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HABERMAS, Jürgen. “Notas sobre o conceito de ação comu-


nicativa”. [Tradução de Mauro Guilherme Pinheiro Koury].
RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 14, n.
40, pp. 1-25, abril de 2015. ISSN 1676-8965
ARTIGO
http://www.cchla.ufpb.br/rbse/Index.html

Notas sobre o conceito de ação comunicativa*

Jürgen Habermas
Tradução de Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Recebido: 08.01.2015
Aprovado: 01.02.2014

Resumo: Neste importante texto o autor faz uma revisão das teorias da ação nas ciên-
cias sociais para neles estabelecer um parâmetro crítico onde situa as bases do conceito
de ação comunicativa no interior de sua teoria da ação comunicativa. Palavras-chave:
teorias da ação, ação comunicativa, mundo, mundo da vida

*
Tradução feita a partir do artigo de Habermas, Jürgen. Remarks on the concept of communicative action.
In: G. Seebass e T. Tuomela (Orgs). Social action. Boston: D. Reidel, 1985, pp. 151-177.

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Para as teorias sociológicas da que este se limita a analisar os conceitos


ação importa clarificar o conceito de de ação social apenas em conexão com
ação social. Um caso exemplar de ação os conceitos relativos à ordem social.
social se encontra, certamente, na coo- Isso explica algumas das dife-
peração entre (pelo menos) dois atores renças mais marcantes entre a teoria
que coordenam as suas ações instru- sociológica da ação e a teoria filosófica
mentais para a execução de um plano de da ação. A primeira pressupõe o que a
ação comum. Portanto, de acordo com segunda converte em tema: especial-
este modelo, por exemplo, podem ser mente, o esclarecimento da estrutura da
analisados casos elementares do traba- atividade teleológica (e os conceitos
lho social. Mesmo nas sociedades sim- relacionados de agência ou de capaci-
ples, contudo, o trabalho é apenas um dade de ação e de escolha racional).
dos vários casos típicos de interação. Além disso, a teoria sociológica da ação
Então, se parte aqui da questão geral de não se interessa por esses problemas
como se torna possivel a ação, enquanto básicos relativos à liberdade de vontade
social. A pergunta: "Como a ação social e oportunidade, à relação entre mente e
se torna possível" é apenas o reverso de corpo, à intencionalidade, etc, que são
outra pergunta: “Como a ordem social susceptíveis de serem esclarecidos no
se torna possível?”. Uma teoria da ação contexto da ontologia, da teoria do co-
que tente responder a estas questões nhecimento e da teoria da linguagem,
deve ser capaz de identificar as condi- como na teoria filosófica da ação. Atra-
ções sob as quais o alter pode “conec- vés da tarefa de explicar uma ordem
tar” as suas ações com as ações do ego. social intersubjetivamente comparti-
Esta expressão revela um inte- lhada, a teoria sociológica da ação, em
resse pelas condições da ordem social, última instância, não tem escolha senão
na medida em que estas condições se a de se utilizar também das premissas
encontram no nível de análise das inte- da filosofia da consciência. Portanto, ela
rações simples. Para a teoria sociológica não está vinculada, com a mesma inten-
da ação, assim, importa não só as carte- sidade que a teoria analítica da ação, ao
rísticas formais da ação social em geral, modelo de um sujeito solitário, capaz de
mas, também, os mecanismos de coor- conhecimento e de ação, que se enfrenta
denação da ação que permitam uma frente à totalidade de estados de coisas
concatenação regular e estável das inte- existentes e pode se referir a algo do
rações. mundo objetivo, mediante a percepção,
Os padrões de interação são bem como intervir nele. Uma teoria da
formados, apenas, quando as sequências ação abordada em termos de uma teoria
de ação, onde distintos atores fazem a da intersubjetividade pode, por sua vez,
sua contribuição, não se quebrem de melhor contribuir para reformular as
forma contingente e sejam coordenadas questões que a filosofia até então havia
de acordo com regras. Isto se aplica, considerado como de seu domínio
também, tanto para o comportamento (BLAU, 1964).
estratégico quanto para o comporta- Com os rótulos “acordo” e “in-
mento cooperativo. A busca por meca- fluência” se começaa aqui por caracteri-
nismos de “conexão” não significa uma zar dois mecanismos de coordenação
predecisão em favor de uma abordagem subjacentes aos conceitos mais impor-
em pról de uma teoria do consenso ver- tantes da ação social (1). Estes concei-
sus uma abordagem relativa a uma teo- tos de ação também decidem sobre
ria do conflito. No entanto, a ótica tipi- como se pode pensar a ordem social. Os
camente adotada pelo sociólogo é a de conceitos de sociedade neles inerentes
prejulgar a teoria da ação, na medida em caracterizam, por seu turno, a suposi-

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ções que hoje competem entre si, a sa- teorias da ação se distinguem porque
ber: a teoria da troca social e o funcio- atribuem ao ator um conhecimento so-
nalismo sistêmico; a teoria da ação li- bre a estrutura proposicional. O ator
gada aos papéis e a fenomenologia da deve ser capaz de repetir in foro íntimo
autorrepresentação ou da apresentação os enunciados de um observador - (Por
que o sujeito faz de si; e, finalmente, o exemplo: ‘A’ acredita ou pensa, quer ou
interacionismo simbólico e a etnometo- pretende, deseja ou teme, que ‘p’) - e os
dologia (2). As unilateralidades e as dirige a si mesmo. Finalmente, as teo-
debilidades destas abordagens teóricas rias sociológicas da ação exigem para os
são aqui tomadas como uma oportuni- participantes da interação ao menos um
dade de introduzir os conceitos de ação conhecimento concordante: as suas in-
comunicativa e de mundo da vida (3). terpretações da situação devem se
Estas considerações intuitivas necessi- manter suficientemente dissimuladas.
tam de uma explicação que, no contexto Por conseguinte, todas estas abordagens
deste artigo, não é possível tentar dar. permitem ou admitem também a comu-
Mas, é possível enumerar e anotar aqui, nicação linguística, ou, em todo caso, a
pelo menos programaticamente, os pas- troca de informações. Além do mais, as
sos que precisariam ser dados para tal abordagens sobre teoria da ação se dis-
explicação, passos estes desenvolvidos tinguem segundo o acordo postulado
pelo autor no livro Teoria da Ação Co- pela coordenação da ação, ou seja, um
municativa (4). Em duas digressões se conhecimento comum, ou, simples-
adentrará, por um lado, na questão sobre mente, as influências externas de uns
qual é a relação que, no que diz respeito atores sobre os outros.
à teoria da sociedade, mantêm as cate- Um conhecimento "comum"
gorias de "ação estratégica" e de "ação deve satisfazer condições bastante rigo-
comunicativa", assim como as catego- rosas. Pois, não apenas se estar ante um
rias de “sistema” e de “mundo da vida”; conhecimento "comum" quando os par-
e, por outro lado, para apontar os pro- ticipantes concordam em algumas opi-
blemas filosóficos cujos esclarecimen- niões; tão pouco, quando sabem que
tos podem servir a uma teoria da ação concordam com elas. Chama-se aqui de
abordada em termos de uma pragmática comum a um conhecimento que funda
formal (5). um acordo, tendo tal acordo como
termo de um reconhecimento intersub-
1 - Os mecanismos de coor-
jetivo de pretensões de validade susce-
denação da ação. As teorias sociológi-
tíveis de crítica. Um acordo significa
cas da ação acima mencionadas coinci-
que os participantes aceitam um conhe-
dem em algumas decisões básicas. Em
cimento como válido, ou seja, como
primeiro lugar, optam por uma análise
intersubjetivamente vinculante. So-
que parte da perspectiva interna dos
mente, graças a este, pode um conheci-
agentes. Uma ação pode ser entendida
mento comum, atender e cumprir - na
como a realização de um plano de ação,
medida em que contêm componentes ou
que se baseia em uma interpretação da
implicações relevantes para uma se-
situação. O ator, ao levar adiante o seu
quência de interações, - as funções de
plano de ação, domina uma situação. A
coordenação da ação. As vinculações
situação da ação constitue um frag-
recíprocas apenas surgem de convicções
mento de um ambiente interpretado pelo
intersubjetivamente compartilhadas. Em
ator. Este fragmento se constitui à luz
contrapartida, o influxo externo (no
das possíbilidades de ações que o ator
sentido de influência causal) sobre as
percebe como relevantes para a execu-
convicções do outro participante da in-
ção do seu plano de ação. Das aborda-
gens sobre teoria do comportamento as

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teração tem apenas um caráter unilate- engano, não pode se contar subjetiva-
ral. mente como acordo. A sua capacidade
As convicções compartilhadas de coordenar a ação perde, assim, sua
intersubjetivamente vinculam os parti- eficácia. Um acordo perde o caráter de
cipantes da interação em termos de re- convicções comuns quando o afetado se
ciprocidade; o potencial de razões asso- dá conta de que este acordo é resultado
ciado às convicções constitue, então, de influência externa que outro exerceu
uma base aceita, em que se pode estar sobre ele.
para apelar para o bom senso do outro. Um ator só pode intentar tal
Este efeito de vínculo não pode estar intervenção se na execução do seu plano
presente em uma convicção onde um se de ação adota uma atitude objetivante
limita a induzir no outro (por meio de em direção ao seu entorno e se orienta
uma mentira, por exemplo). As convic- diretamente pelas consequencias que a
ções monológicas, ou seja, aquelas que, sua ação terá, quer dizer, se orienta di-
em seu foro íntimo, cada um possui retamente para o êxito de sua ação. Em
como verdadeiro ou correto, só podem contrapartida, os participantes da intera-
afetar as atitudes próprias de cada um. ção que tratam de coordenar de comum
No modelo do influxo ou da influência acordo os seus respectivos planos de
unilaterais (ou de uma influência recí- ação e só os executam sob as condições
proca) as razões, por melhores que se- do acordo alcançado, adotam a atitude
jam, não podem constituir instância de realizativa (performativa) de falantes e
apelação. Neste modelo, as boas razões ouvintes, e se entendem entre si, uns aos
não ocupam nenhuma posição privilegi- outros, sobre a situação dada e a forma
ada. Não é o tipo de meios que conta, de dominá-la. A atitude de orientação
mas o êxito da influência sobre as deci- para o êxito isola o agente dos outros
sões de um oponente, mesmo que se atores que encontra em seu entorno;
deva tal êxito ao dinheiro, à violência, porque, para ele, as ações de seus ad-
ou às palavras. versários, assim como o resto dos in-
Acordo e influência são meca- gredientes da situação, são simples
nismos de coordenação da ação que se meios e restrições para a realização do
excluem um ao outro, ou, ao menos, a seu próprio plano de ação; os objetos
partir do ponto de vista dos participan- sociais não se distinguem neste aspecto
tes. Os processos de compreensão não dos objetos físicos. A atitude de orien-
podem se realizar simultaneamente com tação para a compreensão, ao contrário,
a intenção de chegar a um acordo com torna os participantes da interação de-
um participante da interação e de exer- pendentes um dos outros. Estes depen-
cer influencia sobre ele, quer dizer, de dem das atitudes de afirmação ou de
obrar causalmente algo nele. Na pers- negação de seus destinatários, porque só
pectiva do participante, um acordo não podem chegar a um consenso com base
pode ser forçado, não pode ser imposto no reconhecimento intersubjetivo das
por uma parte ou pela outra - seja ins- pretensões de validade.
trumentalmente, por intervenções dire-
2 - O conceito de ação teleo-
tas na situação de ação do outro, seja
lógica ocupa, desde Aristóteles, o cen-
estrategicamente, por meio de um im- tro da teoria filosófica da ação. O ator
pacto calculado sobre as atitudes do realiza os seus fins ou faz com que se
próximo. Objetivamente, é verdade que produza o estado desejado elegendo, em
um acordo pode vir forçado ou indu- uma determinada situação dada, os
zido; porém, o que a olhos vistos se meios que ofereçam perspectivas de
produz por influência externa, através êxito, e os aplicando de forma ade-
de recompensas, ameaças, sugestão ou
quada. Central nesse processo é o plano

