Você está na página 1de 12

Dados Internacionais de Catalogagäo na Publicasäo (CIP)

(Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Psicologiar politicas e movimentos sociais / Domenico


uhng Hurt Fernando Lacerda Jünior (organizadores). -
RJ 2016.

Psicolågial; politicas Vårios autores.


e movimentos sociais Bibliografia
ISBN 978-85-326-5370-3 digital

1. Movimentos sociais 2. Politica social 3. Psicologia


Domenico Uhng Hur analitica
Fernando Laccrda Junior L Hur. Domenico uhng. IL Lacerda Jünior, Fernando.
(organizadores)
16.04146 CDD-320019

EDITOR*
vozes indices para catålogo sistemåtico:
1. Politica dos movimentos sociais 320.019
2 processo articulat6rio, mas é possivel perceber quantas
democratizaqäo da pr6pria 16gica das
mudanqas de
instituiqöes chamadas
democråticas foram antes inspiradas e experimentadas totalmente
por pråticas de movimentos sociais, protestos e aqöes coletivas no
A dissipagäo da politica no campo de decorrer da hist6ria de muitas sociedades. Esse é um dos exemplos das
capacidades de assembleias que um povo livre pode ter e que inaugurou
estudos dos movimentos sociais muitas formas de dec:isöes coletivas instituc:ionalizadas. Por certo, esta
passagem das formas de laborat6rios experimentais das pråticas
Marco Aurélio Måximo Prado soc:iais ås vidas instituc:ionais näo significa uma simples passagem,
mas sobretudo, uma reinterpretagäo das pråticas antes livres e
autdnomas.

A do campo de estudos de protestos e dos movimentos


trajetéria Os estudos cientificos e as teorias dos movimentos sociais e
soc:iais tem uma longa hist6ria na tentativa de abordar o inusitado dos protestos inauguraram assim um campo de preocupa$es e
protestos politicos que por vezes emerge em distintas soc:iedades na compreensÖes sobre o comportamento politico, as redes de
histåria. O fendmeno dos protestos e dos movimentos sociais movimentos sociais, os comportamentos eleitorais, as configuraqÖes
inaugurou desde sempre as formas de desafio dos poderes instituidos, das opiniÖes püblicas, as dinåmicas das aqöes coletivas e de protestos e
de mudanca dos valores culturais, de criacäo de novas formas de suas identidades coletivas em formaqäo.
soc:iabilidade e de comunicagäo e relaqäo entre o povo, governos e as
Sua consolidaqäo, apesar de ter imc:io ainda no século XLX com os
formas de governanqa.
estudos sobre massas e comportamentos coletivos, veio de fato na
Muitas mudancas instituc:ionais e nas estruturas de formas de segunda metade do século XX quando se institui como um campo
uma soc:iedade estiveram antes
governar e participar nas dec:isöes de c:ientifico pr6prio, com objetos delineados e com um conjunto de
sendo elaboradas e experimentadas através das mais variadas formas teorias e metodologias replicadas. Essa consolidaqäo também estå
dos movimentos soc:iais e dos protestos (ALVAREZ DAGNINO & diretamente relacionada a uma serie de protestos e movimentos
ESCOBAR, 1998). Obviamente que nunca com o mesmo conteådo ou soc:iais que durante o século XX marcaram a institucionalidade da

democracia em diversos paises.


Esse campo tem se alimentado de um conjunto de teorias bastante motivacionais (CANTRIL, 1948), passando pelas teorias de
diversas (MUELLER, 1992), de epistemologias e procedimentos mobilizagäo de recursos (McCARTHY & ZALD, 1994) e suas inovagöes
metod016gicos variados e de inümeras disciplinas cientificas de anålises dos processos politicos (TARROW, 1996) até as conhecidas
distintas,desde a sociologia, a psicologia social, a antropologia, a teorias dos chamados "novos" movimentos sociais (MELUCCI, 1994)
economia, a filosofia, as ciéncias politicas entre outras. A partir dessas que a partir da conceituagäo das identidades coletivas trouxeram um
fontes te6ricas e provocado pelas insurgéncias politicas, o campo de enfrentamento fundamental para romper com o hiato entre agéncia e
estudos dos movimentos sociais e protestos constituiram uma estrutura täo criticado em inümeros artigos e livros (SANDOVAL,
perspectiva interdisciplinar(KLANDERMANS & STAGGENBORG, 2002) 1989). O grupo de Palo Centerfor Advanced Study in Behavioral Science
de pesquisas empiricas e te6ricas relevantes para pensar näo s6 a foi uma das expressöes mais contundentes na segunda metade do

