Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Apostila PET
Apostila PET
br
APRESENTAÇÃO
Por ser um tema difícil de ser estudado, você necessitará conhecer e compreender as legislações
nacional e internacional que tratam do tema.
Isso deve-se ao fato de que nelas estão os princípios e valores que a sociedade brasileira e a co-
munidade internacional definiram para o conjunto da humanidade, uma vez que eles são resultados de um
processo histórico complexo no qual vai se afirmando a dignidade humana.
Mas é preciso também compreender alguns aspectos da tortura na sociedade brasileira:
• Como ocorre?
• Qual o perfil das suas vítimas e de seus executores?
• Quais são os mecanismos institucionais para enfrentamento e para provocação de mudanças
culturais, isto é, na forma de pensar presente na sociedade brasileira sobre tal prática criminosa?
• Em quais situações institucionais ocorrem?
• Quais são as dificuldades para a sua prevenção e seu enfrentamento?
Objetivos do curso
Ao final do curso, você será capaz de:
• Identificar a tortura como uma prática histórica;
• Analisar fatos históricos da prática da tortura no mundo e no Brasil;
• Compreender que as legislações nacional e internacional traduzem o resultado do processo
histórico de construção da dignidade humana;
• Analisar as formas e situações de ocorrência do crime de tortura;
• Analisar os locais mais propensos à prática de tortura;
• Identificar os grupos vulneráveis à tortura;
• Caracterizar o perfil das vítimas;
• Elencar as dificuldades para prevenção e o enfrentamento à tortura, bem como os mecanis-
mos institucionais para enfrentamento e para provocação de mudanças;
• Reconhecer o papel do profissional da área de segurança pública em prevenir e combater a
2
tortura.
Estrutura do Curso
O Curso Prevenção e Enfrentamento à Tortura está dividido nos seguintes módulos:
• Módulo 1 – Tortura: aspectos históricos
• Módulo 2 – O Crime de Tortura: legislações Nacional e Internacional
• Módulo 3 – O contexto da tortura
• Módulo 4 – Estratégias institucionais para o enfrentamento da tortura
3 ead.senasp.gov.br
MÓDULO TORTURA: ASPECTOS HISTÓRICOS
1
Apresentação do módulo
Oi! Seja bem-vindo(a) ao primeiro módulo do curso, que é intitulado “Tortura: Aspectos Históricos”!
Este módulo criará condições para que você possa compreender o processo histórico da prática da
tortura. Nesse sentido, você estudará sobre a construção histórica da dignidade humana; a tortura na história
mundial e na história do Brasil.
Está preparado(a) para iniciar?
Então vamos lá!
Objetivos do Módulo
Ao final do módulo, você será capaz de:
• Analisar o processo histórico de construção da dignidade humana;
• Compreender o fenômeno da tortura no processo histórico.
Estrutura do Módulo
• Aula 1 – A construção da dignidade humana
• Aula 2 – Breve histórico do fenômeno da tortura
1.1 Histórico
O significado da expressão dignidade humana é fundamental para o processo histórico que
levou à proibição universal da tortura e para as políticas de Estado que visam tanto a prevenção quanto
o enfrentamento a tal prática.
E por processo histórico entende-se as mudanças e/ou permanências na vida dos homens e mu-
lheres e das sociedades ao longo dos anos e/ou séculos até os nossos dias, como resultados das lutas sociais.
Manifestam-se como acontecimentos, mentalidades, leis etc.
Embora possa parecer que é um conceito abstrato, tem sua concretude na existência diária da pes-
soa humana e das sociedades, seja na relação entre os indivíduos, seja na relação estabelecida entre eles,
a sociedade e o Estado.
O conceito de dignidade humana pode ter muitos sentidos. A dignidade humana já foi entendida
como sendo apenas atributo dos homens e mulheres que pensam e também já foi considerada como apenas
um princípio do direito.
Não obstante as diversas concepções defendidas, a dignidade humana aparece sempre como o
fundamento inicial de todo direito.
A dignidade humana está presente em todos os homens e mulheres, e o Estado e a sociedade
devem trabalhar para efetivá-la e criar as condições para protegê-la de qualquer violação.
4
Importante!
Lembre-se que a dignidade humana é um valor moral inerente à pessoa e se refere a todo ser hu-
mano em qualquer situação – ela não pode ser negada a ninguém. É com base na dignidade humana que os
cidadãos e as cidadãs têm direitos civis, políticos, econômicos, culturais e sociais.
A tortura não é só um crime contra o direito à vida. É uma crueldade que atinge a
pessoa em todas as suas dimensões, e a humanidade como um todo. (DA SILVA,
2005, p. 205).
A Revolução Francesa, inspirada no Direito natural, promulga a Declaração dos Direitos do Ho-
mem e do Cidadão, em 1789. Pela primeira vez na História era afirmado que todos os homens e mulheres
nascem iguais em dignidade.
Os três princípios e valores afirmados por essa Revolução (a solidariedade, a liberdade e a frater-
nidade), que devem ser orientadores do Estado e das relações humanas na sociedade, emanam do que hoje
se entende por dignidade humana.
Somente após os horrores da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a comunidade internacional
afirma a dignidade da pessoa humana como um direito fundamental.
Durante a Segunda Guerra Mundial, a Alemanha Nazista empreendeu uma política na qual expul-
sou, escravizou e assassinou cerca de 4,2 milhões de pessoas, em sua grande maioria judeus. O próprio Esta-
do empreendia uma política de discriminação com base na religião, raça e orientação sexual.
Nesse contexto, a Organização das Nações Unidas, criada pela Carta de São Francisco, é fundada
como uma resposta da comunidade internacional à Segunda Guerra Mundial em 1945.
Três anos após a Segunda Guerra Mundial, a ONU proclama, durante a sua Assembleia Geral em 10
de dezembro de 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH).
Para saber mais sobre a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), acesse: http://www.
dudh.org.br/
A Carta de São Francisco em conjunto com a DUDH marcam o início do Direito Internacional dos
Direitos Humanos, no qual os países passam a ter a obrigação de proteger a população local e passam
a ser responsabilizados pelas violações dos direitos dessa população.
5 ead.senasp.gov.br
De olho na tela
Assista ao vídeo “A História dos Direitos Humanos” produzido pelas Nações Unidas para explicar
o que são Direitos Humanos. Acesse: https://www.youtube.com/watch?v=uCnIKEOtbfc.
Obs.: O idioma é inglês, mas há legenda em português.
A dignidade da pessoa humana está definida em todos os Direitos Humanos e refere-se a todos
os seres humanos, sem distinção, e compreende também que ninguém tem mais ou menos dignidade do
que o outro.
Compõem o que se entende por dignidade humana o direito à vida, à saúde, ao devido pro-
cesso legal, a não ser torturado, ao trabalho, à educação, à moradia, a não discriminação com base em
credo, cor ou classe social, entre outros direitos.
Para mais informações, recomenda-se ler os Pactos de Direitos Civis e Políticos da ONU e de
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU, disponíveis em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
decreto/1990-1994/D0592.htm e http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0591.htm, res-
pectivamente.
Para refletir...
Com base no que estudou, você já consegue compreender qual a relação da dignidade humana
com a prática criminosa da tortura, bem como com a sua função de profissional da Segurança Pública diante
dela?
Ótimo! Você acaba de concluir o estudo dos fatores responsáveis pela construção da Dignidade
Humana.
Na próxima aula você verá sobre o histórico da tortura.
Pronto(a)? Então vamos lá!
6
Histórico da Tortura
História Mundial História do Brasil
Idade Antiga Colonização
Idade Média Constituição de 1824
Idade Moderna Constituições de 1891, 1934 e 1946
Idade Contemporânea Período de 1964 a 1985
A patirda Constituição de 1988
A Inquisição foi um Tribunal Eclesiástico fundado no final do século XII, no sul da atual França, para
defender a fé católica: vigiava, perseguia e condenava aqueles que fossem suspeitos de praticar outras reli-
giões ou crenças, como a Ciência, por exemplo. Mas quem executava as penas era o Estado, em geral com o
uso sistemático da tortura, que fazia parte dos Tribunais na maior parte dos Estados europeus da época que
dariam origem aos atuais países.
Ainda segundo a mesma autora, a tortura foi utilizada “até o século XIV (...) como um instrumento
processual” (MARQUES DE JESUS, 2009, p.33). Nesse período, os juízes acreditavam que não havia outra
forma de se alcançar a verdade e, ao mesmo tempo, depurar a alma do criminoso se não fosse pela dor
até a morte.
Numa estrutura social profundamente marcada pela desigualdade, o alvo preferencial dos tormen-
tos estava naqueles que deveriam ser dominados no corpo e mente.
Essa característica da tortura como instrumento de dominação é parte da explicação sobre a sua
7 ead.senasp.gov.br
permanência na sociedade brasileira contemporânea, ainda que sob um regime democrático, mas com pro-
fundas desigualdades sociais.
A partir do século XV, ela passou a ser utilizada também como instrumento para garantir a segu-
rança do Estado.
Somente a partir do século XVIII com o movimento Iluminista que a prática de tortura passou
a ser questionada e entendida como contrária aos direitos humanos.
Isso porque o Iluminismo, promovido pelos intelectuais europeus, foi um movimento filosófico,
político, social, econômico e cultural, que defendia o uso da razão, a liberdade, a autonomia e a emancipação
como forma de progresso da humanidade.
Apesar do novo entendimento, “a tortura continuou fazendo parte da prática de interrogatórios e
de punição nos séculos XIX e XX, e permanece no século XXI” (MARQUES DE JESUS, 2009, p. 46).
Cabe mencionar que as violações de direitos humanos da Segunda Guerra Mundial levaram às Na-
ções Unidas a criar uma série de instrumentos para a proteção e defesa dos direitos humanos, além da
Declaração Universal dos Direitos Humanos, mencionada anteriormente.
A Carta de Londres (1945), a qual define o estatuto do Tribunal de Nuremberg, e a Convenção
para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio (1948) são alguns instrumentos que estabelecem
as primeiras definições da tortura como crime lesa humanidade.
Importante!
A tortura foi proibida na Declaração Universal dos Direitos Humanos e no Pacto Internacional dos
Direitos Civis e Políticos, entretanto a sua prática foi utilizada em larga escala na Guerra de Libertação da Ar-
gélia e nos regimes autoritários na América Latina, entre outros conflitos durante a Guerra Fria. Em resposta
à pressão da comunidade internacional, as Nações Unidas adotaram a Convenção Contra a Tortura e Outros
Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes em 1984.
Para saber mais sobre a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, De-
sumanos ou Degradantes em 1984, acesse o arquivo “Convenção contra tortura”, que está nos anexos do
curso.
A partir desses documentos internacionais e também das experiências dos Tribunais de Nuremberg,
para a Antiga Iugoslávia, de Ruanda, as Nações Unidas adotaram, em 2002, o Estatuto de Roma, o qual cria
o Tribunal Penal Internacional e define a tortura como crime contra humanidade.
8
preferencialmente como crime de oportunidade” (MAIA, 2006).
A tortura é comum em nosso país desde sempre. Essa prática nefanda, verdadei-
ra herança maldita, trazida pelos portugueses “educados” nos métodos da dita
sagrada Inquisição, permanece até hoje, passando por Colônia, Império, Inde-
pendência, República, ditaduras e imperfeitos Estados de Direito, com governos
de todos os tipos. Os indígenas, os hereges ou infiéis, os negros escravos e des-
cendentes, os “vadios”, os marginais de toda sorte, os internos nos manicômios,
os “subversivos” e opositores políticos, os presos ditos “comuns”, os pobres em
geral, os não cidadãos... Todos potencialmente vítimas dos abusos e da violência
extremada. Para punir, disciplinar e purificar (sic), arrancar confissões e informa-
ções, intimidar, “dar o exemplo”, vingar, derrotar física e moralmente o suposto
inimigo ou, simplesmente, o indesejável. (SOARES, 2010, p. 21)
A fundação do Brasil como colônia se deu por meio de empresas econômicas de portugueses, “que
tinham poder de vida e de morte sobre os africanos – considerados mercadorias – e sobre os índios – consi-
derados selvagens, muitas vezes equiparados às feras, animais sem alma” (MAIA, 2006).
Essa estrutura econômica que determinava um poder de dominação sobre aqueles com os “corpos
expostos” foi apontada pelo Estado brasileiro no primeiro Relatório ao Comitê contra a Tortura, da ONU:
A Constituição de 1824 afirmava em seu artigo 179, incisos 19 e 21, que “desde já ficam abolidos
os açoutes, a tortura, a marca de ferro quente, e todas as mais penas cruéis”. No entanto, até a Abolição,
os trabalhadores escravizados foram submetidos às práticas de tortura por ordem de senhores e com a
conivência do Estado.
