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mostra de artigos Arthur Braga de Souza (org.

CIÊNCIAS JURÍDICAS
na Amazônia Sul-Ocidental

EAC
Editor
Copyright © by autoras, 2023.
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belecido na lei nº 9.610/98 e punido pelo art. 184 do Código Penal.
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lidade dos autores.

EDITOR GERAL,
CAPISTA E DIAGRAMADOR
Eduardo de Araújo Carneiro
eac.editor@ gmail.com

CONSELHO EDITORIAL DA OBRA


Dr. Eduardo de Araújo Carneiro
Dr. Elyson Ferreira de Souza
Esp. Williane Tibúrcio Facundes
Esp. Ícaro Maia Chaim

E-BOOK

S729c SOUZA, Arthur Braga de (Org.).


Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental: mostra de
artigos / Arthur Braga de Souza (organizador). – 1. ed. –
Rio Branco: EAC Editor, 2023. 185 p.; il. 14,8x21 cm.
Tomo I; Vol.1
ISBN: 978-65-00-66804-9 
1. Ciências Jurídicas; 2. Direito; 3. Amazônia ; I. Título.
CDD 340.07
SUMARIO

1. LEI Nº 14.064/2020 (LEI SANSÃO) COMO 05


INSTRUMENTO DE COMBATE AOS MAUS
TRATOS AOS ANIMAIS
Keule Gomes Lima e
Arthur Braga de Souza

2. A HONRA OBJETIVA E SUBJETIVA DAS 39


PESSOAS QUE PARTICIPAM DE REALITY SHOW
Leidy Daiany Sussuarana de Souza e
Arthur Braga Neto de Souza

3. FURTO FAMÉLICO: UMA BREVE ANÁLISE 73


DESSE INSTITUTO, A PARTIR DO CLÁSSICO DA
LITERATURA FRANCESA – OS MISERÁVEIS,
DE VICTOR HUGO
Janaína Raquel Oliveira Sabóia Velasquez
Arthur Braga de Souza

4. ANÁLISE DA LEI 14.245/2 111


Adriano Felipe Gonsalves Rodrigues
Arthur Braga de Souza

5. A UTILIZAÇÃO DE CARTAS PSICOGRAFADAS 148


COMO MEIO DE PROVA NO TRIBUNAL DO JÚRI
Willamy de Oliveira Carvalho
Arthur Braga de Souza
“Teu dever é lutar pelo direito, mas se

um dia encontrares o Direito em con-

flito com a Justiça, luta pela Justiça".

Eduardo Juan Couture


Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

1
LEI Nº 14.064/2020 (LEI SANSÃO) COMO INSTRUMENTO
DE COMBATE AOS MAUS TRATOS AOS ANIMAIS

LAW Nº. 14.064/2020 (SAMSON LAW) AS AN INSTRUMENT


TO COMBAT ANIMAL MISTREATMENT

Keule Gomes Lima1


Arthur Braga de Souza2

LIMA, Keule Gomes. Lei 14.064/2020 (Lei Sansão) como ins-


trumento de combate aos maus-tratos animais. Trabalho de
Conclusão de Curso de Graduação em Direito – Centro Univer-
sitário UNINORTE, Rio Branco, 2023.

1 Discente do 9° Período do Curso de Bacharel em Direito pelo Centro Uni-


versitário Uninorte.
2 Graduado em Direito pelo Centro Universitário Uninorte. Pós-Graduado em

Direito Processual Civil pela Universidade Cândido Mendes. Servidor Pú-


blico Federal do TRF da 1ª Região. Professor Universitário no Centro Uni-
versitário Uninorte.

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Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

RESUMO

Este artigo visa demonstrar a relevância da Lei nº 14.064/2020


(Lei Sansão) no combate aos crimes de maus-tratos aos ani-
mais no Brasil. Realiza uma análise acerca da proteção que se
destina especificamente a cães e gatos, excluindo as demais
espécies. Analisa a evolução histórica das normas de proteção
animal, com enfoque no Decreto nº 24.645 do ano de 1934, co-
nhecida como a primeira norma específica de proteção animal
no País, na Constituição Federal de 1988, na Lei nº 9.605/1998
(Lei de Crimes Ambientais) e na própria Lei nº 14.064/2020,
abordando o posicionamento de alguns autores que apontam
as falhas e acertos da nova lei de proteção animal.

Palavras-chave: Maus-tratos. Animais. Lei Sansão. Instru-


mento de Proteção aos Animais.

ABSTRACT

This article aims to demonstrate the relevance of Law nº


14.064/2020 (Samson Law) in combating animal mistreatment
crimes in Brazil. Performs an analysis about the protection that
is specifically intended for dogs and cats, excluding other
species. Analyzes the historical evolution of the norms of animal
protection, with focus on Decree No. 24.645 of the year 1934,
known as the first specific norm of animal protection in the coun-
try, in the Federal Constitution of 1988, in Law nº 9605/1998
(Environmental Crimes Law) and in the Law nº 14.064/2020
itself, addressing the position of some authors who point out the
flaws and successes of the new law of animal protection.

Keywords: Mistreatment. Animals. Samson Law. Animal Pro-


tection Instrument.

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Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

INTRODUÇÃO

O direito dos animais tornou-se um tema bastante dis-


cutido nas últimas décadas e como estes seres foram tratados
durante toda a história passou a ser alvo de questionamento e
debates no país. Desde então, intensificou-se a cobrança pela
edição de normas que limitassem a exploração dos animais e
pela punição daqueles que praticarem maus-tratos.
É fato que desde a domesticação dos animais, que
ocorreu ainda na pré-história e que foi imprescindível para o
desenvolvimento da sociedade e a evolução dos seres huma-
nos, os animais foram explorados de todas as formas possí-
veis com o propósito de atender as necessidades e caprichos
humanos. Entretanto, com o passar do tempo e a transforma-
ção das sociedades, os animais passaram a ser vistos sob
uma nova ótica, na qual se reconhece a senciência desses
seres.
O primeiro ato normativo voltado à proteção dos ani-
mais no Brasil surgiu no ano de 1924, mas foi apenas em
1934, que ocorreu a publicação da primeira norma específica,
através do Decreto nº 24.645/34. O Código Civil brasileiro de
1916 tratava os animais como coisas passíveis de apropria-
ção, status que perdura até os dias atuais no Código Civil de
2002, que descreve os animais como bens semoventes.

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Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

A Constituição Federal de 1988 aborda a proteção dos


animais no Capítulo VI, artigo 225 e seus incisos, destinados
a tratar sobre a proteção do meio ambiente. Alguns doutrina-
dores apontam que a proteção tratada no art. 225, § 1º, inciso
VII, tem como finalidade a proteção dos próprios seres huma-
nos, que dependem diretamente dos recursos oferecidos pela
natureza. Mas ainda que os sujeitos de direito sejam os seres
humanos, há o reconhecimento da senciência dos animais,
tornando-os merecedores de proteção em razão deles mes-
mos.
Visando a aplicação de sanções penais e administrati-
vas para as condutas lesivas ao meio ambiente, foi editada a
Lei nº 9.605/1998, conhecida como Lei de Crimes Ambientais,
que criminaliza os maus-tratos contra animais, até então con-
siderados contravenções penais tipificadas no Decreto-Lei nº
3.688/1941. Ocorre que as penalidades continuavam brandas
e visando punir de forma mais rigorosa as condutas crimino-
sas, no de 2020 foi publicada a Lei nº 14.064/2020 (Lei San-
são), que acrescenta o § 1º-A ao art. 32 da LCA. No entanto,
a nova lei apresenta falhas ao proteger especificamente cães
e gatos, relegando todos os outros animais.
Desse modo, o presente artigo tem por finalidade de-
monstrar a importância da Lei Sansão e a necessidade de se

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Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

tutelar todos os animais, visto que diversas espécies são víti-


mas de abusos e sofrem tanto quanto cães e gatos, que só
desfrutam de uma maior proteção em virtude de serem os ani-
mais mais comuns ao convívio do ser humano.

1.1 RELAÇÃO ENTRE HOMENS E ANIMAIS

Estudos apontam que a interação entre seres humanos


e animais iniciou ainda na pré-história, sendo que o processo
de domesticação iniciou há 12 mil anos, no período paleolítico.
Nessa época o ser humano era nômade, vivia da caça, pesca
e coleta de frutas, permanecendo em um determinado local
até esgotarem os recursos disponíveis, quando se desloca-
vam para outro lugar em busca de novas fontes de alimento.
No princípio, todos animais eram selvagens e a relação entre
eles e os humanos não era amigável.
Acredita-se que com o decorrer do tempo, o homem,
que se abrigavam em cavernas, passou a observar que os lo-
bos se aproximavam dessas cavernas à procura das carcaças
dos animais abatidos. Perceberam também que os lobos se
organizavam em grupos e tinham métodos de caça semelhan-
tes aos dos seres humanos, além de contarem com a vanta-
gem de um faro extremamente aguçado. Dessa forma, o ho-

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Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

mem percebeu que manter um relacionamento com esses ani-


mais traria alguns benefícios, melhorando a caça, afastando
os predadores, além de servir como alimento. Daí em diante,
o homem começou a criar os lobos junto a eles em suas ca-
vernas. O escritor Joseph Campbell (2004) destaca que as
pinturas rupestres encontradas nas cavernas evidenciam o
convívio humano com os animais ao seu redor, simbolizando
uma espécie de ritual do cotidiano deles.
Não há dúvidas de que os homens obtiveram vanta-
gens com essa aproximação, mas os lobos também se bene-
ficiaram com essa convivência amigável, já que passaram a
conseguir abrigo, o que significava maior proteção em relação
a outros predadores e maior facilidade em encontrar comida e
assim, de forma mútua, esses animais passaram a proteger
os humanos, acolhendo-os como parte da alcateia.
Essa aproximação entre homens e animais atuou posi-
tivamente na evolução de ambos, que foram se adaptando às
mudanças com o passar do tempo. A neurocientista Erin Hecht
(2019) apresentou estudo no qual constata que a convivência
com o ser humano impactou tão profundamente os ancestrais
dos cães, que além das alterações físicas, comportamentais,
fisiológicas e morfológicas, alterou também sua estrutura ce-
rebral.

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Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

Em decorrência das mudanças climáticas que ocorre-


ram no período neolítico, nossos ancestrais adotaram um es-
tilo de vida mais sedentário, afastando-se da vida nômade que
levaram até então. O ser humano passou de caçador-coletor
para agricultor e com esse novo estilo de vida começaram a
domesticar outros animais como porcos, ovelhas e gado que
ficavam confinados em espaços onde iriam se reproduzir e for-
necer carne, leite e lã. Com essa organização do grupo, os
humanos passaram a ter mais tempo disponível para realiza-
rem outras atividades, além da constante procura por alimen-
tos.
Com o início da agricultura os animais foram inseridos
nos trabalhos pesados do cultivo, contribuindo para o aumento
da produtividade. E com o aumento da produção dos grãos,
vieram também os roedores. É nesse cenário que se inicia a
domesticação dos gatos. Esses felinos aproximaram-se dos
seres humanos caçando os ratos nos celeiros, o que foi bem-
visto e aceito pelo homem, já que a presença de gatos impedia
a infestação dos ratos nos armazéns.
No Egito Antigo os gatos eram idolatrados e considera-
dos animais sagrados, tanto que eram mumificados com seus
donos para os acompanhar pela eternidade. Já na Idade Mé-
dia, foram associados à bruxaria e havia a crença de que eles
tinham ligação com o oculto, superstição que perdura até os

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Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

dias atuais, principalmente em relação aos gatos de pelagem


escura, levando-os inclusive à morte pelas mãos dos supers-
ticiosos.
As primeiras aves também foram domesticadas nesse
período. Elas eram admiradas pela beleza e pelo canto. Mas
se antes eram adoradas, hoje são extremamente exploradas,
figurando entre os animais mais vendidos no mercado ilegal
de animais silvestres e um dos mais consumidos no mundo.
O cavalo é outro animal que tem destaque na história
da humanidade. Sua domesticação possibilitou aos homens
percorrerem grandes distâncias de forma mais célere, contri-
buindo diretamente nas conquistas dos territórios. Além de se-
rem utilizados no transporte de cargas e pessoas, foram ver-
dadeiras armas de guerra, em uma época em que ainda não
existiam as máquinas e armamentos que conhecemos hoje. A
mobilidade da cavalaria era uma grande vantagem sobre
aqueles que combatiam a pé. Sua posse representava riqueza
e poder, considerando o alto custo da sua manutenção.
Cavalos também foram inseridos nos trabalhos em fa-
zendas e nas práticas esportivas. Na Grécia Antiga, estavam
presentes nas Olimpíadas, 600 anos a.C. e até hoje são utili-
zados em vários esportes como hipismo, rodeios, saltos, va-
quejadas, entre outros.

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Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

É incontestável que os animais contribuíram direta-


mente no desenvolvimento dos seres humanos. Desde a do-
mesticação, eles suprem as necessidades humanas, forne-
cendo alimento, proteção, força de trabalho, entretenimento.
São utilizados em experiências científicas e treinados para
prestação de serviços, como os cães-guias, cães policiais e de
resgate, por exemplo, e ainda nos proporcionam conforto emo-
cional.

Estudos científicos comprovam que o convívio com um


animal de estimação melhora a nossa saúde física e mental,
reduz os níveis de hipertensão e estresse, promove a sensa-
ção de bem-estar e auxilia no tratamento contra depressão.
Pessoas com transtornos, deficiências física, mental, intelec-
tual ou sensorial encontram em seus animais de estimação
apoio emocional, contribuindo no controle das doenças psiqui-
átricas.

Há também os animais que atuam como co-terapeutas


na Terapia Assistida por Animais. Eles são um instrumento
que promove a melhora na saúde de pessoas acamadas, hos-
pitalizadas, com transtornos mentais, entre outros. A terapia
assistida por cães é a mais comum, mas qualquer animal trei-
nado pode participar da atividade, podendo utilizar gatos, ca-
valos, roedores, aves, répteis e tartarugas.

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Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

A relação entre homem-animal tem se estreitado de tal


forma nas últimas décadas que a preocupação com a quali-
dade de vida e bem-estar animal proporciona o crescimento
do mercado pet. Já é possível encontrar creches, hotéis e apli-
cativos de transporte destinados exclusivamente ao atendi-
mento dos animais de estimação. Na internet os pets influen-
cers são um fenômeno, alguns perfis nas redes sociais che-
gam a ter milhões de seguidores acompanhando sua rotina
diária.

À medida que o bem-estar dos animais vem sendo pri-


orizado em nossa sociedade, a legislação que os protege tam-
bém tem sido alvo de preocupação e cobranças. Atualmente,
os crimes de maus-tratos são punidos com mais severidade,
embora a legislação brasileira ainda trate desigualmente algu-
mas espécies, priorizando os domésticos, especificamente
cães e gatos, em detrimento dos demais.

Uma vez que os animais ainda são considerados coisas


e estarem sempre ao alcance para atender aos caprichos e
necessidades do homem, este passou a enxergar aqueles
como seres inferiores, cujo único propósito de existência é o
de nos servir. Consequentemente, os animais ainda são cons-
tantemente explorados e maltratados.

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Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

1.2 EVOLUÇÃO DA PROTEÇÃO JURÍDICA DOS ANIMAIS


NO BRASIL

Durante séculos o ser humano explorou a natureza des-


regradamente sem se preocupar em criar mecanismos que
protegessem os animais das práticas que lhes causasse sofri-
mento. O pensamento antropocêntrico, no qual o homem é o
centro do universo, arraigou nos humanos o sentimento de su-
perioridade, garantindo-lhes o direito de exercer poder sobre
os seres considerados inferiores. Segundo a concepção bí-
blica, o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus,
portanto, um ser evoluído que deve controlar a terra, como
visto no livro de Gênesis, onde Deus diz:

Façamos o homem à nossa imagem, conforme a


nossa semelhança; e domine sobre os peixes do
mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o gado,
e sobre toda a terra, e sobre todo réptil que se
move sobre a terra (BÍBLIA, Gênesis 1:26).

Filósofos como Nicolau Maquiavel e René Descartes,


adeptos do antropocentrismo, defendiam que o ser humano
está acima dos demais seres vivos e que podem utilizar os
animais, e todos os outros recursos naturais, como bem en-

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tenderem. Descartes chegou a comparar os animais com má-


quinas, uma vez que ambos não possuem o dom da lingua-
gem e estão ao dispor do homem.
Já os filósofos Voltaire e Jean-Jacques Rousseau, de-
fensores do biocentrismo (teoria que considera que todas as
formas de vida devem ser valorizadas) defendiam que os ani-
mais são seres sencientes, motivo pelo qual merecem ser pro-
tegidos dos atos de crueldade perpetrados pelos seres huma-
nos. O filósofo e jurista teórico Jeremy Bentham (1789), pre-
gava que pouco importa se os animais são capazes ou não de
pensar, importando apenas que consigam sofrer, o que é mo-
tivo suficiente para serem protegidos. Voltaire chegou a fazer
críticas ao antropocentrismo, ao escrever o verbete intitulado
irracionais, em seu livro Dicionário Filosófico:

Que ingenuidade, que pobreza de espírito, dizer


que os animais são máquinas privadas de conhe-
cimento e sentimento, que procedem sempre da
mesma maneira, que nada aprendem, nada
aperfeiçoam! [...] Será porque falo que julgas que
tenho sentimento, memória, ideias? Pois bem,
calo-me. (VOLTAIRE, 1764, p. 308).

No Brasil, até o início do século XX, não havia nenhum


ato normativo (em âmbito nacional) destinado à proteção dos
animais. No ano de 1924 foi publicado o Decreto nº 16.590/24,
que regulamenta as Casas de Diversões Públicas, vedando,

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Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

em seu art. 5º, a concessão de licenças para a corrida de tou-


ros, garraios e novilhos, brigas de galos e canários, dentre ou-
tras práticas que causem sofrimento aos animais. Mesmo não
se tratando de uma norma destinada especificamente à prote-
ção dos seres irracionais, foi o primeiro instrumento a tratar do
bem-estar animal, proibindo a utilização de determinadas es-
pécies como forma de entretenimento.
Somente no ano de 1934, por meio do Decreto nº
24.645/34, foram estabelecidas as primeiras medidas especí-
ficas de proteção aos animais, sendo considerado um marco
para causa animal, tendo em vista que, nos anos 1930, o di-
reito e bem-estar desses seres ainda não eram temas de
grande interesse da sociedade, tampouco do legislador.
O Decreto, que ficou conhecido como a “Lei Áurea" dos
animais, elencou, pormenorizadamente, um rol das condutas
consideradas maus-tratos (art. 3º), sujeitando os infratores a
pena de multa e prisão de 2 a 15 dias. O art. 17 do Decreto
determinou a tutela de todos os animais irracionais, quadrúpe-
des e bípedes, sejam eles domésticos ou selvagens, tendo
como exceção apenas os animais daninhos.
O Código Civil brasileiro de 1916, influenciado pelo di-
reito romano, considerou os animais como coisas passíveis de
apropriação, conforme o artigo 47: “São móveis os bens sus-
cetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força

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Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

alheia”. O Código Civil de 2002 conservou a natureza jurídica


dos animais que permanecem até os dias atuais como bens
semoventes, segundo o art. 82 do Código Civil. “São móveis
os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por
força alheia, sem alteração da substância ou da destinação
econômico-social”.
Atualmente, está em tramitação o Projeto de Lei nº
6.054/2019 que confere regime jurídico especial para os ani-
mais, tornando-os sujeitos despersonificados de direitos, fi-
cando vedado o seu tratamento como coisa. Essa proteção,
entretanto, não abrange os animais utilizados em pesquisas
científicas, manifestações culturais e aqueles empregados na
produção agropecuária.
Recentemente foram publicadas três leis de grande re-
levância para a proteção animal no estado do Acre. A primeira
foi a Lei nº 3.757/21 que obriga aqueles que praticarem cruel-
dade contra os animais, a custear todas as despesas veteri-
nárias do animal vítima até que ele se recupere totalmente. O
agressor fica sujeito à multa de R$ 2.000,00 (dois mil reais)
caso não cumpra com a obrigação.

