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O Cavaleiro das Trevas de Frank Miller: entre fascismos e

terrorismos12

Bruno Andreotti3

Vocês devem se lembrar de Frank Miller como o cara que tirou o Demolidor do
limbo, ou como o autor de Sin City, ou ainda como o criador de 300 de Esparta…
mas eu simplesmente prefiro me lembrar dele como o cara que fodeu com a
franquia Robocop no cinema.

Frank Miller é o exemplo clássico de um escritor que se tornou uma marca.


Alcançou o sucesso com meia dúzia de trabalhos com alguma qualidade e, depois
disso, qualquer coisa com os dizeres “escrito por Frank Miller” tornou-se
sinônimo de altas vendas.

Pensemos em trabalhos considerados “revolucionários” como Ronin, vendido


como “o primeiro mangá americano” (e, espero, tenha sido o último) ou mesmo
aquele pastiche deamerican ninja conhecido como Elektra Assassina e você já
tem uma noção do nível das ideias de Miller. Porém, criticar Miller por essas
obras seria fácil demais e, até certo ponto, desnecessário. Vamos pegar algo
realmente de peso em sua obra. Uma obra cuja qualidade não poderia nem
deveria ser questionada… até agora. Vamos pegar o clássico dos clássicos de
Miller… O Cavaleiro das Trevas.

Com O Cavaleiro das Trevas Frank Miller consolidou a concepção de um Batman


brutal e psicótico. Sim, você leu certo. Miller não inventou esse Batman, ele já
estava lá, escrito por Denis O’Neil e desenhado por Neal Adams desde a década
de 70 -lembrando que O’Neil foi o editor de Miller na obra, bem como Dick
Giordano, fico pensando quanto aquilo tudo foi ideia deles ou de Miller… mas
vamos crer naquilo que está escrito.

1
O presente artigo foi publicado originalmente no blog dos Quadrinheiros [ www.quadrinheiros.com ]
em duas partes. Link para a parte 1: http://goo.gl/xG77dm e parte 2: http://goo.gl/KBakY4

2
O presente texto está sob licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-CompartilhaIgual 4.0
Internacional.

3
Possui graduação em História pela PUC-SP (2003), graduação em Licenciatura pela PUC-SP (2004) e
mestrado em Ciências Sociais pela PUC-SP (2008). Escreve periodicamente para o blog Quadrinheiros sob
o pseudônimo de Nerbully. Link para o currículo lattes: http://goo.gl/s4Pkms
Mas por que Miller fixou-se na mente da maioria dos leitores tendo criado esse
Batman? A resposta está na estratégia de marketing da DC. As histórias de O’Neil
eram simplesmentecomics ou, para tornar a expressão mais inteligível, gibis.
Coisa de criança. Já O Cavaleiro das Trevas não, aquilo era uma graphic
novel (novela ou narrativa gráfica, dependendo de quem faz a porca tradução),
quadrinhos, a 9ª Arte e vendido como tal.

Embora no seu formato original a série tenha saído como limited series, apenas
um ano depois foi reunida em uma única edição como uma graphic novel, ou seja,
uma estratégia de mercado para vender quadrinhos para um público adulto, ou
um modo de um adulto ler quadrinhos em algum lugar público e não receber
olhares reprovadores por isso. Ou seja, o sucesso de O Cavaleiro das Trevas não
pode ser dissociado dessa estratégia de marketing da DC em vender o Batman
para um público “adulto”.

Em O Cavaleiro das Trevas, Miller executa sua ideia básica para 95% de sua
produção: pega todas as suas influências noir na ambientação, hard boiled na
trama e cria um tough guy como personagem principal. Voilá! Você tem mais
uma obra prima de Frank Miller! Alguém aí lembrou do filme do Spirit? Então…
Mas ok. Você comprou o peixe como lhe venderam. Gastou cerca de 100 reais na
edição definitiva da Panini (última a ser pública por aqui e ainda vem com O
Cavaleiro das Trevas 2, mas esse está abaixo da crítica). Tem nas mãos um
verdadeiro clássico da 9ª Arte, uma graphic novel, um Batman para adultos
escrita e desenhada por ninguém menos que Fank Miller. E agora?