As Constituições republicanas de 1891 e de 1934 nada afirmavam sobre a tortura. Mesmo após
o Estado Novo, regime ditatorial que durou entre 1937 e 1945, que teve na tortura contra presos políticos
uma das estratégias para a manutenção do poder, a Constituição de 1946 não proibiu a prática de tor-
tura.
De 1964 a 1985 o Brasil esteve sob uma ditadura civil-militar e a tortura foi utilizada contra todos
e todas considerados subversivos, ou seja, as pessoas que se opunham ao governo militar (em especial,
estudantes, artistas, políticos opositores, líderes religiosos e sindicais e militares).
A tortura era utilizada para alcançar uma verdade e também instalar o terror como estratégia de
dominação, em outras palavras, a prática disseminada da tortura contra todos e todas considerados subver-
sivos (qualquer opositor), buscava não somente alcançar uma verdade da forma mais rápida possível, mas
também instalar o terror como estratégia de dominação.
9 ead.senasp.gov.br
Embora não expressasse claramente a prática da tortura como instrumento de dominação, de con-
trole social e de investigação, a Doutrina de Segurança Nacional da ditadura justificava com a existência
do “inimigo interno” o crime de lesa humanidade, com inspiração para sua fundamentação nos militares
franceses durante a guerra de independência da Argélia:
Após a redemocratização, o Estado brasileiro aprovou três leis que tratam das violações dos direi-
tos humanos ocorridos durante a ditadura civil-militar.
A primeira foi a Lei n.° 9.140/1995 que reconheceu como mortas dezenas de pessoas que, em
razão de participação ou acusação de participação em atividades políticas no período de 2 de setembro de
1961 a 15 de agosto de 1979, encontravam-se desaparecidas. A lei também criou a Comissão Especial sobre
Mortos e Desaparecidos (CEMDP).
Para saber mais sobre a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos (CEMDP), acesse: http://
www.sdh.gov.br/assuntos/mortos-e-desaparecidos-politicos/programas/comissao-especial-sobre-mortos-
-e-desaparecidos-politicos
10
Para saber mais sobre o relato preliminar, acesse: http://youtu.be/VcPRSGQVR08
As leis são importantes ações do Estado para garantir o direito à memória e à verdade no
Brasil, em especial sobre o período da Ditadura Civil-Militar. Para aprofundar um pouco mais os
conhecimentos sobre a temática, leia o artigo “Políticas de memória: o que é e para que serve?” de
Caroline Silveira Bauer.
Para ler o artigo, acesse o arquivo “Políticas de memória”, que está nos anexos do curso.
Importante!
Por fim, é necessário pontuar que a tortura praticada por profissionais públicos atualmente
não pode ser resumida apenas como uma herança da ditadura civil-militar. Há outros fatores
que pressionam o profissional de segurança pública a buscar uma suposta solução rápida para
os problemas da segurança pública: aumento da violência, aumento do tráfico nacional e inter-
nacional de drogas e uma demanda da população por mais segurança.
Finalizando...
11 ead.senasp.gov.br
ros para aterrorizar o inimigo, como punição e também como meio de obter informações.
• As violações de direitos humanos da Segunda Guerra Mundial levaram as Nações Unidas a
criar uma série de instrumentos para a proteção e defesa dos direitos humanos, além da Declaração Univer-
sal dos Direitos Humanos.
• A prática da tortura esteve presente na história do Brasil desde a colonização, trazida pelos
portugueses e praticada contra os indígenas, os escravos africanos e depois os trabalhadores livres. O mo-
delo de dominação política, econômica, social e cultural exigia que ela fizesse parte da realidade.
Exercícios
Considerando tudo o que foi visto neste módulo, a seguir, são apresentadas três questões de múl-
tipla escolha. Leia atentamente o enunciado e marque a alternativa que você julga correta.
Pronto(a) para começar?
Então vamos adiante!
Atividade 1.
Considerando o termo dignidade humana é correto afirmar que:
a) A dignidade da pessoa humana está definida em todos os Direitos Humanos, mas refere-se
somente aos grupos específicos sujeitos à vulnerabilidade.
b) A dignidade da pessoa humana está definida apenas nos Direitos Humanos dos países que
assinaram a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
c) O conceito de dignidade humana se restringe a não discriminação com base em credo, cor ou
classe social, entre outros direitos.
d) A dignidade humana é um valor moral inerente à pessoa e se refere a todo ser humano em
qualquer situação – ela não pode ser negada a ninguém.
Atividade 2.
Diante das violações de direitos humanos na Segunda Guerra Mundial a ONU criou uma série de
instrumentos para a proteção e defesa dos direitos humanos, EXCETO:
Atividade 3.
Considerando a história do Brasil pode-se afirmar, de forma resumida, que com o restabelecimento
da democracia o papel da Segurança Pública passa a ser:
12
Gabarito
13 ead.senasp.gov.br
O CRIME DE TORTURA: LEGISLAÇÕES NACIONAL E
MÓDULO INTERNACIONAL
2
Apresentação do módulo
Olá! Seja bem-vindo(a) ao módulo “O crime de tortura: legislações nacional e internacional”.
No módulo anterior você estudou sobre alguns aspectos históricos da tortura.
Já, neste módulo, você estudará os principais tópicos das legislações nacional e internacional, cujo
objetivo é a erradicação da tortura na comunidade humana.
A partir dos conceitos, você irá explorar alguns casos de tortura analisados pela Corte Europeia de
Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Lembre-se!
É Importante que você não perca de vista o breve trajeto histórico da ocorrência da tortura, estuda-
do no módulo anterior.
Siga adiante e bons estudos!
Objetivos do Módulo
Ao final do módulo, você será capaz de:
• Identificar o crime de tortura;
• Analisar os principais pontos contidos nas legislações nacional e internacional voltadas para
erradicação da tortura;
• Reconhecer a importância de contribuir nas medidas para a prevenção e enfrentamento à
tortura;
• Conhecer os principais casos de cortes internacionais sobre o crime de tortura.
Estrutura do Módulo
• Aula 1 – Os instrumentos internacionais e a legislação nacional sobre tortura
• Aula 2 – Jurisprudência internacional sobre tortura
14
1.1. Instrumentos internacionais
A tortura era admitida como parte da lei que regulava as relações sociais e foi abolida progressi-
vamente das legislações, embora ainda permaneça ilegalmente como prática escondida do olhar público na
atualidade.
A condenação da tortura pelas constituições de quase todos os Estados do mun-
do [lembra Lamberto Pasolli] não tem significado seu definitivo desaparecimen-
to. Não mais usada como meio de prova regulada pela lei, tem sido aplicada,
todavia, sistematicamente como instrumento infame de domínio político, por
parte de monstruosas tiranias, como a nazista ou comunista, assinaladamente na
idade stalinista, ou mesmo de nações que se definem como civis, como a França
(durante a guerra da Argélia) ou o hodierno Brasil. É de indagar-se atemorizado
se esta barbárie não terá fim. (“Tortura”, in Novissimo Digesto Italiano, v. XIX/428,
apud DA SILVA, 2005, p. 205)
No âmbito internacional, o termo “direitos humanos” apareceu pela primeira vez na Carta de São
Francisco (1945), já a tortura foi mencionada pela primeira vez na Declaração Universal dos Direitos Hu-
manos (1948):
Artigo V - Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou
degradante.
De olho na tela
Assista ao vídeo da campanha “STOP TORTURE” da Anistia Internacional, disponível em: https://
www.youtube.com/watch?v=kqh4qc-QddE
Obs.: O vídeo está em inglês, mas há legenda disponível em português.
No Brasil, a DUDH (Declaração Universal dos Direitos Humanos) tem um valor histórico, pois foi
por meio desse instrumento que a comunidade internacional orientou os países a condenarem a tortura e
adotarem políticas para erradicar essa prática. A DUDH influenciou o ordenamento jurídico brasileiro impul-
sionando a construção da própria Constituição Federal de 1988 – chamada “Constituição Cidadã”.
Até a adoção da Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis Desumanas ou
Degradantes pela ONU, em 1984, a proibição da prática da tortura consta também do Pacto Internacional
sobre Direitos Civis e Políticos em 1966.
Para saber mais sobre a Convenção Contra a Tortura, acesse o arquivo de mesmo nome, que está
nos anexos do curso.
A Convenção Contra a Tortura é importante, uma vez que ela define o crime de tortura:
Para fins da presente Convenção, o termo “tortura” designa qualquer ato pelo
qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencional-
mente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou
confissões; de castigá-la por ato que ela ou terceira pessoa tenha cometido, ou
seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pes-
soas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza;
quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou
outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o
seu consentimento ou aquiescência. Não se considerará como tortura as dores
ou sofrimentos que sejam consequência unicamente de sanções legítimas, ou
que sejam inerentes a tais sanções ou delas decorram.
A Convenção também define ações e medidas para a erradicação da tortura. Nesse sentido, quando
15 ead.senasp.gov.br
os países assinam e ratificam a Convenção, eles se comprometem a:
• Tipificar no seu ordenamento jurídico interno o crime de tortura
• Realizar capacitações para profissionais públicos encarregados da custódia e proteção de
pessoas privadas de liberdade, e para operadores do direito
• Investigar as denúncias de tortura e processar e punir os responsáveis
• Reparar às vítimas de tortura
• Informar periodicamente às Nações Unidas sobre as medidas tomadas pelo Estado para a
incorporação da Convenção Contra Tortura em seu ordenamento jurídico interno
No âmbito das Nações Unidas, a Convenção da Tortura cria o Comitê Contra Tortura (CAT, sigla em
inglês).
O CAT é formado por 25 especialistas na temática, que são responsáveis por avaliar a implementa-
ção da Convenção nos países e podem fazer recomendações a partir dessa avaliação. Os membros podem
também receber denúncias de tortura e, a partir das denúncias, eles podem pedir esclarecimentos ao país
da denúncia, funcionando como um último recurso para aqueles que não conseguiram apresentar a de-
núncia em seu próprio país.
Em 2002, a ONU aprovou o Protocolo Facultativo à Convenção Contra a Tortura e Outras Penas ou
Tratamentos Cruéis, Desumanos e Degradantes, que cria o Subcomitê de Prevenção à Tortura (SPT), que si-
milar ao CAT também está na estrutura das Nações Unidas.
Para saber mais sobre o Protocolo, acesse o arquivo “Protocolo facultativo”, que está nos anexos
do curso.
O SPT é formado por dez especialistas que são responsáveis por visitar os países para realizar
inspeções a locais de privação de liberdade, tais como:
• Presídios;
• Delegacias;
• Institutos socioeducativos;
• Institutos de longa permanência de idosos;
• Abrigos para crianças e adolescentes; e
• Locais que realizam atendimento e tratamento a pessoas com drogadição.
O Protocolo determina que os países criem o Mecanismo Preventivo Nacional (MPN), que tem a
mesma natureza do SPT. Os países ficam obrigados a criar órgãos que tenham a competência para realizar
inspeções a locais de privação de liberdade, sem aviso prévio e com a permissão para fazer registros foto-
gráficos, vídeos e gravações.
As visitas têm por finalidade identificar elementos nesses locais que podem favorecer o crime de
tortura, o que muda o foco da política para preventivo e não apenas reativo quando a violação já ocor-
reu. O Brasil criou o seu Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) por meio da Lei
n.º 12.847 de 2 de agosto de 2013 – O MNPCT será explicado mais à frente.
Ainda no âmbito das Nações Unidas, é importante citar o Estatuto de Roma (2002), que como
mencionado em aulas anteriores, cria o Tribunal Penal Internacional e também tipifica os crimes de lesa
humanidade, entre os quais está a tortura.
16
Art. 7° - Crimes contra a Humanidade
1. Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por “crime contra a humanidade”, qual-
quer um dos atos seguintes, quando cometido no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático,
contra qualquer população civil, havendo conhecimento desse ataque:
a) Homicídio;
b) Extermínio;
c) Escravidão;
d) Deportação ou transferência forçada de uma população;
e) Prisão ou outra forma de privação da liberdade física grave, em violação das normas fundamen-
tais de direito internacional;
f) Tortura;
g) Agressão sexual, escravatura sexual, prostituição forçada, gravidez forçada, esterilização forçada
ou qualquer outra forma de violência no campo sexual de gravidade comparável;
h) Perseguição de um grupo ou coletividade que possa ser identificado, por motivos políticos, ra-
ciais, nacionais, étnicos, culturais, religiosos ou de gênero, tal como definido no parágrafo 3o, ou em função
de outros critérios universalmente reconhecidos como inaceitáveis no direito internacional, relacionados
com qualquer ato referido neste parágrafo ou com qualquer crime da competência do Tribunal;
i) Desaparecimento forçado de pessoas;
j) Crime de apartheid;
k) Outros atos desumanos de caráter semelhante, que causem intencionalmente grande sofri-
mento, ou afetem gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental.