No ano de 2022 entrou em vigor a Lei nº 3.939/22 ve-


dando o comércio, transporte, manuseio e a utilização de fo-
gos de artifício de estampido, visando a proteção dos animais,

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Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

bem como de crianças, autistas, pessoas idosas e enfermas.


Devido à alta capacidade auditiva de alguns animais, em es-
pecial os cães e gatos, os barulhos dos fogos de artifícios aca-
bam gerando altos níveis de estresse, alterando os batimentos
cardíacos, podendo levar o animal à morte.

E por fim, a Lei nº 3.940/22 que proíbe que pessoas


condenadas (após o trânsito em julgado da sentença) pelas
práticas de maus-tratos contra animais, exerçam atividades na
administração pública do estado, impedindo, inclusive, a parti-
cipação em licitação estadual.

1.3 TUTELA CONSTITUCIONAL DOS ANIMAIS NO


BRASIL

A Constituição Federal de 1988 inovou ao destinar um


capítulo à tutela do meio ambiente ecologicamente equili-
brado, consagrando-o como um direito fundamental. É um
bem de uso comum do povo (não é bem público, tampouco
particular) e essencial à qualidade de vida sadia, motivo pelo
qual foi atribuído ao Estado e também a toda sociedade o de-
ver de preservá-lo, bem como se atribuiu ao Poder Público a
obrigação de proteger a fauna e a flora, com destaque para a

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Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

defesa dos animais contra os atos que os submetam à cruel-


dade, conforme visto no artigo 225, § 1º, VII:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente


ecologicamente equilibrado, bem de uso comum
do povo e essencial à sadia qualidade de vida,
impondo-se ao Poder Público e à coletividade o
dever de defendê-lo e preservá-lo para as pre-
sentes e futuras gerações.
§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito,
incumbe ao Poder Público:
VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma
da lei, as práticas que coloquem em risco sua
função ecológica, provoquem a extinção de es-
pécies ou submetam os animais à crueldade.
(BRASIL, 1988).

Para Antunes (2021), o Direito Ambiental tem a função


de organizar como os recursos ambientais são utilizados, de-
terminando como deve ocorrer a apropriação desses recursos
e impondo limites a essa exploração. Tanto que a Constituição
Federal, em seu art. 170, inciso VI, estabelece a defesa do
meio ambiente como um princípio da atividade econômica, de-
vendo haver compatibilidade entre o desenvolvimento econô-
mico e um meio ambiente equilibrado.

A proteção constitucional do meio ambiente claramente


se baseia na utilidade que ele tem para os seres humanos,

20 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

que necessitam dos recursos naturais para a própria sobrevi-


vência e garantia de futuras gerações. Inclusive, o entendi-
mento majoritário da doutrina é no sentido de que a tutela ju-
rídica dos animais tem como finalidade a proteção do próprio
ser humano.

Mas, ainda que essa proteção esteja fundamentada na


visão antropocêntrica e os animais não sejam os principais su-
jeitos de direito, o inciso VII, § 1º, do art. 225 da CF, denota o
reconhecimento de que eles são seres sensíveis, passíveis de
sentir dor e sofrimento, portanto, merecedores de proteção em
função deles mesmos, independentemente da preservação
das espécies ou de sua função ecológica.

1.3.1 LEI Nº 9.605/98 (LEI DE CRIMES AMBIENTAIS)

Até o ano de 1998 a crueldade contra os animais foi


considerada uma contravenção penal, prevista no art. 64, do
Decreto-Lei nº 3.688/41, que dispõe: “Tratar animal com cru-
eldade ou submetê-lo a trabalho excessivo: Pena – prisão sim-
ples, de dez dias a um mês, ou multa, de cem a quinhentos
mil réis”. A sanção mostrou-se ineficiente, prevalecendo a im-
punidade daqueles que praticavam tais condutas. Após a pu-

21 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

blicação da Lei 9.605/98, o art. 64 da LCP foi revogado tacita-


mente, com base no princípio da especialidade, e os maus-
tratos passaram a ser considerados crimes, conforme o art. 32
da Lei nº 9.605/98:

Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, fe-


rir ou mutilar animais silvestres, domésticos
ou domesticados, nativos ou exóticos:
Pena - detenção, de três meses a um ano, e
multa.
§ 1º Incorre nas mesmas penas quem realiza
experiência dolorosa ou cruel em animal vivo,
ainda que para fins didáticos ou científicos,
quando existirem recursos alternativos.
§ 2º A pena é aumentada de um sexto a um
terço, se ocorre morte do animal. (BRASIL,
1988).

A Lei nº 9.605/98, conhecida como Lei de Crimes Am-


bientais, surgiu em cumprimento à determinação da Constitui-
ção Federal (art. 225, § 3º) dispondo sobre as sanções penais
derivadas das condutas lesivas ao meio ambiente, abran-
gendo não apenas os animais silvestres, mas também os do-
mésticos, domesticados, nativos e exóticos.
Vale destacar que o sujeito passivo é a coletividade e
não o animal, sendo objeto material da conduta. Para Eduardo
Cabette e Bianca Cabette (2020), “a conduta incriminada não
tem por característica a necessidade de avaliação de dano à

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Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

função ecológica do ser vivo. [...], são tutelados os animais de


maneira geral, independentemente de sua inserção na função
de equilíbrio ambiental”.
Ocorre que, diferentemente do Decreto 24.645/34 que
trouxe um rol de condutas consideradas maus-tratos, o art. 32
da Lei de Crimes Ambientais utilizou apenas as expressões
“abuso” e “maus-tratos”, o que pode levar a interpretações
subjetivas, dificultando a tipificação do crime.
Tal falha pode ser suprida pela Resolução nº 1.236/18,
do Conselho Federal de Medicina Veterinária, que traz em seu
art. 5º, um extenso rol contendo trinta e um incisos, descre-
vendo detalhadamente diversas condutas caracterizadoras
dos maus-tratos, dentre as mais comuns estão:

Art. 5º - Consideram-se maus tratos:


[...] III - agredir fisicamente ou agir para causar
dor, sofrimento ou dano ao animal;
IV - abandonar animais;
a) deixar o tutor ou responsável de buscar assis-
tência médico-veterinária ou zootécnica quando
necessária;
V - deixar de orientar o tutor ou responsável a
buscar assistência médico veterinária ou zootéc-
nica quando necessária. (BRASIL, 2018).

A Lei nº 11.794/2008 trata da regulamentação dos pro-


cedimentos científicos com animais, estabelecendo as normas

23 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

para o emprego de animais nos experimentos. A utilização de


animais vivos nos experimentos científicos deve atender a de-
terminados requisitos, como a criação de uma Comissão de
Ética no Uso de Animais, sendo imprescindível para o creden-
ciamento da instituição que desenvolva atividades de ensino
ou pesquisas com animais. A referida lei implementou o Con-
selho Nacional de Controle de Experimentação Animal, a
quem, dentre outras atribuições, compete zelar pelo cumpri-
mento das normas que protegem os animais contra as práticas
de abusos nas atividades científicas.
Em caso de descumprimento do regulamento, os arti-
gos 17 e 18 da Lei 11.794/08 estabelecem penalidades admi-
nistrativas, que vão desde advertência até a interdição defini-
tiva da instituição e a interdição definitiva para o exercício da
atividade. A sanção penal está prevista na Lei 9.605/98, art.
32, § 1º, que prevê sanção de detenção de três meses a um
ano e multa para quem submeter animais vivos a práticas
cruéis ou dolorosas, quando existirem outras alternativas.

1.3.2 LEI Nº 14.064/2020 (LEI SANSÃO)

No ano de 2018, um caso de maus-tratos ganhou re-


percussão nacional, mobilizando ativistas, celebridades, polí-

24 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

ticos, influencers e a população em geral. No dia 28 de novem-


bro de 2018, a cadela Manchinha, que vivia nos arredores do
supermercado Carrefour, na cidade de Osasco/SP, foi enve-
nenada e brutalmente espancada por um segurança do super-
mercado. O caso gerou grande comoção social e uma onda
de revolta e protestos acabou impulsionando a aprovação do
Projeto de Lei nº 1.095/19, que elevou as penas para os atos
de crueldade contra os animais.
Desse modo, no ano de 2020, entrou em vigor a Lei nº
14.064, que altera a Lei de Crimes Ambientais, acrescentando
ao art. 32 o § 1º-A, a seguinte redação: “quando se tratar de
cão ou gato, a pena para as condutas descritas no caput deste
artigo será de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, multa e
proibição da guarda”.
A lei foi alcunhada de Lei Sansão, em homenagem ao
cão da raça pitbull, que no mês de julho de 2020, foi amorda-
çado com arame farpado e teve as patas traseiras decepadas
por um homem na cidade de Confins/MG, caso que também
repercutiu em todo o País e novamente trouxe à tona a discus-
são acerca das legislações de proteção animal.
O texto original do projeto de lei, de autoria do deputado
Fred Costa, previa aumento de pena para os crimes de maus-
tratos praticados contra todos os animais descritos no caput

25 | P á g i n a
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do art. 32, bem como atribuía penalidades aos estabelecimen-


tos comerciais e rurais que concorressem para as práticas dos
crimes previstos. O texto original do Projeto de Lei nº 1.095/19,
assim dispunha:

Art. 1º O art. 32 da Lei nº 9.605, de 12 de feve-


reiro de 1998, passa a vigorar com a seguinte re-
dação:
Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir
ou mutilar animais silvestres, domésticos ou do-
mesticados, nativos ou exóticos:
Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa.
§ 3° Os estabelecimentos comerciais ou rurais
que concorrerem para a prática de crimes previs-
tos neste artigo poderão incorrer nas seguintes
sanções:
I – multa no valor de 1 a 40 salários-mínimos;
II – interdição parcial ou total do estabelecimento;
IV – suspensão ou cancelamento da licença am-
biental do estabelecimento; V – perda ou restri-
ção de incentivos e benefícios fiscais concedidos
pela União. (BRASIL, 2019).

No entanto, o projeto de lei foi alterado pela Câmara dos


Deputados, que manteve a imposição de pena mais rígida
apenas para os crimes praticados contra cães e gatos, supri-
mindo o § 3º e seus incisos, que responsabilizavam os esta-
belecimentos comerciais ou rurais. Esse favorecimento aos

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Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

cães e gatos em prejuízo dos outros animais, vem sendo du-


ramente criticado, havendo quem defenda a inconstitucionali-
dade da lei, em razão da discriminação entre as espécies e
pela desproporcionalidade das penas.
Grégore de Moura (2020), defende que a Lei Sanção é
inconstitucional e que fere o princípio da proporcionalidade por
se preocupar mais com os animais (cães e gatos) do que com
os humanos e destaca que: “trata-se de mais uma "legislação
álibi”, no dizer de Marcelo Neves, e de um Direito Penal emi-
nentemente simbólico”. Para Moura, não há, de fato, a preo-
cupação com o meio ambiente, ou mesmo com o sofrimento
dos animais, sendo certo que o principal objetivo da Lei San-
são é tranquilizar a população.
Bruno Sales (2020) também é defensor da inconstituci-
onalidade da Lei Sanção e no tocante a distinção entre as es-
pécies, assevera que: “Trata-se de um critério que não atende
a qualquer lógica e que, mais uma vez, reflete o dramático po-
pulismo penal que impera no Brasil”.
Argumenta ainda que não há nenhuma razão para tra-
tar com mais rigor um ato de crueldade contra um cão ou gato
do que outro animal, mesmo aqueles que sejam de estimação,
e que passaram a ser adotados para o convivendo próximo
com os seres humanos, como várias espécies de aves, roedo-
res, répteis e até mesmo suínos.

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Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

Não é incomum o surgimento de uma nova lei ou au-


mento de pena sempre que uma conduta criminosa toma
conta dos noticiários, causando comoção e revolta na popula-
ção, que insatisfeita, clama por punições mais severas. Com
a Lei Sansão não foi diferente, já que os casos de crueldade
contra os animais vêm ganhando cada vez mais visibilidade e
apoiadores da causa animal. Diante disso, o legislador apres-
sou-se em aprovar a Lei Sansão atendendo ao clamor da po-
pulação.
No tocante a desproporcionalidade das penas, é certo
que a sanção aplicada às práticas de maus-tratos contra cães
e gatos, que prevê reclusão de dois a cinco anos, é por vezes
superior às penas aplicadas a algumas condutas atentatórias
à vida humana, previstas no Código Penal, tais como os cri-
mes de homicídio culposo, que prevê pena de detenção de um
a três anos (art. 121, § 3º); infanticídio, com pena de detenção
de dois a seis anos (art. 123); aborto provocado pela gestante
ou com seu consentimento, com pena de detenção de um a
três anos (art. 125); provocar aborto com o consentimento da
gestante, pena de reclusão de um a quatro anos (art. 126);
maus-tratos contra pessoa, pena de detenção de dois meses
a um ano (art. 136) e lesão corporal, pena de detenção de três
meses a um ano (art. 129).
Contudo, revogar a Lei Sansão, não se apresenta como

28 | P á g i n a
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a solução mais adequada para sanar este desequilíbrio, visto


que os animais sofrem constante e silenciosamente todos os
tipos de atrocidades praticadas pelos seres humanos e a san-
ção prevista no art. 32, caput, da Lei 9.605/98 têm se mostrado
ineficaz na repressão das condutas proibidas.
Em relação à alteração da Lei de Crimes Ambientais e
a desproporcionalidade das penas, Vladimir de Freitas de-
fende que:

É possível chegar-se a uma conclusão que une


garantistas e punitivas vistas: A redação do ar-
tigo 32 da Lei 9.605, de 1998, no seu artigo 32,
parágrafos 1º-A e 2º, não é coerente com o sis-
tema de penas do Direito Penal. Chegar a tal
conclusão é fácil. Mas, o difícil e necessário, é
apontar uma solução. De duas uma: a) revoga-
se a Lei 14.064/2020, que elevou a pena; b) ele-
vam-se outras penas, a fim de que fiquem coe-
rentes com o sistema. Na minha opinião, a se-
gunda hipótese seria a correta. Com efeito, as
sanções da Lei 9.605/1998, foram previstas para
uma época em que os problemas ambientais
eram outros, muito menores que os atuais (FREI-
TAS, 2022, p. 2).

A aprovação da referida lei foi recebida como uma


grande conquista, mas também se mostrou incompleta e es-
peciosa, visto que privilegiou apenas os animais domésticos
que convivem mais próximos dos seres humanos e que não
fazem parte da alimentação do brasileiro. Se anteriormente

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Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

cães e gatos eram vistos como simples animais de estimação,


destinados muitas vezes à guarda das residências e utilizados
no controle de roedores que invadem os campos e até mesmo
as cidades, hoje são tratados como membros da família, e gra-
dativamente estão ocupando o lugar dos filhos em muitos lares
brasileiros.
Acerca da Lei Sansão, Flávio Martins (2022, p. 332),
afirma que:

Se a referida lei traz um avanço (a mutilação de


animais, por exemplo, tinha uma pena máxima
reduzidíssima de um ano de detenção, podendo
até ser substituída por uma multa vicariante), traz
um grande retrocesso, no nosso entender: ao tra-
tar apenas de cães e gatos, mostrou se preocu-
par mais com o ser humano que com os animais.
Tratar de forma diferenciada espécies de animais
é um ato irrazoável, egoístico e antropocêntrico.
Ou seja, protegemos mais os animais que estão
mais próximos do ser humano. (MARTINS, 2022,
p. 332).

Não faz sentido elevar a sanção para os atos de cruel-


dade praticados apenas contra cães e gatos, quando há uma
variedade de espécies que também estão expostas a todos os
tipos de maus-tratos, como, por exemplo, os animais silvestres
que são vítimas de tráfico, expondo algumas espécies ao risco
de extinção, o que consequentemente, ocasionando um dese-
quilíbrio ecológico. Aves, macacos, rãs venenosas e coloridas,

30 | P á g i n a
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borboletas e répteis são os mais visados. Acredita-se que


cerca de 90% dos animais traficados morrem antes mesmo de
chegar ao local de destino, devido como são transportados.
Alguns animais chegam a ser dopados, colocados em malas
de viagem e em canos para facilitar o transporte.
O mercado ilegal de animais é extremamente vantajoso
para os criminosos, em virtude da ausência de fiscalização, da
baixa punibilidade e os altíssimos valores pagos por esses ani-
mais, gerando uma alta lucratividade para os infratores. Algu-
mas condutas para o tráfico estão tipificadas no art. 29 da Lei
de Crimes Ambientais que assim dispõe:

Art. 29. Matar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar


espécimes da fauna silvestre, nativos ou em rota
migratória, sem a devida permissão, licença ou
autorização da autoridade competente, ou em
desacordo com a obtida:
Pena - detenção de seis meses a um ano, e
multa.
§ 1º Incorre nas mesmas penas:
[...] III - quem vende, expõe à venda, exporta ou
adquire, guarda, tem em cativeiro ou depósito,
utiliza ou transporta ovos, larvas ou espécimes
da fauna silvestre, nativa ou em rota migratória,
bem como produtos e objetos dela oriundos, pro-
venientes de criadouros não autorizados ou sem
a devida permissão, licença ou autorização da
autoridade competente.

31 | P á g i n a
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Além dos animais silvestres, há também aqueles cria-


dos para a produção de alimentos, como bovinos, caprinos,
suínos e aves, que acabam sendo relegados a um segundo
plano em virtude da importância econômica do mercado ali-
mentício, causando um conflito de interesses; os animais de
serviços, como os cavalos, que não raro são explorados até a
morte e os animais utilizados em manifestações culturais, cul-
tos religiosos e experimentos científicos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É evidente a necessidade de maior rigor nas punições


dos crimes contra os animais e a Lei Sansão apresenta-se
como um instrumento que, de fato, pode auxiliar na luta contra
os atos de crueldade. Com a entrada da nova lei no ordena-
mento jurídico brasileiro, os maus-tratos saíram dos Juizados
Especiais, onde as penalidades são brandas e os autores des-
frutam de alguns benefícios e passaram a ser punidos com
maior severidade, com pena de reclusão, multa e até perda da
guarda.
No entanto, a Lei Sansão falha ao não tutelar as demais
espécies, desprezando diversos animais que são frequente-
mente expostos a atos de abusos, como os animais silvestres,
alvos do tráfico, que acabam sendo mutilados e mortos devido

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como são transportados. Há também os animais destinados


ao mercado alimentício, os que são utilizados em serviços, e
aqueles utilizados em manifestações culturais, cultos religio-
sos e experimentos científicos. Fato é que até mesmo outras
espécies animais que são domesticadas e que convivem no
ambiente familiar, como pássaros, não usufruem dessa prote-
ção.
Esse tratamento desigual entre as espécies é frequen-
temente criticado pelos doutrinadores, visto que a Constituição
Federal e a Lei nº 9.605/1998 não fazem distinção em relação
às espécies. Desse modo, não há justificativas para tratar de
forma mais severa apenas os crimes cometidos contra cães e
gatos. Além disso, o texto da Lei Sansão não é claro quanto à
proibição de guarda e não especifica se tal proibição se res-
tringe apenas ao animal encontrado em situação de maus-tra-
tos ou se também veda a aquisição de novos animais, bem
como não define o período de vigência dessa proibição.
Se os animais são protegidos por serem seres dotados
de senciência, capazes de experimentar sensações e senti-
mentos como medo, alegria, dor, fome e sede, não há justifi-
cativas para serem priorizadas apenas duas espécies em de-
trimento das demais. O mais coerente seria manter a redação
original do Projeto de Lei nº 1.095/19, abrangendo todos os

33 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

animais, sejam eles domésticos, domesticados, selvagens, sil-


vestres, nativos ou exóticos.