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de ação apoiado na interpretação de enquanto as teorias não empiristas da


uma situação e endereçado à realização ação substituem os processos de influ-
de um fim, plano de ação este que per- ência por processos de compreensão (b).
mite uma decisão entre as alternativas (a) O modelo teleológico da
de ação. Esta estrutura teleológica é ação se amplia e se converte em um
constitutiva de todos os conceitos de modelo de ação estratégica quando, no
ação, porém, os conceitos de ação social cálculo que o agente faz do seu próprio
se distinguem pelo modo como pro- êxito, pode entrar expectativas sobre as
põem a coordenação das ações indivi- decisões de pelo menos outro ator, que
duais. Uma primeira classificação deve também é agente e atua orientando-se à
se iniciar a partir do ponto de vista se as consecução de seus fins. Este modelo de
abordagens sobre a teoria da ação con- ação é muitas vezes interpretado nos
tam com a influência empírica do ego termos utilitaristas; então, se supõe que
sobre o alter, ou com o estabelecimento o ator escolhe e calcula os meios e fins
de um acordo racionalmente motivado a partir do ponto de vista da maximiza-
entre ego e alter. Pois, de acordo com ção de utilidade ou de expectativas de
que se conte com um ou com o outro, os utilidade. Mas, desse conceito de ação
participantes da interação adotam uma estratégica não se pode obter um con-
atitude orientada para o êxito ou adotam ceito de ordem social se não se juntam a
uma atitude orientada para a compreen- ele outros presupostos adicionais. Da
são. Presupõe-se aqui, além, que estas interpenetração de cálculos egocêntricos
atitudes também podem se identificar, de utilidade só podem resultar padrões
em circunstâncias apropriadas, recor- de interação, ou seja, concatenações
rendo ao conhecimento intuitivo dos regulares e estáveis de interações desde
participantes. que as preferências dos atores envolvi-
O modelo estratégico de ação dos se complementem e as respectivas
se satisfaz com a explicitação das regras constelações de interesses se equili-
da ação orientada para o êxito, enquanto brem.
os outros modelos de ação especificam Os dois casos exemplares, para
condições de consenso e acordo, sob os os quais, em termos gerais, isso pode
quais os participantes da interação po- levar a supor, são as relações de inter-
dem executar seus respectivos planos de câmbio que se estabelecem entre ofer-
ação. A ação regulada por normas pres- tantes e demandantes que competem
supõe um consenso valorativo entre os livremente entre si, bem como as rela-
participantes, a ação dramatúrgica se ções de poder que, no marco das rela-
apoia na relação consensual entre um ções de dominação admitidas, se esta-
"ator" que de forma mais ou menos im- belecem entre os que mandam e os que
pressionante coloca-se entre o palco e obedecem. Na medida em que as rela-
seu público, e a interação linguistica- ções interpessoais entre sujeitos que
mente mediada que exige o estabeleci- atuam visando o seu próprio êxito vêm
mento de um consenso, seja por assumir reguladas pela troca e pelo poder, a so-
o papel do tipo interpretativo e uma ciedade se apresenta como uma ordem
projeção ou execução do papel do tipo instrumental. Esta especializa as orien-
criativo, ou através de processos coope- tações da ação em termos de concorrên-
rativos de interpretação. As teorias de cia por dinheiro e por poder e coordena
poder e de intercâmbio desenvolvidas a as decisões por meio de relações de
partir do modelo de ação orientada para mercado ou de relações de dominação.
o êxito pressupõem que os participantes Chamo de instrumentais as ordens pu-
da interação coordenam as suas ações ramente econômicas ou abordadas ex-
através de influências recíprocas (a), clusivamente em termos de política de

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poder, porque surgem de relações inter- Tal meio possui as proprieda-


pessoais, nas quais os participantes da des de um código com cuja ajuda se
interação se instrumentalizam uns aos transmitem as informações do emissor
outros como meios para atingir os seus ao receptor. Mas, ao contrário do que
próprios fins. acontece com as expressões gramaticais
Pois bem, Durkheim, Weber e de uma língua, as expressões simbólicas
Parsons insistiram, repetidas vezes, que de um meio de regulação ou de con-
as ordens instrumentais não podem ser trole, por exemplo, os preços, levam
estáveis, e que as ordens sociais, exclu- incrustada algo assim como uma estru-
sivamente assentadas sobre a interpene- tura de preferências - podem informar o
tração de constelações de interesses, não receptor sobre uma oferta e, simultane-
podem ser duradouras. E, de fato, as amente, motivá-lo a aceitar a oferta. Um
teorias sociológicas do poder e da troca meio de regulação ou de controle possui
não sabem se ajustar sem tomar alguns uma estrutura tal, que as ações do alter
empréstimos do conceito de uma ordem permanecem conectadas com as ações
normativa. Assim, por exemplo, P. Blau do ego evitando os riscos que os proces-
(1964) complementa as categorias uti- sos de formação de consenso compor-
litaristas básicas de sua teoria da troca tam. Este automatismo se produz por-
introduzindo idéias de justiça, sobre que o código do meio só vale:
cuja base os atores podem avaliar como Para uma classe bem delimi-
mais ou menos "justo" o que recebem tada de situações padrões,
de outras pessoas em troca do que lhes
dão; e, em sua teoria do conflito, por Que vêm definidas por uma
constelação unívoca de inte-
outro lado, R. Dahrendorf (1959) com-
resses
preende a dominação no sentido inte-
gralmente weberiano de um poder ins- Que as orientações de ações
titucionalizado que necessita legitima- dos participantes vêm afixa-
ção. Ambos, em seus esforços teóricos, das por um valor generali-
zado;
fornecem componentes normativos que
alteiam uma ordem concebida, de outro Que o alter só pode decidir
modo, em termos instrumentais, mas, no basicamente entre duas op-
modelo de ação estratégica que sustenta ções alternativas;
ambas as teorias, se tratam de corpos Que o ego pode controlar es-
estranhos. sas posturas ou opções do
Uma solução mais consequente alter por meio de ofertas e
é oferecida pelo funcionalismo sistê- Que os atores só podem se
mico que substitui o conceito de ação orientar através das conse-
estratégica pelo de interação regida por quências que suas ações pos-
meios. A ordem social é entendida de sam ter, quer dizer, eles pos-
antemão conforme o modelo de siste- suem a liberdade de tomar
mas que conservam os seus limites, ou suas decisões, exclusiva-
seja, com independência da perspectiva mente, a partir de um cálculo
conceitual de uma teoria da ação. Me- sobre as probabilidades de
lhor dito, o conceito de ação social é, êxito de sua ação.
por seu turno, cortado no molde de um No caso exemplar do dinheiro,
conceito de meio de comunicação ou de a situação padrão vem definida pelo
meio de regulação, erguido nos termos processo de troca de produtos. Os parti-
da teoria dos sistemas (HABERMAS, cipantes no processo de troca se atêm
1980). aos interesses econômicos, tratando de
otimizar, no emprego de recursos escas-

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sos para fins alternativos, a relação en- algo a outro por meio de sinais, o que
tre gasto e rendimento. A utilidade aqui indiretamente provoca este outro, atra-
é o valor generalizado, ou seja, signifi- vés de uma elaboração inferencial da
cando o termo generalizado aquilo que percepção da situação, para uma idéia
liga por igual, em todos os lugares e em particular ou para conceber uma inten-
todos os momentos, todos os atores que ção específica; ou porque um ator, com
participam das operações monetárias. O base em uma prática cotidiana de co-
código dinheiro esquematiza as possí- municação já estabelecida, logre atar o
veis tomadas de posição de alter, de outro a seus próprios fins, quer dizer, o
modo que este pode aceitar ou recusar a motive, através da manipulação dos
oferta de troca de ego e, com ele, adqui- meios linguísticos, a adotar o compor-
rir uma posse ou renunciar a esta aqui- tamento desejado, instrumentalizándo-o,
sição. Sob estas condições, os partici- portanto, para o próprio êxito de sua
pantes da troca podem condicionar as ação. Só que o uso da linguagem orien-
suas ofertas através de suas tomadas de tado às consequências a que se pre-
posição recíprocas, sem ter que se tende, perde o telos (inscrito na própria
apoiar na disponibilidade à cooperação, linguagem) de um acordo a que os par-
que é o pressuposto da ação comunica- ticipantes da interação podem alcançar
tiva. O que se espera dos atores é, antes, entre si sobre algo.
uma atitude objetivante frente à situação (b) Os modelos de ação não es-
da ação e uma orientação racional para tratégica pressupõem como componente
as consequências da ação. A rentabili- essencial da coordenação da ação um
dade constitui o critério no qual se cal- uso da linguagem orientado ao enten-
culam as chances de êxito da ação. dimento, mesmo sob aspectos unilate-
O conceito de uma interação rais de acordo com o tipo de ação em
regida pelo meio dinheiro surge da idéia questão. Na ação regulada por normas o
de ação estratégica mediada pelo mer- entendimento serve como uma atualiza-
cado, ao mesmo tempo em que a subs- ção de um acordo grupal normativo já
titui, e se encaixa a um conceito de so- vigente na ação dramatúrgica, que se
ciedade articulado nos termos da teoria refere a uma autorepresentação para um
dos sistemas, que não precisa ser com- público, onde os "atores" se impressio-
plementado por quaisquer princípios ou nam uns aos outros. Utiliza-se aqui es-
por conceitos básicos do tipo normati- ses dois conceitos tal como eles foram
vistas. introduzidos, respectivamente, por Par-
As interações estratégicas tam- sons (1949) e Goffman (1959; 1967).
bém são entendidas, normalmente, O conceito de ação regulada
como linguisticamente mediadas, mas, por normas não se refere ao comporta-
dentro deste modelo os atos de fala mento de um ator em princípio solitário,
mesmo são assimilados como ações que encontre a sua volta outros atores,
orientadas ao êxito. Pois, para os sujei- mas, a membros de um grupo social que
tos que atuam estrategicamente, que orientam sua ação através de valores
labutam diretamente, quer dizer, sem comuns. O ator particular segue uma
qualquer mediação, para a realização de norma (ou a transgride), no interior de
seus planos de ação, a comunicação uma dada situação, onde se estabelecem
linguística é um meio, como qualquer as condições nas quais a norma se
outro, que se serve da línguagem para aplica. As normas expressam um acordo
provocar efeitos perlocutórios. Sem dú- vigente em um grupo social. Todos os
vida que existem numerosos casos de membros de um grupo, em que norma
entendimento indireto: seja no caso, por se aplica, tem o direito de esperar uns
exemplo, em que um ator dá a entender dos outros que, em determinadas situa-

