolvidos
análises de Guy Debord, acredita que passamos para na produção de imagens é a mesma do bri-
uma “nova era” a partir dos anos 60, quando a produ-
ção da cultura tornou se integrada a produção de coleur (Lévi-Strauss, 2003). Ele examina o
mercadorias, promovendo a publicidade como a “arte
71
oficial do capitalismo”. Também estas análises tem se Baudrillard (1968) denomina o processo de singula-
empenhado em descrever e compreender a constitui- rização de diferenciação marginal, que pressupõe
ção subjetiva em meio a este contexto, reforçando o produção em massa padronizada sempre causando a
caráter instável das identidades contemporâneas, bem impressão de singularidade através de uma diferença
como seus componentes paródicos e imitativos. mínima. Tal processo fundamentalmente consiste em
(JAMESON,1991; LE BRETON,2003; BUTLER, combinar as possíveis variáveis de um modelo pri-
2003) mordial dando origem a séries de “produtos únicos”
por um valor marginal (BAUDRILLARD,1968).

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conjunto de utensílios e materiais que pos- dade onde a organização dos laços, percep-
sui e tenta organizá-lo em função daquela ções, subjetividades e processos identitários
tarefa. Como o bricoleur, os agentes de mo- se dão através do consumo de imagens e
delos recebem um instrumental dado de mercadorias. A realidade cotidiana seria
fora dos saberes em nossa sociedade. Como imbuída da repetição seriada de imagens e
tal, coleciona mensagens anteriormente substituída pelo espetáculo e pela evocação
transmitidas e as incorpora na estrutura que de signos estocados no “museu imaginário”
pretendem formar: a cena de um filme de da cultura (Jameson, 1986).
cinema, uma fotografia de moda, a imagem Neste novo modo de funcionamento
de uma obra-de-arte, uma idéia extraída da subjetivo emergiria uma noção de pessoa
história ou da antropologia, um pedaço da moldável e instável gerada a partir das de-
teoria física das cores, imagens de outros terminações do consumo que se investem
anúncios, uma experiência pessoal colhida nas superfícies corporais. Resultado de um
ao acaso, uma coleção de estereótipos rela- processo de estetização do mundo e valori-
cionados ao público consumidor, a vivência zação das superfícies, esta noção de pessoa
do dia-a-dia, fragmentos de biográficos e se constitui no seio de uma sociedade cada
traços pessoais . Tudo enfim se presta ao vez mais definida pelo consumo, pelo ano-
bricoleur para compor um conjunto (ou, aos nimato e pela valorização da família nuclear
produtores de moda e publicitários para (EWEN, 1988; BENJAMIN,1985; SEN-
compor um anuncio).A característica da NET,1999). Destacado dos laços que o
bricolagem é não ter projeto próprio; ser unem ás relações comunitárias, ao indivi-
composto de restos, resíduos e sobras que duo restaria apenas a aparência externa
se somam e se aglomeram esperando a o- como forma de apresentação de si e prerro-
portunidade de uso (LÉVI-STRAUSS, gativa para uma “definição pessoal” na
2003). esfera pública.
Assim, quando a top model alemã Clau- Então, embora estejamos falando de um
dia Schiffer começou a despontar na mídia, processo generalizado em nossa sociedade,
foi considerada uma “nova Brigitte Bardot”, este novo regime de subjetividade e a con-
da mesma maneira como a atriz e ex- cepção de pessoa que daí emerge, se apli-
modelo Maria Fernanda Candido foi consi- cam com mais radicalidade ao campo aqui
derada a “nova Sofia Loren” 72. Certa ocasi- analisado. A transposição é praticamente
ão de minha pesquisa, um agente de mode- literal. Da concepção de noção de pessoa,
los ao elaborar uma noticia sobre uma de cuja “alma” ou substância é configurada por
suas modelos, associou o fato da mesma ter “sobre o corpo” e mais através da lin-
participado de um videoclipe veiculando guagem do que através de um sentido de
uma imagem sexy, e de ser ruiva e muito “interioridade” (Butler, 2003; Foucault,
branca, para rotula-la de “deusa viking”. 1984; Jameson, 1986), se acomoda em uma
Diversos teóricos tem se debruçado so- concepção que vê a modelo como um pro-
bre os modos de subjetivação e sobre um duto dotado de uma imagem, pessoa plásti-
novo imaginário social ambos respaldados ca e estética, enfeixada pelas superfícies
pelo consumo e pelas imagens. Para Marc corporais, as quais são investidas pelas
Augé (1998) estamos em meio a “ficciona- imagens e objetos do mundo que as rodeia.
lização do real”, regime de subjetividade Uma noção de pessoa, cuja “alma” ou subs-
em que nossas formas de identificação com tância é configurada por “sobre o corpo”,
as imagens deixam de ser balizadas por através da linguagem do que através de um
mitos e imagens religiosas e passam a ser sentido de “interioridade”.
substituídos pela ficção. Menos que uma Esta noção de pessoa tem como objetivo
simples relação entre imagem e espectador, a produção de um sujeito estético e perso-
tratar-se-ia de um processo geral de sociali- nalizado através das superfícies corporais.
Chamo este processo de estetização do eu.
72
Ambas as reportagens apareceram em momentos Na pratica, seu principal objetivo, que é
diferentes no programa Global “Fantástico”. Mas há também seu efeito, é a produção de um
também diversas reportagens em revistas sobre estas “duplo” da modelo, idêntico ao seu nome e
associações. Sobre Maria Fernanda Candido, veja “A ao seu corpo, que chamo de personalidade
nossa Loren” http://migre.me/jE1Vt. Sobre Claudia
Schiffer, veja em http://migre.me/jE2aq.
imagem. Como vimos, ele se produz através

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de uma bricolagem que aciona a produção Estetização do eu: personalidade e


de um rótulo marcador da pessoa, um dife- atitude como valores.
rencial forjado através de marcas visuais e
de pequenos fragmentos narrativos: carac- Gostaria de tratar agora das praticas e
terísticas físicas, condicionamentos, frag- discursos que sustentam esta noção de pes-
mentos biográficos, atividades cotidianas, soa, ou, em termos foucaultianos, o modo
hobbies, atitudes, modos de ser e sentir. de investimento e a incidência destas prati-
Mas na realidade, a estes referentes supos- cas sobre os sujeitos e corpos, que se tradu-
tamente estáveis, serão sobrepostos outros. zem em um conjunto de prescrições éticas,
Porque nos discursos do campo, o que re- disposições morais, demandando uma estru-
almente define uma “boa modelo” é o seu tura de sentimento especifica.
devir imagem, inscrito na capacidade em se Este modo de investimento se funda em
ajustar de acordo com as lentes do fotógrafo psicologismo social prosaico, que em quase
ou do conceito do estilista; basta pedir e a nada se distancia dos Best Sellers e manuais
“boa modelo” deverá saber extrair de si a de autoajuda contemporâneos75. Porque de
imagem solicitada. É isso o que permite que modo geral tais discursos se expressam
a modelo possa atuar em várias campanhas através de um arranjo de virtudes genéricas
ao mesmo tempo sem se repetir. Sobre uma consideradas desejáveis em nossa socieda-
sessão de fotos de biquíni para a revista de: profissionalismo, aquisição de conheci-
Vogue, em que teve que ficar com uma cor mento, versatilidade, educação, segurança,
bronzeada, Gisele Bündchen disse: “Respi- perseverança, atitude e personalidade. Em-
rei, virei mulata”73. Através desta ironia, a bora todos estes itens sejam importantes na
top model condensa o ideal da “boa mode- compreensão deste modo de subjetivação (e
lo”, que, sem esforço, se transforma em os manuais de modelos esmiúçam em deta-
outra completamente diferente diante das lhes cada um deles), por uma questão de
lentes74. recorte, me atenho aos componentes que em
Então, existe em primeiro lugar, a per- nossa sociedade sinalizam mais propri-
sonalidade imagem, isto é, a narrativa plural amente a noção de pessoa. Trata-se de um
que será repetida a seu respeito: uma “ruiva conjunto de disposições duráveis que enfei-
sexy”, uma “morena clássica”, uma “loira xam a noção de habitus de Bourdieu, que o
gostosa”, uma “menininha moderna”, uma define como sendo uma coleção de práticas,
negra que está “explodindo no mercado experimentada como “natural”, pois prece-
fashion da Itália”. Em segundo lugar, existe de a consciência do indivíduo enquanto ser-
a imagem que corresponde às “expectativas no-mundo. O habitus antecede o individuo
do cliente”, isto é, o estereótipo imaginado porque é exercido de forma coercitiva sobre
(a “vamp”, a colegial ou a balzaquiana so- as consciências e tende a ser incorporado
fisticada). E, por fim, as imagens resultan- progressivamente durante sua vida. Na pra-
tes deste entrecruzamento de expectativas, tica, entrariam neste arranjo os valores mais
concretizadas na produção final de um tra- 75
balho. Para esta análise, me utilizei largamente de trechos
de entrevistas de profissionais de agências e de ma-
nuais especializados direcionados a candidatas a
modelos novatas. O primeiro deles, intitulado “Guia
da new face” tem circulação restrita, sendo entregue
apenas a modelos do sexo feminino quando ingres-
73 sam em uma das agências pesquisadas. O segundo,
Vogue Brasil n° 318. Edição especial de Aniversá-
rio: “Gisele dez, Vogue Brasil, trinta!”, 2005. publicado em 2003, foi escrito por Constanza Pasco-
74 latto, empresária do ramo de tecelagem, que se tornou
Gisele é considerada uma das melhores modelos do
mundo porque “vende” tudo: de celulares a calças renomada consultora de moda, atuando em revistas
jeans, de biquínis a roupas de grifes renomadas. E brasileiras como Claudia, da Editora Abril e a Vogue.
vende tudo porque sabe ser várias sem perder o éllan O terceiro e último, publicado em 2006, foi escrito
que a distingue das outras: é sempre Gisele Bünd- por Claudia Liz, conhecida top model na década de
chen, a modelo que se tornou conhecida por suas 90 e que também me concedeu uma extensa entrevis-
espessas madeixas e pelo ideal de um corpo aparen- ta durante a pesquisa. Os discursos presentes nestes
temente mais saudável e curvilíneo em detrimento ao manuais concernem a um campo de significação
de suas colegas dos anos 90 Gisele se tornou conhe- compartilhado oferecendo uma narrativa pública
cida e consagrada após sair na capa da revista Vogue sobre “o modelo de sucesso” _ termo que é parte do
America junto a outras top models e ter sido aclama- título de um deles.
da pelo fotógrafo Steven Meisel como “O Corpo”.

RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 14, n. 40, abril 2015


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citados de forma quase unanime nos discur- define por noções mais cristalizadas e fixas
sos sobre a “boa modelo”: versatilidade, sobre o si, que servem como referenciais de
personalidade e atitude. Estes dois últimos base para a pessoa ao longo do tempo e
aparecem ora como sinônimos, ora subsu- daquilo que pensa sobre si mesma. Seriam
midos um ao outro. os “traços de caráter”, indicativos de recor-
rência no tempo. É “o conjunto das marcas
Personalidade e atitude são os gran-
distintivas que permitem reidentificar um
des diferenciais. É a personalidade
indivíduo humano como o mesmo” (RICO-
diante das câmeras, diante dos clien-
EUR,1991:p. 144).
tes, dos desfiles. Hoje não basta ser
Contudo, como foi tratado, a personali-
só bonitinha, linda. Se você for ver a
dade se define como “personalidade ima-
linda, é melhor um trabalho bem am-
gem” e diz respeito a um conjunto de ele-
plo que forme uma personalidade for-
mentos performativos que se estendem às
te, determinada que projete alguma
superfícies corporais, designando sua mar-
emoção em quem esta usando disso.
ca. Neste processo, elementos definidos
A gente trabalha com coisas sólidas,
como referenciais de permanência, (caráter
não com a modelo. A modelo é uma
e atributos corporais) se subsumem ao
projeção de um ideal que na verdade
caráter plástico das representações sobre
não existe. Ela cria esse ideal, só que
quem os sujeitos são ou devem ser/ parecer,
o consumidor se veja identificado
ou mesmo á capacidade com estes manipu-
com o que ela está anunciando. No
lam seus atributos (ou permitem que eles
dia-a-dia, ela tem que saber se vender
sejam manipulados).
como imagem. A modelo é a relações
públicas dela. A gente pode fazer até Muitas vezes você vai mudando, re-
um ponto, mas chega um momento ciclando. Tem casos muito interes-
em que o cliente vai ter uma entrevis- santes onde você vai mudando não
ta com o modelo, ele vê o book da só a imagem da menina, mas a ati-
modelo, mas também vê a imagem tude dela. Essa menina, por exemplo,
que ela está transmitindo e a atitude a [...] é extremamente inteligente; ho-
que ela está transmitindo. Toda mo- je ela está se dando muito bem. E ela
delo tem que ter uma personalidade e tinha um negócio: ela era muito clás-
uma atitude. Estas vão ser utilizadas sica, extremamente clássica. E nesse
para quem esta usando os serviços business da moda, o clássico não
dela pra reforçar ou pra ressaltar al- funciona. Então a gente teve que tirar
guma coisa. Cada modelo é cada mo- essa coisa do clássico dela pra ela
delo; cada uma tem uma personalida- começar a funcionar. Hoje ela apren-
de. Nunca você vai encontrar uma deu, já sabe lidar com isso, quebrar
igual à outra. Porque mesmo que elas esse clássico, ser mais fashion. E se
sejam gêmeas, cada uma vai ter uma deu super bem em função das mu-
personalidade. É inerente ao ser hu- danças que ela fez. Mas teve sempre
mano. O importante é que isso seja alguém falando. Porque a cabeça dela
ressaltado. Na foto, no trabalho. (J. é a mil por hora, e ser sexy pra que-
diretor de agência). brar um pouco do clássico.” (Z., dire-
tor de agência )
A filosofia e a psicologia designam para
personalidade um determinado conjunto de São considerados componentes da per-
predicados morais ou psíquicos relativa- sonalidade o conhecimento sobre o próprio
mente estáveis; é aquilo que distingue um corpo e a “adequação” dos atributos corpo-
indivíduo de outros, o conjunto de caracte- rais a roupas, maquiagem, cortes de cabelos
rísticas que determinam a individualidade e acessórios em voga a cada estação. Cos-
pessoal e social de uma pessoa moral. Ao tuma-se dizer que uma pessoa “tem perso-
falar sobre os processos de identificação nalidade” quando sabe se vestir com ele-
Ricoeur (1991) evoca a distinção entre ip- gância em determinadas ocasiões ou acordo
seidade e mesmidade. Enquanto a primeira com seu tipo físico. Mas de maneira totali-
se refere a abertura de um ser constante- zante, a personalidade é fortemente marca-
mente afetado pelo mundo, a segunda se da pela idéia de adoção de um “estilo de

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vida”: as amizades, os lugares que a pessoa “Fui escolhida para vestir uma saia
frequenta, as roupas que veste e o que con- levemente rodada anos 50 e uma ca-
some. Ou seja: a personalidade se subsume miseta polo acetinada. Para compor o
a uma imagem mais ou menos estável que visual, meus cabelos foram penteados
deve circular pelo campo em que os sujeitos à moda dos anos 40. Jorginho [o es-
transitam. É a moeda dos sujeitos em suas tilista Jorge Kalffman] deixou os
trocas. Nos discursos a respeito de Gisele modelos livres para incorporarem a
Bündchen, além de sua versatilidade, cos- atitude mais adequada a roupa que
tuma-se evocar o ambiente e os valores cada uma vestia. Eu me olhava no
familiares em que ela foi criada. Se ela é espelho, andava de um lado para ou-
hoje uma modelo de sucesso, isso se deve a tro, tentava encontrar a exata atitude
um tipo específico de corpo e a sua deter- para aquela roupa e nada. Um pouco
minação e perseverança. De modo seme- antes de entrarmos na a passarela, po-
lhante, a ex-modelo Mariana Weickert é rem serviram champanhe. Olhei para
lembrada e conhecida por um atributo físico a taça e me deu um clique! Jorginho
_ o fato de ser parecida com a atriz e can- comprou minha idéia e lá fui eu ima-
tora Barbra Streisand _ e um atributo psí- ginando que estava numa festa na
quico, a sua “postura positiva”, seu “bom minha própria casa, eu, uma atriz de
humor”, diante das situações mais embara- Hollywood , passando entre os con-
çosas e imprevisíveis. vidados (a plateia), equilibrando uma
Se a personalidade se refere ao quem, a taça _ verdade, a taça era de plástico,
atitude é relativa ao o que deste quem. Para mas a atitude era de cristal. Aquela
Idargo (2004) no campo da moda a idéia de ousadia caiu como uma luva na pro-
atitude, ao contrário da elegância, não cobra posta da roupa e do desfile” (LIZ,
uma ordem social, mas uma ordem pessoal: 2005, p. 126)
o universo do qual o indivíduo faz parte só
Além da questão da ousadia que define
é requisitado para realçar as qualidades
neste campo o que é atitude, esta fala evoca
pessoais. Na realidade, se refere a um fazer,
a noção de versatilidade, a qual temos nos
à expressão ativa dos traços da personali-
remetido. A versatilidade, como vimos, tem
dade, ou ainda, as maneiras como os sujei-
a ver com a capacidade de transformação
tos capitalizam e articulam suas capacida-
que o modelo deve possuir a cada trabalho;
des, atributos físicos e morais em favor dos
está ligada a aquisição do conhecimento so-
critérios exigidos por seu campo. A idéia de
bre conceitos e tendências de moda e de
atitude também se revela através das situa-
como ressignifica-los a partir de seu corpo -
ções de enfrentamento em que os sujeitos
ou, de ser um bricoleur de si. Trata-se de
estão inseridos cotidianamente. Significa
um conhecimento progressivo obtido a
impor, através de um fazer com o corpo, as
partir do contato recorrente com suas pró-
marcas pessoais, mesmo que isso signifique
prias imagens e as opiniões sobre elas, a
ousar e sair parcialmente do conjunto de
respeito de suas superfícies corporais, seus
normas vigentes. A atitude está relacionada
melhores ângulos, seus “pontos fortes e
com a criatividade e com a transformação a
fracos”. É por isso que no campo, se costu-
seu favor em situações publicas embaraço-
ma dizer que a modelo é “um cabide”; ela
sas. Trata-se, por exemplo, de vencer a
deve mostrar a roupa da melhor maneira
timidez, diante de clientes em entrevistas
possível, significando-a com os atributos
com espontaneidade ou coragem. É recor-
designados pelo estilista a cada coleção,
rente neste sentido, a veiculação de notícias
mas ela não deve aparecer mais que a rou-
sobre modelos que durante os desfiles pas-
pa. O mesmo ocorre com campanhas publi-
sam por tais situações, mas continuam a
citárias: quanto mais um determinado mo-
conduzir-se “como se nada tivesse aconte-
delo se torna conhecido devido a alguma
cido”: sapatos que saem dos pés, saltos que
campanha que tenha feito, mais sua imagem
se quebram, tiras que se soltam exibindo
pode ficar associada a um determinado
partes do corpo. Todas estas situações de-
produto, impossibilitando-o de representar
vem ser dribladas da melhor maneira possí-
outros. A versatilidade é um item-valor que
vel.
pode ser considerado inato ou natural, índi-

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ce de um determinado tipo de corporalida- A primeira permeia grande parte dos re-


de, assim como qualidade a ser desenvol- latos e designa o mundo privado aludindo a
vida e apreendida. uma existência “natural” que obedece a seu
próprio curso: a vida na cidade de origem, a
“Ser versátil é saber se transformar,
convivência familiar, os estudos, o lazer, as
adaptar-se a novos conceitos, ir de
relações desinteressadas, os relacionamen-
um estilo a outro com naturalidade e
tos afetivos, os flertes, a inserção nos estu-
atitude _ e isso muitas vezes num
dos universitários, a escolha por uma carrei-
mesmo dia” (LIZ, 2005: p.123)
ra profissional que possibilite a satisfação e
“No mundo da moda, tudo é cíclico: o desenvolvimento pessoal, namoro, casa-
tendências vão e voltam. Por isso, mento, filhos. É a dimensão “real” em que
mulheres mutáveis, cuja imagem se preponderam valores considerados sólidos,
transforma com facilidade, estão em estáveis, profundos e verdadeiros. É onde se
alta.”(PASCOLATO & LACOMBE, é “alguém”, uma pessoa e não um individuo
2003: 41) anônimo (DAMATTA, 1997).
Em contrapartida, a “vida de modelo”
Contingências: o sentimento do eu, estabelece uma ruptura com este “ciclo
destituição e estratégias de busca de natural”, instaurando a categoria de desor-
si. dem. Ela é a esfera das relações impessoais
Diante destes processos, de que modo os e publicas, onde partes dos julgamentos são
sujeitos elaboram a sua interioridade, ou inferidos sobre a aparência e a estética em
ainda seguindo Foucault (1984), como estas uma idade em que são tênues as fronteiras
forças extrínsecas são elaboradas e projeta- identitárias. A vida de modelo se justapõe
das “para fora”? As descrições de modelos ao curso da vida, adiando-o por um período
a respeito da carreira dão pistas preciosas incerto, não obedece a nenhum ciclo pré-
neste sentido. estabelecido e não é determinada por uma
idéia de projeto. A imagem que mais se
Ser modelo é ser versátil sem mudar, aproxima desta ordem ontológica é a de
sem perder a identidade e a auten- uma “vida” dentro de outra, ou ainda, um
ticidade. (L. 22 anos). simulacro da “vida de verdade”. Há diver-
Ser modelo é ser modelo de vida para sos motivos que justificam esta configura-
os outros. Gosto de ser modelo por- ção e certamente o primeiro delas está rela-
que posso ser pessoas diferentes sem cionado à escassa idade das ingressantes
agredir minha personalidade. (C., nesta profissão e a retirada precoce de um
19 anos). universo de experiências visto como infantil
ou adolescente. A profissão envolve a saída
Estas falas denotam um dilema que inci- da casa dos pais muito jovem e a imersão
de sobre corpos e subjetividades, e ao mes- total neste universo e em suas disciplinas. A
mo tempo concretiza os “sujeitos ideais” decisão de tentar a carreira em São Paulo,
prescritos neste campo. O dilema ser várias cidade considerada promissora, é geralmen-
e ser uma remete a uma subjetividade teci- te permeada de duvidas e inseguranças. Por
da em uma ontologia binária que ordena e outro lado, a profissão é um tentador rito de
confere sentido ás experiências. Na pratica, passagem para um universo adulto: morar
esta ontologia se traduz em uma tensão per- numa metrópole, trabalhar, frequentar fes-
manente entre uma esfera supostamente tas, viajar, conhecer pessoas, namorar, e
imaginaria e outra real, a primeira re- principalmente, ganhar dinheiro como um
metendo ao universo profissional das mode- adulto. Também aciona fantasias de um
los, onde cotidianamente vivem suas expe- mundo glamouroso. Mas na pratica, a expe-
riências e; a segunda que corresponde ao riência tende a ser frustrante por vários
universo intimo e privado das relações pes- motivos. Primeiro, há dificuldades inerentes
soais, dos afetos e desejos onde teceram à própria carreira, como a falta de dinheiro
parte de suas trajetórias anteriores a profis- e a demora por algum retorno financeiro
são. Na gramática do campo, esta cisão se significativo. Segundo, mudanças no coti-
traduz em “vida de modelo” e a “vida nor- diano de experiências inferidas pela distan-
mal”. cia da família; a dificuldade em se estabele-

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cer laços e relações duradouras e; o alto com moda todo dia, aquilo te exaure.
grau de competitividade da profissão. Trata- Aquilo te exaure muito, porque são
se de um universo altamente competitivo muitos personagens durante o dia,
onde as opiniões e julgamentos são instá- você está interpretando personagens,
veis, recorrentes e impessoais. Por tudo são muitos personagens. (Claudia
isso, este universo de experiências é associ- Liz).
ado a mentira, a ilusão, a falta de profundi-
A fala da modelo indica que no imaginá-
dade, a efemeridade, a instabilidade dos
rio dos sujeitos, os processos de produção
laços e sentimentos e a desordem.
social da modelo são vivenciados como
Esta cisão perpassa todo o universo de
perda subjetiva, alienação, substituição,
experiências dos sujeitos e corresponde à
justaposição ou fragmentação. Esta exaus-
própria noção de pessoa cartesiana vigente
tão ocasionada pela interpretação ostensiva
no ocidente, uma categoria moral e jurídica
de uma multiplicidade de personagens, ela
introjetada no individualismo. Duarte
certamente não se refere apenas ao espaço
(1998) aponta que a noção de pessoa mo-
dos estúdios e passarelas. O fato é que toda
derna e individualizada tem como princi-
a mimese do modelo é um ato em que o
pais efeitos a racionalização e afastamento
pensamento está implicado. Embora no
do sensível, fragmentação dos domínios e
campo o trabalho do modelo seja com-
universalização dos saberes, interiorização
parado ao do ator, na realidade, trata-se de
e psicologização dos sujeitos, autono-
coisas diferentes. Pois enquanto atrizes
mização da esfera pública, a intimização da
“entram e saem” de um personagem lenta-
família e a autonomização dos sentidos.
mente, a modelo projeta suas imagens con-
Tudo leva a crer que esta cisão é uma es-
tinuamente e de forma justaposta, passando
tratégia necessária em meio a uma experi-
de uma a outra e sem se fixar em nenhuma.
ência desestabilizadora em diversos senti-
É a este glamour que a modelo projeta coti-
dos. Pois na prática, os processos de cons-
dianamente que Claudia Liz se refere; e é
trução da pessoa vistos até então são viven-
justamente a montagem desta imagem de si
ciados alienantes e destitutivos de um sen-
própria que “exaure” a pessoa. Ao ser to-
tido de interioridade, seja ela espírito, alma
mada através de sua personalidade-imagem,
ou inteligência.
ela é destituída de sua trajetória de vida e da
Ás vezes batia um desespero e eu fa- profundidade que a permeia. Assim, se
lava: “como eu quero ser normal, tornar uma pessoa normal é a restituição da
como eu quero ser normal!!!”. E eu trajetória de vida, possível somente quando
achava isso tão estranho... E hoje eu se acredita ter recuperado o controle sobre
digo: “nossa, como eu consegui ser sua existência.
normal! Foi uma conquista ser nor- A destituição é o sentimento de perda
ma!”. Aí esses dias eu estava pen- dos referentes que marcam os indivíduos
sando no que significa isso, e signi- como sujeitos dotados de interioridade e
fica assim: você não ficar mais preo- recorrência no tempo, segundo Ricoeur
cupada com o olhar do outro em cima (1991), o corpo e o nome. Todo investimen-
de você. O que os outros pensam de to de si é destinado a ser planificado através
mim. É difícil separar o negócio de da “forma imagem”. Sobre uma modelo,
você. Porque assim, o que você ven- um agente diz o seguinte:
de? Você na verdade é uma ven-
Então, qual que era o problema dela?
dedora, então você vende o glamour
Excesso de inteligência. Ela tem uma
para as pessoas, e você está ali na
cabeça muito matemática, bem exata.
verdade mostrando uma coisa para as
Na cabeça dela, ela questionava mui-
pessoas o tempo inteiro. E na verdade
to as coisas. E tem um certo tipo de
quando as pessoas te veem, elas pro-
trabalho que você não pode ques-
jetam aquilo que elas estão acostu-
tionar muito: ou você confia ou você
madas a ver, que na verdade não é
não confia. E como a gente vai ter
você normal. E você tem que ser
paciência com uma menina que co-
muito forte para se agarrar a você
meça a questionar: “porque isso?
mesma. Porque quando você trabalha
Porque eu vou lá? Porque eu faço is-

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so?”. Quer dizer, fazia parte da per- corpo deixa de ser um problema justamente
sonalidade dela, essa coisa exata. Eu por sentir-se efetivamente uma mulher. Essa
tive que trabalhar muito e falar muito categoria associa-se a termos como “gosto-
até ela ir mudando. Você tem que sa”, “corpão” ou “popozuda”. As formas e
chegar, saber falar. “Não questiona curvas são inerentes ao corpo feminino,
muito, você não está numa aula de enquanto sua ausência, marcada pelo corpo
matemática, você sabe que isso te a- esguio, tem sido associada pejorativamente
trapalha, confie mais nas pessoas.” a modelo remetendo a termos como “cabi-
(J. agente de modelos) de” ou “tabua”. A “feminilidade real” se
afasta do corpo cabide e é mesurada através
Os processos de produção social da mo-
da quantidade de curvas ou da tonificação
delo demandam uma serie de “controles”
muscular. É interessante notar que no reper-
sobre o exercício de si: do corpo, dos ges-
tório das modelos abundam referencias a
tos, da voz, do número de palavras, do que
um corpo “naturalmente” flexível, ágil,
se fala e dos pensamentos. Isso justifica a
saudável, em movimento, livre que ge-
mensagem bastante clara nesta sentença: a
ralmente se opõe ao corpo montado do
de que “modelos não podem pensar”, ou
“mulherão”, uma ilusão construída através
“modelos devem ser ou se tornar aquilo que
das roupas, da maquiagem, das lentes do
queremos que ela se torne”. Quanto menor
fotografo e do photoshop. Ser um “mulhe-
o investimento das capacidades reflexivas
rão” nem sempre corresponde a ser uma
dos sujeitos nos processos dos quais são
“mulher de verdade”. As modelos encenam
investidos, maiores são as chances de su-
uma feminilidade, mas não se sentem “mu-
cesso.
lheres” porque acreditam que a feminilida-
O sentido de destituição também alude a
de que encenam é o resultado de um traba-
o sentimento de perda e alienação corporal
lho de manipulação de seus através de arti-
ocasionada pela ascendência do corpo, refe-
fícios como: maquiagem, cabelo, roupas, as
rente da intimidade e das relações pessoais,
lentes do fotografo e até o photoshop. No
como instrumento de trabalho. Disso resulta
fundo, acreditam que a “gostosa” que ence-
que a feminilidade nem sempre é experi-
nam é uma ilusão, e que, livres destes artifí-
mentada como legítima, pois parte dela se
cios, jamais conseguiriam despertar o dese-
destina às disciplinas, imagens e este-
jo masculino. Assim, uma informante ao
reótipos que as modelos devem ostentar.
me confidenciar sua virgindade aos vinte
Então, neste caso, a imitação (a perfor-
anos, justifica o motivo como sendo não
mance da modelo) é poderosa porque funda
estar à vontade com seu corpo magro; seu
parâmetros relativos à feminilidade, a cor-
desejo era que sua primeira relação ocorres-
poralidade e a sexualidade em um espaço
se após colocar silicone nos seios. Outra, já
em que muitas vezes reina a incerteza.
bastante renomada, tinha planos de que
A percepção de que se é apropriada co-
quando deixasse a carreira iria engordar
mo “coisa” ou só como um “corpo” é recor-
cerca de dez quilos, pois além de se sentir
rente. Às vezes ele aparece como algo que
mais bonita, poderia comer o que sentia
não lhes pertence; em outras ocasiões, isto
vontade. As conotações negativas do “mu-
se traduz em um incômodo sobre a obriga-
lherão” estão relacionadas à objetificação
toriedade de se apresentar impecável em
do corpo, mas também a crença de que
todos os lugares e ocasiões; outras ainda, e
trata-se de um engodo, uma ilusão construí-
muito frequentemente, como uma eterna
da para atender aos deleites, desejos e ex-
insatisfação em relação aos atributos físi-
pectativas de um Outro impessoal e desco-
cos. Assim, muitas modelos não estão à
nhecido. É um corpo vivido enquanto ima-
vontade em seus corpos. Neste processo, a
gem, mas esmaecido enquanto vida, gozo e
dicotomia imaginário e real é transposta
libido.
para as categorias modelo e mulher. “Mu-
Assim, neste campo, a “não pessoa” é
lher” aparece associada intimidade e a um
aquela a quem se retira a capacidade de
corpo considerado feminino. A “mulher” é
ação, que por sua vez é intrinsecamente
aquela em que atuando no espaço íntimo de
ligada a história de vida dos sujeitos. Não
sua vida, sente prazer com seu parceiro e
há como pensar-se senão como “agente sem
também se sente a vontade consigo. Seu
ação”, arranjado em um espaço de passivi-

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dade. Trata-se de um espaço onde o corpo nadas capacidades individuais (vontade,


desponta como instrumento de um trabalho razão, criatividade).
publicizado e passivo: é o objeto de avalia- Neste processo, é também no vestuário
ção, julgamento e olhar alheios. Em um que a busca de si se aplica com maior radi-
lugar tradicional e historicamente relegado calidade. Ele é considerado o índice de
ao âmbito das ideias, do pensamento e da personalidade e de um conhecimento adqui-
ação, que é o mundo do trabalho, o corpo rido através da profissão. A modelo “que
que repousa em sua expressão máxima de sabe se vestir” é aquela que conhece seu
docilidade; hiperbolizado e alheio a quais- corpo e traços físicos; ciente de todos os
quer metáforas de ação. seus ângulos, virtudes e defeitos, ela sabe
Visto isso, deveríamos então nos per- quais estilos “funcionam” para ela. As rou-
guntar sobre quais seriam as fontes de “em- pas, o cabelo, os sapatos se configuram
poderamento”, ou melhor, de restituição de como poderosos elementos de expressão de
si em meio a este processo. Parte das estra- referências pessoais íntimas. Nesta pro-
tégias de restituição incide sobre os esfor- dução de si, muitas tentam estabelecer a
ços árduos e cotidianos em separar os com- separação entre a profissão e sua intimi-
ponentes desta ontologia binária, separando dade. Termos como simplicidade, natu-
progressivamente o mundo da vida do tra- ralidade e “à vontade” definem e delimitam
balho, ou, a pessoa da imagem que compul- o espaço da intimidade, se opondo ao pro-
soriamente ostentam. Na pratica, este pro- cesso de “estar montada”, recorrente em seu
cesso, é a um só tempo literal e metafórico. cotidiano. Isso se expressa em moletons,
Recuperar o estatuto de pessoa neste campo chinelos, sandálias rasteiras, tênis, “cara
significa a recuperação da capacidade de lavada”, cabelos molhados. Ser “mais clás-
agir no mundo e do sentido de um centro do sica”, “sóbria”, ou “básica” são estilos que
“eu” que trará a coerência biográfica. Isso se afastam das referencias ao estereótipo da
possibilita a vivificação de uma feminilida- “modelo” (o “mulherão”, alta, sexy que
de não liminar, estabelecida em seus pró- traja saltos, decotes, minissaias e vestidos).
prios termos. A demarcação entre uma esfe- As estratégias de restituição se desdo-
ra pública e privada é uma destas formas. bram também na arena dos relacionamentos
Esta separação significa a retomada da ação afetivos. Parceiros, maridos, casamentos e
pelos sujeitos na medida em que estabelece uniões estáveis _ e filhos _ possuem especi-
um lugar onde eles podem exercer-se para al importância na restituição de uma femini-
“fora” da profissão como sujeitos criativos. lidade privada permitindo a saída de um
Também significa a apropriação de um limbo da indeterminação para experimen-
“centro de si”, na medida em que ele é invi- tar-se como “mulher” e consequentemente
sível, intimo. como sujeito. Assim, chama a atenção o
Neste sentido, o objetivo primeiro das fato de muitas modelos residirem ou já
modelos é “fazer nome”, processo implica- terem residido junto aos seus parceiros ou
do na trajetória social e que se concretiza na se apresentarem como casadas. O relacio-
noção de sucesso. “Fazer o nome” significa namento com pessoas “de fora” do meio
conquistar respeito, o direito de falar, de são vistos como os mais promissores, pois
expressar opiniões no trabalho, ser detento- oferecem um esboço do que consideram
ra do mesmo, enfim a recuperação da capa- uma “vida de verdade”: uma vida completa,
cidade de agir no mundo; é a conquista de rica, respaldada por sentimentos e valores
uma posição socialmente reconhecida no profundos e estáveis. O olhar do parceiro de
mercado de modelos. Ao “fazer o nome”, fora, não é domesticado pelo campo: ele
os sujeitos conquistam um espaço de ação não se dirige imperfeições mínimas, aos
cada vez maior, onde são considerados milímetros de gordura, a acne de uma ali-
pessoas de verdade_ que pensam, são auto- mentação desequilibrada, as unhas mal
res, falam e reivindicam o produto de seu feitas. Na modelo, muitas vezes ele vê uma
trabalho. Metaforicamente este processo beleza excepcional, alvo de elogios. Por
remete ao “descolamento” da pessoa da isso, este tipo de relacionamento estabelece
personagem e a restituição do “espírito”, uma ponte entre a vida de modelo e a vida
enquanto interioridade dotada de determi- normal, entre a vida profissional e a domes-
ticidade. É bastante comum que os parcei-

