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era um montro terrível, uma mulher com cabelos de ser-


pente, implacável, que petrificava com o olhar qualquer
um que aparecesse em sua frente. Perseu era um herói,
adorado pelos gregos e o único que conseguiu enfren-
tá-la. Unidos, representavam o todo, a sombra e a luz
convivendo juntas e, assim, simbolizando nossaambi-
güidade e humanidade.

N
a região mais selvagem da Terra, em meio puniu a vítima. Os luminosos cabelos de Medusa se
a águas raramente navegadas, erguia-se contorceram, ganhando vida. As pontas das tranças si-
a chamada ilha maldita. A humanidade bilaram com línguas bifurcadas; gotas de veneno escor-
evitava pisar ali - exceto aqueles que bus- reram pela testa. Sua cabeça estava coberta por víbo-
cassem a morte ou tentassem cumprir alguQa façanha ras; presas de animal selvagem distorciam-lhe a boca;
impossível. E era nesse lugar, no exílio absoluto, que vi- seus olhos soltavam uma luz horrível, que transformava
via Medusa. Ninguém ousava contemplar seu rosto - e, em pedra quem ousasse encará-la. Ao ver sua própria
contudo, esse rosto é um dos mais famosos na história metamorfose, Medusa estampou a expressão de fúria
da arte universal. Todos a temiam, mas ninguém conhe- e horror que jamais a abandonaria. Não era mais uma
cia sua história. Alguns diziam que ela era rebento de mulher; era uma górgona. Como pôde a justíssima Palas
uma antiqüíssima família de monstros: seus pais eram Atena cometer tamanha barbaridade? Os gregos, é bem
Ceto e Fórcis, criaturas terríveis que habitavam os ma- verdade, não acreditavam nessa versão da história: para
res abissais. Medusa tinha também duas irmãs: Esteno eles, Medusa sempre fora um monstro. Nos tempos de
e Euríale. Juntas, eram conhecidas como as Górgonas, Ovídio, contudo, ela se tornara uma criatura mais trá-
que significa “apavorante”. Sobre elas, escreveu Ésquilo gica que diabólica. Como saber a verdade? Palas Atena
em Prometeu Acorrentado, obra do século 5 a.C.: “Eram jamais se manifestou a respeito - quando as Metamor-
detestadas por toda a humanidade, pois ninguém podia foses foram escritas, os deuses olímpicos já tinham se
contemplar seus rostos e continuar vivo”. retirado dos limites do mundo, para sempre. Deixaram
para trás a ambigüidade, que faz parte do mito. Fos-
se qual fosse sua origem, o certo é que Medusa vivia
W poeta romano Ovídio contava uma história dife- longe de todos, em uma gruta, naquela ilha perdida nos
rente -e mais perturbadora - sobre as origens de Me- confins da Terra, onde dormia um sono longo e sem so-
dusa. Diz ele, nas Metamorfoses, escritas no século 1 nhos. Despertava, às vezes, com o ruído de passos. As
d.C., que o monstro fora uma mulher de célebre beleza víboras sibilavam e ela corria para punir quem houvesse
- seus cabelos, em especial, eram de graça indescrití- invadido seu território. À entrada da caverna, havia um
vel. Todos a cortejavam, mas ela não queria ninguém. macabro conjunto estatuário: pássaros imobilizados no
Furioso de desejo, Posêidon, o deus dos mares, violen- momento de alçar vôo; homens petrificados ao tentar
tou-a no recinto de um templo. O local era consagrado cobrir os olhos. Certo dia, contudo, um invasor chegou
a Palas Atena, a mais sensata das divindades. Naquele sem fazer barulho - seus pés calçavam sandálias ala-
dia, contudo, a deusa da sabedoria teve uma reação que das e ele se deslocava pelo ar. Medusa ressonava. Suas
só pode nos parecer irracional: para lavar o sacrilégio,
feições se refletiam no escudo de
bronze que o forasteiro trazia:
mirando o reflexo, sem olhar a
face fatal, ele preparou o golpe.
A espada em forma de foice su-
biu e baixou, certeira. Quando os olhos de
Medusa se arregalaram, num espasmo,
sua cabeça já fora separada do corpo. Não
chegou a ver o rosto de Perseu.