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ções, executem ou omitam as ações a A ação regulada por normas


que a norma se refere. O conceito cen- responde a uma ordem social entendida
tral de observancia de uma norma signi- como um sistema de normas reconheci-
fica o cumprimento de uma expectativa das ou de instituições vigentes. E, cer-
generalizada de comportamento. Um tamente, nas instituições que se conside-
comportamento esperado não possui o ram mais sólidas e melhor integradas
sentido cognitivo da expectativa de um permanecem as orientações valorativas
sucesso prognosticado, mas, o sentido normativamente exigidas através das
normativo de que os membros do grupo constelações de interesses.
têm o direito de esperar um determinado Este conceito de sociedade é
comportamento. Este modelo normativo posto, no entanto, em termos tão estrei-
de ação é o que se encontra subjacente à tos que não deixa espaço para as opera-
teoria do papel social. ções construtivas do próprio ator; se
O conceito de ação dramatúr- expondo, então, à objeção de pressupor
gica não se refere primariamente a ne- um sujeito de ação "supersocializado"
nhum ator solitário, nem a um determi- (D. Wrong). Em vez disso, o ator pres-
nado membro de um grupo social, mas, suposto na ação dramatúrgica se encon-
aos participantes da interação que cons- traria “subsocializado”. Neste último
tituem um público, uns para os outros, modelo de ação não há lugar categorial
onde realizam apresentações de si mes- ou conceitual para as ordens institucio-
mos. O ator suscita em seu público uma nais. O modelo conta, em vez disso,
determinada imagem e uma certa im- com uma pluralidade de identidades que
pressão de si, revelando a sua subjetivi- se afirmam a sí mesmas, e que se co-
dade de forma mais ou menos calculada munica entre si por meio da autoapre-
no sentido de uma imagem com que sentação.
quer si apresentar. Todo agente pode Certamente este modelo expres-
controlar o acesso público à esfera de sivista outorga um espaço às operações
suas próprias intenções, pensamentos, criativas do ator, mas, revela deficiên-
atitudes, desejos e sentimentos, etc, a cias que resultam simétricas às debili-
que só ele tem acesso privilegiado. dades do modelo normativista. En-
Na ação dramatúrgica os parti- quanto os sujeitos supersocializados se
cipantes aproveitam essa circunstância e limitam a reproduzir as mesmas estrutu-
controlam a sua interação por meio da ras institucionalizadas na ordem social;
regulação e do controle do acesso recí- as identidades, tão ricamente facetadas,
proco à subjetividade de cada um. O
conceito central da autorrepresentação
autoapresentação varia desde a comunicação
significa, portanto, não um comporta-
sincera das próprias intenções, desejos e
mento expressivo espontâneo, mas, a sentimentos, etc, até a uma manipulação cínica
estilização da expressão de suas pró- das impressões que um ator provoca nos outros.
prias experiências, realizadas visando à Ainda mais, tais impressions manegement
imagem que alguém quer dar de si a um subsumem sob o conceito de ação dramatúrgica,
quando parece estar dirigida a um público que,
espectador. Este modelo de ação dra- candidamente,quer dizer, sem dar-se conta de
matúrgica serve, em primeiro lugar, intenções estratégicas, se imagina estar
para descrições de interação orientada assistindo a una representação orientada para o
em termos fenomenológicos; porém, até entendimento. Caso contrário, é uma forma sutil
o momento não tem sido desenvolvido de exercício simbólico-expressivo do poder, ou
seja, de uma versão especial de ação orientada
em uma abordagem teórica capaz de ao êxito, de onde se pode deduzir (um bom
fazer generalizações1. exemplo desse segundo caminho pode ser
encontrado nos trabalhos de Pierre Bourdieu)
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Ademais, Goffman faz um uso equivocado um conceito correspondente de sociedade
deste modelo de ação. A escala de articulado em relação a uma teoria do poder.

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fazem exibição de si mesmas, e são A partir desta perspectiva, a or-


concebidas como seres que estão acima dem social se esfuma em uma sequência
da sociedade ou que, por assim dizer, contingente de ficções geradas inter-
penetram-na de fora. subjetivamente, que só emergem da
Estas deficiências comple- corrente de interpretações para, a seguir,
mentares são superadas pelo interacio- de novo desmoronar. No interior de
nismo simbólico. Por assumir e desem- cada sequência de interação os intér-
penhar papéis se entende o mecanismo pretes renovam a aparência de uma so-
de um processo de aprendizagem que ciedade normativamente estruturada,
um neófito constrói o mundo social du- mas, na verdade, não fazem mais do que
rante o desenvolvimento de sua própria tatear a partir de um frágil consenso
identidade. instantâneo para outro. Porém, uma
Este conceito de assunção e de- ação comunicativa que se torne asse-
sempenho de papéis, ou role-taking, melhada à hermenêutica de um eterno
permite compreender a individuação diálogo, que dá volta sobre si mesma, só
como um processo de socialização e fornece, na melhor das hipóteses, um
vice-versa, a socialização como um pro- conceito de ordem social que coincide
cesso de individuação. O interacionismo sociedade com proteção, reflexivamente
simbólico suprime a oposição abstrata refratada, das tradições culturais.
entre as ordens institucionais e a plura- Começar-se-á mostrando por
lidade de identidades individuais, e isso que o interacionismo simbólico e a et-
em um processo de formação circular nometodologia falham na sua tarefa de
que constitui por igual a ambas as par- desenvolver um conceito de ação social
tes, isto é, as ordens sociais e os atores. em que a construção linguística de um
Este modelo reage com estas inovações consenso cumpra a função de coordenar
conceituais às já mencionadas deficiên- a ação. Esta explicação serve como um
cias de conceituação da ordem social, conceito-chave da ação comunicativa,
porém, sem renovar, no entanto, o con- cuja fertilidade será demonstrada em
ceito mesmo de ação social. No intera- uma teoria da sociedade, já desenvol-
cionismo simbólico todas as ações soci- vida, em detalhe, em outro lugar (HA-
ais são compreendidas de acordo com o BERMAS, 1987)2.
modelo de interações socializadoras;
3 - Tanto o interacionismo
mas, não se encontra nele explicado
simbólico quanto a etnometodologia
como a linguagem pode funcionar como
de inspiração fenomenológica assu-
um meio de socialização. mem a tarefa de esclarecer o meca-
As abordagens fenomenológi- nismo de coordenação linguística da
cas e hermenêuticas, especialmente a
ação orientada ao entendimento; mas,
etnometodologia fundada por H. Gar- com os conceitos de role-taking e inter-
finkel têm abordado este problema. En- pretação, causam um redemoinho à
tenden as ações sociais como processos análise se direcionando para outros fins,
cooperativos de interpretação em que os e apresentam a ação comunicativa como
participantes da interação negociam um meio pelo qual vagueiam os proces-
definições comuns da situação para co- sos de socialização ou se fingem ordens
ordenar os seus planos de ação. Essas normativas. Este desvio da finalidade
abordagens, porém, se concentram de original da teoria da ação, no entender
forma exclusiva sobre as operações in- do autor, tem o seu começo na falta de
terpretativas dos atores, o que faz pare-
cer que as ações se dissolvem nos atos
de fala, e as interações sociais tacita- 2
No que se segue, não se apontará como
mente se dissolve nas conversações. citações as reproduções literais de conceitos
desenvolvidos pelo autor em outros trabalhos.