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proibição, no Estado, do comércio, transporte, manuseio e uso
de fogos de artifício ou de qualquer outro artefato pirotécnico
que produza estampidos. Disponível em: http://www.le-
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ACRE. Lei nº 3.940, de 12 de maio de 2022. Proíbe o exer-


cício de cargo, emprego ou função pública por pessoa conde-
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BRASIL. Lei nº 11.794, de 08 de outubro de 2008. Regula-


menta o inciso VII do § 1o do art. 225 da Constituição Federal,
estabelecendo procedimentos para o uso científico de ani-
mais; revoga a Lei no 6.638, de 8 de maio de 1979; e dá outras
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Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

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gano, 2004.

38 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

2
A HONRA OBJETIVA E SUBJETIVA DAS PESSOAS QUE
PARTICIPAM DE REALITY SHOW

THE OBJECTIVE AND SUBJECTIVE HONOR OF PEOPLE


PARTCIPATING IN REALITY SHOWS

Leidy Daiany Sussuarana de Souza3


Arthur Braga Neto de Souza4

SOUZA, Leidy Daiany Sussuarana. A honra objetiva e sub-


jetiva das pessoas que participam de Reality Show. Traba-
lho de Conclusão de Curso de graduação em Direito-Centro
Universitário UNINORTE, Rio Branco, 2023.

3 Discente do 9ª Período do Curso de Bacharel em Direito pelo Centro Uni-


versitário Uninorte
4 Graduado em Direito pelo Centro Universitário Uninorte. Pós-Graduado

em Direito Processual Civil pela Universidade Cândido Mendes. Servidor


Público Federal do TRF da 1a Região. Professor Universitário no Centro
Universitário Uninorte.

39 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

RESUMO
O presente trabalho traz uma abordagem dos crimes de calú-
nia, injúria e difamação, explanando a forma que estes crimes
afetam a honra objetiva e subjetiva das pessoas que se en-
contram com a imagem exposta devido à participação em re-
ality show. Nesse sentido, indagando-se sobre a relativização
da honra da pessoa e seus direitos de personalidade. A con-
textualização do trabalho contou com diversas pesquisas rela-
cionadas à origem e a evolução dos realitys show ao longo dos
anos, além disso, uma pesquisa bibliográfica foi realizada em
livros de renomados autores do ramo do Direito Penal para
que a parte conceitual de honra objetiva e subjetiva fosse con-
ceituada em amplas possibilidades.
Palavras-chave: reality show; honra objetiva; honra subjetiva;
ofensa; relativização

ABSTRACT
This paper brings an approach to the crimes of slander, injury
and defamation, explaining the way that these crimes affect the
objective and subjective honor of people who find themselves
with the image exposed due to participation in reality show. In
this sense, inquiring about the revitalization of the person’s
honor and is personality righits. The contextualization of the
work included several researches related to the origin and evo-
lution of the realitys show over the years, in addition, a biblio-
graphical research was carried out in books of renowned au-
thors in the field of criminal law to that the conceptual part of
objective and subjective honor was conceptualized in broad
possibilities.

Keywords: Reality Show; honra objetiva; honra subjetiva,


ofensa, relativização.

40 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

INTRODUÇÃO

O presente artigo gira em torno de três crimes previstos


no Código Penal, os crimes de calúnia, injúria e difamação as-
sociados à ofensa a honra objetiva e subjetiva das pessoas
confinadas em reality show. Objetiva-se discutir se há uma re-
lativização da honra, se a pessoa exposta tem seus direitos de
personalidade diminuídos em razão de sua exposição em rede
nacional.

Os realitys show são fenômenos contemporâneos,


dado o sucesso de audiência, as pessoas tentam incansavel-
mente uma vaga, na busca de fama e recursos financeiros.
Desde o surgimento desse formato de programa, no ano de
1973, nos Estados Unidos, houve muita discussão, pois lá,
tudo torna-se demasiadamente grande, tendo em vista que to-
dos têm acesso, e com muita facilidade podem confabular so-
bre a vida e aparência dos participantes.

É indubitável que com o advento dos avanços de redes


de Internet por todo o Brasil, ficou muito fácil tecer comentários
sobre este tipo de programa, pois há algumas décadas, em
muitas regiões do país, somente era possível o entretenimento
assistindo ao programa através dos canais abertos de televi-
são, atualmente com o acesso às redes sociais, as pessoas

41 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

confinadas em programas de televisão ficaram muito mais


acessíveis, o que é um bônus para quem quer tanto a fama,
mas também é ônus, porque muito facilmente a pessoa sofrerá
ataques e terá sua honra ofendida.

Neste trabalho, buscou-se explicitar o crescimento


desse tipo de programa, mas numa análise minuciosa da
ofensa à honra objetiva e subjetiva das pessoas que aceitam
participar deste formato de reality, assim como os formatos
desses realitys aumentaram, houve também uma crescente
onda de ataques, ofensas e imputação de crimes aos partici-
pantes de realitys, isso porque, a Internet, que muitos defen-
dem que não é terra sem lei, facilitou excessivamente este tipo
de ataque.

Assim, diante do crescimento dos ataques à honra dos


participantes de reality, tornou-se bastante relevante dialogar
sobre o assunto, que em termos informais é de conhecimento
de todos.

Nesse sentido, o trabalho traz a parte conceitual de


honra objetiva e subjetiva para o Direito Penal, assim como
também associa os crimes: calúnia, difamação e injúria à
honra das pessoas, objetivando, em termos gerais, discutir so-
bre a relativização dos direitos de personalidade da pessoa
humana.

42 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

2.1 REALITY SHOW: ORIGEM

O termo reality show é de origem inglesa e significa re-


alidade mostrada, no Brasil, utiliza-se o mesmo termo, pois
ocorreu o fenômeno linguístico conhecido por estrangeirismo,
onde os falantes de determinado idioma utilizam o termo de
origem estrangeira, se apropriando dele em sua forma original.
Os reality shows são programas de entretenimento
onde divulgam pessoas anônimas ou celebridades confinadas
em casas ou ilhas. Além dessas possibilidades, o palco tam-
bém é lugar para reality, pois muitos participantes se apresen-
tam em palcos quando se trata de reality de música, onde dis-
putam a preferência do público a voz de maior destaque.
Não faz muito tempo que a cozinha também virou es-
paço de reality, hoje em dia há muitos realities onde as pes-
soas disputam o título de melhor chefe de cozinha, dedicando-
se à preparação de pratos típicos, exóticos, criativos, estra-
nhos e muito originais.
Em realities que exigem o confinamento, os participan-
tes selecionados são divulgados em ocasiões ditas habituais
e/ou em condições extremas de convivência e sobrevivência.
São transmitidos através da rede aberta de televisão, e com
facilidade são encontrados na Internet, as imagens e vídeos

43 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

mais populares do programa são as que expõem as pessoas


que lá se encontram durante cenas de intrigas, conspirações,
festas e em ocasiões de apelo sexual.
Embora haja informações de reality show antes dos
anos de 1973, o reality que é considerado o precursor foi lan-
çado nos Estados Unidos em 1973, ele é intitulado por “An
American Family”, o programa teve grande repercussão e tra-
tou de assuntos que geravam polêmicas na época, como o di-
vórcio e homossexualidade.
A partir deste reality muitos modelos semelhantes fo-
ram surgindo, outros países aderiram à ideia, e o formato de
programa de realidade ensaiada, com roteiros a serem segui-
dos foram sendo lançados na televisão, gerando sucesso en-
tre o público, causando divergências de opiniões, lançando
marcas no mundo da moda, inserindo anônimos ao meio ar-
tístico e muitas vezes ganhando visibilidade internacional.
Por retratar a realidade, embora muitas vezes ensai-
ada, os reality shows agradaram muito o público, e desde que
foram veiculados na televisão brasileira pela primeira vez es-
tão sempre em alta. Nesta era contemporânea, onde os recur-
sos digitais estão por quase toda parte, a divulgação de reality
é amplamente massificada, alcançando a criança, o adoles-
cente, jovens e idosos, justificando assim as razões por que

44 | P á g i n a
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este tipo de programa está sempre em constante crescimento,


sendo que a cada dia novos formatos são lançados na mídia,
fazendo muito sucesso entre os espectadores de todos os lu-
gares do Brasil e do mundo.
No Brasil, o primeiro reality show foi transmitido pela
MTV, nos anos de 2000, inspirado na letra da canção “20 e
poucos anos”, o público selecionado era jovem entre 20 e 30
anos, onde a principal característica desse grupo de pessoas
era a heterogeneidade, cada qual era pertencente a classes
sociais diferentes, este teria sido o estopim para que os reali-
tes estejam em alta até os dias atuais.
Em seguida, emissoras como a Rede Globo e Band
também trataram de lançar programas nesse sentido para se-
rem apreciados pelo público. A Rede Globo lançou então seu
primeiro reality show, intitulado “No limite”, o programa logica-
mente agradou muito o público, retratava a realidade de pes-
soas confinadas em uma ilha, em situações extremas de so-
brevivência, passando por provas de resistência e desafios di-
versos para conseguir uma alimentação melhor e alguns re-
cursos para facilitar a sobrevivência naquela vida selvagem
em que estavam submetidos.
Um reality show que também ganhou grande destaque
na televisão brasileira foi transmito pelo SBT, o reality “casa

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dos artistas”, foi sucesso nos anos 2000, o público selecionado


eram pessoas conhecidas no meio artístico como o próprio
nome sugere. No entanto, mesmo sendo sucesso entre o pú-
blico, o programa teve poucas temporadas, pois, na época,
travou-se uma batalha judicial movida pela Rede Globo.
Momento em que o Sistema Brasileiro de Televisão foi
acusado de plágio, pois segundo o entendimento da justiça,
de fato o programa era semelhante ao Big Brother Brasil, per-
tencente à Rede Globo, o qual estava em fase de adaptação
para ser lançado na televisão em anos seguintes. No ano de
2002 foi então lançado o reality show de maior audiência da
Rede Globo, o Big Brother Brasil, o qual será mais detalhado
aqui, pois será a partir da análise dele que será abordada a
honra objetiva e subjetiva dos participantes.
O Big Brother Brasil foi criado em 1999, por John de
Mol, um executivo que trabalhava na TV holandesa. É um pro-
grama de confinamento, onde pessoas anônimas e celebrida-
des são selecionadas para compor a casa, variando entre 20
e 24 pessoas, de classes sociais diferentes, as quais muitas
vezes levantam bandeiras de representatividade.
A casa é monitorada por câmeras em todos os lugares,
há divisão de grupos, e partir daí formam-se as alianças e co-
meçam então as teorias de conspiração e a luta incessante

46 | P á g i n a
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para tentar fugir do paredão, pois o público, sempre atento, é


“juiz” das ações dos confinados, e na maioria das vezes não
dá duas chances aos participantes.
Um ano após a criação do reality nesse formato, no Bra-
sil já se trabalhava a possibilidade de trazer o reality para a TV
brasileira. Após negociações a emissora de televisão Globo,
comprou os direitos autorais do reality que tem tradução no
português de “grande irmão”, entretanto mantiveram o nome
original do programa e o lançaram no ano de 2002.
A primeira edição do programa contava com doze par-
ticipantes, apenas pessoas anônimas, porém com pré-dispo-
sição a serem celebridades. Apesar de ainda ser uma edição
de experimento, e ter tido muitas falhas, edição foi um sucesso
e ainda no mesmo ano a emissora lançou a segunda edição
do programa ainda nos mesmos formatos da edição anterior.
As edições foram sofrendo alterações ao longo dos
anos, vários ajustes foram feitos para se chegar no formato
que tem hoje. O programa é cheio de personalidade, pois re-
úne ali várias pessoas de culturas diferentes, é um verdadeiro
encontro de “mundos”, por isso as bandeiras de representati-
vidade estão sempre presentes, fazendo com que o público se
identifique e inclinem bandeiras nesse sentido.

47 | P á g i n a
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Por ter grande repercussão, o programa também re-


cebe enxurrada de críticas negativas, principalmente por parte
de praticantes religiosos mais extremistas, os quais enxergam
a exposição e atitudes daquelas pessoas confinadas como
imoral, as quais poderiam atentar contra a honra da família
tradicional.
O fato inegável é o programa ser palco de grandes dis-
cussões, onde se levantam questões relacionadas ao racismo,
política, intolerância religiosa, violências de cunho sexual, as-
sédio, injúria, calúnia e difamação.
Em todos esses anos em que o reality está sendo vei-
culado, o Brasil já presenciou inúmeras situações absurdas no
programa, como cenas de injúria racial, inserido no capítulo
dos crimes contra a honra, assistimos ao nordestino sendo
massacrado pelo seu sotaque, assistiu-se também à acreana
ridicularizada em rede nacional, sofrendo inúmeros preconcei-
tos por sua origem humilde, por morar num Estado pequeno e
sem grande notoriedade.
Também se observou homofobia, pessoas sendo mas-
sacradas pela sua orientação sexual, sendo discriminadas, so-
frendo ofensas e ameaças, tanto no confinamento, quanto em
âmbito externo, onde o espectador que tudo vê, também se

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acha na posição de juiz, efetuando diversos julgamentos e pra-


ticando crimes contra a honra do sujeito ali confinado.

2.1.1 CONCEITOS INICIAIS DA HONRA OBJETIVA E SUB-


JETIVA

Desde os tempos mais remotos a honra sempre foi tida


como algo de prestígio social, inclusive no ramo negocial de
um tempo bem distante, a palavra representava a honra do
cavalheiro. A honra também sempre foi importante para de-
monstrar o caráter de uma mulher, a qual deveria ser virtuosa
e de bons princípios para que sua honra não fosse comprome-
tida, garantindo-lhe assim um futuro promissor.
Atualmente, embora muitos princípios tenham se per-
dido ou se modificado, pois alguns princípios morais e éticos
vão se adequando conforme a sociedade evolui, a honra con-
tinua sendo algo indispensável para o ser humano, sendo in-
dissociável às regras de bons costumes e ao caráter ilibado.
Observou-se que em todos os tempos, entre povos de
diferentes cidades, com costumes e vivências completamente
diferentes, a honra sempre teve relevante importância para o
ser humano. No Direito Grego e no Direito Romano já havia

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uma certa proteção da honra, entretanto ela não era para to-
dos, tendo em vista que algumas pessoas eram excluídas, por
exemplo, os escravos não possuíam Direito à honra.
Hodiernamente a honra tem uma proteção em massa,
pois fez parte dos direitos de personalidade da pessoa hu-
mana, sendo prevista em diversas normas como inviolável, ir-
renunciável, que defende a integridade do ser humano, e
como um direito penalmente tutelável, conforme está previsto
nos artigos 138, 139 e 140 do Código Penal de 1940.
Dada a sua importância aqui já demonstrada, preocu-
pamo-nos em conceituar essa palavra de extensão pequena,
mas dotada de grandioso significado. No entendimento do au-
tor André Estefan, 2020:

A honra é o conjunto de qualidades que exornam


a pessoa humana, conferindo-lhe respeitabili-
dade social e estima própria. O homem, ser gre-
gário, depende não apenas da satisfação do seu
instinto de autoafirmação, portanto da correspon-
dente autoestima, como também da aprovação
do meio em que vive, que se revela na heteroa-
firmação e, correspondentemente, na estima so-
cial. (ESTEFAN, 2020, p.338).

A nossa honra sempre irá refletir nossa respeitabilidade


social, pois os valores que trazemos refletem nossa marca, o
que representamos na sociedade.

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A boa fama da pessoa constitui o pressuposto in-


dispensável para que ela possa progredir no
meio social e conquistar um lugar adequado; e,
por sua vez, o sentimento, ou consciência, da
própria dignidade pessoal representa uma fonte
de elevada satisfação espiritual”. (CUPIS, 2004)

Um indivíduo que não respeita os valores prestigiados


é visto na sociedade como uma pessoa negativa a qual não é
de fácil convívio. Além disso, a honra também reflete nossa
própria autoestima, quando somos dotados de valores e por
alguma razão temos nossa honra exposta, nossa autoestima
é afetada, pois as pessoas costumam se importar muito com
o que o outro pensa em relação a nós mesmos.
A honra é um bem jurídico tutelado em nosso ordena-
mento jurídico, prevista na Lei Suprema que rege o Estado
(CF/88), a honra veio descrita como inviolável. O art. 5º, X,
dispõe que: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a
honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a inde-
nização pelo dano matéria”.
O Doutor em Direito Penal, Cleber Massom, 2019, es-
creveu em seu livro de Direito Penal, parte especial que a
honra é o conjunto de qualidades físicas, morais e intelectuais
do ser humano, que o fazem merecedor de respeito no meio
social e promovem sua autoestima. Ainda nos dizeres do autor
“a honra é um sentimento natural inerente a todo homem e

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cuja ofensa produz uma dor psíquica, um abalo moral, acom-


panhados de atos de repulsão ao ofensor”.
O jurista e magistrado Guilherme de Souza Nucci,
2020, escreveu em sua obra escreveu que a honra:

É a faculdade de apreciação ou o senso que se faz


acerca da autoridade moral de uma pessoa, consis-
tente na sua honestidade, no seu bom comportamento,
na sua respeitabilidade no seio social, na sua correção
moral; enfim, na sua postura calcada nos bons costu-
mes. Essa apreciação envolve sempre aspectos positi-
vos ou virtudes do ser humano, sendo incompatível
com defeitos e más posturas, embora não se trate de
um conceito absoluto, ou seja, uma pessoa, por pior
conduta que possua em determinado aspecto, pode
manter-se honrada em outras facetas da sua vida. (NU-
CCI, 2020, p.356).

