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APRESENTAÇÃO

Oi! Seja bem-vindo(a) ao curso “Prevenção e Enfrentamento à Tortura”!


Nesta etapa introdutória, você receberá uma apresentação do tema do curso, os objetivos que ele
pretende alcançar, e também conhecerá a sua organização.
Está pronto(a) para começar?
Então vamos lá!

Por ser um tema difícil de ser estudado, você necessitará conhecer e compreender as legislações
nacional e internacional que tratam do tema.
Isso deve-se ao fato de que nelas estão os princípios e valores que a sociedade brasileira e a co-
munidade internacional definiram para o conjunto da humanidade, uma vez que eles são resultados de um
processo histórico complexo no qual vai se afirmando a dignidade humana.
Mas é preciso também compreender alguns aspectos da tortura na sociedade brasileira:

• Como ocorre?
• Qual o perfil das suas vítimas e de seus executores?
• Quais são os mecanismos institucionais para enfrentamento e para provocação de mudanças
culturais, isto é, na forma de pensar presente na sociedade brasileira sobre tal prática criminosa?
• Em quais situações institucionais ocorrem?
• Quais são as dificuldades para a sua prevenção e seu enfrentamento?

Considerando a complexidade do assunto, estas questões não pretendem esgotar o tema.


Porém, certamente ao final do curso você estará mais preparado para atuar como promotor dos di-
reitos humanos, em especial para ajudar a sociedade brasileira a prevenir e enfrentar uma prática criminosa
que é em si mesma a negação da dignidade humana.
Desta maneira, a tortura, em qualquer situação, é sempre um crime de lesa humanidade, isto é,
atinge não só o torturado, mas toda a humanidade e, inclusive, o torturador.
É a dignidade humana, que é a mesma para todos e todas, que é violada e negada. Violação e
negação que se prolongam no tempo com sequelas em todos nós, seres humanos.

Objetivos do curso
Ao final do curso, você será capaz de:
• Identificar a tortura como uma prática histórica;
• Analisar fatos históricos da prática da tortura no mundo e no Brasil;
• Compreender que as legislações nacional e internacional traduzem o resultado do processo
histórico de construção da dignidade humana;
• Analisar as formas e situações de ocorrência do crime de tortura;
• Analisar os locais mais propensos à prática de tortura;
• Identificar os grupos vulneráveis à tortura;
• Caracterizar o perfil das vítimas;
• Elencar as dificuldades para prevenção e o enfrentamento à tortura, bem como os mecanis-
mos institucionais para enfrentamento e para provocação de mudanças;
• Reconhecer o papel do profissional da área de segurança pública em prevenir e combater a

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tortura.

Estrutura do Curso
O Curso Prevenção e Enfrentamento à Tortura está dividido nos seguintes módulos:
• Módulo 1 – Tortura: aspectos históricos
• Módulo 2 – O Crime de Tortura: legislações Nacional e Internacional
• Módulo 3 – O contexto da tortura
• Módulo 4 – Estratégias institucionais para o enfrentamento da tortura

Bons estudos a todos e a todas!

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MÓDULO TORTURA: ASPECTOS HISTÓRICOS

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Apresentação do módulo
Oi! Seja bem-vindo(a) ao primeiro módulo do curso, que é intitulado “Tortura: Aspectos Históricos”!
Este módulo criará condições para que você possa compreender o processo histórico da prática da
tortura. Nesse sentido, você estudará sobre a construção histórica da dignidade humana; a tortura na história
mundial e na história do Brasil.
Está preparado(a) para iniciar?
Então vamos lá!

Objetivos do Módulo
Ao final do módulo, você será capaz de:
• Analisar o processo histórico de construção da dignidade humana;
• Compreender o fenômeno da tortura no processo histórico.

Estrutura do Módulo
• Aula 1 – A construção da dignidade humana
• Aula 2 – Breve histórico do fenômeno da tortura

Aula 1 – A construção da dignidade humana

1.1 Histórico
O significado da expressão dignidade humana é fundamental para o processo histórico que
levou à proibição universal da tortura e para as políticas de Estado que visam tanto a prevenção quanto
o enfrentamento a tal prática.
E por processo histórico entende-se as mudanças e/ou permanências na vida dos homens e mu-
lheres e das sociedades ao longo dos anos e/ou séculos até os nossos dias, como resultados das lutas sociais.
Manifestam-se como acontecimentos, mentalidades, leis etc.
Embora possa parecer que é um conceito abstrato, tem sua concretude na existência diária da pes-
soa humana e das sociedades, seja na relação entre os indivíduos, seja na relação estabelecida entre eles,
a sociedade e o Estado.
O conceito de dignidade humana pode ter muitos sentidos. A dignidade humana já foi entendida
como sendo apenas atributo dos homens e mulheres que pensam e também já foi considerada como apenas
um princípio do direito.
Não obstante as diversas concepções defendidas, a dignidade humana aparece sempre como o
fundamento inicial de todo direito.
A dignidade humana está presente em todos os homens e mulheres, e o Estado e a sociedade
devem trabalhar para efetivá-la e criar as condições para protegê-la de qualquer violação.

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Importante!

Lembre-se que a dignidade humana é um valor moral inerente à pessoa e se refere a todo ser hu-
mano em qualquer situação – ela não pode ser negada a ninguém. É com base na dignidade humana que os
cidadãos e as cidadãs têm direitos civis, políticos, econômicos, culturais e sociais.

A tortura não é só um crime contra o direito à vida. É uma crueldade que atinge a
pessoa em todas as suas dimensões, e a humanidade como um todo. (DA SILVA,
2005, p. 205).

A dignidade humana é o princípio fundamental de todo Estado Democrático de Direito porque é o


fundamento da liberdade, da justiça, do desenvolvimento social e da paz. Por isso, na discussão jurídica
sobre a dignidade da pessoa humana ela é considerada como o mais amplo princípio constitucional e o
que dá razão de ser a todos os outros princípios organizados nas Constituições.
Apesar de traços do conceito da dignidade da pessoa humana já aparecerem na Revolução Inglesa
do século XVII, foi na Revolução Francesa de 1789 que encontra-se a sua expressão mais contundente, em-
bora ainda não tivesse sido expressada como tal.

A Revolução Francesa, inspirada no Direito natural, promulga a Declaração dos Direitos do Ho-
mem e do Cidadão, em 1789. Pela primeira vez na História era afirmado que todos os homens e mulheres
nascem iguais em dignidade.

Os três princípios e valores afirmados por essa Revolução (a solidariedade, a liberdade e a frater-
nidade), que devem ser orientadores do Estado e das relações humanas na sociedade, emanam do que hoje
se entende por dignidade humana.
Somente após os horrores da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a comunidade internacional
afirma a dignidade da pessoa humana como um direito fundamental.
Durante a Segunda Guerra Mundial, a Alemanha Nazista empreendeu uma política na qual expul-
sou, escravizou e assassinou cerca de 4,2 milhões de pessoas, em sua grande maioria judeus. O próprio Esta-
do empreendia uma política de discriminação com base na religião, raça e orientação sexual.
Nesse contexto, a Organização das Nações Unidas, criada pela Carta de São Francisco, é fundada
como uma resposta da comunidade internacional à Segunda Guerra Mundial em 1945.
Três anos após a Segunda Guerra Mundial, a ONU proclama, durante a sua Assembleia Geral em 10
de dezembro de 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH).

Para saber mais sobre a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), acesse: http://www.
dudh.org.br/

Em seu Preâmbulo, encontra-se como primeira afirmação:

Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros


da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da
liberdade, da justiça e da paz no mundo, (...)

A Carta de São Francisco em conjunto com a DUDH marcam o início do Direito Internacional dos
Direitos Humanos, no qual os países passam a ter a obrigação de proteger a população local e passam
a ser responsabilizados pelas violações dos direitos dessa população.

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De olho na tela
Assista ao vídeo “A História dos Direitos Humanos” produzido pelas Nações Unidas para explicar
o que são Direitos Humanos. Acesse: https://www.youtube.com/watch?v=uCnIKEOtbfc.
Obs.: O idioma é inglês, mas há legenda em português.

1.2. Dignidade humana e o Estado


A partir do processo histórico de construção da dignidade da pessoa humana, chega-se aos dias
de hoje entendendo que:

temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de


cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por
parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de
direitos e deveres fundamentais que asseguram a pessoa tanto contra todo e
qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as
condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e pro-
mover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência
e da vida em comunhão com os demais seres humanos. (SARLET, 2007, p. 62)

A dignidade da pessoa humana está definida em todos os Direitos Humanos e refere-se a todos
os seres humanos, sem distinção, e compreende também que ninguém tem mais ou menos dignidade do
que o outro.
Compõem o que se entende por dignidade humana o direito à vida, à saúde, ao devido pro-
cesso legal, a não ser torturado, ao trabalho, à educação, à moradia, a não discriminação com base em
credo, cor ou classe social, entre outros direitos.

Para saber mais...

Para mais informações, recomenda-se ler os Pactos de Direitos Civis e Políticos da ONU e de
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU, disponíveis em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
decreto/1990-1994/D0592.htm e http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0591.htm, res-
pectivamente.

Para refletir...

Com base no que estudou, você já consegue compreender qual a relação da dignidade humana
com a prática criminosa da tortura, bem como com a sua função de profissional da Segurança Pública diante
dela?

Ótimo! Você acaba de concluir o estudo dos fatores responsáveis pela construção da Dignidade
Humana.
Na próxima aula você verá sobre o histórico da tortura.
Pronto(a)? Então vamos lá!

Aula 2 – Breve histórico da tortura


O fluxograma abaixo ilustra a cronologia dos aspectos históricos (tanto mundiais, quanto nacionais)
que serão visto no conteúdo, facilitando sua localização. Volte nele sempre que necessário.

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Histórico da Tortura
História Mundial História do Brasil
Idade Antiga Colonização
Idade Média Constituição de 1824
Idade Moderna Constituições de 1891, 1934 e 1946
Idade Contemporânea Período de 1964 a 1985
A patirda Constituição de 1988

2.1. Tortura na História Mundial


Nesta aula você estudará sobre o longo processo histórico da prática de tortura como instrumen-
to de dominação, controle social e terror. Por meio da leitura e dos exercícios, você poderá compreender o
caminho percorrido pela prática de tortura, considerada como arcabouço legal e de manifestação pública –
que regulava as relações sociais – até ser considerada pela comunidade internacional como crime de lesa
humanidade.
Compreender o que a tortura tem sido na História e na nossa história é uma exigência para o seu
enfrentamento e para sua definitiva proibição como questão social que agride toda a comunidade humana.
Tenha um ótimo aprendizado!

Para contextualizar a tortura na História, foram selecionados episódios específicos da prática de


tortura.
Há registros da prática de tortura há cerca de 4 mil anos como estratégia de guerra sobre prisio-
neiros para aterrorizar o inimigo, como punição e também como meio de obter informações.
Na Grécia Antiga, “a tortura era (...) prática destinada aos escravos como forma de conseguir confis-
sões de delitos cometidos ou para testemunhar na apuração de delito cometido por outro escravo.” (MAR-
QUES DE JESUS, 2009, p.22)
Na Roma Antiga, a tortura também era usada nos escravos e também foi utilizada na perseguição
aos cristãos.
Na Idade Média, a tortura era utilizada para punições e estava prevista no ordenamento jurídico do
Direito Germânico.
A tortura também estava prevista no Direito Canônico e foi amplamente utilizada durante o período
da Inquisição e na colonização nas Américas.

O QUE FOI A INQUISIÇÃO?

A Inquisição foi um Tribunal Eclesiástico fundado no final do século XII, no sul da atual França, para
defender a fé católica: vigiava, perseguia e condenava aqueles que fossem suspeitos de praticar outras reli-
giões ou crenças, como a Ciência, por exemplo. Mas quem executava as penas era o Estado, em geral com o
uso sistemático da tortura, que fazia parte dos Tribunais na maior parte dos Estados europeus da época que
dariam origem aos atuais países.

Ainda segundo a mesma autora, a tortura foi utilizada “até o século XIV (...) como um instrumento
processual” (MARQUES DE JESUS, 2009, p.33). Nesse período, os juízes acreditavam que não havia outra
forma de se alcançar a verdade e, ao mesmo tempo, depurar a alma do criminoso se não fosse pela dor
até a morte.
Numa estrutura social profundamente marcada pela desigualdade, o alvo preferencial dos tormen-
tos estava naqueles que deveriam ser dominados no corpo e mente.
Essa característica da tortura como instrumento de dominação é parte da explicação sobre a sua

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permanência na sociedade brasileira contemporânea, ainda que sob um regime democrático, mas com pro-
fundas desigualdades sociais.
A partir do século XV, ela passou a ser utilizada também como instrumento para garantir a segu-
rança do Estado.
Somente a partir do século XVIII com o movimento Iluminista que a prática de tortura passou
a ser questionada e entendida como contrária aos direitos humanos.
Isso porque o Iluminismo, promovido pelos intelectuais europeus, foi um movimento filosófico,
político, social, econômico e cultural, que defendia o uso da razão, a liberdade, a autonomia e a emancipação
como forma de progresso da humanidade.
Apesar do novo entendimento, “a tortura continuou fazendo parte da prática de interrogatórios e
de punição nos séculos XIX e XX, e permanece no século XXI” (MARQUES DE JESUS, 2009, p. 46).
Cabe mencionar que as violações de direitos humanos da Segunda Guerra Mundial levaram às Na-
ções Unidas a criar uma série de instrumentos para a proteção e defesa dos direitos humanos, além da
Declaração Universal dos Direitos Humanos, mencionada anteriormente.
A Carta de Londres (1945), a qual define o estatuto do Tribunal de Nuremberg, e a Convenção
para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio (1948) são alguns instrumentos que estabelecem
as primeiras definições da tortura como crime lesa humanidade.

Importante!

A tortura foi proibida na Declaração Universal dos Direitos Humanos e no Pacto Internacional dos
Direitos Civis e Políticos, entretanto a sua prática foi utilizada em larga escala na Guerra de Libertação da Ar-
gélia e nos regimes autoritários na América Latina, entre outros conflitos durante a Guerra Fria. Em resposta
à pressão da comunidade internacional, as Nações Unidas adotaram a Convenção Contra a Tortura e Outros
Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes em 1984.

Para saber mais sobre a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, De-
sumanos ou Degradantes em 1984, acesse o arquivo “Convenção contra tortura”, que está nos anexos do
curso.

A partir desses documentos internacionais e também das experiências dos Tribunais de Nuremberg,
para a Antiga Iugoslávia, de Ruanda, as Nações Unidas adotaram, em 2002, o Estatuto de Roma, o qual cria
o Tribunal Penal Internacional e define a tortura como crime contra humanidade.

Para saber mais sobre o “Estatuto de Roma”, acesse: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decre-


to/2002/D4388.htm
Bom, agora você já está por dentro dos fatos importantes que fizeram parte do histórico da tortura
ao longo dos anos em âmbito mundial.
A partir de agora, você conhecerá o histórico da tortura dentro do contexto nacional brasileiro.
Bons estudos!

2.2. Tortura na História do Brasil


A prática da tortura esteve presente na história do Brasil desde a colonização, trazida pelos portu-
gueses e praticada contra os indígenas, os escravos africanos e depois os trabalhadores livres. O modelo de
dominação política, econômica, social e cultural exigia que ela fizesse parte da realidade.

“Essa origem histórica ajuda a explicar a permanência da prática de tortura nas


instituições do Estado na sociedade brasileira mesmo nos períodos de vigência
da democracia, bem como ajuda a explicar também contra quem ela é aplicada

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preferencialmente como crime de oportunidade” (MAIA, 2006).

A tortura é comum em nosso país desde sempre. Essa prática nefanda, verdadei-
ra herança maldita, trazida pelos portugueses “educados” nos métodos da dita
sagrada Inquisição, permanece até hoje, passando por Colônia, Império, Inde-
pendência, República, ditaduras e imperfeitos Estados de Direito, com governos
de todos os tipos. Os indígenas, os hereges ou infiéis, os negros escravos e des-
cendentes, os “vadios”, os marginais de toda sorte, os internos nos manicômios,
os “subversivos” e opositores políticos, os presos ditos “comuns”, os pobres em
geral, os não cidadãos... Todos potencialmente vítimas dos abusos e da violência
extremada. Para punir, disciplinar e purificar (sic), arrancar confissões e informa-
ções, intimidar, “dar o exemplo”, vingar, derrotar física e moralmente o suposto
inimigo ou, simplesmente, o indesejável. (SOARES, 2010, p. 21)

A fundação do Brasil como colônia se deu por meio de empresas econômicas de portugueses, “que
tinham poder de vida e de morte sobre os africanos – considerados mercadorias – e sobre os índios – consi-
derados selvagens, muitas vezes equiparados às feras, animais sem alma” (MAIA, 2006).
Essa estrutura econômica que determinava um poder de dominação sobre aqueles com os “corpos
expostos” foi apontada pelo Estado brasileiro no primeiro Relatório ao Comitê contra a Tortura, da ONU:

O dado histórico, portanto, é que os detentores do poder econômico e também


os do poder político utilizavam-se da violência contra os despossuídos – índios,
negros, pobres em geral – como modo de garantir controle social, como inti-
midação, castigo ou mero capricho. Aprisionavam pelas correntes e pelo medo.
Dominavam o corpo, com isso pretendendo também subjugar o espírito. (MAIA,
2006, p. 44).

A Constituição de 1824 afirmava em seu artigo 179, incisos 19 e 21, que “desde já ficam abolidos
os açoutes, a tortura, a marca de ferro quente, e todas as mais penas cruéis”. No entanto, até a Abolição,
os trabalhadores escravizados foram submetidos às práticas de tortura por ordem de senhores e com a
conivência do Estado.
As Constituições republicanas de 1891 e de 1934 nada afirmavam sobre a tortura. Mesmo após
o Estado Novo, regime ditatorial que durou entre 1937 e 1945, que teve na tortura contra presos políticos
uma das estratégias para a manutenção do poder, a Constituição de 1946 não proibiu a prática de tor-
tura.
De 1964 a 1985 o Brasil esteve sob uma ditadura civil-militar e a tortura foi utilizada contra todos
e todas considerados subversivos, ou seja, as pessoas que se opunham ao governo militar (em especial,
estudantes, artistas, políticos opositores, líderes religiosos e sindicais e militares).
A tortura era utilizada para alcançar uma verdade e também instalar o terror como estratégia de
dominação, em outras palavras, a prática disseminada da tortura contra todos e todas considerados subver-
sivos (qualquer opositor), buscava não somente alcançar uma verdade da forma mais rápida possível, mas
também instalar o terror como estratégia de dominação.

