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5 Sistema social

O conceitode sistema social, tal como formulado


por Niklas Luhmann, é um dos temas mais controversos
das ciências sociais do fim do século XX. Não pela sua
novidade,já que outros sociólogosmuito antes do autor
já haviam dado centralidade ao conceito, como fez Tal-
cott Parsons, na análise social (RODRIGUES, 2007, 2003).
Não obstante Luhmann seguir tal tradição, o autor apre-
senta uma diferente compreensão do sistema social, in-
corporando elementosnovos na conceituaçãoe propon-
do novos significados para termos antigos. Desta postura
reformuladora do conceito, segue o uso por Luhmann de
outros conceitos de seu arcabouço teórico, como auto-
poiésis, autorreferência, diferença sistema/entorno, ope-
ração, Sentido, comunicação e dupla contingência. Deve-
-se pois, para indicar com precisão do que se fala quando
Sefala em sistema social, articular tais conceitos em um
arcabouçoteórico coerente.

Talcott Parsons e a Teoria dos Sistemas Sociais

Talcott Parsons foi o formulador da proposta es-


trutural-funcionalistapara a teoria social, uma vertente
sociológica americana que se tornou dominante em boa problema da dupla contingencia da açüo, ou sqa. o fao de
parte do século passado, legando frutos até hoje. Seu tra- que, na interação, as possibilidades de açÃode ego e de alter
balho pioneiro, The sctructure ofsocial action, de 1937,foi são contingentes —já que ego tem possibilidades Ilunttadas
uma revisão crítica de uma geração anterior de sociólogos de ação, alter teria reaçóes igualmente ilimitadas produ-
europeus cujos trabalhos se apresentavam, ao autor, como zindo, no limite, uma impssibiiiddde de comumcaçüo, o que
empreendimentos teóricos convergentes. Tais autores -- levaria, concomitantemente. à impossibilidade de reprodu
Weber, Durkheim, Marshal e Pareto —buscavam saídas çâo da sociedade. Este fenómeno, que se nos apresenta de
ao individualismo utilitarista, o qual fora também alvo forma objetiva, pressupõe para a sua superação um 5tstema
das críticas de Parsons. A síntese de Parsons, dos autores simbólico compartilhado que faz com que a reaçáo de alter
acima, não trata de um agrupamento de conceitos, pelo "adquira para ego o significado de Uttldconsequência apro-
contrário, busca a sistematização de uma teoria baseada priada da conformidade ou desvio de ego das normas de
empiricamente, a chamada "Teoria Voluntarista da Ação" um sistema simbólico compartilhado" (PARSONS•.SEIIL.S.
(PARSONS, 1966, p. 12). Tal teoria articula a discussão 1951, p. 16).
da ordem social em Durkheim, com as investigações we- Isso significa.por sua vez. que a cletsao
de fins e a delimitação dos metos nao é
berianas em torno da ação social, ou seja, propunha uma
algo que está à disp€xsjçáodo hvre arbí
síntese de propostas teóricas aparentementeirreconciliá- trio de cada um dos Individuos, mas que
veis, uma teoria estrutural e uma teoria individualista. devem existir determtnaçoes sociazsque
55 os antecedam l. I A sociedade, antes que
Para tanto, utiliza a unidade de análise "sistema social" .
os Indivíduos se disponham a atuar.
Pode-se dizer que Parsons foi o sociólogo que elaborou a
está Integrada pela moral. pelos valores.
proposta mais avançada de seu tempo para uma teoria dos pelos símbolos normativos. Portanto. a
sistemas sociais na sociologia. sociedade náo é possível se prcvtamentc
Como ficará mais evidente em obras posteriores, nio está integrada sob a forma de st.stema
(LVIIMAN.N, 1996, p. 32)
para Parsons "açáo é sistema", e os sistemas sociais são defi-
nidos como "constituídos pela interação direta ou indireta
dos seres humanos entre si" (1976, p. 49). O que Parsons Parsons, com a ideia de "ststema simbólico com.
queria era uma teoria da sociedade e, para isso, era neces- partilhado", Integra teoricamente a açáo em sistemas ge-
sária a síntese ação-estrutura. Surge, nessa concepção, o rais específicos para entender seu curso, e, para Isso, cna
um modelo em tabelas cruzadas que orientam o esquema
tim]mei0 da açào soc1aLOu seja, busca relacionar os tun-
55. A discussão dos sistemas sociais será feita, por Parsons,em óra damentos da açao aos determinantes úncionais de cada
posterior, The Social System, de 1951.