Com previsão legal em diversas leis brasileiras, o direito


à honra também está previsto no artigo 11 do Pacto de São
José da Costa Rica de 1969, vigente no Brasil, que estabelece
o seguinte “Toda pessoa tem direito a sua honra e ao reconhe-
cimento de sua dignidade”.
A honra está intimamente relacionada ao sentimento de
dignidade que carregamos em nós, como nos vemos, os valo-
res que julgamos certos e apreciáveis perante a sociedade.
Entretanto, a honra também relaciona-se com a forma que a
sociedade nos enxerga, como as pessoas percebem nossa re-
putação, é tudo aquilo que não causa repulsa no sujeito, é

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também nossa conduta norteada nos princípios socialmente


estipulados como certos.
Assim, é notório que a honra tem uma classificação, o
“eu” e o “outro”, como eu me vejo, como me sinto perante a
sociedade, quais valores morais “eu tenho”, e o “outro” como
as pessoas me veem, como enxergam minha reputação, como
meu nome é concebido pelas pessoas.
A honra subdivide-se em honra objetiva e subjetiva,
sendo a honra objetiva mais relacionada ao ambiente externo,
à teoria do “outro”, como a sociedade te enxerga, já a honra
subjetiva está ligada ao interno, ao “eu”, como eu me enxergo.
Alguns renomados autores trataram de descrever essa classi-
ficação da honra, o autor Cleber Massom, em seu livro de Di-
reito penal, parte especial, efetuou as seguintes classifica-
ções:

A honra objetiva é a visão que a sociedade tem


acerca das qualidades físicas, morais e intelec-
tuais de determinada pessoa, tratando-se em
suma dos julgamentos que as pessoas fazem de
alguém. Já a honra subjetiva é o sentimento que
cada pessoa possui acerca de suas próprias
qualidades físicas, morais e intelectuais. É o ju-
ízo que cada um tem de si mesmo (MASSOM,
2019, p.197).

O autor Damásio de Jesus também escreveu em sua


obra:

53 | P á g i n a
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Honra subjetiva é o sentimento de cada um, a


respeito de seus atributos físicos, intelectuais,
morais e demais dotes da pessoa humana. É
aquilo que cada um pensa a respeito de si
mesmo em relação a tais atributos. Honra obje-
tiva é a reputação, aquilo que os outros pensam
a respeito do cidadão no tocante a seus atributos
físicos, intelectuais, morais, etc. Enquanto a
honra subjetiva é o sentimento que temos a res-
peito de nós mesmos, a honra objetiva é o senti-
mento alheio incidido sobre nossos atributos”
(JESUS, 2020, p. 224).

Por ser um bem juridicamente tutelado e elencado em


diversas normas em nosso ordenamento jurídico, temos no
Código Penal três crimes contra a honra, os quais serão ana-
lisados detalhadamente no próximo capítulo.
O primeiro crime contra a honra previsto no Código Pe-
nal é a calúnia, a qual está definida no art. 138 do CP. A calú-
nia consiste em atribuir falsamente um crime a alguém, acusar
publicamente alguém de um crime o qual não cometeu. Impor-
tante salientar que para que a calúnia de fato ocorra é neces-
sário que a atribuição do crime seja falsa. Este tipo de delito é
um dos crimes contra a honra objetiva, pois irá atingir a repu-
tação da pessoa, como ela é vista na sociedade.
A difamação está prevista no art. 139 do Código Penal,
é um dos crimes contra a honra objetiva da pessoa, pois tam-
bém irá atingir como a pessoa é vista. Difamar é como tirar a

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boa fama do sujeito, desqualificar, fazer com que o indivíduo


fique desacreditado publicamente. A difamação será sempre
negativa para a pessoa ofendida, trazendo grandes conse-
quências à reputação da pessoa.
O crime de injúria tem previsão legal no art. 140 do Có-
digo Penal. “Injúria é a ofensa à honra-dignidade ou à honra-
decoro da vítima. O sujeito não atribui a outrem a prática de
fato, mas lhe atribui qualidade negativa”. (JESUS, 2020,
p.224).
Diferentemente do que ocorre nos crimes de calúnia e
difamação, os quais atingem a honra na forma objetiva, ou
seja, a reputação do sujeito perante as pessoas, o crime de
injúria ofende a honra subjetiva da pessoa, afetando direta-
mente sua autoestima, ou seja, a visão que a pessoa tem de
si mesma, sua forma de enxergar. Para a ocorrência da injúria,
não existe atribuição de fato, porém imputação de qualidade
negativa da vítima, que diz respeito a seus atributos morais,
físicos ou intelectuais.

2.2 RELATIVIZAÇÃO DA HONRA OBJETIVA E SUBJETIVA

O ser humano está sempre se reinventando, criando,


buscando incansavelmente o novo. Busca-se notoriedade, re-
conhecimento do trabalho, carreiras de sucesso, mas algo que

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tem ultimamente deslumbrado as pessoas é a fama, os holo-


fotes e as câmeras de paparazzi. Existe uma parcela de pes-
soas que faz de tudo para participar de um programa de tele-
visão, longas e perigosas viagens, horas de espera numa fila,
colocando em risco sua saúde, e arriscando muitas vezes sua
própria vida.
Na saga pela busca da fama e da tão sonhada visibili-
dade, as quais poderão lhes render muito dinheiro, muitas pes-
soas optam pela participação em “reality show”, que conforme
já explanado aqui, é um tipo de programa que chama atenção,
tem muita audiência, pois mostra a realidade do dia a dia,
exibe pessoas comuns (anônimas) e também famosos, além
disso, traz ao público a representação de bandeiras, pessoas
de diferentes classes sociais, héteros e homossexuais, do ca-
belo black, fisiculturistas, modelos, blogueiras, estudantes e
outros.
Ao entrar em um reality show, a vida da pessoa muda
completamente, aquela identidade que você tinha, será certa-
mente mudada, aqui a identidade não se refere somente às
inúmeras harmonizações faciais e cirurgias plásticas que as
pessoas famosas fazem, aquele apelido que a família carinho-
samente te chamava, poderá ser motivo de chacota entre o
público, o sotaque do nordestino poderá ser atacado, a maqui-

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agem rotineira, os looks, o cabelo, tudo isso poderá ser ridicu-


larizado pelo expectador. O sujeito que participa de um reality
show, nunca mais será o mesmo, será lembrado como o fu-
lano que participou de determinado programa, “o ex-BBB”, “ex-
fazenda”, entre outros.
A escolha em participar de um programa de televisão
deve ser bem consciente, pois ao aceitar toda a exposição que
o programa oferece, a pessoa acaba abdicando de muitas coi-
sas. Muitos, decidem entrar sem nenhum relacionamento con-
jugal, outros precisam deixar o emprego, a família, tudo isso
fica para trás. Entretanto, existe algo que é um direito funda-
mental, sendo nosso direito de personalidade, o qual é um di-
reito personalíssimo, indisponível, intransferível e irrenunciá-
vel, previsto inclusive na Constituição Federal de 1988, artigo
5º, inciso X, no qual há a previsão da proteção da imagem, da
intimidade, da honra e da privacidade.
Ocorre que, mesmo a imagem, a intimidade e a honra
tenha toda essa proteção em nosso ordenamento jurídico, elas
podem ser relativizadas em determinadas situações, pois
quando a pessoa decide participar de um programa de televi-
são com transmissão real e inúmeras câmeras apontadas para
si, a sua imagem já não está mais protegida, certamente me-
mes serão criados, figurinhas de WhatsApp, a sexualização da

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imagem pode ocorrer, além disso, a honra da pessoa é dura-


mente atacada pelos telespectadores de todos os lugares do
mundo.
Inúmeras vezes assistimos participantes de reality
show com o passado exposto após ganhar a fama que o pro-
grama proporciona. O telespectador transforma-se num ver-
dadeiro repórter investigativo e traz a lume várias verdades
encobertas, além das verdades indesejáveis que o público
acaba descobrindo, há também a propagação de Fake News,
as quais transformam a vida de qualquer pessoa num cenário
desconfortável, e trazem consequências muito negativas.
Parte do público que assiste à pessoa, se agrada e até
vira fã, mas existe um perfil de telespectador, que pouco se
importa que suas ofensas irão magoar o famoso, se irão ofen-
der à família, ou se estão cometendo crime no tocante à honra
da pessoa, destilam todo o seu ódio, deixando comentários
desagradáveis sobre a aparência física, a origem (o lugar de
onde veio), orientação sexual, e muitos comentários racistas.
Embora os direitos de personalidade sejam para todos,
pois existe uma proteção na nossa Carta Magna, onde prevê
que todos são iguais perante a lei, inclusive proibindo fazer
distinção entre as pessoas, conforme previsto no artigo 5º da
Constituição Federal de 1988, existe uma larga diferença

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dessa proteção da honra e da imagem entre uma pessoa anô-


nima e uma famosa.
Diariamente nos deparamos com situações absurdas
de famosos sendo xingados, recebendo linchamento virtual,
tendo sua honra objetiva e subjetiva sendo duramente ataca-
das pelos haters, em decorrência da exposição de uma opi-
nião de política partidária ou pelo não posicionamento, tam-
bém pela anunciação de um relacionamento ou pela escolha
de não tornar pública a decisão, pela escolha de uma roupa
ou por ostentar um carro de luxo, são inúmeras as possibilida-
des que fazem que a honra dessas pessoas seja atacada.
Durante a participação de um reality show toda essa ex-
posição fica ainda mais séria, pois os famosos do Instagram e
Twitter mostram apenas aquilo que é conveniente, uma falsa
realidade criada para impressionar seus seguidores das redes
sociais. De forma inversa ocorre nos programas de confina-
mento, ali, embora as pessoas ensaiem uma realidade, forcem
um personagem, contém histórias para impressionar o pú-
blico, as máscaras não duram durante as 24 horas, e as pes-
soas acabam mostrando seu verdadeiro “eu”.
Ser de verdade é o que as pessoas mais pregam du-
rante o programa, mas ser “você” pode tanto te tornar amado,
como já aconteceu com vários participantes que rapidamente

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se tornaram os queridinhos do Brasil, quanto pode te fazer odi-


ado pelo público, fazendo com que a pessoa seja rejeitada
pelo público e considerada “inimiga” da pátria.
O fato é que quando a pessoa decide ser famosa, assi-
nando um contrato para ficar confinada durante determinado
tempo, ela não renuncia seus direitos de personalidade, pois
este é um direito irrenunciável, mas há uma certa relativização,
ainda que temporária enquanto participa de um programa de
televisão, assim ocorre com as pessoas que já são famosas,
existe sim uma proteção aos seus direitos, mas nenhum direito
fundamental é absoluto, portanto a exposição em rede nacio-
nal faz com que os direitos de personalidade da pessoa sejam
diminuídos.
A imagem e a privacidade da pessoa famosa não têm a
mesma proteção que a pessoa anônima tem, durante o pas-
seio no shopping, o almoço íntimo com o parceiro, a “saidinha”
na praia, a viagem em família, a festa de aniversário, os famo-
sos são flagrados, e logo suas fotos são veiculadas em sites
de fofoca, blogues de famosos, revistas e outros.
A honra dessas pessoas é atacada com mais frequên-
cia, pois elas são conhecidas nacionalmente, e a punição para
tais atos é bem menor que se comparado com a punição para
os crimes cometidos contra a honra de uma pessoa comum da

60 | P á g i n a
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sociedade. Ficando assim comprovado que os direitos de per-


sonalidade sofrem uma certa diminuição, mas não há uma
anulação, conforme escreveu o autor Carlos Alberto:

O direito à imagem de pessoas famosas não é


ilimitado, havendo algumas restrições decorren-
tes da própria coletividade de que fazem parte:
por exemplo, a repercussão de determinados fa-
tos de interesse público, justificada pelo direito
de informação (BITTAR, 1995, p. 265).

Existem várias discussões sobre à relativização dos di-


reitos de personalidade, no Enunciado 4 da I Jornada de Di-
reito Civil do Conselho de Justiça Federal (CJF), 2006, sedi-
mentou que os direitos da personalidade podem sim sofrer li-
mitação voluntária, desde que não seja permanente e nem ge-
ral.
Diante do exposto, resta claro que a pessoa famosa tem
seus direitos de personalidade diminuídos, e pessoas anôni-
mas que participam dos programas de televisão nos formatos
de reality show, também têm diminuídos esses direitos durante
a exposição na televisão, pois logicamente a pessoa passa do
status do anonimato para fazer parte da indústria da fama.
Nem tudo fica impune, essa não é a intenção, além
disso, os direitos de personalidade, como já enfatizado aqui,

61 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

são irrenunciáveis, porém ocorre essa relativização pela expo-


sição da pessoa na televisão, não há que se falar em privaci-
dade quando em dado momento a pessoa encontra-se confi-
nada e submetida às câmeras de segurança durante 24 horas,
na intenção de ficar conhecida e agradar ao público, podendo
finalmente ganhar o prêmio, caso sua permanência seja man-
tida até o final do reality.
Os direitos de imagem e privacidade ficam seriamente
comprometidos durante a participação das pessoas nos reality
shows, mas há ainda a honra objetiva e subjetiva dessas pes-
soas. Essas pessoas também têm essa honra diminuída até
certo ponto, pois com a exposição de sua imagem e de sua
privacidade, certamente o público irá atacar a honra dessas
pessoas, pois a exposição em rede nacional traz o bônus que
a pessoa precisa para alavancar sua carreira, entretanto traz
também ônus.
A autora Roxana Borges escreveu o seguinte sobre a
disponibilidade relativa dos direitos de personalidade:

A disponibilidade relativa dos direitos de perso-


nalidade reside na possibilidade da cessão de
uso de alguns desses direitos, ou licença, ou per-
missão. Conforme o negócio, a cessão de uso
pode, inclusive, ser onerosa. (BORGES, 2007,
p.185)

62 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

Durante esses anos de reality na TV brasileira, assisti-


mos a cenas de crimes contra a honra subjetiva e objetiva de
pessoas confinadas em programas de televisão, além disso,
também nos deparamos com o mesmo crime sendo cometido
por pessoas de fora do reality, tentando afetar negativamente
a vida daquela pessoa que ali se encontra confinada.

Há casos em que, de forma involuntária, pratica-se a


ofensa à imagem ou à postura de outrem. Até mesmo o pas-
sado da pessoa é exposto. Isso porque com o advento da in-
ternet foi também criado um tribunal de júri da internet, o pú-
blico tornou-se uma espécie de juiz/fiscal da vida alheia, jul-
gando com rapidez e atacando de todas as formas a pessoa
confinada propensa à vítima.

A participação de um acreano no Big Brother Brasil no


ano de 2019, chamou muita atenção, principalmente porque
havia boas expectativas, pois no ano anterior da edição do
programa, uma acreana foi a favorita e levado o prêmio para
casa, no entanto, o participante não teve a mesma sorte.

Ao ganhar a visibilidade em decorrência da vinculação


de seu nome à participação no programa, o acreano Vander-
son Brito foi desclassificado, após várias denúncias e acusa-
ções de que havia cometido crimes de agressão e estupro. A
imputação de falsos crimes à pessoa é chamado de calúnia e

63 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

ofende a honra objetiva da pessoa, no mesmo ano Vanderson


foi inocentado pela justiça, mas os danos causados pelo “tri-
bunal da internet” foram irreparáveis.

Situações semelhantes aconteceram em outras edi-


ções do reality Big Brother Brasil, durante o confinamento, a
acreana e vencedora da edição de 2018, foi duramente ata-
cada por participantes da casa e pelos expectadores pela sua
origem humilde.

Rotineiramente presenciamos falas preconceituosas,


em que provocavam riso pelas suas vestes e procuram relaci-
onar sua imagem à figura indígena e até pré-histórica. Ao re-
lembrar os dinossauros, também estereotipam a participante,
ofendendo sua honra subjetiva, fazendo com que ela se sen-
tiss desprovida de beleza e fazendo associações dela a todas
as mulheres acreanas.

Obviamente, isso não foi bem-visto pela maioria do pú-


blico, fazendo com que ela se tornasse a favorita ao prêmio,
pois o público que também é um “tribunal” odeia injustiças, e
por isso fizeram questão de consolidar a vitória da acreana
nesta edição em comento.

Por outro lado, a figura da acusadora nesta edição do


reality, sofreu retaliações entre o público, foi rejeitada e teve

64 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

sua honra ofendida, praticaram inclusive xenofobismo contra


ela. Várias palavras de ódio, ameaças e xingamentos foram
desferidos contra a participante, e ainda hoje é possível per-
ceber nas redes sociais a rejeição que enfrenta entre o pú-
blico, a dificuldade para conseguir bons trabalhos, pois sua
imagem ficou manchada, associada à figura de pessoa pre-
conceituosa e opressora.

Na edição do Big Brother Brasil do ano de 2021, a Rede


Globo prometia o “Big dos Bigs”, pregando que tal edição seria
histórica. A previsão estava certa, a edição foi sucesso, que-
brou muitos recordes de edições anteriores, no entanto, o te-
lespectador não ficou livre de assistir às cenas de ofensas,
preconceitos, conspirações e ataques à honra dos participan-
tes.

A história da advogada nordestina, tagarela, agradou


ao público, sendo que a participante já começou o programa
entre os favoritos, porém não demorou muito tempo para que
a advogada conseguisse a antipatia da maioria dos participan-
tes confinados, sofrendo rejeição na casa, a participante foi
inúmeras vezes humilhada e segregada.

Começaram a ridicularizar seu sotaque nordestino, e a


desacreditar do seu caráter. Não muito diferente do que acon-
tecia na casa, no âmbito externo também acontecia situações

65 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

de xenofobismo contra advogada e maquiadora, Juliette. Ape-


sar do favoritismo disparado, muitos telespectadores agiam
com preconceito, se referindo ao nordeste como um lugar
onde só tinha seca, jumentos e analfabetos, tudo isso relacio-
nado à paraibana.

Mais uma vez nos deparamos com ataques à honra


desses participantes, os crimes previstos no código Penal e
com proteção na atual Constituição Federal, acontecem com
frequência nesse formato de programa, ganhando repercus-
são nacional e tomando proporções alarmantes entre o pú-
blico, porém com menor intensidade quando se refere à puni-
ção para este crime ocorrido contra pessoa confinada em pro-
grama de televisão, pois conforme já explicitado aqui, existe
uma tendência a diminuir a proteção desses direitos de perso-
nalidade da pessoa famosa.

O crime de injúria, previsto no artigo 140 do código Pe-


nal de 1940, é um tipo de delito que ofende a honra subjetiva
da pessoa, ou seja, afeta como a pessoa se enxerga, ataca a
sua autoestima. É gravoso atacar a honra das pessoas, e cho-
cante perceber como isso se tornou comum na sociedade e
mais ainda como isso é situação corriqueira nas redes sociais
e nos reality shows.

66 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

A participante da edição do Big Brother Brasil 20,


Thelma Assis, sofreu muitos ataques à honra subjetiva, não a
caluniaram e nem a difamaram, sua reputação na forma obje-
tiva manteve-se impecável, pois ela tinha história de luta, es-
tudou, formou-se em medicina e atuava como médica aneste-
sista até sua entrada no reality, entretanto sua honra subjetiva
foi muitas vezes atacada. Sabe aquelas vezes que você escu-
tou que o Brasil é um país preconceituoso e possui racismo
estrutural?

É possível constatar isso diariamente ao acessar as re-


des sociais e acompanhar este tipo de programa. A partici-
pante, Thelma, saiu a vitoriosa da edição, no entanto, inter-
nautas maldosos e preconceituosos praticaram injúria contra
ela muitas vezes, sendo que a equipe da médica se manifes-
tou com indignação diante de tais fatos.

Inúmeras vezes assistiu-se às cenas de preconceito


contra a participante Thelma de Assis, em decorrência da cor
de sua pele, ao estilo de seu cabelo, ao formato de seu rosto,
e até mesmo à estrutura de seu corpo.