Para os efeitos desta Convenção, entender-se-á por tortura todo ato pelo qual
são infligidos intencionalmente a uma pessoa penas ou sofrimentos físicos ou
mentais, com fins de investigação criminal, como meio de intimidação,
como castigo pessoal, como medida preventiva, como pena ou qualquer
outro fim. Entender-se-á também como tortura a aplicação, sobre uma pessoa,
de métodos tendentes a anular a personalidade da vítima, ou a diminuir
sua capacidade física ou mental, embora não causem dor física ou angústia
psíquica.
17 ead.senasp.gov.br
Importante!
A Convenção Interamericana amplia o conceito de tortura da Convenção da ONU, uma vez que ela
amplia a aplicação para “qualquer outro fim” (diferente da ONU que especifica uma finalidade). Reconhe-
cem-se ainda ações para anular a personalidade da vítima (APT e CEJIL, 2008, p.98).
Exemplo de sentença
Leia o trecho da sentença de mérito, reparação e custos do caso da Penitenciária Miguel Cas-
tro v. Peru (2006) da Corte Interamericana de Direitos Humanos no arquivo “Sentença”, que está nos anexos
do curso.
Vale observar também que a OEA (Organização dos Estados Americanos) dispõe de meios dife-
rentes para auxiliar na implementação dos instrumentos. Enquanto a ONU, tem o CAT e o SPT, a OEA tem a
Comissão e a Corte Interamericana, que tem mecanismos mais sofisticados para receber denúncias de
tortura por pessoas ou entidades contra seus próprios países. A Comissão pode fazer recomendações e
a Corte pode condenar um país no âmbito internacional por uma violação dos direitos humanos.
Para determinar quais atos constituem tortura, a Comissão e a Corte têm toma-
do em conta tanto elementos objetivos, tais como o período de tempo durante
o qual se infligiu a pena ou o sofrimento, o método utilizado para produzir dor,
a finalidade, as circunstâncias gerais sociopolíticas e a arbitrariedade, ou algo
similar, a privação de liberdade, assim como também elementos subjetivos como
por exemplo a idade, o gênero e a vulnerabilidade particular da vítima. (APT e
CEJIL, 2008, p.98)
18
No dia 7 de março de 1997, policiais militares foram filmados extorquindo dinheiro, torturando e
assassinando um homem durante uma blitz na Favela Naval, na região de Diadema, em São Paulo. A filma-
gem foi ao ar em 31 de março no Jornal Nacional.
Nesse contexto, atendendo uma demanda da própria sociedade, a Lei n.º 9.455 de 7 de abril de
1997 foi aprovada.
De olho na tela
Diferente da definição das Nações Unidas, a Lei entende que a tortura pode ser feita tanto no con-
texto público quanto no contexto privado, conforme Art. 1°:
I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico
ou mental:
a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa;
b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;
c) em razão de discriminação racial ou religiosa;
II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave
ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter
preventivo.
Pena - reclusão, de dois a oito anos.
§ 1º Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a so-
frimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida
legal.
§ 2º Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-las,
incorre na pena de detenção de um a quatro anos.
§ 3º Se resulta lesão corporal de natureza grave ou gravíssima, a pena é de reclusão de quatro a dez
anos; se resulta morte, a reclusão é de oito a dezesseis anos.
§ 4º Aumenta-se a pena de um sexto até um terço:
I - se o crime é cometido por agente público;
II – se o crime é cometido contra criança, gestante, portador de deficiência, adolescente ou maior
de 60 (sessenta) anos; (Redação dada pela Lei n.º 10.741, de 2003)
III - se o crime é cometido mediante sequestro.
§ 5º A condenação acarretará a perda do cargo, função ou emprego público e a interdição para seu
exercício pelo dobro do prazo da pena aplicada.
§ 6º O crime de tortura é inafiançável e insuscetível de graça ou anistia.
§ 7º O condenado por crime previsto nesta Lei, salvo a hipótese do § 2º, iniciará o cumprimento da
pena em regime fechado.
Importante!
19 ead.senasp.gov.br
Elas estão disponíveis nos anexos do curso.
Para saber mais sobre a Lei n.º 12.847, de 02 de agosto de 2013, acesse: http://www.planalto.gov.
br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2013/Lei/L12847.htm
Com a criação do Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, o Estado Brasileiro con-
solida a formalização de uma rede de atores em nível nacional e local que favorece a articulação de ações
para prevenção e enfrentamento à tortura. A partir da rede, facilita-se o intercâmbio de boas práticas, or-
ganização de medidas para implementação de recomendações feitas no âmbito do Mecanismo Nacional,
negociação de soluções para questões de privação de liberdade levadas para organismos internacionais,
dentre outras ações.
O Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, formado por 11 representantes do Go-
verno Federal e 12 representantes da sociedade civil, deverá atuar na prevenção e enfrentamento à tortura
a partir:
• Do acompanhamento, da avaliação e da proposição de ações de programas; e
• Da atuação dos distintos órgãos e segmentos sociais envolvidos na erradicação desta viola-
ção.
Ou seja, a natureza do seu fazer sustenta-se na formulação, desenvolvimento e monitoramento
de políticas públicas afetas ao campo. Ao Comitê também compete acompanhar trâmites de apuração
administrativa e judicial, bem como de proposições legislativas, dando encaminhamento às recomendações
advindas de inspeções nos centros de detenção. A sistematização de informações a partir da manutenção e
construção de um banco de dados relacionado às denúncias e às respostas institucionais e estatais também
envolve o rol de competências esperadas do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura.
Já o Mecanismo Nacional é composto por 11 especialistas independentes (peritos), que têm a
competência de realizar inspeções a locais de privação de liberdade nos termos do Protocolo Facultativo.
Eles também têm a competência para requerer a realização de perícias oficiais e seus relatórios poderão ser
utilizados como meio de prova em ações judiciais.
A proposta do MNPCT é apontar situações de riscos que levariam à prática da tortura, bem como,
prováveis encaminhamentos para a sua solução. Assim como o SPT, a atuação tem uma perspectiva proativa,
20
não apenas reativa.
Além do SNPCT, do CNPCT e do MNPCT, previu-se também a instalação de um Comitê de Peritos
Federais que terão autonomia para ingressar a qualquer momento em instituições fechadas para inspecio-
nar possíveis violações dos Direitos Humanos.
Apesar das legislações nacionais e internacionais trazerem definições sobre o crime de tortura, o
uso da palavra “tortura” ainda gera um pouco de confusão.
Por esse motivo, você estudará a seguir algumas decisões de órgãos e cortes internacionais de di-
reitos humanos para elucidar o conceito.
Siga adiante!
O Sistema Europeu começou a funcionar antes mesmo da Organização das Nações Unidas esta-
belecer seus principais instrumentos internacionais sobre direitos humanos. Em relação ao tema do nosso
curso, o primeiro grande caso de tortura foi julgado em 1978, enquanto a Convenção Contra Tortura foi
aprovada pela Assembleia Geral da ONU somente em 1984. Dessa forma, você encontrará decisões da Corte
Europeia que são contrárias ao entendimento da ONU sobre tortura e outros tratamentos ou penas cruéis,
desumanos ou degradantes.
Veja a seguir três casos bastante elucidativos das decisões da Corte Europeia de Direitos Hu-
manos.
A primeira decisão da Corte foi no caso Irlanda vs. Reino Unido, referente aos métodos de tortura
que os governos utilizavam para enfrentar os atos de grupos terroristas da Irlanda do Norte durante a década
de 1970. O governo utilizava “cinco técnicas de tortura” para abordar os indivíduos ligados ao Irish Republi-
can Army (IRA), Exército Republicano Irlandês: as pessoas eram mantidas em pé encostadas em uma parede,
encapuzadas, submetidas a barulhos e privadas de sono, de alimentos e de água.
21 ead.senasp.gov.br
A Corte reconheceu que o Art. 3º da Convenção Europeia de Direitos Humanos foi violado,
mas estabeleceu a violação em termos muito específicos:
Proibição da tortura – “Ninguém pode ser submetido a torturas, nem a penas ou tratamentos
desumanos ou degradantes”.
• Tortura
• Tratamentos ou penas cruéisdesumanos e degradantes
Nota: A decisão é anterior à Convenção Contra Tortura da ONU, porém a Corte mantém sua inter-
pretação e julga os casos mais recentes diferenciando “tortura” de “tratamento desumano e degradante”.
Contudo, como você estudará ao longo da aula, o entendimento da Corte Europeia é restrito à própria Corte
Europeia e não encontra eco em jurisprudência de outros órgãos internacionais.
A Corte Europeia é muito criticada por não alterar a sua jurisprudência, mas vale registrar
que apesar de manter a diferenciação, na prática, a Corte entende que tortura ou outros tratamentos cruéis,
desumanos ou degradantes são proibidos e inderrogáveis.
O adjetivo inderrogável refere-se, neste caso, aquilo que não pode ser admitido ou não cabem
exceções.
Veja essa interpretação da Corte Europeia no caso Jalloh vs. Alemanha, de 2006:
Jalloh foi visto tirando um papelote de sua boca, entregando-o para outra pessoa e receben-
do dinheiro em pelo menos duas situações por policiais alemães. Entendendo que os papelotes eram drogas,
os policiais o abordaram e Jalloh engoliu o papelote.
Os policiais procederam a uma revista corporal e não encontraram outros papelotes, mas,
sabendo que ele havia engolido um deles, solicitaram ao promotor que Jalloh recebesse medicação que cau-
sasse vômitos e regurgitação. O promotor acatou o pedido e ordenou que o médico ministrasse a medicação
22
em Jalloh. No hospital, o médico explicou o procedimento, porém Jalloh não aceitou receber a medicação.
Com o auxílio de quatro policiais, o médico ministrou o remédio à força. Assim, ele encontrou 0.21 gramas
de cocaína, e, logo após o procedimento, a polícia prendeu o suspeito.
Nos três dias seguintes, enquanto detido, Jalloh reclamou que só conseguia beber sopa e que
sangrava com frequência pelo seu nariz. Dois meses e meio depois, ele fez uma endoscopia, na qual os mé-
dicos concluíram que ele tinha uma irritação na baixa área do esôfago causada por refluxo. Entretanto, não
relacionaram o diagnóstico à medicação forçada. Jalloh foi solto cinco meses depois e alegou que, desde o
uso do emético, faz tratamento para o estômago. O governo alemão alegou que nunca o tratou.
Proibição da tortura – “Ninguém pode ser submetido a torturas, nem a penas ou tratamentos
desumanos ou degradantes”.
23 ead.senasp.gov.br
pelos métodos menos invasivos. A maneira pela qual a ação foi realizada
foi suficiente para despertar na vítima sentimentos de medo, angústia
e inferioridade, que eram capazes de humilhar e rebaixá-lo. Além dis-
so, o procedimento implicou em riscos para a saúde do requerente, não
menos importante por causa da incapacidade de obter uma anamnese
adequada com antecedência. Embora esta não era a intenção, a medida
foi implementada de uma forma que fez com que a vítima sofresse dores
físicas e sofrimento mental. Ele foi, portanto, submetido a tratamento
desumano e degradante (CORTE EUROPEIA, Jalloh v. Alemanha, 2006, pa-
rágrafo 82 – tradução informal).
É importante ressaltar que há muitas críticas à interpretação da Corte Europeia sobre o que
é tortura. No caso analisado, quatro juízes apresentaram votos separados, sendo que dois entenderam que
Jalloh sofreu tortura. É interessante ler os trechos dos votos dos juízes Bratza e Zupancic.
O Juiz Bratza faz uma ponderação sobre interesses públicos e uso da tortura, enquanto o Juiz
Zupancic é mais didático e defende que o caso se trata de tortura. Veja no arquivo “Votos dos juízes”, que
está nos anexos do curso.
24
Seguindo sua jurisprudência, a Corte entendeu que Gäfgen é uma vítima e que foi submetido
a tratamento desumano e degradante, porém fez uma ponderação, que está disponível no arquivo “Ponde-
ração da jurisprudência”, que está nos anexos do curso.
A partir da leitura dos casos, você pode observar que a Corte estabelece uma hierarquia
entre tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes. A diferenciação, apesar de
controversa, não tem efeitos práticos no que se refere à possibilidade de abrir exceções ao Art. 3º da Con-
venção Europeia de Direitos Humanos. Os profissionais do Estado ainda que submetidos a uma situação de
“ticking-bomb” ou a de um estado de emergência não podem recorrer à tortura para, por exemplo, obter
informações.