Também aqui, sob o pretexto de combater o comunismo, o alvo preferencial era


constituído pela classe média: estudantes, artistas, políticos opositores, líderes
religiosos e sindicais, militares... “A ditadura não inventou a tortura, mas exacer-
bou-a. E adotou essa prática de modo intenso, ‘aprimorando’ os mecanismos já
utilizados nos períodos anteriores à sua instalação”. (MAIA, 2006, p.54)

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Embora não expressasse claramente a prática da tortura como instrumento de dominação, de con-
trole social e de investigação, a Doutrina de Segurança Nacional da ditadura justificava com a existência
do “inimigo interno” o crime de lesa humanidade, com inspiração para sua fundamentação nos militares
franceses durante a guerra de independência da Argélia:

A tortura – crime hediondo, que coisifica o indivíduo até o ponto da capitulação


total, submetendo-o ao pavor da entrega, da submissão –, como instrumento de
ação nesse tipo de guerra contra o “inimigo interno”, foi desenvolvida por mili-
tares franceses ao tempo da guerra da Argélia, e está exposta, com clareza, nos
livros escritos pelos generais André Beaufre e Gabriel Bonnet e pelos coronéis
Roger Trinquier e Chateau Jobert, traduzidos para o espanhol e publicados em
Buenos Aires. Essa teoria adotou, abertamente, a tortura como técnica de luta.
Diz-se que, na guerra convencional, o criminoso está atrás das linhas e que, na
guerra revolucionária, está entre nós, só podendo ser descoberto através da tor-
tura de suspeitos e da informação imediata. (BARBOSA, 2010, p.?).

A partir do final da década de 1970, ocorreu um abrandamento da prática da tortura contra os


opositores do regime devido, em grande parte, à luta dos movimentos sociais pelos Direitos Humanos e
pela pressão internacional. Entretanto, a prática seguiu nas instituições da Segurança Pública e do Sis-
tema Penitenciário com vistas a obter confissões, informações ou castigar.
A Constituição de 1988 trouxe mudanças significativas para os órgãos da segurança pública
ao descentralizar sua atuação das Forças Armadas e submetendo-os aos governos estaduais/distrital.
Porém, as técnicas de tortura ficaram como herança histórica da ditadura civil-militar.
Algumas dessas técnicas tiveram continuidade em algumas instituições da Segurança Pública e do
Sistema Penitenciário, que passaram a aplicá-las em situações de oportunidades contra os “suspeitos” e os
que se encontram em situação de custódia pelo Estado.

DIREITO À MEMÓRIA E À VERDADE

Após a redemocratização, o Estado brasileiro aprovou três leis que tratam das violações dos direi-
tos humanos ocorridos durante a ditadura civil-militar.
A primeira foi a Lei n.° 9.140/1995 que reconheceu como mortas dezenas de pessoas que, em
razão de participação ou acusação de participação em atividades políticas no período de 2 de setembro de
1961 a 15 de agosto de 1979, encontravam-se desaparecidas. A lei também criou a Comissão Especial sobre
Mortos e Desaparecidos (CEMDP).

Para saber mais sobre a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos (CEMDP), acesse: http://
www.sdh.gov.br/assuntos/mortos-e-desaparecidos-politicos/programas/comissao-especial-sobre-mortos-
-e-desaparecidos-politicos

A Lei n.° 10.559/2002 criou a Comissão de Anistia (CA) no Ministério da Justiça. A CA


tem como objetivo promover reparação econômica aos perseguidos e pessoas que sofreram vio-
lações em decorrências de atos de exceção praticados pelos governos brasileiros a partir de 1946,
em especial durante a Ditadura Civil-Militar.
A terceira lei, a Lei n.° 12.528/2011, criou a Comissão Nacional da Verdade (CNV), que foi
instituída em 16 de maio de 2012. A CNV tem por finalidade apurar graves violações de Direitos
Humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988. Em 2013, a Comissão
Nacional da Verdade apresentou um relato preliminar de suas atividades ao país.

Para saber mais sobre a Lei n.° 12.528/2011, acesse: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_


Ato2011-2014/2011/Lei/L12528.htm

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Para saber mais sobre o relato preliminar, acesse: http://youtu.be/VcPRSGQVR08

As leis são importantes ações do Estado para garantir o direito à memória e à verdade no
Brasil, em especial sobre o período da Ditadura Civil-Militar. Para aprofundar um pouco mais os
conhecimentos sobre a temática, leia o artigo “Políticas de memória: o que é e para que serve?” de
Caroline Silveira Bauer.

Para ler o artigo, acesse o arquivo “Políticas de memória”, que está nos anexos do curso.

Importante!

No restabelecimento da democracia, é importante pontuar que o objeto da segurança pública dei-


xou de ser a defesa do Estado contra o cidadão “subversivo”. Entretanto, muitos têm uma concepção errônea
de que a função dos profissionais da segurança pública no Estado Democrático de Direito é defender o Es-
tado contra o cidadão “suspeito”. Este entendimento está errado, pois o papel da segurança pública é na
defesa dos direitos dos cidadãos. A própria Declaração Universal dos Direitos Humanos indica que toda
pessoa tem direito à segurança pessoal no Art. 3º.

Por fim, é necessário pontuar que a tortura praticada por profissionais públicos atualmente
não pode ser resumida apenas como uma herança da ditadura civil-militar. Há outros fatores
que pressionam o profissional de segurança pública a buscar uma suposta solução rápida para
os problemas da segurança pública: aumento da violência, aumento do tráfico nacional e inter-
nacional de drogas e uma demanda da população por mais segurança.

Na leitura desse breve percurso histórico você teve a oportunidade de compreender


o fenômeno da tortura desde suas práticas visíveis, públicas e legais até a sua proibição
pelas Constituições democráticas.

Para saber mais, leia ...

• O Capítulo 2 da dissertação de mestrado “O crime de tortura e a justiça criminal: um es-


tudo dos processos de tortura na cidade de São Paulo” de Maria Gorete Marques de Jesus, disponível nos
anexos do curso.
• O Artigo Tortura no Brasil, uma herança maldita, da Profª Maria Victoria Benevides Soares,
no Capítulo 1 do livro Tortura. Coordenação de Combate à Tortura (Org.) Brasília: Secretaria de Direitos Hu-
manos, 2010, disponível nos anexos do curso.
• O Capítulo 1, Parte 1 da obra MAIA, Luciano Mariz. Do Controle Judicial da Tortura Insti-
tucional no Brasil: à luz do direito internacional dos direitos humanos. Tese (Doutorado em Direito) – Uni-
versidade Federal de Pernambuco. Recife, 2006, disponível nos anexos do curso.

Finalizando...

• A dignidade humana está presente em todos os homens e mulheres, e o Estado e a sociedade


devem trabalhar para efetivá-la e criar condições para protegê-la de qualquer violação.
• A dignidade humana é o princípio fundamental de todo Estado Democrático de Direito
porque é o fundamento da liberdade, da justiça, do desenvolvimento social e da paz.
• A Carta de São Francisco em conjunto com a DUDH marcam o início do Direito Internacional
dos Direitos Humanos, no qual os países passam a ter a obrigação de proteger a população local e pas-
sam a ser responsabilizados pelas violações dos direitos dessa população.
• Há registros de sua prática há cerca de 4 mil anos como estratégia de guerra sobre prisionei-

11 ead.senasp.gov.br
ros para aterrorizar o inimigo, como punição e também como meio de obter informações.
• As violações de direitos humanos da Segunda Guerra Mundial levaram as Nações Unidas a
criar uma série de instrumentos para a proteção e defesa dos direitos humanos, além da Declaração Univer-
sal dos Direitos Humanos.
• A prática da tortura esteve presente na história do Brasil desde a colonização, trazida pelos
portugueses e praticada contra os indígenas, os escravos africanos e depois os trabalhadores livres. O mo-
delo de dominação política, econômica, social e cultural exigia que ela fizesse parte da realidade.

Exercícios

Considerando tudo o que foi visto neste módulo, a seguir, são apresentadas três questões de múl-
tipla escolha. Leia atentamente o enunciado e marque a alternativa que você julga correta.
Pronto(a) para começar?
Então vamos adiante!

Atividade 1.
Considerando o termo dignidade humana é correto afirmar que:

a) A dignidade da pessoa humana está definida em todos os Direitos Humanos, mas refere-se
somente aos grupos específicos sujeitos à vulnerabilidade.
b) A dignidade da pessoa humana está definida apenas nos Direitos Humanos dos países que
assinaram a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
c) O conceito de dignidade humana se restringe a não discriminação com base em credo, cor ou
classe social, entre outros direitos.
d) A dignidade humana é um valor moral inerente à pessoa e se refere a todo ser humano em
qualquer situação – ela não pode ser negada a ninguém.

Atividade 2.
Diante das violações de direitos humanos na Segunda Guerra Mundial a ONU criou uma série de
instrumentos para a proteção e defesa dos direitos humanos, EXCETO:

a) Declaração Universal dos Direitos Humanos.


b) Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradan-
tes.
c) A Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio.
d) A Carta de Londres.

Atividade 3.
Considerando a história do Brasil pode-se afirmar, de forma resumida, que com o restabelecimento
da democracia o papel da Segurança Pública passa a ser:

a) A defesa do Estado contra opositores políticos.


b) A defesa dos direitos dos cidadãos.
c) A defesa do Estado contra o “não cidadãos”.
d) A defesa do Estado contra estrangeiros

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Gabarito

Resposta atividade 1: Alternativa d).

Resposta atividade 2: Alternativa b).

Resposta atividade 3: Alternativa b).

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O CRIME DE TORTURA: LEGISLAÇÕES NACIONAL E
MÓDULO INTERNACIONAL
2
Apresentação do módulo
Olá! Seja bem-vindo(a) ao módulo “O crime de tortura: legislações nacional e internacional”.
No módulo anterior você estudou sobre alguns aspectos históricos da tortura.
Já, neste módulo, você estudará os principais tópicos das legislações nacional e internacional, cujo
objetivo é a erradicação da tortura na comunidade humana.
A partir dos conceitos, você irá explorar alguns casos de tortura analisados pela Corte Europeia de
Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Lembre-se!

É Importante que você não perca de vista o breve trajeto histórico da ocorrência da tortura, estuda-
do no módulo anterior.
Siga adiante e bons estudos!

Objetivos do Módulo
Ao final do módulo, você será capaz de:
• Identificar o crime de tortura;
• Analisar os principais pontos contidos nas legislações nacional e internacional voltadas para
erradicação da tortura;
• Reconhecer a importância de contribuir nas medidas para a prevenção e enfrentamento à
tortura;
• Conhecer os principais casos de cortes internacionais sobre o crime de tortura.

Estrutura do Módulo
• Aula 1 – Os instrumentos internacionais e a legislação nacional sobre tortura
• Aula 2 – Jurisprudência internacional sobre tortura

Aula 1 – Os instrumentos internacionais e a legislação nacional


sobre tortura
A tortura é um tema difícil de ser estudado, mas também só pode ser enfrentado se você tiver o
conhecimento sobre ele. É preciso, então, conhecer e compreender a legislação nacional e internacio-
nal que trata do tema, porque estão nelas os princípios e valores que a sociedade brasileira e a comunidade
internacional definiram para o conjunto da humanidade.
Também é preciso compreender que tais princípios e valores são resultados de um processo histó-
rico complexo no qual vai se afirmando a dignidade humana.

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1.1. Instrumentos internacionais
A tortura era admitida como parte da lei que regulava as relações sociais e foi abolida progressi-
vamente das legislações, embora ainda permaneça ilegalmente como prática escondida do olhar público na
atualidade.
A condenação da tortura pelas constituições de quase todos os Estados do mun-
do [lembra Lamberto Pasolli] não tem significado seu definitivo desaparecimen-
to. Não mais usada como meio de prova regulada pela lei, tem sido aplicada,
todavia, sistematicamente como instrumento infame de domínio político, por
parte de monstruosas tiranias, como a nazista ou comunista, assinaladamente na
idade stalinista, ou mesmo de nações que se definem como civis, como a França
(durante a guerra da Argélia) ou o hodierno Brasil. É de indagar-se atemorizado
se esta barbárie não terá fim. (“Tortura”, in Novissimo Digesto Italiano, v. XIX/428,
apud DA SILVA, 2005, p. 205)

No âmbito internacional, o termo “direitos humanos” apareceu pela primeira vez na Carta de São
Francisco (1945), já a tortura foi mencionada pela primeira vez na Declaração Universal dos Direitos Hu-
manos (1948):

Artigo V - Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou
degradante.

De olho na tela

Assista ao vídeo da campanha “STOP TORTURE” da Anistia Internacional, disponível em: https://
www.youtube.com/watch?v=kqh4qc-QddE
Obs.: O vídeo está em inglês, mas há legenda disponível em português.

No Brasil, a DUDH (Declaração Universal dos Direitos Humanos) tem um valor histórico, pois foi
por meio desse instrumento que a comunidade internacional orientou os países a condenarem a tortura e
adotarem políticas para erradicar essa prática. A DUDH influenciou o ordenamento jurídico brasileiro impul-
sionando a construção da própria Constituição Federal de 1988 – chamada “Constituição Cidadã”.
Até a adoção da Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis Desumanas ou
Degradantes pela ONU, em 1984, a proibição da prática da tortura consta também do Pacto Internacional
sobre Direitos Civis e Políticos em 1966.

Para saber mais sobre a Convenção Contra a Tortura, acesse o arquivo de mesmo nome, que está
nos anexos do curso.

A Convenção Contra a Tortura é importante, uma vez que ela define o crime de tortura:

Para fins da presente Convenção, o termo “tortura” designa qualquer ato pelo
qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencional-
mente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou
confissões; de castigá-la por ato que ela ou terceira pessoa tenha cometido, ou
seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pes-
soas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza;
quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou
outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o
seu consentimento ou aquiescência. Não se considerará como tortura as dores
ou sofrimentos que sejam consequência unicamente de sanções legítimas, ou
que sejam inerentes a tais sanções ou delas decorram.

A Convenção também define ações e medidas para a erradicação da tortura. Nesse sentido, quando

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os países assinam e ratificam a Convenção, eles se comprometem a:
• Tipificar no seu ordenamento jurídico interno o crime de tortura
• Realizar capacitações para profissionais públicos encarregados da custódia e proteção de
pessoas privadas de liberdade, e para operadores do direito
• Investigar as denúncias de tortura e processar e punir os responsáveis
• Reparar às vítimas de tortura
• Informar periodicamente às Nações Unidas sobre as medidas tomadas pelo Estado para a
incorporação da Convenção Contra Tortura em seu ordenamento jurídico interno

No âmbito das Nações Unidas, a Convenção da Tortura cria o Comitê Contra Tortura (CAT, sigla em
inglês).

O CAT é formado por 25 especialistas na temática, que são responsáveis por avaliar a implementa-
ção da Convenção nos países e podem fazer recomendações a partir dessa avaliação. Os membros podem
também receber denúncias de tortura e, a partir das denúncias, eles podem pedir esclarecimentos ao país
da denúncia, funcionando como um último recurso para aqueles que não conseguiram apresentar a de-
núncia em seu próprio país.

Em 2002, a ONU aprovou o Protocolo Facultativo à Convenção Contra a Tortura e Outras Penas ou
Tratamentos Cruéis, Desumanos e Degradantes, que cria o Subcomitê de Prevenção à Tortura (SPT), que si-
milar ao CAT também está na estrutura das Nações Unidas.

Para saber mais sobre o Protocolo, acesse o arquivo “Protocolo facultativo”, que está nos anexos
do curso.

O SPT é formado por dez especialistas que são responsáveis por visitar os países para realizar
inspeções a locais de privação de liberdade, tais como:
• Presídios;
• Delegacias;
• Institutos socioeducativos;
• Institutos de longa permanência de idosos;
• Abrigos para crianças e adolescentes; e
• Locais que realizam atendimento e tratamento a pessoas com drogadição.
O Protocolo determina que os países criem o Mecanismo Preventivo Nacional (MPN), que tem a
mesma natureza do SPT. Os países ficam obrigados a criar órgãos que tenham a competência para realizar
inspeções a locais de privação de liberdade, sem aviso prévio e com a permissão para fazer registros foto-
gráficos, vídeos e gravações.
As visitas têm por finalidade identificar elementos nesses locais que podem favorecer o crime de
tortura, o que muda o foco da política para preventivo e não apenas reativo quando a violação já ocor-
reu. O Brasil criou o seu Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) por meio da Lei
n.º 12.847 de 2 de agosto de 2013 – O MNPCT será explicado mais à frente.
Ainda no âmbito das Nações Unidas, é importante citar o Estatuto de Roma (2002), que como
mencionado em aulas anteriores, cria o Tribunal Penal Internacional e também tipifica os crimes de lesa
humanidade, entre os quais está a tortura.

Para saber mais sobre o Estatuto de Roma, acesse: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decre-


to/2002/D4388.htm

Veja o trecho do Estatuto de Roma que dispõe sobre isso:

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Art. 7° - Crimes contra a Humanidade

1. Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por “crime contra a humanidade”, qual-
quer um dos atos seguintes, quando cometido no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático,
contra qualquer população civil, havendo conhecimento desse ataque:
a) Homicídio;
b) Extermínio;
c) Escravidão;
d) Deportação ou transferência forçada de uma população;
e) Prisão ou outra forma de privação da liberdade física grave, em violação das normas fundamen-
tais de direito internacional;
f) Tortura;
g) Agressão sexual, escravatura sexual, prostituição forçada, gravidez forçada, esterilização forçada
ou qualquer outra forma de violência no campo sexual de gravidade comparável;
h) Perseguição de um grupo ou coletividade que possa ser identificado, por motivos políticos, ra-
ciais, nacionais, étnicos, culturais, religiosos ou de gênero, tal como definido no parágrafo 3o, ou em função
de outros critérios universalmente reconhecidos como inaceitáveis no direito internacional, relacionados
com qualquer ato referido neste parágrafo ou com qualquer crime da competência do Tribunal;
i) Desaparecimento forçado de pessoas;
j) Crime de apartheid;
k) Outros atos desumanos de caráter semelhante, que causem intencionalmente grande sofri-
mento, ou afetem gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental.

