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NARRATIVA TRANSMÍDIA: UM PASSEIO PELO UNIVERSO MARVEL

CINEMATOGRÁFICO

Amanda Venancio FONTENELE1


Universidade Federal do Ceará, Fortaleza-CE, Brasil

RESUMO

O presente artigo tem como objetivo analisar a construção da narrativa transmídia dentro do
Universo Marvel Cinematográfico (conjunto de longas metragens, curtas metragens, séries e
histórias em quadrinhos inspiradas nas histórias em quadrinhos da Marvel), assim como é o papel
do espectador, em especial o fã, na construção dessa narrativa transmídia. O presente trabalho foi
produzido através de uma análise do filme Os Vingadores (The Avengers, Marvel Studios, 2012) e
as séries Agentes da S.H.I.E.L.D (Agents of S.H.I.E.L.D.,ABC, 2013, ainda em andamento) e
Demolidor (Daredevil, Netflix, 2015, ainda em andamento), sob o viés de Henry Jenkins (2009)
sobre a cultura da convergência, e Umberto Eco (2010) e o papel do leitor (ou espectador) dentro
da narrativa. Também foi analisada a participação dos fãs em sites voltados para os filmes e séries
da Marvel, sob a ótica de Pierre Lévy (1999) e André Lemos (2003) sobre a Cibercultura e
inteligência coletiva.

PALAVRAS-CHAVE: Narrativa transmídia; Marvel; Fã; Inteligência Coletiva;

Introdução

A convergência está cada vez mais presente no entretenimento, com histórias que
não se esgotam em apenas um produto midiático. “Cada vez mais, as narrativas estão se
tornando a arte da construção de universos, à medida que os artistas criam ambientes
atraentes que não podem ser completamente explorados ou esgotados em uma única obra,
ou mesmo em uma única mídia” (Jenkins, 2008, p.161).

Com a narrativa transmídia, além das histórias se fragmentarem em mais de um


produto, elas também se situam em mídias diferentes, que convergem para formar um
ambiente onde cada produto oferece informações diferentes (sem redundâncias) e
experiências distintas, pois cada uma possui recursos narrativos que as outras não possuem.
“Uma história transmídia se apóia na convergência das mídias e na inteligência coletiva.
Ela se desdobra através de múltiplas plataformas de mídia, com cada novo texto

1
Estudante de graduação 8º semestre do curso de Comunicação Social – Jornalismo da UFC – CE, email:
v.amandafontenele@gmail.com
contribuindo de maneira distinta e valiosa para o todo” (JENKINS, 2008, p.138). As
conexões, assim como os produtos em si, devem atrair o público para não apenas consumir
uma mídia, mas explorar o universo por completo.
Henry Jenkins, em seu livro Cultura da Convergência, dedica o capítulo Em Busca
do Unicórnio de Origami para falar desse estilo de narrativa, utilizando como principal
exemplo a franquia Matrix. Em Matrix, as irmãs Wachowski exploraram bastante a
narrativa transmídia, estendendo a história através de filmes, jogos de vídeo game, histórias
em quadrinhos e uma série de curtas animados. Os fãs, satisfeitos por terem mais produtos
para explorar além dos filmes, investigavam os símbolos e pistas deixados nos produtos,
ávidos por desvendar as conexões presentes na franquia.

No entanto, as mídias eram tão ligadas que acabavam se tornando dependentes umas
das outras, e isso desagradou parte do público, que não queria ter que jogar o vídeo game
para descobrir a origem de um personagem no filme, por exemplo. Por isso, Jenkins (2008)
também ressalta a importância da autonomia dentro de cada mídia, ou seja, o público não
deve sentir a necessidade de consumir outra mídia para gostar da primeira e vice-versa.
Além disso, cada mídia deve funcionar como ponto de acesso à franquia.