Em um dos ataques à participante, um internauta a


comparou com um macaco e inclusive divulgou com deboche
a imagem da participante associada à imagem de um macaco.
Na época muitos famosos e fãs efetuaram campanhas contra

67 | P á g i n a
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esse tipo de ato, afirmando a equipe da participante também


se manifestou.

Um comportamento sujo e totalmente crimi-


noso. Providências já estão sendo tomadas, si-
tuações assim não serão toleradas. Infeliz-
mente não foi a primeira vez que Thelma sofreu
racismo na vida, mas nós vamos lutar assim
como esta mulher guerreira faria. RACISTAS
NÃO PASSARÃO. (TWITTER, 2020)

Casos como esses acontecem todos os dias, muitas ví-


timas nem chegam a registrar a ocorrência, tampouco se va-
lem do judiciário. Conforme a notícia publicada no jornal CNN
Brasil no dia 21 de novembro de 2021, o Ministério dos Direi-
tos Humanos recebeu 1.019 denúncias de injúria racial no ano
de 2021.
O número de ocorrência é, sem dúvida, muito maior que
este, pois muitas pessoas levam ao conhecimento do judiciá-
rio, além disso, as pessoas famosas sofrem muito este tipo de
ofensa, mas não procuram denunciar, pois seria praticamente
impossível efetuar todas as denúncias, uma vez que, às ve-
zes, em uma só foto publicada em uma rede social, ou uma
notícia veiculada em revistas e jornais, há milhares de ata-
ques, comentários maldosos, ofendendo a honra dessas pes-
soas.

68 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É fato que as pessoas consideradas celebridades e até


as subcelebridades estão mais expostas e por esta razão es-
tão mais propensas a sofrer diversos tipos de ataques. Inde-
pendente de uma pessoa famosa encontrar-se confinada ou
não, é muito mais fácil que esta sofra algum tipo de ofensa a
sua honra.
Aqui não pretende se afirmar que as pessoas famosas
vão ter sua honra ofendida e tudo ficará impune como se não
houvesse punição para isso, por outro lado, é mais difícil con-
trolar e impedir que esses ataques ocorram, pois muitas vezes
são milhares de comentários maldosos sobretudo, desde a
roupa, cabelo, tom de pede, orientação sexual.
Através de pesquisas relacionadas sobre o assunto,
restou claro que a pessoa confinada em reality está muito mais
vulnerável a ter sua honra atacada, pois muito embora os rea-
lites sejam considerados uma realidade ensaiada, as pessoas
que ali se encontram não conseguem encenar a própria vida
o tempo todo, não é como no teatro que as cortinas se abrem
e fecham em tempo programado, assim sendo, o telespecta-
dor atento enxerga sua imagem refletida no outro, se identifica,
torce, ou de outro modo, acontece o inverso, o público não
gosta do que assiste, e assim o caos na Internet é instaurado

69 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

com sucesso, é o momento em que mais se ver ofensa à honra


das pessoas.
Evidenciamos que não é possível abdicar dos Direitos
de Personalidade, pois conforme dito acima, eles são irrenun-
ciáveis e intransferíveis. Mas ficou a indagação, se não se re-
nuncia os Direitos de Personalidade, por que as pessoas usam
as redes sociais para atacar a imagem dos participantes? Por
que tanta impunidade em crimes contra a honra da pessoa?
A resposta é bem ampla, e como no Direito muitas coi-
sas dependem do caso concreto, cada situação será avaliada
individualmente e irá ser analisada a gravidade dos fatos.
Além disso, é importante ressaltar que a pessoa ao entrar no
reality não renuncia sua honra, entretanto, há sim uma certa
relativização desses direitos.
É como se eles sofressem uma diminuição em decor-
rência da exposição que a pessoa se submeteu, inclusive con-
forme já citado neste artigo, o Conselho de Justiça Federal, já
sinalizou afirmativamente que os Direitos de Personalidade
podem ser relativizados, desde que não seja permanente nem
geral, ou seja, não é tudo que pode ser dito e exposto sobre a
imagem e aparência das pessoas.
Nesse sentido, salienta-se que a honra é primordial
para a dignidade da pessoa, pois é justamente como a pessoa
se vê (honra subjetiva) e como a sociedade a enxerga (honra

70 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

objetiva), assim embora ela possa ser relativizada em casos


mencionados neste trabalho, tem que ser de forma temporária
e não geral, além disso, o judiciário é de fato a balança para
analisar justamente cada caso.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARRETO, Elis. Ministério dos Direitos Humanos recebeu


1.019 denúncias de injúria racial em 2021 CNN Brasil, Rio de
Janeiro, 21 de novembro de 2021.

BITTAR, Carlos Alberto, Reparação Civil por Danos Morais,


São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 3ª ed. P. 265.

BRASIL. Constituição Federal do Brasil. 6. ed. [S.l.: s.n.],


1988.

BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Direitos de Persona-


lidade e autonomia Privada, 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

CARLOS ALBERTO BITTAR. Curso de Direito Civil, Rio de


Janeiro, Forense Universitária, 1994.

CUPIS, Adriano de. Os Direitos de Personalidade. Campi-


nas: Romana, 2004.

ENUNCIADO número 04 da I Jornada de Direito Civil. Bra-


sília, 2006.

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Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

ESTEFAM, André. Direito penal parte especial. 36. ed. São


Paulo: [s.n.], 2020.

JESUS, Damásio. Direito Penal 2 - parte especial, São


Paulo, Saraiva, 2020, p.223

MASSOM, Cleber. Direito Penal parte Especial. 9. ed. São


Paulo: [s.n.], 2019.

NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de Direito Penal, vol. 2.


5ª ed. Rio de Janeiro, Forense, 2020.

PLANALTO. DECRETO-LEI No 2.848, DE 7 DE DEZEMBRO


DE 1940. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/cci-
vil_03/decreto-lei/del2848.htm. Acesso em: 4 set. 2022.

SUPER ABRIL. Qual foi o primeiro reality show da histó-


ria? Disponível em: https://super.abril.com.br/mundo-estra-
nho/qual-foi-o-primeiro-reality-show-da-historia /. Acesso em:
25 set. 2022.

TWITTER, # Racistas não passarão, Rio de Janeiro, 29 de


fevereiro de 2020.

72 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

3
FURTO FAMÉLICO: UMA BREVE ANÁLISE DESSE INSTI-
TUTO, A PARTIR DO CLÁSSICO DA LITERATURA FRAN-
CESA – OS MISERÁVEIS, DE VICTOR HUGO

STARVING STEAL: A BRIEF ANALYSIS OF THIS INSTI-


TUTE, BASED ON THE CLASSIC OF FRENCH LITERA-
TURE – OS MISERABLES BY VICTOR HUGO.

Janaína Raquel Oliveira Sabóia Velasquez5


Arthur Braga de Souza²

VELASQUEZ, Janaína Raquel Oliveira Sabóia. Furto Famé-


lico: uma breve análise desse instituto, a partir do clássico
da literatura francesa – Os Miseráveis, de Victor Hugo. Tra-
balho de Conclusão de Curso de graduação em Direito – Cen-
tro Universitário UNINORTE, Rio Branco, 2023.

5 Discente do 9° Período do Curso de Bacharel em Direito pelo Centro


Universitário Uninorte.
² Graduado em Direito pelo Centro Universitário Uninorte. Pós-graduado
em Direito Processual Civil pela Universidade Cândido Mendes. Servidor
Público Federal do TRF da 1ª Região. Professor Universitário no Centro
Uninorte.

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Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

RESUMO

O presente artigo trata de uma análise do instituto Furto Fa-


mélico, no campo do Direito Penal. Utilizando-se do caso de
furto de um pão, retratado no clássico da literatura francesa -
Os Miseráveis, do autor Victor Hugo. Com distinta ênfase para
o conceito de Furto Famélico, legislação abrangente, posicio-
namento de doutrinadores criminalistas e dos Tribunais Supe-
riores, assim como as jurisprudências mais importantes
acerca do assunto. Além de observações sobre suas particu-
laridades, pré-requisitos para a devida aplicação e caracteri-
zação e, obviamente, a tipificação no Direito Penal Brasileiro
atual. Todo esse conhecimento jurídico dar-se-á por meio de
uma análise direcionada, porém leve e interessante, baseada
na literatura brilhante de Victor Hugo. Partir-se-á de uma dis-
cussão sobre o cenário político, social, histórico e cultural da
época e local onde se passa a história enredo da obra, uma
França em 1862, pós-iluminismo e diante da queda da monar-
quia. Como aporte teórico, procedeu-se uma análise hipotética
sobre qual a tipificação penal dada ao crime supracitado atu-
almente. Como seria a pena ou medidas cautelares aplicadas
caso o protagonista do livro furtasse um pão no Brasil em
2023. Em suma, procedeu-se o estudo a partir do viés das ci-
ências jurídicas, neste trabalho – especificamente o Direito Pe-
nal, sem menosprezar seu possível diálogo com outras ciên-
cias, nesse caso específico, com a literatura.

Palavras-chave: direito penal; furto famélico; literatura; prin-


cípio da insignificância; subsidiariedade do direito penal.

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Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

ABSTRACT

This article deals with an analysis of the Starving Steal


institute, in the field of Criminal Law. Using the case of theft of
a loaf of bread, portrayed in the classic of French literature -
Os Miseráveis, by author Victor Hugo. With distinct emphasis
on the concept of starving steal, comprehensive legislation, the
position of criminal scholars and the Superior Courts, as well
as the most important jurisprudence on the subject. In addition
to observations about its particularities, prerequisites for
proper application and characterization and, obviously, the
typification in current Brazilian Criminal Law. All this legal
knowledge will be given through a directed analysis, but in an
interesting way, based on the brilliant literature of Victor Hugo.
It will start with a discussion about the political, social, historical
and cultural scenario of the time and place where the story plot
of the work takes place, a France in 1862, after enlightenment
and before the fall of the monarchy. As a theoretical
contribution, an analysis was carried out on the criminal
classification given to the aforementioned crime in the present
day, what would be the penalty or precautionary measures
applied if the protagonist of the book stole a loaf of bread in
Brazil in 2023. Study from the perspective of legal sciences, in
this work – specifically Criminal Law, without neglecting its
possible dialogue with other sciences, in this specific case, with
literature.

Keywords: criminal law; starving steal; literature; principle of


insignificance; subsidiarity of criminal law.

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Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

INTRODUÇÃO

O presente trabalho de conclusão de curso tem por ob-


jetivo fazer apontamentos sobre a natureza jurídica do instituto
do furto famélico a partir da análise do caso contido no livro:
os miseráveis, de Victor Hugo. Em cuja obra, Jean Valjean
(protagonista da história) furta um pão e fica preso em regime
fechado, por 19 (dezenove) anos.
O foco da pesquisa deu-se mediante análise do caso
concreto e devidas considerações à luz do conceito e natureza
jurídica do furto famélico, citando as principais discussões teó-
ricas, doutrinárias e jurisprudenciais acerca do tema. Bem
como esclarecimentos inerentes ao delito analisado, como a
distinção e particularidades entre as tipificações dos crimes de
furto e roubo. Assim como qualificadoras aplicáveis no direito
penal brasileiro.
Não obstante, apontamentos relativos a princípios do
direito penal e processual penal brasileiro, intrinsecamente
correlacionados ao tema pesquisado, como o princípio da in-
significância e suas especificidades necessárias à devida clas-
sificação; princípio da subsidiariedade do direito Penal; o prin-
cípio norteador do direito penal - última ratio e os princípios
originários do direito alemão (razoabilidade e proporcionali-
dade). Cabendo ainda ressaltar demais temas do direito penal

76 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

como excludentes de ilicitude (especificamente, o estado de


necessidade).
Por fim, também far-se-á uma breve abordagem de pe-
ríodos que impactaram a sociedade da época da obra e con-
sequentemente, mudaram os rumos do mundo até hoje, já que
foram eventos que direcionaram as ciências e o conhecimento
existente, trazendo impactos e gerando mudanças inclusive
para o direito penal, a exemplo do lema “Liberdade, igualdade
e fraternidade” que se tornou conhecimento basilar para o de-
senvolvimento das gerações dos direitos fundamentais, com o
intuito de dar abertura a um espaço de discussão e reflexão
sobre a evolução dos direitos humanos da pessoa e do con-
ceito de dignidade em um direito fundamental tão básico como
a alimentação, a partir de um comparativo histórico de uma
França em 1862 impactada pela revolução francesa.

3.1 DA CORRELAÇÃO ENTRE A OBRA E O DIREITO


PENAL

Os miseráveis, do célebre autor Victor Hugo. Tornou-se


uma obra mundialmente famosa e reconhecida como um dos
melhores romances já escritos. Literatura crítica e a frente de
seu tempo, é um famoso clássico da literatura francesa. A obra
foi publicada no ano de 1862, sendo considerada por alguns

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Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

especialistas da área como uma das obras mais importantes


da carreira de Victor Hugo, não só por ser muito vendida e
consequentemente, reconhecida e famosa. Mas por focar em
um viés social, brilhantemente crítico, que defende com viva-
cidade e engajamento o ideal de liberdade. Bem como a de-
núncia à miséria e problemas sanitários de uma França pós-
queda da monarquia e enfrenta grandes e importantes ques-
tões políticas e principalmente sociais, levadas a lume pela
Revolução Francesa.
Como já supracitado, sua publicação data do ano de
1862. Ou seja, uma época marcante na história da sociedade
francesa, que se destaca pela ocorrência de eventos muito im-
portantes, os quais desencadearam novos rumos à França e
consequentemente ao mundo. Ademais, aqui fala-se sobre a
Revolução Francesa, não obstante, é sabido por todos que as-
sim como o Iluminismo, a revolução francesa não trouxe mu-
danças apenas à França, mas a todo à comunidade mundial.
Para todas as sociedades, ciências, construção do conheci-
mento atual existente e para a história, de uma forma geral.
Enfatiza-se a contribuição às ciências e especialmente ao Di-
reito - tema do presente trabalho. E ainda que este trabalho
objetive destacar os aspectos jurídicos apenas à frente, em
capítulo específico. Introduzir-se-á que a Revolução Francesa
foi a inspiração para as dimensões dos Direitos fundamentais

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Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

e/ou Direitos Humanos, já que ambos se distinguem apenas


por sua positivação em normas distintas.
O lema da Revolução Francesa “Liberdade, Igualdade
e Fraternidade” foi inspiração para a 1ª, 2ª e 3ª geração de
Direitos Fundamentais, respectivamente. Por conseguinte, e
como destacado anteriormente, além de trazer discussões bri-
lhantes sobre dilemas morais, sociais sendo atuais em nossa
sociedade. O livro traz de forma envolvente e emocionante, os
impactos e mudanças que a Revolução Francesa desenca-
deou nas pessoas, nas instituições, no país, no mundo e cla-
ramente, nos valores da sociedade, em uma reflexão mais am-
pla.

3.1.1 RELEVÂNCIA DO LIVRO OS MISERÁVEIS E SEU


CONTEXTO SOCIAL, CULTURAL, ECONÔMICO E ARTÍS-
TICO

Como a publicação da referida obra se deu após a


queda da monarquia francesa, há uma forte discussão em
cada parte do texto que leva o leitor a se envolver e conhecer
um pouco da questão política e social desencadeada pela Re-
volução Francesa. Do ponto de vista da análise literária, cabe
destacar que o livro em tela foi um grande marco do movi-
mento literário Romantismo.

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Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

A crítica social e política é muito forte em todo o enredo,


em virtude de todo o cenário, locais e situações que integram
a obra, levarem o leitor a ver evidenciado em cada momento:
a situação de total miséria, desamparo e esquecimento que os
mais pobres viviam. Por tal motivo, até os dias atuais, Victor
Hugo é elogiado por criar uma obra tão divina e relevante, que
ousadamente deu destaque e referência, de forma artística, às
críticas voltadas a problemas tão graves como a desigualdade
social, a fome e a miséria.
Além do apontado, destaca-se que no ano de publica-
ção da obra, o país ainda vivia os efeitos da revolta decorrente
da revolução. E sim, essa foi a revolta que mais impactou o
mundo. Ocorrida entre 1789 e 1815, levou o povo às ruas. Na
obra, encontramos dos prisioneiros às prostitutas, militares,
padres, estudantes, pessoas com sede de revolução e mem-
bros da alta sociedade. O autor brilhantemente utilizou seus
personagens das mais variadas classes sociais e credos dife-
renciados, para mostrar como os problemas sociais retratados
no livro atingem a todos, mas obviamente com maior intensi-
dade, os mais pobres.
Para além da revolução Francesa, temos ainda outros
dois acontecimentos que dão base ao cenário explorado inte-
ligentemente e sagaz pelo autor que foram: A batalha de Wa-
terloo (ocorrida entre 1814 e 1815, foi decisiva e um grande

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Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

combate que envolveu militares e forças francesas, russas,


austríacas, britânicas e prussianas. Nesta batalha, Napoleão
Bonaparte saiu derrotado e desta forma, pôs-se fim ao império
na França. Ou seja, o contrário do que ocorrera em outros pa-
íses, em que mesmo a Monarquia sendo derrotada, foi poste-
riormente restaurada) e especialmente os Motins de Paris em
1832 (revoltas burguesas na Europa.
Na verdade, dito de outra forma, foi um motim contra a
restauração e/ou retorno da monarquia. A maioria eram estu-
dantes universitários que queriam derrubar o rei Luís Felipe I).
Ou seja, esse clássico e best-seller é de notória relevância por
apresentar essa França do século XVII, enfatizar a desigual-
dade social e outros temas tão importantes para construção
de uma sociedade ideal, justa e igualitária que o mundo busca.
Os Miseráveis é de um sucesso invejável. Essa obra-
prima já foi publicada por diversas vezes. Adaptada para o te-
atro e cinema e já tendo sido premiada com 3 estatuetas do
Oscar da Academia de Hollywood em 2013, sempre deixando
fascínio e encantamento nas pessoas que se dão a honra de
desfrutar da leitura de um livro tão valioso por trazer tanto co-
nhecimento e sensibilidade.
Tanto que como a situação de miserabilidade na França
nos é apresentada pelo autor gera impacto no leitor, causando
reflexão ao gerar um paradoxo se comparada com o contraste

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Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

visível e a falta de proporcionalidade dos gastos do Imperador


Napoleão III. Logo, para situar mais o leitor, a história se passa
na França entre 1815 e 1832.
Deixa-se agora um trecho da obra correlacionado ao fa-
lado acima: “Houve uma época em que matamos o rei, tenta-
mos mudar o mundo muito rápido, agora temos outro rei, ele
não é melhor que o anterior. Esta é a terra que lutou pela li-
berdade. Agora, quando lutamos, lutamos por pão”. (HUGO,
VICTOR. 2020)

3.1.2 A OBRA: OS MISERÁVEIS E SEU ENREDO

A obra Os miseráveis apresentam notória relevância


social por investigar um problema tão recente e, simultanea-
mente, atemporal, que choca a população: a miséria e o de-
sespero de um ser humano que furta alimentos para si e para
sua família na ânsia de enganar a fome cruel e avassaladora
que grita por suas entranhas.
O desespero de um homem pobre que ao perder seu
emprego, e tendo que sustentar sua irmã viúva e seus sobri-
nhos, sentindo uma fome que rasga seu estômago, mas que
rasga ainda mais sua alma e seu coração ao ver os seus, es-
pecialmente as crianças indefesas sem ter um pão para co-

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Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

mer. Então, em um ato de desespero, furta um pão para ali-


mentá-los.
E, por causa desse ato, é condenado a trabalhos força-
dos e a uma pena que ao final contabiliza 19 anos de prisão.
A prostituição praticada pelo desespero de uma mulher ao ter
que sustentar a filha, a desigualdade de classes, a falibilidade
da justiça e a misericórdia dada por um bispo que consegue,
de fato, enxergar e acreditar na ressocialização de um conde-
nado.
Como já supracitado, mas contando de uma forma mais
detalhada, os miseráveis conta cativantemente e usando um
belo e envolvente roteiro, a história de Jean Valjean. Homem
pobre, francês, que perdeu o emprego. E ficando desempre-
gado se vê à deriva procurando emprego, porém ainda que
tentando por todos os meios, não encontra saída. Vê-se deso-
lado, sem quaisquer tipos de rendas e sem um tostão no bolso,
nem a quem pedir ou recorrer.
Desamparado pelo Estado e à margem de uma socie-
dade desigual que o considerava apenas um invisível, mais
um “miserável qualquer”. No auge desse desespero, e tendo
nesse tempo tão difícil recebido outra missão ainda mais difícil:
cuidar da irmã viúva recentemente e de seus sobrinhos órfãos
que choravam de fome. Jean Valjean perdeu seus pais cedo

83 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

e foi criado justamente por essa irmã mais velha. Mas, agora
viúva e com sete filhos para criar.
Nosso protagonista se dispõe a sustentá-la. Então, ao
final de mais um dia saindo de casa atrás de emprego, qual-
quer trabalho ou serviço imediato que ao menos lhe desse um
prato de comida ou um pão para levar para sua família, ele se
vê sem saída e ao passar por uma padaria, no pico alto da dor
da miséria e negligência social, ele quebra o vidro de uma pa-
daria e furta um pão. Então é capturado pela polícia, preso e
condenado à prisão por cinco anos em uma sede de trabalhos
forçados, braçais e local extremamente rígido.
Preso e extremamente revoltado com toda essa situa-
ção de injustiça à qual é submetido, após ser condenado a 5
(cinco) anos de regime fechado na prisão de Bicentrê, ele ela-
bora e executa planos e tentativas de fugas. E a cada fuga
dessas, a pena dele vai sendo aumentada até contabilizar o
total de 19 anos de prisão.
O enredo é forte, comovente e faz até o ser humano
mais duro e insensível ser levado a um momento de reflexão.
Como toda a narrativa se passa acompanhando Jean Valjean,
chega a ser possível sentir seu sofrimento ao ir virando as pá-
ginas, e de certa forma vivenciando sua trajetória. Condenado
ao trabalho forçado e, depois de tantas tentativas de fuga, ele
vive então 19 (dezenove) anos de sua vida, preso.