Há ainda instrumentos internacionais criados no âmbito da Organização dos Estados Ame-


ricanos (OEA). A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969) e a Convenção Interamericana para
Prevenir e Punir a Tortura (1985) também proíbem a tortura praticamente nos mesmo termos que a ONU.
Sobre essa questão, vale ler a definição de tortura no Art. 2º da Convenção Interamericana para Prevenir e
Punir a Tortura:

Para saber mais sobre a Convenção Americana, acesse: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decre-


to/D0678.htm

Para saber mais sobre a Convenção Interamericana, acesse: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/


Decreto/1980-1989/D98386.htm

Para os efeitos desta Convenção, entender-se-á por tortura todo ato pelo qual
são infligidos intencionalmente a uma pessoa penas ou sofrimentos físicos ou
mentais, com fins de investigação criminal, como meio de intimidação,
como castigo pessoal, como medida preventiva, como pena ou qualquer
outro fim. Entender-se-á também como tortura a aplicação, sobre uma pessoa,
de métodos tendentes a anular a personalidade da vítima, ou a diminuir
sua capacidade física ou mental, embora não causem dor física ou angústia
psíquica.

Não estarão compreendidas no conceito de tortura as penas ou sofrimentos


físicos ou mentais que sejam unicamente consequência de medidas legais ou
inerentes a elas, contanto que não incluam a realização dos atos ou a aplicação
dos métodos a que se refere este artigo.

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Importante!

A Convenção Interamericana amplia o conceito de tortura da Convenção da ONU, uma vez que ela
amplia a aplicação para “qualquer outro fim” (diferente da ONU que especifica uma finalidade). Reconhe-
cem-se ainda ações para anular a personalidade da vítima (APT e CEJIL, 2008, p.98).

Exemplo de sentença

Leia o trecho da sentença de mérito, reparação e custos do caso da Penitenciária Miguel Cas-
tro v. Peru (2006) da Corte Interamericana de Direitos Humanos no arquivo “Sentença”, que está nos anexos
do curso.

Vale observar também que a OEA (Organização dos Estados Americanos) dispõe de meios dife-
rentes para auxiliar na implementação dos instrumentos. Enquanto a ONU, tem o CAT e o SPT, a OEA tem a
Comissão e a Corte Interamericana, que tem mecanismos mais sofisticados para receber denúncias de
tortura por pessoas ou entidades contra seus próprios países. A Comissão pode fazer recomendações e
a Corte pode condenar um país no âmbito internacional por uma violação dos direitos humanos.

Para determinar quais atos constituem tortura, a Comissão e a Corte têm toma-
do em conta tanto elementos objetivos, tais como o período de tempo durante
o qual se infligiu a pena ou o sofrimento, o método utilizado para produzir dor,
a finalidade, as circunstâncias gerais sociopolíticas e a arbitrariedade, ou algo
similar, a privação de liberdade, assim como também elementos subjetivos como
por exemplo a idade, o gênero e a vulnerabilidade particular da vítima. (APT e
CEJIL, 2008, p.98)

No Brasil, a Convenção Contra Tortura, a Convenção Americana, a Convenção Interamericana e o


Protocolo Facultativo foram ratificados por meio do Decreto n.º 40/1991, Decreto n.º 678/1992, Decreto
n.º 98.396/1989 e Decreto n.º 6.085/2007, respectivamente. Como mencionado anteriormente, a ratificação
compromete o país a adotar as medidas indicadas por esses instrumentos perante a comunidade interna-
cional.

1.2. Legislação nacional


1.2.1. Constituição Federal
Na Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 5 de outubro de 1988, o Estado
brasileiro afirma os princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948.
Seu Art. 1º, inciso III, afirma: A dignidade humana como um dos fundamentos do Estado Demo-
crático de Direito.
No TÍTULO II Dos Direitos e Garantias Fundamentais, CAPÍTULO I DOS DIREITOS E DEVERES INDIVI-
DUAIS E COLETIVOS, o seu Art. 5º, inciso III afirma que: Ninguém será submetido a tortura nem a trata-
mento desumano ou degradante.
A Constituição Federal de 1988 não definiu o que estava sendo entendido como tortura nem as
ações penais cabíveis. A tipificação do crime de tortura ocorreu somente em 1997, motivada após um episó-
dio de grande violência e repercussão nacional, o caso “Favela Naval”.
Para relembrar esse caso e para conhecer a lei criada em 1997, dê continuidade ao curso!

1.2.2. Lei n.º 9.455/1997

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No dia 7 de março de 1997, policiais militares foram filmados extorquindo dinheiro, torturando e
assassinando um homem durante uma blitz na Favela Naval, na região de Diadema, em São Paulo. A filma-
gem foi ao ar em 31 de março no Jornal Nacional.
Nesse contexto, atendendo uma demanda da própria sociedade, a Lei n.º 9.455 de 7 de abril de
1997 foi aprovada.

Para saber mais sobre essa lei, acesse: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9455.htm

De olho na tela

Assista a algumas imagens do caso Favela Naval, disponíveis em: https://www.youtube.com/watch?-


v=W4w8e3DPpB4

Diferente da definição das Nações Unidas, a Lei entende que a tortura pode ser feita tanto no con-
texto público quanto no contexto privado, conforme Art. 1°:

I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico
ou mental:
a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa;
b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;
c) em razão de discriminação racial ou religiosa;
II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave
ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter
preventivo.
Pena - reclusão, de dois a oito anos.
§ 1º Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a so-
frimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida
legal.
§ 2º Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-las,
incorre na pena de detenção de um a quatro anos.
§ 3º Se resulta lesão corporal de natureza grave ou gravíssima, a pena é de reclusão de quatro a dez
anos; se resulta morte, a reclusão é de oito a dezesseis anos.
§ 4º Aumenta-se a pena de um sexto até um terço:
I - se o crime é cometido por agente público;
II – se o crime é cometido contra criança, gestante, portador de deficiência, adolescente ou maior
de 60 (sessenta) anos; (Redação dada pela Lei n.º 10.741, de 2003)
III - se o crime é cometido mediante sequestro.
§ 5º A condenação acarretará a perda do cargo, função ou emprego público e a interdição para seu
exercício pelo dobro do prazo da pena aplicada.
§ 6º O crime de tortura é inafiançável e insuscetível de graça ou anistia.
§ 7º O condenado por crime previsto nesta Lei, salvo a hipótese do § 2º, iniciará o cumprimento da
pena em regime fechado.

Importante!

Em relação à discriminação, a lei brasileira é restritiva se comparada à Convenção, a qual considera


qualquer discriminação. Além disso, embora estipule aumento de pena quando o crime é realizado por um
profissional público, a legislação deixa claro que não exige a sua presença para definir o ato criminoso de
tortura.
Veja três decisões do TJMG que podem ser utilizadas como exemplo da aplicação da Lei n.° 9.455/97.

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Elas estão disponíveis nos anexos do curso.

1.2.3. Lei n.º 12.847/2013

Em 2007, o Estado brasileiro ratificou o Protocolo Facultativo. Portanto, a partir do compromisso


firmado internacionalmente, o governo federal, em conjunto com a sociedade civil, elaborou o anteprojeto
para criar o Mecanismo Preventivo no Brasil. A proposta foi encaminhada para o Congresso Nacional em
2011 e aprovada em 2013.
A Lei n.º 12.847/2013 impõe um importante avanço na construção de uma política pública de Es-
tado, visando ao enfrentamento de graves violações de direitos humanos que se constituem como práticas
no âmbito da ação das instituições de privação de liberdade, revelando-se prática sistêmica conforme relatos
internacionais e, também de relatórios produzidos por organizações da sociedade civil que monitoram a
implementação dos direitos humanos.
A Lei n.º 12.847, de 02 de agosto de 2013 instituiu:

Comitê Nacional de Prevenção


e Combate à Tortura (CNPCT)
Sistema Nacional de Pre- _________________________________
venção e Combate à Tortura Mecanismo Nacional de Pre-
(SNPCT) venção e Combate á Tortura
(MNPCT)

Para saber mais sobre a Lei n.º 12.847, de 02 de agosto de 2013, acesse: http://www.planalto.gov.
br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2013/Lei/L12847.htm

Com a criação do Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, o Estado Brasileiro con-
solida a formalização de uma rede de atores em nível nacional e local que favorece a articulação de ações
para prevenção e enfrentamento à tortura. A partir da rede, facilita-se o intercâmbio de boas práticas, or-
ganização de medidas para implementação de recomendações feitas no âmbito do Mecanismo Nacional,
negociação de soluções para questões de privação de liberdade levadas para organismos internacionais,
dentre outras ações.
O Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, formado por 11 representantes do Go-
verno Federal e 12 representantes da sociedade civil, deverá atuar na prevenção e enfrentamento à tortura
a partir:
• Do acompanhamento, da avaliação e da proposição de ações de programas; e
• Da atuação dos distintos órgãos e segmentos sociais envolvidos na erradicação desta viola-
ção.
Ou seja, a natureza do seu fazer sustenta-se na formulação, desenvolvimento e monitoramento
de políticas públicas afetas ao campo. Ao Comitê também compete acompanhar trâmites de apuração
administrativa e judicial, bem como de proposições legislativas, dando encaminhamento às recomendações
advindas de inspeções nos centros de detenção. A sistematização de informações a partir da manutenção e
construção de um banco de dados relacionado às denúncias e às respostas institucionais e estatais também
envolve o rol de competências esperadas do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura.
Já o Mecanismo Nacional é composto por 11 especialistas independentes (peritos), que têm a
competência de realizar inspeções a locais de privação de liberdade nos termos do Protocolo Facultativo.
Eles também têm a competência para requerer a realização de perícias oficiais e seus relatórios poderão ser
utilizados como meio de prova em ações judiciais.
A proposta do MNPCT é apontar situações de riscos que levariam à prática da tortura, bem como,
prováveis encaminhamentos para a sua solução. Assim como o SPT, a atuação tem uma perspectiva proativa,

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não apenas reativa.
Além do SNPCT, do CNPCT e do MNPCT, previu-se também a instalação de um Comitê de Peritos
Federais que terão autonomia para ingressar a qualquer momento em instituições fechadas para inspecio-
nar possíveis violações dos Direitos Humanos.

Aula 2 – Jurisprudência internacional sobre tortura


Olá! Seja bem-vindo(a) a esta nova aula!
Anteriormente você estudou sobre os instrumentos internacionais e a legislação nacional
sobre tortura.
Já, nesse momento, você aprenderá um pouco sobre a jurisprudência internacional sobre tor-
tura.
Preparado(a)?
Vamos lá!

Apesar das legislações nacionais e internacionais trazerem definições sobre o crime de tortura, o
uso da palavra “tortura” ainda gera um pouco de confusão.
Por esse motivo, você estudará a seguir algumas decisões de órgãos e cortes internacionais de di-
reitos humanos para elucidar o conceito.
Siga adiante!

2.1. Corte Europeia de Direitos Humanos


O Sistema Europeu de Direitos Humanos foi estabelecido em 1959 e era formado por dois órgãos:
a Comissão e a Corte. Com a reforma em 1998, a Comissão foi extinta e a Corte passou a receber denúncias
de violações de direitos humanos de indivíduos contra países. O procedimento é relativamente simples:

• Corte recebe a denúncia


• Corte analisa seus critérios básicos
• Caso a denúncia tenha fundamento, ela é levada a julgamento por uma câmera de juízes
• Corte emite sua decisão
• As partes podem recorrer sobre essa decisão
• A decisão é analisada pelo Comitê de Ministros do Conselho da Europa

O Sistema Europeu começou a funcionar antes mesmo da Organização das Nações Unidas esta-
belecer seus principais instrumentos internacionais sobre direitos humanos. Em relação ao tema do nosso
curso, o primeiro grande caso de tortura foi julgado em 1978, enquanto a Convenção Contra Tortura foi
aprovada pela Assembleia Geral da ONU somente em 1984. Dessa forma, você encontrará decisões da Corte
Europeia que são contrárias ao entendimento da ONU sobre tortura e outros tratamentos ou penas cruéis,
desumanos ou degradantes.
Veja a seguir três casos bastante elucidativos das decisões da Corte Europeia de Direitos Hu-
manos.

Caso 1: Irlanda vs. Reino Unido

A primeira decisão da Corte foi no caso Irlanda vs. Reino Unido, referente aos métodos de tortura
que os governos utilizavam para enfrentar os atos de grupos terroristas da Irlanda do Norte durante a década
de 1970. O governo utilizava “cinco técnicas de tortura” para abordar os indivíduos ligados ao Irish Republi-
can Army (IRA), Exército Republicano Irlandês: as pessoas eram mantidas em pé encostadas em uma parede,
encapuzadas, submetidas a barulhos e privadas de sono, de alimentos e de água.

21 ead.senasp.gov.br
A Corte reconheceu que o Art. 3º da Convenção Europeia de Direitos Humanos foi violado,
mas estabeleceu a violação em termos muito específicos:

Proibição da tortura – “Ninguém pode ser submetido a torturas, nem a penas ou tratamentos
desumanos ou degradantes”.

As cinco técnicas foram aplicadas em combinação, com premeditação e por ho-


ras a fio; elas causaram, se não real lesão corporal, pelo menos intenso sofrimen-
to físico e mental às pessoas sujeitas às técnicas e também levaram a distúrbios
psiquiátricos agudos durante o interrogatório. As técnicas se enquadraram na
categoria de tratamento desumano, na definição do Artigo 3º [da Convenção
Europeia de Direitos Humanos]. As técnicas eram também degradantes, uma vez
que elas tinham a intenção de despertar em suas vítimas sentimentos de medo,
angústia e inferioridade capaz de humilhar e rebaixá-las e, eventualmente, que-
brar a sua resistência física ou moral. (...) Embora as cinco técnicas, aplicadas de
forma combinada, sem dúvida, elevaram-se a tratamentos desumanos e degra-
dantes; embora seu objetivo era a extração de confissões, a delação de outros
[participantes] e/ou de informações e, apesar de terem sido utilizadas de forma
sistemática, [as práticas] não ocasionaram sofrimento de particular intensidade
e crueldade implícita à palavra tortura, em sua definição [na Convenção]. (CORTE
EUROPEIA, Ireland v. United Kingdom, 1978, parágrafo 167 – tradução informal)

Observe que a Corte desmembrou o conceito “tortura e outros tratamentos ou penas


cruéis, desumanos ou degradantes”, e, sendo assim, o caso em questão não se configurou como “tortura”.
O Reino Unido violou parcialmente o Art. 3º da Convenção Europeia de Direitos Humanos, especificamente
violou a proibição de “tratamentos desumanos e degradantes”.

• Tortura
• Tratamentos ou penas cruéisdesumanos e degradantes

Nota: A decisão é anterior à Convenção Contra Tortura da ONU, porém a Corte mantém sua inter-
pretação e julga os casos mais recentes diferenciando “tortura” de “tratamento desumano e degradante”.
Contudo, como você estudará ao longo da aula, o entendimento da Corte Europeia é restrito à própria Corte
Europeia e não encontra eco em jurisprudência de outros órgãos internacionais.
A Corte Europeia é muito criticada por não alterar a sua jurisprudência, mas vale registrar
que apesar de manter a diferenciação, na prática, a Corte entende que tortura ou outros tratamentos cruéis,
desumanos ou degradantes são proibidos e inderrogáveis.

O adjetivo inderrogável refere-se, neste caso, aquilo que não pode ser admitido ou não cabem
exceções.

Caso 2: Jalloh vs. Alemanha

Veja essa interpretação da Corte Europeia no caso Jalloh vs. Alemanha, de 2006:
Jalloh foi visto tirando um papelote de sua boca, entregando-o para outra pessoa e receben-
do dinheiro em pelo menos duas situações por policiais alemães. Entendendo que os papelotes eram drogas,
os policiais o abordaram e Jalloh engoliu o papelote.
Os policiais procederam a uma revista corporal e não encontraram outros papelotes, mas,
sabendo que ele havia engolido um deles, solicitaram ao promotor que Jalloh recebesse medicação que cau-
sasse vômitos e regurgitação. O promotor acatou o pedido e ordenou que o médico ministrasse a medicação

22
em Jalloh. No hospital, o médico explicou o procedimento, porém Jalloh não aceitou receber a medicação.
Com o auxílio de quatro policiais, o médico ministrou o remédio à força. Assim, ele encontrou 0.21 gramas
de cocaína, e, logo após o procedimento, a polícia prendeu o suspeito.
Nos três dias seguintes, enquanto detido, Jalloh reclamou que só conseguia beber sopa e que
sangrava com frequência pelo seu nariz. Dois meses e meio depois, ele fez uma endoscopia, na qual os mé-
dicos concluíram que ele tinha uma irritação na baixa área do esôfago causada por refluxo. Entretanto, não
relacionaram o diagnóstico à medicação forçada. Jalloh foi solto cinco meses depois e alegou que, desde o
uso do emético, faz tratamento para o estômago. O governo alemão alegou que nunca o tratou.

• Tortura, tratamento desumano ou tratamento degradante?

A Corte Europeia reiterou a diferenciação “tortura” e “tratamento desumano e degradante”, porém


estabeleceu alguns parâmetros para avaliar a severidade dos maus tratos após inúmeros casos no Siste-
ma Europeu:
• A duração do ato;
• Os efeitos físicos e mentais na vítima;
• A vulnerabilidade da vítima (gênero, idade e estado de saúde).
Em relação ao tratamento desumano, a Corte considera os seguintes critérios:
• Se o ato foi premeditado;
• Se atende também aos critérios de maus tratos: duração do ato, efeitos físicos e mentais e
vulnerabilidade da vítima.
Para tratamento degradante, a Corte Europeia entende:
• Provocar sentimentos e sensações de medo, agonia e inferioridade na vítima;
• Quebrar a resistência física e moral;
• Forçar a vítima ferir a si próprio.
No caso em questão, a Corte observa que há casos nos quais o Estado pode ministrar remé-
dios de forma forçada, por exemplo: uma pessoa está fazendo greve de fome e o Estado pode forçá-la a co-
mer. Entretanto, para o caso em questão, a Corte condena a utilização da força para ministrar medicamento,
uma vez que o objetivo é obter prova para o crime.
A Corte, ainda, entende que o tráfico de drogas é um problema grave que os Estados enfren-
tam, porém a quantidade de drogas encontradas em Jalloh é insuficiente para classificar o ato como tráfico
de drogas em larga escala e justificar a medida adotada.
Ademais, os juízes ponderaram que o método utilizado não é uma opção de tratamento unâ-
nime entre os médicos e que muitos alegam que há tratamentos alternativos e menos invasivos.
É importante lembrar que Jalloh não fala alemão e fala um pouco de inglês, sendo assim, ele não
tinha como fornecer informações sobre sua saúde, bem como se informar sobre o tratamento a ser recebido.
Jalloh não tinha condições para dar seu consentimento ao tratamento e, apesar disso, o hospital ministrou o
medicamento e ainda utilizou quatro policiais para imobilizá-lo.
Nesse contexto, a Corte condenou a Alemanha por violar o Art. 3º da Convenção Europeia de Direi-
tos Humanos, mas com a seguinte ressalva:

Proibição da tortura – “Ninguém pode ser submetido a torturas, nem a penas ou tratamentos
desumanos ou degradantes”.