Jenkins (2008) afirma que poucas franquias atingiram todo o potencial estético da
narrativa transmídia - pelo menos por enquanto – e que os produtores estão trabalhando
nisso. Como exemplo de narrativa transmídia que está sendo construída cuidadosamente,
temos o Universo Marvel Cinematográfico (UMC), que reúne os longas metragens (Marvel
Studios) e séries de TV (ABC e Netflix) inspirados nas histórias em quadrinhos da Marvel.
No UMC também estão incluídos os curtas metragens que acompanham as versões bluray
de alguns filmes e as histórias em quadrinhos com prelúdios dos filmes.

Neste artigo, será analisado como a narrativa transmídia se desenvolve dentro do


Universo Marvel Cinematográfico, tendo como objeto de estudo três produtos: O filme Os
Vingadores (2012) e as séries Agentes da S.H.I.E.L.D ( Agents of S.H.I.E.L.D. , 2013) e
Demolidor ( Daredevil, 2015). O presente artigo também estudará a função do fã dentro da
narrativa transmídia, sob o viés de Umberto Eco (2010) e o papel do leitor (receptor, no
caso) dentro da narrativa. Por fim, será analisado como os fãs da Marvel e a inteligência
coletiva dentro dessa comunidade fazem parte da cibercultura, sob a ótica dos estudos de
Pierre Lévy (1999) e André Lemos (2003).

Universo Marvel antes da Narrativa Transmídia

Fazer com que personagens de histórias diferentes,criados por autores distintos,


interagissem entre si no mesmo universo, é algo que a Marvel executa desde quando ainda
era a antiga Timely Comics. Em 1940, na edição n°07 da Marvel Mystery Comics, vemos
um episódio até então inédito nos quadrinhos da Marvel: dois personagens de histórias
distintas, de diferentes criadores, passaram a fazer parte do mesmo universo. Namor, o
príncipe submarino, que não tinha muita simpatia pelos seres humanos, se encanta por uma
mulher chamada Betty Dean, que por sua vez era colega de trabalho e amiga de Jim
Hammond, o Tocha Humana. Betty Betty foi a ponte intermediária entre os dois
personagens, que chegam a se confrontar nas edições seguintes (n°8 e n°9), interagindo em
um ambiente que, de certa forma, também era do leitor – a história podia ser fictícia, mas se
passava em Nova York, um cenário extremamente familiar aos leitores.
A interação entre os personagens é bem trabalhada no Universo Marvel até os dias
de hoje em suas HQ’s2, principalmente após o surgimento das várias equipes de super
heróis, como O Quarteto Fantástico e os próprios Vingadores. Eles podem se encontrar
porque um vilão em comum os atraiu para o mesmo lugar, ou se esbarrarem casualmente no
metrô3. Ou ainda discutirem sobre questões existenciais enquanto jogam xadrez4. As
possibilidades são infinitas. Essa característica também foi incorporada às adaptações para
o cinema e às séries televisivas, principalmente em função da equipe Vingadores, um dos
pontos de intersecção entre toda a adaptação audiovisual da Marvel.

A origem dos Vingadores

2
Abreviação popularmente utilizada para o termo “histórias em quadrinhos”
3
Em Gavião Arqueiro No. 3, o protagonista encontra Steve Rogers, identidade civil do Capitão América, enquanto eles
estavam no metrô.
4
Isso acontece em Invicible Iron Man No. 4, quando Tony Stark (Homem de Ferro) e Reed Richards (Senhor Fantástico)
jogam xadrez enquanto conversam.
A super equipe foi criada graças a um pequeno imprevisto: a produção da revista
Demolidor No. 1 estava atrasada e a Marvel teria prejuízo se nenhum material fosse
enviado para a gráfica. Assim, Stan Lee teve a ideia de criar um roteiro reunindo heróis que
já haviam sido publicados. Feita às pressas com o traço de Jack Kirby e arte finalização de
Dick Ayers, eles conseguiram publicar a revista, que recebeu o nome de Os Vingadores
(HOWE, 2013).

A primeira formação da equipe tinha Thor, Homem de Ferro (Iron Man), Hulk,
Homem-Formiga (Ant Man) e Vespa (Whasp) como integrantes. A formação variou
bastante ao longo dos quadrinhos, o que fez com que a maioria dos super heróis criados
pela Marvel participasse do grupo por algum tempo5.