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sistema social, como a economia e a política. Estes siste- •fÊy;•.
personalidades a realização de metas e, finalmente, aos
mas gerais de açâo eram definidos com relação à interação organismos comportamentais a adaptação (PARSONS,
concreta e estudados por meio do esquema AGIL,isto é, as 1974). O quadro abaixo apresenta o esquema em termos
quatro funções que todo sistema deveria apresentar para dos sistemas sociais.
existir e que surgem em função das combinações possí- Quadro 1 Sistema social geral
veis. São elas: adaptação (Adaptation), realização de metas
Ação
(Goal-attainment), integração (Integration) e manutenção
Instrumental consumatório
de padrões latentes (Latency). Cada uma das funções ca-
Adaptação Realização de metas
racterizaria sistemas particulares "por processos e estru- Economia Política
turas com elas relacionados, assim como por meios gerais
que controlam tais processos" (MÜNCH, 1999, p. 184). Integração
Manutenção de padrões latentes
Com esse modelo pode-se observar vários siste- Instituições culturais Sistema legal

mas e subsistemas coexistindo. Por exemplo, no nível mais


abstrato da condição humana, o sistema fisico-químico é
controlado por meio da ordem empírica e é responsável Fonte: Adaptado de Luhmann, 1996.

pela adaptação. O sistema orgânico se encarrega dos fins


especificados, e são controlados pela saúde do organismo; A combinaçãoentre instrumental e exterior,por
o sistema télico, por sua vez, se encarrega das condições exemplo,cria o componente adaptação,processo em que
transcendentais da existência; e, finalmente, o sistema ge- os elementos exteriores ao sistema são instrumentaliza-
ral da ação que é controlado pelos limites semânticos e é dos para a satisfação de determinadas necessidades. Cabe
responsável pela integração. A Física e a Química seriam à economia tal processo para a reprodução da sociedade
as disciplinas responsáveis pelo conhecimento do sistema em todas as suas dimensões. Como sistema social, a eco-
físico-químico, a Biologia do sistema orgânico, e assim nomia, da mesma forma, necessita também completar as
por diante. A Sociologia, por sua vez, se encarregaria do variáveis relativas à ação, quer dizer, "repetir dentro de si
sistema geral da ação, e nele Parsons imprime o mesmo mesmo as possibilidades de combinação das quatro células
esquema analítico, subdividindo-o em quatro subsiste- gerais: adaptation - goal attainment - latent pattern main-
mas, os sistemas sociais, os sistemas culturais, os siste- tenance —integration" (LUHMANN, 1996a, p. 36). Este
mas de personalidadee os organismoscomportamen- processo faz com que surja a história da sociedade, como
tais: ao sistema social cabe a integração, ao sistema cul- diferença no tempo da realização no sistema social das
tural a manutenção de padrões latentes, aos sistemas de quatro funções necessárias a sua reprodução. Portanto,