Tendo em conta todas as circunstâncias do caso, o Tribunal considera


que a medida impugnada atingiu um nível mínimo de gravidade, neces-
sário para enquadrá-lo no Art. 3º. As autoridades submeteram a vítima
a uma grave interferência em sua integridade física e mental, contra sua
vontade. Eles o forçaram a regurgitar, não por razões terapêuticas, mas
com a finalidade de obter provas que poderiam igualmente ter obtido

23 ead.senasp.gov.br
pelos métodos menos invasivos. A maneira pela qual a ação foi realizada
foi suficiente para despertar na vítima sentimentos de medo, angústia
e inferioridade, que eram capazes de humilhar e rebaixá-lo. Além dis-
so, o procedimento implicou em riscos para a saúde do requerente, não
menos importante por causa da incapacidade de obter uma anamnese
adequada com antecedência. Embora esta não era a intenção, a medida
foi implementada de uma forma que fez com que a vítima sofresse dores
físicas e sofrimento mental. Ele foi, portanto, submetido a tratamento
desumano e degradante (CORTE EUROPEIA, Jalloh v. Alemanha, 2006, pa-
rágrafo 82 – tradução informal).

É importante ressaltar que há muitas críticas à interpretação da Corte Europeia sobre o que
é tortura. No caso analisado, quatro juízes apresentaram votos separados, sendo que dois entenderam que
Jalloh sofreu tortura. É interessante ler os trechos dos votos dos juízes Bratza e Zupancic.

Trechos dos votos dos juízes

O Juiz Bratza faz uma ponderação sobre interesses públicos e uso da tortura, enquanto o Juiz
Zupancic é mais didático e defende que o caso se trata de tortura. Veja no arquivo “Votos dos juízes”, que
está nos anexos do curso.

Caso 3: O Sistema europeu e a explicação da impossibilidade de exceções à proibição da


tortura

Em 2002, Magnus Gäfgen sequestrou J. de 12 anos, filho de um banqueiro, em Frankfurt, na


Alemanha. Ele matou a criança, enterrou-a próxima a um lago na cidade e, alegando que a criança ainda es-
tava viva, pediu resgate aos pais de J.. Gäfgen recebeu o pagamento, mas foi preso ao tentar sair da cidade.
Ao chegar à delegacia, Gäfgen disse que J. estava com outros dois comparsas em uma casa
próxima ao lago da cidade. A polícia conduziu o interrogatório, porém ele não revelava o paradeiro da
criança, e os policiais estavam cada vez mais apreensivos, afinal a criança estava correndo perigo. Sem novas
informações, o Chefe da Polícia autorizou seus profissionais a ameaçarem Gäfgen. Caso ele não contribuísse,
a polícia iria utilizar violência física para obter informação sobre a criança.
O Policial E., treinado para atuar em situações de crise, foi designado e ameaçou bater em
Gäfgen. A polícia também designou um médico para supervisionar o procedimento. Em poucos minutos na
presença do Policial E., Gäfgen revelou que a criança estava morta e o local onde foi enterrada. Na versão de
Gäfgen, o Policial E. bateu em seu peito várias vezes e deu a entender que ele seria abusado sexualmente.
A Justiça alemã não acatou a denúncia de violência física, mas aceitou a denúncia de ameaça feita contra o
Policial E., pois a Justiça entendeu que o profissional tinha a intenção de abusar de Gäfgen.

No processo do sequestro e homicídio da criança, a Justiça não aceitou a confissão do crime de


Gäfgen, porque entendeu que ela foi obtida por meios ilícitos. Gäfgen fez uma nova confissão, mostrou-se
arrependido, e, somente assim, o tribunal aceitou sua confissão e condenou Gäfgen a prisão perpétua.
O caso chegou à Corte Europeia, pois Gäfgen entendeu que o Estado da Alemanha violou o Art. 3º
(proibição da tortura) e o Art. 6º (direito a um processo equitativo). Em seu julgamento, os juízes conside-
raram:
• A natureza premeditada da ameaça;
• A duração da ameaça;
• O uso de algemas durante todo interrogatório;
• O medo, a agonia e o sofrimento mental que a vítima aguentou;
• As consequências para saúde mental da vítima.

24
Seguindo sua jurisprudência, a Corte entendeu que Gäfgen é uma vítima e que foi submetido
a tratamento desumano e degradante, porém fez uma ponderação, que está disponível no arquivo “Ponde-
ração da jurisprudência”, que está nos anexos do curso.
A partir da leitura dos casos, você pode observar que a Corte estabelece uma hierarquia
entre tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes. A diferenciação, apesar de
controversa, não tem efeitos práticos no que se refere à possibilidade de abrir exceções ao Art. 3º da Con-
venção Europeia de Direitos Humanos. Os profissionais do Estado ainda que submetidos a uma situação de
“ticking-bomb” ou a de um estado de emergência não podem recorrer à tortura para, por exemplo, obter
informações.

Proibição da tortura – “Ninguém pode ser submetido a torturas, nem a penas ou tratamentos
desumanos ou degradantes”.

2.2. Corte Interamericana de Direitos Humanos


A definição de tortura é mais abrangente no Sistema Interamericano do que no estabelecido pela
Convenção Contra Tortura da ONU e pela jurisprudência do Sistema Europeu, conforme já explicado ante-
riormente:

A Convenção Interamericana amplia o conceito de tortura da Convenção da


ONU, uma vez que ela amplia a aplicação para “qualquer outro fim” (diferente
da ONU que especifica uma finalidade). Reconhecem-se ainda ações para anular
a personalidade da vítima (APT e CEJIL, 2008, p.98 – tradução informal).

O Sistema Interamericano é formado por dois órgãos: Comissão e Corte:

Comissão:
Entre outras atribuições, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos recebe denúncias
de indivíduos ou grupos de indivíduos contra os Estados. Ela analisa a admissibilidade da denúncia e o mé-
rito da violação. As discussões podem permanecer no âmbito da Comissão ou o caso pode ser encaminhado
para a Corte Interamericana de Direitos Humanos, a depender de uma série de aspectos processuais e polí-
ticos do Sistema Interamericano.
Corte
Enquanto no Conselho da Europa, os indivíduos acessam diretamente à Corte, no Sistema
Interamericano, os indivíduos acessam primeiramente a Comissão e posteriormente (e somente, por meio
da própria Comissão) a Corte. Outra diferença é que a Corte Interamericana analisa novamente a denúncia e
emite sua sentença, porém a sentença não pode ser revista, assim como ocorre no Sistema Europeu.
Assim como você leu algumas decisões da Corte Europeia de Direitos Humanos, leia também
mais quatro casos da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Caso 1: Velásquez Rodríguez vs. Honduras

Em sua primeira decisão, a Corte Interamericana já foi obrigada a se manifestar sobre tortura
e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes. O caso Velásquez Rodríguez vs. Honduras
(1987) se refere ao desaparecimento forçado de Manfredo Velásquez em 1981. No período de 1981 a 1984,
houve aproximadamente 100 casos de pessoas desaparecidas em Honduras em situações muito semelhan-
tes: geralmente eram pessoas consideradas perigosas para a segurança nacional de Honduras, tais pessoas
eram sequestradas pelo Exército e por policiais militares, eram submetidas à tortura, detidas e assassinadas.

A decisão do caso é paradigmática para as discussões sobre desaparecimentos forçados e


sobre como essa prática foi sistematicamente utilizada por governos autoritários na América Latina durante

25 ead.senasp.gov.br
a década de 1970 e 1980. O entendimento da Corte sobre tortura, em especial sua observação sobre
a prova da tortura, é inovador.
Veja a seguir:

O desaparecimento de Manfredo Velásquez viola o direito à integridade pes-


soal reconhecido no Artigo 5º da Convenção (...). Primeiro porque o fato de
isolamento prolongado e a privação de comunicação representa um tratamento
cruel e desumano que lesa a integridade psíquica e moral da pessoa e o direito
de todo preso ser tratado com respeito pela sua dignidade, [esses fatos são] in-
compatível com os parágrafos 1 e 2 do mesmo artigo. Em segundo lugar, porque
mesmo que não tenha sido demonstrado diretamente que Manfredo Velásquez
foi torturado fisicamente, o simples fato de que o seu sequestro e cativeiro ocor-
reram sob a responsabilidade das autoridades que comprovadamente subme-
tiam os presos a assédios, crueldades e torturas representa o fracasso por parte
de Honduras, do dever nos termos do Artigo 1.1, em relação aos parágrafos 1 e
2 do Art. 5º da Convenção. De fato, a garantia da integridade física de qualquer
pessoa, e que toda pessoa privada de sua liberdade deverá ser tratada com o
devido respeito à dignidade inerente ao ser humano, implica a prevenção razo-
ável de situações com potencial de violar os direitos protegidos. (CORTE INTE-
RAMERICANA, Velásquez Rodríguez vs. Honduras, Sentença de mérito, 1988, par.
187 – tradução informal)

A Comissão e a Corte utilizam parâmetros para analisar o crime de tortura, entretanto não se consti-
tuem em categorias rígidas como ocorre na Corte Europeia. Você já estudou sobre esses parâmetros no item
“tortura, tratamento degradante ou tratamento desumano?”, porém é importante reiterar que a questão
principal é verificar se há intenção em gerar sofrimento com vistas a anular a personalidade
da vítima ou diminuir sua capacidade.
É necessário também considerar:
• O período de tempo no qual se infligiu o sofrimento;
• O método utilizado;
• As circunstâncias políticas e sociais;
• A privação de liberdade;
• A idade, sexo e vulnerabilidade da vítima.
O foco da análise da Corte Interamericana é mais voltado à intenção do Estado, de suas
condições políticas e sociais, do que a análise das consequências para a vítima – como é “medido” pela
Corte Europeia. Para ilustrar essa observação, será apresentado, a seguir, o caso Godínez Cruz vs. Honduras
(1989), no qual a Corte analisou uma situação muito semelhante ao caso Velásquez Rodríguez vs. Honduras.

Caso 2: Godínez Cruz vs. Honduras (1989)

O Estado foi acusado de sequestrar, torturar e matar pessoas que considerava uma ameaça
para a sua segurança nacional de forma sistemática no início dos anos 1980.

Sendo assim, a Corte ponderou o papel do Estado nesses casos:

183. As violações da Convenção não podem ser julgadas aplicando regras que
levam em conta fatores de natureza psicológicos, orientados a estabelecer a
culpabilidade individual. Para efeitos dessa análise, é irrelevante a intenção ou
a motivação do agente que violou materialmente os direitos reconhecidos pela
Convenção, na medida em que a infracção pode ser estabelecida mesmo que o

26
agente não tenha sido identificado individualmente. O que é decisivo é saber
se uma violação específica de direitos humanos reconhecidos pela Conven-
ção ocorreu com o apoio ou a tolerância do poder público, ou se ele agiu de
maneira que essa ocorreu na ausência de prevenção ou de forma impune.
Em última análise, o que está em questão é saber se a violação dos direitos
humanos decorre do não cumprimento por um Estado de sua obrigação de
respeitar e garantir esses direitos, nos termos do artigo 1.1 da Convenção.

184. O Estado tem o dever legal de prevenir, adotando medidas razoáveis, as vio-
lações dos direitos humanos, de investigação de maneira séria, utilizando todos
os meios à sua disposição, as violações que tenham sido cometidas no âmbito
de sua jurisdição, com vistas a identificar os responsáveis, para impor as sanções
pertinentes e assegurar uma compensação adequada vítima. (CORTE INTERA-
MERICANA, Godínez Cruz vs. Honduras, Sentença de mérito, 1989, pars. 183 e
184 – tradução informal)

Estabelecendo relação com o Brasil...

Essa discussão sobre o papel do Estado em relação à tortura é essencial para compreender
porque as discussões sobre tortura no Brasil são focadas mais no profissional público do que no pro-
fissional privado. Não se trata de uma perseguição ao profissional público. À luz do direito internacional, o
Estado deve tomar todas as medidas que estiverem ao seu alcance para evitar violações de direitos humanos
e, se ainda ele incorrer em uma violação, é seu dever adotar todas as ações para investigar e responsabilizar
os profissionais e compensar as vítimas da violação.
Nesse sentido, apesar de a Lei n.º 9.455/1997 responsabilizar também profissionais privados,
o dever primordial do Estado é com os profissionais públicos. Isso não significa que as torturas que ocorrem
em âmbito privado não sejam graves, porém a própria Lei n.º 9.455/1997 aumenta a gravidade da pena para
o profissional público, refletindo o entendimento internacional de que a tortura quando é praticada por um
profissional público é muito grave e, por isso, ela é o foco das políticas públicas e discussões públicas.
Veja a seguir mais dois casos de tortura que ocorreram em locais de detenção.

Caso 3: Cantoral Benavides vs. Peru

O caso Cantoral Benavides resume todo o entendimento da Corte sobre a relação entre tor-
tura e privação de liberdade.
O primeiro aspecto analisado foi a impossibilidade de Cantoral Benavides comunicar-se com
sua família, enquanto detido pelo Estado. A Corte entende que o isolamento prolongado bem como a falta
de comunicação com sua família constituem tratamentos cruéis desumanos e degradantes, pois geram so-
frimento psíquico e moral, ferindo a sua integridade como pessoa humana.
O segundo aspecto analisado refere-se às condições da privação de liberdade. Cantoral Be-
navides foi submetido a aproximadamente um ano de isolamento em uma cela pequena, sem ventilação e
sem luz natural. Ele não recebeu assistência médica adequada. Apoiada em sua própria jurisprudência (caso
Loayza Tamayo vs. Peru), a Corte estabeleceu que condições insalubres associadas à falta de assistência mé-
dica são uma violação ao Art. 5º da Convenção, sendo uma forma de tratamento cruel e desumano. Adicio-
nalmente, a Corte entende que a própria condição da prisão arbitrária, como no caso de Cantoral Benavides,
coloca o indivíduo em uma situação de vulnerabilidade, facilitando a violação de outros direitos humanos.
Por fim, a Corte pondera que as violências físicas sofridas por Cantoral Benavides provocaram,
além de intensa dor, sofrimento emocional. Ainda que ele tenha sido considerado como inimigo da pátria no
caso em questão, não há justificativas para submetê-lo a péssimas condições de encarceramento.
104. Em resposta a todas as circunstâncias do caso e o contexto nos quais ocor-

27 ead.senasp.gov.br
reram os fatos, o Tribunal considera, sem dúvida razoável, que pelo menos al-
guns dos atos de agressão examinado neste caso podem ser classificado como
tortura, física e psíquica. O Tribunal considera ainda que esses atos foram pla-
nejados e deliberadamente infligidos contra o Sr. Cantoral Benavides por pelo
menos duas finalidades. Na fase prévia à condenação, para eliminar a sua força
mental e forçá-lo a depor contra si ou para confessar alguma atividades ilegal.
Na fase após a condenação, para submetê-lo a castigos adicionais à privação de
liberdade. (CORTE INTERAMERICANA, Cantoral Benavides, Sentença de mérito,
2000 – tradução informal)

Caso 4: Penitenciária de Castro Castro vs. Peru.

No caso Penal de Castro Castro vs. Peru, há mais uma decisão da Corte em relação a um local
de privação de liberdade, entretanto, diferente do caso anterior, a Corte analisa os procedimentos dos profis-
sionais com as mulheres presas. É importante observar que há uma série de elementos para serem analisados
nesse caso, porém, considerando o tema do curso, o foco será dado ao tratamento dado às mulheres quando
levadas da penitenciária ao hospital.
Na Penitenciária Castro Castro, as mulheres que necessitavam de atendimento médico eram
encaminhadas para o Hospital de Saúde da Polícia. Elas ficavam pobremente cobertas por roupas e perma-
neciam sob a atenção de profissionais de segurança pública homens durante o tempo todo.

Veja o arquivo “Sentença de mérito”, que está nos anexos do curso.

A Corte também se pronunciou sobre o procedimento de revista vexatória, no qual as presas enca-
minhadas ao Hospital de Saúde da Polícia eram submetidas. As mulheres, já praticamente desnudas, passa-
vam por um procedimento semelhante ao exame de toque, feito por ginecologistas. No caso em epígrafe, o
toque era feito por homens usando diretamente seus dedos. Ademais, o toque era feito com rispidez e uma
mesma mulher era tocada por vários homens encapuzados.

309. Além disso, no presente caso, foi provado que uma interna, que foi transfe-
rida para o Hospital de Saúde da Polícia passou por uma revista vexatória vaginal
(feita com o dedo) por várias pessoas encapuzadas de uma só vez, com extrema
rispidez, sob o pretexto de revistá-la (...).

311. O Tribunal reconhece que uma violação sexual de uma interna detida por
um agente do Estado é um ato especialmente grave e abominável, tendo em
vista a vulnerabilidade da vítima e do abuso de poder exibido pelo agente (...).
Além disso, a violação sexual é uma experiência muito traumática, que pode ter
consequências graves (...) e causa um grande dano físico e psicológico, deixando
a vítima “humilhada física e emocionalmente”, uma situação dificilmente supe-
rada com o passar do tempo, ao contrário do que acontece outras experiências
traumáticas (...).

312. Com base no exposto, e tendo em conta a determinação no Artigo 2º da


Convenção Americana para Prevenir e Punir a Tortura, este Tribunal conclui que
os atos de violência sexual a que uma interna que foi submetida na revista vexa-
tória feita com os dedos (...) constitui uma violação sexual que, por seus efeitos,
constitui tortura. (CORTE INTERAMERICANA, Penal Castro Castro vs. Peru, Sen-
tença de mérito, 2006 – tradução informal)

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A Corte entende que aquelas mulheres passavam por dois tipos de abusos sexuais distintos:
• um em relação a constante presença dos profissionais do Estado enquanto elas estavam des-
nudas; e
• outro em relação à revista vexatória que eram submetidas.

Nesse contexto, a Corte responsabilizou o Estado por violar o Art. 5º da Convenção Americana e o
Art. 2º da Convenção Americana para Prevenir e Punir a Tortura, pois os abusos sexuais geraram efeitos
que se constituem em tortura.