Os Vingadores e o Universo Marvel Cinematográfico

O Universo Marvel Cinematográfico corresponde ao conjunto de filmes baseados


nos personagens e em eventos dos quadrinhos da Marvel. As séries de TV (ABC e Netflix)
também estão nesse universo. O UMC também conta com os curtas metragens que
acompanham as versões bluray de alguns filmes e histórias em quadrinhos contendo
prelúdios dos longas metragens. As contribuições dos curtas, assim como das HQ’s, são
mais direcionadas aos filmes, funcionando como complementos dos produtos lançados nos
cinemas.

As adaptações começaram em 2008 com Homem de Ferro, O Incrível Hulk (2008),


Homem de Ferro 2 (2010), Thor (2011), Capitão América e por fim, Os Vingadores (2012),
reunindo os personagens e concluindo a primeira fase do universo. A construção do
Universo Marvel Cinematográfico é divida por fases, onde cada uma delas conta com o
aumento de personagens e interação entre eles, trazendo mais elementos para a narrativa.
Na primeira fase, além da apresentação dos personagens, os filmes faziam referências entre

5
No primeiro volume de Os Heróis Mais Poderosos da Marvel publicado em 2015 no Brasil pela Salvat, dedicado aos
Vingadores, há uma lista com a maioria dos personagens que já participaram da equipe, mostrando que muitos super
heróis já foram integrantes do grupo.
si, trazendo easter eggs6, cenas pós-créditos que ligavam os filmes aos próximos
lançamentos, aparições ou citações de personagens de filmes anteriores, dentre outros
indícios de que tudo se passava no mesmo universo.

A fase dois se iniciou em 2013 com O Homem de Ferro 3 e outras continuações,


além de trazer o herói Homem-Formiga (Ant Man, 2015) e a equipe Guardiões da Galáxia
(The Guardians of the Galaxy, 2014). Um dos últimos filmes lançados nessa fase foi
Vingadores 2: A Era de Ultron ( The Avengers: Age of Ultron, 2015), que mostra mudanças
na formação da equipe e o prelúdio de alguns dos conflitos desenvolvidos na fase três, que
ainda está em andamento. Até então, dos filmes previstos nessa etapa, Capitão América:
Guerra Civil (Captain America: Civil War,2016), Doutor Estranho (Doctor Strange,2016) e
Homem Aranha: de Volta ao Lar (Spider Man: Homecoming, 2017) já foram lançados.
Mais seis longas metragens já possuem data de lançamento.7

As histórias dos personagens, mesmo daqueles que surgiram no universo


cinematográfico com filmes solo, vão aos poucos ficando mais entrelaçadas. Uma das
principais causas é a participação deles nos Vingadores, que não só reúne os protagonistas
dos filmes anteriores como também dá destaque a personagens que ainda não possuem
filmes solo, como Viúva Negra (Black Widow) e Gavião Arqueiro (Hawkeye).

Os filmes protagonizados pela super equipe são os pontos principais que unem toda
a franquia, pois além de reunir os personagens, os eventos relacionados aos Vingadores
trazem conseqüências que atingem todo o universo, como veremos a seguir nos próximos
tópicos.

As séries de TV

Entre 2015 e 2016, o canal americano ABC, em parceria com a Marvel, produziu a

6
Termo utilizado para definir segredos escondidos em filmes, sites, jogos, etc.
7
Thor: Ragnarok (2 de novembro de 2017), Pantera Negra (15 de fevereiro de 2018), Vingadores: Guerra Infinita (26 de
abril de 2018), Homem-Formiga e Vespa (5 de julho de 2018), Capitã Marvel (28 de fevereiro de 2019) e Vingadores 4 (2
de maio de 2019). Dados encontrados em https://omelete.uol.com.br/marvel-cinema/, acessado em 20/09/2017.
série Agente Carter (Agent Carter), um spin-off 8de Capitão América com foco na trajetória
de Peggy Carter, uma das personagens secundárias do filme. Agente Carter foi cancelada
após a segunda temporada. Outro resultado dessa parceria é a série Agentes da S.H.I.E.L.D.
(Agents of Shield), transmitida pela ABC desde 2013.