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em momentos específicos, cada sistema completa as exi- uma concepção mais acurada da realidade social, e acres-
gências de reprodução de modo diferente, tal como indi- centa outros problemas daí decorrentes, como o obstáculo
cado, por exemplo, pela função de integração. Sem esta geográfico, que faz com que se entenda a sociedade como
última haverá descompassona reprodução das funções realidades territoriais (LUHMANN, 1997a).
requeridas, já que é tal função que regula os intercâm- Uma nova definição de sistema emerge, então, em
bios simbólicos entre os sistemas. Eles são integrados em decorrência desses problemas, e tal definição se aprovei-
grande parte por meios simbólicos característicos, como tou dos desenvolvimentos mais recentes da Teoria Geral
o dinheiro, no que diz respeito à economia e o poder, re- dos Sistemas, Agora, os sistemas seriam estruturas autor-
lativo à política. referenciais, autocentradas, recursivas, ou seja, fechadas
Porém, tal Teoria dos Sistemas Sociais não deu con- sobre si mesmas. Esta nova disposição teórica é adotada,
fundamentalmente,pelos biólogos chilenos Humberto
ta do problema dos limites dos sistemas, embora já esbo-
Maturana e Francisco Varela através da Teoria da Auto-
çasse algumas possibilidades com a ideia de diferenciação
poiésis, que buscou descrever a fenomenologia biológica
funcional. Importa para esta teoria consideraro sistema
da célula através da descrição de seus próprios proces-
social constituído por indivíduos em interação, o que con-
sos, sem recorrer a elementos externos (MATURANA &
sequentemente define o sistema social em termos de exclu-
VARELA, 1997; MATURANA, 1997). De forma sintéti-
são/inclusão dos membros. Isto é o que se conhece como
ca, tal teoria postula que um sistema vivo se caracteriza
obstáculo antropológico-humanista da teoria da sociedade
pela capacidade de produzir por si mesmo seus elementos
(LUHMANN, 1997a). No entanto, um "membro de um sis-
constituintes. Estes sistemas, ao se reproduzirem, se dife-
tema social" tem a individualidade, a consciência, o siste-
renciam do entorno e, assim, podem também observar e
ma nervoso, suas preferências, e estas dimensões não estão distinguir, criando por si só o que lhes é interno, caracte-
diretamente relacionadas ao sistema ao qual pertence. Nes- rístico, específic056. Três tipos de sistemas realizam ope-
te sentido, necessita-se de um conceito mais abstrato, capaz rações de observação e distinção: biológicos (orgânicos),
sua
de dar conta de uma unidade que supere o indivíduo, psíquicos (por meio da consciência) e sociais (por meio
psicologia, seu sistema biológico, ou seja, definir um "ato- de comunicações) (LUHMANN; 1996a, p. 55). Entre os
-unidade" que seja puramente social. Por outro lado, a con- sistemas sociais podem-se distinguir ainda três outros
cepção de sistema aberto, com intercâmbio de significados, sistemas autorreferenciais, quais sejam, as interaçóes, as
como desenvolvido por Parsons, não consegue dar conta organizações e as sociedades.
de diversas questões tais como a complexidade, a identida-
de ou a unidade. Nesse obstáculo Luhmann (1997a) reco-
nhece problemas teóricos, entraves ao desenvolvimento de 56. Cf. capítulo "Sistema".

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5.2 Os sistemas sociais autorreferenciais Por isso se diz que o sistema é fechado operativa-
mente: ele mesmo é condiçã0'do seu operar. Atente-se,
Sistemassociais então passam a ser considerados, no entanto, para evitar toda sorte de mal-entendidos, que
nesta nova etapa da Teoria dos Sistemas Sociais, sistemas
tal fechamento não significa um isolamento em relação
autorreferenciais, ou seja, capazes de operar com base em
a todo o tipo de causalidade externa. Se assim o fosse,
suas próprias operações constituintes. Para se compreender esta-
teríamos que pensar a sociedade como um sistema
tal transformação é necessário fazer novamente referência- so-
cionário, reticente a mudanças, já que seus sistemas
ao conceito biológico de autopoiésis. Assim como a célula toda a
ciais estariam em condições, posto que controlam
viva só é capaz de se reproduzir utilizando seus próprios
causalidade, de exercer um controle absoluto sobre todo
elementos, ou seja, só é capaz de reprodução por meio de
o tipo de causalidade (LUHMANN, 1997b). Qualquer
autorreprodução, os sistemas sociais também se reprodu-
perturbação e irritação externa poderia ser controlada
zem com base em suas próprias operações constituintes.
desde dentro, com segurança, evitando efeitos fora do
Ao contrário de outras concepções de sistemas, os sistemas
controle operativo.Porém, não é isso que se quer dizer
sociais não podem importar componentes.Tanto o siste-
com o conceito de fechamento operacional. O que se pro-
ma orgânico quanto o social não expõem sua complexi-
põe com este conceito é que o fechamento é a condição da
dade autoconstruída à intervenção externa de qualquer
abertura do sistema ao ambiente: o sistema só é capaz de
outro sistema do entorno. Surge, desse modo, a diferença
estar atento e responder à causalidade externa por meio
sistema/entorno, que deve estar pressuposta sempre que o
das operaçõesque ele próprio desenvolveu.A autorre-
sistema opera, já que do contrário o sistema se dissolveria
ferência é a condição do contato com o entorno, e está
na totalidade do mundo. O sistema deve se diferenciar de
precisamente relacionada com o fechamento operacional
um entorno, referir-se a si mesmo, para que seus processos
do sistema, sem o qual não existiria nem sistema, nem
constituintes adquiram identidade frente a diversidade.
observação possível, nem contato.
Sistemas sociais operam, por isso, fechados sobre
Portanto, a diferença entre sistema e entorno, o fe-
sua própria base operativa, diferenciando-se de todo o
chamento operacional e a autorreferência são processos
resto e, portanto, criando seu próprio limite de operação.
O sistema se produz como uma forma definidores dos sistemas sociais. Graças a estas condições
que separa uma parte interior, o sistema, é que o sistema social é capaz de diferenciar e indicar - a
e uma parte exterior, o entorno; a parte si mesmo e a um entorno produzindo estruturas pró-
interior da forma é a parte sobre a qual
prias e reproduzindo o limite operativo. Não há operação
só se pode reproduzir as operações que
produzem a forma, a diferença, o sistema sistemica fora de seu limite operativo, embora toda ope-
(LUHMANN, 1997b, p. 51). ração sistêmica signifique riscos para os outros sistemas