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ros “fora do meio” incentivem a modelo a domesticidade), não pode ser simples-
sair da profissão, por diversos motivos: mente reduzida à condição um “retorno
ciúmes, dificuldade em obter estabilidade do reprimido”; é algo que chama a nossa
devido a viagens ou ainda, em acreditarem atenção para a dimensão normativa e estru-
que a carreira não oferece grandes pos- tural de nossas ficções reguladoras, bem
sibilidades. Caroline Ribeiro, afirma que como para os padrões de exclusão, subordi-
seu marido, com quem na época da pesqui- nação e normalização que elas contêm
sa, estava casada há dez anos, foi seu ponto (BORDO, 1993). Nas palavras de Teresa de
de apoio; aquele que a “puxou para fora” da Lauretis (1994) é produto de uma tecnolo-
vida de modelo, proporcionando este espa- gia de gênero e de um processo histórico
ço faltante. Ela admite que o casamento que tornou o corpo feminino objeto de ana-
proporcionou não só a aceitação de seu lise e de controle sexual (FOUCAULT,
corpo, mas da condição de “mulher”. 1988).
Eu acho que o fato de eu estar ca- A desconstrução, este processo tão caro
sada... já sou mulher, não sou uma às vertentes pós-estruturalistas, não pode
adolescente a procura de alguma coi- recair em uma abstrata celebração da liber-
sa, então eu me sinto bem assim, com dade, da plasticidade cultural e das escolhas
este corpo. Eu não vou te dizer que individuais sem antes atrelar suas analises a
eu vá numa praia hoje e me ache o dimensão coercitiva das práticas através das
máximo, tire minha roupa no Rio de quais as pessoas vivenciam as ficções regu-
Janeiro e vá correndo pro mar. Eu te- ladoras que incidem sobre elas. Porque é
nho noção de que meu corpo não é a através delas que elas se subjetivam. Infe-
coisa mais linda do mundo, enten- lizmente, a dimensão coercitiva das práticas
deu? Sou magra, não tenho um pingo de agenciamento não sumiu em um passe
de bunda, não tenho peito, nada. En- de mágica assim que Mme. Beauvoir profe-
tão não é uma coisa bonita de ver... riu sua máxima de que “não se nasce mu-
não é o que a sociedade impõe como lher, torna-se”. É preciso mais. Pois afirmar
beleza, mas eu estou bem, eu não me que homens e mulheres não existem, não irá
incomodo. exterminar os dolorosos e sufocantes meca-
nismos ontológicos através dos quais ad-
Considerações finais quirimos um gênero, e consequentemente,
O que afinal está em jogo nestes proces- nosso estatuto de pessoa. E também não
sos que pode ser relacionado ao tema da anulará os mecanismos históricos através
noção de pessoa na Antropologia? Retomar dos quais a corporalidade feminina tem sido
a analise de um objeto tão caro a disciplina racionalizada, objetificada e controlada.
arranjando-o em uma perspectiva processu- Referencias
al que problematize as substâncias englo-
bantes (a matéria fundante da noção de AUGÉ, Marc. A guerra dos sonhos. Exercí-
pessoa ocidental) repõe vários de nossos cios de Etnoficção. Campinas: Papirus,
conceitos-chaves na condição de ficções 1998.
reguladoras. Nesta perspectiva, categorias BAUDRILLARD, Jean. O Sistema dos
de gênero (“mulheres” ou “homens”), e eu objetos. São Paulo: Perspectiva, 1968.
acrescentaria a própria noção de pessoa
cartesiana, não é algo que se é, em seu ca- BEAUVOIR, Simone de. O segundo
ráter substantivo ou estático, mas um devir sexo. Trad. Sérgio Milliet. Rio de Janei-
e uma ação incessante e repetida (BU- ro: Nova Fronteira, 1949.
TLER, 2003). São deliberações morais que BENJAMIN, Walter. Sobre alguns temas
vão sendo adquiridas progressivamente em Baudelaire in Obras Escolhidas v. III,
dentro de uma experiência contida em uma São Paulo: Brasiliense, 1985.
trajetória de vida.
A recuperação de um estatuto de pes- BORDO, Susan. Unbearable Wheight:
soa através do sentido de um centro inter- Feminism, culture and the body. California
no que reponha a categoria “mulher” em University Press, 1993.
seu devido lugar (na esfera afetiva e da

RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 14, n. 40, abril 2015


132

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RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 14, n. 40, abril 2015


135

Abstract: This paper discusses the ontological processes of the constitution of the person
in the world of fashion and advertising. Taking up the subject of the notion of personhood
in the social sciences, it uses data from an ethnographic study completed in 2009 on the
construction of gender among professional models in São Paulo. In this setting, subjectivity
is exercised with great difficulty by the model, as it involves the challenge of establishing
itself as a subject in a field marked, due to moral conflicts, objectification of gender and the
almost complete emptying of subjectivity. In such a field, the category of person carries
multiple meanings that glide through varying and opposite ways. In the field’s common be-
lieves, the "good model" is one who knows how to "be many", a term that refers to profes-
sional capacity and performative potential of projecting images and incorporate other char-
acters. This terminology also relates to the way that each model embodies the rules of the
field and learns how to differentiate herself as a "product." Moreover, this project of plas-
ticity is embedded to another, diametric opposite: the project of uniqueness. It consists in
becoming, or remaining "one person", or "being many, without losing the personality," and
above all to "find themselves" in this maze of images and prescriptions. Among models, it
becomes possible only when they can separate themselves from the characters, the women
modeled. Thus, the world of emotions (namely intimacy, sexuality, family and domesticity)
is a necessary counterpoint to the psychic survival; in other words, the substrate of the
"soul" and of personhood. This ontology shows the need of a division between a public and
a private world in a context in which femininity can only be built in a public way, through
the images and looks of an Other impersonal spectator / consumer. Although this is a very
specific context, it can be said that in the era of "fictionalization of the real" (AUGÉ, 1998)
and instability of self (JAMESON, 1991; LE BRETON, 2003; BUTLER, 2003), the reflec-
tions which we hereby present, intersect two important themes of Social Sciences, namely
the category of person and the subject of female objectification, that may indeed contribute
to the agenda of debates on gender, forms of subjectivity, morality, emotions and on the
category of person in the contemporary world. Keywords: person concept, gender and
consumering

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VARES, Sidnei Ferreira de. “A sociologia durkheimiana e a


tradição conservadora: elementos para uma revisão crítica”.
RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 14, n.
40, pp. 136-158, abril de 2015. ISSN 1676-8965

A sociologia durkheimiana e a tradição conservadora


Elementos para uma revisão crítica

Sidnei Ferreira de Vares

Recebido: 29.11.2014
Aprovado: 10.02.2015

Resumo: O presente artigo se propõe a discutir a relação entre a teoria sociológica desen-
volvida por Émile Durkheim e as ideias conservadoras clássicas. Por um lado, visa-se com-
preender em que medida o sociólogo francês absorveu elementos conservadores em sua so-
ciologia e, por outro, se esta suposta influência bastaria para atribuir à obra durkheimiana
uma rubrica conservadora. Com isso, pretende-se evitar possíveis rótulos ou tipificações,
quase sempre reducionistas e incapazes de dar conta de toda a complexidade que envolve
uma produção teórica de grande fôlego, como a de Durkheim. A análise empregada é emi-
nentemente bibliográfica e revisionista, assentando-se tanto em fontes primárias quanto em
fontes secundárias. Palavras-chave: conservadorismo, liberalismo, sociologia, moral e me-
todologia.

Introdução Partindo dessa polêmica, visamos verificar


em que medida Durkheim identifica-se com a
Na tradição sociológica, o francês Émile tradição conservadora e, caso isso fique com-
Durkheim (1858-1917) é frequentemente alo- provado, de que tipo de conservadorismo o
cado no rol dos conservadores. Muitos são os
sociólogo é tributário. Sabe-se que a sociologia
manuais e exposições-padrão responsáveis por durkheimiana, tanto na primeira quanto na
difundir a imagem de um Durkheim conserva- segunda fase de seu desenvolvimento, bebeu
dor, crítico do individualismo, arauto de uma em fontes teóricas muitíssimo heterogêneas.
sociologia “sem sujeito”, enfim, um positivista Neste ponto, em especial, cumpre destacar o
empedernido e compromissado com a manu- pensamento social germânico, o pensamento
tenção da ordem social. A esse respeito, aliás, social francês – sobretudo o socialismo saint-
podemos avistar críticos bastante diversos, a simoniano e o positivismo comteano –, o orga-
exemplo do funcionalista Talcott Parsons nicismo britânico e o neokantismo. Todas es-
(2010) e dos marxistas Irvin Zeitlin (1973) e
sas influências, indubitavelmente, ajudaram a
Michael Löwy (2007), para mencionar apenas emoldurar o pensamento do sociólogo alsasci-
alguns. Mas, ainda que a pecha conservadora ano. Mas, até que ponto sua teoria sociológica
que recai sobre o mestre francês seja predomi- pode ser considerada conservadora? É esse o
nante, também é possível avistar intérpretes
núcleo problemático sob o qual nos debruça-
pouco afeitos a essa leitura, tais como Anthony remos no presente artigo.
Giddens (1998, 2001; 2005), Ramon Ramos
Para tanto, achamos por bem dividi-lo em
Torre (1999) e Lidia Girola (2005), para os
quatro partes. Na primeira delas, visamos defi-
quais a sociologia durkheimiana comporta uma nir as linhas gerais do que se denomina “con-
dimensão liberal e até mesmo anticonser- servadorismo clássico ou moderno”. Trata-se,
vadora. pois, de percorrer, historicamente, o desenvol-
vimento dessa corrente – sobremaneira na Grã-

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Bretanha, França e Alemanha –, buscando, cio do século XIX, após o desfecho da Revolu-
assim, compreender sua origem, sua estrutura, ção Francesa.76 Ainda assim, alerta o estudioso
bem como seus principais pressupostos. Na gaulês, essa segunda maneira de encarar o
segunda parte, atentos ao contexto sócio- fenômeno em questão não está, absolutamente,
político em que suas ideias se desenvolveram, imune a polêmicas, pois é possível avistar pelo
abordaremos as principais influências teóricas menos cinco interpretações a respeito do cará-
de Durkheim com vistas a compreender as ter do conservadorismo: a aristocrática, a
bases fundacionais de sua sociologia. Na ter- pragmática, a situacional, a que assenta na
ceira parte, percorreremos as principais críticas força do hábito e, por fim, a ideológica.
dirigidas a Durkheim, em especial àquelas que, Na primeira delas, o conservadorismo é en-
no decorrer da tradição sociológica, atribuíram tendido como uma doutrina de cunho reativo,
a sua sociologia uma conotação eminentemen- expressa por uma aristocracia agrária, semi-
te conservadora. Já na quarta e última parte, feudal e inconformada com as transformações
objetivamos identificar possíveis intersecções desencadeadas pela Revolução Francesa.
entre a sociologia durkheimiana e o pensamen- Em relação à segunda, o conservadorismo é
to conservador, focando alguns dos temas pri- visto, primordialmente, como uma forma de
vilegiados pelo autor em seu programa de pes- pragmatismo político, ou seja, como uma dou-
quisa, para, enfim, posicionarmo-nos em rela- trina sem conteúdo ou princípios definidos,
ção à questão que alimenta nossa empresa. onde tudo que funcione em termos políticos
pode ser incorporado ao seu programa.
1. As faces do conservadorismo No tocante à terceira interpretação, a situa-
Segundo Leila Escorsim Netto (2011), duas cional, comumente confundida com a perspec-
dificuldades preliminares se apresentam àque- tiva pragmática, reflete a postura defensiva
les que desejam compreender mais profunda- consciente das doutrinas políticas instituciona-
mente o pensamento conservador: respectiva- lizadas ou de uma ordem particular, voltando-
mente, o estabelecimento exato de sua gênese se, nesse sentido, contra esquemas políticos
histórico-temporal e a determinação de seus não-institucionalizados que transcendam a
traços constitutivos. realidade política do momento. Embora não
Em relação à primeira delas – a sua origem possua nenhuma substância definida, esse tipo
– é preciso cercar-se de alguns cuidados, visto de conservadorismo se manifesta em situações
que alguns conservadores, a despeito de qual- de desafio às instituições confrontadas por
quer referência histórica concreta, tendem com ideias transcendentes, defendendo a ordem
frequência a tomar a expressão “conservar”, existente, seja qual for sua natureza política,
em seu sentido mais lato – ou seja, no sentido contra o caos mudancista ou reformista.
de preservar coisas ou ideias que valorizamos e A quarta interpretação, por sua vez, enfoca
que acreditamos –, como um traço distintivo da a noção de disposição, seja sob a alegação de
“natureza humana”. Na visão abrangente e não que o sentimento conservador faz parte da
menos ingênua destes, o conservadorismo não própria essência da vida, seja sob a defesa
é apenas uma doutrina política, mas a essência filosófica de uma espécie de “conservadorismo
da própria vida. Ora, conquanto imbuídos de natural”. Em suma, para os representantes des-
um discurso pretensamente científico, esses sa tendência, o conservadorismo, longe de ser
autores pouco ou nada contribuem para eluci-
dar a origem do pensamento conservador, visto
adotarem uma perspectiva intemporal e a- 76
Para a maior parte dos estudiosos, o termo “con-
histórica, na qual o homem é concebido como servadorismo” aparece pela primeira vez nos Esta-
um ser estruturalmente dado e o modo de ser dos Unidos, no início da década de 1800, a partir de
conservador como uma “disposição” intrínseca alguns membros do Partido Nacional Republicano
à sua natureza. Americano que autoproclamavam “conservadores”.
Contudo, conforme salienta Andrew Vicen- Na França, o termo é inicialmente empregado no
te (1995), para além do uso “costumeiro” que jornal de François-René Chateaubriand, Le Conser-
se faz do termo “conservadorismo”, há outro vateur, na década de 1820, representando um dis-
de caráter mais “técnico”, dotado de uma pers- curso politicamente restauracionista e clerical. Já na
Grã-Bretanha, desponta no jornal Quarterly Revi-
pectiva bem mais histórica. Isto porque, no que
ew, em 1830. De modo geral, o termo propaga-se
se refere a seu uso político, a maior parte dos pela Europa a partir da década de 1840, especial-
estudiosos admite que sua origem data do iní- mente após as sublevações de 1829-30 e 1848.

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uma ideologia, define-se pelo hábito, pelo fa- Como se pode verificar, quando se trata de
miliar, enfim, pela força da experiência. classificar o conservadorismo, encontra-se
Na quinta e última interpretação, o conser- tudo, menos clareza. As clivagens e nuances
vadorismo é visto como uma ideologia inequí- que marcam a noção de conservadorismo tor-
voca, que não se reduz a nenhuma considera- nam o caminho dos estudiosos um tanto quanto
ção pragmática ou situacional, nem se define nebuloso, não havendo, por isso, um consenso
pelo contexto sócio-histórico ou classista. Des- mínimo sobre o assunto, nem mesmo entre os
tarte, os conservadores, segundo essa perspec- seus representantes.
tiva, se opõem a certas ideias revolucionárias Embora o modo como as referidas interpre-
baseadas tanto na perfectibilidade da espécie tações e definições estejam aqui elencadas
humana quanto na crença no triunfo da razão e possua um viés mais didático do que real, à
no progresso em direção a uma sociedade sa- medida que, entre elas, há uma contínua sobre-
tisfatória definitiva. Grosso modo, pode-se posição, a utilização usual da noção de conser-
afirmar que para seus representantes o descaso vadorismo identifica-se mais especificamente
revolucionário em relação à autoridade, aos com sua dimensão ideológica. Visto que a
privilégios, à hierarquia e às tradições soa co- maior parte das críticas endereçadas à Dur-
mo um grande absurdo. kheim também se refere ao caráter ideológico
Mas as dificuldades em classificar o con- de sua sociologia, enfatizaremos a origem e o
servadorismo não param por aqui. Mesmo no desenvolvimento desta interpretação particular.
interior do pensamento conservador as diver-
gências são enormes. A este respeito, podemos 1.1. A gênese da ideologia conservadora
identificar duas posições antagônicas. A pri- Para a maior parte dos especialistas, en-
meira delas defende que há apenas uma única quanto ideologia o conservadorismo seria uma
doutrina genuína do conservadorismo, o que resposta tanto ao protagonismo assumido pelo
invalida a tese acerca dos diversos conservado- iluminismo no plano filosófico quanto às con-
rismos. A segunda, mais difundida, aponta a turbações desencadeadas pela Revolução Fran-
existência de diferentes correntes conservado- cesa no plano sócio-político. Como é sabido, o
ras, das quais é possível destacar pelo menos ideário iluminista não só foi responsável pela
três grandes ideologias, a saber, a tradicio- erosão do sistema nobiliárquico, rompendo
nalista, a romântica e a liberal. Na visão dos com a estabilidade secular da monarquia, mas
que defendem essa segunda posição, o “con- também abriu precedentes para a consolidação
servadorismo tradicionalista” dá maior ênfase de uma nova ordem social. Nesse sentido, o
aos costumes, tradições e convenções sociais e, pensamento conservador constitui uma expres-
por isso, a razão teórica é preterida a favor da são cultural particular de um espaço sócio-
razão prática. A vida comunitária é vista como histórico preciso, a saber, o da configuração da
um fluxo cumulativo, na qual a mudança, lon- sociedade urbano-industrial moderna. Face ao
ge de ser resultado do pensamento racional, dá- esfacelamento das instituições e dos valores
se naturalmente. As desigualdades entre os tradicionais, seus representantes se insurgem
homens, bem como a autoridade e a hierarquia, contra o racionalismo, a emancipação indivi-
são vistas como produtos naturais, enraizadas dual, a dessacralização do mundo, a urbaniza-
no cotidiano da vida comunitária. Quanto ao ção, o desenvolvimento científico, os valores
“conservadorismo romântico”, nota-se clara- democráticos, a constituição do espaço públi-
mente um tom nostálgico em torno de um pas- co, enfim, contra a própria modernidade.
sado idealizado de cunho pastoral, rural e anti- Como sublinha o sociólogo americano Ro-
industrial. Em geral, os conservadores român- bert Nisbet (2003), profundo conhecedor da
ticos defendem um modo de vida simples, história da teoria sociológica, enquanto ideolo-
idílico e religioso, assentado em valores e sen- gia o conservadorismo desponta, inicialmente,
timentos comunais. Já o “conservadorismo como uma “reação” antiiluminista e anti-
liberal” tende a aceitar alguns dos dogmas revolucionária. A esse respeito, afirma o autor:
formais do liberalismo clássico: ênfase no in-
O conservadorismo moderno é, em sua
dividualismo, na propriedade privada, nos
forma filosófica ao menos, filho da Re-
direitos individuais e no Estado mínimo. Isto
volução Industrial e da Revolução Fran-
configura uma dificuldade enorme, pois, em
cesa; filho imprevisto, não desejado e
última análise, o conservadorismo pouco ou
odiado pelos protagonistas de cada uma
nada se distancia da tradição liberal.

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delas, porém filho ao fim. O que ambas 1.1.1. Burke e as bases do conservado-
a revoluções atacaram, foi defendido por rismo liberal inglês
homens como Burke, Bonald, Haller e
Coleridge, e o que ambas engendraram – Embora falte às formulações de Burke uma
na forma de democracia popular, tecno- maior sistematização – sua obra consiste em
lógica, secularismo etc. – é o que o con- uma série de cartas, discursos parlamentares e
servadorismo atacou (NISBET, 2003, p. panfletos circunstanciais – é possível extrair as
25) [minha tradução]. linhas-mestras de seu pensamento político
quando se considera o conteúdo exposto em
Este excerto é bastante esclarecedor, pois suas Reflexões. Como primeiro grande crítico
nos possibilita enfrentar a segunda dificuldade da Revolução Francesa, Burke adota um tom
anteriormente anunciada, atinente às caracte- severo em relação aos princípios abstratos que
rísticas do conservadorismo. Conforme deixa a nortearam. O autor não aceita as posições
entrever, a ideologia conservadora – diferen- sustentadas pelos revolucionários franceses,
temente das ideologias “ideacionais” e “ativas” consideradas demasiadamente genéricas e abs-
– tem como traço basilar o fato de ser “reativa” tratas – noções como a de liberdade, igualdade
e “posicional” (HUNTIGTON, 1957). Reati- e fraternidade soam, para ele, como utópicas.
va, pois diz respeito a uma “reação” contra Ainda assim, suas críticas às ideias revolu-
qualquer tipo de ameaça de caráter radical que cionárias, bem como as posições fundamentais
ponha em risco os fundamentos institucionais que defendia, não deixam de se assentar em
da sociedade – como no caso da Revolução fundamentos metafísicos, uma vez que o autor
Francesa – e posicional, visto tratar-se de uma admite a existência de uma realidade superior
“tomada de posição” frente a uma necessidade subjacente ao fluxo dos fatos. O papel proemi-
histórica específica, tais como as ideologias nente da religião em seu esquema explicativo
que defendem soluções utópicas, apontando faz com que Burke considere Estado e socie-
para um passado glorioso ou para um futuro dade como partes da ordem natural do univer-
incerto. so. Segundo o autor, tanto o homem quanto a
Disso depreende-se uma distinção funda- sociedade são criações divinas e, desta feita,
mental: aquela entre o “reacionarismo”, o “u- ambos estariam submetidos a leis eternas, res-
topismo” e o “conservadorismo”. Na leitura do ponsáveis por regular não só a dominação do
cientista político português João Pereira Couti- homem pelo homem, mas, igualmente, os di-
nho (2014), essas ideologias são muito diferen- reitos e obrigações de governantes e governa-
tes, pois enquanto as duas primeiras rompem dos. Destarte, a noção de igualdade não passa
com o presente, seja apontando para uma épo- de uma “monstruosa ficção” que só serve para
ca de ouro ida seja apontando para um futuro subverter a paz social, tornando mais amarga a
hipoteticamente superior, esta última mantém- desigualdade real estabelecida pela ordem
se firmada em instituições e valores suposta- civil, que não pode ser definitivamente elimi-
mente testados do tempo – entenda-se testadas nada. Aliás, na ótica de Burke, este foi o gran-
pela própria história. Em outras palavras, o de equívoco dos revolucionários franceses:
conservadorismo se configura como uma ideo- apostar que a igualdade constitui um direito
logia politicamente “prudente” quando compa- universal.
rada às ideologias concorrentes (Kirk, 2013). Decerto, a noção de natureza humana, sob a
Não por acaso, para a maior parte dos espe- qual se assenta todo o edifício argumentativo
cialistas, o político e pensador anglo-irlandês do autor, carece de clareza. Dela fazem parte
Edmund Burke (1729-1797) desponta como o tanto considerações teológicas – por exemplo,
principal representante da ideologia conserva- a dependência humana em relação à incompre-
dora moderna. Afinal, ele não só testemunhou ensível Providência Divina – quanto referên-
todo o alvoroço provocado pela Revolução cias empíricas – o conhecimento que os ho-
Francesa, como também deu a sua visão dos mens têm da natureza em função da experiên-
fatos. Suas Reflexões sobre a Revolução na cia. Isto, entretanto, não fragiliza o fulcro de
França (obra originalmente publicada em sua argumentação: a existência de uma reali-
1790) tornaram-se referência para o pensamen-
to conservador moderno e contemporâneo. 77
consultar os trabalhos de Robert Nisbet (1986) e
77
Em relação à influência de Burke sobre as corren- João Pereira Coutinho (2014). Vide referências
tes conservadoras modernas e contemporâneas, bibliográficas.

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dade que não depende dos indivíduos e que só social instituída. Mas, no caso específico des-
pode ser apreendida com referência à tradição tes filósofos franceses, pode-se observar certa
lentamente forjada por nossos ancestrais. Em nostalgia em relação ao Ancien Régime, que
oposição ao jusnaturalismo rousseaísta, Burke havia sido derrotado pela revolução. Aliás,
defendia que o contrato sobre o qual se funda cumpre assinalar, esse sentimento passadista,
uma organização social sólida e equilibrada nostálgico, não ocorreu exclusivamente na
instaurou-se progressivamente, no curso do França. Durante o século XIX, explica Nisbet
qual se revelaram os benefícios do bom senso, (2003), presencia-se uma oposição à moderni-
da virtude e da liberdade, e não através da de- dade na forma de um recrudescimento em di-
liberação arbitrária de um indivíduo. Defensor reção ao mundo medieval. Em outras palavras,
da ordem, da hierarquia, dos direitos herdados a Idade Média se tornou objeto de atenção de
e da continuidade histórica, mas também da um grande número de pensadores nos mais
economia de mercado, da tolerância religiosa e variados países, forçando uma comparação
dos princípios liberais que caracterizavam a com o estilo de vida que emergia com a mo-
Constituição Inglesa, o Whig Burke, que pro- dernidade.
vavelmente nunca se considerou um conserva- Em terras francesas, porém, esse espírito
dor em matéria de política, passou à história medievo recebeu grande atenção por parte
não só como o maior crítico da Revolução desses pensadores, servindo como ponto de
Francesa – acontecimento que, segundo ele, partida para as suas investigações históricas,
diferia das demais revoluções por seu caráter políticas e culturais. Tudo isto com vista a
universalista –, mas, também, como a principal demonstrar o declínio representado pelo ad-
fonte de inspiração para aqueles que, durante o vento moderno. Longe de aceitarem o progres-
terço de século que se seguiu à sua morte, as- so de uma sociedade cada vez mais alicerçada
sumiram-se como conservadores. Por tudo isto, na urbanização, industrialização e democrati-
Burke pode ser visto como um “conservador zação dos processos políticos e decisórios,
liberal”. esses “profetas do passado” não tardaram em
apontar, através de suas reflexões, a corrupção
1.1.2. De Maistre, Bonald e Chateaubri- da família, da religião e da ordem como efeitos
and: o conservadorismo romântico fran- perniciosos de um processo iniciado durante o
cês Renascimento e a Reforma Protestante e que
Se, como afirma Nisbet (2003), o conserva- atingiu o seu cume com a famigerada Revolu-
dorismo moderno é filho imprevisto e indese- ção Francesa, enfim, a falência do que conside-
jado da Revolução Industrial e da Revolução ravam uma sociedade justa, pacífica e verda-
Francesa, é de se esperar que as críticas con- deiramente livre.
servadoras se dirigissem às reivindicações e às De Maistre, por exemplo, ergueu-se contra
transformações desencadeadas por ambas. a revolução, sobretudo porque esta atentava
Burke foi o iniciador desse processo, porém, contra as instituições tradicionais. Acreditava
na viragem do século XVIII para o século que o modelo monárquico era intrínseco à
XIX, outros autores também se insurgiram estrutura nativa da sociedade francesa. Na
contra as ideias iluministas. No caso da França, contramão das posições racionalistas, o filóso-
pode-se apontar pelo menos três grandes expo- fo alegava que todas as questões sobre a natu-
entes do pensamento conservador, são eles: reza da sociedade deveriam ser solucionadas
Josephe De Maistre (1753-1821), Louis de pela história e não pelos homens.
Bonald (1754-1840) e François-René Chateau- Bonald, provavelmente o mais erudito e
briand (1758-1848). profundo filósofo entre os conservadores fran-
Comumente encarados como pensadores ceses, dedicou-se ao tema da autoridade políti-
estranhos, com certos traços góticos e românti- ca e religiosa, opondo-se com energia à filoso-
cos, esses três autores empreenderam um ata- fia do direito natural e do estado natural.
que incisivo aos valores centrais do iluminis- Chateaubriand, por seu turno, se comprazia
mo. Viam com descrença as transformações fingindo defender alguns iluministas como
culturais, políticas e econômicas processadas forma de lançá-los uns contra os outros. Vol-
no decorrer da modernidade, pois, grosso mo- taire, cujos brilhantes ataques ao cristianismo
do, essas mudanças tinham como signo um também atingiam aos conservadores, foi sem
exacerbado sentimento individualista, o que dúvida o seu alvo preferido.
constituía uma ameaça às tradições e à ordem

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Certamente por isso, observa Nisbet (1986 Bonald mantinham em relação à sociedade.
e 2003), a geração de Comte e de Le Play viu- Paradoxalmente, sua filosofia – em especial o
se tentada a dar continuidade às críticas inicia- seu método dialético – prestou grandes contri-
das pelos conservadores franceses na virada do buições tanto ao pensamento conservador
século. 78 quanto ao pensamento radical.79
Todos eles, sem exceção, contribuíram no
1.1.3. Möser, Müller, Hegel e o conserva- sentido de estabelecer as bases do conservado-
dorismo tradicionalista alemão rismo alemão, exercendo decisiva influência
Na Alemanha, os impactos da Revolução sobre as gerações seguintes, como no caso dos
Francesa também se fizeram sentir, e, em vir- historicistas conservadores alemães, ainda nas
tude disso, se verifica a presença de um discur- primeiras décadas do século XIX. 80
so conservador bem delineado. Justus Möser
1.1.4. Os traços fundamentais do pensa-
(1720-1794), que antecedeu a Burke, lança
mão de vários princípios inerentes ao modo de
mento conservador
pensar conservador. Em seus Discursos Patrió- Isto posto, temos condições de traçar as li-
ticos (1774-1786), coleção de ensaios publi- nhas gerais da mentalidade conservadora. De
cados em vários volumes no decorrer da se- modo geral, pode-se afirmar que, em termos
gunda metade do século XVIII, encontram-se sociais, morais e políticos, os conservadores
os princípios básicos do pensamento conserva- não aceitam transformações abruptas ou repen-
dor que, mais tarde, ressoarão na obra de Bur- tinas. Qualquer tipo de ação que atente contra
ke. Nota-se, por um lado, uma crítica contun- o establishment ou gere instabilidade é imedia-
dente ao racionalismo e ao individualismo, tamente combatida. Arraigados às tradições
além de uma oposição ferrenha à fé no direito (consideradas pedagógicas e formativas), seus
racional-prescritivo e, por outro, uma defesa representantes entendem que as mudanças
não menos enérgica das tradições. Sobre os devem ser tuteladas pelo passado e, por isso,
costumes e as instituições de um povo, aliás, o são poucos afeitos aos riscos inerentes tanto às
autor é bastante enfático: estas resultam de soluções utópicas quanto às reacionárias.81
uma evolução histórica, de tal modo que ne- Ainda que admitam mudanças, estas são sem-
nhum legislador, solitária e arbitrariamente,
pode apreender e converter em leis as necessi- 79
dades coletivamente engendradas ao longo do Karl Marx, indubitavelmente, exemplifica bem
tempo. de que modo o pensamento hegeliano serviu de
base para o materialismo dialético. A este respeito
Adam Müller (1779-1829) conhecia a obra ver Anthony Giddens (2001 e 2005).
de Burke muito bem, nutrindo grande admira- 80
Michael Löwy (2006) argumenta que a corrente
ção pelos princípios fundamentais de sua filo- historicista alemã flertou, em sua origem, com o
sofia. Nesse sentido, sua concepção de Estado, conservadorismo, exaltando as instituições e valo-
bem como sua visão acerca da economia, am- res tradicionais diante das transformações políticas
bas contidas na obra Elementos do Estadismo conduzidas por Otto Von Bismark a partir de 1870.
(1810), é similar a do autor irlandês. Mas, apesar do caráter conservador, a corrente
Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770- historicista, segundo o autor, teve um papel funda-
1831) é, de longe, a força mais influente do mental para tanto para a historiografia quanto para
conservadorismo alemão. Durante a juventude, as ciências sociais, pois, em um segundo momento,
mais precisamente no último decênio do século
sua inclinação liberal-radical, justifica seu XIX, temas como o da objetividade científica e da
entusiasmo pela Revolução Francesa. No de- verdade universal são colocados em xeque, dando
correr de sua trajetória, entretanto, aderiu for- forma ao que o denomina de “historicismo relativis-
temente ao tradicionalismo. Seus Princípios da ta”, da qual o historiador alemão Gustav Droysen e
Filosofia do Direito (1820), publicado quando o sociólogo Wilhelm Dilthey foram os principais
ainda era professor da Universidade de Berlim, representantes.
81
mantém grande parte da visão que Burke ou Isto explica porque para autores como Lilian
Escorsim Netto (2011) e José Paulo Netto (2011) há
uma forte identificação entre a ideologia conserva-
78
Em muitas ocasiões, Comte e Le Play referem-se dora e a perspectiva evolucionista de sociedade. Em
elogiosamente aos conservadores franceses, ates- geral, a ideia segundo a qual as mudanças só podem
tando, por assim dizer, esta influência sob seus ocorrer em termos graduais, sem rupturas radicais,
respectivos sistemas de pensamento (Cf. NISBET, típica do pensamento conservador, pressupõe uma
2003). visão evolucionária dos processos sociais.