relagäo entre a estrutura social e os atores sociais, mas também as século XX desse campo te6rico. Se opondo ås teorias anteriores de
identidades coletivas (MELUCCI, 1994), as crengas e valores (SMELSER, cunho mais psic016gico e patologizadores dos protestos, o grupo do
1962), as mudangas nas consciéncias individuais (SANDOVAL, 1989), Palo Centerfor Advanced Study que tinha Sido no passado dirigido por
os ciclos de protestos (TARROW, 1996) e as representagöes e N. Smelser, trouxe um novo olhar para o campo dos movimentos
constituigäo das minorias sociais (MOSCOVICI, 1895). sociais.

Além disso, os estudos sobre a constituigäo das dinåmicas das Apesar desse movimento, que configurou um campo te6rico e
identidades coletivas ap6s a emergéncia de movimentos por direitos analitico efervescente e denso, a problematizagäo sobre o que vem a ser
civis e por valores identitårios efervesceu ainda mais o campo de a politica e suas definigöes permaneceram como uma questäo
estudos e desenvolvimento te6rico dos movimentos sociais fortemente silenciosa, embora ela em si seja estridente. O acümulo de dados e
calcado entre relagöes de pesquisadores e pesquisadoras localizadas informagöes qualitativas e quantitativas sobre protestos e
nas universidades estadunidenses e europeias. movimentos sociais silenciou uma questäo bastante barulhenta: O que
se define como politico nos atos de protestos e dos movimentos
Algumas abordagens desse campo tornaram-se referéncias
sociais? Qual a linha divis6ria que poderiamos sublinhar ao classificar
importantes para pesquisas no século XX (STAGGENBORG, 2011). O
algumas formas de assembleia como protestos e movimentos sociais
trabalho de Suzane Staggenborg (2001) intitulado Social Movements
politicos e outras näo? Por que alguns atos coletivos que mudaram a
compilou com refinado cuidado as variadas abordagens que
forma de organizar as sociedades ocidentais nos finais do século XX
constituem atualmente esse campo. Desde os estudos de
näo foram eleitos como classificat6rios de movimentos sociais e
comportamentos coletivos e de massa (LE BON, 1995) e suas variagöes
protestos por parte dos pesquisadores? 16gicas institucionais (FLACKS, 2005). Nunca um campo te6rico-
analitico sistematizou tantos dados de protestos e de formas
Com estas e outras questöes em mente é que o incömodo sobre o
participativas, mas também nunca soubemos täo pouco das invengöes
tema da politica permaneceu fazendo ecos sonoros mesmo quando o
de coletivos que näo legitimados como atos politicos foram relegados
siléncio sobre ela parece perdurar. Nas principais abordagens e anålises
historicamente pelo campo cientifico (PRADO & COSTA, 2009).
sobre vårias experiéncias de protestos e movimentos sociais
produzidas a partir de um escrutinio bastante rigoroso do ponto de No entanto, esse ocultamento näo se deu propositalmente, mas
vista metod016gico, um incömodo sobre os fundamentos da politica muito mais devido ås concepgöes te6ricas e epistémicas sobre o
pode ser observado (FLACKS, 2005). A pergunta provocativa colocada politico e a experiéncia subjetiva das agöes coletivas e protestos. Ou
por Flacks (2005) em seu artigo pode sugerir o que aqui estamos a seja, permanecem ainda relativamente veladas
as nogöes de politica
arguir: Serå que a pråtica de uma "ciéncia normal" colide com a dimensäo nesse debate, mas näo menos perturbadoras entre n6s (FLACKS, 2005).
moraldos estudos dos movimentos sociais? Nesse contexto é que problematizaremos exatamente que uma
Näo estamos aqui defendendo que o campo de pesquisas ignorou o compreensäo da politica como dissenso e das formas de subjetivagäo

fenömeno que fez com que o proprio campo emergisse e se politica a partir das teses de Jacques Ranciére (1996) nos brindaria