Proibição da tortura – “Ninguém pode ser submetido a torturas, nem a penas ou tratamentos
desumanos ou degradantes”.
Comissão:
Entre outras atribuições, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos recebe denúncias
de indivíduos ou grupos de indivíduos contra os Estados. Ela analisa a admissibilidade da denúncia e o mé-
rito da violação. As discussões podem permanecer no âmbito da Comissão ou o caso pode ser encaminhado
para a Corte Interamericana de Direitos Humanos, a depender de uma série de aspectos processuais e polí-
ticos do Sistema Interamericano.
Corte
Enquanto no Conselho da Europa, os indivíduos acessam diretamente à Corte, no Sistema
Interamericano, os indivíduos acessam primeiramente a Comissão e posteriormente (e somente, por meio
da própria Comissão) a Corte. Outra diferença é que a Corte Interamericana analisa novamente a denúncia e
emite sua sentença, porém a sentença não pode ser revista, assim como ocorre no Sistema Europeu.
Assim como você leu algumas decisões da Corte Europeia de Direitos Humanos, leia também
mais quatro casos da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Em sua primeira decisão, a Corte Interamericana já foi obrigada a se manifestar sobre tortura
e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes. O caso Velásquez Rodríguez vs. Honduras
(1987) se refere ao desaparecimento forçado de Manfredo Velásquez em 1981. No período de 1981 a 1984,
houve aproximadamente 100 casos de pessoas desaparecidas em Honduras em situações muito semelhan-
tes: geralmente eram pessoas consideradas perigosas para a segurança nacional de Honduras, tais pessoas
eram sequestradas pelo Exército e por policiais militares, eram submetidas à tortura, detidas e assassinadas.
25 ead.senasp.gov.br
a década de 1970 e 1980. O entendimento da Corte sobre tortura, em especial sua observação sobre
a prova da tortura, é inovador.
Veja a seguir:
A Comissão e a Corte utilizam parâmetros para analisar o crime de tortura, entretanto não se consti-
tuem em categorias rígidas como ocorre na Corte Europeia. Você já estudou sobre esses parâmetros no item
“tortura, tratamento degradante ou tratamento desumano?”, porém é importante reiterar que a questão
principal é verificar se há intenção em gerar sofrimento com vistas a anular a personalidade
da vítima ou diminuir sua capacidade.
É necessário também considerar:
• O período de tempo no qual se infligiu o sofrimento;
• O método utilizado;
• As circunstâncias políticas e sociais;
• A privação de liberdade;
• A idade, sexo e vulnerabilidade da vítima.
O foco da análise da Corte Interamericana é mais voltado à intenção do Estado, de suas
condições políticas e sociais, do que a análise das consequências para a vítima – como é “medido” pela
Corte Europeia. Para ilustrar essa observação, será apresentado, a seguir, o caso Godínez Cruz vs. Honduras
(1989), no qual a Corte analisou uma situação muito semelhante ao caso Velásquez Rodríguez vs. Honduras.
O Estado foi acusado de sequestrar, torturar e matar pessoas que considerava uma ameaça
para a sua segurança nacional de forma sistemática no início dos anos 1980.
183. As violações da Convenção não podem ser julgadas aplicando regras que
levam em conta fatores de natureza psicológicos, orientados a estabelecer a
culpabilidade individual. Para efeitos dessa análise, é irrelevante a intenção ou
a motivação do agente que violou materialmente os direitos reconhecidos pela
Convenção, na medida em que a infracção pode ser estabelecida mesmo que o
26
agente não tenha sido identificado individualmente. O que é decisivo é saber
se uma violação específica de direitos humanos reconhecidos pela Conven-
ção ocorreu com o apoio ou a tolerância do poder público, ou se ele agiu de
maneira que essa ocorreu na ausência de prevenção ou de forma impune.
Em última análise, o que está em questão é saber se a violação dos direitos
humanos decorre do não cumprimento por um Estado de sua obrigação de
respeitar e garantir esses direitos, nos termos do artigo 1.1 da Convenção.
184. O Estado tem o dever legal de prevenir, adotando medidas razoáveis, as vio-
lações dos direitos humanos, de investigação de maneira séria, utilizando todos
os meios à sua disposição, as violações que tenham sido cometidas no âmbito
de sua jurisdição, com vistas a identificar os responsáveis, para impor as sanções
pertinentes e assegurar uma compensação adequada vítima. (CORTE INTERA-
MERICANA, Godínez Cruz vs. Honduras, Sentença de mérito, 1989, pars. 183 e
184 – tradução informal)
Essa discussão sobre o papel do Estado em relação à tortura é essencial para compreender
porque as discussões sobre tortura no Brasil são focadas mais no profissional público do que no pro-
fissional privado. Não se trata de uma perseguição ao profissional público. À luz do direito internacional, o
Estado deve tomar todas as medidas que estiverem ao seu alcance para evitar violações de direitos humanos
e, se ainda ele incorrer em uma violação, é seu dever adotar todas as ações para investigar e responsabilizar
os profissionais e compensar as vítimas da violação.
Nesse sentido, apesar de a Lei n.º 9.455/1997 responsabilizar também profissionais privados,
o dever primordial do Estado é com os profissionais públicos. Isso não significa que as torturas que ocorrem
em âmbito privado não sejam graves, porém a própria Lei n.º 9.455/1997 aumenta a gravidade da pena para
o profissional público, refletindo o entendimento internacional de que a tortura quando é praticada por um
profissional público é muito grave e, por isso, ela é o foco das políticas públicas e discussões públicas.
Veja a seguir mais dois casos de tortura que ocorreram em locais de detenção.
O caso Cantoral Benavides resume todo o entendimento da Corte sobre a relação entre tor-
tura e privação de liberdade.
O primeiro aspecto analisado foi a impossibilidade de Cantoral Benavides comunicar-se com
sua família, enquanto detido pelo Estado. A Corte entende que o isolamento prolongado bem como a falta
de comunicação com sua família constituem tratamentos cruéis desumanos e degradantes, pois geram so-
frimento psíquico e moral, ferindo a sua integridade como pessoa humana.
O segundo aspecto analisado refere-se às condições da privação de liberdade. Cantoral Be-
navides foi submetido a aproximadamente um ano de isolamento em uma cela pequena, sem ventilação e
sem luz natural. Ele não recebeu assistência médica adequada. Apoiada em sua própria jurisprudência (caso
Loayza Tamayo vs. Peru), a Corte estabeleceu que condições insalubres associadas à falta de assistência mé-
dica são uma violação ao Art. 5º da Convenção, sendo uma forma de tratamento cruel e desumano. Adicio-
nalmente, a Corte entende que a própria condição da prisão arbitrária, como no caso de Cantoral Benavides,
coloca o indivíduo em uma situação de vulnerabilidade, facilitando a violação de outros direitos humanos.
Por fim, a Corte pondera que as violências físicas sofridas por Cantoral Benavides provocaram,
além de intensa dor, sofrimento emocional. Ainda que ele tenha sido considerado como inimigo da pátria no
caso em questão, não há justificativas para submetê-lo a péssimas condições de encarceramento.
104. Em resposta a todas as circunstâncias do caso e o contexto nos quais ocor-
27 ead.senasp.gov.br
reram os fatos, o Tribunal considera, sem dúvida razoável, que pelo menos al-
guns dos atos de agressão examinado neste caso podem ser classificado como
tortura, física e psíquica. O Tribunal considera ainda que esses atos foram pla-
nejados e deliberadamente infligidos contra o Sr. Cantoral Benavides por pelo
menos duas finalidades. Na fase prévia à condenação, para eliminar a sua força
mental e forçá-lo a depor contra si ou para confessar alguma atividades ilegal.
Na fase após a condenação, para submetê-lo a castigos adicionais à privação de
liberdade. (CORTE INTERAMERICANA, Cantoral Benavides, Sentença de mérito,
2000 – tradução informal)
No caso Penal de Castro Castro vs. Peru, há mais uma decisão da Corte em relação a um local
de privação de liberdade, entretanto, diferente do caso anterior, a Corte analisa os procedimentos dos profis-
sionais com as mulheres presas. É importante observar que há uma série de elementos para serem analisados
nesse caso, porém, considerando o tema do curso, o foco será dado ao tratamento dado às mulheres quando
levadas da penitenciária ao hospital.
Na Penitenciária Castro Castro, as mulheres que necessitavam de atendimento médico eram
encaminhadas para o Hospital de Saúde da Polícia. Elas ficavam pobremente cobertas por roupas e perma-
neciam sob a atenção de profissionais de segurança pública homens durante o tempo todo.
A Corte também se pronunciou sobre o procedimento de revista vexatória, no qual as presas enca-
minhadas ao Hospital de Saúde da Polícia eram submetidas. As mulheres, já praticamente desnudas, passa-
vam por um procedimento semelhante ao exame de toque, feito por ginecologistas. No caso em epígrafe, o
toque era feito por homens usando diretamente seus dedos. Ademais, o toque era feito com rispidez e uma
mesma mulher era tocada por vários homens encapuzados.
309. Além disso, no presente caso, foi provado que uma interna, que foi transfe-
rida para o Hospital de Saúde da Polícia passou por uma revista vexatória vaginal
(feita com o dedo) por várias pessoas encapuzadas de uma só vez, com extrema
rispidez, sob o pretexto de revistá-la (...).
311. O Tribunal reconhece que uma violação sexual de uma interna detida por
um agente do Estado é um ato especialmente grave e abominável, tendo em
vista a vulnerabilidade da vítima e do abuso de poder exibido pelo agente (...).
Além disso, a violação sexual é uma experiência muito traumática, que pode ter
consequências graves (...) e causa um grande dano físico e psicológico, deixando
a vítima “humilhada física e emocionalmente”, uma situação dificilmente supe-
rada com o passar do tempo, ao contrário do que acontece outras experiências
traumáticas (...).
28
A Corte entende que aquelas mulheres passavam por dois tipos de abusos sexuais distintos:
• um em relação a constante presença dos profissionais do Estado enquanto elas estavam des-
nudas; e
• outro em relação à revista vexatória que eram submetidas.
Nesse contexto, a Corte responsabilizou o Estado por violar o Art. 5º da Convenção Americana e o
Art. 2º da Convenção Americana para Prevenir e Punir a Tortura, pois os abusos sexuais geraram efeitos
que se constituem em tortura.
Finalizando...
Neste módulo você estudou que:
• O termo “tortura” designa qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou
mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informa-
ções ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou terceira pessoa tenha cometido, ou seja, suspeita de ter
cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discri-
minação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público
ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou
aquiescência. Não se considerará como tortura as dores ou sofrimentos que sejam consequência unicamente
de sanções legítimas, ou que sejam inerentes a tais sanções ou delas decorram. (Convenção Contra a Tortura
e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis Desumanas ou Degradantes pela ONU)
• Na Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 5 de outubro de 1988, o
Estado brasileiro afirma os princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. Seu Art. 1º,
inciso III, afirma: A dignidade humana como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito. No
TÍTULO II Dos Direitos e Garantias Fundamentais, CAPÍTULO I DOS DIREITOS E DEVERES INDIVIDUAIS E CO-
LETIVOS, o seu Art. 5º, inciso III afirma que: Ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano
ou degradante.
• A Constituição Federal de 1988 não definiu o que estava sendo entendido como tortura nem
as ações penais cabíveis. A tipificação do crime de tortura ocorreu somente motivada após um episódio de
grande violência e repercussão nacional, o caso “Favela Naval”, com a promulgação da Lei n.º 9.455/1997.
• A Lei n.º 12.847, de 02 de agosto de 2013, instituiu o Sistema Nacional de Prevenção e Com-
bate à Tortura (SNPCT), criou o Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (CNPCT) e o Mecanismo
Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT).
• O Sistema Europeu de Direitos Humanos foi estabelecido em 1959 e era formado por dois
órgãos: a Comissão e a Corte. Com a reforma em 1998, a Comissão foi extinta e a Corte passou a receber
denúncias de violações de direitos humanos de indivíduos contra países. A Corte Europeia reiterou a diferen-
ciação “tortura” e “tratamento desumano e degradante”, porém estabeleceu alguns parâmetros para avaliar
a severidade dos maus tratos após inúmeros casos no Sistema Europeu.
• O Sistema Interamericano é formado por dois órgãos: Comissão e Corte. Entre outras atri-
buições, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos recebe denúncias de indivíduos ou grupos de
indivíduos contra os Estados. Ela analisa a admissibilidade da denúncia e o mérito da violação. A Comissão
e a Corte utilizam parâmetros para analisar o crime de tortura, entretanto não se constituem em categorias
rígidas como ocorre na Corte Europeia.