Finalizando...

Neste módulo você estudou que:

• O termo “tortura” designa qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou
mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informa-
ções ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou terceira pessoa tenha cometido, ou seja, suspeita de ter
cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discri-
minação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público
ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou
aquiescência. Não se considerará como tortura as dores ou sofrimentos que sejam consequência unicamente
de sanções legítimas, ou que sejam inerentes a tais sanções ou delas decorram. (Convenção Contra a Tortura
e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis Desumanas ou Degradantes pela ONU)
• Na Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 5 de outubro de 1988, o
Estado brasileiro afirma os princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. Seu Art. 1º,
inciso III, afirma: A dignidade humana como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito. No
TÍTULO II Dos Direitos e Garantias Fundamentais, CAPÍTULO I DOS DIREITOS E DEVERES INDIVIDUAIS E CO-
LETIVOS, o seu Art. 5º, inciso III afirma que: Ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano
ou degradante.
• A Constituição Federal de 1988 não definiu o que estava sendo entendido como tortura nem
as ações penais cabíveis. A tipificação do crime de tortura ocorreu somente motivada após um episódio de
grande violência e repercussão nacional, o caso “Favela Naval”, com a promulgação da Lei n.º 9.455/1997.
• A Lei n.º 12.847, de 02 de agosto de 2013, instituiu o Sistema Nacional de Prevenção e Com-
bate à Tortura (SNPCT), criou o Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (CNPCT) e o Mecanismo
Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT).
• O Sistema Europeu de Direitos Humanos foi estabelecido em 1959 e era formado por dois
órgãos: a Comissão e a Corte. Com a reforma em 1998, a Comissão foi extinta e a Corte passou a receber
denúncias de violações de direitos humanos de indivíduos contra países. A Corte Europeia reiterou a diferen-
ciação “tortura” e “tratamento desumano e degradante”, porém estabeleceu alguns parâmetros para avaliar
a severidade dos maus tratos após inúmeros casos no Sistema Europeu.
• O Sistema Interamericano é formado por dois órgãos: Comissão e Corte. Entre outras atri-
buições, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos recebe denúncias de indivíduos ou grupos de
indivíduos contra os Estados. Ela analisa a admissibilidade da denúncia e o mérito da violação. A Comissão
e a Corte utilizam parâmetros para analisar o crime de tortura, entretanto não se constituem em categorias
rígidas como ocorre na Corte Europeia.
• A discussão sobre o papel do Estado em relação à tortura é essencial para compreender por-
que as discussões sobre tortura no Brasil são focadas mais no profissional público do que no profissional
privado. Não se trata de uma perseguição ao profissional público. À luz do direito internacional, o Estado
deve tomar todas as medidas que estiverem ao seu alcance para evitar violações de direitos humanos e, se
ainda ele incorrer em uma violação, é seu dever adotar todas as ações para investigar e responsabilizar os
profissionais e compensar as vítimas da violação.

29 ead.senasp.gov.br
Exercícios
A seguir são apresentados 5 casos hipotéticos envolvendo situações de tortura, tratamento
degradante e tratamento desumano. Você deve analisar cada um deles e julgar se as afirmativas a respeito
desses relatos são verdadeiras (V) ou falsas (F).
Preparado(a)?
Vamos lá!

Caso 1
O comitê estadual de prevenção e combate à tortura recebeu duas denúncias de tortura, as
quais foram feitas por familiares de pessoas detidas por profissionais de segurança pública.
1. O primeiro caso de tortura ocorreu entre Biro, profissional de segurança pública, e André,
detido em flagrante por tráfico de drogas. Com vistas a descobrir mais informações sobre o tráfico local, Biro
levou André para uma área afastada da cidade e começou a espancá-lo.
2. O segundo caso ocorreu entre dois presos: Pedro e Bruno. Pedro era suspeito de pedofilia e
foi preso. Ao chegar à carceragem, Biro, intencionalmente, colocou-o na cela de Bruno, o qual foi avisado
pelo profissional de segurança pública sobre o motivo pelo qual Pedro havia sido preso. Então, Biro deu a
entender que se a lei da cadeia não fosse aplicada a Pedro, haveria represália. Resultado: Pedro foi agredido
fisicamente pelos presos da mesma cela.

Verdadeiro ou Falso?

a. ( ) Bruno cometeu crime de lesão corporal em relação a Pedro. Já Biro pode ser enquadrado
no crime de tortura na forma castigo, ainda que tenha utilizado a ação de Bruno e dos demais presos como
meio.
b. ( ) Os profissionais de segurança não são responsáveis pela violência que Pedro sofreu quan-
do foi alocado na mesma cela de Bruno.
c. ( ) Entende-se que pela lei que tipifica o crime de tortura, Biro e Bruno cometeram crime de
tortura, porém Biro poderá receber uma pena maior por ser um profissional público.
d. ( ) André tem direito a receber indenização do governo estadual, porque foi torturado en-
quanto estava custodiado na carceragem da delegacia.

Veja os comentários do caso no arquivo “Comentários caso 1”, que está nos anexos do curso.

Caso 2
O profissional de segurança pública Mateus estava de plantão em equipe diferente do pro-
fissional de segurança pública Munhoz. Mateus ouviu Munhoz no rádio manifestando que havia levado João
para averiguações e que havia dado um corretivo nele. Mateus chegou na delegacia na mesma hora que
Munhoz trazia João e viu o preso ensanguentado e desfalecido. Porém, como Munhoz é de uma patente
superior a sua, Mateus não relatou o caso e não fez nenhuma observação no livro de plantão.

Verdadeiro ou Falso?

a. ( ) Mateus é de uma patente inferior a de Munhoz e, por isso, não é sua obrigação relatar a
tortura sofrida por João.
b. ( ) Mateus pode ser indiciado por tortura e também por não prestar atendimento de saúde.
c. ( ) Após a denúncia chegar à Corregedoria, Munhoz foi transferido para a Escola da Delega-
cia e é encarregado da educação dos novos profissionais de segurança. A decisão está correta, afinal Munhoz
está afastado das funções relacionadas aos presos.

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d. ( ) Mateus deveria ter registrado o estado de João no livro de plantão. Ele deveria ter acio-
nado o delegado de plantão desta delegacia.
e. ( ) João deveria ter recebido assistência médica. O delegado de plantão também poderia ter
solicitado um exame de corpo de delito.

Veja os comentários do caso no arquivo “Comentários caso 2”, que está nos anexos do curso.

Caso 3
Alice estava grávida de sete meses quando foi presa por levar drogas para dentro do presídio
para seu namorado. Ela foi presa em flagrante e foi levada para a delegacia. Logo após ser registrada e enca-
minhada para uma cela, Alice começou a sentir contrações e a sangrar. Após muita insistência, as presas que
estavam na mesma cela conseguiram chamar a profissional de segurança pública.
Alice foi encaminhada para o hospital, acompanhada por uma profissional de segurança pú-
blica. Apesar disso, Alice foi algemada ao entrar na ambulância e permaneceu algemada na sala de parto.

Verdadeiro ou Falso?

a. ( ) O uso de algema na ambulância e durante o parto de Alice se configura como tratamen-


to desumano, degradante e cruel.
b. ( ) O bebê de Alice nasceu com problemas saúde porque ela demorou muito tempo para
ser atendida por um médico. Os profissionais de segurança pública podem ser responsabilizados por não
terem atendido Alice no tempo necessário.
c. ( ) A realização de revistas vexatórias é essencial para enfrentar as drogas no sistema
penitenciário. A droga que Alice carregava não seria possível identificar se não fosse o processo de desnu-
damento e agachamentos feitos sob um espelho.
d. ( ) Alice faz parte de cerca de 7% de mulheres que estão no sistema penitenciário e também
segue a crescente estatística de mulheres que entram no sistema por tráfico de drogas.

Veja os comentários do caso no arquivo “Comentários caso 3”, que está nos anexos do curso.

Caso 4
O profissional de segurança pública Brás prendeu Iracema por suspeita de roubo a uma loja.
Após algemar Iracema, Brás procedeu a uma minuciosa revista corporal. Ao conduzir Iracema na viatura po-
licial por cerca de uma hora, Brás disse que ia colocar Iracema na delegacia em celas com outros homens,
que sabia onde ela morava e quantos filhos ela tinha, que viu seu filho numa boca de fumo e que pessoas
desapareceriam caso ela não contasse mais detalhes sobre o roubo. Iracema permaneceu calada e, sendo
assim, foi conduzida para a delegacia, onde foi interrogada e colocada em uma cela para averiguações.

Verdadeiro ou Falso?

a. ( ) Todos os homens e mulheres são iguais e gozam dos mesmos direitos, sendo assim o pro-
fissional de segurança pública procedeu de maneira correta ao colocar Iracema em uma cela com homens.
b. ( ) Iracema não foi torturada, já que ela não sofreu violência física.
c. ( ) Iracema foi torturada, pois Brás ameaçou sua integridade física para obter informações.
d. ( ) Iracema foi humilhada, pois Brás fez uma revista corporal. O correto seria uma outra mu-
lher proceder à revista corporal.
e. ( ) Brás procedeu de modo correto e respeitou a dignidade humana de Iracema, ainda que
ela tenha perdido o direito à liberdade.
Veja os comentários do caso no arquivo “Comentários caso 4”, que está nos anexos do curso.

31 ead.senasp.gov.br
Caso 5
O Mecanismo Nacional Preventivo do país de Antares realizou uma inspeção em uma de-
legacia do estado de Miraflores. A delegacia tem uma carceragem com capacidade para abrigar 30 presos
provisórios enquanto eles não são encaminhados para a casa de detenção provisória. Entretanto, com a su-
perpopulação do sistema carcerário em Miraflores, a carceragem está superlotada há três anos e atualmente
abriga 80 presos.
Em cada cela, há pelo menos o dobro de presos acima da sua capacidade e, consequentemen-
te, a estrutura física da cela está comprometida (sem ventilação de ar, iluminação insuficiente e sem sane-
amento básico). Os presos não recebem alimentação adequada e também não têm acesso ao atendimento
de saúde. A relação com os profissionais de segurança que trabalham na carceragem não é amistosa, pois o
efetivo não é adequado ao número de presos, e os profissionais não são treinados e nem dispõem de equi-
pamento de segurança adequado para lidar com os presos.

Verdadeiro ou Falso?

a. ( ) A carceragem da delegacia não deveria funcionar como uma casa de detenção provisória.
b. ( ) Os profissionais que trabalham na delegacia têm estrutura e capacidade para trabalhar
também em uma casa de detenção provisória.
c. ( ) Os presos não estão sofrendo tortura, pois não foi relatado nenhum caso em que um
profissional de segurança estivesse usando da força ou ameaçando um dos presos com vistas a obter infor-
mação ou para castigar.
d. ( ) O chefe da delegacia é responsável por manter a integridade dos presos e dos profis-
sionais de segurança pública que lá trabalham.
e. ( ) Nesse sentido, se ocorrer uma morte violenta de um dos presos na carceragem, ou se um
profissional sofrer violência de um dos presos durante o desempenho da sua função, o chefe da delegacia é
responsável e deve ser investigado.

Veja os comentários do caso no arquivo “Comentários caso 5”, que está nos anexos do curso.

32
Gabarito

Resposta correta caso 1 : V, F, V, V.

Resposta correta caso 2 : F, V, F, V, V.

Resposta correta caso 3 : V, V, F, V.

Resposta correta caso 4 : F, F, V, V, F.

Resposta correta caso 5 : V, F, F, V, V.

33 ead.senasp.gov.br
MÓDULO O CONTEXTO DA TORTURA
3
Apresentação
Oi! Seja bem-vindo(a) ao curso “O Contexto da Tortura”!
Neste módulo, você irá estudar sobre: a relação entre populações vulneráveis e o crime de
tortura; a tortura como crime de oportunidade, ou seja, crime que ocorre sob certas condições existentes
nas instituições. Para tanto, você irá analisar, a partir dos dados de pesquisas, o perfil sobre da vítima da tor-
tura, bem como sobre as influências que o profissional da segurança pública é submetido ao desempenhar
suas funções na sociedade.
Está pronto(a) para começar?
Então vamos lá.

Objetivos do Módulo
Ao final do módulo, você será capaz de:

• Analisar onde ocorre a tortura no Brasil;


• Identificar as vítimas desse crime;
• Identificar situações institucionais que envolvem grupos vulneráveis à tortura;
• Avaliar a partir de pesquisas de opinião a expectativa de atuação do profissional de seguran-
ça.

Estrutura do Módulo
• Aula 1 – A tortura e suas vítimas
• Aula 2 – Tortura como crime de oportunidade
• Aula 3 – O contexto de atuação do profissional de segurança pública

Aula 1 – A tortura e suas vítimas


Você estudou que a tortura é o ato de infligir dor ou sofrimento a outra pessoa com vistas
a obter informações, confissões ou castigos, entre outras possibilidades. Estudou também que o Brasil
já dispõe de uma ampla legislação para a prevenção e o enfrentamento à tortura e outros tratamentos ou
penas cruéis, desumanos ou degradantes.
Os casos abordados até agora, apresentaram algumas situações que o profissional de segurança
pública encontra em seu cotidiano. Entretanto, não foi discutido o perfil da vítima e as condições que fa-
vorecem o crime de tortura. Esta aula criará condições para que você possa analisar esses temas.

1.1. O panorama da tortura no Brasil


Em 2013, o Brasil acompanhou o caso Tayná no Paraná (ZIEMKIEWICZ, 2013). A morte da
jovem em junho causou grande comoção popular, e, ansiando atender as demandas da comunidade, a
polícia procedeu a uma investigação. A polícia prendeu quatro jovens que trabalhavam no local próximo de

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onde a vítima foi vista pela última vez, eles confessaram o crime.
Entretanto, a perícia médica indicou que lesões encontradas em Tayná não eram coerentes
com o relato dos quatro suspeitos. Posteriormente, o Ministério Público apurou que as confissões dos quatro
suspeitos foram obtidas por tortura.
Infelizmente, o caso Tayná não é uma ocorrência isolada e ainda há muitas denúncias de
profissionais de segurança pública que utilizam a tortura como método para obter informações e confissões.
Não há dados organizados sobre tortura, mas o Brasil dispõe de outras fontes de informação
que nos auxiliam a traçar o panorama da prática da tortura, como os dados do Disque 100 – Disque Direi-
tos Humanos. Os relatórios dos órgãos do sistema de justiça e do Poder Legislativo, como o relatório da
CPI do Sistema Carcerário, também são fontes de dados e relatos sobre o tema.
Adicionalmente, os relatórios da sociedade civil e de organismos internacionais também contri-
buem para traçar o panorama da tortura no país. Nesse aspecto, vale citar o relatório do Relator Especial
para Tortura da ONU, Nigel Rodley, de 2001.
A partir das considerações do Relator Especial, governo e sociedade civil se mobilizaram e realiza-
ram a Campanha Nacional Permanente de Combate à Tortura e à Impunidade. Com as denúncias
recebidas, pela primeira vez, o governo traçou o perfil da prática da tortura no Brasil:

O serviço recebeu 1.558 denúncias de tortura, sendo 1.336 contra policiais. Os


estados com maior número de denúncias foram Minas Gerais (213), São Paulo
(210) e Pará (130). De acordo com o relatório, as denúncias se relacionam à
prática de tortura para obter confissões e informações (36,8%); como forma de
punição (21,5%); e contra prisioneiros (22,1%). (Relatório Final da Campanha Na-
cional Permanente de Combate à Tortura e à Impunidade, 2004).

O mesmo perfil foi identificado por Maia (2006). Ele analisou 348 denúncias de tortura, baseadas em
denúncias de observadores nacionais e internacionais, e construiu um quadro geral da prática de tortura no
país. Em termos aproximados, tem-se:

• 80% das denúncias são violações feitas a uma vítima;


• 90% são praticadas por supostos agentes públicos;
• 30% são praticadas em delegacias;
• 20% são praticadas em unidades do sistema carcerários;
(MAIA, 2006, pp. 77-80)

Com pequenas diferenças em relação à metodologia e abrangência dos estudos, a Pastoral Carce-
rária resumiu as práticas mais comuns de tortura:

Basicamente os casos perpetrados por policiais civis são praticados no interior


das delegacias com fins investigativos, exceto quando estes estão a cargo de
carceragens, o que geralmente ocorre para fins de castigos. Os crimes de tortura
perpetrados por policiais militares ocorrem na rua, em residências ou em esta-
belecimentos privados como supermercados, geralmente com o fim de obter in-
formação ou para castigar. Os excessos e abusos por parte dos policiais militares
ocorrem nas unidades prisionais em situações de contenção de rebelião, fuga e
realização de revista (PASTORAL CARCERÁRIA DA CNBB, 2010, p. 35)

Nota: Diferente dos dados analisados por Maia (2006), a Pastoral Carcerária (2010) considerou ape-
nas os casos registrados em suas seccionais e cometidos por profissionais do Estado.

35 ead.senasp.gov.br
RECORDANDO...

No histórico da tortura no Brasil, foram apresentados os principais aspectos da prática da


tortura durante a ditadura militar, bem como suas consequências para o novo período democrático. Você
estudou que a prática da tortura hoje é herança do período autoritário, porém não é sua motivação
exclusiva.

1.2 Quem é o vulnerável à tortura?


SOARES (2010) amplia nosso olhar, tanto historicamente quanto socialmente, para que se possa
identificar as pessoas vulneráveis a tortura:

A tortura é comum em nosso país desde sempre. Essa prática nefanda, verdadei-
ra herança maldita, trazida pelos portugueses “educados” nos métodos da dita
sagrada Inquisição, permanece até hoje, passando por Colônia, Império, Inde-
pendência, República, ditaduras e imperfeitos Estados de Direito, com governos
de todos os tipos. Os indígenas, os hereges ou infiéis, os negros escravos e des-
cendentes, os “vadios”, os marginais de toda sorte, os internos nos manicômios,
os “subversivos” e opositores políticos, os presos ditos “comuns”, os pobres em
geral, os não cidadãos... todos potencialmente vítimas dos abusos e da violência
extremada. Para punir, disciplinar e purificar (sic), arrancar confissões e informa-
ções, intimidar, “dar o exemplo”, vingar, derrotar física e moralmente o suposto
inimigo ou, simplesmente, o indesejável. (SOARES, 2010, P.21)

Os torturáveis são recrutados nos segmentos populacionais empobrecidos como uma das di-
mensões estratégicas das relações de dominação na sociedade brasileira.
No caso das torturas, há ainda outro problema: o componente de preocupação em dar uma res-
posta à comoção pública diante de fatos criminosos. Alguns profissionais policiais querem dar uma respos-
ta e usam a tortura para encontrar culpados.
Ela jamais conduz à verdade. Ora, numa situação de privação de liberdade, isolada e longe dos olha-
res e da proteção do Poder Público, a pessoa que é torturada confessa o que o torturador quer.