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cuidado das tradições de pesquisa, que sujeitos que atuam comunicativamente,


se iniciam a partir de G. H. Mead e A. (b) se se reformula o conceito de situa-
Schütz, em distinguir entre os conceitos ção a partir da perspectiva da ação ori-
de mundo e mundo da vida; isto é, entada à compreensão, como forma de
aquele no qual os participantes da inte- distinguir, nas contribuições do mundo
ração se entendem entre si, não deve ser da vida, entre contribuições formadoras
contaminado com o a partir de onde os de contexto e contribuições constituti-
participantes iniciam e discutem suas vas, e (c) se se abandona, no final, a
operações interpretativas. perspectiva do ator, para ver qual é a
A ação orientada ao entendi- contribuição que a ação comunicativa
mento é reflexiva, daí que as ordens permite, por seu lado, à manutenção e à
institucionais e as identidades dos su- geração do mundo da vida.
jeitos agentes apareçam em dois pontos. (a) As relações com o mundo. A
Como ingredientes tematizaveis da situ- partir de Frege e do primeiro Wittgens-
ação da ação, podem se tornar explici- tein um conceito semântico de mundo
tamente conscientes pelos agentes. como totalidade foi imposto. Ao se
Como recursos para gerarem o processo acrescentar ainda o conceito interven-
de comunicação em si, permanecem em cionista de lei e de causalidade (WRI-
segundo plano e, deste modo, igual aos GHT, 1971), desenvolvido a partir de
padrões de interpretação culturalmente Peirce, se pode prover o mundo objetivo
acumulados, só se encontram presentes de um índice temporal e definí-lo como
como conhecimento implícito. Certa- totalidade dos estados de coisas conec-
mente o interacionismo e a fenomeno- tados conforme às leis, que existem ou
logia elegeram uma abordagem que os que podem surgir em um determinado
obriga a distinguir entre temas e recur- tempo, ou pode se produzir por inter-
sos, quer dizer, em manter separados os venção.
planos que representam o conteúdo e a No plano semântico, tais esta-
constituição dos processos de entendi- dos de coisas são considerados como
mento. Contudo, como analiticamente representados pelo conteúdo ou como
não desenvolvem tais complexos sufici- conteúdo proporcional das orações
entemente, em cada um dos casos acaba enunciativas ou das orações de intenção.
por autonomizar um destes aspectos. Os pressupostos ontológicos relaciona-
Em um caso, cobra primazia ao dos ao modelo da atividade teleológica
ponto de vista da constituição. A estru- introduzido acima pode ser explicitados,
tura de perspectivas inscritas nos papéis então, com a ajuda deste conceito de
sociais ocupa tanto a atenção que a ação mundo.
comunicativa se encolhe e reduz a di- Para poder entender um pro-
mensão relevante para os processos de cesso como uma ação teleológica, se
socialização, ou seja, a dimensão da deve atribuir ao ator (pelo menos impli-
assução de papéis. No outro caso, a ela- citamente) a capacidade de formar opi-
boração cooperativa de temas passa niões e de submetê-las à apreciação,
para o primeiro plano, tanto que, tudo o assim como de conceber intenções e as
que resta como recurso é o conheci- executar. Com esta atribuição se pode
mento cultural; e a ordem social, por supor que o ator pode adotar, em princí-
assim dizer, submerje em diálogos. pio, duas relações com o mundo obje-
A reprodução cultural do tivo: pode conhecer os estados de coisas
mundo da vida só pode ser conceituada existentes e pode trazer à existência os
adequadamente se (a) se identifica as estados de coisas desejados.
referências ao mundo ou as relações As mesmas premissas ontoló-
com o mundo onde se encontram os gicas também se aplicam ao conceito de

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ação estratégica. Os sujeitos que agem tários das regras, de forma similar a
estrategicamente, que não se limitam a como os fatos vêm representados por
intervenções instrumentais, mas que orações assertóricas verdadeiras.
perseguem os seus objetivos por meio Ao descrever um processo
da influência sobre as decisões de ou- como interação dirigida por normas se
tros atores, têm que expandir o seu apa- pressupõe que os participantes distin-
rato categorial em relação ao que pode gam os componentes factuais da sua
se apresentar no mundo3. Com a situação de ação, quer dizer, os meios e
complexidade das entidades intramun- as condições, dos direitos e deveres. O
danas, porém, não aumenta a complexi- modelo normativo de ação parte do
dade do conceito do mundo objetivo em príncipio de que os participantes podem
si mesmo. A atividade teleológica dife- adotar uma atitude objetivante em dire-
renciada em atividade estratégica conti- ção a algo duvidoso, bem como uma
nua a ser um conceito que conta apenas atitude de conformidade em relação às
com um mundo. Em vez disso, os con- normas frente a algo que, com razão ou
ceitos de ação regulada por normas e de sem razão, é enviado. Mas, como no
ação dramatúrgica pressupõem relações modelo de ação teleológica, a ação é
entre um ator e, em cada caso, um concebida essencialmente como uma
mundo a mais. relação entre um ator e um mundo, -
Porquanto, no primeiro caso, no aqui, como uma relação com o mundo
caso da ação regulada por normas junto social em que o ator se enfrenta em seu
ao mundo objetivo dos estados de coisas papel de destinatário da norma e de
existentes, aparece um mundo social, onde pode estabelecer relações interpes-
que é atribuído ao ator como um porta- soais legitimamente reguladas.
dor de papéis, junto a outros atores que Nem aqui nem ali, porém, se
podem participar com ele de relações pressupõe ao ator em si um mundo, so-
interpessoais legitimamente regula- bre o qual o próprio ator pode existir
mentadas. Um mundo social consiste reflexivamente. Somente o conceito de
deste modo, em ordens institucionais ação dramatúrgica exige um pressu-
que fixam quais as interações que per- posto a mais, um pressuposto de um
tencem à totalidade das relações sociais mundo subjetivo, ao qual se refere o
e que podem se considerar justificadas, ator que, em sua ação, coloca em cena a
de um lado, e, simultaneamente, de to- si mesmo.
dos os destinatários deste complexo de No caso da ação dramatúrgica
normas que são afetados pelo mesmo o ator ação há de inventar-se, sobre o
mundo social. seu próprio mundo subjetivo, para se
Idêntico ao sentido do mundo apresentar ante um público com um
objetivo, que pode ser explicado por aspecto de si mesmo. Esse mundo sub-
referência à existência de estados de jetivo pode ser definido como o con-
coisas, também o sentido de mundo junto de experiências do qual o agente
social pode ser explicado por referência possui acesso privilegiado, em cada
à validade normativa das regras (no caso. Mas, nesse âmbito da subjetivi-
sentido de serem dignas de reconheci- dade, só se pode dar o nome de
mento). No plano semântico, as normas "mundo" se o significado de um mundo
vêm representadas por orações normati- subjetivo pode ser explicado de modo
vas universais (ou preceitos), que são análogo ao de como o significado de
aceitas como justificadas pelos destina- mundo social pode ser explicado por
referência à vigência de normas (aná-
3
Pois, agora, podem apresentar-se no mundo logo, por seu turno, à existência de es-
atores capazes de tomar decisões e não apenas tados de coisas). Talvez se possa afir-
coisas e eventos.

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mar que o subjetivo é representado por postos ontológicos das descrições onde
orações de vivência emitidas como ver- aparecem os conceitos correspondentes
dadeiras, do mesmo modo que os esta- de ação. Ao empreender, como cientis-
dos de coisas podem ser representados tas sociais, tal descrição, se supõe que
por enunciados verdadeiros e as normas os atores entram em relações com mun-
válidas por orações de dever justifica- dos concebidos como representados por
das. uma totalidade de orações assertóricas
As experiências subjetivas não ou normativas ou expressivas válidas.
devem ser entendidas como estados Enquanto se emprega o modelo de ação
mentais ou episódios internos. Ao assim orientada ao entendimento tem-se que
serem entendidas apareceria, porquanto, atribuir aos atores às mesmas relações
próximas a entidades, a ingredientes do ator-mundo, mas, desta vez como rela-
mundo objetivo. ções reflexivas. Pode-se supor, então,
O ter experiências pode ser en- porquanto, que os atores também domi-
tendido como algo análogo à existência nam linguisticamente as relações que
dos estados de coisas, mas, não se deve estabelecem com o mundo e as mobili-
assemelhar um ao outro. Um sujeito zam para o fim cooperativamente se-
capaz de se expressar não "tem" ou guido de se entenderem.
"possui" desejos ou sentimentos no Os próprios sujeitos descritos
mesmo sentido em que se diz que um fazem uso daquelas orações, se valendo
objeto observável tem extensão, peso, das quais o cientista social, ao descrevê-
cor e outras propriedades semelhantes. las, foi capaz de esclarecer aqui o status
Um ator tem desejos e sentimentos no dos fatos, as normas e as experiências,
sentido de, se assim o quiser, poder ma- quer dizer, os referentes da ação endere-
nifestar essas experiências ante um pú- çada à consecução de fins, da ação re-
blico, de modo que esse público possa gida por normas e da ação dramatúr-
atribuir esses desejos e sentimentos ao gica. Os participantes da interação utili-
agente (na medida em que lhe dê cré- zam tais orações em atos comunicativos
dito) como algo subjetivo. com aqueles que buscam entender a sua
Ao descrever um processo própria situação, de modo que lhes se-
como ação dramatúrgica se propôs que jam possível coordenar de comum
o ator isenta o seu mundo interno do acordo os seus próprios planos de ação.
mundo externo. No mundo externo o O conceito de ação comunica-
ator pode certamente distinguir entre os tiva força ou obriga a considerar tam-
componentes normativos e os não-nor- bém os atores como falantes e ouvintes,
mativos da situação de ação. No modelo que se referem a algo no mundo obje-
de ação de Goffman, contudo, não está tivo, no mundo social e no mundo sub-
previsto que o ator possa enfrentar o jetivo, e se envolvem reciprocamente a
mundo social através de uma atitude de este respeito pretensões de validade que
conformidade com as normas. O ator podem ser aceitas ou postas em causa.
leva em consideração as relações inter- Os atores não se referem com intentione
pessoais legitimamente reguladas, mas, recta para algo no mundo objetivo, no
apenas, como fatos sociais. Parece tam- mundo social ou no mundo subjetivo,
bém apropriado classificar a ação dra- mas relativizam suas transmissões sobre
matúrgica, então, como um conceito este algo no mundo tendo presente a
que pressupõe dois mundos, a saber: o possibilidade de que a validade delas
mundo interno e o mundo externo, ou o possa ser posta em questão por outros
mundo subjetivo e o mundo objetivo. atores.
As relações ator-mundo discu- O entendimento, então, fun-
tidas até agora pertencem aos pressu- ciona como um mecanismo coordenador