• A discussão sobre o papel do Estado em relação à tortura é essencial para compreender por-
que as discussões sobre tortura no Brasil são focadas mais no profissional público do que no profissional
privado. Não se trata de uma perseguição ao profissional público. À luz do direito internacional, o Estado
deve tomar todas as medidas que estiverem ao seu alcance para evitar violações de direitos humanos e, se
ainda ele incorrer em uma violação, é seu dever adotar todas as ações para investigar e responsabilizar os
profissionais e compensar as vítimas da violação.
29 ead.senasp.gov.br
Exercícios
A seguir são apresentados 5 casos hipotéticos envolvendo situações de tortura, tratamento
degradante e tratamento desumano. Você deve analisar cada um deles e julgar se as afirmativas a respeito
desses relatos são verdadeiras (V) ou falsas (F).
Preparado(a)?
Vamos lá!
Caso 1
O comitê estadual de prevenção e combate à tortura recebeu duas denúncias de tortura, as
quais foram feitas por familiares de pessoas detidas por profissionais de segurança pública.
1. O primeiro caso de tortura ocorreu entre Biro, profissional de segurança pública, e André,
detido em flagrante por tráfico de drogas. Com vistas a descobrir mais informações sobre o tráfico local, Biro
levou André para uma área afastada da cidade e começou a espancá-lo.
2. O segundo caso ocorreu entre dois presos: Pedro e Bruno. Pedro era suspeito de pedofilia e
foi preso. Ao chegar à carceragem, Biro, intencionalmente, colocou-o na cela de Bruno, o qual foi avisado
pelo profissional de segurança pública sobre o motivo pelo qual Pedro havia sido preso. Então, Biro deu a
entender que se a lei da cadeia não fosse aplicada a Pedro, haveria represália. Resultado: Pedro foi agredido
fisicamente pelos presos da mesma cela.
Verdadeiro ou Falso?
a. ( ) Bruno cometeu crime de lesão corporal em relação a Pedro. Já Biro pode ser enquadrado
no crime de tortura na forma castigo, ainda que tenha utilizado a ação de Bruno e dos demais presos como
meio.
b. ( ) Os profissionais de segurança não são responsáveis pela violência que Pedro sofreu quan-
do foi alocado na mesma cela de Bruno.
c. ( ) Entende-se que pela lei que tipifica o crime de tortura, Biro e Bruno cometeram crime de
tortura, porém Biro poderá receber uma pena maior por ser um profissional público.
d. ( ) André tem direito a receber indenização do governo estadual, porque foi torturado en-
quanto estava custodiado na carceragem da delegacia.
Veja os comentários do caso no arquivo “Comentários caso 1”, que está nos anexos do curso.
Caso 2
O profissional de segurança pública Mateus estava de plantão em equipe diferente do pro-
fissional de segurança pública Munhoz. Mateus ouviu Munhoz no rádio manifestando que havia levado João
para averiguações e que havia dado um corretivo nele. Mateus chegou na delegacia na mesma hora que
Munhoz trazia João e viu o preso ensanguentado e desfalecido. Porém, como Munhoz é de uma patente
superior a sua, Mateus não relatou o caso e não fez nenhuma observação no livro de plantão.
Verdadeiro ou Falso?
a. ( ) Mateus é de uma patente inferior a de Munhoz e, por isso, não é sua obrigação relatar a
tortura sofrida por João.
b. ( ) Mateus pode ser indiciado por tortura e também por não prestar atendimento de saúde.
c. ( ) Após a denúncia chegar à Corregedoria, Munhoz foi transferido para a Escola da Delega-
cia e é encarregado da educação dos novos profissionais de segurança. A decisão está correta, afinal Munhoz
está afastado das funções relacionadas aos presos.
30
d. ( ) Mateus deveria ter registrado o estado de João no livro de plantão. Ele deveria ter acio-
nado o delegado de plantão desta delegacia.
e. ( ) João deveria ter recebido assistência médica. O delegado de plantão também poderia ter
solicitado um exame de corpo de delito.
Veja os comentários do caso no arquivo “Comentários caso 2”, que está nos anexos do curso.
Caso 3
Alice estava grávida de sete meses quando foi presa por levar drogas para dentro do presídio
para seu namorado. Ela foi presa em flagrante e foi levada para a delegacia. Logo após ser registrada e enca-
minhada para uma cela, Alice começou a sentir contrações e a sangrar. Após muita insistência, as presas que
estavam na mesma cela conseguiram chamar a profissional de segurança pública.
Alice foi encaminhada para o hospital, acompanhada por uma profissional de segurança pú-
blica. Apesar disso, Alice foi algemada ao entrar na ambulância e permaneceu algemada na sala de parto.
Verdadeiro ou Falso?
Veja os comentários do caso no arquivo “Comentários caso 3”, que está nos anexos do curso.
Caso 4
O profissional de segurança pública Brás prendeu Iracema por suspeita de roubo a uma loja.
Após algemar Iracema, Brás procedeu a uma minuciosa revista corporal. Ao conduzir Iracema na viatura po-
licial por cerca de uma hora, Brás disse que ia colocar Iracema na delegacia em celas com outros homens,
que sabia onde ela morava e quantos filhos ela tinha, que viu seu filho numa boca de fumo e que pessoas
desapareceriam caso ela não contasse mais detalhes sobre o roubo. Iracema permaneceu calada e, sendo
assim, foi conduzida para a delegacia, onde foi interrogada e colocada em uma cela para averiguações.
Verdadeiro ou Falso?
a. ( ) Todos os homens e mulheres são iguais e gozam dos mesmos direitos, sendo assim o pro-
fissional de segurança pública procedeu de maneira correta ao colocar Iracema em uma cela com homens.
b. ( ) Iracema não foi torturada, já que ela não sofreu violência física.
c. ( ) Iracema foi torturada, pois Brás ameaçou sua integridade física para obter informações.
d. ( ) Iracema foi humilhada, pois Brás fez uma revista corporal. O correto seria uma outra mu-
lher proceder à revista corporal.
e. ( ) Brás procedeu de modo correto e respeitou a dignidade humana de Iracema, ainda que
ela tenha perdido o direito à liberdade.
Veja os comentários do caso no arquivo “Comentários caso 4”, que está nos anexos do curso.
31 ead.senasp.gov.br
Caso 5
O Mecanismo Nacional Preventivo do país de Antares realizou uma inspeção em uma de-
legacia do estado de Miraflores. A delegacia tem uma carceragem com capacidade para abrigar 30 presos
provisórios enquanto eles não são encaminhados para a casa de detenção provisória. Entretanto, com a su-
perpopulação do sistema carcerário em Miraflores, a carceragem está superlotada há três anos e atualmente
abriga 80 presos.
Em cada cela, há pelo menos o dobro de presos acima da sua capacidade e, consequentemen-
te, a estrutura física da cela está comprometida (sem ventilação de ar, iluminação insuficiente e sem sane-
amento básico). Os presos não recebem alimentação adequada e também não têm acesso ao atendimento
de saúde. A relação com os profissionais de segurança que trabalham na carceragem não é amistosa, pois o
efetivo não é adequado ao número de presos, e os profissionais não são treinados e nem dispõem de equi-
pamento de segurança adequado para lidar com os presos.
Verdadeiro ou Falso?
a. ( ) A carceragem da delegacia não deveria funcionar como uma casa de detenção provisória.
b. ( ) Os profissionais que trabalham na delegacia têm estrutura e capacidade para trabalhar
também em uma casa de detenção provisória.
c. ( ) Os presos não estão sofrendo tortura, pois não foi relatado nenhum caso em que um
profissional de segurança estivesse usando da força ou ameaçando um dos presos com vistas a obter infor-
mação ou para castigar.
d. ( ) O chefe da delegacia é responsável por manter a integridade dos presos e dos profis-
sionais de segurança pública que lá trabalham.
e. ( ) Nesse sentido, se ocorrer uma morte violenta de um dos presos na carceragem, ou se um
profissional sofrer violência de um dos presos durante o desempenho da sua função, o chefe da delegacia é
responsável e deve ser investigado.
Veja os comentários do caso no arquivo “Comentários caso 5”, que está nos anexos do curso.
32
Gabarito
33 ead.senasp.gov.br
MÓDULO O CONTEXTO DA TORTURA
3
Apresentação
Oi! Seja bem-vindo(a) ao curso “O Contexto da Tortura”!
Neste módulo, você irá estudar sobre: a relação entre populações vulneráveis e o crime de
tortura; a tortura como crime de oportunidade, ou seja, crime que ocorre sob certas condições existentes
nas instituições. Para tanto, você irá analisar, a partir dos dados de pesquisas, o perfil sobre da vítima da tor-
tura, bem como sobre as influências que o profissional da segurança pública é submetido ao desempenhar
suas funções na sociedade.
Está pronto(a) para começar?
Então vamos lá.
Objetivos do Módulo
Ao final do módulo, você será capaz de:
Estrutura do Módulo
• Aula 1 – A tortura e suas vítimas
• Aula 2 – Tortura como crime de oportunidade
• Aula 3 – O contexto de atuação do profissional de segurança pública
34
onde a vítima foi vista pela última vez, eles confessaram o crime.
Entretanto, a perícia médica indicou que lesões encontradas em Tayná não eram coerentes
com o relato dos quatro suspeitos. Posteriormente, o Ministério Público apurou que as confissões dos quatro
suspeitos foram obtidas por tortura.
Infelizmente, o caso Tayná não é uma ocorrência isolada e ainda há muitas denúncias de
profissionais de segurança pública que utilizam a tortura como método para obter informações e confissões.
Não há dados organizados sobre tortura, mas o Brasil dispõe de outras fontes de informação
que nos auxiliam a traçar o panorama da prática da tortura, como os dados do Disque 100 – Disque Direi-
tos Humanos. Os relatórios dos órgãos do sistema de justiça e do Poder Legislativo, como o relatório da
CPI do Sistema Carcerário, também são fontes de dados e relatos sobre o tema.
Adicionalmente, os relatórios da sociedade civil e de organismos internacionais também contri-
buem para traçar o panorama da tortura no país. Nesse aspecto, vale citar o relatório do Relator Especial
para Tortura da ONU, Nigel Rodley, de 2001.
A partir das considerações do Relator Especial, governo e sociedade civil se mobilizaram e realiza-
ram a Campanha Nacional Permanente de Combate à Tortura e à Impunidade. Com as denúncias
recebidas, pela primeira vez, o governo traçou o perfil da prática da tortura no Brasil:
O mesmo perfil foi identificado por Maia (2006). Ele analisou 348 denúncias de tortura, baseadas em
denúncias de observadores nacionais e internacionais, e construiu um quadro geral da prática de tortura no
país. Em termos aproximados, tem-se:
Com pequenas diferenças em relação à metodologia e abrangência dos estudos, a Pastoral Carce-
rária resumiu as práticas mais comuns de tortura:
Nota: Diferente dos dados analisados por Maia (2006), a Pastoral Carcerária (2010) considerou ape-
nas os casos registrados em suas seccionais e cometidos por profissionais do Estado.
35 ead.senasp.gov.br
RECORDANDO...
A tortura é comum em nosso país desde sempre. Essa prática nefanda, verdadei-
ra herança maldita, trazida pelos portugueses “educados” nos métodos da dita
sagrada Inquisição, permanece até hoje, passando por Colônia, Império, Inde-
pendência, República, ditaduras e imperfeitos Estados de Direito, com governos
de todos os tipos. Os indígenas, os hereges ou infiéis, os negros escravos e des-
cendentes, os “vadios”, os marginais de toda sorte, os internos nos manicômios,
os “subversivos” e opositores políticos, os presos ditos “comuns”, os pobres em
geral, os não cidadãos... todos potencialmente vítimas dos abusos e da violência
extremada. Para punir, disciplinar e purificar (sic), arrancar confissões e informa-
ções, intimidar, “dar o exemplo”, vingar, derrotar física e moralmente o suposto
inimigo ou, simplesmente, o indesejável. (SOARES, 2010, P.21)
Os torturáveis são recrutados nos segmentos populacionais empobrecidos como uma das di-
mensões estratégicas das relações de dominação na sociedade brasileira.
No caso das torturas, há ainda outro problema: o componente de preocupação em dar uma res-
posta à comoção pública diante de fatos criminosos. Alguns profissionais policiais querem dar uma respos-
ta e usam a tortura para encontrar culpados.
Ela jamais conduz à verdade. Ora, numa situação de privação de liberdade, isolada e longe dos olha-
res e da proteção do Poder Público, a pessoa que é torturada confessa o que o torturador quer.