A Marvel também fez uma parceria com a Netflix, lançando em 2015 as séries
Demolidor (Daredevil) e Jessica Jones, cada uma com 13 episódios. Em 2016, Luke Cage,
personagem secundário em Jéssica Jones, ganha uma série solo, e em 2017, Punho de Ferro
(Iron Fist) é lançado. Os quatro super heróis ainda atuam como uma equipe na série Os
Defensores (The Defensors), também lançada em 2017.

Após muita especulação dos fãs sobre a ligação entre as séries e os filmes, Joe
Quesada, editor-chefe da Marvel, confirmou em uma entrevista para o podcast Fat Man on
Batman9 que tanto as séries da ABC como as da Netflix estavam inseridas no Universo
Marvel Cinematográfico, o que leva os fãs a buscarem conexões entre as produções.

Neste artigo, focaremos nas séries Agentes da S.H.I.E.L.D. e na primeira temporada


de Demolidor, a fim de explorar os elementos da narrativa transmídia.

O acesso ao Universo Marvel e a narrativa transmídia

O Universo Marvel Cinematográfico se encaixa na definição de narrativa transmídia


de Jenkins (2008): os filmes podem ser considerados os produtos principais, mas estão
conectados aos demais produtos, principalmente às séries.

Focando nas produções do canal ABC, a principal contribuição delas é dar destaque
a personagens que, apesar de aparecerem em segundo plano nos filmes, são importantes
para a trama e de interesse do público. Agent Carter, por exemplo, foca na história de uma
personagem secundária do filme Capitão América: O primeiro Vingador (Captain America:
The First Avenger, 2011).

8
Termo utilizado para definir um produto derivado de algo que já foi desenvolvido anteriormente.
9
Podcast publicado no dia oito de maio de 2015, no canal seesmood (YouTube). Encontrado em
https://www.youtube.com/watch?v=sfuPq8ujp0E. Acesso em 30 de janeiro de 2016.
Analisando o filme Os Vingadores e as séries Agentes da S.H.I.E.L.D. (ABC) e
Demolidor (Netflix), é possível perceber ligações entre o filme e as séries que denotam uma
narrativa transmídia. A primeira temporada de Agentes da S.H.I.E.L.D se inicia
cronologicamente logo após os eventos do filme Os Vingadores. Uma das principais
revelações do primeiro episódio é a volta do Agente Coulson, um personagem que
aparentemente havia morrido no filme e ressurge na televisão, se tornando o protagonista da
série. Agentes da S.H.I.E.L.D. mostra o cotidiano dessa organização, que apesar de
importantíssima para o desenvolvimento das tramas dos filmes, geralmente fica em segundo
plano nos cinemas.
Na televisão, a Marvel tem a oportunidade de atingir um público mais variado e
também aquele que já se interessa pelos filmes e quer buscar mais informações nas séries.
Com o tempo disponível bem maior se comparado ao que os cinemas fornecem, a Marvel
Studios tem a chance de desenvolver melhor personagens e criar mais explicações para
eventos que ocorrem no UMC.

As contribuições da Netflix podem ser consideradas ainda mais impactantes. As


séries Demolidor e Jéssica Jones também fazem referências aos eventos ocorridos nos
filmes, principalmente em relação ao filme Os Vingadores, ainda que de forma sutil. Mas os
personagens, apesar de possuírem super poderes, lidam com problemas bem mais próximos
do que seria considerado “o mundo real”. O vilão deixa de ser um deus de outro mundo e
passa a ser o líder de uma organização criminosa, com poder sobre a mídia e a polícia local.
Ou a protagonista precisa combater um homem com a capacidade de fazer as pessoas o
obedecerem, mesmo que contra a vontade delas, e a série vira uma metáfora aos
relacionamentos abusivos10.