84 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

Na saída, um homem já sem esperança de um futuro


melhor, corroído pela mágoa e revolta da injustiça vivida.
Amargo e revoltado pelo sistema, recebe então uma folha de
papel amarela que deverá mostrar aonde for, a prova de seu
passado. O registro de sua maior dor, a marca que carregará
e que o fará consequentemente ser rejeitado e que traz um
futuro provável de uma existência à margem da sociedade. Já
que conforme constatado por todos, a ressocialização é muito
bonita na teoria, mas na prática diária é apenas uma bela e
infactível utopia.
A seguir, um trecho do livro, contido na página 9, da
edição 2020, da editora Principis, com adaptação de Júlio Emí-
lio Braz:

Jean Valjean sentia tais sentimentos na carne e


impressões há mais tempo de que se recordava.
Provavelmente se lembrava, afinal de contas,
quem se esquece de uma ofensa recebida ou vi-
olência sofrida? [...] Tudo se fizera insuportavel-
mente igual e rotineiro desde que os muros da
prisão ficaram para trás. Tola ilusão, constatava
após um daqueles intermináveis dias longe de-
les. Em certa medida, jamais os abandonara. Po-
dia senti-los em torno de si a cada segundo, sem-
pre que aqueles olhares o alcançavam ou exami-
navam escrupulosamente. Sempre que se via
parado por soldados na estrada ou por policiais
nas vilas e cidades por onde passava. Estigma
monstruoso, por mais que disfarçasse ou ten-

85 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

tasse dissimular, algo nele, em seu comporta-


mento, quem sabe, nos seus olhos duros e res-
sentidos por conta de antiga e imperecível jus-
tiça, aqueles olhos o despiam de qualquer más-
cara de que pudesse se valer para esconder o
passado de presidiário (BRAZ, 2020, p.9)

Dando continuidade ao roteiro, ao ser liberto, após to-


dos os 19 anos em regime fechado. Ele é expulso de uma hos-
pedaria (justamente por seu passado de prisioneiro). Sem ter
onde ficar e intencionando já sem outra saída, dormir na rua.
Porém, um bispo o acolhe, monsenhor Bienvenu – religioso
conhecido por sua bondade e apreço para com os pobres.
O bom bispo de Digne, se chamava, na verdade, Char-
les-François Bienvenu Myril, nascido de família nobre, ficou vi-
úvo quando perdeu sua esposa para uma doença pulmonar
grave, enquanto moravam na Itália. Sem filhos e já sem famí-
lia, se viu no ápice da angústia e escuridão dentro de si, en-
quanto o cenário externo era de sangue, morte e destruição
durante a revolução de 1793 na França.
Então, acometido pela depressão, o último estágio da
dor humana, pensou e quase praticou o suicídio. Mas Deus o
salvou quando ele se voltou para a religião, e assumiu como
propósito de vida, ser instrumento de Jesus na terra e tocar a
vida das pessoas que ele encontrasse sem esperança em seu
caminho, assim como um dia ele já estivera.

86 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

E foi exatamente isso que ele fez na vida de Jean Val-


jean, como na de tantos outros. Acolheu Jean Valjean em sua
casa, o qual já acostumado com parte da sua vida sendo tra-
tado pior que animal, ficou embasbacado com tanta bondade.
E constatamos isso lendo na pág. 12, quando ele nervoso já
vai confessando ao padre ser um ex-presidiário.
Concomitante, retirou e desdobrou a folha amarela que
carregava no bolso, e disse: “Minha declaração de liberdade.
Tenho que carregá-la para onde for e apresentar a qualquer
um que encontre, mesmo quando ele não solicitar”. Todavia,
o padre diz que a apresentação do documento era dispensável
naquele momento e se assusta ao saber que ele ficou preso
por 19 anos por furtar um pão. No seguinte diálogo da pág. 13
temos um ponto alto do livro que foca no objetivo do presente
trabalho: a dor, a miséria e as marcas do furto famélico:

-Economizei durante os dezenove anos que pas-


sei na prisão…
- Santo Deus, homem! – espantou-se o religioso
- Que crime tão grave cometestes para ficar tanto
empo preso?
Os olhos de Jean Valjean iluminaram-se, uma
centelha de antiga indignação e revolta darde-
jando a escuridão.
- Um pão - respondeu, entredentes, calando-se
em seguida quando Magloire (empregada do pa-
dre) retornou com uma fumegante terrina de

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Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

sopa que colocou na mesa. (HUGO, VICTOR.


2020, p.13)

Dado o exposto, o livro os Miseráveis é uma obra de


arte que retrata com maestria a desigualdade social, a miséria,
os valores em seu contraste entre ética e moral, o preconceito
social e a elite corrupta da França, além de trazer rico conhe-
cimento histórico.

3.1.3 DO AUTOR: VICTOR HUGO

O incomparável autor que foi não apenas um escritor.


Mas que carrega também em seu currículo os títulos de dra-
maturgo, romancista, poeta, ensaísta, artista e bacharel em di-
reito. Além de ter tido grande atuação política em seu país. Foi
um importante participante político de sua época, sempre en-
gajado em causas sociais e na luta contra a desigualdade so-
cial. Atuou como Senador e Deputado. Era detentor de muitas
ideias de transformação social e grande crítico da sociedade.
Criticava seu círculo social e os nobres esnobes. Todavia, de-
fendia o enriquecimento lícito, por meio do esforço e trabalho
duro. Um grande idealista.
É interessante ressaltar que é nítido ver seus valores e
o que acreditava em sua obra. Traz nesse livro, dilemas que

88 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

mesmo após 160 anos de sua primeira publicação, conse-


guem (infelizmente) ainda ser tão atuais no mundo de uma
forma geral, como a miséria e consequentemente a fome.
Cabe aqui ressaltar também “O corcunda de Notre Dame” (ou-
tro grande sucesso) e muitas outras obras. Seu acervo é
vasto.
Victor Hugo, como já citado, formou-se em direito. Po-
rém, apenas por vontade de seus pais. Pois, após formado,
seguiu seus instintos literários e políticos. E essa grande obra,
na qual nos aprofundaremos, trata exatamente disso, de uma
obra política e crítica, que faz qualquer leitor viajar em suas
linhas e imaginar os cenários relatados por esse brilhante au-
tor e ficar a se perguntar os motivos sociais, históricos, cultu-
rais e econômicos de tais mazelas tão presentes na atual so-
ciedade. E que título mais incrível e sugestivo como Os Mise-
ráveis.
Uma palavra que significa, segundo o dicionário Aurélio
(online): muito pobre/paupérrimo e também sem valor, sem im-
portância. Um título bem sugestivo e que se encaixa perfeita-
mente a uma brilhante denúncia social. A abordagem da fome
e dos sofrimentos humanos é brilhante. Pois, ele não foca no
sofrimento econômico em si, mas no que a falta de condições
ocasiona na vida das pessoas: genial!

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Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

Como o autor destacou na referida obra, o brilhante


pensamento que resume tudo que foi dito até aqui:

Enquanto por efeito de Leis e Costumes, houver


proscrição social, forçando a existência, em
plena civilização, de verdadeiros infernos, e des-
virtuando, por humana fatalidade, um destino por
natureza divino; enquanto os três problemas do
século - A degradação do homem pelo proletari-
ado, a prostituição da mulher pela fome e a atro-
fia da criança pela ignorância - Não forem resol-
vidos; enquanto houver lugares onde seja possí-
vel a asfixia social. Em outras palavras, e de um
ponto de vista mais amplo ainda... Enquanto so-
bre a terra houver ignorância e miséria, livros
como este não serão inúteis.(HUGO, Victor.
2020, p.7)

Diante desta breve abordagem, é possível citar o insti-


tuto que será o tema central do presente trabalho: o furto fa-
mélico. Acompanhado obviamente de outros institutos que es-
tão diretamente correlacionados ao tema: princípio da insigni-
ficância, estado de necessidade, razoabilidade e proporciona-
lidade, direito penal como “última ratio”, subsidiariedade do di-
reito penal, direito penal do inimigo, atenuantes da pena (es-
pecialmente, a ausência de antecedentes criminais); distinção
entre os crimes de furto e roubo e suas peculiaridades. E, con-
sequentemente, legislações relacionadas, jurisprudências re-
levantes e doutrinas acerca dos temas.

90 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

3.2 DO CRIME A SER ANALISADO SOB A ÓTICA DO


DIREITO PENAL BRASILEIRO

O código penal brasileiro, datado do ano de 1940, traz


tipificado o crime de furto em seu art.155 com a seguinte re-
dação:

Art. 155 - Subtrair, para si ou para outrem, coisa


alheia móvel:
Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.
Furto qualificado
§ 4º A pena é de reclusão de dois a oito anos, e
multa, se o crime é cometido:
I - com destruição ou rompimento de obstáculo à
subtração da coisa.

Conforme o dispositivo, pode-se perceber que caso


Jean Valjean, do ponto de vista do Código Penal, cometesse
o ilícito penal de furtar um pão no Brasil, seu ato seria em pri-
meiro momento classificado como furto. Pois, ainda que no li-
vro, a nomenclatura faça referência a roubo, no Brasil, a tipifi-
cação correta seria furto, tendo em vista que tal conduta foi
praticada sem violência ou grave ameaça à pessoa. O caso
concreto aqui analisado seria então um furto qualificado, dito
de outra forma: um furto (Jean Valjean subtraiu para si ou para

91 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

outrem, uma coisa alheia móvel - o pão), com a qualificadora


de rompimento de obstáculo (o vidro quebrado da padaria).
Cabe destacar que no conceito de coisa alheia móvel,
referente ao furto, essa “coisa” deve ser economicamente
apreciável. Desta forma, algo que tenha valor econômico. Po-
rém, pela doutrina majoritária, se houver um interesse moral
ou sentimental na coisa - desde que relevante - a depender da
análise do caso concreto, também poderá restar configurado
o furto. Nucci, outrora já se manifestou sobre o assunto, no
Código Penal comentado, (2013, p. 783): “Coisa puramente de
estimação: entendemos não ser objeto material do crime de
furto, pois é objeto sem qualquer valor econômico [...] A dor
moral causada no ofendido deve ser resolvida na esfera civil,
mas jamais na penal, que não se presta a esse tipo de repa-
ração”.
Segundo os ensinamentos do doutrinador Rogério
Sanches, ambos os crimes, tanto de furto como de roubo, são
crimes contra o patrimônio. Todavia, ambos se distinguem.
Entrementes, a título de distinção básica, é importante
iniciar esclarecendo que ambos os crimes estão tipificados no
código penal brasileiro e são rotineiramente confundidos.
Tanto que mesmo nas traduções brasileiras, o crime praticado
por Jean Valjean é como já destacado, confundido com roubo.
Embora, seja, de fato, um crime de furto com rompimento de

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obstáculo, ou seja, um crime qualificado e não privilegiado. O


dispositivo que retrata o crime de roubo se encontra no art.
157 do CP e traz a seguinte disposição literal:

Art.157. Subtrair coisa móvel alheia, para si ou


para outrem, mediante grave ameaça ou violên-
cia à pessoa, ou após havê-la, por qualquer
meio, reduzido à impossibilidade de resistência.
Pena: reclusão, de quatro a dez anos, e multa
(BRASIL,1940).

Ou seja, consoante o artigo supracitado, para haver a


configuração do crime de roubo é necessário que haja os se-
guintes pré-requisitos:

a) Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem;


b) que tal subtração ocorra por meio de grave ameaça
ou violência à pessoa;
c) ou, depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à
impossibilidade de resistência. Dito de outra forma, se-
gundo Rogério Sanches.

O crime de roubo é complexo, unidade jurídica


que se completa pela reunião de dois tipos pe-
nais: furto (art. 155, do CP) e constrangimento
ilegal (art.146 do CP). Tutela-se, a um só tempo,
o patrimônio e a liberdade individual da vítima.
Em que pese a clara gravidade do crime, que

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pode atingir não só o patrimônio da vítima, como


também sua integridade física, o Código Penal
não o classificou como delito contra a pessoa.
(SANCHES, 2022, p.357)

Noronha (1958), descreve ainda no código penal brasi-


leiro comentado, p. 161:

A razão é que a maior ou menor gravidade da


ação física do crime, por si só, não o desnatura.
Desde o furto simples até o latrocínio, isto é,
desde a forma menos grave até a mais qualifi-
cada, todos eles são patrimoniais. Constituem
uma escala, cujos graus são dados pela gravi-
dade crescente da ação do delinquente, e pelo
dano: porém, na essência, constituem sempre o
mesmo delito: furto, isto é, a subtração da coisa
alheia móvel. Esta é a finalidade do criminoso, é
o fim a que se propõe.

Ou seja, para ser caracterizado o roubo próprio, o caso


concreto em sua hipótese precisa conter a realidade de que o
agente, uma vez que está buscando se apropriar do patrimô-
nio alheio, empreende em sua tentativa de apoderar-se:

1. De violência (aqui a violência cometida pode ser en-


tendida como o emprego de força sobre o corpo da ví-
tima. Ou seja, seria constrangê-la fisicamente);

2. De grave ameaça (a conceituação de grave ameaça

94 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

é um pouco mais complexa, tendo em vista que a inter-


pretação deste pré-requisito foge da esfera física e
adentra na esfera mental. Embora, conforme o primeiro
requisito de violência, haja uma ameaça física). A grave
ameaça consiste em um “jogo” mental, uma ameaça
psicológica que constrange e coage a vítima psicologi-
camente. Exemplificando, seria uma promessa ou ame-
aça de castigo ou causar mal naquela.

Nas palavras de Bento de Faria (1961): “É toda coerção


de ordem subjetiva que se exerce sobre alguém para
passividade diante da subtração de que é vítima; é a
pressão moral realizada pelo medo ou pelo terror sobre
o ânimo da vítima”.

3. Qualquer outro meio capaz de impossibilitar a vítima


de resistir ou defender-se. (Esse requisito se refere ao
modus operandi do autor. Como se uma alternativa
e/ou complementação ao primeiro e segundo requisitos
- violência e grave ameaça. Esse possível meio para
resistir ou defender-se, retira da vítima a sua capaci-
dade de oposição e resistência ou defesa, como supra-
citado acima e expresso no próprio dispositivo. Uso de
soníferos, hipnose, e emprego de drogas variadas para
dopar a vítima, são bons exemplos).

95 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

Assim, diante do exposto, chega-se através dessa sim-


ples definição e diferenciação do crime de furto e roubo que
embora sejam muito parecidos e destinados ao mesmo fim:
subtrair coisa móvel alheia. O modus operandi de ambos é
distinto. No crime de roubo há emprego de violência, grave
ameaça e/ou impedimento da vítima defender-se pelos meios
já apontados.
No crime de furto, não existe a necessidade de preen-
chimento de tais requisitos na situação fática. Brevemente,
sob sua caracterização jurídica, e cumprimento de seus requi-
sitos básicos de tipificação. Basta o sujeito ativo (qualquer
pessoa pode ser, exceto o próprio proprietário, por dedução
lógica) ter, enquanto conduta, se apoderar, como diz no dis-
positivo - para si ou para outrem - de coisa alheia móvel. E ter
como voluntariedade o dolo, ou seja, uma vontade consciente
de que essa apoderação seja definitiva (sem intenção de de-
volver, se tiver essa intenção de devolução a doutrina classi-
fica como furto de uso).
Segundo a teoria da consumação “amotio (apprehensio
ou)” adotada pelo STJ, o momento consumativo do furto e do
roubo acontece no momento da inversão da posse, ou seja,
quando o agente (que comete o ilícito) se torne efetivo possui-
dor da coisa, ainda que não seja mansamente e pacífica. Em

96 | P á g i n a
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outras palavras, no momento em que o objeto sai da posse da


vítima.
Tendo inclusive, tendo sido pacificado e apontado tal
entendimento na súmula 582, do Superior Tribunal de Justiça:

Consuma-se o crime de roubo com a inversão da


posse do bem, mediante emprego de violência
ou grave ameaça, ainda que por breve tempo e
em seguida à perseguição imediata ao agente e
recuperação da coisa roubada, sendo prescindí-
vel a posse mansa e pacífica ou desvigiada.
(2022)

Como já citado, Jean Valjean furtou um pão de uma pa-


daria. Ele não ameaçou nem agrediu ninguém, ou seja, não
usou de violência e nem de grave ameaça. Ao menos, não há
nenhum relato de tal conduta no livro, então o presente traba-
lho ater-se-á apenas ao expressamente escrito e contido no
enredo sem abrir espaço para imaginação ou suposições fan-
tasiosas que deem margem a interpretações diversas acerca
do caso concreto em análise. Em suma, uma posse mansa e
pacífica.
O leitor pode perguntar-se: mas, e o fato de ele ter
usado da força para quebrar o vidro da padaria para alcançar
o pão?