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pre calculadas, adquirindo uma roupagem pro- correta, sobretudo quando se considera os as-
cessual, mas nunca radical. Assim, na perspec- pectos substantivos de sua teoria sociológica.
tiva conservadora, a crença de que é possível Se entre eles existem similaridades, existem,
modificar a realidade através da razão não também, muitas diferenças. Como veremos, as
passa de uma posição arrogante e quimérica, influências durkheimianas vão muito além do
visto que entre a idealização e a concretização positivismo saint-simoniano e comteano. Aliás,
repousa o imponderável. Outro ponto fun- o objetivo desta seção é justamente identificar
damental para a ideologia conservadora diz as fontes teóricas com as quais Durkheim dia-
respeito à suposta perfectibilidade do intelecto logou e que serviram de base para a edificação
humano. Em geral, os conservadores rechaçam de sua teoria sociológica.
esse tipo de argumento, pois consideram que,
mediante a complexidade dos fenômenos soci-
2.1. O positivismo francês: influências e
ais, a razão humana mostra-se precária e, por diferenças
conseguinte, incapaz de transformar a realida- Steven Lukes (1984), naquela que é consi-
de a seu bel prazer. Ademais, noções como as derada a mais importante biografia sobre o
de democracia e liberdade são completamente mestre francês, afirma que entre os anos de
estranhas à perspectiva conservadora. A defesa 1878 e 1882, ainda enquanto estudante de filo-
de uma soberania popular – una, indivisível e sofia na École Normale Supérieure, David
inalienável, como queriam os iluministas fran- Émile Durkheim deu os primeiros indícios de
ceses – acarreta dois sérios problemas para os sua verdadeira vocação ao dedicar-se com
conservadores clássicos, quais sejam, a laiciza- afinco ao estudo dos fenômenos sociais. De
ção do universo político e a fundamentação da fato, este foi um período extremamente prolífe-
liberdade na autonomia individual. Em outros ro para o então jovem estudante universitário.
termos, a separação entre Estado e Igreja, bem O modo sério, rigoroso e maduro com que
como a centralização das decisões políticas na encarava os estudos, reflexo da austera forma-
vontade geral, resultaria na pulverização da ção familiar, somado à sua enorme capacidade
unidade social, pois, à medida que as paixões intelectual, confluiu para que ele se lançasse
humanas são insaciáveis, a liberdade irrestrita em direção à filosofia social, rompendo defini-
eliminaria a hierarquia e a ordem, pressupostos tivamente com a tradição rabínica que, há mui-
sem os quais os impulsos egoístas não podem tas gerações, confundia-se com a trajetória de
ser limitados. Vê-se claramente que o pensa- sua família.82 Ao ingressar na École Normale
mento conservador, anverso do pensamento Supérieure, Durkheim não imaginava que es-
iluminista, constituiu-se numa resposta aos tava para se tornar um ícone, talvez o maior, da
efeitos deletérios da modernidade, afinal, qua- sociologia francesa. A estimulante atmosfera
se todos os seus representantes integravam o intelectual que o cercava foi certamente decisi-
complexo católico-monárquico-aristócrático, va para o direcionamento de seus interesses
sofrendo, direta ou indiretamente, os impactos acadêmicos. Professores renomados como os
da legislação revolucionária sobre a proprieda- filósofos Émile Boutroux, Charles Renouvier e
de e a estrutura de poder, especialmente na o historiador Fustel de Coulanges muito con-
França. tribuíram para isto. Os dois primeiros ajudaram
Durkheim a formar suas convicções políticas,
2. A sociologia durkheimiana e suas in-
levando-o a abraçar a causa republicana. Já
fluências com este último, aprendeu a dirigir seu olhar
Para uma parte da literatura especializada, para os fenômenos culturais, adotando, a e-
Durkheim não passa de um mero “discípulo” xemplo do mestre, uma perspectiva histórica
de Saint-Simon e Comte, responsável por dar em suas análises. Essas influências iniciais
continuidade à filosofia positivista destes. Não foram, nesse sentido, decisivas para o seu pro-
por acaso, observa Ivan Domingues (2004), a
maioria das exposições referenciais e dos tex- 82
tos didáticos dirigidos a estudantes secundários Émile Durkheim era oriundo de uma família
e universitários ainda hoje tendem a caricaturar judia, há décadas radicada em terras francesas. Seu
a imagem do mestre francês, apresentando-o pai, Moisés Durkheim, dando continuidade a uma
longa tradição familiar, era o líder rabínico de sua
como uma espécie de “positivistão”, um posi- comunidade, legado este que, como primogênito,
tivista “turrão”, um “campeão da ciên- David Émile Durkheim estava destinado a preser-
cia”. Essa leitura, entretanto, está longe de ser var.

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jeto acerca da criação de uma ciência dedicada kheim aproveitou largamente as ideias gerais
aos fenômenos sociais. A tentativa em si não de Comte sobre a importância da indução na
era nova. Tanto Saint-Simon quanto Comte investigação científica e sobre o papel auxiliar
havia proposto algo muito parecido. Porém, das hipóteses, além de certas noções bem defi-
diferentemente destes, Durkheim dedicou a sua nidas de sua investigação sociológica, em par-
vida à institucionalização da nova ciência, ticular, a de que a sociologia pode praticar em
comprando brigas e procurando impor sua seu terreno de pesquisa a “experimentação
visão sobre as visões concorrentes. Mas em indireta” e a “observação pura”. Ademais,
que medida esses precursores teriam influenci- também atribuiu fundamental relevância ao
ado Durkheim? método comparativo e à análise causal, tanto
Para Irvin Zeitlin (1973), existem mais si- em seu espírito quanto em seus fundamentos.
milaridades entre Saint-Simon e Durkheim do Como Comte, Durkheim auferia à sociologia
que entre este e Comte. Isto não só pelo fato um caráter reformista, um instrumento de in-
das ideias comtianas serem, sumariamente, o tervenção e transformação da realidade, além
desenvolvimento lógico das contribuições de de sustentar que os fenômenos sociais podiam
Saint-Simon, a quem Comte secretariou por ser analisados em termos objetivos, desde que
alguns anos, mas porque o próprio Durkheim, o sociólogo mantivesse certo distanciamento –
num estudo inconcluso sobre o fenômeno do uma postura imparcial – frente a seu objeto.
socialismo, admite a influência decisiva deste Mas, não obstante as aproximações entre
filósofo social para a formulação de sua socio- Durkheim, Saint-Simon e Comte, as diferenças
logia. Decerto, a importância de Saint-Simon é entre eles são igualmente claras.
significativa. Não é demais destacar o otimis- Durkheim, por exemplo, jamais partilhou
mo que os dois pensadores nutrem em relação da posição de Saint-Simon a respeito das for-
à sociedade industrial, urbana e científica. Um mas de autoridade adequadas ao Estado indus-
e outro adotam um escopo francamente evolu- trial moderno. Ainda que admita que a ordem
cionário segundo o qual a sociedade é uma social emergente funda-se na complexa divisão
comunidade de valores que passou de um esta- funcional imposta pelo avanço da indústria,
do pré-industrial para um estado industrial. não a encarava em termos eminentemente eco-
Ambos os sistemas sociológicos atribuem um nômicos. Para ele, a autoridade atinente ao
papel integrador aos sentimentos morais, inclu- Estado não podia ser confinada a uma simples
sive no que se refere às sociedades complexas, “administração de coisas”, restringindo-se à
caracterizadas por uma acentuada divisão do regulação da produção. Como deixa claro em
trabalho. Ademais, na esteira do que propug- sua tese doutoral, “nem tudo é contratual no
nava Saint-Simon, Durkheim concebe a socie- contrato”. Em outras palavras, por si mesmas
dade como uma realidade sui generis, moral- as transformações econômicas mostram-se
mente superior quando comparada ao indiví- incapazes de solucionar a crise moderna, en-
duo isolado. tendida pelo autor como uma crise de ordem
No que se refere a Comte, indubitavelmente moral. As relações econômicas só são possí-
no início de sua trajetória intelectual Durkheim veis mediante certas condições de sociabilida-
sentiu-se atraído por seu “positivismo” enten- de previamente admitidas, isto é, um sistema
dido num duplo sentido: (a) como o estudo dos social regido por normas e valores que com-
fenômenos sociais pelo mesmo método utiliza- porte modelos de ações diferenciadas. Contra-
do pelas ciências naturais; (b) como oposição riamente ao que propunha Saint-Simon, Dur-
ao “negativismo” dos iluministas e seus her- kheim não via uma descontinuidade absoluta
deiros, cujos interesses resumiam-se à dis- entre as sociedades tradicionais e as sociedades
solução das instituições. Basta lembrar que a urbano-industriais, já que estas estão desprovi-
primeira versão de sua tese doutoral, Da Divi- das de valores e normas. Considerando que
são do Trabalho Social, continha uma especial para o mestre francês os desejos individuais
deferência à tentativa do filósofo de Montpelli- são insaciáveis, o egoísmo radical é um risco
er fixar as bases de uma “física social”. 83 Dur- eminente. Por isso qualquer limitação moral e
jurídica à busca desenfreada dos indivíduos
83
pela realização de seus interesses, deve ser
Aliás, este foi um ponto problemático durante a
defesa pública de seu doutorado, já que a banca
examinadora, formada essencialmente por professo- exclusão desta deferência para a aprovação da tese
res identificados ao espiritualismo francês, exigiu a (LUKES, 1986).

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tutelada pelo Estado, pois, do contrário, os ças são ainda mais gritantes, pois, em última
interesses coletivos ficarão à mercê dos apeti- instância, o método durkheimiano procurou
tes individuais. Disto não decorre que a mora- superar, de forma coerente com os princípios
lidade inerente às sociedades homogêneas, cuja da investigação indutiva, a circularidade racio-
principal característica é a forte presença de nalista do encadeamento entre teoria e ob-
uma “consciência coletiva”, seja adequada às servação inerente à concepção comtiana 84.
sociedades heterogêneas. Como ressaltou em
certa ocasião, “os velhos deuses estão mortos” 2.2. A influência do pensamento social
e não há como exumá-los. Por sua complexi- alemão
dade, as sociedades altamente diferenciadas Nos meses em que viveu na Alemanha, na-
necessitam de uma nova forma de vida moral. quela que foi a sua única experiência interna-
Em um artigo escrito por ocasião do Caso cional, Durkheim tomou contato com a obra de
Dreyfus, intitulado O individualismo e os Inte- um grupo de pensadores germânicos, formado
lectuais, Durkheim esclarece a qual tipo de quase que exclusivamente por economistas e
moralidade está se referindo: o “in- juristas. Esse intercâmbio intelectual, se não
dividualismo moral” ou “culto ao indivíduo”. foi decisivo para o pensamento do sociólogo
Trata-se, pois, de um conjunto de valores cujo francês, ajudou-o, pelo menos, a amadurecer
fulcro é o próprio indivíduo. Porém, a centrali- algumas ideias cultivadas desde o tempo da
dade do indivíduo, aqui, nada tem a ver com universidade. Autores como Schäffle, Lili-
aquela requerida pelos representantes do utili- enfeld, Schmoller, Wagner, Jhering, Wundt e
tarismo ou do pensamento econômico clássico. Post chamam a atenção do jovem estudante
Como se apressa em explicar, o individualismo francês, a ponto de dedicar-lhes, pouco depois
moral é resultado de um longo processo histó- de retornar ao seu país de origem, algumas
rico e social. Por isso, a base deste tipo de mo- análises críticas. Destas, duas merecem desta-
ralidade não é o homem isolado, mas o homem que: a resenha dedicada à primeira parte de um
em abstrato – preconizado pela Declaração dos dos trabalhos Schäffle, Bau aud Leden Socia-
Direitos do Homem e do Cidadão. len Korpers; e o longo artigo intitulado A ciên-
Já em relação a Comte, é inegável que este cia positiva na moral alemã, no qual analisa o
bebeu das fontes dos apologistas católicos esforço seminal para a criação de uma ciência
conservadores, influência manifesta em seu moral, levado a cabo por alguns desses autores.
Sistema de Política Positiva. Entretanto, como Ambos repercutiram positivamente e oportuni-
observa Giddens (2001), foi sua obra Filosofia zaram a Durkheim, por intermédio do republi-
Positiva, e não aquela, que exerceu influência cano Louis Liard (na época diretor da educa-
decisiva sobre Durkheim. Assim, ao elaborar ção superior), a cátedra de “Ciência Social e
suas ideias substantivas acerca do desenvolvi- Educação” na Universidade de Bordeaux.85
mento da sociedade moderna, Durkheim se Genericamente, pode-se afirmar que Dur-
debruçou com maior afinco sobre a versão kheim endossa a maior parte das propostas
hierocrática emergente proposta por Saint- destes pensadores. Em que pesem as diferenças
Simon do que a formulada por Comte em sua
Filosofia Positiva. Além do mais, se ambos
84
encaravam a sociedade como resultado de um Conforme explicita Fernandes a circularidade
longo processo evolutivo, Durkheim jamais comtiana consistia em exigir uma teoria para obser-
adotou uma visão teleológica da história, dan- var os fatos, quando a própria teoria deveria resultar
da observação dos fatos. Mesmo admitindo que
do, nesse sentido, maior atenção ao imponde-
uma observação bem feita deva muito a uma teoria
rável. Em outras palavras, ele rejeita a Filoso- já constituída, para Durkheim esta não é o produto
fia da História comtiana segundo a qual a rea- necessário dos conhecimentos previamente obtidos,
lização máxima da verdade dar-se-ia por meio mas, ao contrário, representa a via inevitável para
de etapas progressivas, considerando-a um pu- alcançá-los. Destarte, os sociólogos se beneficiarão
nhado de princípios metafísicos a priori. da teoria à medida que a investigação sociológica
Quanto ao otimismo que nutriam em relação à progredir (Cf. FERNANDES, 1980, p. 72).
85
modernidade, a análise durkheimiana não se O primeiro desses artigos foi publicado em 1885
apresentava em termos valorativos, isto é, não e o segundo em 1887, ambos na Revue Philosophi-
opunha o modelo social moderno – que Comte que. Este último, inclusive, ganhou uma tradução
em português, recebendo um novo título, a saber,
considerava superior – ao modelo social tradi-
Ética e Sociologia da Moral. Vide referências bi-
cional. Em termos metodológicos, as diferen- bliográficas.

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metodológicas, todos eles apontam para um co. Com efeito, talvez não seja equivocado
mesmo princípio, a saber, aquele segundo o afirmar que a passagem de Durkheim pela
qual a sociedade constitui uma unidade com Alemanha contribuiu no sentido de consolidar
características específicas, que não se reduzem algumas de suas impressões seminais acerca do
a soma das suas partes.86 Esta não é um primado da realidade social que, pouco depois,
mero agregado de indivíduos, mas antes um ser revelou-se uma das marcas distintivas de sua
cuja existência supera, tanto lógica quanto sociologia.
ontologicamente, a existência de seus mem-
bros. Isto porque os ideais e os sentimentos 2.3. A influência da filosofia neokantiana
que constituem a herança cultural de uma soci- Entre os estudiosos de Durkheim é possível
edade são impessoais, à medida que se desen- avistar uma divisão em relação ao desenvolvi-
volvem socialmente e não a partir de indiví- mento de seu pensamento. Para uma parte dos
duos específicos. O referido enfoque, clara- intérpretes, a sociologia durkheimiana desloca-
mente sociocêntrico, não possui, todavia, qual- se de uma fase materialista, caracterizada por
quer implicação metafísica. Trata-se apenas de uma análise de cunho morfológico, para uma
um esforço no sentido de mostrar a consciência fase idealista, marcada pela prevalência de
coletiva como um composto que apresenta temas e subtemas típicos do universo cultural e
características próprias, portanto independentes moral. Outros intérpretes, entretanto, apres-
das consciências individuais através das quais sam-se em negar esta hipótese, apontando para
se manifesta. uma continuidade entre as obras iniciais e fi-
Outro ponto com o qual Durkheim mostra- nais do autor. Mas, a despeito desse embate, a
va-se de pleno acordo diz respeito à possibili- interpretação predominante na tradição socio-
dade de uma ciência moral. Segundo o soció- lógica deu grande ênfase ao período relativo a
logo francês, uma das contribuições mais im- seus primeiros trabalhos, consagrando a inter-
portantes legadas pelo pensamento social ale- pretação segundo a qual a sociologia durkhei-
mão está na recusa tanto às concepções éticas miana desenvolveu-se na direção da filosofia
kantianas – segundo as quais os valores morais comtiana.
podem ser deduzidos de princípios abstratos – Porém, o positivismo está longe de ser a sua
quanto às concepções éticas utilitaristas – para única fonte teórica. Isto porque, ao longo de
os quais a moralidade deriva, espon- sua formação, Durkheim interagiu com outras
taneamente, das relações econômicas. Isto correntes de pensamento, tão ou mais impor-
porque, para seus representantes, as regras e as tantes do que aquela. Este é o caso, por exem-
ações morais são propriedades da organização plo, da filosofia neokantiana. Como observa
social, modeladas pelas necessidades coletivas, Edward Tyriakian (1980), durante o período
sendo, por isso, possível estudá-las cientifica- em que permaneceu na École, Durkheim so-
mente. Por seu caráter empírico, tanto para os freu grande influência do pensamento neokan-
representantes do pensamento social francês tiano, através de intelectuais como Boutroux e
quanto para Durkheim, os fatos morais podem Renouvier. A filosofia kantiana, que havia
ser observados, classificados, interpretados e penetrado em território francês ainda nas pri-
descritos como quaisquer outros fenômenos. meiras décadas daquele século, acabou revita-
Como é possível constatar, esses princípios lizada e difundida, em especial entre os repu-
já se faziam presentes entre os pensadores blicanos, tendo como principal veículo os li-
sociais franceses da primeira metade do século ceus (equivalentes às escolas secundárias) e as
XIX, porém, diferentemente destes, os pensa- universidades.87
dores germânicos conseguiram alcançar um
importante grau de institucionalização, tornan- 87
Sobre a difusão do pensamento neokantiano entre
do-os hegemônicos do ponto de vista acadêmi- os republicanos franceses, vale destacar o romance
de Maurice Barrès, Les déracinés, publicado em
1897. Trata-se do primeiro volume de uma trilogia
86
Como demonstra Giddens (2005), Durkheim intitulada I´Energie Nationale. Contemporâneo de
estava familiarizado com esse axioma desde os Durkheim, Barrès experimenta a mesma educação
tempos de estudante. Basta lembrar que o primado secundária no Liceu de Nancy, província de Lore-
da consciência coletiva sobre as consciências indi- na, baseada em pressupostos laicos e republicanos.
viduais já aparecia nos trabalhos de pensadores O livro retrata um grupo de estudantes secundários
franceses como Saint-Simon, Comte e Renouvier. que, no último ano, tem como professor de filosofia
o “kantiano entusiasta” Bouteiller. Cumpre recordar

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A razão desta afinidade é, até certo ponto, sensível. Em suma, conhecer é produzir juízos,
fácil de explicar. Basta lembrar que, em sua relacionando dados, noções, coisas e ideias por
Crítica da Razão Pura, Kant se empenhou em meio de sínteses. Pois bem: Durkheim recusa
salvar a certeza do conhecimento do ceticismo este último ponto. Conquanto admita que o
devastador de David Hume. Sua tentativa para conhecimento se dê em termos de relação entre
restabelecer os limites da certeza absoluta sem sujeito e objeto, não endossa o postulado se-
recorrer diretamente a Deus, lançando as bases gundo o qual as diversas categorias do enten-
de uma moralidade racional, ia ao encontro do dimento são inatas, naturalmente anteriores à
desejo republicano de uma moral laica. Num experiência. Afinal, isto corresponderia a acei-
país como a França, onde a ascendência da tar a precedência lógica do indivíduo sobre a
ciência – seja em sua vertente evolucionista ou sociedade, impedindo, não obstante, o estabe-
organicista – e da visão do homem enquanto lecimento da sociologia. Para ele, embora os
ator motivado pelo interesse econômico havia, aparatos categoriais e formais sejam anteriores
também, abalado a confiança na estabilidade a cada ato cognitivo, não o são em relação à
do mundo, a proposta kantiana não podia ser experiência em geral, visto constituírem-se no
mais adequada. Afinal, o filósofo de interior dela. Noções como as de tempo e es-
Königsberg opunha-se ao individualismo e ao paço – para mencionarmos as mais em-
relativismo sem adotar um tom reacionário, blemáticas – são construções coletivas e não
isto é, sem apelar às instituições do passado ou individuais. Deste modo, Durkheim lança as
às explicações metafísicas tradicionais, pro- bases de uma sociologia do conhecimento, que,
porcionando um enquadramento ideal em rela- intersectada por seus estudos sobre religião,
ção aos dilemas de cunho epistemológico e abre espaço para uma abordagem sociológica
moral. dos fenômenos morais consoante com os ideais
O modo como Durkheim retraduz as ideias republicanos com os quais comungava. Na lei-
kantianas, portanto, merece nossa atenção. Isto tura do sociólogo a fonte transcendental da
porque o mestre francês procura adaptá-las ao qual deriva a ação moral é a sociedade, cuja
método sociológico, o que, segundo a maioria existência é anterior e posterior à de seus
dos estudiosos, configurou uma espécie de membros.
“sociologização do kantismo”. Sabe-se que Há, todavia, um segundo ponto de aproxi-
entre os méritos de Kant está o de ter superado mação entre os dois pensadores: o que se refere
a velha querela entre empirismo e racionalis- aos atributos da regra moral. Kant afirmara que
mo, através de um racionalismo crítico. Dur- toda regra moral é inevitável para o indivíduo,
kheim conhecia razoavelmente bem as propos- à medida que se lhe impõe. Durkheim abraça a
tas kantianas, tão marteladas durante sua for- posição kantiana acerca do “dever”, porém,
mação básica e universitária. A tese kantista de incrementa outro atributo, a saber, a “desejabi-
que todo o conhecimento resulta de uma sínte- lidade”. Segundo o sociólogo francês, as regras
se a priori congrega dois princípios fundamen- morais são, a um só tempo, obrigatórias e dese-
tais, a saber: (a) o entendimento possui uma jáveis, o que faz do fenômeno moral uma es-
base empírica, limitando-se à experiência fe- pecificidade em relação a outras regras de con-
nomênica, uma vez que não pode atingir as duta. Com isso, Durkheim suaviza o caráter
coisas em si mesmas, suas essências; (b) a coercitivo da moralidade, bem como abre es-
relação de conhecimento se caracteriza pela paço para se pensar a adesão à moral como
subordinação do objeto ao sujeito cognoscente, uma possibilidade para o indivíduo transcender
que ordena, dentro de certas noções a priori os limites de sua animalidade, alcançando uma
(categorias e formas), os dados da experiência segunda natureza, a social.
Por último, é ainda possível avistar a influ-
que o neokantismo adquire grande prestígio na ência de Kant em relação à tentativa durkhei-
Terceira República Francesa, principalmente nos miana de fundar uma ciência moral. Não por-
meios universitários parisienses, conquanto tenha que o filósofo alemão tenha preconizado qual-
extrapolado o mundo acadêmico e se convertido quer empreendimento desta natureza, mas pelo
numa espécie de moral secular. A releitura de Kant, fato de atribuir um sentido prático à ação mo-
pensador alemão do século XVIII, e a introdução de ral. Não é demais recordar que Kant, em con-
elementos cientistas e racionalistas, fazem do neo- sonância com o asceticismo protestante, aborda
kantismo, até certo ponto, uma forma eficaz de se
em sua filosofia temas como a “autonomia da
opor à moral católica tradicional dentro dos moldes
requeridos pelo republicanismo francês. vontade”, o “imperativo categórico” e o pri-

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mado do “dever”, conciliando motivação indi- “o conjunto de crenças e dos sentimentos co-
vidual e orientação coletiva, elementos funda- muns à média dos membros de uma mesma
mentais para a formulação de uma moralidade sociedade forma um sistema determinado, que
laica. Essa relação entre ciência e moral, e tem vida própria; podemos chamá-lo de cons-
mais genericamente entre conhecimento e va- ciência coletiva” (Durkheim, 2008, p.50) [gri-
lores, é retomada por Durkheim, que aproxima fos do autor].
os juízos de fato e os juízos de valor, deduzin- Disso decorre a superioridade da esfera so-
do as duas razões kantianas, a especulativa e a cial sobre a esfera individual. A sociedade,
prática, de uma única fonte – a sociedade – à “produto de uma imensa cooperação que se
medida que ambos supõem ideais (valores e estende não apenas no espaço, mas no tempo”,
conceitos). Este tour de force possibilitou ao apresenta-se como um ser psíquico distinto,
sociológico francês não só superar a aparente cuja força se faz sentir sobre as consciências
antinomia entre ciência e moral, mas também particulares. Trata-se, pois, do “mais poderoso
reivindicar para a sociologia o estatuto de ins- feixe de forças físicas e morais”, do qual se
trumento explicativo e transformador da ética, depreende uma vida mais elevada que reage
colocando-a no centro da reconstrução social e sobre a “multidão de espíritos diversos” dos
moral da sociedade francesa. quais resulta, tornando-se, por isso, “uma inte-
lectualidade mais rica e mais complexa que a
3. Sob o fogo cruzado: as críticas à so- do indivíduo” (DURKHEIM, 1989, p.45).
ciologia durkheimiana Com efeito, devido à dinâmica de suas di-
Grosso modo, os críticos que inscrevem versas instituições, a sociedade se autonomiza
Durkheim no interior da tradição conservadora, em relação as suas unidades componenciais,
apontam algumas características – tais como a investindo-se, assim, de uma autoridade moral
percepção evolucionária da história, o natura- que se afigura aos homens e da qual estes não
lismo metodológico, o cientificismo, o organi- podem se separar sob o risco de perder a me-
cismo e seus efeitos – que supostamente defi- lhor parte de si mesmos: a sua condição huma-
nem a sua sociologia. Nessa seção, objetiva-se na (Cf. DURKHEIM, 1978, p.45).
contemplar as críticas mais contundentes ao Assim sendo, na ótica de seus críticos, Dur-
pensamento durkheimiano. Para fins didáticos, kheim seria responsável por desenvolver uma
e com vistas a detectar o cerne destas interpre- espécie de “transcendentalismo” social. Geor-
tações, decidimos separá-las. Também opta- ges Gurvitch (1986, p.11), por exemplo, fala
mos por não nos posicionarmos, pelo menos em uma identificação da “consciência coleti-
agora, em relação ao conteúdo de cada uma va” com o “imperativo, a razão a priori, o Bem
delas, mas tão somente apresentá-las. Supremo e, finalmente, a Divindade”, en-
quanto Theodoro Adorno (2008, p. 118) culpa
3.1. Uma sociologia sem sujeito: o anti- o sociólogo francês por hipostasiar a socieda-
individualismo durkheimiano de, tornando-a uma “realidade de segundo
Muitos dos críticos de Durkheim salientam grau”. Deste ponto de vista, o indivíduo não
o caráter anti-individualista de sua sociologia. passaria de um mero suporte das influências
Alegam que ela constitui uma “artilharia pesa- coletivas, ou seja, um ser passivo e impotente
da” contra a consciência individual, por um frente às forças exercidas pela realidade social.
lado, contrapondo-se aos filósofos iluministas Talvez por isso, a educação moral seja um
(NISBET, 2003), por outro, dando forma a um dos temas mais recorrentes de sua sociologia,
tipo de sociologia “sem sujeito” (DUBET, pois, em último caso, só é possível explicar o
1996). indivíduo a partir dos valores sociais, políticos,
A maioria dessas críticas dirige-se a seus econômicos e culturais aos quais está submeti-
primeiros trabalhos – em especial Da Divisão do – que dependem da ação educativa para ser
do Trabalho Social, As Regras do Método internalizados.
Sociológico e O Suicídio – onde o sociólogo se 3.2. Socialização, moralização e controle
opõe, veementemente, tanto ao sujeito da psi- social
cologia quanto ao sujeito da filosofia. Isto
porque, para ele, a sociedade não se reduz a Em seu itinerário intelectual, Durkheim de-
soma de suas partes, constituindo uma realida- dicou grande parte de suas pesquisas a temas
de sui generis, detentora de uma consciência como socialização e moralidade. Estes, aliás,
independente. Como afirmou em certa ocasião, podem ser facilmente avistados em seus escri-

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tos sobre educação. Não é preciso ir muito a questão social como uma questão eminen-
longe. Em seu trabalho Educação e Sociologia, temente moral, Durkheim desloca a discussão
por exemplo, o autor analisa o modo como da esfera macroscópica, fonte autêntica da
indivíduos, espacial e temporalmente situados, produção dos valores, para a esfera da micros-
são socializados e passam a ocupar uma função cópica, implicando na deseconomização e de-
social consoante a seu grupo originário. Mes- sistoricização das relações sociais. Os efeitos
mo consentindo que este processo possa variar, deste deslocamento reverberam na atribuição
visto que os valores diferem de uma sociedade de uma dimensão psíquica aos fatos sociais –
para outra, salienta a imprescindibilidade da evidenciada na distinção entre consciência
educação para a aculturação das novas gera- coletiva e consciência individual –, situando na
ções. esfera moral qualquer tentativa de especifica-
O sistema de ensino, que se tornou alvo de ção do ser social.
disputa na França88, desponta no horizonte A psicologização do social, assim como em
durkheimiano como o único capaz de formar o Comte, não desemboca na individualização,
cidadão republicano dentro de um escopo ra- mas na evidência societária das suas refrações
cional e laico. Afinal, como a maior parte da- mais fundamentais para o conservantismo: o
queles que passaram pela École Normale Supé- problema da ordem. 89 Em outras palavras,
rieure, Durkheim nutria grande entusiasmo em embora adote um viés bem menos especulativo
relação ao republicanismo. Como transmitir os do que o de seu predecessor, Durkheim, calca-
valores republicanos? Como forjar indivíduos do sem dúvida num quadro teórico mais sofis-
afinados com os ideais da III República Fran- ticado, conclui que um controle efetivo e ope-
cesa? rante depende da internalização de valores. Na
A resposta às questões acima levantadas re- medida em que focaliza, de um lado, certos
cai sobre o tipo de formação ofertada. Disto mecanismos básicos que determinam a estrati-
decorre a importância atribuída ao Estado – ficação social e, de outro, as tensões que destes
espécie de cérebro social – na organização do derivam, Durkheim toma a normatização como
sistema de ensino. Na medida em que a educa- um instrumento de equalização dos conflitos
ção é um “fato social”, que cumpre uma dupla sociais.
função (diferenciadora e homogeneizadora), É nesta direção que se movem as críticas de
então, não pode ficar à mercê dos interesses de Heloísa Fernandes (1994) e Maria Helena Oli-
grupos particulares, devendo, por isso, ser va Augusto (2009). A educação de modo geral
gerenciada por um órgão acima de quaisquer e a escola em particular promovem não apenas
rivalidades, e de acordo com os ideais e os a socialização dos indivíduos, mas, sobrema-
valores reclamados pela sociedade em seu neira, a sua moralização. O corolário disto é
conjunto. que as faixas mais jovens da população são
Na visão dos críticos, porém, o processo pe- vistas como moralmente incompletas, cabendo
lo qual as gerações mais jovens são submetidas ao sistema de ensino o encargo de moralizá-las
aos padrões sociais e culturais estabelecidos, e adaptá-las à vida coletiva.
oculta um tipo de violência simbólica, sutil e Segundo a interpretação desses críticos, o
eficaz. Trata-se da inculcação de valores e sociólogo francês toma a ação educativa como
normas sociais através, sobretudo, do sistema uma ação moralizante, na medida em que a
escolar. Apesar das posições objetivistas assu- função primacial da escola fica reduzida a
midas em seus primeiros trabalhos, ao encarar introjetar na criança aqueles valores e normas
requeridas pela sociedade. Desse ponto de
88
Na França, até o último quartel do século XVIII, vista claramente adultocêntrico, o indivíduo é
o sistema de ensino esteve sob os auspícios da Igre- compreendido como um ser da falta, da ausên-
ja Católica. No decorrer do século XIX, entretanto, cia, que necessita acessar o legado cultural
os republicanos liberais passam a reivindicar o seu produzido pelas gerações anteriores para poder
domínio e a defender a sua laicização, o que desen- desfrutar das benesses da vida social. A educa-
cadeou um longo e feroz embate entre os dois gru-
pos. Com o advento da III República Francesa, em
89
1870, o projeto de educação republicano se efetiva, Essa crítica, aliás, é recorrente não só entre os
a partir dos esforços de nomes como León Gambet- marxistas, mas, também, entre autores funcionalis-
ta e Jules Ferry, ambos signatários do republica- tas como Talcott Parsons (2010) e até mesmo entre
nismo liberal (Cf. FERNANDES, 1994; BOR- os representantes do pensamento conservador con-
RELL, 2000). temporâneo, a exemplo de Robert Nisbet (2003).