Nota: Observe que o perfil foi baseado nas informações disponibilizadas pelo Ministério da Justiça
entre os anos 2009 a 2012, utilizando como referência os dados do segundo semestre de cada ano.
Em relação ao sistema socioeducativo, considerando os dados do relatório “Um olhar mais atento
às unidades de internação e semiliberdade para adolescentes” do Conselho Nacional do Ministério Público,
têm-se:
36
• A partir do “Panorama Nacional: a execução das medidas socioeducativas de internação
– Programa Justiça ao Jovem”, alguns dados foram encontrados. Para conhecê-los, Veja a seguir.
o A média da idade dos adolescentes era de 16,7;
o A maioria dos adolescentes cometeu o primeiro ato infracional entre 15 e 17 anos;
o Em relação aos atos infracionais, o roubo variou entre 26% na Região Sul a 48% na Região
Sudeste, o homicídio entre 7% no Sudeste a 28% no Norte e o tráfico de drogas entre 7% no Norte e 32%
no Sudeste;
o Dos adolescentes entrevistados, 43,3% já haviam sido internados ao menos uma vez;
o Cerca de 8% dos adolescentes não eram alfabetizados.
Para além dos dados do Ministério da Justiça e do sistema de justiça, é importante também con-
sultar as informações disponibilizadas pelo Ministério da Saúde (MS), por meio do Sistema de Informa-
ção de Agravos de Notificação e do Sistema de Informação sobre Mortalidade.
Em 2012, o MS registrou 440 notificações em relação à violência por intervenção legal e tortura,
nas quais:
Ainda vale apresentar os dados dos homicídios no Brasil, ainda que eles não apresentem informa-
ções objetivas sobre a tortura, disponibilizam indicações importantes para o nosso tema.
Anualmente, a FLACSO publica o Mapa da Violência com dados e análises sobre as mortes regis-
tradas pelo Sistema de Informação de Mortalidade. Em cada edição, encontram-se os dados sobre violência,
nos quais englobam homicídio, suicídio e acidentes de carro por ano, e também publicam-se dados com
focos específicos, como jovens, crianças e adolescentes e mulheres.
Considerando os dados do Relatório “Mortes matadas por armas de fogo” e do Relatório “Mapa da
Violência 2014: os jovens do Brasil”, em 2014, temos:
Para saber mais sobre o relatório “Mortes matadas por armas de fogo”, acesse: http://www.mapa-
daviolencia.org.br/pdf2013/MapaViolencia2013_armas.pdf
Para saber mais sobre o Relatório “Mapa da Violência 2014: os jovens do Brasil”, acesse: http://
www.mapadaviolencia.org.br/pdf2014/Mapa2014_JovensBrasil_Preliminar.pdf
37 ead.senasp.gov.br
Nota: A pesquisa não oferece um diagnóstico, mas apenas fornece ferramentas de análise. A partir
dos dados, pode-se inferir que a vítima típica de homicídio é homem, jovem, negro e das regiões Nordeste
ou Sudeste.
Os perfis comentados são muito similares entre si e convergem para populações vulneráveis,
jovens, mulheres, negros e populações carentes. Isso significa que qualquer pessoa pode ser vítima da
tortura, incluindo os próprios profissionais da segurança pública, entretanto, assim como ocorre com
outras violências, a tortura acontece com maior frequência nas populações vulneráveis.
Saiba mais...
Além dos relatórios apresentados na aula, acesse os relatórios a seguir para ter mais informações
sobre o que está estudando.
a) Relatório sobre tortura: uma experiência de monitoramento dos locais de detenção para
prevenção da tortura da Pastoral Carcerária, disponível em: http://carceraria.org.br/wp-content/uplo-
ads/2012/10/Relatorio_tortura_revisado1.pdf
b) Relatório final da CPI do Sistema Carcerário publicado pela Câmara dos Deputados, disponí-
vel em: http://bd.camara.leg.br/bd/handle/bdcamara/2701
c) Relatório “Um olhar mais atento às unidades de internação e semiliberdade para adoles-
centes”, disponível em: http://www.cnmp.mp.br/portal/images/stories/Destaques/Publicacoes/Relat%-
C3%B3rio_Interna%C3%A7%C3%A3o.PDF
Muito bem! Você acabou de concluir esta aula sobre a tortura e suas vítimas.
Siga adiante para saber mais informações sobre a tortura, porém, em vistas de como ela representa
um crime de oportunidade.
Ótimos estudos a você!
A abordagem teórica da tortura como crime de oportunidade nos permite compreender como os
quatro elementos presentes no crime - a lei, o alvo, o agente e o lugar se relacionam entre si configurando
o ambiente favorável à prática criminosa.
No Relatório sobre a visita ao Brasil do Subcomitê de Prevenção da Tortura e outros Trata-
mentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, da ONU, o grupo afirma que:
38
cial, mas também em ruas, dentro de casas, ou em locais ermos, no momento da
prisão. A tortura e os maus-tratos foram descritos como violência gratuita, como
forma de punição, para extrair confissões e também como meio de extorsão.
(2012, p.16)
A racionalidade do profissional no ato da prática criminosa “entende que esse método de obtenção
de confissão e informação funciona, é eficaz, dá resultados” (MAIA, idem, p.24). Por isso, tortura.
E como quem tortura é também quem investiga, a lógica do ambiente favorável ao crime é a de
que não ocorra investigação, ou seja, que tudo permaneça impune. Dessa forma, todo o sistema judicial
é negativamente comprometido, seja pela confissão sob tortura, seja pela ausência de investigação
sobre a mesma.
Dessa natureza da tortura como crime de oportunidade - o que significa que as oportunidades
desempenham papel relevante para que a tortura ocorra - decorre em grande medida a decisão da Con-
ferência Mundial de Direitos Humanos da ONU, realizada em 1993, no sentido de que os esforços para
erradicá-la deveriam prioritariamente se concentrar na prevenção, exigindo, para isso, a criação de meca-
nismos institucionais para visitas de perícia a centros de detenção e do sistema socioeducativo, delegacias,
hospitais psiquiátricos e demais instituições fechadas.
É importante lembrar que a função primária dos mecanismos preventivos nacionais é preventiva.
É importante recordar também que o Brasil, por meio da Lei n.° 12.847/2013, ratificou o Protocolo
Facultativo a Convenção Contra Tortura das Nações Unidas e criou o Mecanismo Nacional de Preven-
ção e Combate à Tortura, o qual possui essas prerrogativas.
• Impunidade
• Invisibilidade
• Vulnerabilidade das pessoas em situação de privação de liberdade
Tornar visível o que exige a invisibilidade para se reproduzir é agir contra as condições ambientais
que favorecem a ocorrência da tortura como crime de oportunidade, ao mesmo tempo em que é enfrentar
outra de suas características: a certeza, tida pelos profissionais que cometem o ato criminoso, da impunida-
de diante da lei, ou seja, diante do Estado.
A ocorrência da tortura como crime de oportunidade se dá principalmente em unidades de
privação da liberdade de indivíduos que, por alguma razão, encontram-se sob custódia do Estado. Essa ca-
racterística leva à constituição de outra: a vulnerabilidade das pessoas em situação de privação de liberdade
às violações dos direitos humanos.
No inciso 2 do artigo 4o, o Protocolo Facultativo define a privação de liberdade como “qualquer
39 ead.senasp.gov.br
forma de detenção ou aprisionamento ou colocação de uma pessoa em estabelecimento público ou privado
de vigilância, de onde, por força de ordem judicial, administrativa ou outra autoridade, ela não tem permissão
para ausentar-se por sua própria vontade”. Nesse sentido, pode-se considerar como unidades de privação de
liberdade uma ampla rede de lugares, tais como delegacias de polícia, locais de internação de adolescentes,
penitenciárias, cadeias públicas, centros de imigração, zonas de trânsito de aeroportos internacionais, insti-
tuições psiquiátricas e locais de prisão administrativa. (Plano de Ações Integradas para Prevenção e Controle
da Tortura no Brasil- minuta para discussão. Subsecretaria de Direitos Humanos/Comissão Permanente de
Combate à Tortura e à Violência Institucional. Brasília, 2005.)
Assim, a lei, o alvo, o agente e o lugar se inter-relacionam para a produção do crime.
Importante!
Para saber mais sobre a essa teoria, veja o arquivo “Teoria das Atividades Rotineiras”, que está nos
anexos do curso.
Não é difícil verificar que nos centros de detenção os três elementos estão presentes, e que se
articulam nas oportunidades.
Maia (2006) da Universidade Federal da Paraíba acerca da tortura como um crime de oportuni-
dade, destaca que:
a) a tortura sempre foi instrumental, estando presente relações de poder, com supremacia de
forças do torturador, e inferioridade física, psicológica, econômica ou jurídica do torturado;
b) a tortura era praticada por se fazerem presentes oportunidades favoráveis, e ausência de
vigilância sobre as condutas dos torturadores;
c) a ambiência e as situações em que agressor e vítima se encontravam eram propensas às fric-
ções e atritos;
d) relações pessoais existentes entre que agressor e vítima eram propensas às fricções e atritos;
e) as vítimas da tortura nunca foram consideradas iguais aos seus carrascos, mas inferiores, me-
nores que humanos, e merecedores do sofrimento ou castigo;
f) as vítimas eram tornadas invisíveis no processo de aplicação dos tormentos:
- ou os processos eram secretos até para a vítima,
- ou as vítimas eram mantidas em segredo,
- ou as vítimas não tinham acesso a recursos jurídicos,
- ou todos os fatores em conjunto,
g) as vítimas eram destituídas de poder, sendo presas fáceis nas mãos de seus algozes;
h) a “racionalidade” da aplicação da tortura incluía processo de desumanização da vítima, e co-
locava a vítima como ameaça concreta aos valores ou fundamentos da ordem da sociedade que os algozes
representavam, sendo legítimo livrar-se da ameaça que representavam; ou eram vistas como portando algo
40
de valor para o agressor (informação, confissão, etc.);
i) o medo da ameaça das vítimas, e a retaliação pseudo-justiceira agiam como motores para a
aplicação dos suplícios;
j) o racismo e a ideologia que informam/permeiam o sistema político e normativo influenciará
o modo como os órgãos de justiça e segurança atuam para a identificação, prevenção, punição e reparação
da tortura.
Então, é no enfrentamento às oportunidades que podemos prevenir e enfrentar o crime de tortura.
Para isso, as ações específicas nas várias instituições exigem também uma articulação entre si.
O que foi apresentado sobre a população carcerária e sobre os adolescentes que cumprem medi-
da socioeducativa de internação evidenciam quais são os grupos vulneráveis à tortura, na medida em que,
como você estudou até agora, é nas instituições de privação de liberdade do Sistema de Segurança que tais
práticas criminosas ocorrem na quase totalidade. No entanto, não esgota-se aqui os segmentos da popula-
ção brasileira que fazem parte dos grupos de torturáveis.
No livro Tortura, organizado pela Coordenação de Combate à Tortura, da SDH, já citado no módulo
1, em seu capítulo - Grupos sociais vulneráveis à tortura (Cap.3) é discutida a prática contra as populações
rurais e indígenas e contra as populações em situação de rua, ampliando o universo populacional que
compõe os grupos vulneráveis à tortura, bem como ampliando nossa visão sobre os ambientes em que a
prática criminosa encontra situação favorável para se efetivar como crime de oportunidade.
Ou seja, a mensuração das ocorrências de tortura nesses ambientes se torna mais difícil do que a
mensuração daquelas ocorrências praticadas nas instituições de privação de liberdade. Isso porque são am-
bientes desconhecidos, difusos e, diferentemente, das instituições fechadas, não recebem nenhum tipo de
monitoramento que possa dificultar a prática criminosa de agentes.
Ótimo! Você terminou o seu estudo sobre a tortura como um crime de oportunidade.
Continue o módulo para ver a respeito do contexto de atuação do profissional de segurança pública.
Bons estudos!
Entre 1999 e 2010, foi realizada, pela USP, a pesquisa sobre a percepção das pessoas em relação
a violência e direitos humanos. Com base nesta pesquisa foram selecionadas para esta aula, algumas per-
guntas com o objetivo de criar condições para que possa refletir sobre o contexto no qual o profissional de
segurança pública atua. Veja a seguir!
CARDIA, Nancy. Pesquisa nacional, por amostragem domiciliar, sobre atitudes, normas culturais e
valores em relação à violação de direitos humanos e violência: Um estudo em 11 capitais de estado. São
Paulo: Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, 2012)
Pense sobre o que aconteceu nos últimos 12 meses e me diga se nesses meses cada uma destas
coisas aconteceram ou não com você:
a) Foi ferido por arma de fogo;
b) Sofreu agressão física;
c) Alguém ofereceu drogas;
d) Teve parente próximo assassinado;
e) Sentiu a necessidade em andar armado.