consolidasse, muito pelo contrårio, o que estamos arguindo é que as uma oportunidade impar de trazer ao debate essa perturbagäo, que de
compreensöes sobre politica, desde a esfera institucional até a forma silenciosa e discreta, tem limitado e estabelecido fronteiras nas
anålises desenvolvidas no campo das teorias dos movimentos sociais
individual näo problematizaram os termos da pr6pria politica, jå que a
politica foi apreendida como expressäo de sua pr6pria empiria. Ou definindo o que vem a ser o ato do protesto cientificamente legitimo,

seja, nogöes sobre politica jå estavam prontas e modularam os olhares portanto, deixando para um lugar invisivel inümeras pråticas que näo
sobre vårios fenömenos que foram estudados e considerados protestos legitimadas pela ciéncia, lutam cotidianamente para refundar a

importantes enquanto outros foram completamente desconsiderados pr6pria politica.


pelo campo de estudos. A visäo que aqui se articula é que esses limites e fronteiras tém
deixado de lado muitas cenas e experiéncias que mesmo näo
Parece, por um lado, bastante contradit6rio que um campo dedicado
aos estudos das agöes politicas tenha problematizado täo pouco os
consideradas agöes politicas å luz do campo te6rico consolidado,
ensejam na contemporaneidade mudangas nas formas de poder, nas
fundamentos da pr6pria politica, todavia por outro lado, percebe-se
formas de ser e de governangas de muitas sociedades. Como é o caso de
que a politica se transformou na evidéncia empirica das agöes e das
muitos movimentos sociais que outrora foram entendidos como protestos.
meramente culturais pelas tradigöes de anålise da cultura e dos A primeira, sem nenhuma ordem cron016gica, a da racionalidade da
protestos sociais (BUTLER, 2000). Ou mesmo, formas de protestos que
gestäo, é aquela que cria os processos de gestäo sobre os corpos e as
foram, na visäo de te6ricos da época, considerados movimentos de
suas fungöes emdeterminada sociedade, permitindo assim que os
massa irracionais, no entanto, ensejavam alteragöes nas hierarquias de principios hierårquicos se corporifiquem, dinamizem e se reproduzam
poder, caso da anålise de alguns te6ricos da conhecida "psicologia das
como processo de dominagäo legitimado, aqueles que implicam a
massas" sobre a Comuna de Paris (PRADO, 2005).
subordinagäo consentida pelas posigöes assimétricas aparentemente
Desenvolverei aqui este argumento a partir da tese de Jacques interdependentes. Esta racionalidade da politica, a da gestäo, é sempre
Ranciére de que s6 hå politica quando aqueles näo contados para nada, aritmética e/ou geométrica, pois nesta visäo apresentada por Jacques
portanto, aqueles sem desorganizam a aritmética da equagäo
titulos, Ranciére, as sociedades se reproduzem historicamente através das
da riqueza e a geometria da equagäo do poder do conhecimento. formas de dominagäo, através das 16gicas da arkhé, dos titulos
Importante ressaltar aqui que a 16gica aritmética e geométrica embora representativos das e nas hierarquias.
frutos da mesma racionalidade, aquela da gestäo dos poderes e da
A politica näo advém naturalmente nas sociedades humanas.
populagäo, säo 16gicas distintas. A aritmética corresponde å 16gica da Advém como um desvio extraordinårio, um acaso ou uma
oligarquia o poder da riqueza e a organizagäo geométrica å 16gica da violéncia em relagäo ao curso ordinårio das coisas, ao jogo
aristocracia o poder da nobreza e do status (RANCIÉRE, 1996). normal da dominagäo. Esse jogo normal é a transigäo de um
principio de dominagäo a um outro A politica advém nas
A questäo que ora se coloca como substantiva aqui é que estamos
[...l.