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sociaisS7.Este limite, quando se indica o sistema social, é "um sistema social surge quando a comunicação desen-
um limite de sentido (LUHMANN) 1995), como veremos volve mais comunicação, a partir da mesma comunicação"
à frente. Esta condição de reprodução, autopoiésis com fe- (LUHMANN, 1996a, p. 68). Somente a comunicação é
chamento operativo, envolve seleçãO,já que a estrutura do um processo genuinamente social porque pressupõe gran-
sistema não é capaz de responder ponto a ponto às per- de número de sistemas de consciência (psíquicos) e não
turbações do entorno, assumindo-se que este é muito mais pode ser atribuído somente a um deles.
complexo que o sistema. Como diz Luhmann (1995,p. 25 Comunicaçãoé uma síntese de três seleções: (1)
[grifos nossos)): «complexidade, assim, significa ser força- emissão, ato de comunicar (alguém "diz"), (2) informação
do a selecionar". Este desnível, intransponível, de complexi-
("deseja alguma coisa?") e (3) compreensão. Assim, existe
dade é tematizado na própria reprodução autorreferencial
comunicaçãose ego entende que alter tem emitido uma
sistêmica, que busca construir seletivamenteestruturas informação (LUHMANN, 1995). A simples emissão de
internas que garantam a relação, sem, no entanto, sequer uma informação não é uma comunicação, esta só se rea-
aproximar-se do entorno. Diz-se assim que o sistema é liza quando se chega ao entendimento da diferença entre
operativamente cego: se reproduz em um entorno que per- emissão e informação. A compreensão exclui uma série
manece desconhecido para ele (LUHMANN, 2005). de outras possibilidades de comunicação e torna possível
O sistema social, então, se reproduz autopoieti- uma cadeia comunicativa restritaàs seleções processadas.
camente, como se pôde observar. A pergunta que surge Compreender é selecionar, e comunicação é "seletividade
é: O que exatamente no sistema social é reproduzido na
coordenada" (LUHMANN, 1995, p. 154). Deste modo, a
autopoiésis? Qual é o elemento básico de reprodução no
compreensão se apresenta como o limite de um sistema de
sistema social que corresponde à consciência no sistema
comunicação. Com isso, a unidade de análise é concretiza-
psíquico ou à vida nos sistemasbiológicos?Luhmann da na comunicação sistêmica, e seu limite se nos apresenta
responde a estas perguntas com o processo de comunica-
como limites comunicativos estruturados pelo sentido.
ção. Para Luhmann (1995), sistema social é comunicação.
No entanto, e o que pode parecer mais absurdo,
É por meio da comunicação que os sistemas se diferen-
não é o ser humano quem comunica, mas o sistema social.
ciam do entorno, que se complexificam, criam estruturas
A atribuição da comunicação a pessoas particulares é uma
próprias, constroem autorreferência e heterorreferência,
ilusão e um obstáculo epistemológico ao rigor sociológico
enfim, a comunicaçãoé o unit act dos sistemas sociais:
(LUHMANN, 1997a). A comunicação não morre quando
alguém morre e não nasce quando alguém nasce, ela per-
passa a existência de qualquer um. Por esse motivo, deve-
57. Luhmann desenvolveuma teoria do risco, baseada em sua Teoria
dos Sistemas Sociais. Cf. Luhmann, 1992. -se pensar a comunicação como um processo de atualiza-