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ção constituiria, assim, o principal mecanismo logia estaria na contramão do pensamento utó-
para a realização desta inserção. Todavia, sub- pico e revolucionário, negando, por conseguin-
jacente ao processo de socialização- te, toda ação transformadora. Na medida em
moralização, encontra-se a intenção de moldar que a sociedade, como qualquer outro orga-
o indivíduo à ordem social. Visto que a própria nismo, possui uma dinâmica própria, indepen-
divisão do trabalho desponta como empecilho dente das volições particulares, qualquer ação
a uma educação unitária, as diferenças entre os no sentido interromper, interferir ou transfor-
indivíduos se justificariam pela necessidade mar as suas leis põe em risco o curso natural da
que a sociedade tem de manter-se viva. Por vida social. Deste ponto de vista, as diferenças
isso os desejos individuais necessitam ser limi- resultantes da divisão do trabalho podem ser
tados – em outros termos moralizados – para consideradas naturais, já que alguns órgãos
que cada um detenha-se a sua função sem o sociais, por suas especificidades funcionais,
prejuízo do todo. gozam de uma situação especial e mesmo pri-
vilegiada em relação a outros órgãos. Trata-se,
3.3. O naturalismo metodológico e a con- pois, da naturalização das desigualdades soci-
servação da ordem social burguesa ais, já que, a exemplo do que acontece na natu-
Entre as críticas mais comuns à sociologia reza, cada grupo social não reclama senão a
durkheimiana, destaca-se a que advém do mar- quantidade proporcional a sua necessidade.
xismo. Alguns autores identificados a essa Com efeito, as ideias revolucionárias soam a
corrente teórica, tais como Michael Löwy Durkheim como “sonhos infantis”, meras pro-
(2007) e José Paulo Netto (2011), entendem jeções, ainda que revestidas de um discurso
que Durkheim dá continuidade ao positivismo científico.
de Comte, não obstante adote uma postura A démarche durkheimiana apoia-se num
menos mística e mais científica. Para estes pressuposto basilar, a saber, a homogeneidade
intérpretes, o modo como o sociólogo francês epistemológica dos distintos domínios científi-
encara os fenômenos sociais, tomando-os co- cos. Não sem propósito, Durkheim exige do
mo fatos similares aos naturais, pois suposta- sociólogo uma postura objetiva, tal como o
mente submetidos às mesmas leis, configuraria químico ou o biólogo ao se debruçar sobre os
uma espécie de “conservadorismo meto- seus respectivos objetos. Entretanto, questio-
dológico”. nam os críticos marxistas, como o cientista
De fato, sobretudo em suas primeiras obras, social pode se colocar no mesmo estado de
Durkheim adota um escopo francamente orga- espírito destes outros cientistas se o objeto de
nicista, segundo o qual a sociedade se caracte- seu estudo, a sociedade, constitui um terreno
riza como um “organismo vivo”, formado por marcado por diferentes concepções de mundo e
partes interdependentes e em uma cor- interesses sociais radicalmente opostos? Como
relação hierárquica que, para funcionar bem, ignorar o combate político-ideológico travado
necessitam de um ordenamento mínimo. Não no campo social? É possível falar em neutrali-
por acaso, o princípio metodológico funda- dade analítica em ciências sociais?
mental de sua sociologia considera os fatos Para os referidos críticos, o princípio expos-
sociais como “coisas”. Essa ideia, exposta to pelo autor de As Regras do Método Socioló-
primeiramente pelos representantes da econô- gico, segundo o qual o sociólogo deve “afastar
mica política e mais tarde absorvida pela filo- sistematicamente as prenoções”, bem como
sofia social comteana, serve bem às pretensões “cercar-se de todas as precauções possíveis
do sociólogo, que estabelece as bases de seu contra as influências irracionais”, é inócuo em
método “naturalista-positivista”. termos científicos. Em resumo, os marxistas
Na ótica dos críticos marxistas, Durkheim refutam a noção de objetividade analítica, difu-
foi responsável por subverter o caráter revolu- sa entre os positivistas, bem como salientam a
cionário das doutrinas naturalistas que, nas ingenuidade da análise durkheimiana, centrada
mãos dos insurretos de 1789, serviram para em uma acepção naturalista, organicista e evo-
destruir a ordem social aristocrática. O soció- lucionária de sociedade, elementos que, em
logo é acusado de empregá-las como justifica- última instância, contribuem para legitimação
ção científica da ordem social burguesa, visto da ordem social burguesa e reforçam o rótulo
que, para ele, as leis naturais da sociedade se de “conservador” que recaí sobre sua sociolo-
impõem à vontade humana e não podem ser gia.
abruptamente modificadas. Destarte, sua socio-

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4. Durkheim e o conservadorismo: à as posições durkheimianas e aquelas assumidas


guisa de conclusão pelos filósofos iluministas. Mas, em que medi-
da Durkheim é um antiindividualista? Até que
Observemos abaixo o que afirma Robert ponto a sua sociologia se contrapõe ao legado
Nisbet sobre a sociologia durkheimiana e a iluminista?
tradição conservadora que a precede: Anthony Giddens (1998), um dos maiores
No começo do século XIX os conserva- estudiosos de Durkheim, lança algumas luzes
dores constituíram uma força antiilumi- sobre o assunto. Em um artigo intitulado “Dur-
nista. Na realidade não há uma só pala- kheim e a questão do individualismo”, o soció-
vra, uma só ideia central daquele renas- logo britânico ajuda a desvelar o lugar que o
cimento conservador, que não procure indivíduo ocupa na sociologia durkheimiana.
refutar as ideias dos philosophes. (...) No Conforme argumenta, os escritos de Durkheim
final do século, nas obras de Durkheim, representam uma tentativa de separar o indivi-
de ideias não religiosas e liberais em po- dualismo liberal – encarado como uma das
lítica, encontramos certas teses do con- características fundamentais da ordem social
servadorismo francês convertidas em al- moderna – tanto do individualismo metodoló-
gumas das teorias essenciais de sua so- gico dos utilitaristas quanto do individualismo
ciologia sistemática: a consciência cole- ético de Kant. Sendo assim, para que as posi-
tiva, o caráter funcional das instituições ções utilitaristas e kantianas pudessem ser re-
e ideias, as associações intermediárias e jeitadas, o individualismo teria que se referir a
também seu ataque ao individualismo um processo social, visto que a sociologia não
(NISBET, 2003, p. 26-27) [minha tradu- podia basear-se em uma teoria cujo ponto de
ção]. partida é o indivíduo. Se o sociólogo francês
admite que a “consciência coletiva” se impõe
Seria Durkheim um conservador? Se acaso tiranicamente aos indivíduos, sufocando-os,
a resposta for positiva, a que tipo de conserva- também salienta, no tocante às sociedades
dorismo o sociólogo francês estaria vinculado? funcionalmente complexas, que esta tende a
Tratar-se-ia de um conservadorismo reacioná- enfraquecer, estimulando o individualismo.
rio, tradicionalista ou liberal? Poderíamos con- Uma forte consciência moral só adquire senti-
siderar a sua sociologia como sendo absoluta- do em relação às sociedades tradicionais, mas
mente conservadora? nunca em relação às sociedades modernas,
Tais indagações, postas no início deste arti- dada complexidade que se lhe encerram. Por
go e reiteradas agora, revelam-se de suma im- este prisma, o individualismo desponta não
portância, pois trazem à tona uma série de como um efeito deletério, mas com uma das
nuances que podem amenizar ou acentuar as características definidoras do mundo moderno.
posições assumidas pelo sociólogo ao longo de A discussão em torno do “individualismo mo-
sua carreira. Uma resposta conclusiva, todavia, ral”, iniciada em Da Divisão do Trabalho So-
depende de uma análise minuciosa das críticas cial e substancialmente esclarecida em seus
que lhe foram endereçadas. Do contrário, o escritos posteriores, sobretudo após a aprecia-
rótulo de conservador tende a tomar a forma ção subsequente das íntimas conexões entre
mais dilatada possível, colocando Durkheim no religião e autoridade moral, abre espaço para
mesmo patamar de autores que, a nosso ver, demonstrar que a expansão das liberdades in-
distanciam-se, tanto programática quanto me- dividuais constitui um imperativo histórico-
todologicamente, de suas propostas mais ful- social inadiável e necessário – que nada tem a
crais. Deste modo, nesta última seção, preten- ver com a perseguição dos interesses próprios.
de-se percorrer as críticas anteriormente anun- Destarte, em termos substantivos fica eviden-
ciadas e, a partir de uma análise minuciosa, ciado que Durkheim, longe de ignorar o legado
posicionarmo-nos em relação ao sentido mais iluminista, esforça-se para concretizar os ideais
original de sua sociologia. da Revolução Francesa 90, embora, em termos
Aliás, entre as inúmeras críticas dirigidas a metodológicos, o seu afastamento da inter-
Durkheim, uma merece especial atenção: a que pretação segundo a qual o indivíduo é o ponto
aponta o caráter antiindividualista de sua so- de partida da explicação e da transformação
ciologia. Os sociólogos Robert Nisbet (2003) e
François Dubet (1996) são um exemplo disso.
90
Ambos identificam uma oposição radical entre Referimo-nos aos ideais contidos na Declaração
dos Direitos do Homem, de 1793.

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social, propagada pelos philosophes, seja mais Em segundo lugar, a crítica marxista tende
do que esperado, dado que, para ele, a própria a ignorar as diferenças programáticas, metodo-
individuação resulta de um longo e lento pro- lógicas e substantivas que marcam os trabalhos
cesso coletivo. dos autores vinculados ao positivismo. Assim,
Já a acusação de que Durkheim, por meio Durkheim é visto como mero decalque de
de sua sociologia moral e da educação, defende Comte, um seguidor dos apologistas católicos
a moralização das novas gerações, forjando-as conservadores e, por suposto, um conservador.
no sentido de adequá-las aos valores e à estru- O grande problema dessa interpretação é que
tura social vigente, parece desconsiderar o fato não há maiores preocupações em desvelar as
de que, independentemente do tempo e do características intrínsecas a cada um desses
espaço, qualquer sociedade procede deste mo- sistemas sociológicos, nem o contexto especí-
do. Em outras palavras, não há meio social em fico em que tiveram origem. Ao fim e ao cabo,
que as gerações adultas não ajam sobre as ge- dentro de um escopo marxista, os sociólogos
rações mais jovens através das diversas instân- positivistas se equivalem à medida que repre-
cias socializadoras. A favor do autor, pode-se sentam os valores burgueses.
afirmar que este jamais coadunou com a ideia É bem verdade que Durkheim, a exemplo
de uma estagnação moral via reprodução gera- dos conservadores clássicos, jamais abandonou
cional. O modo como opôs o individualismo a perspectiva evolucionária da história, segun-
moral às formas tradicionais de moralidade do a qual uma intervenção abrupta ou revolu-
constitui uma clara prova disso. cionária põe em risco a sua dinâmica. Mas, não
Finalmente, a crítica marxista segundo a obstante essa aproximação, o sociólogo rejei-
qual a sociologia durkheimiana constitui uma tou o reacionarismo imbricado na defesa da
defesa da ordem burguesa é a mais difícil de transposição de valores passadistas, típicos das
ser combatida. Isto porque o naturalismo em- sociedades tradicionais, para as sociedades
pregado pelo sociólogo francês deixa pouco complexas – como no caso de Comte – ou
espaço para se pensar nas relações de poder mesmo a ideia de um retorno às sociedades
entre as diversas frações sociais que configu- tradicionais – conforme defendiam Maistre,
ram a complexa sociedade industrial moderna. Bonald e Chateaubriand. Ademais, seu evolu-
De fato, Durkheim está longe de ser um crítico cionismo histórico nada tem de teleológico, no
do modelo liberal, entendido como resultado sentido de indicar uma superioridade – seja
de um longo processo histórico-social. Mas, ética, ontológica ou política – das sociedades
ainda assim, é possível fazer algumas pondera- industriais em relação a outras formas mais
ções. simples de organização social. Afinal, o crité-
Em primeiro lugar, Durkheim repudia to- rio empregado pelo autor para discernir as
talmente a lógica da dominação classista. O sociedades complexas das tradicionais é mera-
sociólogo jamais atribuiu qualquer vantagem a mente morfológico, baseado na divisão do
um estrato social específico – tal como Saint- trabalho. Trata-se, pois, de modelos sociais
Simon e sua “classe de industriais”. Parece distintos, cada qual com seus valores espe-
desnecessário discutir a visão de Durkheim cíficos, mas que não podem e nem devem ser
sobre a sociedade capitalista. Para ele, a ordem analisados em termos de superiori-
social industrial constitui uma etapa importante dade/inferioridade ou em termos finalísticos.
da evolução histórica. Mas disso não decorre
que coadune com a exploração gerada em seu *****
interior. Em diversas ocasiões, aliás, o autor
aponta soluções no sentido de equalizar as Talvez agora possamos responder às ques-
desigualdades sociais: a extinção da herança, o tões levantadas ao longo deste trabalho. É cor-
fortalecimento das corporações-profissionais, reto afirmar que Durkheim flertou com o pen-
eleições baseadas num amplo sistema de cor- samento conservador, sobretudo no início de
porações nacionais em vez das velhas organi- sua carreira. O próprio sociólogo jamais omitiu
zações distritais, um Estado fiscalizador, com- tal influência. Contudo, se um pensador incli-
prometido com a sociedade civil em seu con- na-se no sentido de uma determinada fonte
junto, e o mais importante, a consolidação de intelectual, isso não significa que reproduzirá
uma moral laica e racional, capaz de limitar os integralmente as ideias por ela compreendidas.
insaciáveis apetites humanos, independente- Em outros termos, o fato de Durkheim lançar
mente de classe social. mão de noções extraídas da filosofia social

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conservadora não faz dele, automaticamente, social integrado configura um processo gradual
um conservador. Para melhor explicitar nossa e coletivamente construído. De tal modo que
posição, vale a pena sublinhar alguns pontos. só uma ação coletiva tem força suficiente para
Primeiro ponto: o conservadorismo não modificar uma convenção, já que o indivíduo
constituiu a única fonte teórica com a qual isolado pouco ou nada pode contra uma norma
Durkheim se relacionou. Como tivemos opor- ou tradição instituída. Sua teoria, portanto, está
tunidade de verificar, as fontes durkheimianas longe de ser homeostática como comumente se
são bem mais amplas e transcendem os limites afirma.
do pensamento conservador. Isso reforça a Quinto ponto: o lugar central ocupado pelo
posição assumida por Peter Burke a respeito indivíduo na moralidade atinente às sociedades
dos modelos explicativos utilizados na análise funcionalmente complexas sinaliza que, apesar
dos processos sociais. Definidos como uma das críticas empreendidas ao utilitarismo, Dur-
“construção intelectual que simplifica a reali- kheim reconhece a individualidade como um
dade com o objetivo de entendê-la”, estes mo- valor necessário ao mundo moderno. Isto, sem
delos constituem uma espécie de mapa, cuja dúvida, reforça a observação anterior de que a
“utilidade depende da completa omissão de sua sociologia configura um desejo de sinteti-
alguns elementos dessa mesma realidade” zar conservadorismo e liberalismo, sem recor-
(Burke, 2002, p. 45). Ora, um olhar mais aten- rer às soluções radicais incutidas no socialis-
to sobre os grandes sistemas sociológicos que mo.
marcaram a passagem do século XIX para o Sexto e último ponto: não é o problema da
século XX é o suficiente para verificar que não ordem, no sentido hobbesiano – conforme
há, entre os grandes sociólogos deste período, assinala Parsons – e sim o tipo de moralidade
uma única figura significativa cujas ideias não mais adequada às sociedades industriais mo-
envolvam algum tipo de síntese das diversas dernas o ponto de partida das inflexões dur-
correntes ideológicas – conservadorismo, libe- kheimianas. Longe de querer elaborar novas
ralismo, solidarismo e socialismo. Durkheim, formas de controle social, as preocupações de
certamente, não é uma exceção. Durkheim orbitam em torno da necessidade de
Segundo ponto: a influência da filosofia um conjunto de valores que dê conta de aten-
moral kantiana é tão ou mais significativa do der às demandas de uma sociedade cada vez
que a presença do positivismo comteano. Se os mais centrada na expansão das liberdades indi-
primeiros trabalhos de Durkheim encarnam o viduais.
cientificismo típico da filosofia positivista, os Com efeito, a alcunha “conservador” tende
trabalhos ulteriores estão muito mais sintoni- a minimizar toda a complexidade que encerra a
zados com os problemas kantianos, o que, sociologia durkheimiana. Como outros grandes
inclusive, contribuiu para o direcionamento de pensadores sociais daquela época, Durkheim
seus estudos, que passaram a se preocupar com procurou articular as diversas tendências de
temas como o sagrado e a religiosidade. pensamento circulantes na Europa. Tomá-lo
Terceiro ponto: a maior parte daqueles que como um conservador, no sentido mais estrito
apontam o caráter conservador da sociologia no termo, significa desconsiderar a multiplici-
durkheimiana, ignora a sua dimensão histórica, dade de influências que contribuiu para a edifi-
ou seja, desconsidera a passagem da solidarie- cação de sua teoria sociológica. Destarte, não
dade mecânica para a solidariedade orgânica – obstante o reconhecimento da influência parci-
apresentada em sua tese doutoral – como a al exercida pela filosofia conservadora, sua
base fundamental de sua análise sociológica. O sociologia tem um débito, senão maior, pelo
resultado disso é que há uma tendência em menos igual, com outras correntes, o que nos
tomar os elementos morais e funcionais típicos impede – por uma questão de cautela – de de-
da ordem social tradicional como sendo os signarmos o conjunto de seus trabalhos como
elementos definidores da ordem social moder- sendo exclusivamente conservador. No máxi-
na. mo, talvez possamos auferir-lhe o rótulo de
Quarto ponto: do fato de não creditar às re- liberal em termos políticos, me-
voluções (rupturas descontínuas) um papel todologicamente socializante e conservador,
histórico crucial não decorre que Durkheim com a ressalva, porém, de que se trata de um
ignore as transformações, muito pelo contrário. recorte arbitrário, com finalidades puramente
Conforme expôs em diversas ocasiões, toda e didáticas, pois, para além de quaisquer rubri-
qualquer mudança no interior de um sistema cas, uma obra tão vasta e complexa como a de

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Durkheim, similarmente às obras não menos DURKHEIM, Émile. Lições de Sociologia.


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RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 14, n. 40, abril 2015


158

Abstract: The present article propose a discussion between a developed theory of Émile Durk-
heim and the classic conservative ideas. By one point of the view, they intend understanding how
the French sociologist assimilated conservative components on the other hand, if that influence
would be enough to attributing to Durkheim job a conservator rubric. Because of that It has in-
tended avoiding possible qualifications, most of the time they reduced and unable to take over all
complexities that involves a theoretician production like Durkheim. The utilized analysis is emi-
nently bibliographic and revisionist, staying in primary wellspring as secondary ones. Keywords:
conservatism, liberalism, sociology, moral and methodology.

RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 14, n. 40, abril 2015


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VICENTE, Décio Soares. “A origem – o que virá


depois da ‘economia verde’?”. RBSE – Revista
Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 14, n. 40,
pp. 159-186, abril de 2015. ISSN 1676-8965

A origem - o que virá depois da “economia verde”?

Décio Soares Vicente


Recebido: 20.07.2014
Aprovado: 30.09.2014

Resumo: Este texto visa analisar as ideias de uma nova arquitetura econômica, que concilia ética,
sociedade e natureza, proposta apresentada no livro Muito Além da Economia Verde, de Ricardo
Abramovay. A Rio+20 terminou com resultados não muito satisfatórios para aqueles que creem
num mundo melhor. A sensação com as conclusões do evento podem ser comparadas como a de
estar dentro de um labirinto, um lugar onde os caminhos nos levam sempre para um beco sem saí-
da, perdidos sem ter noção para onde ir, uma armadilha enlouquecedora. Mas as esperanças de vi-
ver um sonho impossível ainda não acabaram, e na tentativa de encontrar respostas para um ama-
nhã possível, nossa missão é contribuir para o debate com a análise das possibilidades de saídas
desse labirinto. Palavras-chave: mercados, economia verde, prêmio nobel, sustentabilidade, lou-
cura

Introdução estamos passando por mudanças radicais, e que


tais transformações significam uma possibili-
A Conferência das Nações Unidas sobre dade de ruptura com o passado. Alguns até
Desenvolvimento Sustentável (CNU-DS) teve
ousam em dizer que um novo paradigma e-
como principal objetivo discutir ideias e com- merge. De fato, temos que admitir o esgota-
promissos políticos em torno da construção de
mento do paradigma moderno, mas agora a-
uma “economia verde”. Apesar de que, mesmo firmar a emergência de um novo paradigma no
que nós tenhamos a sensação de poucos resul- discurso do “desenvolvimento sustentável”
tados do evento Rio+20, com certeza o encon- acaba causando um pouco de estranheza.
tro pode ser considerado um marco na história Contudo, a iniciativa de ressignificação do
do debate público de propostas de mudanças
sentido do desenvolvimento pode ser um co-
para melhor combinar a preservação da nature- meço, que exige além da racionalidade, tam-
za e da economia. Neste sentido, este artigo é
bém exige crença e imaginação. A ideia aqui é
uma primeira iniciativa que visa acompanhar a
tentar esclarecer o debate em torno do tipo de
rede de produção de conhecimento que envol- mentalidade que localiza problemas e volta
ve novas propostas de economias, principal- seus esforços para corrigi-los. Isto é, aquilo
mente realizar interpretações sobre a produção
que venho denominando como pensamento
literária em torno do que vem sendo denomi-
sustentável. Pois bem, este artigo parte da aná-
nado “desenvolvimento sustentável” e “eco- lise do Muito Além da Economia Verde, do
nomia verde”. filósofo Ricardo Abramovay, lançado pela
Ruptura ou resistência? Ou conforme uma editora Abril dentro da coleção “Planeta Sus-
visão Shakespeariana: “Ser ou não ser?”. A tentável”, publicação que oferece uma propos-
possibilidade de pensar novas formas de ativi-
ta, uma nova arquitetura, para economia. O
dade econômica que rompam com a reprodu- livro foi lançado na Rio+20, com a colabora-
ção dos problemas estruturados da sociedade
ção da Fundación Avina.
contemporânea não é tão simples. Volta e meio
aparece no debate científico a ideia de que

RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 14, n. 40, abril 2015


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O Labirinto do Minotauro e o Anti- tinha que vencer para libertar Atenas da tirania
herói de Creta. Mesmo o mito não correspondendo
com a realidade concreta, mas não deve ser
Desvendar os segredos da mente humana visto como algo ingênuo. O mito era um recur-
foi o caminho que os primeiros filósofos fize- so simbólico contra os inimigos, um recurso de
ram para tentar esclarecer suas dúvidas exis- poder em nome de uma suposta autoridade
tenciais, e a partir daí não se parou mais de superior.
explorar o pensamento. Não é por acaso que o Para Lévi-Strauss (1970), os mitos revelam
cérebro lembra muito a arquitetura de um labi- mais sobre os seres humanos do que mera des-
rinto, em que os diversos caminhos lembram crição da flora e da fauna em fábulas. Os mitos
redes de conexões neurais, passagens confusas contêm a passagem da natureza para a cultura.
entre a mente e a alma. Isto é, Os mitos tratam da aquisição da cultura,
A metáfora do cérebro como um labirinto é a sua perda e a regressão à natureza. Os mitos
por onde podemos começar a falar sobre os também são usados para organizar a sociedade
desafios à lógica. Não é por acaso que a litera- e são formas de linguagens, que fazem a co-
tura de ficção também fez referência ao labi- municação com os seres sobrenaturais, mas,
rinto para se referir aos mistérios do pensa- inconscientemente, nada mais é do que, uma
mento humano. Na mitologia grega temos a forma de taxonomia das comunidades tradicio-
lenda do Labirinto do Minotauro, história que nais para dar ordem à vida.
narra à aventura do herói Teseu, um jovem de O mito é o rito colocado em ação, com lin-
Atenas que matou o monstro que possui cabeça guagem de duplo sentido, de mistério e de
de touro e corpo de homem, um híbrido. O sacrifício, que demarca um tipo de comporta-
minotauro era a criatura que simbolizava a mento exemplar e tenta explica-lo. Portanto, a
avareza e o castigo dos deuses pela traição do moral da história do mito do minotauro não
rei Minos, ao negar o ritual de sacrifício de um revela somente os tabus de uma época, as an-
animal em nome do deus Poseidon, como pro- gústias, o lado emocional do espírito humano,
messa ao direito de governar o trono da ilha de a ordem social e o poder político, mas também
Creta. Para solucionar o problema da existên- revela a razão como um valor, que os gregos
cia do monstro, o rei Minos procurou o conse- tanto se orgulhavam. O herói de Atenas, Teseu,
lho dos oráculos, que o sugeriram a construção usou de um método simples e lógico para não
de uma prisão para ser a nova morada da cria- ficar preso pela eternidade no labirinto, o nove-
tura. O genial súdito Dédalo, o melhor arquite- lo de fio transado.
to e engenheiro, foi chamado para construir um Para Latour (2001), o mito grego que fala
gigantesco labirinto para ser a prisão do filho sobre o labirinto revela a herança deixada para
bestial do rei. Depois de construído, o rei pas- a modernidade:
sou a usar o minotauro e o labirinto como ar-
mas contra os seus inimigos, e a ilha de Creta Dédado encarna o tipo de inteligência
tinha um tirano no poder. O rei Minos passou a que Odisseu (chamado na IIíada de
ser o diabo na terra, o minotauro o seu demô- polymetis, isto é, "fértil em artimanhas")
nio e o labirinto o inferno (FRANCHINI e ilustra a perfeição (Détienne e Vernant,
SEGANFREDO, 2007). O bom mito revela 1974). Quando penetramos na esfera dos
muitos enigmas do pensamento humano, da engenheiros e artífices, nenhuma ação
condição existencial e também da natureza. Os não-mediada é possível. Um daedalion,
personagens fictícios refletem as relações de palavra grega empregada para descrever
hierarquia e poder, ou seja, o universo dos o labirinto, é uma coisa curva, avessa a-
deuses é transferido para o mundo dos homens linha reta, engenhosa mas falsa, bonita
com o objetivo autopromoção de alguns mem- mas forçada (Frontisi-Ducroux, 1975).
bros da sociedade. A tensão entre Atenienses e Dédalo é um inventor de contrafações:
Cretenses era muito grande na época de Bron- estátuas que parecem vivas, robôs-
ze. O minotauro era o inimigo que Teseu 91 soldados que patrulham Creta, uma anti-
ga versão de engenharia genética que
91
Teseu está em pé de igualdade diante do monstro permite ao touro de Poseidon emprenhar
Minotauro porque é um semideus, filho de Posei- Pasifaé, que parirá o Minotauro. Para es-
don, e pode ser considerado um messias, pois esta- te ele construirá o labirinto - de onde,
va predestinado a acabar com a tirania do rei Mi- graças a outro conjunto de máquinas,
nos.

RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 14, n. 40, abril 2015


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conseguirá escapar, perdendo o filho Í- nir a loucura se ninguém possui caráter total-
caro em caminho. Desdenhado, indis- mente perfeito. Na verdade, a moral da história
pensável, criminoso, sempre em guerra nos diz que a ciência e seu adeptos estão desti-
com os três reis que se tornam poderosos nados a perambular entre a constante dúvida e
graças a seus artifícios, Dédalo é o me- talvez a possibilidade de certeza.
lhor epônimo para a técnica - e o concei- Lévi-Strauss (1970) aponta para a questão
to de daedalion é a melhor ferramenta da separação entre pensamento mítico e pen-
para penetrarmos a evolução daquilo que samento científico, que tem a base na falsa
venho chamando de coletivo... (LA- fundamentação de que os povos ditos “primiti-
TOUR, 2001, p. 201). vos” se guiavam mais pela emoção. Desde o
início da filosofia grego-romana até os dias de
O trecho citado acima é uma forma de ilus-
hoje, em certo sentido, a relação entre mito e
trar a crítica epistemológica que Bruno Latour
ciência suscita controvérsias. O pensamento
desenvolve sobre as “linhas retas da filosofia”,
científico coloca em dúvida a mitologia, e as-
que tentam solucionar os mistérios que nos
sim cria uma distância ao conhecimento pro-
rondam. Em outras palavras, a razão grega
duzido pelo pensamento mítico. Essa relação
tenta traçar um único caminho para a verdade,
de distância afirma certo tipo de predileção ao
o que pode ser interpretado como loucura, já
produzir conhecimento no campo científico. O
que a realidade é tão sinuosa quanto um labi-
pensamento moderno é herdeiro da reflexão
rinto. Neste lugar cheio de caminhos, a aritmé-
abstrata, matemática e geometria, a análise
tica também pode nos levar cada vez mais para
dominou os séculos XII e XVIII, e eram os
o obscurecimento. O romântico “fio condutor
padrões de linguagem para se chegar à verda-
de Ariadne” parte do pressuposto que a capa-
de. Conforme Lévi-Strauss, o pensamento
cidade psicológica dos seres humanos esteja
científico não está em oposição ao pensamento
fixada para sempre, o que é um equívoco. Para
mítico, pois os povos antigos usavam o univer-
Latour (2001), toda investigação científica
so simbólico de uma forma racional para dar
pode ficar inviabilizada se partirmos de uma
conta dos problemas que existiam em sua épo-
única convicção. A realidade é complexa e
ca. Tais linguagens seguem certas leis de estru-
mutável, o que impossibilita estabelecer con-
turação. Os povos mais antigos também tinham
ceitos fixos. Portanto, a metáfora do labirinto
interesse intelectual, como os filósofos gregos
parece ser a mais adequada epistemologica-
e romanos e os atuais cientistas. Neste sentido,
mente porque nela podemos especular sobre as
não existe essa superioridade entre um conhe-
multiplicidades de fatos que estão ocultos e
cimento e outro, mas que são diferentes em
que deveremos investigar. A investigação cien-
muitos aspectos. Lévi-Strauss aproxima nova-
tífica deve-se permitir fazer desvios compreen-
mente mito e ciência para dizer que o conhe-
sivos e interpretativos para se chegar as múlti-
cimento produzido pelos dois tipos de pensa-
plas “caixas pretas”, o que coloca a objetivida-
mento, entre as experiências sensíveis e as
de como mais uma forma de subjetividade.
ideias abstratas, é uma única ordem, a simbóli-
A literatura de ficção muito abordou o limi-
ca.
te entre a ciência e a loucura em histórias dra-
O problema que se colocou entre o pensa-
máticas. Narrativas que alertam paras os peri-
mento mítico e o pensamento científico são os
gos que a própria ciência pode criar, como por
mesmos das linguagens das artes gráficas,
exemplo, o médico e o monstro. No livro O
pintura, música, teatro e literatura. Lévi-
Alienista (1994), escrito por Machado de As-
Strauss cita o exemplo do surgimento das pri-
sis, conta a história do personagem Dr. Simão
meiras novelas no período da Renascença, que
Bacamarte, médico psiquiatra, que confiante
começaram a aparecer em forma de histórias
no seu método “científico”, acabou internando
ainda elaboradas segundo o modelo da mitolo-
quase toda a população de uma cidade no ma-
gia. Um bom exemplo que explora essas di-
nicômio, a Casa Verde. Os métodos de Dr.
mensões do pensamento é o trabalho do escri-
Bacamarte definiam a loucura como “desvios
tor Miguel de Cervantes, na obra O Engenhoso
de comportamentos”, que não se enquadravam
Fidalgo Dom Quixote de La Mancha (1605 e
no que era definido como normalidade. Quan-
1615). É provável que Cervantes tenha lido o
do não restavam mais ninguém na cidade para
mito do minotauro, pois ele em sua maior obra
internar, Dr. Bacamarte começou a suspeitar de
questiona a escolha da razão como meio para
suas teorias, pois como pode ser possível defi-
se construir uma sociedade justa. O labirinto

RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 14, n. 40, abril 2015


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do minotauro é a representação dos valores da ção, do civilizado e do bestial92. Então, ele


sociedade grega. Valores que irão influenciar a buscou uma nova literatura que combinasse
filosofia e a modernidade. A razão como um imaginação e vida cotidiana, ao mesmo tempo
valor para os gregos era tratada como uma filosofia e romance, e que reflita a condição
força poderosa e capaz de se sobrepor a qual- humana. Uma paródia dos livros de cavalaria e
quer crença. ao mesmo tempo uma obra crítica política, e
Neste sentido, nós podemos supor dois mo- que não coloca a emoção como vilã. Prova-
tivos que levaram Cervantes escrever a primei- velmente para Cervantes, o ato de entrar num
ra versão de Dom Quixote. Ele tinha o sonho labirinto com um monstro não significava uma
de mudar completamente a forma tradicional ação heroica, mais sim uma loucura. Mas que
de produção literária, que se baseada no mode- tipo de loucura é essa? Não se trata da loucura
lo mitológico, e, ao mesmo tempo, produzir patológica, doença. A Renascença foi um perí-
algo que tivesse conexão com a realidade. A odo de mudanças e contradições, momento em
genialidade deste autor foi realizar um diálogo que muitos autores falaram sobre a loucura,
com a tradição literária de ficção ao mesmo como, por exemplo, Erasmo de Rotterdam, que
tempo com a geração de intelectuais que esta- publicou o livro Elogio da Loucura em 1511.
vam impulsionando a modernidade. No prólo- Para Rotterdam (1990), o pensamento nunca
go do primeiro volume, Cervantes afirma que poderia ter evoluído se não fosse a loucura, foi
seu trabalho é uma investida contra os livros de por ela que conseguimos analisar os aspectos
cavalaria. Os livros de cavalaria narravam da moral e da hipocrisia que existia na idade
histórias iguais e mitológicas. Os elementos média. Rotterdam trata a loucura como uma
dessas narrativas eram sempre os mesmos, deusa que estimula a ação humana, ou seja, é
como batalhas de exércitos entre o mundo ela a verdadeira força motriz da história. A
mágico e o real. A feitiçaria, a traição e a justi- loucura é o elemento indispensável para a so-
ça eram o enredo principal. Os personagens brevivência dos homens. Ao elogiar a loucura,
eram sempre reis, cavaleiros andantes, magos, o autor quer mostrar o quão maluco são os
donzelas em perigo, monstros tenebrosos, etc. homens e o quão presente ela está na vida em
Os principais protagonistas eram os heróis, sociedade. A loucura pode ser classificada de
puros de espíritos e dotados de uma força ex- duas formas: a primeira é a loucura sã, ou seja,
traordinário e divina, poderes sobre humanos, e a loucura inteligente e perspicaz e a segunda é
que lutavam contra dragões, gigantes, ladrões, a mera loucura, a ingênua, a mentira, que pro-
traidores, déspotas, tiranos e toda a forma de porciona um saber enganoso. Na verdade Rot-
opressores em nome do juramento feito ao terdam defende a tese de que os humanos são
código de honra e pelo amor. Geralmente nas seres ambíguos que vivem sempre numa con-
histórias de cavalaria, o herói tinha uma missão
impossível, como as histórias dos Cavaleiros 92
Rezende e Coelho (2010), ao trabalhar o tema a
da Távola Redonda que buscavam o Santo antropologia das emoções, acabam identificando na
Graal. Na minha interpretação, eu creio que grande maioria abordagens teóricas que tratam da
Cervantes estava tomando uma atitude parado- razão e da emoção como entidades separadas. Ou
xal, um tipo de pensamento delirante. Ele vai no melhor dos casos, como ocorre na perspectiva
opor-se a essa literatura que perde o seu caráter etnopsicológica, a emoção é uma dimensão do
criativo e que é usada recorrentemente pela os corpo, da natureza, enquanto que a razão é uma
grupos poderosos como forma de dominação instância própria da mente, da alma, do espírito. As
emoções fazem parte da unidade biológica conecta-
da consciência do povo. Ao mesmo tempo,
da à unidade psíquica. Já a razão é uma capacidade
Cervantes tinha o desejo que a arte não ficasse de desenvolvimento que depende de vários fatores
na mera ficção, que fosse possível retratar a externos à pessoa, e variável em relação ao social e
realidade, mas que não perdesse a fantasia, a cultura. Para Rezende e Coelho essas visões, e
pois se preocupava com a influência da heran- entre outras, estariam de certa forma equivocadas,
ça iluminista e no poder da razão em determi- pois a relação entre razão e emoção também é cons-
nar a vida, uma vida sem sonhos. truída socialmente. Não se trata mais classificar as
Com certeza Cervantes conhecia o mito do emoções como pertencentes ao universo da irracio-
labirinto do minotauro, pois era a lenda que nalidade, do selvagem, da natureza, e assim afirmar
narrava a sobreposição da razão sobre a emo- um tipo de preconceito sem sentido. Não é isso,
mas sim de reconhecer que a razão e emoção po-
dem estar juntas e serem frutos de uma construção
social.