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da ação da seguinte forma: os partici- obtenção de um acordo. Essencial para


pantes da interação concordam com a a ação orientada ao entendimento é a
validade que pretendem para as suas condição de que os participantes a reali-
emissões, ou seja, reconhecem inter- zem de acordo os seus planos, em uma
subjetivamente as pretenções de vali- situação de ação definida em comum.
dade que reciprocamente estabelem uns Os participantes tentam, no seu
com os outros. Um falante afirma uma desenvolvimento, deste modo, evitar
pretenção de validade suscetível de crí- dois riscos: o risco de uma compreen-
tica ao se referir, com a sua emissão, a são falha, ou seja, de discordância ou
pelo menos um mundo e faz uso da cir- mal-entendido, e o risco de um plano de
custância de que essa relação entre o ação fracassado, quer dizer, o risco de
ator e o mundo é acessível, em princí- fracasso. Evitar o primeiro risco é uma
pio, a um juízo objetivo para desafiar o condição necessária para cumprir a se-
seu próximo a uma tomada de posição gunda condição. Os participantes, as-
racionalmente motivada. Ao ignorar que sim, não podem alcançar os seus objeti-
a expressão simbólica utilizada deve ser vos sem atender a necessidade de en-
bem formada, um ator que se oriente tendimento indispensável para fazer uso
para o entendimento, no sentido indi- das possibilidades de ação que a situa-
cado, envolve implicitamente, com a ção oferece, - ou, pelo menos, não pode
sua emissão, exatamente, três preten- alcançar esse objetivo por meio da ação
sões de validade. A saber, a pretensão: comunicativa.
i. De que o enunciado que faz é Uma situação representa um
verdadeiro (que cumpre, de fragmento de um mundo de vida deli-
fato, as condições de existên- mitado em relação a um tema. Um
cia do conteúdo proposicio- tema, por seu turno, surge em conexão
nal mencionado); com os interesses e os objetivos da ação
ii. De que a ação proposta é de (pelo menos) um participante. Um
correta por referência a um tema, assim, circunscreve o âmbito de
contexto normativo vigente relevância dos componentes da situação
(ou de que o contexto nor- sussetíveis de ser tematizado e vem
mativo a que a ação se atém sublinhado pelos planos que os partici-
é consistente e legítimo), e pantes concebem sobre a base da inter-
iii. De que a intenção manifesta pretação que fazem da situação, no in-
do falante é, de fato, a que o tuito de realizar os seus próprios fins.
falante expressa. A situação de ação interpretada
circunscreve um âmbito tematicamente
O falante pretende, assim, a aberto de alternativas de ações, quer
verdade aos enunciados e as pressuposi- dizer, de condições e de meios para a
ções de existência, retidão para as ações execução de planos. À situação pertence
legitimamente reguladas e para o seu tudo o que é sentido como restrição às
contexto normativo. Bem como, veraci- iniciativas de ação correspondentes.
dade em relação à manifestação de suas Enquanto o ator mantém sobre as suas
experiências subjetivas. costas o mundo da vida, como um re-
(b) Mundo e mundo da vida. Se curso da ação orientada ao entendi-
se entende a ação como o domínio de mento, as restrições que as circunstân-
situações, então o conceito de ação co- cias impõem à execução do seu plano se
municativa destaca, sobretudo, dois as- colocam como ingredientes da situação.
pectos no domínio da situação: o as- Ingredientes estes que, no sistema de
pecto teleológico de execução de um
referência dos três conceitos formais de
plano de ação e o do aspecto comunica-
tivo de interpretação da situação e de

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mundo, podem ser classificados como possui o status de pano de fundo pró-
fatos, normas e experiências. prios do mundo da vida.
Ao se introduzir este conceito Este conhecimento de fundo,
de situação, contudo, cabe distinguir fundamental, que tacitamente comple-
aqui entre "mundo" e "mundo da vida" a menta o conhecimento das condições de
partir do ponto de vista da tematização aceitabilidade das emissões linguistica-
dos objetos e da restrinção dos espa- mente padronizadas para que um ou-
ções de iniciativa. Em primeiro lugar, vinte possa compreender o seu signifi-
os conceitos de "mundo" e "mundo da cado literal, tem propriedades curiosas.
vida" servem à demarcação de áreas que É um conhecimento implícito, que não
são acessíveis, aos participantes de uma pode ser exposto em uma multiplicidade
dada situação, à tematização ou dela são finita de proposições. É um conheci-
subtraídos. mento, assim, holisticamente estrutu-
A partir da perspectiva dos par- rado, a cujos elementos remetem-se uns
ticipantes, vertida para a situação, o aos outros, e é ao mesmo tempo um
mundo da vida aparece como um con- conhecimento que não se encontra à
texto formador de horizontes dos pro- disposição direta do ator, no sentido de
cessos de entendimento, que delimita a que não se pode torná-lo consciente à
situação de ação e, portanto, permanece vontade, nem tão pouco se pode pô-lo
inacessível à tematização. Com os te- em dúvida, à vontade.
mas, são deslocados, também, os frag- O mundo da vida se encontra
mentos do mundo da vida relevantes presente na forma de autoevidências
para a situação. Para os quais surge uma com as quais, os que agem comunicati-
necessidade de entendimento com vista vamente, estão intuitivamente familiari-
à atualização das possibilidades de ação. zados, de modo que não se pode sequer
Apenas o que, deste modo, pode contar com a possibilidade de que se
se converter em um ingrediente da situ- tornem problematizaveis. O mundo da
ação, pertence aos pressupostos temati- vida não é "conhecido" no sentido es-
zaveis (a vontade) das emissões comu- trito, pois o conhecimento explícito se
nicativas com as que os participantes da caracteriza porque pode por-se em
interação se entendem sobre algo no questão e porque pode se fundamentar.
mundo. É bem verdade que estas pres- Apenas o fragmento do mundo da vida
suposições dependentes da situação relevante, em cada caso, para uma dada
formam um contexto, mas, ainda não é situação, constitui um contexto suscetí-
um contexto suficiente, não é suficiente vel de tematizar-se à vontade, nas emis-
para completar o significado literal das sões que os agentes comunicativos con-
expressões linguísticamente padroniza- vertem em temas, isto é, como algo no
das, de modo que estas cobrem o signi- mundo.
ficado perfeitamente determinado de um Mas o mundo da vida não tem
texto. Então, convém distinguir assim apenas a função de formar um contexto.
entre o contexto que condiz uma situa- Oferece uma provisão de convicções,
ção e o contexto que condiz o mundo da onde os participantes em comunicação
vida. recorrem para cobrir, com interpreta-
Como Searle (1969) demons- ções susceptíveis de consenso, a neces-
trou, a partir do último Wittgenstein, o sidade de entendimento surgida em uma
significado de um texto só pode ser determinada situação. Como recurso, o
apreendido dentro do contexto de uma mundo da vida cumpre, portanto, um
pré-compreensão que se desenvolve na papel constitutivo no processo de com-
medida em que se cresce em uma cul- preensão. O "mundo" e o "mundo da
tura dada. Pré-compreensão esta que vida" se diferenciam, assim, não só do

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ponto de vista da tematização dos obje- mento, etc como algo subjetivo. Os
tos, mas, também, a partir da restrição meios do entendimento se mantêm atra-
de espaços de ação. O mundo da vida, vés de uma peculiar semitranscendên-
na medida em que entra em considera- cia.
ção como recurso de processos de inter- Embora os participantes da in-
pretação, pode ser representado como teração mantenham a sua atitude reali-
um acervo linguisticamente organizado zativa, a linguagem por eles usada no
de panos de fundo, que se reproduzem momento continua no entorno, à suas
na forma de tradição cultural. voltas. Assim, a cultura e a língua, não
O conhecimento de fundo contam normalmente como ingredientes
transmitido culturalmente ocupa, frente da situação. Não restringem, de modo
às emissões comunicativas geradas com algum, o espaço de ação, nem tão pouco
a sua ajuda, uma posição de certo modo caem sob um dos conceitos formais de
transcendental. Provê que os partici- mundo com cuja ajuda os participantes
pantes da interação encontrem, já de se entendem sobre uma determinada
antemão interpretada, - em relação ao situação. Não existe necessidade, assim,
que o conteúdo se refere, - a conexão de nenhum conceito sob o qual os parti-
entre o mundo objetivo, o mundo social cipantes pudessem apreender como
e o mundo subjetivo. elementos de uma situação de ação4.
Quando os participantes trans- Algo diferente do que sucede
cendem o horizonte de uma situação com as tradições culturais, é o que
dada, deste modo, não se movem em acontece com as instituições e as estru-
um vazio. Todavia, voltam imediata- turas de personalidade. Estas podem,
mente a se encontrar em outro âmbito, supostamente, limitar o espaço de inici-
agora atualizado, mas, no entanto, já ativa dos atores, ficar em seu caminho
pré-interpretado, através do cultural como ingredientes da situação. Daí que
autoevidente. Na prática comunicativa apareçam, também, como algo norma-
cotidiana não ocorrem situações abso- tivo ou como algo subjetivo, por assim
lutamente desconhecidas, e as novas dizer, de nascimento, sob um dos con-
situações emergem, também, de um ceitos formais do mundo.
mundo da vida que é construído através Mas esta circunstância não deve
de uma provisão de conhecimento de levar à suposição de que as normas e as
antemão sempre familiar. Frente ao experiências (como os fatos ou as coisas
mundo da vida quem atua comunicati- e eventos) se apresentem exclusiva-
vamente não pode adotar uma atitude
extramundana, nem pode tão pouco o 4
Apenas nos raros momentos em que fracassam
fazer frente à linguagem, como meio de
como recursos, a cultura e a linguagem
seus processos de entendimento. desenvolvem a peculiar resistência que se
Ao executar ou ao entender um experimenta nas situações de um entendimento
ato de fala, os participantes de uma co- conturbado. É quando se precisam, então, de
municação se movem até tal ponto no trabalhos de reparação de tradutores, intérpretes
ou terapeutas. Mas, nem eles, contudo, quando
interior de sua língua, que uma emissão tentam levar, a uma interpretação comum,
atual não pode pô-la ante si como "algo elementos do mundo da vida que se tornaram
intersubjetivo", do mesmo modo como disfuncionais (transmissões ininteligíveis,
pode ter a experiência de um evento tradições que perderam sua transparência e, no
como algo objetivo, ou da forma como caso limite, uma linguagem não decifrada),
podem recorrer a algo além dos três conceitos
uma expectativa de comportamento vem de mundo conhecidos. Esses elementos do
ao encontro deles como algo normativo, mundo da vida que falharam como recursos têm
ou, ainda, do modo como vivem (ou de ser identificados como fatos culturais que
atribuem a outro) um desejo, um senti- restringem o espaço de ação.