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ção constante que envolve um grande número de
pessoas, referência ao sentido do sistema (LUHMANN, 1995). As
sem poder ser resumida à consciência de uma única. Ao
comunicações que sucedem desse processo se realizam,
contrário, tanto o sistema social quanto o sistema psíquico portanto, na forma do sentido, este é o amálgama criador
(os unit acts dos sistemas psíquicos são os pensamentos)
de vínculo entre todas as operações que pertencem a sis-
são sistemas que operam autopoieticamente, portanto, temas sociais específicos.
separados. Os seres humanos são o entorno psíquico dos As operações e observações sistêmicasoperam assim
sistemas sociais. vinculadas à ordem do sentido; tudo o que é real e possível
A comunicaçãonão se distingueporque para os sistemas sociais e psíquicos tem sentido. Deve-se
produz uma consciênciacomum coletiva,
ter em conta que o sentido, ao ser atualizado na comunica-
no sentido de uma total compatibilidade
com toda a complexidade subjetiva dos ção (sistema social) e pensamento (sistema psíquico), deixa
indivíduos;a comunicaçãonãopode ope- de fora da atualização uma série de outras possibilidades
rar um consensono sentidode um acordo também disponíveis como possibilidades. Assim, o senti-
completo,e, mesmo assim,a comunica- do opera por meio de seleçóes, gerando a forma, seleti-
ção funciona(TORRES, 1993,p. 15).
vamente estruturada, que o sistema social alcançará no
momento da atualização. Com isso, o sentido é o limite de
No entanto, tanto a consciência como o sistema so- todas as atualizações possíveis, determinando o horizonte
cial, operam por meio do sentido. Sentido é um domínio de possibilidade de atuação sistêmica em relação ao en-
pré-linguístico, mas que é totalmente inerente à lingua- torno. Tanto autorreferência quanto heterorreferência são
gem, sempre portadora de sentido. Ademais, "o sentido construções sistémicas dotadas de sentido.
só pode se referir ao sentido, e só o sentido pode mudar o A atualização é atualização na comunicação. É a
sentido" (LUHMANN, 1995, p. 37), o que é uma condição transformação do improvávelS8 , já que nada garante que o
relacionada à constituição dos sistemas sociais operativa- processo de comunicação irá se concretizar em provável.
mente fechados. Mas o que Luhmann quer dizer com o Os sistemas criam vários mecanismos para a probabilida-
conceito de sentido? Deve-se, para responder, articular os de da comunicação, ou seja, para tornar as seleções de ego
conceitos de complexidade, seleção e autorreferência. O aceita por alter, e vice-versa (LUHMANN, 2001). A con-
-n;
sentido é a forma dos sistemas sociais. Desse modo, ao tingência do sistema social, como sistema de comunicação
se deparar com a inalcançável complexidade disposta, o ancorado em códigos de possibilidades sim/não, faz com
processo de seleção necessário não ocorre de modo ar- que sua continuidade seja condicionada por processos
bitrário, mas guiado autopoieticamente, de forma autor-
referencial. Esta referência aos próprios processos é uma
58. Cf. capítulo "Comunicação"