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dição ambulante entre a fronteira da sanidade e história. Mas é possível perceber sua indigna-
alienação. A loucura é a faca de dois gumes, ção através do prólogo do segundo volume da
para o bem ou para o mal. O conhecimento é história do Cavaleiro da Triste Figura e o seu
útil e de extrema importância e que pode ter fiel escudeiro em resposta a obra apócrifa:
fins de dominação, a loucura dos pensamentos
VALHA-ME DEUS, com quanta vonta-
enganosos, a “prisão sem muros”. A igreja
de deves estar esperando agora, leitor i-
tinha feito isso. Mas a loucura também possui
lustre, ou plebeu, este prólogo, julgando
a capacidade de inverte o sentido do mito, o
achar nele vinganças, pugnas e vitupé-
que faz os indivíduos perceberem sua condi-
rios contra o autor do segundo D. Qui-
ção, a estrutura do mundo em que vive, melho-
xote; quero dizer, contra aquele que di-
rando aspectos psicológicos e vivenciais tanto
zem que se gerou em Tordesilhas e nas-
consigo mesmo quanto para o próximo.
ceu em Tarragona. Pois em verdade te
O personagem Dom Quixote é o herói e ao
digo que te não hei-de dar esse conten-
mesmo tempo o anti-herói, um paradoxo, este
tamento, que, ainda que os agravos des-
foi o meio pelo qual Cervantes poderia falar
pertam a cólera nos mais humildes pei-
sobre a loucura. O primeiro volume de Dom
tos, no meu há-de ter exceção esta regra.
Quixote é o início da história que narra às a-
Quererias que eu lhe chamasse asno, a-
venturas de um senhor de origem fidalga, com
trevido e mentecapto; mas tal me não
50 anos de idade (considerado um velho na-
passa pelo pensamento... (CERVAN-
quela época), fraco, arruinado, faminto, mal-
TES, Vol. 2, 2005, p.9)
trapilho e derrotado, uma triste figura, mas ao
mesmo tempo cômico, porque era atrapalhado. Em 1615, Cervantes publica o segundo vo-
Com certeza ele nunca iria participar dos Jogos lume de Dom Quixote de La Mancha, com a
Olímpicos de Atenas. O personagem Alonso citação no prólogo sobre a falsa obra. De fato,
Quijano representa uma pessoa com qualquer a continuação original das histórias de Dom
outra, uma pessoa real, mas que deseja viver o Quixote supera a falsa narrativa. O segundo
sonho de ser um cavaleiro, igual às histórias do volume da obra de Cervantes é considerada o
rei Arthur em Camelot. Contudo, o ato deste clímax principal de toda história, é a melhor
senhor era visto pela sociedade como loucura, parte, o final épico, a morte de Dom Quixote.
até porque não existiam mais as grandes cru- É o momento que os sonhos do Cavaleiro da
zadas. Alonso Quijano abandona uma vida Triste Figura e o seu fiel escudeiro começam a
pacata e sai pelo mundo como Dom Quixote se tornar realidade, ou melhor, os pesadelos.
em busca de aventuras, com seu leal escudeiro Cervantes vai tentar solucionar a relação entre
e amigo Sancho Pança. A obra se transforma real e imaginário que de alguma forma está
na primeira novela moderna, e o sucesso foi presente na condição e no destino humano, o
bombástico, tanto que despertou o interesse de labirinto de espelhos onde nós nos encontra-
outros autores em escrever sobre os persona- mos.
gens principais. Aproximadamente dez anos Cervantes inclui o personagem Sansão Car-
depois do primeiro volume de O Engenhoso rasco, que simboliza o realista, que não aceita
Fidalgo Dom Quixote de La Mancha surge que alguém viva pela imaginação. Para resta-
uma obra apócrifa, publicada por um autor belecer a sanidade de Alonso Quijano, Sansão
desconhecido que usava um pseudônimo. Não Carrasco adota a estratégia de entrar na para-
se tratava de plágio, era uma apropriação inde- noia de Dom Quixote. A partir disso, Sansão
vida, uma versão da história que degradava o Carrasco assume a identidade do Cavaleiro da
trabalho de Cervantes. Um tipo de injustiça Branca Lua e desafia Dom Quixote para um
intelectual. Cervantes percebeu que o falsifica- duelo, em nome da honra de Dulcinéia (o amor
dor de Dom Quixote queria sabotar sua maior platônico). Dom Quixote perde a batalha, e
obra. Nesta versão de 1614, a falsa continua- Sansão Carrasco não cura o maluco, mas reali-
ção da história de Dom Quixote e Sancho Pan- za uma loucura, o assassinato do espírito, que
ça distorcia a personalidade dos personagens. implica na morte do corpo. Dom Quixote perde
O Quixote falso terminava em um hospício e seu sonho, o que o faz voltar a ser Alonso Qui-
seu amigo leal acaba como um bêbado na sar- jano, isto é, ele recupera seu “juízo”. Logo, ele
jeta (CANAVAGGIO, 2005). É impossível também adoece e perde a vida corporal. Cer-
descrever o quanto Cervantes ficou doido vantes passa a mensagem de que destruir os
quando descobriu a conclusão falsa da sua sonhos dos outros é uma forma de violência

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(CERVANTES, Vol. 2, 2005). No entendi- movay faz um diálogo. E para melhor visuali-
mento de Cervantes, o surgimento da moderni- zação do debate entre as partes, o quadro abai-
dade deveria ser a morte dos sonhos. A razão xo aborda de forma sucinta a estrutura dos
também é violenta, como um monstro, e a mo- trabalhos:
ral da história é a esperança de libertação do Mercados Verdes Muito Além da Economia
pensamento, quando o leitor percebe que a (2011) Verde (2012)
vida é o labirinto de espelhos. A relação entre natu- A relação entre natureza e
A literatura de ficção é um tipo de arte que reza e cultura; entre sociedade; entre ética e
reflete as emoções, o que pode nos ajudar a sociedade e econo- economia;
mia;
iluminar o entendimento dos projetos políticos
A defesa do argu- Abramovay cita a área da
e econômicos que estão surgindo e que tem mento de que a eco- psicologia econômica, que
base na reflexão racional. A ideia da metáfora nomia também pos- determinam o consumo,
do labirinto nos auxilia de forma epistêmica na sui a dimensão emo- mas que ele não aprofunda
compreensão das novas arquiteturas econômi- cional do compor- o tema.
cas, o esforço do pensamento moderno na tran- tamento humano;
sição de um pensamento sustentável. Uma O uso do método da O uso da mitologia (a fábu-
loucura que se encontra na margem das fron- literatura de ficção la do Sapo e do Escorpião e
teiras das linguagens. para melhor compre- os mitos da Pedra filosofal
ensão epistêmica do e da Caixa de Pandora)
pensamento susten- como forma de explicação
tável; das justificavas para um
projeto político;
Avellaneda A dimensão moral A dimensão ética como
em processos de proposta política advinda
A primeira impressão de estra-nhamento sociabilidade; da teoria de Amartya Sen;
que sentimos ao ler o livro é o título: Muito A compreensão da A justificativa com base na
Além da Economia Verde, que provoca questi- dimensão do controle corrente de pensamento
onamentos do tipo: por que devemos assumir social na economia; liberal, para defesa de um
uma nova proposta econômica para além da projeto econômico descen-
“economia verde”? Segundo Abramovay, o tralizado do Estado;
A dimensão simbóli- A construção da economia
relatório Green Economy (2011), das Nações
ca da economia; a partir da interação social,
Unidas, e outros organismos internacionais o que Abramovay chama
chegaram à conclusão que a proposta de “eco- de dimensão concreta;
nomia verde” não se sustentava, e que foi isto O pensamento sus- A tentativa de justificação
um dos pretextos que o fez escrever uma nova tentável é um tipo de do seu projeto político e
proposta econômica. Porém, eu não creio que ideologia, que revela econômico ao citar os lau-
tenha sido isso o principal motivo. o desejo de viver o reados pelo Prêmio Nobel.
A estrutura do texto Muito Além da Econo- sonho de utopia.
mia Verde é formada por quatro grandes capí- Não dá para acreditar e simples coincidên-
tulos: 1) Pobreza de quê?; 2) O mito do imate- cias quando comparamos os dois trabalhos. Ao
rial: economia verde não é o mesmo que cres- perceber a semelhança, senti a necessidade de
cimento verde; 3) O sapo e o escorpião: é escrever este artigo como direito de resposta. O
possível um capitalismo capaz de levar o mun- quadro acima é apenas um resumo breve dos
do em conta? e; 4) A economia da informação conteúdos abordados pelos dois trabalhos e que
em rede amplia a cooperação social. Os temas possibilitam fazer algumas análises bem mais
são os mais diversos, mas ao analisar mais importantes. Podemos afirmar que existe um
atentamente a publicação, pude perceber que grande esforço de justificação no livro de A-
dentro do trabalho de existe um pano de fundo bramovay, que está diretamente relaciona a
não revelado. O pano de fundo é a dissertação, dissertação Mercados Verdes (2011). Devemos
Mercados Verdes: etnografia do pensamento entender que o trabalho Mercados Verdes
sustentável93, e é com este trabalho que Abra- (2011) tem o objetivo de mostrar o fato como

93
VICENTE, Décio Soares. Mercados Verdes: Humanas. Pontifícia Universidade Católica do Rio
etnografia do pensamento sustentável. Dissertação Grande do Sul, Porto Alegre, 2011. (Disponível
de mestrado. Programa de Pós-graduação em Ciên- em:<http://tede.pucrs.br/tde_arquivos/6/TDE-2011-
cias Sociais, Faculdade de Filosofia e Ciências 06-07T140134Z-3301/Publico/431824.pdf >).

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ele é, numa dimensão da produção científica. os mercados desempenham papel deci-


Já o livro Muito Além da Economia Verde sivo, ainda que, evidentemente, não ex-
(2012) defende uma posição ideológica, ou clusivo (ABRAMOVAY, p. 22, 2012).
seja, orientação de como o fato deveria ser. E
A ideia de metabolismo social é a proposta
isto não tem problema nenhum, a sociedade
de um projeto político e econômico. Nesse
está cheia de ideólogos e sua capacidade de
projeto, Abramovay apresenta várias justifica-
persuasão depende de seus talentos. Isso nos
tivas sobre o desejo de reafirmação de uma
faz lembrar o personagem criado pelo filósofo
economia descentralizada, em outras palavras,
alemão Friedrich Nietzsche, no livro: Assim
uma economia liberal, mas que não se estruture
falou Zaratustra (1885). O louco Zaratustra
a partir de oposições entre Estado, sociedade e
que levou milhões de seguidores a adotar um
mercado. A sugestão é construir uma nova
culto de adoração do fogo ritual. A ideologia
organização societária que seja capaz de assu-
possui este desejo de querer viver um sonho
mir espaços de governança e que ofereça opor-
coletivo, na tentativa de persuadir a grande
tunidades às necessidades básicas dos seres
maioria das pessoas seguirem o nosso próprio
humanos. O metabolismo social tem que ser
ideal. Parece que Abramovay não é muito dife-
capaz de promover uma nova economia com
rente que Zaratustra, pois ele faz o esforço de
base num metabolismo industrial, que reduza o
nos convencer por várias linhas de pensamento
uso de carbono (o esforço de descolar o cres-
que seu projeto político econômico é o cami-
cimento econômico do uso de matéria e ener-
nho. Baseado no tripé: ética econômica, socie-
gia). A adoção de uma nova administração dos
dade da cooperação e a natureza usada de for-
recursos naturais transformaria a relação entre
ma racional, o que Abramovay denomina co-
sociedade e natureza: (...) O ponto de partida
mo o paradigma do cuidado (de origem nas
para a construção de uma relação entre socie-
ideias de Leonardo Boff e Bernardo Toro), o
dade e natureza no qual inovação, ética e limi-
que não é muito diferente do tripé da sustenta-
tes dirijam a gestão dos recursos é que, apesar
bilidade do Relatório de Brundtland (1987):
da importância das energias renováveis, não
“socialmente justo, economicamente viável e
existe graal energético (ABRAMOVAY,
ambientalmente correto”, mas utiliza outra
2012, p. 98).
linha de argumentos justificativos para definir
A ideia de metabolismo social como força
uma nova arquitetura econômica. Pois bem,
transformadora parece mais como uma inicia-
agora devemos saber se o projeto de Abramo-
tiva de resistência do projeto moderno e do
vay é possível ou é uma quimera (ilusão), ape-
modelo de economia liberal. A própria palavra
nas um ideal abstrato, já que existe uma linha
transformação (ruptura radical) não seria a
tênue de argumentação no livro entre aquilo
mais adequada para tentar compreender as
que é desejável e aquilo que é possível.
ideias de Abramovay, acho que é mais cabível
Abramovay vai defender a emergência de
falar em mutação. A ex-Senadora Marina Silva
uma nova economia baseada na construção de
em um de seus discursos bem citou a palavra
um tipo de metabolismo social. A orientação é
mutação, e que parece ser o mais apropriado
que devemos trabalhar para construir um tipo
para entender o pensamento sustentável. Pois
de sociedade organizada que seja capaz de
bem, em nossa interpretação, o sentido de mu-
reproduzir as comunidades humanas, diminu-
tação é aquele que significa mudar para não
indo a desigualdade, que o crescimento eco-
transformar. Também podemos falar em me-
nômico deixe de ser parâmetro de riqueza e
tamorfose, ou seja, algumas alterações signifi-
produção para o consumo, que não destrua os
cativas na estrutura do organismo, todavia sem
serviços ecossistêmicos, que reconheça os
adulterar a essência. Boa parte do que venho
limites da natureza e que, além disso, regenere
denominando como pensamento sustentável é
os ambientes já degradados:
este movimento em prol da resistência do pro-
A discussão mais difícil para a emergên- jeto de modernidade e da economia de merca-
cia de uma nova economia é que esse do.
desafio tem de ser encarado não pelo Em minhas análises sobre o pensamento
monopólio estatal sobre as decisões em- sustentável cheguei a seguinte conclusão. A
presariais nem pela abolição dos merca- natureza é reintegrada a economia, a partir de
dos, mas, ao contrário, no âmbito de valores que vão muito além da preservação e
uma economia descentralizada na qual conservação, e o meio físico natural sofre no-

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vas formas de intervenção técnico-científicas. ções que não necessariamente precisam chegar
Já o social é aquele que deve ser adequado por à instância do Estado. A conexão com a inter-
novos sistemas simbólicos interatuantes e in- net facilita a construção do planejamento cola-
terconectados, como selos, relatórios, “consu- borativo, baseado em competição com coope-
mo consciente”, educação ambiental, etc. A ração. Essa nova engenharia possui dois aspec-
adequação do social serve para controlar os tos principais:
mercados. O resultado da forma como são 1. Sistemas colaborativos de ino-
tratadas a natureza e o social acabam gerando vação – através das redes so-
condições estáveis para a economia se repro- ciais on-line é possível criar
duzir, porque permitem a continuidade de rela- um ambiente de cooperação
ções de troca. O capitalismo não sofre rupturas que geram conhecimento e i-
(transformações na sua essência) e não há con- novação, riquezas que podem
testação da continuidade de mercados como os ser compartilhadas através da
financeiros. Neste sentido, não creio que o comunicação informacional,
esforço do metabolismo social seja transfor- por exemplo, Crowdsourcing,
mador, ou seja, o projeto pouco alteraria a uma forma de compartilhar i-
direção do progresso e tão pouco mudaria as deias e conteúdos, ao mesmo
instituições modernas. tempo que são colocadas para
Além disso, o projeto de Abramovay de- a crítica, é o caso do Wikipé-
fende a combinação entre concorrência e coo- dia. Outro exemplo é o finan-
peração como formas voluntárias de relações ciamento coletivo - crowdfun-
econômicas, que misturam interesse individual ding – também conhecido co-
e coletivo na construção de sistemas de plane- mo “vaguinha on-line”, um
jamentos, uma nova forma de proporcionar novo meio para receber doa-
novas estruturas comunicacionais descentrali- ções de filantropia, patrocínio,
zadas do Estado. A aposta aqui é na sociedade investimentos e empréstimos
da informação em rede, de acesso à internet. A daqueles que acreditam na
ideia é que as plataformas de compartilhamen- causa;
to social, como Facebook94, Twitter, Google+, 2. Sistemas colaborativos de par-
YouTube, etc. como meios do mundo privado ticipação cidadã – o planeja-
sejam usados para fins públicos. A partir dos mento colaborativo possa aju-
meios técnicos como computadores e disposi- dar nas decisões e na criação
tivos móveis, como smartphones e tablets, de políticas públicas, com de-
conectados ao ciberespaço, possam gerar solu- mandas e soluções. Além dis-
so, a conexão com a internet
94
De acordo com a matéria “O Facebook manipula possibilita a participação do
o nosso feed. E se fizer o mesmo conosco?”, publi- cidadão, em tempo real, nas
cada pelo Jornalista Hugo Torres no dia 30 de Ju- decisões do Estado e no con-
nho de 2014, a maior rede social da internet realiza trole das atividades públicas.
testes de manipulação psicológica em seus usuários. Pois bem, vamos analisar os dois aspectos
Segundo o jornalista, os estudos comportamentais do projeto político e econômico de Abramo-
na rede social tentam revelar a existência da hipóte- vay. Na primeira ideia existem muitas contro-
se do “contágio emocional”, isto é, os usuários vérsias sobre esta nova arquitetura, pois, ao
estariam sendo expostos a conteúdo negativos ou
contrário do que acredita Abramovay, nem
positivos nos feeds (notícias atualizados frequente-
mente) para estimular suas reações. O resultado do sempre a competição aliada à cooperação gera
teste informaria como determinados conteúdos inovação e criatividade. Fligstein (s.d) defende
afetam o comportamento do sujeito, o que implica- que os participantes do mercado tentam encon-
ria em estados emocionais que podem ser transferi- trar soluções sociais para a atividade de con-
dos para outras pessoas. A grande polêmica é que corrência. Isto é, as empresas irão criar hierar-
os testes são realizados sem consentimentos dos quias de status que assegurem formas não-
usuários, o que revela a falta de ética e atos ilegais competitivas de concorrência, o que o autor
do Facebook (Fonte: caracteriza como a ação política. As empresas
http://www.publico.pt/tecnologia/noticia/o- estabelecidas irão defender seu status contra
facebook-manipula-o-nosso-feed-e-se-fizer-o-
possíveis ameaças, o que pode ser novas em-
mesmo-connosco-1661119. Acessado dia
28/08/2014). presas ou a inclusão de inovações no mercado.

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Fligstein aponta para o argumento que os pro- ver como bem entender, emoção, potência,
cessos internos ao mercado refletem dois tipos estética, status, estilo de vida95 e possibilidade
de projetos políticos: lutas de poder no interior para o sexo. Portanto, o veículo elétrico não
das empresas e entre as empresas, que visam o teria o mesmo glamour do automóvel, pois
controle do mercado. E nestes casos não esta- seria o resultado racional que combinaria efici-
mos falando de formação de monopólios, oli- ência energética, o que implica em perda de
gopólios, trustes, cartéis e holdings, além de potência e peso (redução do tamanho), e volta-
outras formas de assimetria de poder em cor- do principalmente como transporte para deslo-
porações. Os próprios agentes econômicos que camento a distâncias razoáveis, principalmente
atuam em determinados mercados sentem-se em perímetros urbanos onde a velocidade em
sim ameaçados com a inovação, seja ela de média é de 40km/h. Um veículo com tais ca-
qualquer tipo, pelo simples motivo de que o racterísticas possibilitaria às classes populares
novo pode levar mudanças muito radicais na sua aquisição. Essa ideia não agradou a “gigan-
estrutura organizativa das relações econômi- te” Renault, que ficaria numa posição de mon-
cas, no intercâmbio de riquezas, e colocando tadora em parceria com o Governo Francês, ou
em cheque a existência de muitas empresas. Os seja, perderia uma boa fatia do mercado, já que
agentes econômicos estabelecidos num deter- o produto desenvolvido não seria de sua exclu-
minado mercado, ao se sentirem ameaçados, sividade, além disso, o VEL se tornaria um
podem reagir aos impactos das inovações a concorrente direto para seus modelos de auto-
partir de algumas estratégias, como, por exem- móveis a combustão. O projeto do VEL afeta-
plo, criar meios de monitoramento do conhe- ria diretamente a manutenção e a estabilidade
cimento novo, ou até concentrar esforços para da empresa Renault. Percebendo um futuro
boicotar a inovação concorrente. Um exemplo instável, a empresa em contrapartida também
que podemos citar de esforços anti-inovação é mobilizou uma rede sócio-técnica que inviabi-
do trabalho de Callon, Law e Rip (1986), den- lizasse inovação VEL, como uma forma de
tro da abordagem teórico-metodológico deno- resistência (CALLON, LAW e RIP, 1986).
minado como Ator-Rede. Os pesquisadores Portanto, a combinação de competição e coo-
mostram como as lutas de poder de interesses peração pode trazer resultados muito relativos.
econômicos podem acionar esforços no sentido A afirmação de que a nova economia é si-
de tomadas de ações para atenuar possíveis nônima de uma sociedade em rede é outro
efeitos de instabilidade de um determinado problema no projeto político econômico de
mercado. Os agentes do mercado podem ser Abramovay. No trabalho A Cultura do Novo
capazes de criarem mecanismos desconstrução Capitalismo (2006), Richard Sennett apresen-
do avanço de uma inovação, por exemplo, a
montadora de veículos Renault mobilizou a 95
Abramovay sugere como solução para os pro-
criação de uma rede sócio-técnica de agentes blemas da mobilidade urbana e o uso do automóvel
colaborativos para contrapor a iniciativa da particular a ideia da “carona legal”, porém, se nós
fabricação do carro elétrico denominado como pensarmos sob o significado do glamour do auto-
VEL. Na década de 70, a Empresa Estatal móvel, que não tem nada a ver com o uso útil, com
Francesa (EDF) tinha o projeto de fabricar o certeza não resolve o problema do trânsito, pois a
veículo elétrico e para isto mobilizou diferen- ideia não garante que todas as pessoas proprietárias
tes atores para cooperarem com o projeto do de carros estejam sempre dispostas a serem moto-
VEL. Dentre os diferentes atores, a Renault ristas de outas, até por questões de depreciação do
bem. Para somar a isto, Abramovay faz uma crítica
teria uma parcela de participação ao ficar res-
aos veículos SUV (do inglês Sport Utility Vehicle)
ponsável pela fabricação do chassi e outras que significa “veículo utilitário esportivo”. É um
peças do automóvel elétrico. Porém, a empresa tipo de automóvel com características dos veículos
percebeu que seus interesses comerciais seriam de passeio e dos veículos todo o terreno (off-road)
afetados com a criação desta nova tecnologia aliando luxo, conforto, espaço e versatilidade, que
de transporte movido à bateria elétrica. também são automóveis particulares que consomem
Ao longo da história do automóvel, os veí- muito combustível (fonte: Veículo SUV. Enciclo-
culos automotores adquiriram outros significa- pédia Livre Wikipédia. Disponível em: <
dos. O sentido do carro não está mais associa- http://pt.wikipedia.org/wiki/Ve%C3%ADculo_utilit
do exclusivamente à ideia de racionalidade e o %C3%A1rio_esportivo>. Acessado dia 20 de no-
vembro de 2013). A sua crítica demoniza a indús-
uso útil, agora o automóvel passa ter uma ima-
tria automotiva responsável por produzir um veícu-
gem relacionada com liberdade de se locomo- lo que nada contribui para a diminuição de CO2.

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tou o resultados de suas pesquisas nos Estados promisso com sua empresa. Ele desempenhava
Unidos, realizadas nas décadas de 60, 70 e 80, um trabalho de qualidade, que tinha a capaci-
que avaliavam as mudanças da cultura do capi- dade de fazer algo bem feito do começo ao
talismo. Naqueles períodos entre décadas, o fim, e por isso tinha reconhecimento. Na nova
capitalismo passava por metamorfoses, princi- cultura do capitalismo o conteúdo é volátil, as
palmente impulsionado pelo campo das finan- técnicas devem ser revistas em períodos curtos,
ças, da nova dinâmica da tecnologia de comu- isso exige do especialista uma dedicação para
nicação, da informatização, da automação, da que aprenda mais, de forma rápida e se possí-
produção e da manufatura. As inovações tec- vel fazendo outras coisas. A competitividade
nológicas no campo da comunicação e da in- da mão de obra qualificada se torna alucinante,
formatização fizeram com que o capital espe- e tem o nome de “aptidão potencial”. Sennett
culativo das bolsas de valores ficasse mais percebe que este novo projeto de sociedade
impaciente na obtenção do lucro. Os investido- capitalista gera uma nova reestruturação orga-
res dotados desse novo poder tecnológico que- nizacional que em vez de ser positiva na vida
riam resultados a curto prazo. das pessoas, acaba impactando de forma nega-
A década de 60 trouxe também alterações tiva. A nova cultura do capitalismo apresenta
na cultura, que agora possuía as aspirações de um alto grau de incerteza em relação ao futuro.
uma consciência libertária e individualista. A A nova cultura propiciou relações superficiais
partir disso tudo, o novo capitalismo vai se de trabalho e muita frustração na relação entre
estruturar para a flexibilidade do trabalho, empresa, família e indivíduos. O capitalismo
diminuição da dependência da empresa, perda promove mais desigualdade, desvaloriza a
significativa do sentido do controle exercido experiência das relações duradouras, provoca
por sindicatos e desregulamentação das garan- estresse nas pessoas, estimula comportamentos
tias sociais conquistadas no Estado, como o indesejáveis no caráter pessoal e não liberta os
direito previdenciário. A tecnologia também indivíduos de fato. O que Sennett registrou foi
fez com que a antiga organização do trabalho o enfraquecimento das instituições sociais,
mudasse, a produção passou adotar a automa- fragilidade da lealdade organizacional e dimi-
ção e foi possível desmantelar as antigas estru- nuição da confiança. A cultura do novo capita-
turas piramidais. A organização hierárquica foi lismo se “desmancha no ar”. Existia a crença
substituída pela matricial, rede social, já que de que o crescimento econômico levava a esta-
não era mais admitida a centralização do po- bilidade, mas o resultado foi a preservação de
der. A flexibilidade do trabalho levou a frag- um tipo de distribuição de riqueza, ou seja, a
mentação dos empregos. O trabalho remunera- desigualdade.
do passou a ser de curto prazo, e sua base esta- O impacto de uma economia mais descen-
va apoiada numa nova forma de contratação tralizada e com menos burocracia do que no
desenvolvida pelos recursos humanos, a parti- passado acabou tornando mais precária as rela-
cipação em projetos. Ao aderir a um projeto, o ções de trabalho na nova cultura do capitalis-
trabalhador acreditava que teria mais tempo mo, o que refutava uma tese, isto é, estava
para outras atividades de seu interesse próprio, equivocada a acusação que afirmava que a
era a substituição do trabalho linear. Este novo burocracia é ineficiente e o mercado é perfeito:
tipo de ocupação, segundo Sennett (2006),
(...) Num período de cem anos, da déca-
acabou estimulando cada vez mais a terceiriza-
da de 1860 à de 1970, as corporações
ção das atividades produtivas. De certa forma
aprenderam a arte da estabilidade, asse-
significava o fim do emprego vitalício, aquele
gurando a longevidade dos negócios e
que tinha como fundamento o mérito associado
aumentando o número de empregados.
ao progresso pela via da promoção de status. O
Não foi o livre mercado que promoveu
resultado desta nova configuração ocupacional
essa mudança estabilizadora; o papel
levou a extinção de muitas capacitações e
mais importante foi desempenhado pela
competências profissionais, que geraram um
maneira como os negócios passaram a
problema com os trabalhadores mais velhos,
ser internamente organizados. Foram
pois eles passam a serem inutilizados pelas
salvos da revolução pela aplicação ao
empresas. Os conhecimentos que eram adqui-
capitalismo de modelos militares de or-
ridos em longo prazo representavam bens du-
ganização. (SENNETT, 2006, p. 27).
ráveis e faziam parte da identidade do traba-
lhador. O trabalhador era um perito com com-

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(...) Os lucros que os mercados punham Abramovay vemos outros problemas. Porém,
em risco, a burocracia tentava reconsti- de fato, todos os sistemas colaborativos de
tuir. A burocracia parecia mais eficiente participação cidadã capazes de promover a
que os mercados. Esta “busca da or- democracia direta devem ser louvados. A ideia
dem”, na expressão do historiador Ro- de que uma democracia deve ser construída
bert Wiebe, espraiou-se dos negócios com o povo deve ser defendida. Entretanto, a
para o governo e logo também para a crítica que se faz é em relação a arquitetura
sociedade civil. Quando a lição do lucro comunicativa e informacional que se utiliza do
estratégico foi transferida igualmente ciberespaço como um meio para se atingir
para os ideais de eficiência governamen- resultados e soluções políticas. As Redes Soci-
tal, a posição dos servidores públicos foi ais privadas como o Facebook, Twitter, Goo-
elevada, isolando-se cada vez mais as gle+, YouTube, Instagram, etc. serão suficien-
suas práticas burocráticas das oscilações tes para mobilizar mudanças significativas? O
da política. (SENNETT, 2006, p. 28). mundo assistiu o episódio da chamada Prima-
vera Árabe, uma onda de protestos que ocorreu
A burocratização das organizações apresen-
em 2010 no Oriente Médio contra as ditaduras
tou resultados mais eficientes do que o merca-
daquela região. As manifestações populares
do. Neste sentido, o capitalismo do passado,
chamaram a atenção e a opinião internacional
descrito por Max Weber em Economia e Soci-
sobre os impactos das redes sociais (conecta-
edade, oferecia bases estáveis, solidariedade e
das à internet) na possibilidade de uma ação
motivações para um trabalhador que desejasse
revolucionária. O que se observou na Primava
construir uma narrativa pessoal. Já no trabalho
Árabe é que as indignações civis só tomaram
A Ética Protestante e o Espírito do Capitalis-
voz porque houve outras formas de resistência
mo, Weber chama atenção para o processo de
junto com a informação partilhada no ciberes-
racionalização/burocratização que as socieda-
paço, como as campanhas, greves, passeatas,
des assumem e que poderiam acabar oprimindo
comícios e manifestações de grupos de organi-
as liberdades humanas como se fosse uma
zações e interessados, tanto dentro dos países
“jaula de ferro”. Sennett vai criticar esse cará-
quanto fora deles. Muitos dos resultados das
ter negativo da burocracia a partir dos argu-
manifestações não alcançaram o que deseja-
mentos de que o capitalismo social do passado,
ram, pois algumas monarquias reagiram às
mesmo apoiado num modelo de organização
manifestações, por exemplo, o Barein usou da
militar, produziu qualidade de vida, isto é,
violência contra a população e o governo no
“(...) Se por um lado é uma prisão, a jaula de
Catar aumentou salários no setor público, e
ferro também pode, assim, tornar-se um lar
assim os protestos foram acalmados (CON-
psicológico” (SENNETT, 2006, p. 36). Numa
NOLLY, 2013).
organização hierárquica é possível para o tra-
Abramovay defende um controle do Estado
balhador programar a sua vida a longo prazo,
por um viés societário, ligado à rede de com-
pois ele possui segurança ao prever e organizar
putadores, mas não questiona os possíveis
o tempo, assim podendo definir seu destino. A
problemas da internet. Uma das dificuldades
“jaula de ferro” tem uma extensão humana, ela
do ambiente virtual são as identidades fictícias
consegue adequar à subjetividade do indivíduo
que as pessoas criam como personagens ou
numa lógica que corresponde suas necessida-
status que podem atrapalhar no resultado das
des e, ao mesmo tempo, dá valorização ao
decisões, no caso, participação cidadã. Há
potencial do esforço. Isto é, realizações pesso-
também os robôs (não-humanos), inteligência
ais são capazes de serem alcançadas dentro da
artificial que pode possuir qualquer tipo de
organização burocrática, portanto o pressupos-
linguagem, usada para o bem ou para o mal,
to de que sociedades estáveis são economica-
dentro de um ambiente competitivo. Não po-
mente estagnadas é uma mentira. O crescimen-
demos deixar de mencionar também os hac-
to da burocracia significa antes de tudo a inclu-
kers, piratas da informação que podem boico-
são. O trabalho de Sennett chama atenção para
tar grande parte do sistema de comunicação.
alguns equívocos em considerar a sociedade da
Os sistemas colaborativos de participação ci-
informação em rede uma aposta de fato con-
dadã no ciberespaço, aliados com competição
creta para uma nova economia.
podem ter custos muito altos, principalmente
Já no segundo aspecto da competição e co-
em segurança da informação, neste sentido os
operação do projeto político econômico de

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métodos tradicionais podem ser mais eficientes uma criação do Banco Central da Suécia, como
e mais baratos. uma homenagem em Memória de Alfred No-
Além disso, a engenharia política de hoje bel, e atualmente já contemplou 74 intelectuais
já é um processo muito mais complexo. Existe que contribuíram para a economia moderna.
uma discussão para a reforma do Estado de- No livro de Abramovay é feita a referência aos
fendida principalmente por Eli Diniz (1997), ganhadores do Nobel:
sobre a qualidade da democracia, principal-
“(...) Vinte e um cientistas ganhadores
mente com o objetivo de aliar governança e
de uma espécie de prêmio Nobel do
governabilidade, isto é, poder técnico combi-
meio ambiente publicaram, no início de
nado com política, que leve em consideração
2012, um manifesto que começa com a
as instituições como mecanismos que permei-
célebre frase de Martin Luther King Jr.:
am à sociedade e que possuem a finalidade de
nós temos um sonho” (ABRAMOVAY,
realizar os interesses coletivos, dentro de limi-
2012).
tes constitucionais, e por conferirem ao gover-
no a capacidade de intervir na economia e por Abramovay está se referindo aos vinte inte-
submetê-lo ao controle popular. Esta discussão lectuais que foram contemplados com Prêmio
é extremamente importante e sequer é citada Nobel97 e que assinaram em Maio de 2011 o
no livro Muito Além da Economia Verde documento denominado Memorando de Esto-
(2012). colmo, ligado a Organização das Nações Uni-
Em minha opinião, uma discussão sobre a das (ONU), que possui diversas metas como:
emergência de uma nova economia deve em incluir a sustentabilidade ambiental como for-
primeiro lugar fazer uma revisão dos princípios ma de erradicar a pobreza; aderir aos Objetivos
que regem o próprio capitalismo, independen- de Desenvolvimento do Milênio (aqui a crítica
temente se as decisões forem ou não dentro dos é feita ao mecanismo de medição da economia,
mercados, senão continuaremos num labirinto o PIB); criação de novos indicadores econômi-
sem achar a saída. cos; controle das emissões de CO2 para manter
abaixo de 2 graus Celsius o aquecimento glo-
I have dream (“eu tenho um sonho”) bal; e promover uma revolução agrícola que
O famoso líder Martin Luther king Jr. ga- seja possível produzir mais alimentos e de
nhou o Nobel96 da Paz no ano de 1964 pelo forma sustentável.
ativismo político dos direitos dos cidadãos Porém, Abramovay não cita os contempla-
afrodescendentes nos Estados Unidos e no dos pelo Prêmio Nobel por simples destaque
mundo. Com certeza Martin Luther king é um aquelas personalidades que conseguiram reali-
exemplo a ser seguido em nome da justiça zar sonhos impossíveis. Na verdade, os cientis-
social. tas de hoje não podem apelar para as divinda-
Desde 1901, a Fundação Nobel já contem- des do passado, como no caso do rei Minos,
plou oitocentos e uma (801) personalidades das que consultou os oráculos e os deuses para
áreas como: Física (196 agraciados), Química alcançar seus objetivos. No Entanto, nós po-
(166), Fisiologia ou Medicina (204), Literatura demos recorrer a outro tipo de poder simbóli-
(110) e Paz (principalmente para questões polí- co, ou seja, citar os phdeuses. Os intelectuais
ticas, temos hoje 125 pessoas reconhecidos). O agraciados com o Prêmio Nobel carregam em
prêmio foi criado pelo químico sueco e inven-
tor da dinamite Alfred Nobel com o objetivo 97
De acordo com Leijonhufvud (2011), os Nobéis
de reconhecer o trabalho das pessoas que con- que se comprometeram com o Memorando de Esto-
tribuíram com o conhecimento para melhorar a colmo foram: seis intelectuais da área de química:
sociedade. Já o Prêmio Nobel de Economia é Yuan T. Lee, Paul J. Crutzen, Mario J. Molina,
Harold Kroto, Walter Kohn e Peter Agre; cinco da
96
A fonte principal para a coleta de informações área de física: Carlo Rubbia, Douglas Osheroff,
sobre os contemplados pelo Prêmio Nobel foi o David Gross, Peter Grünberg, Murray Gell-Mann;
website nobelprize. No site encontramos informa- três da área de fisiologia ou medicina: Werner Ar-
ções como biografia dos laureados pelo prêmio, as ber, Peter Doherty e John Sulston; Também assinou
teses vencedoras com suas explicações, as entrevis- o documento Nadine Gordimer ganhadora do Nobel
tas e os discursos usados nas cerimonias de entrega de Literatura e Muhammad Yunus ganhador do
do prêmio. Disponível em: Nobel da Paz; e mais quatro ganhadores na área de
<http://www.nobelprize.org/>. Acessado em setem- ciências econômicas: Douglass North, Jim Mirrlees,
bro de 2013. Amartya Sen e Elinor Ostrom.