97 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

Certo. No crime de roubo, a violência tem de ser voltada


contra a pessoa, tal qual diz o Código Penal e na doutrina do-
minante e jurisprudência consolidada, como já apontado
acima. É consenso na doutrina e na jurisprudência que se a
violência é contra a coisa (no caso o vidro da padaria), tal fato
não caracteriza roubo, mas pode ser um furto com rompimento
de obstáculo. Ou seja, um furto qualificado.
Explana-se tal informação voltando-se novamente à lei
e focando no parágrafo 4°, inciso I, do art.155 que traz a se-
guinte redação: “A pena é de reclusão de dois a oito anos, e
multa, se o crime for cometido: I. Com destruição ou rompi-
mento de obstáculo à subtração da coisa;”
Como exposto acima, definiu-se o conceito de furto em
sua forma qualificada. Caracterizado pela contemplação da hi-
pótese do art. 155, § 4º em seu inciso I, sendo o aplicável ao
caso concreto em tela neste trabalho. Logo, Jean Valjean,
mesmo sem aplicar violência contra ninguém, destruiu um
obstáculo com o fim de subtrair a coisa.
Como bem explica Nélson Hungria, em sua obra Co-
mentários ao Código Penal.

Notadamente quanto ao modo de execução, o


furto pode revestir-se de circunstâncias que lhe
imprimem um cunho de maior gravidade, por isso
que traduzir um especial quid pluris no sentido de

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Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

frustrar a vigilante defesa privada da proprie-


dade. Tais circunstâncias, taxativamente enume-
radas pela lei, entram, então, a funcionar como
‘condição de maior punibilidade’ (agravantes es-
peciais, majorantes, qualificativas), e o furto se
diz qualificado. (HUNGRIA, 1949, v.9)

O inciso I, trata da destruição ou rompimento do obstá-


culo, esse elemento que qualifica o crime de furto simples, do
art. 155, do Código Penal. Diz respeito à conduta tipificada do
agente que destrói impedimentos à subtração da coisa. Como
exemplos, podem ser citados, em um primeiro momento e em
destaque, a quebra do vidro da padaria - do caso em tela do
presente trabalho. Por conseguinte, a degradação, arromba-
mento, rompimento, destruição (parcial ou total) de vidros, cer-
cas, muros, portas, janelas, grades, cadeados, cofres, e fecha-
duras que visam a proteger o patrimônio do proprietário do
bem.
Finalizando então essa distinção básica e breve análise
dos crimes de furto e roubo, chega-se ao seguinte questiona-
mento: Para o furto, é necessário que haja o elemento subje-
tivo caracterizador do delito - Animus furandi. No que tange ao
caso de Jean Valjean, ele estava em desespero para alimentar
sua família. Mas a grande pergunta que não quer calar... O
furto famélico (para saciar a fome) é crime? Veja-se um pouco
adiante, a análise do caso concreto.

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3.3 FURTO FAMÉLICO NA DOUTRINA BRASILEIRA

Conforme os ensinamentos do doutrinador Rogério


Sanches, o furto famélico trata do furto com intenção apenas
e unicamente de saciar a fome. Ou seja, aquele que comete
esse ato ilícito, geralmente o faz para si e para sua família que
se encontra em estado de miséria e sem possibilidade de outra
alternativa. Tal conceito se encontra, reconhecido pela juris-
prudência dominante, amparado no estado de necessidade,
expresso no art. 24, do Código Penal, que diz:

Art. 24 - Considera-se em estado de necessidade


quem pratica o fato para salvar de perigo atual,
que não provocou por sua vontade, nem podia
de outro modo evitar, direito próprio ou alheio,
cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razo-
ável exigir-se.
§ 1º - Não pode alegar estado de necessidade
quem tinha o dever legal de enfrentar o perigo.
§ 2º - Embora seja razoável exigir-se o sacrifício
do direito ameaçado, a pena poderá ser reduzida
de um a dois terços. (BRASIL, 1940)

Porém, Sanches (2022) destaca que ainda que a juris-


prudência reconheça o furto famélico amparado no estado de
necessidade como supracitado. É necessário que estejam
presentes 4 (quatro) requisitos, nomeados por ele como “ônus
da defesa”. Os quais são:

100 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

a) que o fato seja praticado para mitigar a fome;


b) que seja o único e derradeiro recurso do agente
(inevitabilidade do comportamento lesivo);
c) que haja a subtração de coisa capaz de diretamente
contornar a emergência; e
d) a insuficiência de recursos adquiridos pelo agente
com o trabalho ou a impossibilidade de trabalhar.

Percebe-se, claramente, que é perfeitamente possível


e adequado a adequação desses requisitos ao caso concreto
do furto de Jean Valjean. Conforme detalhamento adiante.

Em primeiro lugar, no que se refere ao primeiro requi-


sito, o livro de Victor Hugo deixa bem claro que o protagonista
de Os Miseráveis estava em desespero por não conseguir ali-
mentar sua irmã viúva e seus sobrinhos. E, por isso, em um
ato desesperado, cometeu o ilícito penal quebrando o vidro da
padaria e furtando um pão. E sendo ainda após isso conde-
nado a trabalhos forçados, onde teria sua pena totalizando 19
anos de reclusão, sem quaisquer aplicações de institutos des-
penalizadores.
Quanto ao segundo requisito do ônus da defesa, é fato
que ele estava há dias procurando emprego e não encontrava.

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E só cometeu tal ato ilícito por não ter outra saída. Conforme
o caso concreto analisado, não foi nem por sua própria fome
o motivo principal. Mas, por não suportar ver a fome de seus
7 sobrinhos. Era seu único e derradeiro recurso, ele simples-
mente não tinha outra opção.
Relativamente ao terceiro requisito que afirma ser ne-
cessário que a subtração de coisa (o pão) seja capaz de dire-
tamente contornar a emergência. Também foi atendido, afinal
pão é um alimento e logicamente destinado a saciar a fome de
quem o consome. Importante destacar aqui que segundo o
Superior Tribunal de Justiça, não se admite o furto famélico na
subtração de uma televisão, um botijão de gás, um celular, um
liquidificador ou quaisquer outros objetivos que não sejam ali-
mentos. Sob o argumento que a res furtiva não autoriza que o
agente teria agido sob influência de falta de alimentação (LEX-
STJ 152/266).
E por fim, o último requisito a ser analisado é preen-
chido por Jean Valjean, o qual seria a insuficiência de recursos
adquiridos pelo agente com o trabalho ou a impossibilidade de
trabalhar. Como enfatizado, o agente do caso concreto anali-
sado estava há um longo período desempregado, e mesmo
procurando diariamente uma oportunidade para trabalhar e ter
uma renda, a fim de sustentar-se, bem como aos seus. Nada
havia conseguido e então tomado pelo desespero, se rende

102 | P á g i n a
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ao furto de um mísero pão. Fato este que expõe a miséria


como uma legítima causa social a ser resolvida.
Em suma, Jean Valjean atende a todos os requisitos do
furto famélico e a situação em que cometeu o ato ilícito tam-
bém seria julgada como estado de necessidade, segundo o
art. 24, do Código Penal, anteriormente citado.

3.4 PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA: CORRELAÇÃO DA


RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE

Como já visto, a conduta típica de Jean Valjean se clas-


sifica como furto famélico. Porém, temos ainda que falar do
princípio da insignificância ou também conhecido como princí-
pio da bagatela, para ser analisado por manter total ligação
com o fato em tela.
Este princípio tem como fundamento que o Direito Pe-
nal não deve se ocupar de pequenas condutas, ilícitos que não
ocasionam de fato um grande prejuízo à sociedade, bem como
ao indivíduo lesado. Ou seja, dito de outra forma: não conduzir
a juízo condutas “insignificantes” como um arranhão, um be-
liscão, o furto de um real ou de uma escova de dentes. Enfim,
dentre tantos outros exemplos.

103 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

O que remete tal reflexão ao princípio da subsidiarie-


dade do Direito Penal, sob a ótica e perfeita definição de Ro-
xin, na obra Problemas básicos del derecho penal. Madri,
Reus, p.21-22 (1976):

O Direito Penal é subsidiário por natureza, ou


seja, apenas lesões aos direitos legais e as infra-
ções aos fins da segurança social podem ser pu-
nidas, se for inevitável para uma vida comunitária
ordenada. Quando os meios de Direito Civil ou
de Direito Público forem suficientes, o Direito Pe-
nal deve se retrair. Se for usado onde outros pro-
cedimentos mais suaves são suficientes para
preservar ou restaurar a ordem jurídica, ele ca-
rece da legitimidade da necessidade social. (RO-
XIN, 1976)

O professor e delegado federal, Bruno Zampier, em


uma palestra intitulada: Os custos do Direito Penal, no V Con-
gresso de Direito Penal, 2020. Discorre que o grande objetivo
do Direito é estabelecer comportamentos através da imposi-
ção da sanção penal, a fim de regular a vida em sociedade.
Porém, ele aponta que há uma terrível hipocrisia penal
brasileira vigente, de modo que a maioria da população, con-
forme o senso comum, acredita que a criminalização da con-
duta irá resolver os problemas que vivemos.
Porém, segundo ele, a verdadeira possível solução se-
ria unir a economia na repreensão desses fatos com multas e

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Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

punições. Pois, há uma máxima no Direito que diz: “Pessoas


respondem a incentivos”. Assim, a solução não é o direito pe-
nal e sim, mudar a política da estrutura de incentivos que está
por trás.
Segundo o Supremo Tribunal Federal (desde o Habeas
Corpus 84.112) são princípios para aferição da insignificância:
a mínima ofensividade da conduta do agente; a nenhuma pe-
riculosidade social da ação; o reduzido grau de reprovabili-
dade do comportamento; e a inexpressividade da lesão jurí-
dica provocada.
Dessa forma, segundo Rogério Sanches Cunha, em
seu livro: Manual do Direito Penal, 2022: “Os tribunais superi-
ores estabeleceram alguns parâmetros para que a análise da
insignificância seja a mais criteriosa possível, evitando-se as-
sim que o sistema criminal promova uma proteção deficiente
dos bens jurídicos tutelados pela norma penal e incentive a
reiteração de práticas criminosas, efeitos tão deletérios quanto
ao excesso e o abuso”. Como visto acima, o furto famélico de
Jean Valjean, também atende a todos os requisitos para ser
classificado e alcançado pelo princípio em questão, pois foi
apenas o furto de um pão.
Porém, como já apontado, ele quebrou o vidro da pada-
ria e conforme tipificação já apontada de furto qualificado, pelo
rompimento de obstáculo (o vidro da padaria quebrado), nos

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Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

termos do art. 155, § 4°, inciso I. E vem a seguinte questão:


Aplica-se o princípio da insignificância quando o furto é quali-
ficado por alguma das circunstâncias do § 4°, do art. 155? Sim.

As Cortes Superiores têm se manifestado pela


impossibilidade de reconhecimento do princípio
da insignificância quando presentes qualificado-
ras, já que há maior ofensividade e reprovabili-
dade da conduta. No entanto, como já referido, o
caso concreto pode apresentar circunstâncias
excepcionais apta a justificar a sua aplicação.
(JUSPODIVUM, 2020, p.276)

Conforme Jurisprudência do Superior Tribunal de Jus-


tiça, dada pela 5ª Turma, no Habeas Corpus 483.707, julgado
em 05/02/2019: “A Jurisprudência desta corte entende que,
em regra, as qualificadoras do crime de furto obstam a aplica-
ção do princípio de insignificância, haja vista maior reprovabi-
lidade da conduta, malgrado sua presença não implique, per
si, afastamento da atipicidade material”, e ainda “No caso, em
que pese o crime ter sido praticado arrombamento, há circuns-
tâncias excepcionais que autorizam a aplicação do princípio
da insignificância. Isso porque, trata-se tão somente de furto
de bem no valor de R$40,00 (quarenta reais), que foi pronta-
mente devolvido à vítima logo após o cometimento da ação
delituosa. (STJ. 5ª T., AgRg no ARESp 1529722, j.

106 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

17/10/2019). Valendo ressaltar, ainda, que o Supremo Tribu-


nal Federal considera crimes incompatíveis com o princípio da
insignificância, os crimes cometidos mediante violência ou
grave ameaça à pessoa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Dado o exposto, conclui-se que Jean Valjean, caso co-


metesse a conduta ilícita de furtar um pão no Brasil, em 2023,
tal como no enredo do livro Os Miseráveis, de Victor Hugo, sua
conduta seria tipificada como furto qualificado, crime expresso
no Art. 155, § 4°, I do Código Penal. Todavia, na modalidade
furto famélico, conceito reconhecido pela doutrina majoritária
e acolhido juridicamente, inclusive apoiado por institutos como
o princípio da insignificância.
Conforme abordado neste trabalho e feitas as análises
de conceitos e pré-requisitos necessários a tais classificações,
percebemos que o ato de Jean Valjean, apesar de ilícito, se
encaixa em todo o conceito e exigências estabelecidas pela
doutrina para reconhecimento e contemplação da ocorrência
de um Furto Famélico, que ocorreu com o único objetivo de
saciar a sua fome e de sua família, um delito de baixa pericu-
losidade e sem ameaça ou grave violência à pessoa.

107 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

Além disso, o protagonista e agente do crime, seria am-


parado pelo viés legalista e humanista dos direitos fundamen-
tais, assegurados por garantias constitucionais que a carta
Magna de 1988 específica como ampla defesa e contraditório,
defesa da liberdade e dignidade humana, garantias fundamen-
tais como habeas corpus caso sua liberdade fosse ilegalmente
retirada ou ameaçada. Além de instrumentos legais e expres-
sos nos códigos Penal e Processual Penal vigentes, bem
como por institutos despenalizadores.
Ademais, abordou-se a importância de desmistificar o
Direito Penal como resolução de todos os problemas e sim
como última via de recurso, ou seja, a última ratio abordada.
Para que a prisão e medidas legais mais duras atinjam de fato
o ideal proposto: aplicação para crimes graves e que amea-
cem a sociedade de forma incisiva, atacando a segurança e
incolumidade das pessoas e do Estado. De fato, exercendo-
se a subsidiariedade do Direito Penal.
Por fim, cabe ressaltar a importância de entender a cor-
relação entre a literatura e o direito a partir não só de toda a
análise feita nesse trabalho de conclusão de curso, mas de
uma forma geral. É fundamental superar o antigo conceito me-
ramente legalista da ciência jurídica. Compreendendo que o
Direito e os estudos jurídicos, de uma forma ampla, não cons-

108 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

tituem uma esfera dissociada das demais áreas de conheci-


mento. Pelo contrário, se comunicam, interagindo e ofere-
cendo imensuráveis contribuições.
Que somente a partir da análise social, política, cultural
e sim, artística (como a construída aqui) é possível pensar o
direito, não como uma gama de condutas criminalizadoras e
suas respectivas punições ou um mero conjunto de leis a se-
rem cumpridas a todo custo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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1988.

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Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

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UOL. Vida e obra de Victor Hugo.


Disponível em:https://brasilescola.uol.com.br/literatura/victor-
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110 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

4
ANÁLISE DA LEI 14.245/21

ANALYSIS OF LAW 14.245/21

Adriano Felipe Gonsalves Rodrigues6

Arthur Braga de Souza7

RODRIGUES, Adriano Felipe Gonsalves. Análise da lei


14.245/21. Trabalho de Conclusão de Curso de graduação
em Direito – Centro Universitário UNINORTE, Rio Branco,
2023.

6 Discente do 9° período do Curso de Bacharel em Direito pelo Centro Uni-


versitário Uninorte.
7 Graduado em Direito pelo Centro Universitário Uninorte. Pós-Graduado

em Direito Processual Civil pela Universidade Cândido Mendes. Servidor


Público Federal do TRF da 1ª Região. Professor Universitário no Centro
Universitário Uninorte.

111 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

RESUMO

O presente artigo consiste no estudo acurado acerca da deno-


minada Lei Mariana Ferrer, a qual surgiu após a divulgação
nas mídias sociais de uma audiência em que a influenciadora
digital é aparentemente desrespeitada pelo advogado do réu,
bem como a inércia dos outros atores processuais diante da
patente violação da dignidade da vítima. Devido ao apelo dos
veículos de imprensa, somado ao compartilhamento em
massa por milhões de usuários das redes, incluindo nomes de
prestígio, sobrevém a lei 14.245/21 como resposta. O conte-
údo dessa novidade legislativa traz diversas alterações, dentre
as principais a causa de aumento de pena no crime de coação
no curso do processo, e alteração no Código de Processo Pe-
nal para impor a todas as partes o dever de zelar pela integri-
dade física, moral e psicológica da vítima de crimes contra a
dignidade sexual, sob pena de responsabilização na esfera cí-
vel, criminal e administrativa. Contudo, em razão da irretroati-
vidade da lei penal, tais garantias não alcançam o caso que
deu ensejo à lei em comento. Além disso, considerando que
já havia diplomas legais nesse contexto de proteção à vítima
no decurso do processo, tem-se que, nesse caso, o Estado se
valeu do Direito Penal Simbólico com o fito de atender à opi-
nião pública do momento.

Palavras-chave: coação no curso do processo; dignidade da


vítima; novidade legislativa; irretroatividade da lei penal.

112 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

ABSTRACT

This article consists of an accurate study of the so-called Ma-


riana Ferrer Law, which emerged after the disclosure on social
media of an audience in which the digital influencer is appa-
rently disrespected by the defendant's lawyer, as well as the
inertia of other procedural actors in the face of the patent vio-
lation of the victim's dignity. Due to the appeal of the press
vehicles, added to the mass sharing by millions of network
users, including prestigious names, comes the law 14.245/21
as a response. The content of this legislative novelty brings
several changes, among the main ones the increase in the pe-
nalty in the crime of coercion in the course of the process, and
amendment in the Code of Criminal Procedure to impose on
all parties the duty to ensure the physical, moral and of the vic-
tim of crimes against sexual dignity, under penalty of liability in
the civil, criminal and administrative spheres. However, due to
the non-retroactivity of criminal law, such guarantees do not
reach the case that gave rise to the law in question. In addition,
considering that there were already legal diplomas in this con-
text of protection for the victim during the course of the pro-
cess, it is clear that, in this case, the State used the Symbolic
Criminal Law in order to meet the public opinion of the moment.

Keywords: coercion in the course of the process; victim's di-


gnity; legislative novelty; irretroactivity of criminal law.

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Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

INTRODUÇÃO

A análise de uma lei deve ter a premissa de buscar a


causa do surgimento daquela, assim como o alcance da
norma positiva. No que concerne à lei 14.245/21 (denominada
lei Mariana Ferrer), esta emergiu como resolução política ao
rogo de milhões de cidadãos que pediram justiça ao emblemá-
tico caso da promotora de eventos, que alega ter sido dopada
e posteriormente estuprada por um notório empresário.

Mariana Ferrer decidiu submeter ao conhecimento pú-


blico os fatos que ocorreram com ela em um evento na qual
trabalhava como promotora. Segundo a sua versão, o empre-
sário André Aranha a teria estuprado após dopá-la. Outro fator
que foi determinante para essa exposição diz respeito ao
constrangimento sofrido durante audiência para apuração do
crime padecido. Uma vez que não encontrou auxílio de quem
deveria zelar por sua integridade, buscou o apoio social para
minimizar os danos sofridos na regência do Estado, que tem o
monopólio da sanção penal.