Livro 1: O Retorno do Cavaleiro das Trevas

Bruce Wayne está velho. Na primeira sequencia de quadrinhos o vemos desafiar


a morte em uma manobra suicida em uma corrida de carros. Gotham está mais
violenta do que nunca e Batman o quer possuir novamente, mas ele resiste. Por
quê? Porque se sente inseguro, tem medo de não estar à altura do Homem-
Morcego.

Mas quando o filme Zorro traz de volta as lembranças da morte de seus pais o
Batman volta. A cidade, que até então vinha sofrendo uma onda infernal de calor
é acometida por uma tempestade. É o Batman voltando e limpando as ruas de
Gotham.
Batman constata que já não é mais o mesmo. Seu corpo não responde… ele se
lamenta por ter sido brando demais com alguns criminosos que agora o cercam.
Então, quando toma o controle da situação novamente, ele aleija um criminoso.
Batman afirma sua superioridade e recupera parte de sua confiança em si mesmo
ao fazê-lo.

Paralelo a tudo isso, Harvey Dent é solto do Arkham, agora com a face regenerada
e supostamente reabilitado. Mas, obviamente, volta a cometer crimes. A
capacidade dos psiquiatras e psicólogos do Arkham é anulada. Não é possível
nenhuma reabilitação. No embate final com Batman, o Duas-Caras pode morrer,
mas Batman o salva. Não por uma preocupação ética ou moral em salvar vidas,
mas porque Batman deseja saber se realmente era Harvey Dent ou não.

Ao interrogar um criminoso, este clama por seus direitos humanos, ao que


Batman responde que se divertia contando-os para ficar mais furioso. Datena e
afins aplaudiriam de pé o Morcego por essa.

Esse é o Batman de Frank Miller: inseguro, obsessivo, psicótico e com quase


nenhuma restrição ética ou moral, que ele mesmo descreve como “um gênio
obsessivo, hercúleo e razoavelmente maníaco”.

Livro 2: O Triunfo do Cavaleiro das Trevas

As ações do Batman começam a repercutir. Os índices de criminalidade


diminuem e um debate sobre a legitimidade de seus atos se instala na imprensa.
O dr. Wolper já teve sua capacidade invalidada ao liberar o Duas-Caras do
Arkham. Quando ele analisa os atos do Morcego diz categoricamente: “o Batman
é uma doença”.
Em um programa de TV o âncora se dirige a Lana Lang, uma das poucas
defensoras do Batman na mídia: “Como pode apoiar uma conduta tão ilegal, que
viola justiça e direitos humanos?” (notem que no original é “direitos civis”) e a
resposta “Nós vivemos à sombra do crime, Ted, com a silenciosa certeza de que
somos as vítimas… do medo, da violência e da impotência social. Um homem se
ergueu para nos mostrar que o poder está e sempre estará em nossas mãos. Nós
nos encontramos cercados e sob ataque. Ele está mostrando que podemos
resistir”. O mesmo poderia ser dito de Hitler durante a República de Weimar, e
todos nós sabemos como tudo isso terminou.
Miller é hábil ao alternar entre os atos do Batman e a posição da imprensa. Ele a
mostra sempre adulterando e deturpando os fatos que vemos, há sempre um
contraste entre a realidade que ele nos faz presenciar e a interpretação
equivocada da mídia e é por isso que as ações do Batman são sempre justificadas
de alguma forma. A mídia declara que Batman é um fascista, um doente e um
criminoso. Ficamos ao lado do vigilante e, desse modo, legitima-se esse mesmo
comportamento que é, de fato, fascista, doente e criminoso no pior sentido da
máxima “os fins justificam os meios”. Aliás essa é a tese de Miller: Batman é
grande demais, está acima da compreensão de meros mortais. Suas ações estão
acima do Bem e do Mal. De acordo com Miller:

“Eu não guardei meu veneno mais poderoso pro Coringa ou pro Duas-Caras,
mas para as insípidas e apelativas figuras da mídia que cobriam de forma tão
pobre os gigantescos conflitos daquela época. O que essas pessoas
insignificantes fariam se gigantes andassem sobre a Terra? Que tratamento
elas dariam a um herói poderoso, exigente e inclemente?”