O conteúdo é definitivamente mais adulto comparado aos dos filmes e séries da


ABC, apresentando mais cenas de violência, sexo, bebidas e problemáticas que são versões
fictícias de muitas situações que vemos em nosso cotidiano, ainda que nas séries elas
tenham sido um pouco exageradas. Apesar do elemento fantasia ainda estar presente nessas
séries, elas podem atrair um público diferente em relação aos filmes, como um público que
talvez não se interessasse pela narrativa de super heróis tradicional, por exemplo. E como o
10
Primeira temporada de Jessica Jones (2016)
conteúdo é mais adulto, as séries podem atingir faixas etárias diferentes das dos filmes, que
são desenvolvidos para agradar desde as pessoas mais velhas até o público mais jovem,
incluindo crianças e pré-adolescentes.

Outra diferença entre as séries da Netflix, se comparado com os outros produtos, é


que além dos produtores possuírem mais tempo para desenvolver a trama, os episódios são
todos liberados de uma só vez, ao invés de um por semana, o que possibilita ao público
assistir todos de uma vez, em sequência. Isso possibilita a Marvel desenvolver a narrativa
de forma diferente da utilizada na televisão.
Voltando para as conexões da narrativa transmídia, Demolidor faz várias referências
ao filme Os vingadores11. Principalmente por parte dos vilões, que falam sobre a “A
Batalha de Nova Iorque” e como ela foi lucrativa para eles.

A Batalha de Nova Iorque nada mais é do que um dos últimos eventos de Os


Vingadores, onde a recém formada equipe luta contra o deus asgardiniano Loki. Apesar da
vitória dos Vingadores, a cidade sofre vários danos. Com a reconstrução da cidade, houve
também vários investimentos e um grande esquema de corrupção foi se formando, tendo
como principal líder o grande vilão da primeira temporada de Demolidor, Wilson Fisk (Rei
do Crime).

Figura 2: Referências à Batalha de Nova Iorque em Demolidor.


Cena retirada de Demolidor (1º temporada), arte do site AdoroCinema12

11
Parte dessas referências foram pesquisadas no vídeo “Segredos de Demolidor e a Marvel no cinema e na TV”, do canal
Omeletv (YouTube), encontrado em https://www.youtube.com/watch?v=LC9mPgpJKd0. Acesso em 31 de janeiro de
2016.

12
Arte encontrada no site AdoroCinema. Encontrado em http://www.adorocinema.com/slideshows/series/slideshow-
Figura 3: Um dos vilões de Demolidor faz uma referência aos outros super heróis do UMC

Cena retirada de Demolidor (1º temporada)13.

Os membros da máfia passam a atuar em Hell’s Kitchen, onde vive Matt Murdock,
que posteriormente viria a se tornar o Demolidor e lutar para capturar esses criminosos. Ou
seja, os eventos que ocorrem em Os Vingadores são essenciais para que o antagonismo
entre Demolidor e Rei do Crime ocorra, criando assim o enredo da primeira temporada da
série.

A primeira temporada de Demolidor também faz pequenas referências a Agentes da


S.H.I.E.L.D., através de easter eggs indicando que personagens de ambas séries já moraram
no mesmo local ou se encontraram previamente14.

A Lógica econômica na narrativa transmídia

Os motivos que levam uma franquia a se transformar numa narrativa transmídia


geralmente envolvem interesses econômicos. O público deseja novas experiências, então irá
consumir produtos que fornecem tais experiências. Por isso, é importante não causar
redundância dentro da narrativa. “Oferecer novos níveis de revelação e experiência renova a
franquia e sustenta a fidelidade do consumidor” (JENKINS, 2008, p.138).

112793/8. Acesso em 30 de janeiro de 2016.