Paradoxo do monstro e do herói


A história de Medusa, contudo, não
termina com aquele golpe de espada.
Agarrando o emaranhado de víboras, que ainda se
mexiam, Perseu guardou a cabeça decepada em um
alforje. Antes de chegar à Grécia, fez uma parada no
norte da África. Avistou um palácio: era a morada de
Atlas, o titã. Recorrendo às velhas leis da hospitalida-
de, Perseu pediu água, comida e uma noite de sono.
Rabugento, o dono da fortaleza escorraçou-o. Irritado,
Perseu decidiu que o mau anfitrião merecia morrer; mas
como poderia matá-lo? Os titãs eram criaturas gigan-
tescas, de força colossal. Nisso, a mão do herói roçou
o alforje e teve uma ideia perversa. “Em pagamento por
sua gentileza, tenho aqui um presente”, disse. E, viran-
do o rosto, ergueu na mão esquerda a cabeça da gór-
gona. “Então, o imenso Atlas transformou-se em uma
imensa cordilheira; a cabeleira e as barbas agora são
florestas; seus ombros e mãos tornaram-se penhascos;
sua cabeça, o pico nevado de uma montanha”, escre-
veu Ovídio nas Metamorfoses. O titã rochoso é o Monte
Atlas, no Marrocos. Após um breve descanso, Perseu
voltou a amarrar as sandálias e logo estava rasgando
o céu. Ao longo do voo, segurava com todo cuidado o
precioso alforje. Sabia que Medusa, agora, era sua com-
panheira de aventuras: o herói e o monstro trabalhariam
juntos. Desde então, sempre que se via em desvanta-
gem numérica, ou se deparava com um adversário de-
masiado poderoso, Perseu recorria à ajuda de Medusa.
Deixou uma trilha de inimigos petrificados. E, por algum
motivo misterioso, a cabeça jamais apodreceu nem se
decompôs. Era como se a morte a houvesse tornado in-
destrutível. O jovem de sandálias aladas seria lembrado
como um dos maiores heróis dos tempos mitológicos.
As casas reais da Grécia e da Pérsia alegavam ser seus
descendentes; e até Héracles, o dos Doze Trabalhos,
orgulhava-se em dizer: “Sou bisneto de Perseu, mata-
dor de Medusa”. Mas o que seria do grande herói sem
a mulher com cabelos de serpente? A ambiguidade,
como dissemos, faz parte do mito: o bem e o mal pa-
reciam misturados no sangue da górgona. No instante
em que foi decapitada, um jato vermelho esguichou de
seu corpo; da poça sangrenta, emergiu uma criatura de
inusitada elegância. Era Pégaso, o cavalo alado - que,
na Renascença, seria celebrado como símbolo da arte e
da poesia. Segundo outra versão do mito, Palas Atena
recolheu duas gotas do sangue de Medusa e presen-
teou-as a Esculápio, famoso médico da Grécia. Com a
primeira amostra, ele criou um veneno mor-
tífero. Com a segunda, uma poção capaz de
ressuscitar cadáveres. Monstro paradoxal,
Medusa era a inimiga de toda a vida, mas tam-
bém era capaz de matar a morte.

O que havia em seu olhar e em seu san-


gue que fascinava e enregelava a humanida-
de? Para Friedrich Nietzsche, Medusa era o
símbolo da realidade inumana e implacável do universo.
Confrontado com a falta de sentido da vida, o intelecto
humano fica sem ação, imóvel como pedra. “O grande
pensamento é como a Cabeça da Górgona: todas as de um espelho, ousa não apenas enfrentar a verdade do
feições do mundo endurecem, e trava-se uma batalha mundo, mas aliar-se astutamente a ela. Quando faltam
gélida e mortífera”, escreveu Nietzsche em Fragmentos sentidos à existência, é preciso criá-los: só assim se-
Póstumos, de 1888. Para Ovídio, Medusa simboliza a gue-se voando com as sandálias aladas. Mas quem se-
injustiça divina - ou, para quem não crê nos deuses, a gurou a cabeça da górgona entre as mãos jamais voltará
natureza irremediável da condição humana. E ainda as- a ser o que era - a sombra, para o bem e para o mal, vai
sim, o sangue da górgona derrota a morte; a sua silen- acompanhá-lo. A prova disso está na Piazza della Sig-
ciosa companhia multiplica façanhas. nora, em Florença. Lá se encontra a representação de
Perseu e Medusa - um conjunto em bronze forjado por
Talvez seja isto o que o mito quer nos dizer: o herói é
Benvenu-to Cellini, em 1545. Pouca gente percebe, mas
aquele que, mesmo olhando de soslaio ou pelo artifício
os rostos do herói e do monstro são idênticos.

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