41 ead.senasp.gov.br
Você concorda ou discorda de cada uma das frases a seguir (você pode optar por concorda total-
mente, concorda em partes, discorda totalmente e discorda em partes):
a) Se as autoridades falharem, nós temos o direito de tomar a justiça em nossas mãos;
b) Um policial pode bater em um preso que tenha tentado fugir;
c) A polícia tem direito de revistar pessoas que considera suspeitas em função da aparência.
De forma resumida, as perguntas buscaram:
• Avaliar a percepção da violência no cotidiano;
• Medir as normas e os valores culturais em relação à violência.
A partir das perguntas, foi possível observar:
• Se pessoas que convivem mais com violência são mais propensas a reagir com mais violência;
• Se elas são mais propensas a concordar com políticas mais enérgicas para a segurança públi-
ca.
O estudo indicou que, se por um lado, diminuiu a porcentagem de pessoas sem exposição à
violência entre 1999 e 2010, por outro lado, as pessoas estão mais expostas a violência média (como
“alguém ofereceu drogas”) do que a violência grave (como “teve parente assassinado”).
Em relação à reação das pessoas à violência, o estudo indica que as pessoas tendem a rejeitar o
uso da força. Apesar disso, as pessoas estão mais permissivas em relação ao uso da força arbitrária por
parte da polícia – há mais pessoas que concordam parcialmente e discordam parcialmente do que pessoas
que concordam totalmente (como na frase “um policial pode bater em um preso que tenha tentado fugir”).
Na mesma pesquisa também foram feitas as perguntas:
É aceitável ou não é aceitável que um governo:
a) Use coerção para fazer as pessoas confessarem;
b) Prenda alguém sem julgamento.
Qual deve ser a ação da polícia nos casos a seguir?
Você pode escolher entre:
1 – bater para obter informações;
2 – ameaçar com palavras para obter informações;
3 – Interrogar sem usar de violência;
4 – ameaçar membros da família para obter informações;
5 – deixar sem água e sem comida;
6 – dar choques ou queimar com pontas de cigarro;
8 – nenhuma das alternativas.
Casos:
• Se alguém fosse pego roubando um motorista no semáforo;
• Alguém suspeito de participar de uma gangue de sequestradores;
• Alguém suspeito de ser estuprador;
• Se alguém fosse pego usando drogas;
• Se alguém fosse pego vendendo drogas.
Sobre a primeira pergunta, 80% das pessoas entrevistadas indicaram que é inaceitável que o go-
verno use coerção para obter confissões e prender sem julgamento.
Entretanto, para a segunda pergunta, cerca de 1/3 das pessoas apoiaram algum tipo de reação da
polícia que pode ser tipificada como tortura.
Adicionalmente, a população também tem a sensação que os crimes ocorrem e seus responsáveis
ficam impunes. Nesse sentido, há mais pessoas na sociedade dispostas a realizar ou apoiar ações de retalia-
ção e vingança. A atuação de grupos de justiceiros não resolve o problema de segurança pública, ela
reforça a sensação de insegurança e interfere de forma negativa no desempenho das atividades do profis-
sional de segurança pública.
A partir da pesquisa, nós temos elementos para refletir sobre a posição da sociedade sobre a violên-
cia e sobre a expectativa da resposta dos profissionais de segurança pública. A população está vivenciando
mais episódios de violência e, assim, espera reações mais enérgicas por parte da polícia, que incluem
42
a utilização da tortura para obter informações ou confissões e como forma de castigo.
Apesar da pressão da opinião pública, o profissional de segurança pública não pode se deixar
enganar e aceitar que a tortura é um método para obter informações, confissões ou para castigar.
Ao utilizar-se de tais métodos, o profissional de segurança pública comete crime hediondo nos
termos da Lei n.° 8.072/1990, ele sai do time de guardião da ordem e da cidadania da sociedade para o
time de criminosos.
O profissional de segurança pública também deve considerar as questões levantadas por Nancy
Cardia:
Os estudos mostram que quando a polícia tortura com frequência, obtém falsas
informações e falsas confissões, que no final podem ter impacto muito negativo
sobre a imagem das corporações entre o público cuja colaboração lhe é impres-
cindível para elucidar casos: os cidadãos, não suspeitos que testemunham ou
detém informações que podem auxiliar a polícia em suas investigações. (CAR-
DIA, 2014, p. 330)
Importante!
A tortura é proibida e não há exceções. Especificamente nos casos das corporações, muitos profis-
sionais são obrigados a torturar ou submeter cidadãos comuns e até mesmo seus próprios colegas a tortura
e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes. A cadeia de comando não justifica e não
é uma exceção à Lei n.° 9.455/1997.
É necessário que você, como Profissional de Segurança Pública, procure refletir sobre suas funções,
dentre elas a de garantir a dominação, isto é, a obediência dos que devem obedecer. Mas, entre suas funções
também está a de, em nome do Estado e da sociedade e em obediência a eles, zelar por direitos dos domi-
nados, que podem se contrapor a vontade de quem domina.
A prática da tortura é indissociável do modelo de dominação presente em determinados períodos
históricos, em sociedades com regimes de governos autoritários e/ou com profundas desigualdades sociais.
Como você já estudou, a tortura tem estado presente na história da humanidade há milhares de anos, por
motivos distintos no tempo.
Existe uma relação entre o modelo de dominação, a desigualdade, a vulnerabilidade social e a tor-
tura como crime de oportunidade.
Uma das características da tortura como crime de oportunidade é que a sua ocorrência se dá
principalmente em unidades de privação da liberdade de indivíduos que por alguma razão encontram-se
sob custódia do Estado. E que dessa característica decorre outra: a vulnerabilidade das pessoas em situa-
ção de privação de liberdade às violações dos direitos humanos.
Nesse contexto, os profissionais de Segurança atuam como protetores dos direitos a serviço da
cidadania e dos Direitos Humanos, garantindo o contexto pacífico da resolução dos conflitos. No mesmo
passo em que são igualmente sujeitos de direitos e protegidos da tortura e de outras violações dos direitos
humanos.
43 ead.senasp.gov.br
Finalizando...
• Os torturáveis são recrutados nos segmentos populacionais empobrecidos como uma das
dimensões estratégicas das relações de dominação na sociedade brasileira.
• Ao traçar o perfil da tortura, é possível identificar que uma parte das vítimas estão privadas
de liberdade.
• Os perfis das vítimas de tortura apresentados e comentados - no decorrer da aula - são muito
similares entre si e convergem para populações vulneráveis, jovens, mulheres, negros e populações carentes.
Isso significa que qualquer pessoa pode ser vítima da tortura, incluindo os próprios profissionais da segu-
rança pública. Entretanto, assim como ocorre com outras violências, a tortura acontece com maior frequência
nas populações vulneráveis.
• A abordagem teórica da tortura como crime de oportunidade nos permite compreender
como os quatro elementos presentes no crime - a lei, o alvo, o agente e o lugar- se relacionam entre si
configurando o ambiente favorável à prática criminosa.
• A mensuração das ocorrências de tortura nesses ambientes se torna mais difícil do que a
mensuração daquelas ocorrências praticadas nas instituições de privação de liberdade. Isso porque são am-
bientes desconhecidos, difusos e, diferentemente, das instituições fechadas, não recebem nenhum tipo de
monitoramento que possa dificultar a prática criminosa de agentes.
• Apesar da pressão da opinião pública, o profissional de segurança pública não pode se
deixar enganar e aceitar que a tortura é um método para obter informações, confissões ou para casti-
gar. Ao utilizar-se de tais métodos, o profissional de segurança pública comete crime hediondo nos termos
da Lei n.° 8.072/1990, ele sai do time de guardião da ordem e da cidadania da sociedade para o time de
criminosos.
• Os profissionais de Segurança devem atuar como protetores dos direitos a serviço da cidada-
nia e dos Direitos Humanos, garantindo o contexto pacífico da resolução dos conflitos. No mesmo passo em
que são igualmente sujeitos de direitos e protegidos da tortura e de outras violações dos direitos humanos.
Exercícios
“Diante de um Estado que não cumpre o dever essencial de proteger o cidadão do mal que terceiros
possam fazer contra ele, e sem poder confiar na ação morosa da justiça, a sociedade entrega de bom agrado
às forças de repressão a tarefa de castigar. Que razão haveria para esperar anos consecutivos pelo julgamen-
to formal de um criminoso quando um policial pode executá-lo sumariamente?”
Comente a atitude do profissional de segurança. Por que essa atitude não é permitida em um Esta-
do Democrático de Direito? Por que ele é levado a crer que a justiça com as próprias mãos é a melhor solução
para um crime?
44
Feedback do exercício.
Você deverá comentar que a tortura é crime e não tem exceções, e poderá basear sua argumentação
na Declaração Universal dos Direitos Humanos, na Convenção Contra Tortura da ONU, na Constituição de
1988 e na Lei n.º 9.7455/1997. Em relação à atuação de justiceiros, você deverá se posicionar e indicar que
essas ações individuais não contribuem para a segurança da sociedade e dificultam o trabalho do profissio-
nal de segurança pública.
45 ead.senasp.gov.br
MÓDULO ESTRATÉGIAS INSTITUCIONAIS PARA O ENFRENTAMENTO
4 DA TORTURA
Apresentação do módulo
Olá! Seja bem-vindo(a) ao módulo “Estratégias institucionais para o enfrentamento da tortu-
ra”!
Antes, porém, de iniciar o conteúdo deste módulo, que tal relembrar o que você estudou no
módulo anterior?
De maneira geral, você pôde conhecer um pouco do contexto da tortura, refletindo sobre
assuntos como: a tortura e suas vítimas, a tortura como crime de oportunidade e o contexto de atuação do
profissional de segurança pública.
Já nesse módulo, o assunto será outro: as estratégias institucionais para o enfrentamento da
tortura.
Isso porque as iniciativas do Estado brasileiro para a prevenção e enfrentamento à tortura, em
parceria com a sociedade civil e com organismos internacionais com os quais estabeleceu compromissos ao
ratificar documentos legais, formam um conjunto de ações e estratégias envolvendo agentes diversos. Esse
conjunto se configura como políticas públicas que estabelecem determinados objetivos na transformação da
realidade em que se quer agir, por meio de estratégias institucionais.
Para saber mais sobre isso, continue com o curso!
Bons estudos!
Objetivos do Módulo
• Ao final do módulo, você será capaz de:
• Compreender as Políticas Públicas que subsidiam as estratégias de enfrentamento da tortura;
• Conhecer e compreender as estratégias para o enfrentamento da tortura;
• Identificar situações para as estratégias institucionais para o enfrentamento da tortura;
• Defender o enfrentamento da tortura como prática institucional.
Estrutura do Módulo
• Aula 1 – Políticas Públicas e Estado de Direito
• Aula 2 – Estratégias institucionais para o enfrentamento da tortura
46
• Quais os objetivos colocados?
• O que e como fazer para mudar?
• Quais atores sociais serão mobilizados para a sua efetivação?
47 ead.senasp.gov.br
SAIBA MAIS...
Para aprofundar a discussão sobre a dimensão Democrático e Social de Direito do Estado, leia
o texto Direitos Humanos e Políticas Públicas, que está nos anexos do curso.
Pode-se interpretar como um marco no papel do Estado na proteção e efetivação dos Direitos
Humanos a criação, em 1999, da Secretaria de Estado dos Direitos Humanos, no âmbito do Ministério da
Justiça, atual SDH/PR. Antes, em 1996, era lançado o Programa Nacional de Direitos Humanos - PNDH-1,
que deveria nortear as ações das políticas de Estado. Em 1997 é promulgada a Lei Nº 9.455 que tipifica e
define a tortura como crime de lesa humanidade.
Como você estudou anteriormente, em 2013, é promulgada a Lei nº 12.847, que institui o “Sis-
tema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura; cria o Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura
e o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate á Tortura”.
Ao formar na burocracia estatal uma instância especializada e voltada para a proteção e
promoção dos Direitos Humanos, o Estado, por meio do Governo Federal, afirma seu engajamento e sua res-
ponsabilidade nas questões que envolvem tais direitos. Assim, reafirma o seu compromisso com os PNDH-2,
de 2002 e PNDH-3 de 2009.
• 1996: Lançamento do programa Nacional de Direitos Humanos PNDH-1, que deveria nortear as
ações das políticas de Estado.
• 1997: Promulgada a Lei N° 9.455 que tipifica e define a tortura como crime de lesa humanidade.