1.2.1 . A vítima da tortura


Ao traçar o perfil da tortura, é possível identificar que uma parte das vítimas estão privadas de
liberdade. Nesse sentido, é necessário conhecer as informações sobre o perfil da população no sistema
carcerário.
• Em dezembro de 2012, o sistema de informações do Departamento Penitenciário Nacional
registrou 548.003 presos. A média do crescimento da população é 7,5% nos últimos 3 anos.
• As mulheres correspondem em média a 7% da população total.
• Em 2012, aproximadamente 50% da população tem entre 18 e 29 anos de idade.
• Em 2012, cerca de 50% se identifica como negro ou pardo.
• Em 2012, 63% dos presos tem até o ensino fundamental incompleto.
• Em 2012, 26% dos presos foram condenados por tráfico de entorpecentes. O crescimento
da população presa por tráfico cresceu em média 15% nos últimos três anos.

Nota: Observe que o perfil foi baseado nas informações disponibilizadas pelo Ministério da Justiça
entre os anos 2009 a 2012, utilizando como referência os dados do segundo semestre de cada ano.

Em relação ao sistema socioeducativo, considerando os dados do relatório “Um olhar mais atento
às unidades de internação e semiliberdade para adolescentes” do Conselho Nacional do Ministério Público,
têm-se:

• Em 2013, a população de adolescentes cumprindo medida de internação e de restrição de


liberdade era de 20.081.
• A população de homens era de 95% do total de adolescentes.

36
• A partir do “Panorama Nacional: a execução das medidas socioeducativas de internação
– Programa Justiça ao Jovem”, alguns dados foram encontrados. Para conhecê-los, Veja a seguir.
o A média da idade dos adolescentes era de 16,7;
o A maioria dos adolescentes cometeu o primeiro ato infracional entre 15 e 17 anos;
o Em relação aos atos infracionais, o roubo variou entre 26% na Região Sul a 48% na Região
Sudeste, o homicídio entre 7% no Sudeste a 28% no Norte e o tráfico de drogas entre 7% no Norte e 32%
no Sudeste;
o Dos adolescentes entrevistados, 43,3% já haviam sido internados ao menos uma vez;
o Cerca de 8% dos adolescentes não eram alfabetizados.

Para além dos dados do Ministério da Justiça e do sistema de justiça, é importante também con-
sultar as informações disponibilizadas pelo Ministério da Saúde (MS), por meio do Sistema de Informa-
ção de Agravos de Notificação e do Sistema de Informação sobre Mortalidade.
Em 2012, o MS registrou 440 notificações em relação à violência por intervenção legal e tortura,
nas quais:

• Há mais registros de violência contra mulher e a predominância da violência é entre 15 a


39 anos. Já no caso dos homens, a violência ocorre predominantemente entre 15 e 29 anos;
• Aproximadamente 50% da população atendida é branca;
• Cerca de 50% da violência ocorreram na residência e aproximadamente 25% ocorreram em
vias públicas;
• Em 70% dos registros indicaram uso de violência física.

Ainda vale apresentar os dados dos homicídios no Brasil, ainda que eles não apresentem informa-
ções objetivas sobre a tortura, disponibilizam indicações importantes para o nosso tema.
Anualmente, a FLACSO publica o Mapa da Violência com dados e análises sobre as mortes regis-
tradas pelo Sistema de Informação de Mortalidade. Em cada edição, encontram-se os dados sobre violência,
nos quais englobam homicídio, suicídio e acidentes de carro por ano, e também publicam-se dados com
focos específicos, como jovens, crianças e adolescentes e mulheres.
Considerando os dados do Relatório “Mortes matadas por armas de fogo” e do Relatório “Mapa da
Violência 2014: os jovens do Brasil”, em 2014, temos:

• 56.337 mortes (número absoluto)


• Os picos de homicídio ocorrem nos grupos de 20 a 24 anos e de 30 a 39 anos de idade
• 29 mortes a cada 100.000 pessoas
• 53,4% das mortes foram de jovens
• Para cada jovem branco que morre assassinado, morrem 2,7 jovens negros
• Aproximadamente 67% das mortes ocorreram no Nordeste e no Sudeste
• 91,6% das vítimas são do sexo masculino. Se considerar apenas a população jovem, 93,3% são
do sexo masculino

Para saber mais sobre o relatório “Mortes matadas por armas de fogo”, acesse: http://www.mapa-
daviolencia.org.br/pdf2013/MapaViolencia2013_armas.pdf

Para saber mais sobre o Relatório “Mapa da Violência 2014: os jovens do Brasil”, acesse: http://
www.mapadaviolencia.org.br/pdf2014/Mapa2014_JovensBrasil_Preliminar.pdf

37 ead.senasp.gov.br
Nota: A pesquisa não oferece um diagnóstico, mas apenas fornece ferramentas de análise. A partir
dos dados, pode-se inferir que a vítima típica de homicídio é homem, jovem, negro e das regiões Nordeste
ou Sudeste.
Os perfis comentados são muito similares entre si e convergem para populações vulneráveis,
jovens, mulheres, negros e populações carentes. Isso significa que qualquer pessoa pode ser vítima da
tortura, incluindo os próprios profissionais da segurança pública, entretanto, assim como ocorre com
outras violências, a tortura acontece com maior frequência nas populações vulneráveis.

Saiba mais...

Além dos relatórios apresentados na aula, acesse os relatórios a seguir para ter mais informações
sobre o que está estudando.
a) Relatório sobre tortura: uma experiência de monitoramento dos locais de detenção para
prevenção da tortura da Pastoral Carcerária, disponível em: http://carceraria.org.br/wp-content/uplo-
ads/2012/10/Relatorio_tortura_revisado1.pdf
b) Relatório final da CPI do Sistema Carcerário publicado pela Câmara dos Deputados, disponí-
vel em: http://bd.camara.leg.br/bd/handle/bdcamara/2701
c) Relatório “Um olhar mais atento às unidades de internação e semiliberdade para adoles-
centes”, disponível em: http://www.cnmp.mp.br/portal/images/stories/Destaques/Publicacoes/Relat%-
C3%B3rio_Interna%C3%A7%C3%A3o.PDF
Muito bem! Você acabou de concluir esta aula sobre a tortura e suas vítimas.
Siga adiante para saber mais informações sobre a tortura, porém, em vistas de como ela representa
um crime de oportunidade.
Ótimos estudos a você!

Aula 2 – Tortura como crime de oportunidade


A teoria do crime de oportunidade procura desenvolver a análise dos crimes e das condições em
que eles ocorrem para se chegar à tomada de decisão do criminoso. Ou seja, o foco da análise se desloca
dos determinantes sociais para uma escolha do agente criminoso sob determinadas condições ambientais.
O ambiente de oportunidades para a ocorrência da prática criminosa da tortura tem sido
determinante para a sua permanência no tempo na sociedade brasileira, mesmo durante a vigência de
regimes democráticos.
Assim, compreende-se que:

“A tortura como um crime de oportunidade, pois ela é caracterizada por ser


prática racional, funcional e eficaz, resultante de um modelo inquisitorial de in-
vestigação criminal, que cria um ambiente propício para a tortura e impede que
seja esta investigada. (MAIA, 2006, p.12)

A abordagem teórica da tortura como crime de oportunidade nos permite compreender como os
quatro elementos presentes no crime - a lei, o alvo, o agente e o lugar se relacionam entre si configurando
o ambiente favorável à prática criminosa.
No Relatório sobre a visita ao Brasil do Subcomitê de Prevenção da Tortura e outros Trata-
mentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, da ONU, o grupo afirma que:

O SPT recebeu diversas e consistentes alegações dos entrevistados acerca de


tortura e de maus-tratos, cometidos, particularmente, pela polícia civil e militar.
As alegações incluem ameaças, chutes e socos na cabeça e no corpo, além de
golpes com cassetetes. Esses espancamentos aconteceram sob a custódia poli-

38
cial, mas também em ruas, dentro de casas, ou em locais ermos, no momento da
prisão. A tortura e os maus-tratos foram descritos como violência gratuita, como
forma de punição, para extrair confissões e também como meio de extorsão.
(2012, p.16)

A racionalidade do profissional no ato da prática criminosa “entende que esse método de obtenção
de confissão e informação funciona, é eficaz, dá resultados” (MAIA, idem, p.24). Por isso, tortura.
E como quem tortura é também quem investiga, a lógica do ambiente favorável ao crime é a de
que não ocorra investigação, ou seja, que tudo permaneça impune. Dessa forma, todo o sistema judicial
é negativamente comprometido, seja pela confissão sob tortura, seja pela ausência de investigação
sobre a mesma.
Dessa natureza da tortura como crime de oportunidade - o que significa que as oportunidades
desempenham papel relevante para que a tortura ocorra - decorre em grande medida a decisão da Con-
ferência Mundial de Direitos Humanos da ONU, realizada em 1993, no sentido de que os esforços para
erradicá-la deveriam prioritariamente se concentrar na prevenção, exigindo, para isso, a criação de meca-
nismos institucionais para visitas de perícia a centros de detenção e do sistema socioeducativo, delegacias,
hospitais psiquiátricos e demais instituições fechadas.
É importante lembrar que a função primária dos mecanismos preventivos nacionais é preventiva.

Visitas preventivas permitem aos órgãos do Protocolo Facultativo identificar fa-


tores de risco; analisar faltas sistemáticas ou padrões de falhas; e propor reco-
mendações para tratar as causas originárias da tortura e outros maus tratos.
O objetivo a longo prazo do Protocolo Facultativo é mitigar os riscos de maus
tratos e, por conseguinte, construir um ambiente no qual a possibilidade de
ocorrência de tortura seja minimizada (APT, Protocolo Facultativo à Convenção
da ONU contra a Tortura Manual de Implementação. São José: IDDH, 2010, p. 13).

É importante recordar também que o Brasil, por meio da Lei n.° 12.847/2013, ratificou o Protocolo
Facultativo a Convenção Contra Tortura das Nações Unidas e criou o Mecanismo Nacional de Preven-
ção e Combate à Tortura, o qual possui essas prerrogativas.

2.1 Características da tortura como crime de oportunidade


A prática da tortura como crime de oportunidade reúne algumas características. São elas:

• Impunidade
• Invisibilidade
• Vulnerabilidade das pessoas em situação de privação de liberdade

Tornar visível o que exige a invisibilidade para se reproduzir é agir contra as condições ambientais
que favorecem a ocorrência da tortura como crime de oportunidade, ao mesmo tempo em que é enfrentar
outra de suas características: a certeza, tida pelos profissionais que cometem o ato criminoso, da impunida-
de diante da lei, ou seja, diante do Estado.
A ocorrência da tortura como crime de oportunidade se dá principalmente em unidades de
privação da liberdade de indivíduos que, por alguma razão, encontram-se sob custódia do Estado. Essa ca-
racterística leva à constituição de outra: a vulnerabilidade das pessoas em situação de privação de liberdade
às violações dos direitos humanos.

LOCAIS DE PRIVAÇÃO DE LIBERDADE

No inciso 2 do artigo 4o, o Protocolo Facultativo define a privação de liberdade como “qualquer

39 ead.senasp.gov.br
forma de detenção ou aprisionamento ou colocação de uma pessoa em estabelecimento público ou privado
de vigilância, de onde, por força de ordem judicial, administrativa ou outra autoridade, ela não tem permissão
para ausentar-se por sua própria vontade”. Nesse sentido, pode-se considerar como unidades de privação de
liberdade uma ampla rede de lugares, tais como delegacias de polícia, locais de internação de adolescentes,
penitenciárias, cadeias públicas, centros de imigração, zonas de trânsito de aeroportos internacionais, insti-
tuições psiquiátricas e locais de prisão administrativa. (Plano de Ações Integradas para Prevenção e Controle
da Tortura no Brasil- minuta para discussão. Subsecretaria de Direitos Humanos/Comissão Permanente de
Combate à Tortura e à Violência Institucional. Brasília, 2005.)
Assim, a lei, o alvo, o agente e o lugar se inter-relacionam para a produção do crime.

Importante!

Esse entendimento é um dos aspectos fundamentais do Protocolo Facultativo à Convenção. São


as oportunidades criando as condições para que o crime de tortura ocorra.
Importante destacar que nenhuma Ciência Criminológica por si só é capaz de explicar toda a
complexidade que envolve práticas criminosas, mas apontam para aspectos e recorrências significativas
de tais práticas que nos ajudam a compreendê-las e a traçar ações para intervir na sua preven-
ção e no enfrentamento à sua ocorrência.
A Teoria das Abordagens de Atividades Rotineiras (COHEN & FELSON, 1979) ajuda a compre-
ender a tortura como crime de oportunidade, busca explicar os crimes a partir das circunstâncias em que
ocorrem:

Há uma convergência no tempo e no espaço de três elementos: ofensor moti-


vado, que por alguma razão esteja predisposto a cometer um crime; alvo dis-
ponível, objeto ou pessoa que possa ser atacado; e ausência de guardiões,
que são capazes de prevenir violações. (BEATO, PEIXOTO & ANDRADE, s.d, p.74).

Para saber mais sobre a essa teoria, veja o arquivo “Teoria das Atividades Rotineiras”, que está nos
anexos do curso.
Não é difícil verificar que nos centros de detenção os três elementos estão presentes, e que se
articulam nas oportunidades.
Maia (2006) da Universidade Federal da Paraíba acerca da tortura como um crime de oportuni-
dade, destaca que:
a) a tortura sempre foi instrumental, estando presente relações de poder, com supremacia de
forças do torturador, e inferioridade física, psicológica, econômica ou jurídica do torturado;
b) a tortura era praticada por se fazerem presentes oportunidades favoráveis, e ausência de
vigilância sobre as condutas dos torturadores;
c) a ambiência e as situações em que agressor e vítima se encontravam eram propensas às fric-
ções e atritos;
d) relações pessoais existentes entre que agressor e vítima eram propensas às fricções e atritos;
e) as vítimas da tortura nunca foram consideradas iguais aos seus carrascos, mas inferiores, me-
nores que humanos, e merecedores do sofrimento ou castigo;
f) as vítimas eram tornadas invisíveis no processo de aplicação dos tormentos:
- ou os processos eram secretos até para a vítima,
- ou as vítimas eram mantidas em segredo,
- ou as vítimas não tinham acesso a recursos jurídicos,
- ou todos os fatores em conjunto,
g) as vítimas eram destituídas de poder, sendo presas fáceis nas mãos de seus algozes;
h) a “racionalidade” da aplicação da tortura incluía processo de desumanização da vítima, e co-
locava a vítima como ameaça concreta aos valores ou fundamentos da ordem da sociedade que os algozes
representavam, sendo legítimo livrar-se da ameaça que representavam; ou eram vistas como portando algo

40
de valor para o agressor (informação, confissão, etc.);
i) o medo da ameaça das vítimas, e a retaliação pseudo-justiceira agiam como motores para a
aplicação dos suplícios;
j) o racismo e a ideologia que informam/permeiam o sistema político e normativo influenciará
o modo como os órgãos de justiça e segurança atuam para a identificação, prevenção, punição e reparação
da tortura.
Então, é no enfrentamento às oportunidades que podemos prevenir e enfrentar o crime de tortura.
Para isso, as ações específicas nas várias instituições exigem também uma articulação entre si.
O que foi apresentado sobre a população carcerária e sobre os adolescentes que cumprem medi-
da socioeducativa de internação evidenciam quais são os grupos vulneráveis à tortura, na medida em que,
como você estudou até agora, é nas instituições de privação de liberdade do Sistema de Segurança que tais
práticas criminosas ocorrem na quase totalidade. No entanto, não esgota-se aqui os segmentos da popula-
ção brasileira que fazem parte dos grupos de torturáveis.
No livro Tortura, organizado pela Coordenação de Combate à Tortura, da SDH, já citado no módulo
1, em seu capítulo - Grupos sociais vulneráveis à tortura (Cap.3) é discutida a prática contra as populações
rurais e indígenas e contra as populações em situação de rua, ampliando o universo populacional que
compõe os grupos vulneráveis à tortura, bem como ampliando nossa visão sobre os ambientes em que a
prática criminosa encontra situação favorável para se efetivar como crime de oportunidade.
Ou seja, a mensuração das ocorrências de tortura nesses ambientes se torna mais difícil do que a
mensuração daquelas ocorrências praticadas nas instituições de privação de liberdade. Isso porque são am-
bientes desconhecidos, difusos e, diferentemente, das instituições fechadas, não recebem nenhum tipo de
monitoramento que possa dificultar a prática criminosa de agentes.
Ótimo! Você terminou o seu estudo sobre a tortura como um crime de oportunidade.
Continue o módulo para ver a respeito do contexto de atuação do profissional de segurança pública.
Bons estudos!

Aula 3 – O contexto de atuação do profissional de segurança


pública

3.1. Pesquisa nacional, por amostragem domiciliar, sobre ati-


tudes, normas culturais e valores em relação à violação de direitos
humanos e violência

Entre 1999 e 2010, foi realizada, pela USP, a pesquisa sobre a percepção das pessoas em relação
a violência e direitos humanos. Com base nesta pesquisa foram selecionadas para esta aula, algumas per-
guntas com o objetivo de criar condições para que possa refletir sobre o contexto no qual o profissional de
segurança pública atua. Veja a seguir!

CARDIA, Nancy. Pesquisa nacional, por amostragem domiciliar, sobre atitudes, normas culturais e
valores em relação à violação de direitos humanos e violência: Um estudo em 11 capitais de estado. São
Paulo: Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, 2012)

Pense sobre o que aconteceu nos últimos 12 meses e me diga se nesses meses cada uma destas
coisas aconteceram ou não com você:
a) Foi ferido por arma de fogo;
b) Sofreu agressão física;
c) Alguém ofereceu drogas;
d) Teve parente próximo assassinado;
e) Sentiu a necessidade em andar armado.