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mente como algo sobre o que os partici- parece impor-se a ele, e seja por ele
pantes da interação se considerem. Po- abordado como um problema que tem
dem adotar um status duplo, - como de solucionar, por assim dizer, por trás,
ingredientes de um mundo social ou de contudo, o mesmo agente se vê susten-
um mundo subjetivo, por um lado, e tado pelo pano de fundo que é o seu
como componentes estruturais do mundo da vida. O domínio das situa-
mundo da vida, por outro. O pano de ções se apresenta como um processo
fundo, que constitui o mundo da vida, circular onde o ator, simultâneamente, é
consiste de habilidades individuais, de o iniciador de ações atribuíveis e o pro-
conhecimento intuitivo sobre como lidar duto das tradições culturais de onde se
com uma situação, e de práticas social- encontra, quer dizer, dos grupos de soli-
mente conhecidas e exercitadas, - quer dariedade a que pertence e dos proces-
dizer, do conhecimento intuitivo sobre o sos de socialização e aprendizagem a
no em que se pode apoiar ou o no em que está sujeito.
que se pode confiar em uma determi- Em vez da perspectiva do
nada situação, - de convicções, de agente, contudo, se adotar a perspectiva
fundo, trivialmente conhecidas. do mundo da vida, se pode transformar
A sociedade e personalidade a questão articulada nos termos de uma
não apenas operam como restrições, teoria da ação em uma questão estrita-
mas cumprem, também, a função de mente sociológica: na qual as funções
recursos. A aproblematicidade do adotam a ação orientada ao entendi-
mundo da vida, no e desde o que se age mento para a reprodução do mundo da
comunicativamente, é explicado pela vida. Os participantes da interação, para
segurança que o ator credita a solidarie- entender um ao outro em uma situação,
dades e a competências comprovadas. se movem dentro de uma tradição cultu-
Pode-se mesmo dizer que a caráter pa- ral, da qual fazem uso ao mesmo tempo
radoxal do conhecimento de que se em que a renovam. Os participantes da
compõe o mundo da vida, um conheci- interação, deste modo, ao coordenar as
mento que apenas proporciona o senti- suas ações através do reconhecimento
mento de certeza absoluta porque não se intersubjetivo das pretensões de vali-
sabe dele, se deve ao fato de que o co- dade suscetíveis de crítica, as apoiam
nhecimento sobre o do em que se pode em seus pertencimentos a grupos sociais
apoiar e sobre o de como se faz algo, se e reforçam ao mesmo tempo a integra-
encontra ainda entrelaçado, de forma ção destes. No caso das crianças, nesse
indiferenciada, com o aquilo que prerre- aspecto, ao participarem de interações
flexivamente se conhece. Mas, se as com pessoas que agem competente-
solidariedades dos grupos integrados mente, internalizam as orientações valo-
por meio de valores e normas e as habi- rativas de seu grupo social e adquirem a
lidades dos indivíduos socializados capacidade generalizada para a ação.
afluem por trás da ação comunicativa, o Sob o aspecto funcional do
mesmo que o faz as tradições culturais, entendimento a ação comunicativa
o mais conveniente é corrigir o estreitís- serve, então, tanto à tradição quanto à
simo conceito culturalista de mundo da renovação do conhecimento cultural.
vida. Abaixo o aspecto de coordenação da
(c) Foi introduzido o conceito ação serve à ação social e ao estabele-
de mundo da vida como pano de fundo cimento de solidariedade, e, sob o as-
da ação comunicativa. Embora o frag- pecto de socialização, finalmente, a
mento do mundo da vida, relevante a ação comunicativa serve ao desenvol-
uma dada situação, em relação ao vimento das identidades pessoais. As
agente que atua comunicativamente, estruturas simbólicas do mundo da vida

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se reproduzem, então, através da conti- A reprodução material se efetua


nuidade do conhecimento válido, da por meio da atividade teleológica, com
estabilização da solidariedade grupal e que os indivíduos socializados intervem
da formação de atores capazes de res- no mundo para alcançar os seus fins.
ponder por seus atos. Como afirmou Max Weber, os proble-
O processo de reprodução co- mas que o agente tem que dominar em
necta as novas situações com as condi- cada situação, se divide em problemas
ções existentes do mundo da vida, e isso de "dificuldades internas" e em proble-
tanto na dimensão semântica dos signi- mas de "dificultades externas". Para
ficados ou dos conteúdos (da tradição estas categorias de tarefas, decorrentes
cultural), quanto nas dimensões do es- da perspectiva da ação correspondem, -
paço social (dos grupos socialmente se si considerar as coisas a partir da
integrados) e do tempo histórico (das perspectiva da manutenção do mundo
gerações que se sucedem umas às ou- da vida, - os processos de reprodução
tras). A estes processos de reprodução simbólica e de reprodução material.
cultural, de integração social e de soci-
4 – A autor deste artigo de-
alização correspondem como compo-
senvolveu, intuitivamente, os concei-
nentes estruturais do mundo da vida, a
tos de ação comunicativa e de mundo
cultura, a sociedade e a pessoa.
da vida partindo do contexto da dis-
Chama-se de cultura a provisão cussão atual no interior da sociologia.
de conhecimento por onde os partici- Com isso não fez mais do que tornar
pantes da interação, ao se entenderem plausível certa pré-compreensão que, no
entre si sobre algo no mundo, fornecem máximo, pode abrir o caminho para
interpretações. Chama-se sociedade às
uma análise conceitual em termos de
ordens legítimas, através das quais os pragmática formal, que não se pode le-
participantes da interação regulam o seu var adiante neste trabalho. O que se se-
pertencimento aos grupos sociais e, gue se referirá a algumas tentativas de
desta forma, asseguram a solidariedade. reconstrução, empreendidas pelo autor
Por personalidade se entende as habili- em outro lugar.
dades que convertem um sujeito em (a) Orientação para o êxito ver-
uma pessoa possuidora e capaz de fala e sus orientação para o entendimento.
de ação, quer dizer, de colocar o sujeito Em relação à estratégia para a delimita-
na situação de participante nos proces- ção da ação comunicativa, é necessário
sos de compreenção e de afirmar neles a explicar o que significa agir em uma
sua própria identidade. atitude orientada ao entendimento. De-
O campo semântico dos conte- signa-se esta ação, então, à atitude dos
údos simbólicos, o espaço social e o
participantes na comunicação, onde, nos
tempo histórico constituem as dimen- casos elementares, um realiza um ato de
sões de onde se estendem as ações co- fala e o outro toma uma posição com
municativas. As interações que se en- um "sim" ou com um "não".
trelaçam até formar uma rede de práti- Agora se seja aqui claro, nem
cas comunicativas cotidianas consti- toda a interação linguisticamente medi-
tuem os meios através dos quais se re- ada representa um exemplo de ação ori-
produzem a cultura, a sociedade e a pes- entada ao entendimento. O ato de fala
soa. Estes processos de reprodução se elementar apenas pode servir de modelo
referem às estruturas simbólicas do para uma orientação ao entendimento5,
mundo da vida, e deles se tem de distin- se o uso da linguagem orientado ao en-
guir a manutenção do substrato mate-
rial do mundo da vida.
5
Que, por sua vez, não seja susceptível de
derivar de uma ação orientada para o êxito.

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tendimento representar o modo original sequência da interação. O potencial de


de emprego da linguagem no geral, em ação típico do ato de fala, deste modo,
respeito ao qual o uso da linguagem se expressa na pretenção que o falante
orientado às consequências ou ao en- encaixa, - com a ajuda de um verbo per-
tendimento indireto (o dar a entender) fomativo, - no caso de atos de fala ex-
se comporta parasitariamente. A tarefa plícitos, em favor do que diz. O ouvinte,
consiste, portanto, em mostrar que não ao reconhecer essa pretenção, aceita a
se pode entender o que significa provo- oferta feita através do ato de fala.
car linguisticamente efeitos sobre o ou- Este êxito ilocucionário só é
vinte, se não se sabe anteriormente o relevante para a ação, na medida em
que significa uma relação em que o fa- que, com ele, se estabelece uma relação
lante e o ouvinte possam vir a chegar a interpessoal entre o falante e o ouvinte.
um acordo sobre algo com a ajuda de A qual ordena espaços de ação e se-
atos comunicativos. quências de interação, e que, através de
É precisamente sobre isso o que alternativas gerais de ação abre para o
uma investigação detalhada das forças ouvinte possibilidades de conecção com
ilocucionárias e dos efeitos perlocucio- o falante.
nários dos atos de fala pode proporcio- A questão é: de onde os atos de
nar. Os atos de fala só podem servir a fala retiram a sua força para coordenar a
um fim perlocucionário de exercer uma ação, quando essa autoridade, à dife-
influência sobre o ouvinte, se eles re- rença do que acorre no caso dos atos de
sultam aptos para a consecução de fins fala institucionalmente ligados, não é
ilocucionários. Se o ouvinte não entende recebida diretamente da validade social
o que o interlocutor diz, tão pouco um das normas. Ou, como ocorrem no caso
falante que atue teleologicamente pode das manifestações imperativas da von-
movimentar o ouvinte, através de atos tade, é devido a um potencial de sanção
comunicativos, para se comportar de contingentimente disposto.
uma forma qualquer desejada. Neste Ao analisar as coisas de forma
sentido, o uso da linguagem orientado mais detalhada vê-se que a força, racio-
às consequências não representa um uso nalmente motivadora da oferta que um
original, mas, a subsunção de atos de ato de fala comporta, não resulta da va-
fala, que servem a fins ilocucionários, lidade do já afirmado anteriormente,
sob as condições da ação orientada para mas, dos seus efeitos coordenadores.
o êxito (HABERMAS, 1984, v. 1, pp. Efeitos coordenadores estes que trazem
387-397). em si a garantia, a que o falante assume
(b) Acordo racionalmente moti- sempre que necessário ao se esforçar no
vado. O conceito de ação comunicativa desempenho da pretenção que o seu ato
depende inteiramente da demonstração de fala está afirmando.
de que um acordo comunicativo6 pode Nos casos das pretenções de
cumprir funções de coordenação da verdade e das pretenções de justiça, esta
ação. Com o seu "sim" um ouvinte esta- garantia também pode ser desempe-
belece um acordo que, por um lado, se nhada pelo ouvinte em termos discursi-
refere ao conteúdo da emissão e, por vos, ou seja, através de argumentos ra-
outro lado, se refere a garantias ima- cionais. E, nos casos das pretenções de
nentes ao ato de fala e a vínculos que veracidade, pode realizá-la através de
resultam relevantes para a interação um comportamento consistente7.
subsequente, ou seja, relevantes para
7
O fato de que alguém pense na realidade o que
6
No caso mais simples de uma tomada de diz é algo que só pode se afirmar vendo se é
posição de um ouvinte frente a uma oferta que coerente na sua ação, e não pedindo razões ao
representa o ato de fala de um falante. interessado.