13
Cena da série Demolidor, retirada do site de streaming Netflix. Encontrado em
http://www.netflix.com/watch/80018191?trackId=14170289&tctx=0%2C0%2Ccfcce2fc-45b6-4de7-bcaa-a634aa870d5e-
25052101. Acesso em 02 de janeiro de 2016.
14
O pai de Matt, Jack Murdock, lutou com Carl “Crusher” Creel, personagem que aparece na segunda temporada de
Agents of S.H.I.E.L.D. Matt e Agente Skye, personagem de Agents of S.H.I.E.L.D., moraram por um tempo no mesmo
orfanato (St. Agnes). Essas informações são confirmadas através de easter eggs presentes em Demolidor.
A Marvel, apesar de utilizar poucas mídias se comparada com outras franquias
(como Star Wars15), executa bem a narrativa transmídia, pois soube aproveitar o que cada
mídia tinha de melhor para contribuir para o seu universo. Cada mídia aborda o universo de
uma maneira diferente e com peculiaridades próprias. Assim sendo, pode atrair públicos
diferentes.

A lógica econômica de uma indústria de entretenimento integrada horizontalmente – isto é, uma


indústria onde uma única empresa pode ter raízes em vários setores diferentes de mídia – dita o
fluxo de conteúdo pelas mídias. Mídias diferentes atraem nichos diferentes. (...) Uma boa
franquia trabalha para atrair múltiplas clientelas, alterando um pouco o tom do conteúdo de
acordo com a mídia. (JENKINS, 2008, p.138)

Um dos aspectos da narrativa transmídia apontados por Jenkins (2008) é que cada
plataforma deve ser um acesso autônomo à franquia, ou seja, não é necessário ter acesso a
um produto para gostar do outro, ou vice-versa (JENKINS, 2008).

No Universo Marvel cinematográfico, cada filme e série se desenvolvem em torno


de um evento principal que pode ser entendido pelo espectador sem que ele precise
necessariamente ter assistido a todas as obras anteriores. Isso permite que o indivíduo
escolha quais filmes ele quer assistir, qual deles será assistido primeiro, etc.

Porém, haverá detalhes na história que farão mais sentido se o indivíduo que está
assistindo já tiver visto os filmes anteriores. Ver todos os filmes pode não ser a chave
principal para entender cada peça do todo, mas assistir a todos os produtos traz uma
experiência única para quem se interessa pelos filmes.

“A compreensão obtida por meio de diversas mídias sustenta uma profundidade de


experiência que motiva mais o consumo” (JENKINS, 2008, p. 138). Esse interesse maior
pelo universo pode se manifestar ao ver uma cena pós-crédito fazendo uma conexão com
outro filme, ou assistir a uma série e ver o quanto os eventos de um determinado filme
tiveram impacto na rotina daqueles personagens que estão aparecendo na TV. Até mesmo o
interesse por um único personagem pode despertar o interesse por outros filmes, visto que
as ações do personagem em questão influenciam e são influenciadas pelo todo.

15
Universo Expandido de Star Wars
Essas conexões fazem o espectador curioso e interessado se instigar mais e mais, e
uma das maneiras que ele vai buscar para descobrir mais sobre o universo e as histórias dos
personagens, que ficam cada vez mais entrelaçadas, é consumindo mais produtos do mesmo
universo.

A participação do fã na narrativa transmídia

O Universo Marvel Cinematográfico, assim como qualquer outra franquia, está


sujeita às interpretações e especulações do público, principalmente em relação às futuras
conexões entre os personagens. Umberto Eco, em seu livro intitulado Obra Aberta, de 2003,
descrevia algumas produções musicais como obras abertas, ressaltando o papel do receptor
para interpretar e ele mesmo, “fechar” a obra.

Nesse sentido, o autor produz uma forma acabada em si, desejando que a forma em questão seja
compreendida e fruída tal como a produziu; todavia, no ato de reação à teia dos estímulos e de
compreensão de suas relações, cada fruidor traz uma situação existencial concreta, uma
sensibilidade particularmente condicionada, uma determinada cultura, gostos, tendências,
preconceitos pessoais, de modo que a compreensão da forma originária se verifica segundo uma
determinada perspectiva individual. (ECO, 2003, p.40)