sociedades como umaruptura no processo de passagem de


vivendo na disputa de duas racionalidades: a racionalidade agregativa
uma lögica de dominagäo a outra, do poder da diferenqa no
das partes e a racionalidade do escåndalo democråtico (RANCIÉRE,
nascimento ao poder indiferente da riqueza (RANCIÉRE,
2009). Näo que sejam separadas, mas se organizam a partir de lågicas
1996,p.371).
totalmente distintas.
O autor aponta, a partir do pensamento politico clåssico, os sete
Investigar as duas racionalidades da politica e o momento de titulos da arkhé, seis que correspondem ås titularidades
substituigäo de uma na atualidade, permitirå trazer ao
pela outra hierarquizadoras e um que é um titulo sem titulo, portanto, um titulo
debate os termos da politica e da subjetivagäo coletiva, no intuito de que näo é hierårquico uma vez que é um titulo sem titularidade e
problematizar o campo das teorizagöes dos movimentos sociais e dos fundamento. Essas titularidades estäo basicamente dispostas no
corpo — facilmente podemos chamar aqui o exemplo das hierarquias
poder do conhecimento, da riqueza ou da nobreza (CHAMBERS, 2010).
sexuais e de género que ilustra os trés elementos: a hierarquia, a fungäo
As titularidades correspondem a certas ordens da natureza de quem
e o lugar —, mas esta racionalidade pr6pria da gestäo precisa ser
governa e quem é governado. Das relagöes entre o poder dos pais sobre
sustentada através da convocat6ria e dos consentimentos de todos n6s
os filhos, dos velhos sobre os jovens, dos mestres sobre os ignorantes e
por processos de legitimagäo e um dos mais importantes processos de
dos ricos sobre os pobres.
legitimagäo da atualidade, sem düvida, pode ser algado pelo poder do
Todos esses titulos preenchem as duas condigöes requeridas: conhecimento, pelos mecanismos cientificos de legitimagäo e de
primeiro, definem uma hierarquia de posigöes; segundo,
construgäo de visibilidades, verdades e aparigöes legitimas no püblico.
definem-na em continuidade com a natureza por
intermédio das relagöes familiares e sociais no caso dos Escreve Ranciére sobre esta racionalidade:
primeiros, direta no caso dos dois ültimos (RANCIÉRE, 2014).
ao conjunto de processos pelos quais se operam a agregaqäo
Uma caracteristica importante da racionalidade politica da gestäo é e o consentimento das coletividades, a organizagäo dos