41 ead.senasp.gov.br
Você concorda ou discorda de cada uma das frases a seguir (você pode optar por concorda total-
mente, concorda em partes, discorda totalmente e discorda em partes):
a) Se as autoridades falharem, nós temos o direito de tomar a justiça em nossas mãos;
b) Um policial pode bater em um preso que tenha tentado fugir;
c) A polícia tem direito de revistar pessoas que considera suspeitas em função da aparência.
De forma resumida, as perguntas buscaram:
• Avaliar a percepção da violência no cotidiano;
• Medir as normas e os valores culturais em relação à violência.
A partir das perguntas, foi possível observar:
• Se pessoas que convivem mais com violência são mais propensas a reagir com mais violência;
• Se elas são mais propensas a concordar com políticas mais enérgicas para a segurança públi-
ca.
O estudo indicou que, se por um lado, diminuiu a porcentagem de pessoas sem exposição à
violência entre 1999 e 2010, por outro lado, as pessoas estão mais expostas a violência média (como
“alguém ofereceu drogas”) do que a violência grave (como “teve parente assassinado”).
Em relação à reação das pessoas à violência, o estudo indica que as pessoas tendem a rejeitar o
uso da força. Apesar disso, as pessoas estão mais permissivas em relação ao uso da força arbitrária por
parte da polícia – há mais pessoas que concordam parcialmente e discordam parcialmente do que pessoas
que concordam totalmente (como na frase “um policial pode bater em um preso que tenha tentado fugir”).
Na mesma pesquisa também foram feitas as perguntas:
É aceitável ou não é aceitável que um governo:
a) Use coerção para fazer as pessoas confessarem;
b) Prenda alguém sem julgamento.
Qual deve ser a ação da polícia nos casos a seguir?
Você pode escolher entre:
1 – bater para obter informações;
2 – ameaçar com palavras para obter informações;
3 – Interrogar sem usar de violência;
4 – ameaçar membros da família para obter informações;
5 – deixar sem água e sem comida;
6 – dar choques ou queimar com pontas de cigarro;
8 – nenhuma das alternativas.
Casos:
• Se alguém fosse pego roubando um motorista no semáforo;
• Alguém suspeito de participar de uma gangue de sequestradores;
• Alguém suspeito de ser estuprador;
• Se alguém fosse pego usando drogas;
• Se alguém fosse pego vendendo drogas.
Sobre a primeira pergunta, 80% das pessoas entrevistadas indicaram que é inaceitável que o go-
verno use coerção para obter confissões e prender sem julgamento.
Entretanto, para a segunda pergunta, cerca de 1/3 das pessoas apoiaram algum tipo de reação da
polícia que pode ser tipificada como tortura.
Adicionalmente, a população também tem a sensação que os crimes ocorrem e seus responsáveis
ficam impunes. Nesse sentido, há mais pessoas na sociedade dispostas a realizar ou apoiar ações de retalia-
ção e vingança. A atuação de grupos de justiceiros não resolve o problema de segurança pública, ela
reforça a sensação de insegurança e interfere de forma negativa no desempenho das atividades do profis-
sional de segurança pública.
A partir da pesquisa, nós temos elementos para refletir sobre a posição da sociedade sobre a violên-
cia e sobre a expectativa da resposta dos profissionais de segurança pública. A população está vivenciando
mais episódios de violência e, assim, espera reações mais enérgicas por parte da polícia, que incluem

42
a utilização da tortura para obter informações ou confissões e como forma de castigo.
Apesar da pressão da opinião pública, o profissional de segurança pública não pode se deixar
enganar e aceitar que a tortura é um método para obter informações, confissões ou para castigar.
Ao utilizar-se de tais métodos, o profissional de segurança pública comete crime hediondo nos
termos da Lei n.° 8.072/1990, ele sai do time de guardião da ordem e da cidadania da sociedade para o
time de criminosos.
O profissional de segurança pública também deve considerar as questões levantadas por Nancy
Cardia:

Os estudos mostram que quando a polícia tortura com frequência, obtém falsas
informações e falsas confissões, que no final podem ter impacto muito negativo
sobre a imagem das corporações entre o público cuja colaboração lhe é impres-
cindível para elucidar casos: os cidadãos, não suspeitos que testemunham ou
detém informações que podem auxiliar a polícia em suas investigações. (CAR-
DIA, 2014, p. 330)

Nesse sentido, o profissional de segurança pública que pratica ou tolera a tortura:

• Desrespeita a dignidade da pessoa humana;


• Contribui para manchar a reputação da corporação;
• Colhe informações e confissões falsas;
• Comete um crime hediondo;
• Aumenta a sensação de insegurança na população;
• Torna-se também um criminoso;

Importante!

A tortura é proibida e não há exceções. Especificamente nos casos das corporações, muitos profis-
sionais são obrigados a torturar ou submeter cidadãos comuns e até mesmo seus próprios colegas a tortura
e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes. A cadeia de comando não justifica e não
é uma exceção à Lei n.° 9.455/1997.

É necessário que você, como Profissional de Segurança Pública, procure refletir sobre suas funções,
dentre elas a de garantir a dominação, isto é, a obediência dos que devem obedecer. Mas, entre suas funções
também está a de, em nome do Estado e da sociedade e em obediência a eles, zelar por direitos dos domi-
nados, que podem se contrapor a vontade de quem domina.
A prática da tortura é indissociável do modelo de dominação presente em determinados períodos
históricos, em sociedades com regimes de governos autoritários e/ou com profundas desigualdades sociais.
Como você já estudou, a tortura tem estado presente na história da humanidade há milhares de anos, por
motivos distintos no tempo.
Existe uma relação entre o modelo de dominação, a desigualdade, a vulnerabilidade social e a tor-
tura como crime de oportunidade.
Uma das características da tortura como crime de oportunidade é que a sua ocorrência se dá
principalmente em unidades de privação da liberdade de indivíduos que por alguma razão encontram-se
sob custódia do Estado. E que dessa característica decorre outra: a vulnerabilidade das pessoas em situa-
ção de privação de liberdade às violações dos direitos humanos.
Nesse contexto, os profissionais de Segurança atuam como protetores dos direitos a serviço da
cidadania e dos Direitos Humanos, garantindo o contexto pacífico da resolução dos conflitos. No mesmo
passo em que são igualmente sujeitos de direitos e protegidos da tortura e de outras violações dos direitos
humanos.

43 ead.senasp.gov.br
Finalizando...

Neste módulo você aprendeu que:

• Os torturáveis são recrutados nos segmentos populacionais empobrecidos como uma das
dimensões estratégicas das relações de dominação na sociedade brasileira.
• Ao traçar o perfil da tortura, é possível identificar que uma parte das vítimas estão privadas
de liberdade.
• Os perfis das vítimas de tortura apresentados e comentados - no decorrer da aula - são muito
similares entre si e convergem para populações vulneráveis, jovens, mulheres, negros e populações carentes.
Isso significa que qualquer pessoa pode ser vítima da tortura, incluindo os próprios profissionais da segu-
rança pública. Entretanto, assim como ocorre com outras violências, a tortura acontece com maior frequência
nas populações vulneráveis.
• A abordagem teórica da tortura como crime de oportunidade nos permite compreender
como os quatro elementos presentes no crime - a lei, o alvo, o agente e o lugar- se relacionam entre si
configurando o ambiente favorável à prática criminosa.
• A mensuração das ocorrências de tortura nesses ambientes se torna mais difícil do que a
mensuração daquelas ocorrências praticadas nas instituições de privação de liberdade. Isso porque são am-
bientes desconhecidos, difusos e, diferentemente, das instituições fechadas, não recebem nenhum tipo de
monitoramento que possa dificultar a prática criminosa de agentes.
• Apesar da pressão da opinião pública, o profissional de segurança pública não pode se
deixar enganar e aceitar que a tortura é um método para obter informações, confissões ou para casti-
gar. Ao utilizar-se de tais métodos, o profissional de segurança pública comete crime hediondo nos termos
da Lei n.° 8.072/1990, ele sai do time de guardião da ordem e da cidadania da sociedade para o time de
criminosos.
• Os profissionais de Segurança devem atuar como protetores dos direitos a serviço da cidada-
nia e dos Direitos Humanos, garantindo o contexto pacífico da resolução dos conflitos. No mesmo passo em
que são igualmente sujeitos de direitos e protegidos da tortura e de outras violações dos direitos humanos.

Exercícios

Leia o seguinte trecho de “Carcereiros” de Dráuzio Varella:

“Diante de um Estado que não cumpre o dever essencial de proteger o cidadão do mal que terceiros
possam fazer contra ele, e sem poder confiar na ação morosa da justiça, a sociedade entrega de bom agrado
às forças de repressão a tarefa de castigar. Que razão haveria para esperar anos consecutivos pelo julgamen-
to formal de um criminoso quando um policial pode executá-lo sumariamente?”

Comente a atitude do profissional de segurança. Por que essa atitude não é permitida em um Esta-
do Democrático de Direito? Por que ele é levado a crer que a justiça com as próprias mãos é a melhor solução
para um crime?

44
Feedback do exercício.

Você deverá comentar que a tortura é crime e não tem exceções, e poderá basear sua argumentação
na Declaração Universal dos Direitos Humanos, na Convenção Contra Tortura da ONU, na Constituição de
1988 e na Lei n.º 9.7455/1997. Em relação à atuação de justiceiros, você deverá se posicionar e indicar que
essas ações individuais não contribuem para a segurança da sociedade e dificultam o trabalho do profissio-
nal de segurança pública.

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MÓDULO ESTRATÉGIAS INSTITUCIONAIS PARA O ENFRENTAMENTO

4 DA TORTURA

Apresentação do módulo
Olá! Seja bem-vindo(a) ao módulo “Estratégias institucionais para o enfrentamento da tortu-
ra”!
Antes, porém, de iniciar o conteúdo deste módulo, que tal relembrar o que você estudou no
módulo anterior?
De maneira geral, você pôde conhecer um pouco do contexto da tortura, refletindo sobre
assuntos como: a tortura e suas vítimas, a tortura como crime de oportunidade e o contexto de atuação do
profissional de segurança pública.
Já nesse módulo, o assunto será outro: as estratégias institucionais para o enfrentamento da
tortura.
Isso porque as iniciativas do Estado brasileiro para a prevenção e enfrentamento à tortura, em
parceria com a sociedade civil e com organismos internacionais com os quais estabeleceu compromissos ao
ratificar documentos legais, formam um conjunto de ações e estratégias envolvendo agentes diversos. Esse
conjunto se configura como políticas públicas que estabelecem determinados objetivos na transformação da
realidade em que se quer agir, por meio de estratégias institucionais.
Para saber mais sobre isso, continue com o curso!
Bons estudos!

Objetivos do Módulo
• Ao final do módulo, você será capaz de:
• Compreender as Políticas Públicas que subsidiam as estratégias de enfrentamento da tortura;
• Conhecer e compreender as estratégias para o enfrentamento da tortura;
• Identificar situações para as estratégias institucionais para o enfrentamento da tortura;
• Defender o enfrentamento da tortura como prática institucional.

Estrutura do Módulo
• Aula 1 – Políticas Públicas e Estado de Direito
• Aula 2 – Estratégias institucionais para o enfrentamento da tortura

Aula 1 – Políticas Públicas e Estado de Direito


1.1 Um pouco sobre o planejamento de políticas públicas
Um programa social ou uma política pública é uma intervenção sistemática e planejada com
o objetivo de alcançar uma mudança na realidade social. O Estado é o ente protagonista, mas que necessita
de articulações com a sociedade civil organizada. Geralmente não há controversas sobre isso. Mas essa afir-
mação impõe algumas questões que devem ser respondidas com a maior veracidade possível:

• O que é a realidade que se quer mudar?


• O que se quer mudar?

46
• Quais os objetivos colocados?
• O que e como fazer para mudar?
• Quais atores sociais serão mobilizados para a sua efetivação?

No planejamento - primeira fase de qualquer programa ou projeto de intervenção - essas pergun-


tas são formuladas e são definidas as teorias e procedimentos para a construção de respostas a elas.
Podem ser definidas três fases para a política pública a ser planejada:
• Diagnóstico: dados que nos permitam conhecer o real em que se quer intervir. A partir dele,
podemos definir melhor o foco das nossas ações, considerando-se os recursos disponíveis e os que podem
ser criados no processo.
• Objetivos: o conjunto de resultados esperados com a intervenção planejada para mudanças
no real.
• Estratégias: conjunto de ações, procedimentos e recursos colocados em movimento para se
atingir os objetivos.
Após essas três fases iniciais, há outra fase fundamental para que a política pública alcance
seus objetivos: o acompanhamento sistemático e avaliativo do processo e dos resultados.
Na implementação de políticas públicas é fundamental que ações sejam desencadeadas com o
objetivo de buscar adesões de parceiros e/ou agentes estratégicos. Essas ações também podem servir
para aprimorar as políticas com a contribuição de tais parceiros e/ou agentes. São os Seminários, Fóruns,
Congressos, enfim, encontros para discussão e socialização de experiências. Outra dimensão essencial des-
ses encontros para o êxito das políticas públicas é o caráter educativo, particularmente quando se busca
mudanças nas visões de mundo, na cultura que de alguma maneira tem ajudado na continuidade de uma
realidade que se quer mudar.

Compreendendo essas dimensões, você já pode seguir adiante estudando questões


mais complexas que envolvem a formulação e a implementação de políticas públicas!

1.1.1 Políticas públicas e Direitos Humanos


O Estado, dada a sua natureza, é necessariamente ativo para a realização da sua dimensão
Democrático e Social de Direito. As ações colocadas em movimento a partir de seus aparatos se expressam
como políticas públicas de intensidade e abrangência diversas no espaço e no tempo.
Na questão dos Direitos Humanos essa dimensão necessariamente ativa do Estado é um fato fun-
dante, no sentido de que não é possível a efetivação de tais direitos nas condições concretas de existência
sem o Estado como garantidor e realizador. O que implica, em termos políticos-ideológicos, no fortaleci-
mento do Estado e na ampliação das suas atribuições para se realizar como organização política de uma
sociedade democrática, justa e equitativa, para a construção da qual, como Estado, deve agir:

Se é evidente que a efetividade dos direitos humanos está condicionada à con-


figuração de um ambiente sociocultural que lhes seja favorável, não menos ver-
dadeira é a perspectiva de que a materialização dos direitos humanos só pode
resultar de um quadro sócio-político no qual o Estado tenha um papel relevante.
É o Estado que lhes confere realidade jurídica e que tem a responsabilidade de
assegurar sua presença como fator balizador do convívio entre os seres huma-
nos, inclusive ao fomentar iniciativas que possibilitem o florescimento de uma
cultura de respeito aos direitos humanos. (DALLARI, 2009).

47 ead.senasp.gov.br
SAIBA MAIS...

Para aprofundar a discussão sobre a dimensão Democrático e Social de Direito do Estado, leia
o texto Direitos Humanos e Políticas Públicas, que está nos anexos do curso.

As estratégias institucionais para o enfrentamento da tortura são fundamentalmente Políticas em


Direitos Humanos, isto é, definição, distribuição e fruição de poder no e pelo Estado que se expande na e
pela sociedade civil, no e pelo indivíduo sujeito de direitos. Vividos pelos indivíduos sujeitos de direitos nos
cotidianos de suas existências concretas, os Direitos Humanos são fundamentalmente estatais, portanto
coletivos e políticos.

Os Direitos Humanos exigem a democracia para serem efetivados, mas ao mes-


mo tempo são exigências históricas para a realização da democracia como forma
de organização de todas as relações sociais e de poder nas sociedades, o que
implica que devem estar presentes na ação do poder sobre o próprio corpo do
sujeito individualizado.
Esta última afirmação é particularmente fundamental quando a relação entre o
Estado e o sujeito encontra-se mediada, em tempo integral, pelas instituições de
controle social responsáveis pela execução das medidas punitivas de internação
sobre aquele a quem se atribui o cometimento de crime ou de ato infracional,
ou seja, aquele que foi apanhado pelo sistema repressivo de aplicação da justiça
penal (DIAS, 2007, p.26)

Pode-se interpretar como um marco no papel do Estado na proteção e efetivação dos Direitos
Humanos a criação, em 1999, da Secretaria de Estado dos Direitos Humanos, no âmbito do Ministério da
Justiça, atual SDH/PR. Antes, em 1996, era lançado o Programa Nacional de Direitos Humanos - PNDH-1,
que deveria nortear as ações das políticas de Estado. Em 1997 é promulgada a Lei Nº 9.455 que tipifica e
define a tortura como crime de lesa humanidade.
Como você estudou anteriormente, em 2013, é promulgada a Lei nº 12.847, que institui o “Sis-
tema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura; cria o Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura
e o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate á Tortura”.
Ao formar na burocracia estatal uma instância especializada e voltada para a proteção e
promoção dos Direitos Humanos, o Estado, por meio do Governo Federal, afirma seu engajamento e sua res-
ponsabilidade nas questões que envolvem tais direitos. Assim, reafirma o seu compromisso com os PNDH-2,
de 2002 e PNDH-3 de 2009.

• 1996: Lançamento do programa Nacional de Direitos Humanos PNDH-1, que deveria nortear as
ações das políticas de Estado.
• 1997: Promulgada a Lei N° 9.455 que tipifica e define a tortura como crime de lesa humanidade.
• 1999: Criação da Secretaria de Estado dos Direitos Humanos, no âmbito do Ministério da Justiça,
atual SDH/PR.
• 2002: Lançado o PNDH-2.
• 2009: Lançado o PNDH-3.
• 2013: Promulgada a lei n° 12.847, que institui o “Sistema Nacional de Prevenção e Combate à
Tortura e o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura”.

48
Aula 2 – Estratégias institucionais para o enfrentamento da tor-
tura
2.1. Comitês e mecanismos de prevenção à tortura
A tortura foi considerada como uma prática sistemática no Brasil pelas Nações em 2001:

A tortura e maus tratos semelhantes são difundidos de modo generalizado


e sistemático na maioria das localidades visitadas pelo Relator Especial no
país (...). A prática da tortura pode ser encontrada em todas as fases de deten-
ção: prisão, detenção preliminar, outras formas de prisão provisória, bem como
em penitenciárias e instituições destinadas a menores infratores. Ela não acon-
tece com todos ou em todos os lugares; acontece, principalmente, com os
criminosos comuns, pobres e negros que se envolvem em crimes de menor
gravidade ou na distribuição de drogas em pequena escala. (...) Os propó-
sitos variam desde a obtenção de informação e confissões até a lubrificação de
sistemas de extorsão financeira.