Eco cita Pousseur ao falar da poética da obra aberta, afirmando que ela tende a “a
promover no intérprete ‘atos de liberdade consciente’, pô-lo como centro ativo de uma rede
de relações inesgotáveis, entre as quais ele instaura sua própria forma (...)” (POSSEUR
apud ECO, 2003, p. 41). Isso não significa necessariamente que todas as narrativas são
indefinidas e com infinitas possibilidades de interpretação. O autor constrói “um feixe de
resultados fruitivos rigidamente prefixados e condicionados, de maneira que a reação
perceptiva do leitor não escape jamais do controle do autor” (ECO, 2003, p.43).
O que Eco afirma sobre a obra de arte também pode ser percebido no Universo
Cinematográfico Marvel. Por não se tratar de uma única obra, e sim de várias obras
interligadas, a experiência de interpretação se intensifica, e as possibilidades aumentam.
Além disso, analisando o conjunto de filmes e séries, a obra ainda não está concluída16,
dando mais espaço para o leitor fazer especulações sobre quais serão os próximos eventos

16
A Marvel Studios anunciou filmes até 2019, incluindo Os Vingadores: Guerra Infinita – Parte 1 (data de lançamento: 26
de abril de 2018) e Os Vingadores: Guerra Infinita – Parte 2 (data de lançamento: 2 de maio de 2019). Além disso, como
já foi citado anteriormente, possui mais três séries planejadas com a Netflix: Luke Cage, Punho de Ferro e Os Defensores,
ainda sem data definida. Dados: Omelete (encontrado em http://omelete.uol.com.br/)
dentro da narrativa.

Cabe também ao receptor decidir qual caminho será percorrido dentro da história.
Eco, no livro Seis Passeios pelo Bosque da Ficção (1994), compara o texto narrativo a um
bosque: “(...) um bosque é um jardim de caminhos que se bifurcam. Mesmo quando não
existem num bosque trilhas bem definidas, todos podem traçar sua própria trilha (...).”
(ECO, 1994, p.12) Assim, o leitor poderia passear traçando o caminho que quisesse, às
vezes sem a pretensão de chegar a algum lugar específico, podendo se perder em alguma
trilha apenas por diversão (ECO, 1994).

Dentro da narrativa transmídia, o público tem o poder de escolher que caminho vai
trilhar dentro do universo. Em relação ao UMC, existem fãs que gostam de explorar a fundo
esse “bosque”, como alguns que traçaram caminhos que não são sequer predestinados pela
franquia – eles ignoram as divisões entre filmes e séries, reúnem todos os eventos em uma
única linha de tempo e passam a remontar tudo de novo, obedecendo à ordem que lhes
parece mais cronológica. Seria algo parecido com assistir aos 10 minutos de um filme e, em
seguida, três episódios de uma das séries, para depois ver uma cena pós crédito e só então
voltar ao primeiro filme.

Figura 4: “Qual é a ordem cronológica do Universo Marvel no Cinema?”

Lista encontrada no blog Nerdiva.17

Portanto, se o receptor é essencial para “fechar” o sentido de uma obra, é possível afirmar
que ele é ainda mais necessário para a narrativa transmídia, pois é ele quem irá conectar as
peças que formarão o universo “(...) Numa história sempre há um leitor, e esse leitor é um

17
Encontrado em http://nerdiva.com.br/qual-e-a-ordem-do-universo-marvel-no-cinema/. Acesso em 29 de janeiro de
2016.
ingrediente fundamental não só no processo de contar uma história, como também da
própria história”. (ECO, 1994, p. 7).

A inteligência coletiva e os fãs da Marvel

Como foi dito no capítulo anterior, alguns fãs assistem à franquia Marvel em uma
sequência que mistura cenas recortadas dos filmes e séries em uma ordem que é
considerada, cronologicamente, mais correta. Para ajudar outras pessoas interessadas nesse
modo de assistir aos filmes e séries, alguns fãs criaram listas indicando a ordem em que
cada produto deve ser assistido, assim como o tempo exato que deve ser assistido.

Figura 5: Ao pesquisar “ordem cronológica Marvel, cerca de 2.870 resultados são obtidos.