E é esse mesmo herói inclemente que diz: “Foi difícil carregar 120 quilos de
sociopata até o topo das Torres de Gotham… o ponto mais alto da cidade. Mas
os gritos compensaram”. Batman não usa mais seus métodos apenas porque é
necessário, ele passa a sentir prazer na tortura que inflige aos criminosos.

Mas o grande conflito está entre Batman e a chamada Gangue dos Mutantes.
Sabemos poucos dessa gangue, mas duas de suas características são
constantemente reiteradas: sua juventude e sua brutalidade. Num conflito quase
mortal com o líder dos Mutantes tendo como telespectadores o restante da
gangue Batman o vence, provocando a catarse para aquela juventude massificada
e brutalizada. Em um passe de mágica, parte dos Mutantes se tornam Os Filhos
do Batman. Ao invés de executar atos de violência contra os cidadãos de bem de
Gotham começam a executar atos de violência contra criminosos. É assim que
Miller vê a juventude: uma massa perdida à espera de seu Führer.

Livro 3: A Caçada ao Cavaleiro das Trevas

Ao mesmo tempo que torna evidente o fascismo de Batman ele também o


disfarça. Batman persegue Bruno, um ex-membro da gangue mutante com
suásticas desenhadas no peito e nas nádegas, como se Miller dissesse ao
leitores: veja, não é o Batman que é um fascista, são seus inimigos”.

O conflito com Superman começa a se anunciar, simbolizando o governo


americano. Batman é perigoso para o governo, se está contra o governo não pode
ser fascista, certo? Errado. Batman poderia ser descrito como um terrorista de
direita, como o Unabomber e, mais recentemente, o jovem Anders Behring
Breivik na Noruega, que pode ser resumido da seguinte forma: “Se o Estado ou a
Sociedade não podem garantir direitos, eu os garantirei”. O governo não está em
Gotham, não protege seus cidadãos: Superman está lidando com uma crise
internacional na localidade fictícia de Corto Maltese. Parece que Miller passa
mais um recado aos leitores: o governo dos EUA está mais preocupado com o que
se passa fora do seu país do que dentro. O Estado há muito falhou em Gotham
City.

Mas ainda há outro conflito, central nessa parte da trama, contra o Coringa, seu
arqui-inimigo. Batman é a única barreira entre a loucura do Coringa e a
população, o Estado não o deterá, ao contrário, acaba de liberá-lo – ainda que por
pouco tempo – do Arkham -, portanto toda violência exercida pelo Batman está
justificada para “defender a sociedade”. Batman está decidido a acabar de vez com
o Coringa, quer matá-lo, mas não consegue.“Vozes me chamam de assassino… eu
gostaria de ser…” pensa o Morcego. O limite ético e moral da preservação da vida
não existe mais, Batman quer ser um assassino.

O Cavaleiro das Trevas sente-se culpado (e também a mídia o culpa) por todas as
mortes causadas pelo Coringa, tomando uma decisão sem precedentes: deixa o
Coringa tetraplégico (e por que não o matou, uma vez que ele mesmo expressa
esse desejo? Um veto editorial, talvez? Uma linha que nem Miller ousou transpor?
Jamais saberemos), mas o Palhaço do crime acaba por cometer suicídio,
enquanto o Morcego apenas observa, livrando-o da culpa de ser um assassino.

Nota: veja que a trama do senador que enlouquece e pede um ataque nuclear a
Corto Maltese é a mesma utilizada em Elektra Assassina… Miller se supera na
originalidade.

Livro 4: A Queda do Cavaleiro das Trevas


O conflito contra o Superman atinge o ápice no capítulo final da obra. O Super
não consegue impedir a detonação de um míssil lançado pelos soviéticos
(estávamos em plena Guerra Fria quando Miller escreveu seu “clássico”) que gera
um grande impulso eletromagnético e causa um apagão em Gotham. O caos está
prestes a se instalar na cidade e Batman cavalga em direção aos ex-Mutantes,
agora Filhos do Batman.