• 1999: Criação da Secretaria de Estado dos Direitos Humanos, no âmbito do Ministério da Justiça,
atual SDH/PR.
• 2002: Lançado o PNDH-2.
• 2009: Lançado o PNDH-3.
• 2013: Promulgada a lei n° 12.847, que institui o “Sistema Nacional de Prevenção e Combate à
Tortura e o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura”.
48
Aula 2 – Estratégias institucionais para o enfrentamento da tor-
tura
2.1. Comitês e mecanismos de prevenção à tortura
A tortura foi considerada como uma prática sistemática no Brasil pelas Nações em 2001:
Um ano antes, como você já estudou no curso, o Relator Especial sobre Tortura das Nações
Unidas, Nigel Rodley, visitou Distrito Federal, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Pernambuco e Pará. A
partir das visitas e reuniões, o Relator fez várias recomendações ao Estado brasileiro, publicadas em 2001.
Com base nas denúncias e recomendações do Relatório da ONU, a Secretaria de Direitos Humanos
realizou campanha de enfrentamento à tortura em parceria com a organização não governamental Movi-
mento Nacional dos Direitos Humanos. A partir da campanha, a Secretaria de Direitos Humanos em conjunto
com especialistas da temática, representantes da sociedade civil e outros representantes do Governo Federal
publicou o Plano de Ações Integradas de Prevenção e Combate à Tortura (PAIPCT) em 2006.
Importante!
49 ead.senasp.gov.br
Até julho de 2014, 19 unidades federativas criaram seus comitês: Acre, Pará, Rondônia, Tocantins,
Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Bahia, Espírito Santo, Minas
Gerais, Rio de Janeiro, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Goiás.
Com a assinatura do Protocolo Facultativo, o Governo Federal empreendeu esforços para criar
seu Mecanismo Preventivo Nacional, como por exemplo, a Lei n.° 12.847/2013, que você já estudou no curso.
Paralelamente, a sociedade civil e os governos estaduais se mobilizaram para criar mecanismos no âmbito
das unidades federativas. Atualmente, sete unidades federativas já criaram seus mecanismos locais por
meio de leis estaduais: Rio de Janeiro, Paraíba, Alagoas, Espírito Santo, Rondônia e Minas Gerais. O meca-
nismo do Estado do Rio de Janeiro está em funcionamento desde 2011, e, recentemente, o Estado de
Pernambuco iniciou suas atividades.
50
Importante!
Como você deve ter percebido, essas ações dialogam com o nosso curso. Elas fazem parte do
eixo-orientador IV Segurança Pública, Acesso à Justiça e Combate à Violência, que é de leitura obrigatória.
De olho na tela!
Objetivos do PAIPCT
• Qualificar, fortalecer e ampliar estratégias de prevenção e enfrentamento à tortura nos estados.
• Prover diagnósticos sobre tortura no plano nacional.
Como?
• Monitorando locais de privação de liberdade.
• Mobilizando diversos atores da sociedade civil e do governo para a realização de um conjunto
de ações integradas destinadas a prevenir, enfrentamento e dificultar a prática da tortura.
• Realizando muitas outras ações.
• Capacitação específica de integrantes da sociedade civil que lidam com Direitos Humanos, es-
pecialmente dos que se dedicam ao enfrentamento à tortura.
• Criação de campanhas sobre prevenção e enfrentamento à tortura por meio da mídia e junto às
instituições do Sistema de Justiça Criminal e organizações não governamentais.
• Criação, ampliação, reativação e o fortalecimento de comitês estaduais de enfrentamento à
tortura.
• Construção de um diagnóstico sobre a situação da tortura no Brasil.
• Promoção, com frequência, de visitas surpresa aos estabelecimentos de privação de liberdade.
Na aula anterior você estudou que uma política pública tem como objetivo provocar mudanças em
determinada realidade ou aspectos dessa realidade. E o que se está querendo mudar? Ao longo do curso
você estudou sobre “o que é” e também sobre “o que deve ser”. A citação que segue é uma síntese desse “o
que é” que ajuda a repensar o que se quer como “o que deve ser”:
A tortura foi e continua sendo prática disseminada em nosso País. Sob a Dou-
trina de Segurança Nacional, parte integrante do sistema repressivo da ditadura
militar brasileira tinha como finalidade sufocar os opositores – os chamados
subversivos –, aqueles considerados perigosos.
51 ead.senasp.gov.br
O término do regime militar não significou que as violações dos Direitos Huma-
nos, torturas e maus-tratos tenham cessado. Ao contrário, as reformas neolibe-
rais trouxeram o aumento do número de excluídos que, contemporaneamente,
tornam-se os novos alvos da violência do Estado, passando-se de uma política
de segurança nacional a uma política de segurança urbana, sob a qual o perfil
do inimigo interno passa a ser definido segundo critérios geográficos e sociais,
em uma retórica de guerra contra o crime.
O dever de proteção
Todos têm direito à liberdade e à segurança pessoal – incluindo o direito de ser libertado de
uma prisão ou detenção arbitrária. A lei permite que pessoas sejam detidas em certas circunstâncias deter-
minadas. As pessoas que estão em detenção legalmente permitida perdem, durante um período de tempo,
seu direito à liberdade, mas elas mantêm todos os seus direitos com exceção daqueles que foram perdidos
como consequência específica desta privação. Indivíduos que não tenham sido condenados por um crime
estão sendo privados de sua liberdade como medida de precaução e não como punição. Pessoas que
foram condenadas a penas de prisão se encontram detidas como punição e não para punição. Em nenhum
dos casos, permite-se às autoridades carcerárias infligir punição adicional àquela decretada pelos tribunais
ou autoridade judicial. Pelo contrário, assumem um “dever de proteção” com relação aqueles por quem são
responsáveis. (FOLEY, 2011, p. 129)
Assim, as estratégias institucionais para o enfrentamento da tortura apontam para esse “o que deve
ser”. Elas vêm sendo traçadas e implementadas pelo Estado brasileiro na última década, em parceria com as
Unidades Federativas, com a sociedade civil e com organismos internacionais, na afirmação e proteção dos
Direitos Humanos, das quais faz parte este curso, na modalidade a distância, em Prevenção e Enfrentamento
à Tortura. O que será apresentado em seguida cobre as diversas dimensões das políticas de enfrentamento
à tortura. É sobre elas que você estudará agora, procurando identificar seus alcances e possibilidades de
mudanças na realidade.
No PNDH-3 encontra-se o que está definido para esse “dever ser”. Está sistematizado na
Diretriz 14: Combate à violência institucional, com ênfase na erradicação da tortura e na redução da
letalidade policial e carcerária, do Eixo Orientador IV: Segurança Pública, Acesso à Justiça e Combate
à Violência.
Sobre quem define o “dever ser”, é importante lembrar que o PNDH-3 foi elaborado após
52
uma ampla agenda de participação popular e de organizações da sociedade civil, de Conferências interna-
cionais, nacionais e nos entes federados. Assim, é um documento escrito por milhões de mãos, isto é, é a
vontade da sociedade brasileira e do Estado.
Na Diretriz 14, há o Objetivo estratégico III: Consolidação de política nacional visando à erradicação
da tortura e de outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes. Assim, as estratégias insti-
tucionais para o enfrentamento da tortura estão fortemente ligadas à realização de tal objetivo.
É importante lembrar mais uma vez que a efetivação e a proteção dos Direitos Humanos é um
processo histórico no qual as lutas políticas e ideológicas são permanentes, assim, o que está apresentado
na Diretriz 14 é também resultado de tais lutas, com momentos e contextos determinados. Nesse sentido,
uma das estratégias para o enfrentamento da tortura, anterior ao que propõe o PNDH-3, foi a constituição
da Rede Brasileira contra a Tortura, em maio de 2000, durante a V Conferência Nacional de Direitos Hu-
manos.
Uma estratégia fundamental, que pode ser considerada um marco no enfrentamento à tortu-
ra na história da sociedade brasileira, foi a criação da Coordenação-Geral de Combate à Tortura (CGCT),
em fevereiro de 2005, no âmbito da Secretaria de Direitos Humanos (SDH/PR). A institucionalização dessa
Coordenação expressa que a prevenção e o enfrentamento a uma prática criminosa que tem sido parte da
nossa história é uma política de Estado.
Conforme a Portaria nº 22, que aprova o Regimento Interno da SDH/PR, as atribuições da CGCT se
estendem por todas as dimensões que envolvem a prevenção e o enfrentamento à tortura e a outros
tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, como:
• coordenação de ações;
• processos de informações;
• mobilização de instituições públicas e privadas, autoridades governamentais e sociedade civil
para a organização de uma rede nacional de enfrentamento à tortura;
• apoio a capacitações e formações de profissionais.
Espera-se que o que foi aqui apresentado como estratégias para o enfrentamento da tortura no
Brasil seja capaz de dar a você, aluno desse Curso, uma visão do enorme esforço que o Estado - em parceria
com a sociedade civil, com Organismos Internacionais e Universidades - vem empreendendo para provocar
mudanças institucionais e culturais numa realidade que tem se perpetuado na nossa história e da qual somos
todos vítimas, inclusive os que cometem a prática criminosa da tortura, seja em seu nome ou em nome do
Estado que deve garantir direitos, jamais violá-los.
Veja que é possível identificar as iniciativas do Estado brasileiro para a prevenção e enfrentamento
à tortura.
Em parceria com a sociedade civil e com Organismos Internacionais (com os quais estabele-
ceu compromissos ao ratificar documentos legais), o Estado tem tomado iniciativas que formam um conjun-
to de ações e estratégias envolvendo agentes diversos. Esse conjunto se configura como políticas públicas
que estabelecem determinados objetivos na transformação da realidade em que se quer agir.
As estratégias institucionais para o enfrentamento da tortura são fundamentalmente Políticas em
Direitos Humanos. A efetivação e a proteção dos Direitos Humanos é um processo histórico no qual as
lutas políticas e ideológicas são permanentes, é uma articulação integrada por cidadãos, organizações não
governamentais e instituições públicas comprometidas com a erradicação da prática da tortura.
Enfim, percebe-se que o Governo brasileiro, seus profissionais públicos, sociedade civil e os
Organismos Internacionais se articulam e se fortalecem para criar instrumentos efetivos de prevenção e
enfrentamento à tortura, visando à futura erradicação definitiva desta grave violação.
53 ead.senasp.gov.br
Finalizando...
Exercícios
Atividade 1.
Considerando as estratégias para o enfrentamento a tortura, marque (V) para as sentenças verda-
deiras e (F) para as falsas:
Atividade 2.
A Rede Brasileira contra a Tortura é uma articulação integrada por cidadãos, organizações não go-
vernamentais e instituições públicas comprometidas com a erradicação da prática da tortura. São objetivos
da Rede, EXCETO:
54
Gabarito
55 ead.senasp.gov.br
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CORTE INTERAMERICANA, Penal Castro Castro vs. Peru, Sentença de mérito, 2006. Disponível em:
http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_160_esp.pdf. Acesso em 10 de Outubro de 2014.
CORTE INTERAMERICANA, Velásquez Rodríguez vs. Honduras, Sentença de mérito, 1988. Disponível
em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_04_esp.pdf. Acesso em 10 de Outubro de 2014.
DALLARI, P.B.A. Direitos Humanos e políticas públicas. Disponível em: http://www.oab.org.br/notí-
cias. Acesso em 17/09/2009.
DIAS, F. Educar e punir. Um estudo sobre educação no contexto da internação do adolescente autor
de ato infracional: dilemas contemporâneos. Tese de Doutorado apresentada à Faculdade de Educação da
Universidade de São Paulo. Julho de 2007.
DA SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo, 26ª ed, 2005.
56
FARIAS, J. E. Eficácia jurídica e violência simbólica. O direito como instrumento de transformação
social. São Paulo: Edusp, 1988.
IANNI. O. (org.) Marx. Sociologia. São Paulo: Ed. Ática, 1982.
JUSTIÇA GLOBAL, et al. A criminalização da pobreza. Relatório sobre as Causas Econômicas, Sociais
e Culturais da Tortura e de Outras Formas de Violência no Brasil. Rio de Janeiro: Justiça Global, 2009.
WEBER, M. Economia e Sociedade. Brasília: Ed. UnB, 1991.
WOLKMER, A.C. Ideologia, Estado e Direito. São Paulo; Editora Revista dos Tribunais, 1995, p.73.
ZIEMKIEWICZ, Nathalia; DAUDÉN, Laura. O Brasil que tortura. IstoÉ. São Paulo: 19/07/2013. Disponí-
vel em: <http://www.istoe.com.br/reportagens/315063_O+BRASIL+QUE+TORTURA>.
57 ead.senasp.gov.br