Encontrado no site de pesquisas Google18

Essas listas, assim como outras informações, que variam desde dados sobre
personagens até especulações sobre enredos, são muito compartilhadas entre os fãs e
facilmente encontradas em fóruns e sites dedicados a esse tipo de conteúdo. A busca dos fãs
por explicações, dados etc. não é um acontecimento recente. Desde a Era de Ouro da
Marvel, os leitores já mandavam cartas com perguntas, que eram respondidas pela produção
nas próprias revistas, e até um fã-clube19 já existia. A interação entre os fãs também não é

18
Encontrado em https://www.google.com.br/webhp?sourceid=chrome-instant&ion=1&espv=2&ie=UTF-
8#q=ordem%20cronologica%20marvel. Acesso em 01 de janeiro de 2016.
19
Merry Marvel Marching Society, ou MMMS, fundada por Stan Lee e Martin Goodman em 1964.
novidade: a primeira conferência dedicada aos quadrinhos aconteceu em 1964, em Nova
Iorque (HOWE, 2013). Porém, o ciberespaço forneceu a essa comunidade mais conexões
entre seus integrantes. Pierre Levy (1999) descreve o ciberespaço em seu livro Cibercultura
como um “dispositivo de comunicação interativo e comunitário, [que] apresenta-se
justamente como um dos instrumentos privilegiados da inteligência coletiva” (LEVY, 1999,
p. 29).
Dentro das comunidades virtuais está presente a inteligência coletiva. Os integrantes
dessas comunidades compartilham conhecimento entre si, cada um colaborando com o que
sabe.
No caso da Marvel, muitos fãs fazem uma espécie de catálogo reunindo todo tipo de
informações sobre personagens, eventos, universos paralelos, tudo que for necessário para
compreender a franquia.
Sobre o universo cinematográfico, eles também compartilham todas as possíveis
referências que podem conectar os produtos, desde citações óbvias até os easter eggs mais
sutis, a fim de ajudar outros fãs a adquirir essa compreensão mais abrangente do universo.
Muitos desses conteúdos voltados para ajudar a compreender o universo em questão
são construídos através da inteligência coletiva, com a colaboração de fãs.

Figura 6: Artigos sobre UMC na plataforma Wikia

Encontrado na plataforma Wikia (versão em espanhol).20

20
Encontrado em http://cinemarvel.wikia.com/wiki/Categor%C3%ADa:Universo_Cinematogr%C3%A1fico_de_Marvel.
Acesso em 03 de fevereiro de 2016.
Conclusão

O Universo Marvel Cinematográfico, apesar de se estender por poucas mídias,


representa uma narrativa transmídia bem construída e que, através de suas conexões entre
filmes e séries, fornece uma experiência única para o público. As referências que uma mídia
faz as outras e vice-versa, dão pistas que podem aguçar a curiosidade do espectador e fazer
com que ele se sinta interessado por mais informações sobre esse universo, e um dos meios
que utilizará para descobrir mais sobre a história será consumir mais produtos da franquia.

Os fãs, parcela do público mais dedicada em desvendar os símbolos e referências


dentro da narrativa transmídia, utilizam os recursos providos pela cibercultura para manter
o contato entre os membros da comunidade e compartilhar o conhecimento que possuem.
Com tudo isso, é possível afirmar que o espectador é essencial para a narrativa transmídia,
pois é ele quem irá interpretar os filmes e séries, assim como as referências que ligam as
obras, e assim construir o universo. Ele também tem o poder de fragmentá-lo e remontá-lo
novamente como lhe convier. Ou seja, a franquia pode até entregar as mídias ao público
com alguns pontos e desfechos pré-definidos, mas quem conclui a história é o espectador.

Referências Bibliográficas
ECO, Umberto. Obra Aberta. 9 ed. São Paulo: Perspectiva, 2010.

______. Seis Passeios pelo Bosque da Ficção. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

FACCIO, Mau. Séries Marvel e Netflix se passam no mesmo universo cinemático. Disponível em
http://jovemnerd.com.br/nerd-news/tv/series-marvelnetflix-se-passam-no-mesmo-universo-cinematico/.
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