Um ano antes, como você já estudou no curso, o Relator Especial sobre Tortura das Nações
Unidas, Nigel Rodley, visitou Distrito Federal, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Pernambuco e Pará. A
partir das visitas e reuniões, o Relator fez várias recomendações ao Estado brasileiro, publicadas em 2001.
Com base nas denúncias e recomendações do Relatório da ONU, a Secretaria de Direitos Humanos
realizou campanha de enfrentamento à tortura em parceria com a organização não governamental Movi-
mento Nacional dos Direitos Humanos. A partir da campanha, a Secretaria de Direitos Humanos em conjunto
com especialistas da temática, representantes da sociedade civil e outros representantes do Governo Federal
publicou o Plano de Ações Integradas de Prevenção e Combate à Tortura (PAIPCT) em 2006.

Dentre as proposições do PAIPCT, destacam-se:


1. A criação, a ampliação e o fortalecimento de comitês estaduais de combate à tortura.
2. A formação de profissionais para o acompanhamento e a detecção pericial de práticas de
tortura nos quadros dos governos federal e estadual e na sociedade civil organizada.
3. Criação de corregedorias específicas do Sistema Policial e do Sistema Penitenciário.
4. Ampliação e aperfeiçoamento das redes e dos serviços de acolhimento às vítimas, entre ou-
tras ações.

Importante!

É muito importante destacar a criação dos comitês de prevenção e enfrentamento à tor-


tura nas unidades federativas. Essas estruturas, criadas por leis estaduais ou por acordos informais, são
compostas por representantes do governo locais e da sociedade civil local. Os comitês são responsáveis por
receber e acompanhar denúncias de tortura, oferecer cursos de capacitação para profissionais que trabalham
na custódia e na proteção de pessoas privadas de liberdade, realizar campanhas, entre tantas outras funções.

Os profissionais da segurança pública podem integrar os comitês estaduais?


SIM! Os profissionais da segurança pública podem e devem participar da composição desses co-
mitês, preferencialmente por meio da ouvidoria e/ou corregedorias das corporações. É muito importante
contar com ouvidores(as) e/ou corregedores(as) para estreitar os laços com os militantes da prevenção e
do enfrentamento à tortura locais, bem como auxiliar no acompanhamento das denúncias. É fundamental
contar com profissionais da segurança pública para discutir as dificuldades e construir soluções conjuntas e
duradouras para a erradicação da tortura.

49 ead.senasp.gov.br
Até julho de 2014, 19 unidades federativas criaram seus comitês: Acre, Pará, Rondônia, Tocantins,
Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Bahia, Espírito Santo, Minas
Gerais, Rio de Janeiro, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Goiás.
Com a assinatura do Protocolo Facultativo, o Governo Federal empreendeu esforços para criar
seu Mecanismo Preventivo Nacional, como por exemplo, a Lei n.° 12.847/2013, que você já estudou no curso.
Paralelamente, a sociedade civil e os governos estaduais se mobilizaram para criar mecanismos no âmbito
das unidades federativas. Atualmente, sete unidades federativas já criaram seus mecanismos locais por
meio de leis estaduais: Rio de Janeiro, Paraíba, Alagoas, Espírito Santo, Rondônia e Minas Gerais. O meca-
nismo do Estado do Rio de Janeiro está em funcionamento desde 2011, e, recentemente, o Estado de
Pernambuco iniciou suas atividades.

2.2. Programa Nacional de Direitos Humanos


Paralelamente às leis sancionadas, o Estado brasileiro adota medidas e articula ações para a pro-
moção e defesa dos Direitos Humanos. O Governo Federal lançou o Programa Nacional de Direitos Huma-
nos – PNDH I e o Programa Nacional de Direitos Humanos - PNDH II, em 1996 e 2002, respectivamente. A
proposta era definir uma agenda em direitos humanos para orientar a ação do governo, como por exemplo:
a capacitação de profissionais da segurança pública em direitos humanos, que é uma ação da SDH/PR em
conjunto com o Ministério da Justiça.
Para a terceira edição, o Governo Federal realizou mais de 50 conferências regionais temáticas e a
11ª Conferência Nacional de Direitos Humanos, permitindo a realização de um amplo debate democrático
sobre as políticas públicas da área. O Programa Nacional de Direitos Humanos – PNDH III foi publicado por
meio do Decreto Presidencial Decreto n.º 7.037 de 21 de dezembro de 2009.
O PNDH III está organizado em 25 diretrizes organizadas em seis eixos-orientadores:
• Interação democrática entre Estado e Sociedade Civil;
• Desenvolvimento e Direitos Humanos;
• Universalizar Direitos Humanos em um Contexto de Desigualdades;
• Segurança Pública, Acesso à Justiça e Combate à Violência;
• Educação e Cultura em Direitos Humanos;
• Direito à Memória e à Verdade.
A partir das diretrizes, definem-se os objetivos estratégicos e também as ações programá-
ticas, as quais incluem as indicações dos órgãos responsáveis e também os parceiros na área.
Seguem alguns exemplos de ações programáticas:
a) Fortalecer ações estratégicas de prevenção à violência;
b) Estipular ações preventivas obrigatórias como formação específica das forças policiais e capa-
citação de profissionais para a identificação da tortura;
c) Capacitar e apoiar a qualificação dos profissionais da perícia oficial para a identificação de
tortura;
d) Promover campanhas educativas sobre populações vulneráveis;
e) Propor a revisão de estrutura, treinamento, controle, emprego e regimentos disciplinares dos
órgãos de segurança púbica;
f) Propor a criação de ouvidorias de polícia independentes;
g) Assegurar a autonomia funcional dos peritos;
h) Proporcionar equipamentos para proteção individual efetiva para os profissionais de seguran-
ça pública;
i) Fomentar o acompanhamento permanente da saúde mental dos profissionais do sistema de
segurança pública;
j) Promover a capacitação técnica em investigação criminal para os profissionais dos sistemas
estaduais de segurança pública.

50
Importante!

Como você deve ter percebido, essas ações dialogam com o nosso curso. Elas fazem parte do
eixo-orientador IV Segurança Pública, Acesso à Justiça e Combate à Violência, que é de leitura obrigatória.

De olho na tela!

Assista à entrevista com a Coordenadora Geral de Combate à Tortura sobre a criação do


Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=z-
JPyLZtpx_4.

2.3 Plano de Ações Integradas de Prevenção e Combate à Tortu-


ra (PAIPCT)
O Plano de Ações Integradas de Prevenção e Combate à Tortura (PAIPCT) foi lançado pela Se-
cretaria de Direitos Humanos da Presidência da República em 2006 e incorporou as recomendações do Re-
latório apresentado em 30 de março de 2001 à Comissão de Direitos Humanos da Organização das Nações
Unidas pelo Relator Especial da ONU, Sir Nigel Rodley.

Objetivos do PAIPCT
• Qualificar, fortalecer e ampliar estratégias de prevenção e enfrentamento à tortura nos estados.
• Prover diagnósticos sobre tortura no plano nacional.

Como?
• Monitorando locais de privação de liberdade.
• Mobilizando diversos atores da sociedade civil e do governo para a realização de um conjunto
de ações integradas destinadas a prevenir, enfrentamento e dificultar a prática da tortura.
• Realizando muitas outras ações.

O plano propõe, entre outras, ações como:

• Capacitação específica de integrantes da sociedade civil que lidam com Direitos Humanos, es-
pecialmente dos que se dedicam ao enfrentamento à tortura.
• Criação de campanhas sobre prevenção e enfrentamento à tortura por meio da mídia e junto às
instituições do Sistema de Justiça Criminal e organizações não governamentais.
• Criação, ampliação, reativação e o fortalecimento de comitês estaduais de enfrentamento à
tortura.
• Construção de um diagnóstico sobre a situação da tortura no Brasil.
• Promoção, com frequência, de visitas surpresa aos estabelecimentos de privação de liberdade.

Na aula anterior você estudou que uma política pública tem como objetivo provocar mudanças em
determinada realidade ou aspectos dessa realidade. E o que se está querendo mudar? Ao longo do curso
você estudou sobre “o que é” e também sobre “o que deve ser”. A citação que segue é uma síntese desse “o
que é” que ajuda a repensar o que se quer como “o que deve ser”:

A tortura foi e continua sendo prática disseminada em nosso País. Sob a Dou-
trina de Segurança Nacional, parte integrante do sistema repressivo da ditadura
militar brasileira tinha como finalidade sufocar os opositores – os chamados
subversivos –, aqueles considerados perigosos.

51 ead.senasp.gov.br
O término do regime militar não significou que as violações dos Direitos Huma-
nos, torturas e maus-tratos tenham cessado. Ao contrário, as reformas neolibe-
rais trouxeram o aumento do número de excluídos que, contemporaneamente,
tornam-se os novos alvos da violência do Estado, passando-se de uma política
de segurança nacional a uma política de segurança urbana, sob a qual o perfil
do inimigo interno passa a ser definido segundo critérios geográficos e sociais,
em uma retórica de guerra contra o crime.

Dessa maneira, as políticas de segurança “pública”, que mantêm os mesmos


moldes de ação repressiva da ditadura militar contra certos segmentos, têm ob-
tido o apoio de outro considerável segmento da sociedade para essas novas
formas de violação de Direitos Humanos, criando condições para a constituição
de territórios de exceção nos quais seus habitantes aumentam cada vez mais o
contingente dos desprovidos de cidadania – os perigosos contemporâneos.

Se nas comunidades pobres e periféricas a violência institucionalizada encontra


frágeis barreiras, nas prisões a vulnerabilidade é praticamente total. Os presos –
mesmo os que ainda aguardam sentença – podem ser torturados e impunemen-
te eliminados sem que sua morte seja ao menos qualificada como homicídio
(procedimento também bastante utilizado na ditadura militar). (MOURÃO, 2010,
p. 215- 216)

O dever de proteção

Todos têm direito à liberdade e à segurança pessoal – incluindo o direito de ser libertado de
uma prisão ou detenção arbitrária. A lei permite que pessoas sejam detidas em certas circunstâncias deter-
minadas. As pessoas que estão em detenção legalmente permitida perdem, durante um período de tempo,
seu direito à liberdade, mas elas mantêm todos os seus direitos com exceção daqueles que foram perdidos
como consequência específica desta privação. Indivíduos que não tenham sido condenados por um crime
estão sendo privados de sua liberdade como medida de precaução e não como punição. Pessoas que
foram condenadas a penas de prisão se encontram detidas como punição e não para punição. Em nenhum
dos casos, permite-se às autoridades carcerárias infligir punição adicional àquela decretada pelos tribunais
ou autoridade judicial. Pelo contrário, assumem um “dever de proteção” com relação aqueles por quem são
responsáveis. (FOLEY, 2011, p. 129)
Assim, as estratégias institucionais para o enfrentamento da tortura apontam para esse “o que deve
ser”. Elas vêm sendo traçadas e implementadas pelo Estado brasileiro na última década, em parceria com as
Unidades Federativas, com a sociedade civil e com organismos internacionais, na afirmação e proteção dos
Direitos Humanos, das quais faz parte este curso, na modalidade a distância, em Prevenção e Enfrentamento
à Tortura. O que será apresentado em seguida cobre as diversas dimensões das políticas de enfrentamento
à tortura. É sobre elas que você estudará agora, procurando identificar seus alcances e possibilidades de
mudanças na realidade.

Mas como se define o que deve ser?

No PNDH-3 encontra-se o que está definido para esse “dever ser”. Está sistematizado na
Diretriz 14: Combate à violência institucional, com ênfase na erradicação da tortura e na redução da
letalidade policial e carcerária, do Eixo Orientador IV: Segurança Pública, Acesso à Justiça e Combate
à Violência.
Sobre quem define o “dever ser”, é importante lembrar que o PNDH-3 foi elaborado após

52
uma ampla agenda de participação popular e de organizações da sociedade civil, de Conferências interna-
cionais, nacionais e nos entes federados. Assim, é um documento escrito por milhões de mãos, isto é, é a
vontade da sociedade brasileira e do Estado.
Na Diretriz 14, há o Objetivo estratégico III: Consolidação de política nacional visando à erradicação
da tortura e de outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes. Assim, as estratégias insti-
tucionais para o enfrentamento da tortura estão fortemente ligadas à realização de tal objetivo.
É importante lembrar mais uma vez que a efetivação e a proteção dos Direitos Humanos é um
processo histórico no qual as lutas políticas e ideológicas são permanentes, assim, o que está apresentado
na Diretriz 14 é também resultado de tais lutas, com momentos e contextos determinados. Nesse sentido,
uma das estratégias para o enfrentamento da tortura, anterior ao que propõe o PNDH-3, foi a constituição
da Rede Brasileira contra a Tortura, em maio de 2000, durante a V Conferência Nacional de Direitos Hu-
manos.
Uma estratégia fundamental, que pode ser considerada um marco no enfrentamento à tortu-
ra na história da sociedade brasileira, foi a criação da Coordenação-Geral de Combate à Tortura (CGCT),
em fevereiro de 2005, no âmbito da Secretaria de Direitos Humanos (SDH/PR). A institucionalização dessa
Coordenação expressa que a prevenção e o enfrentamento a uma prática criminosa que tem sido parte da
nossa história é uma política de Estado.
Conforme a Portaria nº 22, que aprova o Regimento Interno da SDH/PR, as atribuições da CGCT se
estendem por todas as dimensões que envolvem a prevenção e o enfrentamento à tortura e a outros
tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, como:
• coordenação de ações;
• processos de informações;
• mobilização de instituições públicas e privadas, autoridades governamentais e sociedade civil
para a organização de uma rede nacional de enfrentamento à tortura;
• apoio a capacitações e formações de profissionais.
Espera-se que o que foi aqui apresentado como estratégias para o enfrentamento da tortura no
Brasil seja capaz de dar a você, aluno desse Curso, uma visão do enorme esforço que o Estado - em parceria
com a sociedade civil, com Organismos Internacionais e Universidades - vem empreendendo para provocar
mudanças institucionais e culturais numa realidade que tem se perpetuado na nossa história e da qual somos
todos vítimas, inclusive os que cometem a prática criminosa da tortura, seja em seu nome ou em nome do
Estado que deve garantir direitos, jamais violá-los.
Veja que é possível identificar as iniciativas do Estado brasileiro para a prevenção e enfrentamento
à tortura.
Em parceria com a sociedade civil e com Organismos Internacionais (com os quais estabele-
ceu compromissos ao ratificar documentos legais), o Estado tem tomado iniciativas que formam um conjun-
to de ações e estratégias envolvendo agentes diversos. Esse conjunto se configura como políticas públicas
que estabelecem determinados objetivos na transformação da realidade em que se quer agir.
As estratégias institucionais para o enfrentamento da tortura são fundamentalmente Políticas em
Direitos Humanos. A efetivação e a proteção dos Direitos Humanos é um processo histórico no qual as
lutas políticas e ideológicas são permanentes, é uma articulação integrada por cidadãos, organizações não
governamentais e instituições públicas comprometidas com a erradicação da prática da tortura.
Enfim, percebe-se que o Governo brasileiro, seus profissionais públicos, sociedade civil e os
Organismos Internacionais se articulam e se fortalecem para criar instrumentos efetivos de prevenção e
enfrentamento à tortura, visando à futura erradicação definitiva desta grave violação.

53 ead.senasp.gov.br
Finalizando...

Neste módulo você estudou que:

• No planejamento - primeira fase de qualquer programa ou projeto de intervenção - pergun-


tas são formuladas e são definidas as teorias e procedimentos para construir-se respostas a elas.
• As estratégias institucionais para o enfrentamento da tortura são fundamentalmente Políti-
cas em Direitos Humanos, isto é, definição, distribuição e fruição de poder no e pelo Estado que se expande
na e pela sociedade civil, no e pelo indivíduo sujeito de direitos.
• Paralelamente às leis sancionadas, o Estado brasileiro adota medidas e articula ações para
a promoção e defesa dos Direitos Humanos. O Governo Federal lançou o primeiro Programa Nacional de
Direitos Humanos - PNDH I, o segundo Programa Nacional de Direitos Humanos - PNDH II, e o terceiro
Programa Nacional de Direitos Humanos – PNDH III.
• O Plano de Ações Integradas de Prevenção e Combate à Tortura (PAIPCT) foi lançado pela
Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República em 2006 e incorporou as recomendações do
Relatório apresentado em 30 de março de 2001 à Comissão de Direitos Humanos da Organização das Na-
ções Unidas pelo Relator Especial da ONU, Sir Nigel Rodley.
• As estratégias institucionais para o enfrentamento da tortura apontam para “o que deve
ser”. Elas vêm sendo traçadas e implementadas pelo Estado brasileiro na última década, em parceria com as
Unidades Federativas, com a sociedade civil e com organismos internacionais para a afirmação e proteção
dos Direitos Humanos. Uma das estratégias é justamente este Curso, na modalidade a distância, em Preven-
ção e Enfrentamento à Tortura.

Exercícios

Atividade 1.
Considerando as estratégias para o enfrentamento a tortura, marque (V) para as sentenças verda-
deiras e (F) para as falsas:

a. ( ) As estratégias institucionais para o enfrentamento da tortura são fundamentalmente Polí-


ticas em Direitos Humanos.
b. ( ) Paralelamente às leis sancionadas, o Estado brasileiro adota medidas e articula ações para
a promoção e defesa dos Direitos Humanos.
c. ( ) As estratégias institucionais vêm sendo traçadas e implementadas pelo Estado brasileiro
na última década, mas estas não afirmam e nem evidenciam a proteção dos Direitos Humanos.
d. ( ) Uma estratégia fundamental, que pode ser considerada um marco no enfrentamento à
tortura na história da sociedade brasileira, foi a criação da Coordenação-Geral de Combate à Tortura (CGCT).
Os Programas Nacionais de Direitos Humanos não contribuem para a execução dessas estratégias

Atividade 2.
A Rede Brasileira contra a Tortura é uma articulação integrada por cidadãos, organizações não go-
vernamentais e instituições públicas comprometidas com a erradicação da prática da tortura. São objetivos
da Rede, EXCETO:

a. ( ) Divulgar os instrumentos legais que proíbem e criminalizam esta conduta.


b. ( ) Ser um mecanismo de troca de experiências e reflexão sobre o tema.
c. ( ) Prender a pessoa acusada de crime de tortura.
d. ( ) Receber denúncias e encaminhá-las às autoridades competentes e recomendar políticas
e ações voltadas ao enfrentamento à tortura.

54
Gabarito

Resposta correta atividade 1: V, V, F, F.

Resposta correta atividade 2: Alternativa c).

55 ead.senasp.gov.br
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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• http://www.echr.coe.int/Documents/50questions_POR.pdf
• http://www.ejiltalk.org/
• http://www.strasbourgobservers.com

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