a criagäo de processos conflitivos de consensos, uma vez que sem poderes e a gestäo das populaqöes, a distribuigäo dos lugares
e das fungöes e os sistemas de legitimagäo dessa distribuigäo.
consenso näo hå legitimagäo das titularidades, portanto, esta 16gica
Proponho entäo dar a este conjunto de processos outro
necessita produzir consentimentos entre n6s, convocar a n6s mesmos
nome. Proponho chamå-lo de policia, ampliando, portanto, o
como populagäo para que participe e aprenda a pr6pria gestäo dos sentido habitual dessa nogäo, dando-lhe também um sentido
corpos, seus lugares nas hierarquias e suas fungöes na sociedade. neutro, näo pejorativo, ao considerar as fungöes da vigilåncia
Esta racionalidade politica da gestäo näo tem nenhum valor e de repressäo habitualmente associadas a essa palavra como
formas particulares de uma ordem muito mais geral que é a
pejorativo, näo é må nem boa, ela é simplesmente uma condigäo da
da distribuiqäo sensivel dos corpos em comunidade
pr6pria politica, uma forma de pensar, sentir e agir a pr6pria politica
(RANCIÉRE, 1996, p. 372).
como uma forma complexa e participativa de gestäo dos modos de
Vida. Ela se materializa como um conjunto de normas sociais que
Voltando å ilustragäo das hierarquias sexuais e de género através
produz modos de Vida, modos de relagäo e modos do sensivel e da das quais nossas leituras da realidade, espontaneamente, säo
percepgäo do mundo social. estruturadas, muitos diriam que os corpos das travestis e de pessoas
transexuais säo considerados menos humanos do que o restante da
Esta racionalidade dos modos de Vida näo s6 cria e reproduz as humanidade, säo corpos näo aceitåveis no åmbito dos consentimentos
formas hierårquicas para os corpos como também produz os proprios normativos, säo corpos monstruosos, montados, falsos e pat016gicos
modos de ser dos sujeitos, determinando fungöes e lugares para cada
nesta perspectiva. Portanto, as hierarquias funcionam como uma lente fungöes e lugares sociais estabelecem assim uma divisäo do sensivel e
de leitura e de sensagäo de nos mesmos, pois säo sutilezas do perceptivel do mundo social.
reconhecimento social, interpessoal e institucional.
Uma das formas de sua convocat6ria subjetiva é a criagäo dos
Portanto, faz-se mister um
profundo debate sobre como as processos de legitimagäo, que no caso das hierarquias sexuais e de
normativas sociais no åmbito hierårquico criam realidades para serem género, historicamente, se constituiram por meio da ideologia do
vividas e outras para näo serem legitimadas. As hierarquias sociais binarismo de género, das ciéncias sexuais e/ou o preconceito social.
desse modo se materializam nas normas sociais que por sua vez
constituem formas de Vida, de subjetivagäo e de percepgäo da Vida
No caso de nosso exemplo, historicamente temos disponivel a ideia
social.
entre muitos grupos sociais de que o corpo travesti é um corpo
deformado, sem direitos, näo deve ser respeitado, pode ser apedrejado,
Ainda que as normas de género nos precedam e atuem sobre
morto, assassinado, é um corpo que, ao romper a norma da
n6s (este é um sentido de sua atuagäo), somos obrigados a
e
racionalidade da gestäo, merece ser eliminado, é um corpo sem
reproduzi-las, quando comegamos, sempre
involuntariamente, a reproduzi-las, algo sempre pode dar humano, sem cidadania.
errado (e este é um segundo sentido de atuagäo). E, ainda, no Näo por outro motivo, esse tipo de violéncia de género
curso dessa reproduqäo, a fragilidade da norma é revelada ou
costumeiramente existente em paises como o Brasil näo é certificado
um outro conjunto de convengöes culturais atua produzindo
confusäo ou conflito no interior de um campo de normas,
como violéncia, dada a sua invisibilidade e aceitabilidade na cultura e
out no meio de nossa atuagäo, outro desejo comega a nas instituigöes sociais. Ele representa algo que näo corresponde ås
governar e formas de resisténcia se desenvolvem, algo novo hierarquias sociais e ås normas sociais consentidas.
ocorre, diferentemente do que foi planejado (BUTLER, 2015,
Também poderiamos ser mais estratégicos e dizer que através do
p. 31).
conhecimento cientifico,que desde sempre buscou provar que este
Mas para além dessa organizagäo dos corpos em sociedade, a
corpo é um corpo pat016gico em um sujeito em desvio, aprendemos que
racionalidade da gestäo precisa nos convencer e nos fazer sentir que
é um corpo que merece terapéuticas corretivas porque ele imita
assim mesmo funcionam as hierarquias, de modo que quanto menos
artificialmente um corpo de mulher (este sim seria natural e original),
elas aparecerem evidentes mais encontram forgas para suas
assim ele merece corregöes, terapéuticas e acertos para que volte a ser
permanéncias. A policia, portanto nos termos de J. Ranciére, exige sua
um corpo no lugar certo, com sua fungäo destinada no mundo da
convocat6ria participativa para sua legitimidade. A organizagäo das
gestäo.
Mas hå outra racionalidade, outra que näo é a da gestäo, mas é a da
Assim, este tipo de racionalidade politica assume que os processos
politica propriamente dita. Nesta racionalidade politica, o que se
de legitimagäo säo muito importantes para sua pr6pria sustentagäo
estabelece é o dissenso com a gestäo, aqui näo säo formas
como racionalidade, pois säo eles que criam um universo do sensivel
participativas adequadas dos microfones, racionalizadas,
capaz de nos convocar com suas lentes hierårquicas a ler o mundo e se
hierarquizadas, ao contrårio, nesta outra forma de racionalidade o que
posicionar sobre ele ou a näo ver um mundo que jå näo viamos como
se då é a desorganizagäo da
anterior, é a desclassificagäo daquilo que
consequéncia do limite cognitivo do pr6prio preconceito formado
o desgoverno dos corpos e de suas fungöes, segundo
foi classificåvel, é
como parte do sistema de legitimagäo (PRADO & MACHADO, 2012).
Ranciére (1996). Nas palavras do autor, essa é a desmedida
No entanto a gestäo, ou melhor, a racionalidade da gestäo como democråtica.
uma das racionalidades da politica näo é s6 brutal, ela pode também
A desmedida democråtica näo tem nada a ver com uma
ser sensivel e mais suave dado os tempos histéricos em que hå uma
loucura consumista qualquer. É simplesmente a perda da