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comunicativos que limitam o número de possibilidades de Pode-se observar que o esquema AGILde Parsons
de que su-
comunicação, atualizando sua estrutura. Entre sistema e se assemelha a estas investigações, no sentido
o uso
mundo existe incomensurável possibilidade de atuação pera o problema da "dupla contingência", inclusive
e vivência, no entanto, todo sistema se caracteriza por do termo "meios de comunicação simbolicamente genera-
possibilidades limitadas que lhe garante identidade, re- lizados" é uma construção do referencial parsoniano. No
produzida no processo de atualização.A atualizaçãose entanto, se em Parsons estes meios estruturam e resolvem
torna mais provável com o desenvolvimentode «me- tal problema, em Luhmann eles só estruturam: sistema so-
canismos" evolutivos como os meios de comunicação cial é contingência estruturada, não resolvida.
Os meios simbolicamente generalizados
simbolicamente generalizados. Estes meios são o poder
transformam, de maneira profunda, as
(LUHMANN, 1985), a verdade (LUHMANN, 1990), a probabilidades de não em probabilidades
fé, o ter, entre outros. de sim; por exemplo, ao tornar possível
Estes meios, ao contrário do caráter normativo oferecerpagamentospor bens e servi-
ços que se deseja obter. São «simbólicos"
atribuído por Parsons a eles, assumem primariamen-
enquanto utilizam a comunicação para
te na sociedade a função de "asseguraras expectativas" produzir o acordo que por si mesmo é
(LUHMANN, 2005, p. 245) ante a contingência da sele- improvável.Mas são, ao mesmo tempo,
ção. Deve-se pensar aqui as expectativas como os elemen- diabólicos, já que ao se realizarem produ-
zem novas diferenças. Assim, um proble-
tos estruturais que afirmam a identidade sistêmica frente a
ma de comunicação específico se resolve
outras possibilidades estruturais. Afirmam principalmen- mediante um novo ajuste de unidade e
te uma proposta de sentido com maior probabilidade de diferença: quem pode pagar obtém o que
generalização simbólica, ou seja, com maior capacidade deseja; quem não, não... (LUHMANN,
2005, p. 248).
de repetir-se em ulteriores comunicações. Com isso, o sis-
tema adquire certa estabilidade dinâmica, que garante, ao
mesmo tempo, plasticidade e rigidez. O sistema económi- O sistema social terá que, mesmo desenvolvendo
co torna mais provável a aceitação de comunicações nas mecanismos internos de superação da improbabilidade
quais as expectativas de ganho estão disponíveis, assim da comunicação, conviver com a contingência. A utiliza-
como, no sistema científico, as comunicações circulam em çao da linguagem para a simbolização das condições de
torno de paradigmas "verdadeiros". Cada sistema social entendimento e de reprodução de estruturas sistêmicas
cria uma dinâmica interna cujos elementos são dispostos somente reproduz em outro nível condições anteriores de
a superar a contingência das possibilidades de seleção, contingência não estruturada. Os meios simbólicos, como
sempre estruturadas na forma da aceitação ou negação. a verdade, direcionam o sistema da ciência para condições

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mais prováveis de reprodução, canalizando a
complexida- situações determinadas. Assim, a estrutura tem existência
de autoconstruída para níveis de complexidade
inferiores. para além do tempo imediato (existência mimética), ainda
Daí a localização massiva de cientistas ao redor
de poucos que a ação tenha cessado há muito (LUI-IMANN,1998).
paradigmas": estes são meios já selecionados que Deste modo, parece que a ideia Parsoniana e interacionis-
repro-
é
duzem condições de verdade mais prováveis. ta de uma estrutura a partir de relações entre elementos
Nota-se, portanto, uma tendência meramente pro- descartada. Afinal,havendo a mudança dos elementos de-
ele-
babilística, não necessária, de uma inércia operacional veria haver a mudança da estrutura, da relação entre
eo
nos sistemas sociais, de autoconservação. Seus processos mentos, porém constantemente os elementos mudam
esta
internos reproduzem o sentido em comunicações autos sistema reproduz ainda assim sua estrutura. Por isso,
ideia
construídas, que constroem o sistema social e o entorno, modalidade de teoria sistêmica incorpora também a
da
concomitantemente. Sistema social, portanto, deve ser de equilíbrio dinâmico, como se disse anteriormente,
capaz de delimitar, traçar uma linha fronteiriça entre o física das "estruturas dissipativas"de Prigogine (1996).
que é interno (autorreferência) e externo (heterorreferên- O equilíbrio estático, em uma concepção antiga de
cia). Tudo isso se processa por meio do sentido que lhe é sistema aberto, levou a problemas teóricos no que se re-
próprio. Essa dinâmica é evolutiva, a despeito da inércia fere à mudança, os mesmos enfrentados por Parsons ao
processual. É por isso que se considera a sociedade como ser indagado onde, diante de tamanha estruturação sis-
um sistema evolutivo, em contínuo processo de autotrans- têmica, estaria a mudança social. De certo, atualmente, o
formação. Mas o que se transforma propriamente dito? O funcionalismo pós-Parsons trata desta questão em termos
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que muda? Para isso, Luhmann (2005) faz referência à es- de contingências históricas e lutas sociais, coletividades e
trutura de expectativa do sistema. elites (DOMINGUES, 1999).No caso da Nova Teoria dos
Expectativa sistémica liga-se ao conceito de estru- Sistemas,fala-se em mudança quando se faz alusão à de-
tura e, no sistema social, já que sua existência depende da cepção da expectativa que confronta o sistema com sua di-
reprodução de seus elementos (acontecimentos e ações ferenciação estrutural entre segurança/insegurança. Aqui,
[LUHMANN, 1998]), liga-se também à comunicação e à o mais importante é saber se diante da decepção o sistema
ação. As estruturas de expectativa, nestes termos, ordenam estaria disposto a aprender ou não, mudar ou não as ex-
a partir da desordem (desordem como informações não
pectativas, ou seja, se ele apresenta expectativas à aprendi-
estruturadas, internas e externas) as ações requeridas em
zagcm, neste caso fala-se em "expectativas estilizadas como
cognições" ou, se ele estaria disposto a manter a expecta-
tiva ainda que se depare com decepções, neste caso fala-se
59. Paradigma aqui no sentido de Lakatos, ou seja, no sentido de seus como normas» (LUHMANN,
em "expectativas estilizadas
programas de pesquisa. Cf. Lakatos (1989).