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Na medida em que os ouvintes inscritos na ação comunicativa, depende


se atem a essa garantia oferecida pelo não só da pressão exercida pelos pro-
falante, entra em vigor toda uma classe blemas decorrentes dos conflitos de in-
de vínculos relevantes para a sequência teresse que possam contingentemente
da interação, que se encontram contidos eclodir, mas, também do aumento es-
no significado desta. Por exemplo, no trutural trazido pela progressiva racio-
caso dos mandatos e das ordens, as nalização do mundo da vida, especial-
obrigações da ação se referem princi- mente, com a reflexivação das tradições
palmente aos destinatários; no caso das culturais e com a desvinculação da ação
promessas e dos contratos se referem comunicativa em relação aos contextos
simetricamente a ambos os lados; e, no normativos.
caso das recomendações e das advertên- (c) Pretenções de validade e
cias, carregadas de conteúdo normativo, modos de comunicação. O núcleo da
se referem assimetricamente a ambas as pragmática formal constitui a análise
partes. dos pressupostos pragmático-universais
Ao contrário do que ocorre nos dos atos de fala. Trata-se, em primeiro
atos de fala regulativos, o significado lugar, do papel pragmático das preten-
dos atos de fala constatativos apenas sões de validade suscetíveis de crítica,
resultam em vínculos na medida em que que se endereçam para um reconheci-
o falante e o ouvinte concordarem em mento intersubjetivo e remetem para a
apoiar a sua ação em interpretações da um potencial de razões. Deve-se mos-
situação que não contradigam os enun- trar, aqui, que todo ato de fala pode ser
ciados que, em cada caso, são aceitos rejeitado em conjunto, isto é, se pode
como verdadeiros. Do significado dos negar, sob três aspectos: sob o aspecto
atos de fala expressivos também se se- da justiça que, em referência a um con-
guem diretamente obrigações de ação, texto normativo, o falante pretende para
porque o falante especifica aquilo que a ação que projeta (ou indirectamente
não pode ser contrariado ou cair em para estas mesmas normas); sob o as-
contradição no seu comportamento. pecto da verdade, que o falante pre-
Graças à base de validade da tende, com a sua emissão, para um
comunicação endereçada ao entendi- enunciado (ou para pressuposições de
mento, pode, portanto, um falante, ao existência do conteúdo proposional do
assumir a garantia de desempenhar uma anunciado nominalizado), e, finalmente,
pretensão de validade suscetível à crí- sob o aspecto da veracidade que o fa-
tica, fazer um ouvinte aceitar a oferta lante pretende para a emissão ou mani-
que comporta o seu ato de fala e, com festação de experiências subjetivas a
ele, conseguir um efeito de ajuntamento que tem acesso privilegiado. Na inten-
que assegura o contato para o prosse- ção comunicativa do falante está pre-
guimento da interação. sente (a) executar a ação apropriada em
Os efeitos ilocucionários de relação ao contexto normativo dado,
vínculo, no entanto, só podem alcançar para que possa ser estabelecida entre ele
eficácia empírica em um grau social- e o ouvinte uma relação interpessoal
mente relevante, porque as ações comu- reconhecida como legítima; (b) fazer
nicativas estão inseridas em contextos um enunciado verdadeiro (ou pressupo-
do mundo da vida que asseguram um sições de existência pertinentes), de
amplo consenso de fundo. O que im- modo que o ouvinte possa aceitar e
plica que o peso dos riscos de falta de compartilhar o conhecimento do falante;
acordo entre duas ou mais pessoas, - ou e (c) manifestar veridicamente as suas
da falta de aceitação de uma situação, opiniões, intenções, sentimentos, dese-
de uma decisão ou de uma opinião, -

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jos, etc, para que o ouvinte possa dar no mundo; uma atitude expressiva, que
credibilidade ao dito. um sujeito que faz uma apresentação de
A análise das pretensões de va- si mesmo manifesta algo do seu interior
lidade que tem por meta primeira a co- diante de um público, a que tem acesso
munidade de convicções normativas, privilegiado; e, finalmente, a atitude de
conhecimento proposicional e confiança conformidade com as normas, em que
recíproca, fornece, em segundo lugar, a um membro de um grupo social atende
chave para a identificação das funções ou viola as expectativas legítimas do
básicas do entendimento linguístico. A comportamento (HABERMAS, 1984, v.
linguagem serve (a) para o estabeleci- 1, pp. 390-420) 8.
mento e para a renovação de relações (d) Prática comunicativa coti-
interpessoais em que o falante se refere diana e mundo da vida. Por fim, a aná-
a algo no mundo das ordens legítimas; lise praticada nos termos da pragmática
(b) para a exposição ou pressuposição formal, que parte dos atos de fala alta-
de estados e eventos, com os quais o mente idealizados, isolados e elementa-
falante faz referencia a algo no mundo res, tem que ser desenvolvida até a cir-
dos estados de coisas existentes; e (c) custância de onde resultem reconhecí-
para a demonstração de experiências, ou veis os pontos de contato para uma pes-
seja, a autorepresentação do próprio quisa das tramas complexas da ação e
sujeito, no qual o falante faz referencia das formas e estilos de vida comunicati-
a algo no mundo subjetivo, a que tem vamente estruturadas. Trata-se aqui, em
acesso privilegiado. primeiro lugar, do problema funda-
A estas funções respondem, em mental de como se relaciona o signifi-
terceiro lugar, os modos básicos do em- cado contextual de um ato de fala com o
prego da linguagem; destes modos de- significado literal dos elementos da ora-
vem derivar um amplo espectro de for- ção e das orações referidas. Busca-se
ças ilocucionárias cunhadas em cada mostrar que o significado literal de-
idioma. Só alguns tipos ilocucionários pende dos complementos fornecidos
possuem um caráter tão universal, que pelo contexto que representa a situação
resultam diretamente aptos para caracte- e pelo pano de fundo que representa o
rizar um modo básico. Neste sentido, as mundo da vida. Mas, essa relativização
promessas e os mandatos podem repre- do significado das expressões linguísti-
sentar o uso regulador da linguagem, as camente estandartizadas não conduz a
constatações e as afirmações ao uso uma dissolução contextualística de
constatativo, e as confissões ao expres- constantes semânticas, quer dizer, para
sivo. um consequente relativismo do signifi-
Os tipos puros do uso da lin- cado. Isso porque, as formas e os estilos
guagem orientado à compreensão, sobre de vida particulares não apenas ofere-
todos os casos típicos de emprego de cem os ares de família, mas, também,
orações normativas, orações assertivas e neles se repetem as infraestruturas uni-
orações expressivas, oferecem, em versais do mundo da vida (HABER-
quarto lugar, bons modelos para a aná- MAS, 1987, v. 2, p. 429 e ss.; v. 2, p.
lise das referências ao mundo ou a rela- 193 e ss.).
ções com o mundo e com as atitudes
básicas que o falante adota ao se referir
a algo no mundo. Para os conceitos de 8
O autor ainda não fez nenhum estudo sobre
mundo objetivo, mundo subjetivo e uma lógica pragmática que pudesse explicar a
mundo social correspondem uma ati- conservação de validade no trânsito regulado de
tude objetivante, que um observador um modo de comunicação para outro. Sobre as
neutro possui sobre algo que acontece transferências intermodais de validade, ver,
Habermas (1984, v. 1, p. 422, nota 84).

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Para esta forte tese não basta parte da função de compreensão se en-
considerações relativas à teoria do sig- contram também, agora, a de coordena-
nificado. É necessário, nessa direção, ção da ação e a da socialização dos
em segundo lugar, mostrar que, entre os atores. Sob o aspecto da compreensão,
componentes estruturais dos atos de fala os atos comunicativos servem para o
elementares, por um lado, e as funções fornececimento de um saber cultural-
que os atos de fala podem cumprir na mente acumulado: a tradição cultural,
reprodução do mundo da vida, por ou- como já observado, se reproduz através
tro, se dão as conexões internas. do meio que representa a ação orientada
Fez-se corresponder assim, até à compreensão. Sob o aspecto de coor-
agora, os componentes proposicionais, denação da ação esses mesmos atos co-
ilocucionários e expressivos, que devem municativos servem ao cumprimento de
ser reconhecidos no formato normal de normas ajustado ao contexto definido
qualquer ato de fala elementar, em rela- em questão: a integração social também
ção às cognições ou conhecimentos, e se cumpre através desse meio. Sob o
em relação às obrigações e expressões. aspecto de socialização, finalmente, os
Mas, se si trás junto os correlatos pré- atos comunicativos servem à construção
linguísticos que são conhecidos através de controles internos de comporta-
das investigações sobre o comporta- mento, e, em geral, à formação de es-
mento animal, - a partir da perspectiva truturas de personalidade: uma das
de uma história evolutiva, e de forma a idéias básicas de Mead é a de que os
estabelecer uma comparação, - se vê processos de socialização se realizam
como estes tiveram que experimentar através de interações linguisticamente
uma mudança ao acederem ao nível mediadas (HABERMAS, 1987, v. 2, pp.
linguístico. 91-111).
As percepções e as representa- Resta, como terceira tarefa, a de
ções, de forma semelhante ao compor- por a pragmática formal em relação com
tamento adaptativo, adotam uma estru- as abordagens empíricas, de modo que
tura proposicional. As solidariedades os instrumentos analíticos veiculem
geradas ritualmente, e as obrigações uma flexibilidade suficiente para lidar
frente a um coletivo, são clivadas, no com a complexa prática cotidiana. Caso
plano de ação regida por normas, pelo contrário, o conceito normativo de ação
reconhecimento intersubjetivo das nor- orientada à compreensão pode ser usado
mas vigentes, por um lado, e por moti- para uma pesquisa sistemática dos ní-
vos de ação em conformidade com as veis linguísticos da realidade (como o
normas, por outro lado. jogo, a ficção, as piadas, a ironia, etc) e
As expressões relacionadas ao para as patologias da linguagem (HA-
corpo, que surgem espontaneamente, BERMAS, 1984, v. 1, pp. 419-427).
perdem o seu caráter involuntário, deste 5 - digressões (a) Os planos da
modo, quando são substituídas por ação social e da integração social.
emissões linguísticas ou interpretadas Considera-se a ação comunicativa e a
por meio delas. As emissões ou mani- ação estratégica como dois tipos de ação
festações expressivas servem assim a social, que representam uma alternativa
intenções comunicativas, e podem ser a partir da perspectiva do próprio
usadas intencionalmente. agente; os participantes da interação,
Este assentamento das cogni- mesmo que de forma intuitiva, têm que
ções, obrigações e expressões, sobre escolher entre uma atitude orientada ao
uma base linguística, pode explicar por êxito ou uma atitude orientada para o
que os meios linguísticos de comunica- entendimento. No entanto, é necessário
ção cumprem determinadas funções: à
frisar, as estruturas da atividade teleoló-