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si um capital cultural que vai além das vidas Abramovay utiliza vários autores agracia-
humanas existentes. Dependendo da forma que dos com o Nobel, especialmente os ganhadores
se cita essas personalidades da ciência, até em do prêmio de economia, para embasar aos seus
certa medida, pode ser uma forma de tentar argumentos. A história dos agraciados pelo
impor um tipo de crença (BOURDIEU, 2001). Nobel da Economia mostra a evolução do pen-
É a primeira vez na história da ideia de de- samento econômico, ou seja, os trabalhos dos
senvolvimento econômico que começamos laureados são os mais diversos: existem aque-
perceber que o futuro pode ser pior do que o les autores que seguem as correntes teóricas da
passado. Neste sentido, todo o projeto político econômica clássica e neoclássicas; os keneisi-
e econômico é importante, pois ainda não te- anos99, alguns mais liberais e outros mais mar-
mos a resposta pronta para soluções urgentes. xistas; há também os autores que seguem uma
Entretanto, o problema que se coloca é o tipo linha teórica sistêmica, que reflete a economia
de projeto, o modelo de vida que tenta impor próxima à química, biologia e a física (fisiocra-
padronizações ao comportamento humano. Os tas); os intelectuais considerados como mer-
tipos de programas que fornecem roteiros para cantilistas e também os interdisciplinares (des-
modelagem das organizações, dos processos taque para as conexões com as ciências sociais,
sociais e psicológicos (GEERTZ, 1989). A história, geografia, linguagem, psicologia e
ciência tem por princípio ético revisar qualquer direito). Os principais autores citados por A-
tipo de conhecimento, colocá-lo a avaliação bramovay são: Friedrich Von Hayek, Milton
para renová-lo. As modificações no conheci- Friedman, Ronald Coase, Douglass North,
mento são moralmente aceitáveis quando se Amartya Sen, Joseph Stiglitz e Daniel Kahne-
apresentarem falsas, portanto, o próprio projeto man. Além do agraciado com o Prêmio Nobel
moderno deve ser revisto. A base das socieda- da Paz duas vezes, Muhammad Yunus, que
des modernas se constrói com a tentativa da criou o microcrédito. O que quero chamar a-
valorização da verdade, que propiciar a justiça tenção, entre todos os economistas laureados
social, por conseguinte, todo conhecimento com o Prêmio Nobel, Abramovay escolheu
pode ser renovado quando colocado em dúvi- somente algumas dessas personalidades, e
da. A ideologia/utopia do “desenvolvimento optou por destacar Amartya Sen como o prin-
sustentável” revela o preocupante desejo de um cipal intelectual para arquitetar a base de sua
projeto homogêneo para a sociedade, o que ao proposta política e econômica.
mesmo tempo exclui e tenta esconder a hetero- Pois bem, vamos analisar os trabalhos e
geneidade das formas de pensamento98. pensamento dos agraciados pelo Nobel citados
acima. Para o economista e psicólogo austríaco
Friedrich Von Hayek, um dos mais famosos
98
Abramovay se coloca como um dos principais pensadores liberais do século XX, que investi-
porta-vozes de um projeto político econômico e gou várias áreas do conhecimento, como direi-
homogêneo. No próprio prefácio do seu livro lan- to, ciências políticas, filosofia, psicologia,
çado em 2012 são apresentadas agradecimentos de economia, macroeconomia e economia institu-
algumas personalidades do ambientalismo brasilei- cional, o sistema de livre mercado é o único
ro, o jornalista Roberto Smeraldi, diretor da ONG capaz de garantir a liberdade individual, en-
Amigos da Terra Amazônia Brasileira, o economis- quanto que o Estado leva a servidão, já que
ta Sérgio Besserman Vianna, professor da PucRio e nossas escolhas seriam limitadas. Hayek sem-
assessor da prefeitura do Rio de Janeiro, ex- pre se opôs declaradamente a qualquer forma
senadora Marina Silva, o jornalista André Trig,
de planejamento econômico central, pois uma
criador e diretor do programa Cidades e Soluções e
o advogado e ambientalista Fábio Feldmann, depu- economia é um sistema demasiado complexo
tado federal eleito para três mandatos (1987-1990,
1991-1994, 1995-1998) que servem para dar legi- blemas gerados pelo modelo capitalista de desen-
timidade ao texto de Abramovay. Existem por trás volvimento.
99
esforços para proteger interesses que vão muito John Maynard Keynes defendeu “(...) uma políti-
além da salvação da natureza, que envolvem prestí- ca econômica de Estado intervencionista, através da
gio intelectual, ego pessoal, reconhecimento públi- qual os governos usariam medidas fiscais e monetá-
co e político, instituições públicas e privadas, proje- rias para mitigar os efeitos adversos dos ciclos
tos de financiamentos, fortes grupos empresariais, econômicos - recessão, depressão e booms” (fonte:
consultoria para empresas e partidos políticos. Por Wikipédia. Disponível em:
traz de um discurso em prol da natureza há muita <http://pt.wikipedia.org/wiki/John_Maynard_Keyn
hipocrisia, pois desvia o foco de atenção dos pro- es>. Acesso dia 10 de novembro de 2013.

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para ser esquematizado por uma instituição. O econômica neoclássica). Não satisfeito com
sistema econômico deveria evoluir espontane- essa explicação, Coase buscou novos concei-
amente por meio do livre mercado. Ele foi tos, e passou a estudar a fronteira entre econo-
agraciado com o Nobel em 1974 pelo trabalho mia, direito e organizações para tentar compre-
de “flutuações econômicas, moeda, interde- ender as instituições - as leis, normas e costu-
pendência dos fenômenos econômicos e soci- mes que regem os sistemas econômicos reais.
ais com os fenômenos institucionais”. Hayek Mas a descoberta de algo novo só ocorreu
procurou mostrar que a tendência de substituir quando ele realizou uma viagem pelos EUA,
a “ordem espontânea” por uma ordem delibe- quando estudava as indústrias americanas. Ele
radamente criada pelo engenho humano acaba- percebeu que as indústrias foram organizados
va resultando no empobrecimento e na servi- de diferentes formas, ou seja, ao contrário do
dão do cidadão. Segundo Hayek, o governo que supunha a teoria econômica na tradição de
tem um papel a desempenhar na economia Adam Smith, que partia da ideia de que o mer-
através do sistema monetário, regulação de cado é uma entidade eficiente e auto organiza-
horas de trabalho, criação de instituições para o tiva, isto é, por exemplo, aqueles que são os
fluxo de informação adequada, e outros princí- melhores na prestação de cada bem ou serviço
pios em que a maioria dos membros de uma mais barato sobrevivem na economia. No en-
sociedade livre tenderão a concordar. Quando tanto, Coase observou uma série de custos de
o planejamento central atinge em áreas em que transação envolvidos no uso do mercado, por
as pessoas provavelmente não concordem, a exemplo, que incluem pesquisa e informação,
tendência é uma ditadura, um tipo de totalita- custos de negociação (para manter segredos
rismo. Na Política, ele propôs uma fórmula comerciais), os custos de policiamento e fisca-
constituinte que procura garantir as ideias libe- lização podem aumentar o preço de aquisição
rais, com ênfase no conceito de "governo limi- de algo. Isto sugere que surgirão empresas que
tado". podem internalizar a produção de bens e servi-
Milton Friedman também é um expoente do ços necessários para entregar um produto, evi-
pensamento econômico liberal. O economista e tando assim esses custos. Ronald Coase foi
matemático foi agraciado com o Nobel em agraciado com o Nobel em 1991 pela desco-
1976. O trabalho para o qual Friedman foi berta e esclarecimento do significado de custos
reconhecido com o prêmio explora os temas: de transação e direitos de propriedade para a
consumo, história monetária e política de esta- estrutura institucional e o funcionamento da
bilização. Para Friedman, a solução para os economia. O Teorema de Coase procura de-
problemas de uma sociedade é dada por um monstrar a possibilidade de uma solução pri-
sistema de liberdade, e a legitimidade do seu vada ótima às externalidades, isto é, uma solu-
argumento se baseia na suposição de que o ção sem a intervenção do Estado, que maximi-
liberalismo econômico é o único modelo que za o bem-estar social. Coase também desen-
pode suportar uma democracia política. Isto é, volveu a Teoria da Firma, que diz que as fir-
a economia deve se desvincular da política mas crescem enquanto for mais barato raciona-
pois qualquer ação governamental pode resul- lizar os custos de transação de um determinado
tar em restrição absoluta de qualquer tipo de produto internamente, do que adquiri-lo dire-
liberdade democrática. Friedman é um liberal tamente no mercado.
convicto que defendeu a redução das funções O economista Douglass North continuou a
do Estado frente ao domínio do mercado livre, mesma linha de investigação de Ronald Coase,
o individualismo e a democracia. O Estado tem como por exemplo, direitos de propriedade,
o papel somente de garantir estabilidade mone- custos de transação e organização econômica
tária, liberdades econômicas, direitos e direito da história, bem como o desenvolvimento em
de propriedade. países com economias em crescimento, o que o
Outro economista e matemático também de levou a receber o Nobel por pesquisas na área
vertente liberal é Ronald Coase, porém com de história econômica. Douglass North tam-
algumas diferenças em relação a Hayek e Fri- bém estava insatisfeito com a teoria econômica
edman. De acordo com a biografia de Coase, neoclássica, pois ela não estava mais à altura
na juventude ele ficou muito obcecado com a da tarefa de explicar o tipo de mudança fun-
ideia de "mão invisível" de Adam Smith, que damental que ocorria na sociedade do século
crê num sistema econômico competitivo coor- XX. Ele chegou à conclusão de que era neces-
denado pelo livre sistema de preços (teoria sário criar novas ferramentas, o que o levou a

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buscar novos quadros analíticos capazes de dar praticada pelas companhias de seguro, que
origem a uma nova economia institucional. dividem seus clientes em classes de riscos,
Então ele criou algumas ferramentas que pu- oferecendo um cardápio de contratos onde as
dessem ser experimentais para aplicá-los a franquias maiores podem ser trocadas por des-
análise da história econômica. Os primeiros contos substanciais. A verdade é que as eco-
quadros analíticos criados se baseavam na nomias de mercado se caracterizam por um
teoria econômica neoclássica, o que fez surgir alto grau de imperfeições e os modelos eco-
muitos erros. A partir daí que North começou a nômicos mais antigos presumem a existência
investigar o que estava dando errado, o que o de informações perfeitas. Mas mesmo peque-
levou a descobriu que as crenças dos econo- nas imperfeições nas informações podem ter
mistas impediam a compreensão das ideias grandes consequências econômicas desastro-
ideologias e preconceitos que influenciavam na sas. Stiglitz tem permanentemente questionado
economia. Neste sentido, North foi obrigado o que chama de bases ideológicas que regem a
reconhecer que o postulado da racionalidade maior parte das decisões econômicas mundiais,
econômica estava equivocada, e ele passou a isso torna-se mais evidente na sua polêmica
fazer um longo caminho para o desenvolvi- com o Fundo Monetário Internacional (FMI), a
mento de um novo quadro analítico que envol- quem acusa de "empurrar" os países subdesen-
vesse todas as considerações que estavam fora volvidos a abrir seus mercados à competição
do debate econômico, era uma nova visão ca- externa sem antes possuírem instituições está-
paz de lidar e explicar a fonte subjacente das veis e democráticas para proteger seus cida-
instituições. O trabalho de North resultou na dãos. Stiglitz é um defensor da nacionalização
demonstração de que que as ideologias e as dos bancos americanos.
ideias determinaram as escolhas das pessoas. Na vertente cognitiva, o psicólogo e mate-
Em 1993, North foi reconhecido com o Nobel mático Daniel Kahneman desenvolveu estudos
por aplicar a teoria econômica e métodos quan- sobre a vida agradável, preocupado com sen-
titativos com o objetivo de compreender as timentos de prazer e dor, de interesse e de té-
mudanças econômicas e institucionais. Ele vai dio, de alegria e tristeza, e de satisfação e insa-
definir as instituições como "restrições huma- tisfação para entender as circunstâncias desde
namente inventadas que estruturam as intera- o biológico ao social, e do sofrimento e do
ções políticas, econômicas e sociais". As res- prazer. Kahneman ganhou o Nobel em 2002
trições, como descreve North, são concebidas pelo trabalho o desenvolvimento da economia
como regras formais, como as constituições, as experimental e da psicologia na análise de
leis e os direitos de propriedade, mas também decisões em situações de incerteza. A denomi-
existe as restrições informais, como as sanções, nada Teoria do Prospecto é uma abordagem
os tabus, os costumes, as tradições e os códigos comportamental a qual combina a economia
de conduta, que normalmente contribuem para com a ciência cognitiva para explicar o com-
a perpetuação da ordem e segurança dentro de portamento aparentemente irracional da gestão
um mercado ou da sociedade. O grau em que do risco pelos seres humanos.
as restrições são eficazes está sujeito a diferen- Da microeconomia temos o economista
tes circunstâncias, tais como a força de um Muhammad Yunus que criou o microcrédito.
governo limitado e coercitivo, a falta de Estado Em 1974, Yunus sofre com a fome quando
organizado, ou a presença de um forte preceito vivia em Bangladesh, a partir desta experiên-
religioso. cia, ele sentiu que tinha que fazer algo em fa-
Já o economista Joseph Stiglitz pode ser vor dos pobres. Então ele decidiu dar emprés-
classificado como a corrente à esquerda do timos de longo prazo para as pessoas que que-
pensamento econômico, pois é um crítico seve- riam começar seus próprios negócios. Esta
ro e contundente dos fundamentalistas de livre- iniciativa foi estendida em maior escala através
mercado. Ele foi reconhecido com o Nobel em Grameen Bank. Para Yunus a pobreza significa
2001 por mostrar que a informação assimétrica ser privado de todo o valor humano. Ele consi-
pode fornecer a chave para compreender mui- dera microcrédito tanto um direito humano
tos fenômenos observados no mercado, o que quanto um meio eficaz de sair da pobreza.
inclui o desemprego e o racionamento de cré- Emprestar dinheiro aos pobres em quantidades
dito. Os atores econômicos mal informados que lhes convêm é também uma forma de en-
acabam buscando informações dos agentes sinar-lhes alguns princípios financeiros bási-
mais esclarecidos, como no caso da seleção cos. Impulsionado pela crença de que o crédito

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é um direito humano fundamental, Yunus pas- formação de preços integrados com as estrutu-
sou ajudar as pessoas pobres a sair da pobreza, ras sociais. O sonho de uma possível economia
pois acredita que todo ser humano possui ins- totalmente descentralizada, sem o Estado.
tintos de sobrevivência e autopreservação, No artigo denominado: Entre Deus e o dia-
Sendo assim, a forma mais efetiva de ajudar bo: mercados e interação humana nas ciências
estas pessoas é incentivar o que elas já possu- sociais (2004), Abramovay defende argumen-
em, o seu instinto. Yunus contribuiu com es- tos contra a “demonização dos mercados” (as
forços para criar desenvolvimento econômico e ideias sobre comportamento egoísta, corrosão
social a partir das classes populares, através do dos laços de cooperação, degradação da moral,
sistema de microcrédito, o Grameencredit, que etc.), isto é, a crítica generalizada aos merca-
se baseava em alguns objetivos, como promo- dos já não faz mais sentido se a realidade con-
ver o crédito como um dos direitos humanos; creta mostra que os mecanismos de formação
auxiliar as famílias pobres a superar a pobreza, de preços estão integrados as estruturas sociais.
ceder o empréstimo baseado exclusivamente Logo, os mercados não são simplesmente me-
na confiança, e não no direito ou em algum canismos abstratos, onde ocorre o encontro da
outro sistema coercitivo. A ideia era que o oferta e da demanda. Entretanto, se Abramo-
crédito deveria ser oferecido no intuito de ge- vay estiver correto, então como fica as concep-
rar auto empregos, que criem rendas para os ções do tipo contramovimento (POLANY,
pobres, ou ainda para a construção de sua habi- 1980), contra hegemonia (PAOLI, 2003) e
tação. O Grameencredit dá uma ênfase toda mundos hostis (ZELIZER, 2005)? De fato,
especial à "formação do capital humano" e à tenho que concordar que a realidade concreta
proteção do meio-ambiente. O sucesso do mi- mostra que os mecanismos de formação de
crocrédito o fez ser reconhecido com o Nobel preços estão integrados as estruturas sociais,
em 2006. mas isso só ocorre por causa dos tipos de pen-
Por fim, temos o economista indiano A- samento. As representações simbólicas tam-
martya Sem, que dedicou sua vida a desenvol- bém estão incluídas nesta interação, mesmo
ver a economia do bem estar, baseada em jus- elas sendo falsas. Mas, ao contrário de Abra-
tiça social e estudos sobre a fome e desenvol- movay, eu defendo a tese de que essas repre-
vimento em países subdesenvolvidos. A teoria sentações, sendo ou não demoníaca (ABRA-
de John Rawls influenciou bastante as ideias MOVAY, 2004), na verdade são tipos de opo-
de Sem, mas seu objetivo era ir além, então ele sições, como, por exemplo, as ações descritas
focou no tema do desenvolvimento. O conceito como contramovimento (POLANY, 1980),
de desenvolvimento para Amartya Sen consiste contra hegemonia (PAOLI, 2003) e que pode-
na eliminação de privações de liberdade. As mos descrever como mundos hostis (ZELI-
privações limitam as escolhas e as oportunida- ZER, 2005). As oposições são responsáveis
des das pessoas de exercer ponderadamente por um tipo de sociabilidade que cria estabili-
sua condição de cidadão, ou seja, são formas dade na economia. Isto é, um paradoxo, as
opressões de nossa época e que são responsá- ideias abstratas, contra ou a favor da economia
veis por restringir a capacidade dos indivíduos neoclássica, influenciam forma de agir. As
de buscar a vida que realmente gostariam de oposições, principalmente as dos movimentos
viver. A falta de liberdade econômica, na for- sociais, acabaram criando uma relação de
ma de pobreza extrema, pode fazer com que complementariedade capaz de dar condições
uma pessoa fique indefesa na violação de ou- para a reprodução da economia capitalista.
tros tipos de liberdade. Sen recebeu o Nobel Este paradoxo ocorre porque o capitalismo
em 1998 por contribuir para a economia do avançado não consegue pelo próprio dinamis-
bem-estar. mo se desenvolver de forma adequada. Neste
Se pensarmos em combinar os diferentes sentido, o princípio, relação mercado e intera-
economistas citados acima, podemos perceber ção social, não nos ajuda se o pensamento é
a possibilidade de engendrar uma proposta conservador.
econômica. De certa forma, Abramovay revela Mas Abramovay não para ai, ele vai traba-
um tipo de sonho, a vontade de arquitetar um lhar a teoria de Amartya Sen para dar base ao
projeto político econômico que tenta conciliar seu projeto político e econômico:
dimensões tidas como “opostas”. As bases
Nada mais distante do pensamento de
deste projeto político e econômico tem como
Amartya Sen (2000) do que uma crítica
princípio os mercados como mecanismos de

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generalizada aos mercados como meca- acreditada de forma generalizada, pois se as-
nismo de alocação dos recursos: histori- sim fosse, a luta dos trabalhadores por meios
camente, as restrições ao funcionamento de ações como a greve não faria sentido. To-
dos mercados têm sido meios de garantir davia, o importante no trecho acima e tentar
privilégios e impedir o exercício de li- entender um pouco sobre o que Abramovay
berdades por parte dos pobres. Os mer- chama de oposição entre “tradição engenheira”
cados não são entes abstratos, neutros e em relação à “tradição ética” na história da
impessoais que a tradição “engenheira” disciplina economia, pois isso é um ponto im-
– em oposição à tradição ética – da ciên- portante do debate em torno de uma suposta
cia econômica quis deles fazer: mas nes- nova economia, sendo ela “verde” ou além
sa frase não está a demonização genera- disto, que priorize um “desenvolvimento Sus-
lizada da categoria “mercado”, e sim um tentável” de fato, e que tem trazido para o cen-
convite ao estudo das condições em que tro das pautas a ética e a moral.
os mercados operam e das premissas que Pois bem, a discussão de hoje sobre ética e
podem permitir que eles favoreçam a re- moral ficou mais complexa, até porque essas
alização das capacidades dos mais po- palavras não são tratadas como sinônimas na
bres (ABRAMOVAY, 2004). disciplina de filosofia moral. As termologias
no campo da filosofia são tantas que depen-
dendo do autor ou corrente teórica, ética apare-
Não creio na afirmação de que a restrição
ce como comportamento individual, o caráter
ao funcionamento dos mercados foi uma forma
pessoal, não simplesmente de forma psicológi-
de garantir privilégios e impedir o exercício da
ca e inata, mas como virtude adquirida pelo
liberdade por parte dos pobres, este argumento
hábito, que faz parte de condutas corretas de
é retórico100, até porque esta ideia não pode ser
determinados sujeitos em sociedade, e a moral
seria a regra social, normativa. Em outros ca-
sos, a moral é objeto de estudo da ética, di-
100
Segundo LIMA (2001), Aristóteles define a mensão racional da disciplina filosófica que
retórica como a arte de argumentar, que usa os produz conhecimento teórico para explicar as
meios da persuasão para convencer. A retórica é o doutrinas existentes, conjunto de princípios,
esforço de um tipo de discurso que apresenta inte- normas, preceitos e valores, mas que quando
resses do orador para influenciar o receptor. É bom esclarecidos podem ser aplicados na realidade
lembrar que, Aristóteles não define a retórica com concreta. Contudo, a distinção mais consensual
argumento que se baseiam em premissas falsas, mas atualmente no campo científico é a de que a
não é de todo verídico. Isto é, existe um esforço de
ética estaria no plano dos fundamentos (quase
tornar argumentos aparentemente verdadeiros como
fatos reais. A estratégia de comunicação parte de uma lei universal) enquanto que a moral é uma
recursos lógico-racionais, e também simbólicos, dimensão relativa. A ética é o resultado de uma
para induzir alguém a aceitar uma justificativa, uma reflexão sobre uma dimensão universal do
ideia, uma atitude, uma ação, etc. Quem quer con- comportamento. A moral é aquele conteúdo
vencer age de forma eficaz para mostrar eloquência particular, sobre o que é bom ou mal, passível
e busca agradar usando uma comunicação convin- de variações pelo contexto social, pela cultura
cente. Além disso, é importante ter em mente que o e pelos desdobramentos históricos (GUILHEM
bom ou mau uso da retórica depende única e exclu- e FIGUEIREDO, 2008). As discussões sobre
sivamente da “ética”, ou seja, deve-se priorizar “tradição engenheira” em oposição à “tradição
valores morais. A retórica como arte, não deixa de
ética” na história da disciplina economia têm a
ser literária, pois constrói um imaginário poético,
uma faculdade especulativa. As categorias de pro- ver com essa separação entre a ética e a moral,
vas técnicas e não técnicas se transformam em pelo menos no plano da representação. Parece
apelos para a persuasão. Portanto, a metáfora tam- que Adam Smith foi o principal responsável
bém tem papel importante na construção dos “fa- por esse divórcio da ética e da moral na eco-
tos”. A retórica possui quatro partes básicas: 1) nomia, influenciado pelos intelectuais ilumi-
invenção: um assunto que será tratado a partir de nistas, principalmente os pensadores que de-
argumentos relativos ao tema do seu discurso; 2) fendiam o domínio da razão sobre o credo
disposição: a organização das ideias; 3) elocução: o religioso. No trabalho Teoria dos Sentimentos
texto escrita; 4) ação: a exposição dos argumentos a
fim de nortear condutas. Além disto, a retórica
possui três fundamentos que devem se combinar: persuasão é a forma de aconselhar pela exploração
arte, ética e orientação das paixões humanas. A do emocional.

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Morais (2002), Adam Smith teria dado a base não que seja menos importante, mas que o
para um tipo de “separação” entre economia e pensamento moderno, como vimos na “tradi-
política, e entre filosofia moral do social. Basi- ção engenheira”, deu rumos mais neutros ao
camente, o projeto de Adam Smith se resumia desenvolvimento da ciência econômica. Abra-
em um sistema lógico autônomo e livre de um movay vai resgatar a dimensão da moral na
debate público permeado de juízos de valor, teoria de Amartya Sen. Na verdade, Amartya
dos quais muitos eram de origem religiosa, que Sen já realiza a conciliação da moral com a
defendia um tipo moral contra qualquer inte- ética, pois as bases da Teoria da Justiça possui
resse pessoal que predominasse sobre o bem fundamentações filosóficas combinadas com
comum. Boa parte do pensamento filosófico teses econômicas, principalmente com Aristó-
daquela época defendia a moralidade como teles e Adam Smith.
uma dimensão intrínseca da humanidade, ou Segundo Zambam (2009), Amartya Sen
seja, todos nós somos dotados de um sentido constrói sua teoria econômica voltada para o
ético, que permitiria distinguir o bem do mal. bem estar social a partir da identificação da
Para Smith (2002), a economia moderna deve- falta de liberdade econômica que a pobreza
ria ser regida por uma lógica própria, de prefe- extrema produz, além de provocar também
rência por fundamentos e leis naturais, para ser outros tipos de privações e opressões na vida
objetiva. Já a religião e a política são conduzi- de um indivíduo, como por exemplo, os direi-
das por outros princípios. Smith não é contra tos civis. Não é possível para um cidadão go-
qualquer tipo de ética, ele está se contrapondo zar da liberdade em contextos limitados de
a moral religiosa e o domínio político na vida oportunidade e possibilidades de escolha. Uma
privada. Para ele, a moral é algo que aprende- sociedade só é livre quando todas as barreiras
mos em sociedade, não é inata ou natural, mas são removidas para que os cidadãos possam
também não é resultado de uma mera conven- agir por sua própria escolha pessoal. Para A-
ção. Smith vai afirmar que os indivíduos pos- martya Sen, os principais fatores de restrição
suem um tipo de autointeresse pessoal que os da liberdade são os baixos salários, a péssima
motiva, que está ligado ao desejo de sobrevi- distribuição de renda, a desigualdade social,
vência, um tipo de lei psicológica natural que aumento dos preços dos alimentos e desempre-
faz parte do pensamento humano, mas que é go. A liberdade econômica só é possível em
moderado pelo comportamento em relação aos sociedades que garantem o mínimo de serviços
outros. Portanto, o que definimos o que é justo públicos e recursos para suprir as necessidades
ou injusto possui uma dimensão de empatia101, básicas de um cidadão, como cultura, justiça
resultado da vida em sociedade. A suposta social, saúde, educação, segurança e habitação.
separação dos campos da política e da religião Os serviços públicos e os recursos servem
é na verdade o desejo de liberdade. A busca principalmente para o desenvolvimento do que
pelo interesse pessoal virou o fundamento Amartya Sen chama de capabilidades (tradu-
principal para o argumento de que existe uma ção próxima: “capacidades") individuais, mui-
natureza humana imutável e, neste sentido, a tas delas baseadas nas ideias do filósofo Aris-
economia tem uma base para defesa de um tóteles, como características pessoais, respeito
sistema livre e autogerido, aqui temos a origem próprio, hábitos influenciados pelo contexto
da “tradição engenheira”. social, costumes definidos pela herança cultu-
Já a “tradição ética”, temos aqui a dimensão ral, conjunto de oportunidades que possibilitam
da moral, ficou relegada a um peso menor por diferentes escolhas, promoção de múltiplos
muito tempo no campo da disciplina economia, espaços de ações individuais ou coletivas, al-
ternativas de participação individual que po-
101
Adam Smith não realizou nenhum estudo empí- dem influenciar os destinos da sociedade, li-
rico para comprovar suas teses, todo seu trabalho é berdade para que os indivíduos possam buscar
um pensamento filosófico. O princípio da Empatia seus objetivos, etc. O desenvolvimento de ca-
(“se colocar no lugar do outro”) normalmente não é pabilidades individuais é a forma de superar a
uma ação tão simples, voluntária e espontânea, pois chamada liberdade negativa, àquela situação
se fosse natural, com certeza, a escravidão nunca em que o sujeito é livre, mas não possui os
teria existido na história. O que se tem de registro meios para ascensão econômica, além de não
de observações é que os grupos humanos tendem a possuir amparo institucional governamental. A
definir sua identidade em oposição a outros, o que
ideia principal de Sen é promover a liberdade
coloca a empatia num plano mais particular e recen-
te. positiva, a capacidade concreta dos sujeitos

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decidirem o que querem ser, ou fazer alguma desenvolvimento de capabilidades, isto é, o


coisa. mercado é fim e não mais o meio.
Para Mendonça (2012), A teoria de Amart-
(...) A estrutura social, incluídos os me-
ya Sen possui muitos problemas. Isto foi veri-
canismos de participação, as institui-
ficado nos programas inseridos pelos organis-
ções, as formas de representação e de
mos internacionais, que não foram capazes
exercício do poder, a garantia dos direi-
solucionarem os problemas do desemprego, da
tos individuais e coletivos, a arquitetura
pobreza e da exclusão social. A hipótese mais
de valores morais, o exercício da liber-
provável para explicar os porquês da ineficiên-
dade, o sistema de governo, os meca-
cia das políticas adotadas está relacionada aos
nismos para o gerenciamento do Estado
princípios básicos advindos da teoria de Sen,
(considerando especialmente o marco
que não consideram as causas dos problemas
legal), o atendimento das necessidades
sociais vinculados à dinâmica do próprio capi-
das pessoas, a utilização dos recursos
talismo. Ao desconsiderar o conflito de classes,
disponíveis, a preocupação com as gera-
do qual influencia na distribuição de riquezas,
ções futuras, entre outros, representa as
se perde uma das expressões mais importantes
diferentes formas como as sociedades se
para equacionar o problema da pobreza. Um
organizam para alcançar as suas metas
ponto importante que Mendonça chama aten-
mais importantes (ZAMBAM, 2009).
ção no trabalho de Sen é para a falta de argu-
A arquitetura de uma estrutura baseada em mentos sobre os problemas de concentração de
fundamentos éticos e morais, que garanta as renda em benefício de uma minoria. Parece
liberdades substantivas pelo desenvolvimento que isto não está em questão.
das capabilidades é o que supõe a teoria de A combinação de fundamento ético, que es-
Amartya Sen. Assim temos a possibilidade de trutura a engenharia econômica, com a moral
uma teoria que contemple interesses individu- relativa, dos valores, entra em choque. Não que
ais e coletivos, e que fortalece a democracia no a moral não consiga dar conta dos problemas,
sentido de legitimar o atendimento das neces- mas a base ética está equivocada.
sidades humanas e corrigir os malefícios pro-
A descoberta mais importante nas recen-
vocados por um desenvolvimento econômico,
tes pesquisas históricas e antropológicas
que historicamente foi calcado no progresso
é que a economia do homem, como re-
com base em crescimento produtivo de bens de
gra, está submersa em suas relações so-
consumo, aprimoramento tecnológico como
ciais. Ele não age desta forma para sal-
meio de sobrevivência diante da competição,
vaguardar seu interesse individual na
intervenção na natureza que priorize a melho-
posse de bens materiais, ele age assim
ria de condições de bem-estar e que distancia
para salvaguardar sua situação social,
reflexão ética e moral. Tanto Zambam (2009)
suas exigências sociais, seu patrimônio
quanto Abramovay (2012) creem e apostam
social. Ele valoriza os bens materiais na
neste projeto político como forma de aperfei-
medida em que eles servem a seus pro-
çoamento de uma sociedade capitalista e de-
pósitos. Nem o processo de produção,
mocrática.
nem o de distribuição está ligado a inte-
Entretanto, o trabalho de Amartya Sen pode
resses econômicos específicos relativos
ser definido como um tipo de paradoxo liberal.
à posse de bens. Cada passo desse pro-
A concepção de justiça como um valor pressu-
cesso está atrelado a um certo número de
põe que a liberdade só será alcançada quando
interesses sociais, e são estes que asse-
for arquitetado um sistema de orientação base-
guram a necessidade daquele passo. É
ada em parâmetros éticos e morais de enfren-
natural que esses interesses sejam muito
tamento das desigualdades. Na verdade, a teo-
diferentes numa pequena comunidade de
ria está falando da promoção da igualdade
caçadores ou pescadores e numa ampla
como condição para manutenção de uma ideia
sociedade despótica, mas tanto numa
de organização socioeconômica, independen-
como noutra o sistema econômico será
temente do período histórico que se encontra a
dirigido por motivações não-
humanidade. O mercado na teoria de Amartya
econômicas. O interesse econômico in-
Sen perde a função de autonomia para produ-
dividual só raramente é predominante,
ção de bem-estar e passa a existir com a finali-
pois a comunidade vela para que ne-
dade de oferecer oportunidades sociais para o