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1998,p. 293). Há ainda, dentro destes estilos de conduta, é uma reivindicação nova, mas uma nova conceituação do
novas diferenças, como aquela que corresponde à norma, problema, repensado em termos fenomenológicos e sistê-
conformação/desvio, e aquela que corresponde à cognição, micos. Nesse sentido, deve-se ter como ponto de partida o
saber/não saber. nível da reprodução autopoiética do sistema, ou seja, sua
Em Luhmann, indo adiante, elementos mudam a tendência à autoconservação. Esta tendência estará sendo
despeito da manutenção estrutural. É necessário salien- confrontada com as possibilidades de agir (por meio de
tar que, no nível concreto da reprodução, se se considera seleçóes) em conformidade, divergência ou indiferença
como elemento o acontecimento, não se pode dizer que o em relação à estrutura de expectativa do sistema. Estas
elemento muda já que acontecimentos ocorrem com uma possibilidades estão impressas nas condições da autopoié-
duração momentanea, não durável, irreversível, ao con- sis e definirão as possibilidades de perturbação e transfor-
trário das estruturas: «as estruturas garantem, apesar da mação das estruturas (LUHMANN, 1998,p. 316). Mas, a
irreversibilidade dos acontecimentos, certa reversibilida- posteriori, a despeito do que venha a se consolidar —diver-
de das relações» (LUHMANN, 1998, p. 314). E a relação, gência, conformidade ou indiferença —é necessário que
posto desta forma, a ação continue e ganhe valor de estrutura, aparecendo
só obtém valor estrutural se as relações
em outro momento como expectativa e não como acon-
que se estabelecemem cada caso for-
mam uma seleção de um grande número tecimento. Nesse sentido, a mudança social aparece como
de possibilidades combinatórias, com as guiada pelas próprias possibilidades do sistema, dispostas
vantagens e riscos de uma redução sele- no momento da seleção, como a confirmação da estrutura
tiva, e unicamente se esta seleção pode ou como sua negação: estas duas possibilidades são condi-
manter-se constante, quer dizer, repro-
ções ofertadas previamente "de dentro".
duzida com elementos novos, ao mudar
os elementos (LUHMANN, 1998, p. 259).

Com estes subsídios teóricos pode-se ensaiar uma


teoria mais geral da mudança social que supere uma con-
ceituação meramente incremental, caso a caso, e com isso
conceituar evolução para Luhmann. Toda mudança social
é uma mudança estrutural, já que "só as estruturas man-
têm relativamente constante o continuável" (LUHMANN,
1998,p. 314). Mudanças nos acontecimentos e nas açôes
não necessariamente mudam o sistema. Isso, é claro, não

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