ret6rica em que os direitos devem, ao menos teoricamente, serem medida com a qual a natureza regia o artificio comunitårio
garantidos a todos, independente de suas categorizagöes. através das relagöes de autoridade que estruturam o corpo
social. O escåndalo é o de um titulo para governar
N6s vivemos, desse ponto de vista, um momento onde esta
racionalidade da gestäo se altera entre a violéncia fisica e simb61ica e a
completamente distinto de qualquer analogia com aqueles
que ordenam as relagöes sociais, de qualquer analogia entre a
convocat6ria identitåria do reconhecimento, entre a repressäo contra
convengäo humana e a ordem da natureza. É o de uma
os deslocamentos das fungöes e o convite a conferéncia e a participagäo superioridade que näo se fundamenta em nenhum outro
moldada pelos processos jå decididos, entre a morte dos corpos principio além da pröpria auséncia de superioridade
desalinhados das normas e a classificagäo categ6rica e cientifica, jå (RANCIÉRE, 2014, p. 56).
que näo existe organizagäo social sem classificagäo da populagäo, ou Aqui reside, portanto, a pr6pria politica, o ato que desorganiza a
seja, näo existe Estado sem governangas de nossos pr6prios corpos.
gestäo e a reorganiza de forma a dar a palavra para aqueles corpos que
Esse movimento é que permite compreender e nomear esse processo nunca foram contados, näo foram visiveis, foram tidos historicamente
da dissipagäo e da substituigäo da
cultural, institucional e analitico como da contabilidade dos governos. O ato desta razäo politica
fora
politica pela racionalidade da gestäo e que encontra seu näo exige ser contado simplesmente, näo exige que uma certa gama dos
enquadramento muitas vezes no campo te6rico de anålise dos direitos seja dividido, mas exige sim que o pr6prio direito seja
processos politicos, dos movimentos sociais e dos protestos. inventado, que as formas de poder e de dominagäo sejam alteradas e
que a igualdade seja o principio inaugural. Por sujeitos politicos, entende-se, a partir da proposigäo de Ranciére
(1996) que estes näo correspondem å transparéncia como narradores
A politica é a pråtica na qual a 16gica do trago igualitårio
assume a forma do tratamento de um dano, onde ela se torna ünicos da hist6ria, nem å temporalidade como sujeitos privilegiados
o argumento de um dano principal que vem ligar-se a tal da mudanga, ou a uma capacidade de razoabilidade consentida tal qual
litigio determinado na divisäo das ocupagöes, das fungöes e do litigio. Säo,
as identidades reguladas. Sujeitos säo aqui emergentes
dos lugares (RANCIÉRE, 1996, p. 47). segundo o autor, enunciados dos näo contados, discursos onde
Portanto, podemos pensar que enquanto a gestäo é permanente, a anteriormente so escutåvamos ruidos, vozes onde s6 se ouviam
politica é rara, enquanto a gestäo é participagäo para o consenso, a barulho.
politica é ato de dissenso, enquanto a gestäo é a condigäo do curso Sujeitos em ato, como capacidades pontuais e locais de
normal das sociedades, a politica é o seu desvio, pois apela para a construir, em sua universalidade virtual, aqueles mundos
verificagäo, para a conferéncia da igualdade entre todos n6s. Enquanto polémicos que desfazem a ordem policial. Portanto, säo
a racionalidade da gestäo produz a dominagäo muitas vezes sem forga, sempre precårios, sempre suscetiveis de se confundir de
mas sempre com convocat6rias participativas, a politica ås vezes exige novo com simples parcelas do corpo social que pedem
a forga, a indignagäo, o rompimento das regras do jogo, pois o que se apenas a otimizagäo da sua parte (RANCIÉRE, 1996, p. 378).
disputa näo é o que o jogo poderå dar ao vencedor, mas sim a pr6pria Sujeitos politicos portanto estariam em um certo deslocamento
forma de jogar, pois pretende-se, na racionalidade da politica, entre o corpo social e si mesmos. Säo
a invengäo pråtica de
propriamente dita, reorganizar os parceiros do jogo. afastamentos das pr6prias identidades coletivas e individuais que
O mundo da politica, nesta visäo, é um mundo polémico no qual se com a diståncia dos sistemas de legitimagäo permitem reinventar-se a
si mesmo e ao mundo. Näo säo lideres, vanguardas ou ativistas
reatualiza a igualdade entre todos n6s, mesmo na pouca igualdade
possivel. É um mundo que näo estå nas leis e nas instituigöes. Nas espontåneos, mas säo experiéncias contextualizadas, localizadas que
palavras de Jacques Ranciére é a torgäo constitutiva da pr6pria politica desorganizam as hierarquias, as fungöes e os lugares sociais de forma a
(RANCIÉRE, 1996). verificar o qué da igualdade temos n6s e o dano que as hierarquias
produziram no interior dos processos de dominagäo. Näo säo
A politica nesses termos pode ser entendida como um processo de
identidades, mas säo, antes de tudo, processos de desindentificagäo e
subjetivagäo politica. Um processo de deslocamento das teias passagens entre um mundo consentido e a virtualidade de um mundo
identitårias do corpo social. A compreensäo de uma ontologia negativa
a ser construido.
do sujeito politico joga aqui conceitualmente um papel fundamental.
A subjetivagäo politica é uma operagäo simbélica que diz dos lugares e das fungöes jå marcados pelas hierarquias sociais.
respeito a uma identidade constituida. Portanto, ainda se Portanto, fundamentar um conceito politico capaz de organizar as
trata de uma forma de simbolizagäo. Esta se conströi sobre a lentes cientificas para abordagens dos protestos nos parece
base de certa consisténcia social que trabalha a partir do oportunidade impar de avangar na escuta do ocultamento da pr6pria
interior. Tomando o que denomino de movimento operårio politica desfeita em formas de gestäo.
ou proletariado, percebe-se com facilidade que se tem apenas
Para o desenvolvimento dessa tarefa, a de escutar o estridente
um nome para duas coisas: primeiro, a existéncia de uma
ocultamento desse debate, corroboro aqui o argumento contemporåneo
massa de gente pertencente a uma mesma condigäo, que jå
estå compreendida em uma simbolizagäo da ordem coletiva; de Jacques Ranciére (1996), aquele de que hå uma dissipagäo atual, e eu
segundo, a desidentificagäo, que transforma o sentido diria que esse argumento é analisador de sociedades como o Brasil, que