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gica e as estruturas da comunicação só presenta a formação linguística de con-


podem ser separadas por fins analíticos. senso.
Estas estruturas, contudo, são Uma interação em que um trata
diferentemente compostas, segundo o o outro como objeto de influências
tipo de ação. Nas interações estratégi- passa por essa dimensão da intersubjeti-
cas, também, os meios de comunicação vidade linguísticamente gerada. Deste
são usados no sentido de um uso da lin- modo, no marco das influências causais
guagem orientada pelas consequências. recíprocas, não têm como e não podem
Aqui, a formação linguística do con- transmitir conteúdos culturais, nem in-
senso não funciona, como um meca- tegrar grupos sociais ou socializar ne-
nismo de coordenação da ação, do nhum sujeito.
mesmo modo que na ação comunica- Embora que, para a reprodução
tiva. material do mundo da vida, o relevante
Na ação comunicativa os parti- da ação social seja o aspecto da ativi-
cipantes da interação executam os seus dade teleológica, para a reprodução
planos tendo em vista um acordo comu- simbólica do mundo da vida, porém, o
nicativamente alcançado, embora que as importante é o aspecto da compreensão.
ações coordenadas mesmas mantenham Daí se segue a correspondência aqui
o seu caráter de atividades teleológicas. proposta entre as formas de reprodução
A atividade teleológica constitui, por- e os tipos de ação.
tanto, um componente, tanto da ação Uma correspondência biunívica
orientada para a compreensão como da apenas ocorre entre o mundo da vida
ação orientada para o êxito. Em ambos simbolicamente reproduzido e a ação
os casos, as ações implicam em inter- comunicativa. Esta imagem se complica
venções no mundo objetivo. um pouco mais quando não se considera
Segundo a finalidade da ação os plexos de reprodução material a par-
estas podem incluir, também, ações tir da perspectiva interna dos sujeitos
instrumentais, quer dizer, mudanças agentes, que tratam de dominar a sua
manipulativas de objetos físicos. As situação orientando-se a consecução de
ações instrumentais podem, portanto, um fim, mas que os objetualiza como
apresentar-se como componentes em sistemas.
ações sociais de ambos os tipos. A reprodução material do
Na reprodução material do mundo da vida não se reduz, assim, nem
mundo da vida, que se efetua por meio mesmo nos casos limites, às dimensões
da atividade teleológica, participam tão abarcáveis que possam ser entendi-
tanto ações estratégicas quanto ações das como o resultado pretendido de uma
comunicativas. Em contrapartida, a re- cooperação coletiva. Geralmente, ela se
produção simbólica do mundo da vida efetua como um cumprimento de fun-
depende apenas da ação orientada para ções latentes, de funções que vão além
o entendimento. das orientações de ação dos participan-
A manutenção do substrato tes. Agora, na medida em que os efeitos
material, naturalmente, é um prérrequi- agregados das ações cooperativas aten-
sito para a manutenção das estruturas dem aos imperativos de manutenção do
simbólicas de um mundo da vida. En- substrato material, estes plexos de ação
tretanto, a apropriação de tradições, a podem se estabilizar funcionalmente,
renovação da solidariedade, e a sociali- quer dizer, por conexão retroalimenta-
zação dos indivíduos necessitam da tiva por reconhecimento das consequên-
hermenêutica natural da comunicação cias colaterais funcionais. Estas funções
cotidiana e, portanto, do meio que re- latentes das ações exigem que se intro-
duza o conceito de um plexo sistêmico

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das consequências da ação e dos resul- volvido pelo autor no Erste Zwischen-
tados da ação, que vai além do emara- betrachtung9 (HABERMAS, 1984, v. 1,
nhamento ou da concatenação das ori- pp. 351 e ss.) pode ser realizado, assim,
entações da ação. esta teoria também tem consequências
As sociedades podem ser con- para a resolução de problemas filosófi-
sideradas, assim, sob o aspecto do cos. Contudo, em primeiro lugar, esta
mundo da vida e sob o aspecto de sis- teoria pressupõe, do mesmo modo, uma
tema. No interior de cada um desses contribuição à teoria do significado.
aspectos, tem-se que contar com diver- Ao dar prosseguimento no inte-
sos mecanismos de integração social rior de uma abordagem da semântica
neles contidos. veritativa, a pragmática formal faz deri-
De novo, apenas se dá uma cor- var a compreensão de uma emissão lin-
respondência unívoca entre a ação co- guísticamente estandartizada do conhe-
municativa e a integração social. No cimento das condições gerais em que
entanto, os mecanismos de integração um ouvinte pode aceitar a emissão. Um
sistêmica partem ou operam sobre os ato de fala é entendido, assim, quando
resultados e as consequências da ativi- se sabe o que o torna aceitável. Do
dade teleológica, ou seja, sobre os efei- ponto de vista do falante, as condições
tos sobre que, tanto as ações comunica- de aceitabilidade são idênticas às condi-
tivas como as ações estratégicas podem ções do seu êxito ilocucionário. A acei-
provocar no mundo objetivo. tação não vem definida em um sentido
Mas, há uma classe de meca- objetivista a partir da perspectiva do
nismos sistêmicos que não são igual- observador, mas, desde a atitude per-
mente compatíveis com os dois tipos de formativa dos participantes na comuni-
ação: aqui são destacados, especial- cação.
mente, os meios de controle ou de re- Um ato de fala será chamado de
gulação, tais como o dinheiro e o poder. "aceitável" se satisfizer as condições
Estes meios de comunicação ampla- necessárias para um ouvinte tomar uma
mente deslinguistizados governam um posição com um "sim" frente à preten-
tráfico social amplamente fora das nor- são de validade trazida pelo falante.
mas e dos valores sociais e dos meca- Estas condições não podem ser satis-
nismos de formação linguística de con- feitas de forma unilateral, nem relati-
senso, - especialmente tendo em vista os vamente ao falante, nem relativamente
subsistemas de ação econômica e de ao ouvinte; antes, se trata de condições
ação administrativa "racionais com ori- de reconhecimento intersubjetivo de
entação a fins", que têm sido autonomi- uma pretensão linguística que, de um
zado frente aos contextos do mundo da modo típico para cada classe de atos de
vida. Assim, como estes meios de re- fala, fundou um acordo, especificado
gulação ou contrôle forçam a passagem em termos de seu conteúdo, sobre as
da ação comunicativa a uma interação obrigações relevantes para a interação
regida por meios resulta, aqui, por sua que acompanha.
vez, uma correspondência unívoca, ou A teoria da ação comunicativa
ao menos clara, entre a ação estratégica, se propõe como tarefa, ademais, inves-
por um lado, e os sistemas de ação dife-
9
renciados através de meios, por outro Habermas se refere aqui ao capítulo III do tomo
lado. I do seu livro Teoria do agir comunicativo. Na
tradução em português da Martins Fontes a
(b) Consequências filosóficas. tradução dada para Erste Zwischenbetrachtung
A teoria da ação comunicativa é talhada se encontra como ‘Primeira Consideração
no molde das necessidades da teoria da Intermediária’. Consultar a tradução para o
sociedade, mas, se o programa desen- português em Habermas (2012, v.1, pp. 473-
581). [Nota do tradutor].

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tigar a "razão" inscrita na própria prá- plano, a unidade da razão vem assegu-
tica comunicativa cotidiana e recons- rada processualmente, quer dizer, medi-
truir, a partir da base de validade do ante o procedimento que representam o
discurso, um conceito não reduzido de desempenho e as resoluções argumen-
razão. Ao se partir do emprego não co- tativos de pretenções de validade. Uma
municativo do conhecimento proposi- teoria da argumentação erguida nos
cional em ações orientadas à consecu- termos de uma pragmática formal pode,
ção de fins, se toma uma predecisão em deste modo, com base nos diferentes
favor do conceito de racionalidade cog- papéis das pretensões de validade na
nitivo-instrumental que, cunhou com ação comunicativa, distinguir entre dis-
tanta força através do empirismo a auto- tintas formas de discurso e esclarecer as
compreensão da modernidade. relações internas entre esses tipos de
Este conceito traz consigo co- discursos.
notações de uma autoafirmação acom- Por fim, a teoria da ação comu-
panhada pelo êxito, ativadas por um nicativa torna os seus determinados im-
controle informado, e uma inteligente pulsos críticos que, - desde Humboldt
adaptação, às condições de um entorno (até Austin e Rorty), - vêm ocorrendo
contingente. Ao se partir, no entanto, do no seio da filosofia da linguagem. A
emprego comunicativo do conheci- teoria da ação comunicativa critica a
mento proposicional em atos de fala, orientação unilateral da filosofia oci-
toma-se uma predecisão em favor de um dental pelo mundo do ser. A este pre-
conceito mais amplo de racionalidade domínio do pensamento ontológico cor-
que se conecta com as velhas idéias so- responde o privilégio de que é objeto o
bre o logos. conhecimento em epistemologia e em
O conceito de racionalidade teoria da ciência, assim como da im-
comunicativa traz consigo conotações portância metodológica que cobra ora-
que, em última instância, se remontam à ção assertiva da semântica.
experiência central da capacidade de O estudo pragmático-formal
unir sem coações e de fundar consensos dos processos de compreensão pode,
que possui um discurso argumentativo enfim, dissolver essas fixações. Contra
em que diferentes participantes superam estas unilateralizações ontológicas e
a subjetividade inicial de suas concep- cognitivistas pode fazer valer essa com-
ções e, graças à comunidade de convic- preensão descentrada do mundo que
ções racionalmente motivadas se asse- entrelaça, a limine, o mundo objetivo
guram, simultaneamente, da unidade do com o mundo social e o mundo subje-
mundo objetivo e da intersubjetividade tivo e exige uma orientação simultânea
do plexo da vida social em que se mo- visando às pretensões correspondentes
vem. Mas, essa contraposição é já o de validade, que são a verdade proposi-
resultado da tentativa disparatada de cional, a justeza normativa e veracidade
interromper o momento cognitivo-ins- ou a autenticidade.
trumental da razão desse conceito mais
Referências
amplo de razão.
Certamente que, no plano das BLAU, Peter. Exchange and Power in
culturas de especialistas, as orientações social life. New York: 1964.
racionais têm-se separado hoje até tal DAHRENDORF, Ralph. Class and
ponto que a elaboração reflexiva sobre class conflict in industrial society. Stan-
questões de verdade, questões de justiça ford, CA: Standford, University Press,
e questões de gosto se atêm a uma ló- 1959.
gica interna distinta para cada uma des-
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New York: Doubleday Anchor, 1967.

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Paulo: Martins Fontes, 2012.

Abstract: In this important text, the author reviews the theories of action in the social
sciences to establish in them a critical parameter which lays the foundation of the con-
cept of communicative action within his theory of communicative action. Keywords:
theories of action, communicative action, world, world of life

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