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nhum de seus membros esteja faminto, a pelos mesmos indivíduos - um procedi-


não ser que ela própria seja avassalada mento articulado minuciosamente e per-
por uma catástrofe, em cujo caso os inte- feitamente salvaguardado por complica-
resses são ameaçados coletiva e não in- dos métodos de publicidade, através dos
dividualmente. Por outro lado, a manu- ritos mágicos e do estabelecimento de
tenção dos laços sociais é crucial. Pri- "dualidades" nas quais os grupos estão
meiro porque, infringindo o código esta- unidos por obrigações mútuas deve ex-
belecido de honra ou generosidade, o in- plicar, por si mesma, a ausência da no-
divíduo se afasta da comunidade e se ção de lucro e até mesmo de riqueza, a
torna um marginal; segundo porque, em não ser a que consiste em objetos que
longo prazo, todas as obrigações sociais ressaltam, tradicionalmente, o prestígio
são recíprocas, e seu cumprimento serve social (POLANYI, 1980, p. 65).
melhor aos interesses individuais de dar-
Mesmo com as contribuições de Amartya
e-receber. Essa situação deve exercer
Sen, principalmente as que conciliam ética e
uma pressão contínua sobre o indivíduo
moral, sua teoria carece muito em relação ao
no sentido de eliminar do seu consciente
enfrentamento dos problemas concretos. A
o autointeresse econômico, a ponto de
ligação entre liberdade individual e realização
torná-lo incapaz, em muitos casos (mas
do desenvolvimento social de forma descentra-
certamente não em todos), de compre-
lizada das formas de governo, principalmente o
ender até mesmo as implicações de suas
argumento de autonomia perante ao Estado, se
próprias ações em termos de tal interes-
torna ingênua. As instituições governamentais
se. Essa atitude é reforçada pela fre-
acabam servindo para a manutenção da eco-
quência das atividades comunais, tais
nomia capitalista quando o Estado aparece na
como partilhar do alimento na caça co-
teoria de Sen. Uma verdadeira discussão sobre
mum ou participar dos resultados de al-
a emergência de uma nova economia deve em
guma distante e perigosa expedição tri-
primeiro lugar fazer uma revisão dos princípios
bal. O prêmio estipulado para a genero-
que regem a economia capitalista. Uma discus-
sidade é tão importante, quando medido
são que possibilite uma inversão na lógica
em termos de prestígio social, que não
entre fundamento ético e moral relativa.
compensa ter outro comportamento se-
Arquitetar um projeto econômico e político
não o de esquecimento próprio. O cará-
que contemple a liberdade e igualdade com
ter pessoal nada tem a ver com o assun-
certeza é um desafio. Esses tipos de projetos
to. O homem pode ser tão bom ou mau,
normalmente revelam mais o desejo de como o
sociável ou insociável, avaro ou genero-
mundo deveria ser, do que de fato ser possível
so a respeito de um conjunto de valores
ocorrer de forma pura e concreta. Por exemplo,
como a respeito de outro. Na verdade,
Bevilaqua (2002) buscou entender essa relação
não permitir a ninguém ter motivos de
entre liberdade e igualdade no mercado. A
ciúme é um princípio aceito da distribui-
antropóloga observou e registrou durante qua-
ção cerimonial, da mesma forma como é
tro anos, na cidade de Curitiba, as reclamações
importante elogiar publicamente um
e conciliações entre consumidores e fornecedo-
hortelão diligente, habilidoso e bem-
res no Procon (Órgão de Proteção e Defesa do
sucedido (a menos que ele seja demasia-
Consumidor), e os resultados do estudo afir-
do bem-sucedido, em cujo caso pode-se
mam que é ilusória a crença advinda do pen-
permitir que ele definhe sob a ilusão de
samento iluminista da igualdade e da liberdade
ser vítima de magia negra). As paixões
em relações econômicas. O que prevalece e a
humanas, boas ou más, são apenas diri-
relação hierárquica com a imposição da lei (o
gidas para finalidades não econômicas.
império da lei define os direitos e os deveres).
A exibição cerimonial só serve para in-
A autora demonstra a tese de que no mercado
centivar a emulação até o máximo pos-
de consumo existe a pessoalidade, o laço soci-
sível, e o costume do trabalho comunal
al, e também temporalidade, uma relação histó-
tende a elevar ao máximo ambos os pa-
rica estabelecida. A hipótese é que os conflitos
drões, quantitativo e qualitativo. A exe-
que surgem nos mercados entre consumidores
cução de todos os atos de troca como
e fornecedores são de lógica qualitativa, pois
presentes gratuitos cuja reciprocidade é
os interesses não residem propriamente nos
aguardada, embora não necessariamente,

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objetos materiais envolvidos, mas sim na defi- sumidor e o fornecedor prescreve os deveres.
nição e no reconhecimento de seus protagonis- O fornecedor perde diante do consumidor e da
tas. O conflito não se dá aos atributos intrínse- superioridade do agente estatal. O tratamento é
cos dos bens trocados, por exemplo, defeito desigual, mas a lógica também pode se inverte,
técnico ou atraso na entrega, mas no rompi- pois o consumidor pode estar errado, ou ele
mento das premissas do que haviam possibili- pode ser um fornecedor. Ao buscar o agente
tado a troca, isto é, a confiança. Portanto, ne- estatal, o consumidor redefine a pessoa huma-
nhuma relação se traduz ao conteúdo material na e a cidadania, legitimando o espaço público,
de fato, mas sim pessoal. A qualidade moral é portanto, não é só por dinheiro, a solução do
uma questão de honra. A pesquisadora refuta a problema também passa pela dor pessoal e pela
tese do autor Albert O. Hirschman, e seu traba- justiça reparativa (perdas e danos). A realidade
lho: Voz, Saída e Lealdade, pois é difícil sair se estrutura não pela liberdade e igualdade,
da relação que não é puramente material. Bevi- mas pela hierarquia e holismo, portanto, vol-
laqua entende que o melhor recurso para inter- tamos a moral relativa, e a revelação de que o
pretação das relações no Procon é a junção fundamento ético é nada menos do que mais
entre Dom e guerra, ou seja, um complemente uma representação, logo é passível de equívo-
a outro. Ela recorre aos autores Marcel Mauss cos.
e Lévi-Strauss para dizer que a troca mercantil A preocupação que deve ser colocada em
é ao mesmo tempo uma troca dispersa - dar, pauta não é a preferência em projetos de liber-
receber e retribuir – e uma troca sintética – dade e igualdade em contraposição a relações
com necessidades inconscientes de origem das hierárquicas e holísticas, mas como construir
estruturas do pensamento humano que cria uma economia pensada com base em uma ética
vínculos. Para Marcel Mauss a economia faz voltada para um ser social e emocional, com-
parte de uma organização holística em que binada com uma moral relativa que deva ga-
questões morais, estéticas, religiosas, jurídicas rantir a possibilidade de ações “individuais”.
e familiares estão juntas, um todo, e não partes Portanto, o labirinto nos coloca numa encruzi-
separadas, neste sentido, é uma visão totalmen- lhada, ruptura ou resistência? Ser ou não ser?
te contra as concepções atomistas da teoria
econômica que dá ênfase ao individualismo. A Ser ou não Ser? Eis a questão
teoria de Marcel Mauss não está ultrapassada, Para aqueles que tiveram a oportunidade de
a dádiva, troca de dons – dar, receber e retribu- usufruir da leitura da história de Hamlet, escri-
ir – faz parte dos mercados de consumo, isto é, ta entre 1599 e 1601 pelo inglês William Sha-
as relações impessoais são fundamentais nas kespeare, sabem que esta obra desperta sensa-
trocas econômicas. O Dom pode ser encontra- ções bem específicas em nosso espírito, inde-
do no coração do mercado. Já em Lévi-Strauss pendente da época que é lida. Uma dessas sen-
é revisado a dimensão da guerra para a ordem sações que é importante destacar neste artigo é
social, a manutenção da cultura. A guerra e o o estado de choque, provocado por uma parali-
comércio não podem ser estudados separada- sia emocional quando geralmente nos depara-
mente porque constituem dois aspectos de um mos diante de um dilema, um tipo de encruzi-
mesmo processo social. As trocas comerciais lhada. Essa sensação de paralisia nos ajuda a
seriam guerras potenciais pacificamente resol- pensar sobre a conjuntura atual que vivemos.
vidas, enquanto as guerras seriam as conse- A história de Hamlet (SHAKESPEARE,
quências de transações infelizes. Com o pro- 1955) não trata propriamente de uma paralisia
blema não solucionado, o consumidor busca o provocada pelo medo. O célebre texto de Sha-
Estado para apaziguar os conflitos em torno de kespeare conta o drama do príncipe Hamlet,
questões de reconhecimento moral e como principal personagem de uma história de ficção
mediador da questão econômica. O que preva- sobre o Reino da Dinamarca, que envolve trai-
lece e a relação hierárquica com a imposição ção e vingança. O enredo principal da história
da lei (o império da lei define os direitos e os começa quando Hamlet descobre que seu pai
deveres). O consumidor ao ingressar no âmbito foi assassinado pelo tio, que tinha o desejo de
do Estado acaba perdendo a possibilidade de tomar o lugar do rei e ficar com a mulher do
novas transações pacíficas com o fornecedor, e irmão. Mas Shakespeare não escreve uma sim-
assim criando uma posição assimétrica. Existe ples história sobre ambição e inveja, o autor
um ganho potencial do consumidor e uma du- inclui experiências sobrenaturais que dão um
pla perda do fornecedor. A lei protege o con- desenrolar sombrio a tragédia. Isto é, quem

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revela o crime é o próprio fantasma do rei as- mentira. Neste sentido, a reflexão pode acabar
sassinado, que pede a Hamlet uma vingança. se sobrepondo a ação e o resultado disto pode
Essa experiência fantástica vai atormentar ser a loucura ou a paralisia. De certa forma
Hamlet e o colocar num dilema de difícil reso- Shakespeare quer passar uma mensagem muito
lução, ou seja, continuar na fantasia da aristo- semelhante a de Cervantes, isto é, a moral de
cracia, que vive de mentiras, ou encarar os que só poderemos viver uma vida plena, cons-
fatos e começar a agir contra eles. “Ser ou não ciente de quem somos, por termos escolhido o
ser?" O dilema que coloca o personagem na que somos, se formos capazes de encarar a
difícil decisão de escolher entre confrontar a verdade, por mais assustadora e fantasmagóri-
verdade e decidir mudar radicalmente, como se ca que seja. Quem Hamlet deveria ser? O lou-
fossemos capazes de nascer novamente, como co ou o príncipe? Este é o dilema do homem e
outro homem, ou então permanecer como es- da cultura diante de um mundo em transição. A
tamos, conservando o status quo. Ruptura ou conhecida frase “ser ou não ser?” dita por Ha-
resistência? Isso leva Hamlet a um tipo de crise mlet também pode ser feita da seguinte manei-
existencial, provocada quando ele percebe que ra: como viver a vida? Segundo o dramaturgo
suas convicções não correspondem com a rea- inglês, somente quem consegue enxergar além
lidade de fato e que seu mundo não é tão ma- da visão limitada encontra o sentido para a
ravilhoso. A realidade que o cercava Hamlet vida, mesmo quando o final não seja tão feliz.
era dura e sofrida. A verdade é um choque Independentemente das teses defendidas
arrepiante revelado pela loucura, um pesadelo. nos trabalhos Mercados Verdes (2011) e Muito
Shakespeare brilhantemente apresenta o dilema Além da Economia Verde (2012), uma coisa é
próprio do período da Renascença. certa: “existe algo de podre no reino da Dina-
A Renascença foi uma época de plena as- marca”. Esta frase famosa de Shakespeare dá
censão de uma nova geração de intelectuais ideia da assombração que ronda e perturba os
críticos sobre a condição humana, caracteriza- economistas neste momento da história, ou
do principalmente por uma época de transfor- seja, a economia não se comporta como se
mações culturais, sociais, políticas e econômi- acredita. A disciplina econômica está numa
cas. Mais do que propriamente descrever mu- encruzilhada: continuar enxergando a vida de
danças de uma época, os escritores do período forma limitada (o habitual exercício de reduzir
renascentista buscaram inovar a literatura a ou simplificar a realidade para torná-la analíti-
partir de narrativas que refletissem os dilemas ca) ou enfrentar a verdade, admitir que seus
próprios de suas sociedades e da mentalidade pressupostos teóricos não dão mais conta da
de seus membros. A tragédia de Hamlet é uma realidade (não adianta mais tentar fazer com
obra típica da ruptura de pensamento daquela que a realidade se encaixe na explicação teóri-
época, mas não é a única, já vimos O Enge- ca). A loucura pode ser a uma saída?
nhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha de Na obra de Shakespeare (1955), o desfecho
Miguel de Cervantes (1605 e 1615). De certa final é trágico, todos os personagens envolvi-
forma essas obras estão conectadas por temas dos no drama morrem envenenados, nem
muito parecidos, a insanidade em momentos de mesmo Hamlet escapa, na verdade eles acabam
incertezas, o drama da consciência, ou o pen- matando-se uns aos outros. Parece que o escri-
samento diante de uma encruzilhada. Hamlet e tor estava se referindo ao resultado de nossas
Dom Quixote são produtos de um exercício escolhas, deste modo, mais do que o final trá-
criativo de autores que conseguem combinar a gico, o importante é saber qual a decisão toma-
totalidade da vida numa descrição de ficção. remos. Entretanto, podemos afirmar que nem
Nas duas obras é possível perceber a narrativa sempre a loucura é uma escolha, um bom e-
binária, a dualidade, a oposição entre razão e xemplo que pode ser citado é a vida do eco-
emoção. William Shakespeare e Miguel de nomista John Nash, responsável pelo avanço
Cervantes usam a dualidade para contextuali- da Teoria dos Jogos e o famoso Dilema do
zar um tipo de universo, em que tudo que pare- Prisioneiro. A vida de Nash nos mostra que
ce uma coisa é na verdade outra, ou seja, fanta- mesmo que não tenhamos o domínio sobre a
sia com realidade, loucura simulada ou insani- loucura, talvez ela possa nos ensinar algo pela
dade de fato, verdade ou mentira, autenticidade experiência. O momento em que foi diagnosti-
ou encenação, são oposições que estruturam cado como esquizofrênico com certeza foi o
uma história dentro da história, contendo uma episódio que mais marcou a vida de John Nash
moral assustadora: o mundo perfeito é uma (NASH, 2013). A doença foi um pesadelo na

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sua vida, mas a paranoia de certa forma o fez pensamento é delirante, então qual é o méto-
mudar muitas de suas convicções sobre a ra- do? No início eu afirmei que existe a possibili-
zão. O próprio John Nash declara em seu dis- dade de um paradigma emergente, e com cer-
curso na cerimônia do Prêmio Nobel, que de- teza ele não nasce de forma direta dos projetos
pois do seu retorno do “mundo dos sonhos”, de “desenvolvimento sustentável”, “economia
percebeu que a ciência possui muitas crenças verde” e “além da economia verde”. O para-
fixas que podem ser falsas, com excesso de digma que defendo surge entre as dúvidas da
imaginação, uma linguagem irrealista, isto é, modernidade tardia e as soluções que a ciência
de percepção aparentemente verdadeira de algo atual tenta criar. Esta loucura faz com que os
não realmente presente. De certa forma, a lou- intelectuais de época assumam uma postura de
cura o fez enxergar melhor as imposições da fé, como “crença religiosa”, um discurso dota-
racionalidade, e isto o fez mudar sua forma de do de esperança no futuro, algo quase messiâ-
pensar, e foi o momento que ele decidiu sair nico. O que não é nada de novo, os “céticos”
deste labirinto. Nash viu que a saída era o pen- do campo científicos sempre estiveram numa
samento delirante, só essa forma de pensar é fronteira tênue entre o credo e a verdade. E
capaz de nos tirar de circunstâncias convencio- para romper com essa fronteira os cientistas
nais aceitas como normais. O próprio Nash foram muito mais artistas, do que homens pu-
afirma que não poderia ter boas ideias científi- ramente racionais.
cas se tivesse pensado pelo padrão normal. E Artistas no sentido de dotados de uma sen-
foi a partir daí que ele considera que tenha sibilidade que emana do espírito, portanto, a
começado elaborar pesquisas matemáticas razão nada mais é do que a própria emoção
respeitáveis. A racionalidade do pensamento disfarçada de lógica. Neste sentido, só um
impõe um limite no conceito de sua relação paradigma é admitido, o que alia crença/fé,
com o cosmos de uma pessoa. Nash sugeriu arte e ciência, um tipo de “trindade”, algo que
hipóteses sobre doença mental. Ele comparou a persiste e que é muito mais antigo do que a
não pensar em uma maneira aceitável, ou de modernidade. Eu chamo de “trindade” porque
ser "louco" e não caber em uma função social é como a ideia cristã, que professa o messias
de costume, para estar "em greve" a partir de como o ser que é ao mesmo tempo pai, filho e
um ponto de vista econômico. Ele avançou em espírito santo, isto é, a analogia aqui é para é
estudos sobre psicologia evolutiva, principal- para dizer que o antigo paradigma é esperança,
mente em pontos de vista sobre o valor da arte e ciência. O antigo paradigma, que combi-
diversidade humana e os benefícios potenciais na crença/fé, arte e ciência na interpretação,
de comportamentos ou funções aparentemente pode ser capaz de juntar aquilo que seria de
fora do padrão. Para Nash, o rumo é abrir a difícil conciliação no labirinto do paradigma
mão de algo e colocar a razão em dúvida. moderno: corpo e mente, razão e emoção, ca-
A ideia de John Nash, aquela que diz que pacidade sensorial e especulação filosófica,
temos que abandonar as antigas crenças pre- ideias e fatos, representação e sociabilidade,
concebidas, pode ser mais útil do que aderir a intelecto e imaginação, criatividade e conser-
uma nova arquitetura que serve de manutenção vadorismo, pensar e sentir, consciente e sub-
do capitalismo. A vida de John Nash é inspira- consciente, raciocínio e sensibilidade, sonhos e
dora no sentido de tentar compreender a con- realidade, etc. para apreender uma realidade
tribuição que o pensamento delirante pode ter paradoxal.
no campo científico, entre o pensamento mo- Conclusão
derno e o pensamento sustentável, ou entre
O personagem Dom Quixote de Miguel de
aquilo que achamos que é racional e o que
Cervantes lutava contra os gigantes porque
ainda não compreendemos plenamente, como
acreditava que eles representavam perigo. Já o
as emoções. Com certeza é pelo pensamento
espírito quixotesco da sustentabilidade, ao
delirante que podemos falar de economia ver-
contrário, acredita que os “gigantes” podem ser
de, do conhecimento, da criatividade, da felici-
usados para o nosso bem. O que é sonho e o
dade, da ecológica, etc. ou talvez afirmar a
que realidade? Parece que somente o pensa-
construção de uma economia dos sonhos.
mento delirante é capaz de nos tirar deste labi-
A antropologia tem um papel epistêmico
rinto de espelhos. A loucura é a única capaz de
fundamental neste processo de compreensão
explorar a margem tênue entre aquilo que ain-
do campo econômico e no entendimento das
da não compreendemos plenamente, as emo-
ideias dos “cientistas malucos”. Mas, se o

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ções, e aquilo que achamos que é racional. Em Correspondente da BBC no Oriente Médio.
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Antropologia das Emoções. Rio de Janeiro:
Terrain.
Editora FGV, 2010.
ROTTERDAM, Erasmo. Elogio da Loucura.
São Paulo: Martins Fontes, 1990.

Abstract: This text aims to analyze the ideas for a new economic architecture that combines
ethics, society and nature, a proposal that is presented in the book Muito Além da Economia Verde,
de Ricardo Abramovay. The Rio + 20 ended with not very satisfactory results for those who
believe in a better world. The feeling with the conclusions of the event can be compared like being
inside a maze, a place where the paths always lead us to a dead end, lost no concept where to go,
maddening trap. But hopes to live an impossible dream has not ended, and in trying to find
possible answers to tomorrow, our mission is to contribute to the debate by analyzing the outputs
from the maze of possibilities. Keywords: markets, green economy, nobel prize, sustainability,
madness.

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RESENHAS

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A aurora da vida de meu tio na por essência da circulação do capital, ímã


que a tudo magnetiza ao preço do vil metal
cidade moderna: uma leitura em trocos de uma avassaladora desigualda-
dialogada dos filmes Mon On- de social. Mundos diferentes, ainda que não
cle e Aurora - uma Resenha necessariamente desconectados territorial-
mente, integram a dicotomia cidade-campo
AURORA – Ficha técnica por eles representada.
Ano: 1927
Origem: EUA
Direção: F.W. Murnau
Roteiro: Carl Mayer - baseado no romance Die
Reise Nach Tilsit ("Viagem a Tilsit") de Her-
mann Sudermann.
Cinematografia: Charles Rosher and Karl Struss
Música: Hugo Riesenfeld
Montagem: Harold D. Schuster
Produção: William Fox
Elenco principal: George O'Brien (o marido);
Janet Gaynor (a esposa); Margaret Livingston (a
mulher da cidade).
Mon Oncle – Cena do filme
MON ONCLE - Ficha técnica
Título original: Mon Oncle
Ano: 1958
Duração: 120 min.
Origem: França
Direção: Jacques Tati
Roteiro: Jacques Lagrange, Jean L’Hote, Jac-
ques Tati
Trilha Sonora: Barcellini Franck, Alain Ro-
mans, Norbert Glanzberg
Elenco principal: Jacques Tati, Jean-Pierre Zola,
Adrienne Servantie, Alain Becourt.

A modernidade é urbana102. Este é o te- Aurora – Cena do filme


ma central dos filmes "Aurora" de Friedrich Em Aurora, produção norte-americana
Murnau (1927) e "Mon Oncle" de Jacques do alemão Friedrich Wilhelm Murnau
Tati (1958) que aqui se busca relacionar. (1888-1931), à vida urbana se alterna o
Aproximadamente trinta anos distanciam modo de vida campesina de uma pequena
essas produções cinematográficas no século família na pacata rotina doméstica em sua
20. Ambos retratam o vigoroso impacto das fazenda, longe do burburinho da distante
transformações decorrentes da era moderna Tilsit103, a grande cidade. O fazendeiro, pai
e sua projeção sobre a vida humana, polari- da família, vê- se repentinamente motivado
zando estigmas que contrapõem calmaria e a uma inusitada circunstância de experien-
insegurança, encontro e dispersão, estranho ciar uma vida de fora da pasmaceira de seu
e reconhecível, encantamento e alucinação, cotidiano.
distância e proximidade pessoal, através da A trama integra o conflito por ele vivido
mediação da cidade moderna, frenesi da entre os limites e segurança da vida no
diversidade de oportunidades que consagra campo e um idealizado e incerto porvir da
o lugar da vida urbana pós-indústria, sede ofuscante cidade imaginária. A atração é
fruto de sentimentos que afloram ao conhe-
102
Exercício elaborado no Curso “Representa-
103
ções, imaginários e imagens da cidade”, minis- O filme Aurora foi baseado no romance de
trado pelo professor doutor Robert Moses Pe- Herrman Suderman, “Viagem a Tilsit” - ver
chman em 2014 e revisado em 2015. Olavo de Carvalho nas referências eletrônicas.

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cer uma estrangeira, a “mulher da cidade”. quitetura. E é esse rígido layout, curiosa-
Contraponto ao reconhecível, a expectativa mente formulado pela fluidez de linhas si-
do surpreendente, de um ‘verdadeiro’ modo nuosas, mas limitado por ângulos retos, que
para viver a vida faz da paixão súbita a me- determina a administração do lar para a
dida de valor entre a permanência e a mu- dona da casa.
dança. A aposta do encantamento dessa re-
lação traduz- se no amor à cidade, ao desco-
nhecido que é a nova cidade, a um modo de
vida dinâmico. Um mundo de ofertas de
realização humana.
O fazendeiro hesitante entre a rotina e o
imprevisível (sua condição de esposo e de
pai é recente – o casal tem um filho bebê)
confunde-se com o desejo de deixar seu
presente para o passado e prosseguir com a
sedução da cidade, a mulher fagueira, ousa-
da, empenhada por uma inovada moral
citadina, determinada a eliminar barreiras
Mon Oncle – A casa Arpel – protótipo da casa modernista -
no caminho, que lhe propõe a simulação da arquitetura
morte acidental da esposa. Um idílico pas-
seio de barco no rio que margeia a fazenda Internamente, o design arrojado em li-
da família constitui o cenário do plano or- nhas e formas (despreocupado quanto à
questrado. acomodação corporal) e a automatização
No filme Mon Oncle, a imagética re- dão um tom enxuto e clean - suficiente - ao
constitui o modelo da cidade industrial, mobiliário do habitar moderno.
com o imperativo aporte da tecnologia da Deslumbrada com a prometida liberdade
automação, a intrínseca contribuição da da “máquina de morar”104, a dona da casa
arquitetura e do urbanismo modernos e as convence-se de sua nova competência: as-
consequências inexoráveis à conformação segurar tão somente que as atividades hu-
da pirâmide social, envolto em relações manas, beneficiadas pela revolucionária or-
sociais pautadas pela instantaneidade, pela dem espacial, sejam efetivadas, cabendo a
fragmentação e pela teatralidade, padrões ela apenas o zelo para com a sua aparência,
de comportamentos da classe média urbana. o asseio e o polimento, refletores contínuos
Paradigmas constituintes das novas trocas da última geração do novo, testemunha da
humanas tanto no espaço público, a rua - vanguarda do tempo.
“lugar em que certamente estranhos irão se Comandos manuais à distância pro-
encontrar” (HARVEY, 1995) -, quanto no metem à senhora Arpel disponibilidade de
espaço privado, a moradia. tempo em seu viver que a livrarão do traba-
Nas franjas da zona urbana habitada pe- lho doméstico e viabilizarão uma vida vol-
las classes sociais abastadas, a vida vicinal tada às horas livres em uma casa de pronti-
em cortiços decadentes expõe as pungentes dão para receber visitas e realizar recepções
carências materiais; contudo, é o calor hu- sem sobrecargas; que a levará a prescindir
mano que se exala candente no cotidiano inclusive de uma auxiliar doméstica. A
provinciano. A proximidade posta pela casa-máquina faz tudo. À empregada, um
contiguidade do adensamento demográfico processo de adaptação ao novo modo de
e da mistura de usos, tão característicos do servir à família moderna é formulado: con-
subúrbio, dá lugar à espontaneidade no
mais das vezes ingênua e mesmo alienada
104
da precariedade da condição de viver que Expressão cunhada a partir das edições dos
lhe recai no dia a dia. Congressos Internacionais de Arquitetura Mo-
No filme de Tati, a habitação moderna é derna – CIAMs – evento concebido por um
o ícone falante que impõe outra fruição da grupo de arquitetos expoentes internacionais do
“intimidade” do lar. A ordem espacial im- século 20 e liderado pelo arquiteto franco-suíço
Le Corbusier (Charles-Edouard Jeanneret-Gris –
plica um ajustamento corporal minu-
1887-1965) com o fim de discutir os rumos dos
ciosamente prescrito no projeto de sua ar- vários domínios da arquitetura e do Urbanismo.

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tratos especiais para fins extraordinários à A mãe de família, ela mesma mais uma
rotina. máquina, robotizada pelas novas exigências
da morada encomendada para poupar-lhe
demandas exaustivas de arrumação ordiná-
ria daquela vivida na residência pré-
moderna, repete mecanicamente o aparen-
temente pouco que lhe compete. Em roupas
de dormir e com bobs enrolados nos cabe-
los, uma flanela à mão, está sempre apta a
polir qualquer opacidade sobre as superfí-
cies brilhantes dos materiais construtivos da
Mon Oncle – a casa Arpel – protótipo da casa modernista – última geração, como o vidro das esquadri-
layout da arquitetura – ver fonte nas referências ao final as ou o aço polido ou pintado, da maçaneta
Sofisticação sem medida nem a renda da porta à lanternagem do automóvel. O
familiar permitiria facultar. A aparência transtorno corporal inconsciente decerto
simula um possível no impossível orça- anuncia a envergadura a que os tiques ner-
mento doméstico. Uma fonte desenhada em vosos e as lesões corporais ascenderão no
forma de golfinho adorna o jardim, orna- universo da medicina para tratar das seque-
mento tradicionalmente próprio do espaço las dos esforços repetitivos, imperativos da
público em equipamentos de uso coletivo, e contemporaneidade.
é a representação central do poder aquisiti- O mero artigo doméstico – o pano de
vo de uma classe média em ascensão de que polimento, usado e reutilizado – entretanto
Jacques Tati tira proveito. não é dotado de capacidade autolimpante,
O agenciamento do jardim dos Arpel, de nem parece ser lavado, tampouco se trata já
layout acurado, concebido sobre os recuos de item descartável. O hábito adquirido
legais de construção, mas que se farta à nem dar a notar à dona da mão frenética
frente da edificação, delimitam a ocupação que precisa usá-lo diariamente. Em um
do lote e tem o ponto focal na consumação momento, transformado em lenço, adereço
do sonho familiar: a fonte para chamar de do vestuário próprio para saudações à dis-
sua. Contudo, o uso do equipamento deixa tância, na cotidiana despedida do marido e
entrever o custo de funcionamento diutur- do filho na saída para o trabalho e a escola
no; o consumo de água e de energia severa- com o carro da família, abanado exala pó
mente controlado pela gerente da casa. em abundância, anunciando uma poluição
O toque sonoro do recurso instalado no urbana vigorosa de efluentes atmosféricos
muro frontal, a campainha eletrônica, alerta dos motores de combustão. A cena retrata
o instante de ligar o jorro d’água à exibição com simplicidade o real lubrificante do
do visitante. A vizinhança curiosa sobre a brilho que ofusca a modernidade.
mais moderna casa da rua não para de que- Uma sátira sagaz que Jacques Tati em-
rer conhecer a sua fonte. Repetitivas e salti- prega como um fio que costura a sua trama;
tantes corridas levam a dona da casa até o a própria casa Arpel foi encomendada espe-
acionamento do controle que entreabre o cialmente para o filme e executada em ta-
portão, cuja visão permite à distância che- manho natural dentro do estúdio de grava-
car o perfil de quem bate à porta. A identi- ção com a sobreposição intencional de to-
ficação imediata enquadra ou não aqueles a dos os clichês da arquitetura moderna.
quem a fonte deve deslumbrar. Em se tra-
tando de um familiar ou um serviçal, é des-
ligada sem vexame por medida de econo-
mia.
A residência Arpel é literalmente coisa
de cinema. Casa-referência para ser fotogra-
fada por revistas de arquitetura, para isso
devendo cumprir seu desígnio de manter-se
impecável, ofuscante, sem um alinhamento
do layout desacatado.

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A cidade se moderniza, cresce sem pa-


rar, num rito sumário de limpeza da pai-
sagem moderna de quaisquer traços do an-
tigo. Passado esse representado pelas car-
comidas edificações da zona central da ci-
dade, periferia em que se situa o cortiço em
que mora Hullot. A seção industrial, por sua
vez, relata o estágio do capitalismo que
avançará para a era da acumulação flexíveli.
O grande tio proporciona a Gérard hia-
tos de salvaguarda de sua infância das limi-
tações postas pelas regras da classe social
em que se insere. O garoto transpassa a
Mon Oncle – a Casa Arpel – maquete em tamanho real
montada no estúdio de gravação – ver fonte nas Referências normativa domesticadora através dos meios
ao final mais corriqueiros a uma criança que ainda
Conflito com que se deparam o filho ú- parece saudável: a traquinagem, o fingi-
nico dos Arpel, Gérard, e seu tio, Ms. Hul- mento de dedicação aos estudos entediantes
lot. Cúmplices sentimentais de um mesmo (artifício que é motivo de exibição da mãe
estranhamento anti a teatralidade com que orgulhosa), as fugas de casa, maquinadas
foi determinado o uso da nova morada. com a ajuda do tio, esse companheiro pre-
A criança sozinha, sem amigos com dileto em quem encontra afeto e proteção
quem brincar na vizinhança e nem espaços na mão com que o segura e o conduz a tran-
adequados para as estripulias próprias de sitar pelo subúrbio, zona da cidade em que
uma infância saudável, conta para si com o pulsa vitalidade, o seu verdadeiro parque de
seu quarto, cela concomitante de dormir e diversões, onde o reino das brincadeiras
de estudar sob a permanente vigília da mãe, infantis se faz nas ruas, com as mais salien-
que lhe deseja e manifesta filho exemplar. tes e desassistidas crianças do bairro de
Da criança Gérard, sempre vestida à residência do tio, em meio à feira aberta, à
maneira de um adulto, a mãe espera a tradu- praça fronteiriça ao cortiço onde Ms. Hullot
ção impecável da educação moderna, em é conhecido de todos e com quem mantém
que a obediência e a passividade, requisito laços vitais de vizinhança.
introduzido na esfera doméstica para o pro- Para a satisfação de Gérard, cabe ao tio
veito do capital, não devem demandar ocu- (“um sem família e desocupado”) pegá-lo
pação extraordinária que lhe tome o tempo diariamente na escola e levá-lo para casa
de cuidar do cabelo, tampouco comprometa em seu próprio veículo, a velha bicicleta.
a prontidão da arquitetura de vanguarda de
sua casa.
Gérard mais parece um elemento de
composição da habitação. Um filho não fal-
taria à família perfeita, próspera, e da qual
sairá herdeiros. Mais do que um talvez
comprometesse o sonhado projeto de con-
sumo do casal Arpel e seu desempenho
social. Bem-sucedido, seu pai é gerente da
fábrica Plastac, uma pequena indústria au-
tomatizada de tubos para a construção civil, Mon Oncle – cena do filme – Gerárd com seu tio Hullot em
passeio pelo subúrbio onde este mora – ver fonte nas Refe-
situada próxima ao bairro onde mora seu rências ao final
tio, à margem da cidade que cresce para
longe da zona suburbana. Distância aparen-
temente inexistente entre o subúrbio e a
fábrica é demonstrada pelo trajeto quase
instantâneo, a pé ou de bicicleta, por que se
desloca Ms. Hullot. E, não à toa, a fábrica é
especializada na produção de um segmento
da indústria da construção civil.