Eles estão num lugar conhecido como A Fossa e por um momento Batman se
coloca no mesmo nível de seus seguidores quando diz: “Um campo de procriação
para ratos e insetos. Alguns ratos voam”. Batman decide usar seus seguidores
para manter a situação sobre controle e discursa: “Nossas armas são
silenciosas… precisas. No tempo certo, eu lhes ensinarei como devem ser usadas.
Esta noite, vocês usarão só os punhos… e o cérebro. Hoje nós somos a lei.
Hoje, eu sou a lei”. O Superman, o Estado, falhou. Batman vai fazer o que o
Estado não foi capaz, mas sem nenhuma legitimidade.

Já no caos, sem o Estado para coagir ou garantir qualquer coisa, em Gotham se


instaura uma espécie de guerra de todos contra todos. Seus habitantes voltam ao
estado de natureza hobbesiano e é um cidadão que diz: “Não existe desculpa pro
que fizemos. Não estávamos loucos. Simplesmente viramos um bando de
animais egoístas”.

Batman e seus seguidores finalmente colocam as coisas em ordem em Gotham,


mas ainda resta um inimigo… o Superman. Após uma batalha épica, Batman
simula um ataque cardíaco, forjando sua própria morte. Superman descobre a
farsa, mas não mais perseguirá o Morcego. Em troca, este agirá secretamente com
seus seguidores, os Filhos do Batman. Frank Miller deu o seu recado: sem
repressão volta-se à guerra de todos contra todos. Quando o Estado falhar – e ele
falhará -, alguém deverá reprimir e dirigir a população. E o Cavaleiro das Trevas
está aí para isso.

E depois de tudo isso escancarado para os leitores desde a década de 80, as


pessoas se surpreenderam quando Frank Miller se posicionou de maneira
desfavorável ao movimento Occupy Wall Street:
“O ‘Occupy’ não passa de um bando de turrões, bandidos e estupradores, uma
turba indisciplinada, vivendo da nostalgia de Woodstock e de fétida e falsa
honradez. A única coisa que esses palhaços conseguem é fazer mal à América”.”
Então o que faltou no OWS para Miller foi a figura de um líder capaz de guiar a
turba, para transformá-la em massa. Parece que movimentos baseados na
autogestão o fazem temer o que as pessoas são capazes de fazer. E isso é óbvio,
pois na concepção do autor, quando não há repressão volta-se à guerra de todos
contra todos. Mas o medo de uma juventude que não respeita mais o Estado nem
possui um líder transparece ainda mais quando diz que o OWS:

“não é mais do que uma modinha criada por moleques mimados de iPhones e
iPads na mão que deviam sair da frente de quem quer trabalhar e procurar
emprego (…) Em nome da decência, voltem para casa do papai, seus medíocres.
Vão para o porão da mamãe brincar de Lords Of Warcraft”.
A solução para essa juventude? Simples, alistarem-se no Exército! Nesse ponto
Alan Moore foi pontual e certeiro:

“[O OWS] é um grito justificado de ultraje moral e parece que está sendo
conduzido de um jeito pacífico e inteligente, o que provavelmente é outra razão
para Frank Miller ficar tão desagradado. Tenho certeza de que se fossem
uns jovens vigilantes sociopatas com maquiagem de Batman
na cara [os Filhos do Batman] ele seria bem favorável.”

Mas ok, acho que vocês já entenderam a posição política de Frank Miller. E quais
os efeitos de sua interpretação do Batman para o cânone do herói?

Podemos notar um certo “movimento pendular” no personagem. Infantilizado


pela série com Adam West, O’Neil e Miller tiveram que brutalizá-lo para que fosse
novamente respeitável por alguém com mais de 10 anos. Porém esse Batman dos
anos 80 que Miller ajudou a criar era simplesmente um psicopata compulsivo e
violento.

Até certo ponto o Batman reprimido, repressor e inseguro que vemos na


célebre graphic novel Arkham Asylum: a serious house on a serious
Earth (escrita por Grant Morrison e desenhada por Dave McKean, publicada
apenas três anos após O Cavaleiro das Trevas) é uma crítica a essa concepção
consolidada por Miller. Nela, vemos que esse Batman precisou entrar e sair
sozinho no Arkham, como o herói arquetípico que deve passar pelo ventre da
baleia, para se livrar da herança de Miller e renascer como um autoconfiante
guerreiro zen, um verdadeiro herói, na mais pura acepção do termo.

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