mesmo da simbolizagäo, ao fazer dela näo a designagäo de tenta nos impor uma sensibilidade e uma racionalidade pr6pria da
uma identidade coletiva, mas sim a de uma capacidade dissimulagäo da politica em gestäo. Nas palavras de Ranciére,
coletiva para construir um novo comum (RANCIÉRE, 2014b, se a politica é um desvio singular do curso "normal" da
p. 168-169). dominaqäo, isso quer dizer que estå sempre ameaqada de se
Essas ideias aqui corroboradas podem auxiliar a uma compreensäo dissipar. Ora, a forma mais radical dessa dissipagäo näo é o
simples desaparecimento, é a confusäo com o seu contrårio,
do movimento que estamos vivendo em muitas sociedades atuais.
a policia. O risco dos sujeitos politicos é confundir-se de novo
Uma negagäo dos conflitos e dos dissensos através das mais variadas
com as partes orgånicas do corpo social ou com esse proprio
moralizagöes dos atos politicos e uma emergéncia de sentimentos de
corpo (RANCIÉRE, 1996, p. 378).
Odio e aversäo a muitas 16gicas da aparigäo dos sujeitos politicos.
Portanto, assume espago fundamental a 16gica participativa, pois
Esse movimento, esta é nossa hip6tese aqui, em parte é quanto mais a participagäo social se transforma numa condigäo da
consequéncia da dissipagäo das racionalidades da politica. A existéncia e legitimidade institucional das instituigöes de governanga
dissipagäo é esse processo hist6rico que ao transformar elementos de que convocam a participagäo a todo instante, mais se confundem
uma racionalidade em outra, desperdiga a forga do elemento que a sujeitos politicos e corpo social.