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ção (o automóvel moderno) e de consumo


(a casa moderna e os recursos e utensílios
domésticos da “nova máquina de morar”).
No estratagema de Jacques Tati, o su-
cesso do cunhado nem parece perceptível
para Hullot, envolto em uma atmosfera que
o distancia de qualquer deslumbramento
diante da vida moderna. O que lhe é atribu-
ído como insucesso tem notoriedade no
ritmo com que vive sem pressa o próprio
Mon Oncle – a habitação em que mora o senhor Hullot, no
cotidiano modesto. As novidades da moder-
subúrbio da cidade – ver fonte das Referências ao final nidade não lhe causam reação, senão pelo
estranhamento com que se vê às voltas na
Dois seres ligados por laços parentais e
casa de sua irmã, a Sra. Arpel, ao ser solici-
deslocados dos novos tempo e espaço. Hul-
tado a ir à cozinha e atender-lhe um pedido.
lot, representado pelo próprio Tati, é o elo
Nem carece ressaltar o que daí se desenrola,
para Gérard anti o desligamento desses
dada a completa falta de intimidade do ir-
dois mundos opostos.
mão com outra máquina que não seja uma
Se em Aurora, o modo de vida é narrado
bicicleta.
por essa oposição radical de espaço e tempo
Um quieto passageiro do tempo, senhor
–, as horas parecem não passar na calmaria
Hullot sequer parece esforçar-se a adaptar-
da vida campesina e é na cidade que tudo
se ao frigir dos novos tempos. Suas trapa-
acontece como que simultaneamente–; em
lhadas no trabalho na fábrica, emprego para
Mon Oncle, ao contrário, é a própria cidade
ele batalhado pelo cunhado, relembram o
que revela sua (de)composição social em
genial operário descompensado de Charles
diferentes zonas, distintamente expressas na
Chaplin em Tempos Modernos e uma traje-
moradia coletiva degradante, e a falta de
tória de instabilidade no trabalho. Sua inap-
infraestrutura que lhe ladeia, e pelo modo
tidão é satirizada por uma espécie de disle-
de vida estigmatizado pelo acesso ou pela
xia no tempo, ou do tempo. Tudo que lhe
falta (sequer de noção) a benefícios promo-
vem às mãos quebra-se. A modernidade so-
vidos pela desenvolvimento científico e
bre a qual pisa se desmancha, tudo próprio
tecnológico que geram o crescimento urba-
daquela produção veloz que não oferece
no desenfreado.
resistência ao tempo (uma estratégia cada
Se tanto no campo quanto no subúrbio,
vez mais aprimorada pelo capital). A bizar-
as horas e o cotidiano parecem não se alte-
ra cena do filme em que a família Arpel
rar, na cidade, em Aurora vigora uma sen-
recepciona convidados, a pureza de uma
sação de simultaneidade entre instante e
curiosidade infante faz Hullot estourar a
lugar, em que a rua, o estar público, se en-
tubulação de abastecimento da fonte orna-
contra impregnado por um ritmo alucinante
mento, quando, cautelosamente, titubeante,
que passa a idealizar o modo da vida hu-
observa e tenta identificar sobre qual lajota
mana. Em Mon Oncle, o mesmo espaço, a
de concreto pisar). Um instante que alinha-
cidade, notabiliza a segregação espacial de
va um fio à máxima do materialismo do
suas diferentes zonas em que tecnologia de
velho Marx: Tudo que é sólido se desman-
ponta e degradação habitacional constituem
cha no ar. Um vexame à família Arpel se
a cidade que cada vez mais se especializa
desenrola.
sobre a desigualdade social. Retrato mais
Em Aurora, a magia da cidade explode:
adequado não há para amparar a sofistica-
ruas comerciais, tráfego intenso e desorde-
ção do velho modo de produção capitalista
nado de veículos de quatro rodas, cenas
da era industrial em habilitar-se para poten-
decisivas, como a memória guardada por
cializar o futuro, que já se antevê voraz em
meio de fotografias, o usufruto do melhor
selvageria. A distinção de classes sociais se
restaurante, a diversão no parque de diver-
faz pelo acesso ou não à inovação, ao de-
sões, onde luzes e um clima de festa e de
senvolvimento científico e tecnológico e os
felicidade fazem o casal campesino re-
benefícios emergentes da automação de
memorar a prova do mel da lua de seu ca-
bens de produção (na indústria), de circula-
samento, após o remorso do marido levá-lo

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a reparar-se diante do risco de perda do elo


familiar. O preparar-se para a festa no salão
de beleza por que passa o casal, leva-o a vi-
venciar a cena de ciúme ao revés da recen-
temente vivida no campo... Desta feita, é no
marido que se desperta o ciúme da esposa
ao vê-la ser abordada por um galanteador
que, instantaneamente, lhe oferece um bu-
quê de flores, diante do que o marido reage
com vigor antecipando-se ao cavaleiro que
corteja a sua esposa demarcando o seu do-
mínio. A cidade moderna deixa entrever
Aurora – cena do filme – a cidade grande, as luzes noturnas
que não há nela lugar para o conservado- e o transporte coletivo – ver fonte em Referências ao final
rismo, para a tradição.
A cena idílica do casamento na igreja A opção dos cineastas Murnau (Aurora)
lhes remonta a cerimônia do próprio matri- e Tati (Mon Oncle) torna emblemáticas as
mônio e proporciona ao marido o enlevo do cenas de abertura dos filmes. À calmaria de
apaixonado laço sacramental. Um beijo tea- Aurora, sobrevém o impacto de uma demo-
tral que literalmente para o trânsito finaliza lição em Mon Oncle. Neste, a câmera aberta
a cena, sem que nem se faça por eles notar fecha em close no qual uma grua promove
ainda que em meio ao espaço público e sob destroços. Surpreende a concepção cinema-
o som de buzinar de motoristas estressados tográfica por condensar na própria cena de
em seus veículos. abertura o anúncio da ficha técnica do fil-
me. Uma costura de imagens sensacional.
Ao passo em que edifícios se encontram em
demolição, dá a imaginar se ao autor não
coube uma intenção sobreposta de aludir ao
próprio modo de produção de filmes que se
transmuta na modernidade, ao agregar o
novo equipamento, a grua, um dos princi-
pais maquinários da construção civil até os
nossos dias, com seu arsenal de possi-
bilidades aditadas ao vasto andaime da ele-
vação (social) à altura celestial. Um limite
Aurora – cena do filme – o beijo de parar o trânsito – ver imensurável para os novos tempos da pro-
fonte em Referências ao final
dução artística munida de um equipamento
O fazendeiro se defronta com o desejo capaz de constituir o novo arsenal industrial
de recomeço. As luzes da cidade que o ine- da própria cinematografia.
briaram de paixão o despertam do en- À cena ainda cabe aludir à impressão de
cantamento fugaz que quase o tomou da se- que o que se demole é um velho cinema da
gurança do que arriscou deixar para trás, o cidade, de arquitetura superada aos novos
tesouro que começou a construir no campo, templos ou a dar lugar a novos usos que
sua propriedade, a rotina de uma vida sem substituem o lugar dos sonhos e da medita-
sobressaltos, o bastante para uma vida de ção pelos de premência material para a cir-
felicidade que pode ser revigorada por pas- culação da moeda. A demanda aponta a ne-
seios ocasionais à cidade grande com a pró- cessidade de vias, ruas, estradas por onde
pria família. O filho deixado na fazenda é o veículos precisam trafegar deslocando mer-
farol que ilumina o aceno de que é lá que a cadorias e trabalhadores-mercadorias.
vida se fará plena, sem o apelo de uma vida O advento da indústria, a revolução im-
que corre, mas não se vive. primida pelo novo modo de produção capi-
talista está conceitualmente representada na
imagem das cidades em oposição à sua
gênese. A busca de mercados para a circula-
ção de um mercado que, hoje se visibiliza,
também se fará em tempo comprimido para

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além do espaço geográfico. O capital faz da cial” (ibid.), referendando uma visualidade
rua o seu signo por excelência, a nova base que recusa a exclusividade da descrição lin-
material que configura o território urbano guística, resiste à subordinação de uma ru-
moderno segmenta funcionalmente o terri- brica de discursividade, reivindica seu pró-
tório: habitação, trabalho, mercado e lazer prio método de análise como mediação de
do centro da cidade, lugar da troca, e reloca uma leitura capaz de reconhecer que a ima-
progressivamente as moradias de classes gem como uma narrativa em si da vida so-
média e alta para zonas periféricas longe do cial elege signos de uma nova organização
burburinho do centro de troca, configuram social no tempo e no espaço (ibid). O visí-
o lócus da grande cidade entrecortada de vel como a esfera das visibilidades e invisi-
vias e desenhada à maneira de um tabuleiro bilidades, como sistema visual de práticas
de xadrez, um grande jogo de disputa pelo individuais ou coletivas, que identificam
sucesso privado que exige argúcia e institu- uma nova sociedade.
cionaliza na modernidade o velho método Valores, status, crenças, a remodelação
da trapaça para a exibição de méritos de da interação social e uma espetacularização
indivíduos socialmente adaptados. da convivência que alterna atores e plateia,
As duas abordagens fustigam a reflexão sem os quais não há lugar para a te-
de quem assiste aos filmes com a previ- atralidade posta pelas novas práticas sociais
dência de tecer teias entre eles. Produzidos dos tempos modernos. Critérios que passam
entre a grande crise econômica mundial do a normatizar o imperativo da ostentação, ou
final dos anos 20, que desaguou na 1ª do recolhimento daquele que nada tem para
Grande Guerra, e a superação do modo de ostentar, de visibilidades ou invisibilidades
produção pós-fordista que incrementa a da vida moderna (op. cit., 36).
vida moderna a partir da segunda metade do Como o dito famoso de Paul Klee de
mesmo século prenunciam o ‘grande olho’ que a arte não reproduz o visível, mas torna
visionário de George Orwell em seu emble- visível, Menezes remonta a uma assertiva:
mático livro “1984” (1948), que projetou “os objetos sociais nos inventam. As ima-
uma conjuntura social 40 anos adiante, gens, portanto, participam da nossa ‘institu-
notoriamente vigorosa na sociedade con- ição’ como pessoas sociais”. A imagética
temporânea global. dos filmes, ao passo em que conforma mei-
O imaginário que ambos os autores das os, signos, modalidades da natureza do
tramas parecem dispostos a consolidar se olhar que olha, segue abrindo janelas à nar-
assenta em referências da modernidade em rativas...
um repertório de imagens que enquadram
cada qual em uma “história visual”. Uma Referências
iconosfera, como tratou o estudioso Ulpia- HARVEY, David. Condição Pós-Moderna.
no Menezes (2005): “... a dimensão visual Tradução de Adail Ubirajara Sobral e M.
presente no todo social (...) um quadro de Estela Gonçalves. São Paulo, Loyola, 1993.
referenciais, problemas e instrumentos con-
MENEZES, Ulpiano T. B. Rumo a uma
ceituais e operacionais (inclusive para cru-
“história visual” in MARTINS, José de S.
zamento de dados), relativos a três grandes
et. alii. (Orgs.), O imaginário e o poético
feixes de questões...”: um visual, um visível
nas Ciências Sociais. Bauru: EDUSC, 2005.
e uma visão do que se busca representar.
“uma rede de imagens-guia de um grupo SENNET Richard. O Declínio do Homem
social ou de uma sociedade num dado mo- Público: as tiranias da intimidade. Tradu-
mento e com o qual ela interage” (Op. ção de Lygia Araújo Watanabe. São Paulo,
cit.:35). Companhia das Letras, 1995.
Com base nesta concepção, é possível
http://archtectureclub.blogspot.com.br/2010
correlacionar narrativas constantes da “his-
/09/mon-oncle.html - sobre a arquitetura da
tória visual” de cada filme. Fontes, pa-
casa Arpel - consulta feita em 02/06/2014.
radigmas ou estigmas da modernidade que
confrontam imagens como artefatos na con- http://carolfurtadop.blogspot.com.br/2010/0
sumação do que entre elas pode identificar 9/villa-arpel.html - imagens da vila Arpel e
o sentido de um rumo que esse pesquisador ficha técnica do filme – consulta feita em
denomina “dimensão sensorial da vida so- 02/06/2014.

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194

http://3.bp.blogspot.com/-pLfHU-T20Ew/ casa modernista – consulta feita em


TbGz W0U3 sMI/ AAAAAAAADVs/ 02/06/2014.
2xs4 OPpFs6k /s1600/7941.jpg - cena de
http://upload.wikimedia.org/wikipedia/com
abertura do filme “Mon Oncle” em que o
mons/f/f3/Villa_arpel.jpg – sobre o estúdio
título está subscrito em uma velha parede –
de gravação em que foi instalada a casa
consulta feita em 02/06/2014.
Arpel - consulta feita em 02/06/2014.
http://4.bp.blogspot.com/-NSI8DMI3NwE/
http://www.wikinoticia.com/images2//mon
T0WDsMknOEI/AAAAAAAABjc/ZCa7E
keyzen.hipertextual.netdna-cdn.com/files
bqDx2Q/s1600/Aurora4jpeg.jpg - imagem
/20 13/04/mon_oncle _tati_7.jpg - imagem
da esposa no trem na cidade – consulta feita
da recepção da primeira visita feminina à
em 02/06/2014.
casa Arpel, registro de postura corporal –
http://4.bp.blogspot.com/-6rwhBBE1YDs consulta feita em 02/06/2014.
/UHxVemA4VoI/AAAAAAAAARo/H3VF
Assistência monitorada do filme Aurora –
5UTb6s4/s1600/Aurora4.jpg - imagem do
anotações – 27 págs.
beijo do casal em meio ao trânsito urbano
em Aurora. Assistência monitorada do filme Mon Oncle
– anotações – 43 págs.
http://www.gonemovies.com/WWW/Drama
/Drama/SunriseStad1.jpg - imagem do
centro iluminado cidade em Aurora – con-
Rossana Honorato
sulta feita em 02/06/2014. http://www. ola-
vodecarvalho.org/apostilas/Aurora.htm - HONORATO, Rossana. “A Aurora turva da vida
resenha e ficha técnica do filme – consulta de meu tio na cidade moderna: Uma leitura dialo-
gada dos filmes Mon Oncle e Aurora: uma rese-
feita em 02/06/2014. nha”. RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da
http://spa.fotolog.com.br/photo/10/15/18/gil Emoção, v. 14, n. 40, pp. 187-194, abril de 2015.
ISSN 1676-8965
2003/1238672766684_f.jpg - imagem da

RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 14, n. 40, abril de 2015


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Resenha: MARTINS, José de A sociedade que lincha aqui entendida


também, em sentido estrito, como agrupa-
Souza. Linchamentos: a justiça mento de indivíduos morais que agem cole-
popular no Brasil. São Paulo: tivamente de modo a preservar (mob lyn-
Contexto, 2015 ching) ou impor (vigilantism) valores e
normas, hierarquias, tempos e espaços soci-
A obra “Linchamentos: A justiça popu- ais dados. Ou seja, cabe à sociologia, nesta
lar no Brasil”, de José de Souza Martins, visão durkheimiana, inquirir as notícias de
busca, em linhas gerais, apresentar os resul- jornal com suas formas próprias de en-
tados de um amplo mapeamento de notícias quadramento, apropriação ideológica e
de jornais brasileiros sobre o fenômeno do instrumentalização moralizante do lin-
linchamento no Brasil. Como referência chamento e dos linchadores e suas vítimas.
comparativa o autor traz à discussão uma Este exercício explicativo, mais do que
breve revisão de literatura sobre o lincha- crítico ou compreensivo da sociologia, bus-
mento nos EUA, país de onde vem origi- ca reconstituir racionalmente o real e, as-
nalmente o termo linchar em alusão à fama sim, problematizar a visão de mundo do
de William Lynch, figura destacada durante homem comum que é vítima, partícipe,
a Guerra Civil americana e associada às cúmplice ou espectador do ato de linchar. A
práticas de perseguição coletiva e ex- ciência social, para Martins, pode acessar os
termínio público de negros em lincha- fundamentos ocultos das relações sociais,
mentos. suas estruturas e temporalidades profundas,
Com base nos dados estatísticos gerados no mais das vezes inconscientes para o
e organizados em fichas de registros de 189 homem comum, mas passíveis de decodifi-
campos, agrupando as mais diversas variá- cação a partir de um trabalho sistemático de
veis (local, data e horário de ocorrência dos levantamento e análise de dados.
linchamentos; número de participantes; Martins enfatiza a dimensão pedagógica,
descrição da vítima do linchamento e etc.), portanto pública e coletiva, do linchamento
e somados ainda ao esforço de etnografar como vendeta reparadora de um processo
três casos de “justiçamento” ou aplicação de anomia resultante de grave transgressão
da “justiça das ruas” ocorridos em São Pau- moral. Esta anomia instalada no espaço
lo, Bahia e Santa Catarina, Martins discorre societal, síntese de situações de extrema
sobre a dinâmica da multidão enfurecida em tensão pela indignação, humilhação e res-
razão da percepção, real ou imaginária, da sentimento que ocasiona o ato transgressor,
quebra de regras morais basilares para a exige uma reparação em forma de rito sacri-
normalidade interacional e societal de uma ficial, catártico, que reconduz à ordem mo-
cultura emotiva dada. Os dados coletados, ral e cósmica o espaço interacional cujas
que cobrem um período de quase 60 anos linhas morais foram ofendidas.
até os dias atuais, revelam ser o Brasil um Discute a dimensão ritual do lin-
dos países que mais lincha no mundo, tendo chamento de uma perspectiva formal: en-
uma tradição bastante difundida de jus- quanto cenário onde se distribuem atores
tiçamento popular, seja em áreas rurais ou específicos, variando quanto à proximidade
urbanas, e vitimando homens e mulheres, afetiva da vítima do linchado até a forma-
jovens e adultos, brancos, negros e índios. ção da multidão de anônimos. Neste cenário
Martins, neste sentido, busca explicar é onde ocorre o espetáculo da violência
mediante inferências feitas a partir deste coletiva na forma de um roteiro padroniza-
cadastramento etnográfico dos linchamen- do de punição exemplar e reparadora, que
tos os possíveis significados sociológicos restaura as linhas morais rompidas ou ame-
da sociedade que lincha. Discute a mentali- açadas pela transgressão do linchado.
dade conservadora desta sociedade; suas Martins chama atenção, neste sentido,
noções de justiça popular ou de rua, ora para a situação de liminaridade que se ins-
como descrédito e ceticismo em face da taura no espaço interacional entre a trans-
falência estatal, ora como complemento da gressão moral e a conclusão do linchamen-
justiça imparcial, neutra e impessoal dos to. Trata-se de um lapso temporal carregado
tribunais. de sentimentos de medo, vergonha, ira,
humilhação, ressentimento e vingança, que

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motivam a formação súbita de grupos dis- transformações ocorridas na estrutura de


postos a linchar em nome de uma identida- uma sociabilidade outrora fortemente rela-
de coletiva desonrada. cional e pessoalizada, como a do Brasil
A atualização espontânea deste senti- rural e escravocrata, e que atualmente se
mento de pertença que leva a multidão de configura cada vez mais como estilo de
linchadores (relata agrupamentos de até 700 vida urbano, articulado em códigos mercan-
pessoas ou mais) aos atos mais violentos tis, instrumentais e individualistas, tal como
contra o outro em processo de destruição se verifica nas grandes metrópoles nacio-
simbólica e, muitas vezes, física, volta à nais.
normalidade cotidiana rapidamente. Mar- Nas palavras do autor (p. 66):
tins, neste sentido, fala dos agrupamentos
“Os linchamentos constituem reposta
de linchadores como sociedades provisó-
ao que é a transgressão do limite do
rias, dispondo de uma memória bastante
socialmente tolerável. Mesmo numa
curta e exercitando o esquecimento como
sociedade em que as identidades são
estratégia de evitação em face das contradi-
de indivíduos, sujeitos de relações
ções e aporias entre a lei, a moralidade e os
societárias (e não predominantemente
costumes que orientam a ação social em
de pessoas, sujeitos de relações co-
uma cultura emotiva dada.
munitárias) e de relações em princí-
Esta dimensão ritual do linchamento,
pio predominantemente contratuais, a
segundo Martins, explica o fenômeno da
partir desse limite os mecanismos de
recriação anômica do social em situações de
sociabilidade próprios dessa socieda-
crise e desagregação social, às quais res-
de aparentemente deixam de funcio-
ponde a justiça popular na forma de vendeta
nar. E são imediatamente supridos
pública, mas também o fenômeno da vio-
por outros mecanismos de interpreta-
lência fundadora do social enquanto espaço
ção e ação, mantidos em latência, a-
de constrangimentos. Esta análise tem por
tivados quando o código dominante é
base o argumento durkheimiano de que o
bloqueado por não conter no elenco
indivíduo moral somente existe no e para o
de seus procedimentos, interpreta-
social: realidade sui generis, exterior e co-
ções e recomendações as informa-
ercitiva, que o reveste enquanto humanida-
ções apropriadas para revestir de sen-
de e possibilidade de liberdade reflexiva no
tido e de aceitação atos de violação
âmbito de um Nós relacional que o cons-
da condição humana e da sociabili-
trange e educa moralmente.
dade mínima que lhe corresponde”.
O linchamento, enquanto rito sacrificial,
se desdobra em um processo de desculpa do Aqui Martins deixa claro o que entende
“Nós relacional” em face do social mais por estruturas sociais profundas ou núcleo
amplo e de acusação do elemento desviado, duro da sociabilidade que norteiam a ação
operando como estratégia de controle social social em situações de grave crise institu-
pelo amedrontamento e envergonhamento cional e irrecorrível quebra de confiança no
do linchado. Este processo de desculpa e outro da relação. Nestes casos em que a
acusação de si e do outro reafirma valores morte simbólica do transgressor exige uma
familísticos e locais, atualizando, assim, o contrapartida material, uma morte física, a
sentimento de pertença da multidão em titulo de exemplo e reparação, o incons-
fúria como comunidade de interesses, de ciente coletivo, com seu repertório sim-
valores e de destino. bólico latente socialmente construído se-
Com base nestes pressupostos teórico- gundo códigos relacionais de sociabilidade,
metodológicos, Martins argumenta que o opera no sentido da recriação anômica da
justiçamento popular, misto de ódio e vin- sociedade, de modo a preservar seu sistema
gança, de fúria destrutiva e de ímpeto repa- básico de classificação do mundo, ou seja,
rador da ordem moral e cósmica, opera com suas linhas morais, emocionais e cognitivas
repertórios simbólicos profundamente enra- elementares que informam as noções de
izados na mentalidade coletiva. Este ethos e pessoa, de Eu e do outro, de bem e mal e
visão de mundo perduram enquanto sinali- etc.
zadores dos meios e fins legítimos da ação A dimensão simbólica da estrutura soci-
social, ainda que residualmente, apesar das al também perpassa as concepções particu-

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lares de uma cultura emotiva sobre a morte cometeu a uma pessoa justa privada do seu
e o morrer e sobre o corpo como espaço do dom da vida, assim como desculpa a comu-
sagrado e da dignidade da pessoa. Informa nidade de linchadores perante a divindade.
ainda sobre as hierarquias visíveis e invisí- O linchamento para Martins, neste sen-
veis que regulam e administram as frontei- tido, se manifesta como ato regenerativo de
ras entre os vivos e os mortos, bem como os uma normalidade cotidiana profundamente
interditos, as transgressões e as formas de rompida pela transgressão do sagrado. Esta
restauração sacrificial da normalidade. quebra de confiança por parte do outro rela-
A importância da destruição física do cional que ultrapassa o costume, a lei ou a
corpo do linchado para a restauração da moralidade de forma irrecorrível, tornando-
ordem moral e cósmica transgredida, parte se ele, assim, um indivíduo sujo, perigoso e
importante do ritual sacrificial de lincha- contaminador, pode vir a se configurar nos
mento, é explicada por Martins de acordo contextos mais banais da sociabilidade co-
com os elementos da cultura funerária bra- tidiana do homem simples, como também
sileira, de forte inspiração católica. Nesta configurar atos terríveis de perversão e
cultura, o indivíduo moral aparece dividido violência contra o outro.
entre um corpo e uma alma, cuja união se É neste sentido que a vítima do lincha-
dá no medo sempre presente de se perderem mento aparece moralmente classificada pela
um do outro. multidão em fúria, - mas conduzida por
A alma, aprisionada em um corpo terre- estruturas sociais profundas reguladoras de
no, desprende-se do mesmo com o advento seu comportamento social, - como agente
da morte do corpo, desde que este tenha se do mal, monstro, animal, figura a ser extir-
mantido inviolável e imaculado como tem- pada da comunidade humana e do âmbito
plo desta mesma alma que precisa fazer a do sagrado. Nas palavras de Martins (p.
transição para o mundo dos mortos. Este ser 69):
duplo, portanto, a um só tempo corpo e
“O linchamento é a sutura ritual de
alma, mas também cada uma destas dimen-
um rompimento social profundo pro-
sões da existência em separado, deve não
vocado por um ato violento e viola-
somente respeitar a vida dos seus pares
dor contra a vítima da vítima, a víti-
como determinada pelo divino (proibição
ma do linchado, que fere e danifica
de matar), mas também cumprir sua traves-
valores sociais de referência, a socie-
sia terrena como integridade do corpo em
dade personificada nessa vítima de
face da alma.
origem. [...] Ou seja, o procedimento
A desfiguração do corpo do linchado
(do linchamento) não é puramente in-
corresponde ao processo de desumanização
ventivo nem meramente reativo. Mas
e, consequentemente, de dessacralização da
muito mais regenerativo. Ou inventi-
figura do transgressor como sujeito moral.
vo no marco de certa ordem referen-
O corpo morto, mutilado, queimado e irre-
cial de criatividade, daquilo que deve
conhecível, torna impossível, na cultura
ser propriamente preservado para que
funerária brasileira, a libertação deste ser
a sociedade continue a ser sociedade
duplo de sua condição terrena para que
e, portanto, continue a ser social”.
entre no mundo dos mortos.
A punição para o linchado, desta manei- O autor, ainda na proposta de uma so-
ra, se apresenta como de consequências ciologia durkheimiana explicativa, entende
materiais e simbólicas cabais, atingindo a a prática do linchamento no Brasil em uma
temporalidade do mundo dos mortos e lan- relação de causalidade e linearidade. Assim
çando-o em um espaço de liminaridade que o justiçamento popular, a vendeta pú-
absoluta, em um limbo entre o mundo dos blica ou a justiça de rua teriam, entre outras
vivos e dos mortos, do qual não pode esca- causas, o processo incompleto e desorde-
par. A vítima do linchamento, assim, por ter nado de modernização do país.
ofendido os códigos de moralidade de uma A sociedade relacional brasileira, de
cultura emotiva dada de forma intolerável, fundo escravocrata, conservadora, alicerça-
experimenta uma punição coletiva na forma da no mando pessoal e no poder dos poten-
de sua total destruição enquanto pessoa, o tados da terra, tinha na justiça privada e na
que, por seu turno, compensa o crime que justiçamento popular seus modelos de pre-

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servação da ordem social e de suas linhas e de autoridade e de propriedade, o fenômeno


hierarquias morais visíveis e invisíveis. A do linchamento se manifesta como exercí-
“modernidade brasileira”, enquanto projeto cio da “justiça moral” da multidão enfure-
de ordenação individualista do social se- cida. A justiça moral, diferentemente da
gundo os princípios da igualdade formal, da justiça dos tribunais, percebe e classifica
impessoalidade e do desempenho individu- qualitativamente as atribuições morais de
al, se estabelece na síntese e confusão des- cada sujeito relacional, de modo que res-
tes modelos relacional e individualista de ponde à transgressão moral com a destrui-
sociedade, prevalecendo o aspecto relacio- ção material e simbólica do elemento desvi-
nal das interações mesmo nas metrópoles ado. Não se trata somente de equiparar e
brasileiras. escalonar os castigos na forma de privação
Para Martins, os processos migratórios da liberdade, cuja variação é meramente
conturbados que desenraizaram levas de quantitativa, mas de restaurar a ordem mo-
brasileiros do campo à cidade, alocando-os ral e cósmica ofendida de uma comunidade
em áreas periféricas bastante precárias e de pertença.
gerando aglomerados urbanos de pobres e Aqui se verifica um ponto de tensão en-
miseráveis, constitui um dos argumentos tre a lógica societária relacional e o deside-
explicativos mais fortes para o fenômeno do ratum de construção de uma modernidade
linchamento. Segundo o autor (p. 49): pautada na administração imparcial e im-
pessoal das tensões sociais pelo estado de
“[...] sendo o novo regime político
direito. Nas palavras do autor (p. 46s):
produto de um pacto entre certos se-
tores militares, a burguesia urbana e “Os atos de linchamento, às vezes
setores mais ou menos liberais das muito elaborados, revelam-se ritos de
velhas oligarquias locais, de base ru- definição do estranho e da es-
ral e latifundista, reestimulou con- traneidade da vítima, o recusado e o
cepções e práticas relativas à justiça excluído. É nesse sentido que os lin-
privada, muito comuns nas áreas ru- chamentos são sociologicamente im-
rais mais atrasadas. São muitos os si- portantes. Eles denunciam o estrei-
nais de que a cidade foi invadida pelo tamento das possibilidades de parti-
campo de diversos modos, não só pe- cipação social daqueles que, desloca-
la presença do migrante, mas também dos por transformações econômicas e
pela presença mais visível, nos go- sociais, situam-se nas frinjas da soci-
vernos e nos órgãos de governo, de edade, nos lugares da mudança e da
práticas políticas de estilo rural”. indefinição sociais. Ao mesmo tem-
po, denunciam a perda de le-
Enfatiza, assim, como os bairros perifé-
gitimidade das instituições públicas,
ricos nas cidades brasileiras se configuram
através do aparecimento de uma legi-
como espaços fragmentados e em constan-
timidade alternativa, que escapa das
tes disputas morais. Disputas estas em torno
regras do direito e da razão. Pode-se
de códigos de moralidade relacionais e in-
dizer que, de certo modo, o “contrato
dividualistas que provocam no homem co-
social” está sendo rompido. Nesse
mum comportamentos anômicos (dissocia-
sentido, os linchamentos são impor-
dos dos padrões de moralidade) ou patoló-
tantes, também, do ponto de vista po-
gicos (transgressores dos códigos de mora-
lítico”.
lidade hegemônicos), acentuando o ceti-
cismo que alimentam em relação às ins- Em síntese, Martins explica o fenômeno
tituições legais do estado, como a polícia e do linchamento a partir de uma perspectiva
os tribunais. funcionalista durkheimiana, de modo que
Em tal contexto sócio-histórico de des- este aparece como ritual sacrificial de repa-
crédito das instituições mantenedoras do ração da ordem transgredida. A tensão no
contrato social, de fragmentação moral e social não se explica por meio das vulnera-
identitária e de desorganização normativa bilidades interacionais inerentes aos proces-
nos centros urbanos brasileiros, onde o sos intersubjetivos e sempre presentes nas
cotidiano do homem comum é perpassado interações entre indivíduos relacionais na
pela desagregação das relações de trabalho, forma de constrangimentos cotidianos, co-

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mo os medos corriqueiros e a vergonha sociabilidade: autoritária, pessoalizada,


cotidiana. desigual e excludente.
Martins, por outro lado, entende o lin-
chamento como herança do passado rela-
Raoni Borges Barbosa
cional brasileiro não de todo superado e
estranhamente combinado com as aspira-
ções de uma modernidade inconclusa e BARBOSA, Raoni Borges. “Resenha: Linchamentos:
A Justiça popular no Brasil”. RBSE – Revista Brasi-
desordenada. Assim que o ato do lincha- leira de Sociologia da Emoção, v. 14, n. 40, pp. 196-
mento tem explicações na estrutura da soci- 200, Abril de 2015. ISSN 1676-8965
edade brasileira, no núcleo duro da sua

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Sobre os autores dor do LEV-UFC. E-Mail: leonar-


do_sa@uol.com.br
Alecrides Jahne Raquel Castelo Branco Marcelo da Silva. Doutorando pelo Pro-
de Senna. Doutoranda em Ciências Sociais grama de Pós-Graduação em Antropologia
pela Universidade Federal do rio Grande do Social da UFRGS Universidade Federal do
Norte – UFRN. E-mail: alecri- Rio Grande do Sul. E-Mail: marcelussete-
des@hotmail.com cordas@yahoo.com.br
Décio Soares Vicente. Mestre em Ciências Mauro Guilherme Pinheiro Koury. Pro-
Sociais pela Pontifícia Universidade Católi- fessor Doutor do Programa de Pós-
ca do Rio Grande do Sul (PUCRS). E-mail: Graduação em Antropologia da UFPB Uni-
deciodez@gmail.com versidade Federal da Paraíba. Coordenador
Fabiana Jordão Martinez. Doutora em do GREM Grupo de Pesquisa em Antropo-
Ciências Sociais pela UNICAMP, 2009.. logia e Sociologia das Emoções na mesma
Professora efetiva do Departamento de universidade. maurokoury@gmail.com
História e Ciências Sociais da Universidade Raoni Borges Barbosa. Mestre em Antro-
Federal de Goiás - Regional de Catalão. pologia pelo Programa de Pós-Graduação
Pesquisadora do Dialogus - Estudos Inter- em Antropologia da Universidade Federal
disciplinares em Gênero, Cultura e Traba- da Paraíba, e doutorando em Antropologia
lho da Universidade Federal de Goiás - no Programa de Pós-Graduação em Antro-
Regional de Catalão. E-Mail: fabia- pologia da Universidade Federal de Per-
na_jordao@yahoo.com.br nambuco. Pesquisador do GREM – Grupo
Gabriela Eugenia Rodríguez Ceja. Estu- de Pesquisa em Antropologia e Sociologia
dante de pós-doutorado no Departamento das Emoções / Universidade Federal da
de Psicologia da Faculdade de Estudos Su- Paraíba. E-Mail: raoniborgesb@gmail.com
periores de Iztacala, UNAM. E-Mail: ga- Regina de Paula Medeiros. Doutora em
brodc@yahoo.com Antropologia Social e Cultural - Universitat
Guido García Bastán. Licenciado y docto- Rovirai Virgili. Professora do Programa de
rando en Psicología por la Universidad Pós-Graduação em Ciências Sociais - Ponti-
Nacional de Córdoba. Docente en la Facul- fícia Universidade Católica de Minas Ge-
tad de Psicología de la Universidad Nacio- rais - PUC Minas – Brasil. E-Mail: repame-
nal de Córdoba. Becario doctoral del Con- ca@pucminas.br
sejo Nacional de Investigaciones Científicas Rossana Honorato. Arquiteta urbanista,
y Técnicas (CONICET). Filiación institu- mestre em ciências sociais pela UFPB Uni-
cional: Instituto de Estudios Histórico Soci- versidade Federal da Paraíba e doutoranda
ales (IGEHCS CONICET / UNCPBA). E- do IPPUR Instituto de Pesquisa em Plane-
Mail: guidogarciabastan@gmail.com jamento Urbano e Regional da UFRJ Uni-
Hosana Suelen Justino Rodrigues. Mestre versidade Federal do Rio de Janeiro. É pro-
em ciências Sociais pela UFCG, atualmente fessora do Departamento de Arquitetura da
pesquisadora do LEV-UFC. E-Mail: suele- UFPB. E-Mail: rossanahonora-
nhosana@gmail.com to@yahoo.com.br
Jürgen Habermas. Filósofo e sociólogo Sidnei Ferreira de Vares. Doutor e mestre
alemão, um dos últimos representantes da em Educação pela USP. Professor do Cen-
Escola de Frankfurt, autor da teoria do agir tro Universitário Assunção – UNIFAI - SP.
comunicativo. E-Mail: jha595@nwu.edu E-Mail: vares@usp.br
Leonardo Damasceno de Sá. Professor
Adjunto da UFC, pesquisador e coordena-

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Expediente
http://www.cchla.ufpb.br/rbse/Index.html
RBSE ISSN 1676-8965
Editor: Mauro Guilherme Pinheiro Koury

A RBSE - Revista Brasileira de Sociologia da Emoção é uma revista acadêmica do GREM - Grupo de Pesquisa
em Antropologia e Sociologia das Emoções. Tem por objetivo debater as questões de subjetividade e da categoria emoção
nas Ciências Sociais contemporâneas.
The RBSE - Brazilian Journal of Sociology of Emotion is an academic magazine of the GREM - Group of Research in
Anthropology and Sociology of Emotions. It has for objective to debate the questions of subjectivity and the category emotions
in Social Sciences contemporaries.
Editor. Mauro Guilherme Pinheiro Koury
E-Mail: maurokoury@gmail.com

Assistente Editorial: Raoni Borges Barbosa


E-Mail: raoniborgesb@gmail.com

Secretária RBSE. Letícia Knutt


E-Mail: rbse@cchla.ufpb.br
O GREM é um Grupo de Pesquisa vinculado ao Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal da
Paraíba.
GREM is a Research Group at Department of Social Science, Federal University of Paraíba, Brazil.
Endereço / Address:
RBSE - Revista Brasileira de Sociologia da Emoção
[Aos cuidados do Prof. Dr. Mauro Guilherme Pinheiro Koury]
GREM - Grupo de Pesquisa em Antropologia e Sociologia das Emoções

Departamento de Ciências Sociais/CCHLA/UFPB


CCHLA / UFPB – Bloco V – Campus I – Cidade Universitária
CEP 58 051-970 · João Pessoa · PB · Brasil

Ou, preferencialmente, através do e-mail: rbse@cchla.ufpb.br


Or, preferentially, by e-mail: rbse@cchla.ufpb.br

RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção/ GREM – Grupo de Pesquisa em An-


tropologia e Sociologia das Emoções / Departamento de Ciências Sociais /CCHLA/ Universida-
de Federal da Paraíba – v. 14, n. 40, Abril de 2015.

João Pessoa – GREM, 2015.

(v.1, n.1 – abril/Julho de 2002) Revista Quadrimestral ISSN 1676-8965.

1. Antropologia – 2. Sociologia – 3. Antropologia das Emoções – 4. Sociologia das


Emoções – Periódicos – I. GREM – Grupo de Pesquisa em Antropologia e Sociolo-
gia das Emoções. Universidade Federal da Paraíba
BC-UFPB
CDU 301
CDU 572

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