produz. Essa dissipagäo revela-se pela troca sensivel de uma racionalidade a


A hip6tese aqui argumentada é de que estamos vivendo esse outra que transforma o ato escandaloso tal como nomeou Jacques
processo que coloca a racionalidade da gestäo como atos da politica, Ranciére — em processos regulatérios e identitårios. O ato politico é o
desperdigando, portanto, a capacidade dos sujeitos de simbolizagäo
processo de transformagäo da cena da rua em espago püblico, o espago
(2000). El marxismo y 10 meramente cultural. New Left Review,
agora näo politizado segundo esta racionalidade. 2, p. 109-121.
um sujeito politico näo é um grupo que "toma consciénciai'
CANTRIL, H. (1948). The Psychology of Social Movements. Nova York:
de si, se då voz, impöe seu peso na sociedade. É um operador
John Wiley & Sons.
que junta e separa as regiöes, as identidades, as fungöes, as
capacidades que existem na configuraqäo da experiéncia CHAMBERS, S. (2010). Police and Oligarchy. In: DERANTY, J.P. (ed.).
dada, quer dizer, no né entre as divisöes da ordem policial e o
Jacques Ranciére Key concepts. Durham: Acumen.
que nelas jå se inscreveu como igualdade, por frågeis e
fugazes que sejam estas inscrigöes (RANCIÉRE, 1996, p. 52). FLACKS, D. (2005). A questäo da relevåncia nos estudos dos
Essa dissipagäo vem participando de um fenömeno bastante movimentos sociais. Revista Critica de Ciéncias Sociais, 72, p. 45-66.
ambiguo o abandono da politica como lugar de disputa e conflito e ao KLANDERMANS, B. & STAGGENBORG, S. (2002). Methods of Social
mesmo tempo emergéncia da politica como 6dio, aniquilagäo e MovementsResearch. Minnesotta: University of Minnesotta Press.
eliminagäo. Circunscrever esse movimento de dissipagäo como um
elemento analitico no campo de estudos dos movimentos sociais e dos LE BON, G. (1895 / 1971). Lapsychologie desfoules. Paris: PUF.
protestos, poderia nos ajudar a escuta desse siléncio barulhento de um McCARTHY, J. & ZALD, M. (1994). Resource Mobilization and Social

campo te6rico que constituiu as politicas do protesto como um campo Movements: a partial theory. In: McCARTHY, J. & ZALD, M. (eds.). Social
cientifico legitimo, mas näo problematizou as fronteiras epistémicas Movements in an Organizational Society: collected essays. Londres:
do que é a pr6pria politica. Transaction.

MELUCCI, A. (1994). A strange kind of newness: what's "new"in New


Referéncias
Social Movements? In: LARANA, E.; JOHNSTON, H. & GUSFIELD, J.R.
ALVAREZ, S.; DAGNINO, E. & ESCOBAR, A. (1998). Culture ofP01itics, (eds.). New Social Movements: from ideology to identity. Filadélfia:

of Cultures: re-visioning latin american social movements.


Politics Temple University Press.
Oxford: Westview.
MOSCOVICI, S. (1985). The Age of the Crowd. Cambridge: Cambridge
BUTLER, J. (2015). Notes toward a performative theory of assembly. University Press.
Cambridge: Harvard University Press.
MUELLER, C. (1992). Building Social Movement Theory. In: MORRIS,
SMELSER, N. (1962). Teoria delComportamiento Colectivo. México: FCE.
A.D. & MUELLER, C.M. Frontiers in Social Movement Theory. Londres:
Yale University Press. STAGGENBORG, S. (2011). Social Movements. Nova York: Oxford
University Press.
PRADO, M.A.M. (2005). Movimentos de Massa e Movimentos Sociais:
aspectos psicopoliticos das acöes coletivas. Revista de Ciéncias TARROW, S. (1996). Powerin Movement: social movements, collective
Humanas, n. 3 7, p. 47-65. Florian6polis: Edusfc. action and politics — Cambridge Studies in Comparative Politics. Nova
York: Cambridge University Press.
PRADO, M. & COSTA, F. (2009). A raridade da politica e a democracia —
Os movimentos sociais entre sujeitos e identidades. In: BERNARDES, J.
& MEDRADO, B. (orgs.). Psicologia Social e politicas de existéncia:
fronteiras e conflitos. Macei6: Abrapso.

PRADO, M. & MACHADO, F. (2012). Preconceito contra


homossexua/idades: a hierarquia das invisibilidades. Säo Paulo: Cortez.

RANCIÉRE, J. (2014a). Oddio å democracia. Säo Paulo: Boitempo.

(2014b). Elmétodo de la igua/dad— Conversaciones con Laurent


Jeanpierre y Dork Zabunyan. Buenos Aires: Nueva Vision.

(2009). A partilha do sensivel— Estética e politica. Säo Paulo: Ed.


34.

(1996). Odesentendimento. Säo Paulo: Ed. 34.

SANDOVAL, S. (1989). A crise soci016gica e a contribuigäo da Psicologia


Social aos estudos dos movimentos sociais. Revista Educagäo &
Sociedade, dez.

Você também pode gostar