A discussão sobre o que aconteceu teve como núcleo


a postura do advogado do Réu – Cláudio Gastão – ao se valer
de fatores alheios ao caso para conspurcar a imagem da ví-
tima perante o juízo. O causídico suscitou informações acerca

114 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

de dívidas, induzindo a um entendimento de que Mariana bus-


cava indenização para suprir seus encargos financeiros, além
do apelo de cunho moral, isto é, fotos sensuais da vítima, para
indicar que a conduta de acusar alguém de prestígio e boa
condição financeira se deu pelo caráter fraco de mulher que
não tem pudor.

Ocorre que, diante da conduta intempestiva do patrono


do réu, os responsáveis por tolher esses atos não se manifes-
taram. Não houve protesto por parte do defensor de Mariana,
sequer da promotoria e, principalmente, da presidência do ato,
ou seja, o juiz. Esse silêncio causou exasperação nos teles-
pectadores do vídeo publicado por um jornal eletrônico. Ape-
sar do desconhecimento jurídico referente aos atos processu-
ais por parte da maioria dos revoltados, ficou evidente a ne-
cessidade de intervenção àquele ataque deliberado.

Nesse contexto, a publicidade do fato despertou o inte-


resse legislativo em dar contraponto à violação dos direitos da
vítima, e para tal o poder constitucional editou lei ordinária que
traz causa de aumento de pena ao crime de coação no curso
do processo, este que em tese seria o crime cometido pelo
advogado de defesa. Outrossim, reforçou a obrigação de zelo
pela integridade da vítima por parte do juiz e demais integran-
tes do processo judicial.

115 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

4.1 O CASO MARIANA FERRER

Mariana Ferrer acusou o empresário André de Ca-


margo Aranha de tê-la dopado em 2018 durante uma festa na
boate em que ela atuava como promoter, em Florianópolis, e
depois de ter tirado sua virgindade enquanto ela estava vulne-
rável, sem capacidade de resistir.
O empresário foi absolvido. O juiz responsável acatou
pedido do MP/SC, que após apresentar a denúncia, mudou de
posição, passando a argumentar pela falta de provas e a ino-
cência de Aranha.
Em alegações finais, o promotor Thiago Carriço de Oli-
veira disse que, no entender do MP/SC, a instrução processual
havia demonstrado não haver provas de que Mariana estava
dopada, e que Aranha não tinha como saber se ela era ou não
capaz de consentir a relação sexual. Por esse motivo, não ha-
veria dolo no suposto estupro, motivo pelo qual o empresário
deveria ser absolvido, argumentou o promotor.
Segundo a acusação de Mariana Ferrer, o empresário
a teria dopado e estuprado no bar Café de La Musique, em
Florianópolis, no ano de 2018. Na ocasião, a influenciadora
tinha 21 anos e dizia ser virgem.

116 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

O exame toxicológico não constatou o consumo de ál-


cool e drogas. A defesa da jovem, porém, diz que não foi des-
cartada a hipótese de uso de outras substâncias como keta-
mina, droga que induz a um estado de transe.
Já André de Camargo Aranha nega o crime. Segundo
versão do empresário que atua com jogadores de futebol, a
influenciadora teria feito sexo oral nele, mas de maneira con-
sensual. A perícia que realizou o exame de corpo de delito na
vítima encontrou sêmen do empresário e sangue dela. Con-
forme relatório do exame da perícia, o hímen de Mariana Fer-
rer havia sido rompido.
O caso ganhou maior repercussão após o vazamento
de um trecho da audiência, durante a qual Ferrer teve fotos
sensuais da época em que era modelo profissional, expostas
por Cláudio Gastão da Rosa Filho, advogado de defesa do
empresário André de Camargo Aranha.
Gastão definiu as imagens como “ginecológicas”, disse
que “jamais teria uma filha do nível” de Mariana e, quando ela
chorou, afirmou: “não adianta vir com esse teu choro dissimu-
lado, falso e essa lábia de crocodilo”.
A jovem reclamou do interrogatório para o juiz: “Exce-
lentíssimo, eu estou implorando por respeito, nem os acusa-
dos são tratados do jeito que estou sendo tratada, pelo amor
de Deus, gente. O que é isso?”, diz. As poucas interferências

117 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

do juiz, Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis,


ocorrem após as falas de Gastão. Em uma das situações, o
juiz avisa Mariana que vai parar a gravação para que ela possa
se recompor e tomar água e pede para o advogado manter um
“bom nível”.
Em nota, Cláudio Gastão da Rosa Filho, advogado do
acusado, alega que Mariana Ferrer “não estava drogada”, que
“não houve estupro” e ainda desmente a versão de uma su-
posta adulteração nas câmeras de segurança. “A decisão unâ-
nime do Tribunal de Justiça se baseou nas provas médicas,
periciais, de imagens do local dos fatos e nos depoimentos de
peritos, policiais e delegados que atuaram no caso”. O advo-
gado ainda se diz “aliviado pelo esclarecimento dos fatos”.

4.1.1 JULGAMENTO DO CASO

Em julho de 2019, o Ministério Público de Santa Cata-


rina realizou a denúncia contra o empresário André de Ca-
margo Aranha por estupro de vulnerável, já que a vítima ale-
gava ter sido drogada e por este motivo não tinha condições
de consentir com o ato sexual.

André inicialmente afirmou nunca ter tido contato físico


com a modelo, mas exames comprovaram que houve a efetiva

118 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

conjunção carnal, corroborado pela ruptura do hímen, bem


como foi encontrado sêmen de André nas roupas íntimas da
vítima.

O juízo da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, julgou


como improcedentes as denúncias da jovem e absolveu o réu
da acusação de estupro de vulnerável. Em novo depoimento,
Aranha mudou sua versão dos fatos e confirmou ter tido con-
tato com a jovem, porém alegou não se lembrar completa-
mente do que aconteceu. Disse apenas que ela o seduziu, que
o contato entre os dois se deu de maneira breve e que ela teria
praticado sexo oral nele.

O crime de estupro de vulnerável caracteriza a prática


de "conjunção carnal ou ato libidinoso", que consiste em qual-
quer tipo de relação sexual com a vítima sem que ela possa
oferecer resistência.

Na versão de Mariana, o crime aconteceu porque ela


acredita ter sido dopada. No entanto, o exame toxicológico
mostrou um resultado negativo para ingestão de substâncias
que pudessem ter alterado o seu estado de consciência. Na
sentença, o juiz também levou em conta as imagens da câ-
mera de segurança que mostram Mariana descendo uma es-
cada e seguindo para outro espaço.

119 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

O julgamento foi encerrado em setembro de 2020,


quando o réu foi absolvido, com o pedido da promotoria para
esse sentido, por falta de provas, uma vez que não foi possível
comprovar, acima da dúvida razoável, que a vítima estava de
fato vulnerável, já que o exame toxicológico deu negativo para
uso de drogas e álcool e as imagens de segurança do local e
das imediações, além do depoimento de diversas testemu-
nhas, contradizem a versão da vítima de que ela havia sido
dopada.

A defesa de Mariana recorreu da decisão, e a 1ª Câ-


mara Criminal do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJ-
SC) decidiu, no dia 07 de outubro de 2021, pela manutenção
da sentença de absolvição do empresário André de Camargo
Aranha, na época com 44 anos.

Por unanimidade, os três desembargadores que apre-


ciaram a apelação apresentada pela defesa da vítima contra a
sentença que absolveu André, confirmaram a decisão. Em au-
diência realizada em Florianópolis (SC), os desembargadores
Ana Lia Carneiro, Ariovaldo da Silva e Paulo Sartorato anali-
saram o recurso pedido pela defesa de Mariana e concluíram
que não havia provas que sustentassem a acusação. O cole-
giado decidiu pela absolvição. Ainda cabe recurso à instâncias
superiores.

120 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

O processo tramita em segredo de justiça. Por esse mo-


tivo, o Tribunal de Justiça competente ao caso declarou que
não pode dispor de todas as informações atinentes ao enredo
dos fatos. Já a defesa de Mariana, por sua vez, afirmou que
pretende levar o litígio à apreciação do Supremo Tribunal Fe-
deral (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

4.1.2 FATORES DE INDIGNAÇÃO NO JULGAMENTO

Por corolário ao exposto anteriormente, a divulgação do


caso nesses termos deu azo a uma comoção geral. Milhões
de usuários das principais redes sociais no país alçaram a voz
em favor de Mariana em razão da aparente injustiça que ela
padeceu. Uma vez que o empresário já havia sido absolvido
em primeira instância em setembro de 2020, em decisão do
juiz Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis (SC),
somado à confirmação da sentença pelo juízo ad quem, a opi-
nião geral foi de que houve patente favorecimento ao acusado,
já que estava assentada na culpa de André em virtude da mi-
ríade de informações veiculadas.

Na opinião de Júlio César Ferreira, na época advogado


da influenciadora, a absolvição por insuficiência de provas
quanto à vulnerabilidade não serve como elemento para dizer

121 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

que o fato não existiu. Nesse sentido, a absolvição de André


Aranha, por dúvida quanto à vulnerabilidade, se mostrou débil.
Além disso, disse que recorreu tentando mudar o fundamento
da sentença, mas não conseguiu. Declarou de maneira vee-
mente que André Aranha foi absolvido, entretanto, jamais pela
inexistência do fato, mas pela dúvida, segundo o causídico.

Em novembro de 2021, Júlio César foi entrevistado pelo


jornal Estado de Minas e afirmou ter impetrado um habeas cor-
pus na tentativa de buscar a suspeição superveniente do juiz
pelo fato deste ter juntado documentos impróprios às vésperas
da sessão. Tal remédio constitucional não foi conhecido. Con-
tinuou dizendo que já havia manejado embargos de declara-
ção para esclarecer alguns pontos, em seguida, iria recorrer
ao Superior Tribunal de Justiça.

Nas palavras do advogado: “Quanto ao processo prin-


cipal, estou aguardando a intimação do acórdão, para poder
recorrer. Primeiro, farei embargos de declaração. Depois, vou
recorrer para o Superior Tribunal de Justiça e para o Supremo
Tribunal Federal, na tentativa de anular a audiência e os atos
posteriores, por violação da lei federal e ofensa ao princípio
constitucional da dignidade humana.” Por fim, ele aponta que

122 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

as muitas ameaças sofridas por Mariana e sua família não pu-


deram ser identificadas, porque os agressores utilizam o ardil
do anonimato.

Outro desdobramento que inflama a insatisfação do pú-


blico é a divulgação de um laudo médico atestando que Mari-
ana enfrenta estresses pós-traumáticos (TEPT), apresentando
tensão, ansiedade, fobia social, síndrome do pânico, trans-
torno depressivo e privação do sono.

4.1.3 EFEITOS DO CASO NA PUBLICIDADE

Cinco meses após o registro da ocorrência, em maio de


2019, o caso não havia caminhado e Mariana decidiu compar-
tilhar sua versão nas redes sociais. A história viralizou e foi
compartilhada por milhares de pessoas, incluindo personalida-
des de renome. Em julho, André de Camargo Aranha se tornou
réu do caso, investigado como estupro de vulnerável.
No início das investigações, Aranha, empresário que
trabalha no ramo de marketing esportivo, negou ter se aproxi-
mado da jovem naquela noite. Ele também se recusou a fazer
um exame de DNA a fim de que a polícia avaliasse se o seu
material genético era compatível com o do esperma encon-
trado na roupa da influencer. O caso possui desdobramentos

123 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

incomuns, como a troca do promotor responsável ao longo do


processo, alegando-se que o primeiro foi transferido para ou-
tro setor de atuação do Ministério Público.
Ocorre que, logo após a publicação da sentença de ab-
solvição do acusado, explanando sobre as razões e os fatos
que levaram a esse entendimento, o jornal The Intercept Brasil
cunhou uma expressão denominada “estupro culposo”, este
sendo o motivo para a absolvição errônea de Aranha. Imedia-
tamente, as redes sociais, seguindo a tendência comum de
reproduzir informações sem qualquer filtro, foram inundadas
com essa expressão, afirmando desenfreadamente que o es-
tupro culposo era permitido no Brasil, apesar de ser imoral.
Para os operadores da área jurídica, o senso comum
não é relevante pois detém o conhecimento técnico dos pre-
ceitos legais. Diametralmente oposto a isso, e por conseguinte
a maioria da população, desconhece essa tecnicidade, a efe-
tiva aplicação do direito ao caso concreto. Contudo, à luz do
que já fora susodito, publicações como essa são disseminadas
dado a relevância de onde se originou. Isso acarreta uma de-
sinformação prejudicial à confiança nas instituições judiciárias.
Em qualquer litígio, ambas as partes são dotadas de
paridade de armas, sendo essa a prescrição da Carta Magna.
Entretanto, nos casos em que orbita o interesse social, como
este em análise, tais regras podem ser compreendidas como

124 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

favorecimento pessoal no caso de a opinião maior já ser a de


culpa do acusado. Nessa conjuntura, quando se trata de um
crime grave como o estupro de vulnerável, dotado de repug-
nância unânime, a responsabilidade em se ater fielmente ao
que estabelece a legislação criminal é imprescindível, posto
que a ignorância quanto ao conteúdo dessa matéria pode de-
sembocar em desconfiança da atuação depurada do judiciário.
Em nota, o MP/SC nega que Thiago Carriço de Oliveira
tenha defendido a tese de que houve estupro sem intenção,
ou "estupro culposo", expressão utilizada pelo The Intercept
Brasil para descrever a conclusão das investigações do Minis-
tério Público. Esclarece, ainda, que o referido crime não possui
a modalidade culposa, portanto não seria possível a absolvi-
ção por esse instituto. Descreveu a expressão como sendo er-
rônea, pois a condenação deve ser pautada em provas con-
cretas, sem dubiedades, dando arrimo ao juízo para condenar
alguém à penitência da lei. Disse que o resultado se deu por
consequência da falta de provas incontestáveis do crime.

4.2 O CRIME DE COAÇÃO NO CURSO DO PROCESSO

Outro aspecto importante a ser destacado diz respeito


ao crime de coação no curso do processo. Doravante, o es-

125 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

tudo desse delito será primordial ao entendimento da lei Mari-


ana Ferrer (lei 14.245/21) e a incidência dele no processo que
deu origem à referida norma. O crime em voga está tipificado
no Art. 344 do Código Penal, inscrito no capítulo dos crimes
praticados contra a administração da justiça. A transcrição do
preceito primário é a seguinte: “Usar de violência ou grave
ameaça, com o fim de favorecer interesse próprio ou alheio,
contra autoridade, parte, ou qualquer outra pessoa que funci-
ona ou é chamada a intervir em processo judicial, policial ou
administrativo, ou em juízo arbitral.”
Nesse diapasão, o objeto da proteção jurídica encerra
a própria administração da justiça, ou seja, busca-se pavimen-
tar o caminho para a verdade dos fatos, bem como a liberdade
que os atores processuais devem gozar a fim de atuarem sem
sofrer coações ou pressões.
No que tange à tipicidade objetiva do Art. 344, tem-se o
núcleo usar de violência, que nesse caso se refere à violência
física (agressões, por exemplo), e a grave ameaça - esta a
violência psicológica ou moral - contra quem isso é dirigido. O
alvo da violência ou grave ameaça será a autoridade (como o
juiz, promotor, delegado), ou a parte (autor ou réu), tal qual
qualquer pessoa chamada a intervir no processo (testemunha,
perito, advogado).

126 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

Esse crime pode ser perpetrado em meio a processo


judicial, administrativo, policial (infere-se aqui o Inquérito Poli-
cial ou o Termo Circunstanciado de Ocorrência) e em juízo ar-
bitral. Em relação ao processo judicial, este é o que tramita
junto ao poder judiciário, seja contencioso ou voluntário, em
qualquer de suas vertentes: criminal, cível, trabalhista, eleito-
ral. Acerca do processo administrativo, fala-se daquele que
prossegue no seio dos órgãos da administração pública.
A norma prevê também o processo policial, o qual sig-
nifica o processo investigatório levado a efeito pela polícia ju-
diciária (polícia civil ou federal), que se dá no âmbito do inqué-
rito ou mesmo do termo circunstanciado. Ainda, é possível a
ocorrência no juízo arbitral, que é o juízo regulado pela lei
9.307/96, conhecida como lei da arbitragem.
Nessa toada, em todo o conglomerado mencionado é
possível que haja o cometimento do crime de coação no curso
do processo. O objetivo que se busca é o favorecimento de
um interesse, seja próprio ou alheio. No que diz respeito ao
preceito secundário, a pena cominada é de reclusão, de um a
quatro anos, e multa, além da pena correspondente à violên-
cia, se houver.
A tipicidade subjetiva requer o dolo específico, ou seja,
exige-se que a conduta do agente seja praticada com o pro-
pósito específico de favorecer interesse próprio ou de outrem,

127 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

não servindo motivo diverso. Logo, outra razão que não seja
favorecer interesse pessoal ou alheio não configura o crime
em tela.
Quanto aos sujeitos do tipo penal, o ativo pode ser qual-
quer pessoa, afinal não se exige condição especial para ser
agente no crime de coação no curso do processo. Concer-
nente ao sujeito passivo, o Estado é o sujeito primário, vez que
é o responsável pela administração da justiça, e em caráter
secundário está a pessoa que padece a coação, a qual pode
ser qualquer dos que participam do processo.
Na consumação do delito, o momento se perfaz com o
emprego do meio caracterizador da coação, seja violência ou
grave ameaça, assim, quando o agente utiliza do meio coativo,
nesse instante se consuma o crime. Eventualmente, se o inte-
resse do coator vier a ser atendido, tratar-se-á de exaurimento
do crime, porque já é um resultado que acontece superveni-
ente ao momento da consumação.
Em relação à tentativa, é possível na forma de violência
com a tentativa da agressão em si, a qual pode não se consu-
mar. À guisa de grave ameaça, caso ela seja realizada de
forma plurissubsistente, por escrito, como exemplo. Todavia,
não seria possível em sua forma unissubsistente, por modelo
a grave ameaça oral, uma vez que o sujeito diz a expressão

128 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

configuradora da grave ameaça, e essa já é suficiente para a


consumação.
Cumpre salientar a cumulação da pena do Art. 344 com
a decorrente da violência, já que essa é a previsão do preceito
penal secundário, qual seja: reclusão, de um a quatro anos, e
multa, além da pena correspondente à violência . Nesse sen-
tido, o agente responde de forma cumulativa pelo crime de co-
ação no curso do processo, somada à pena oriunda da violên-
cia - lesão corporal, homicídio, até mesmo uma contravenção
de vias de fato.
Além disso, ainda que o crime correspondente à violên-
cia seja um meio para o fim de coagir, não se aplica o princípio
da consunção (crime meio é absorvido pelo crime fim), vez que
a previsão expressa da cumulação determina que haja a res-
ponsabilização pelos dois crimes (concurso material), mesmo
que interdependentes. Em arremate à descrição da coação no
curso do processo, tal crime é de ação penal pública incondi-
cionada, por conseguinte, havendo justa causa, é possível de-
flagrá-lo.

4.2.1 COAÇÃO NO PROCESSO DE MARIANA FERRER

Com base na definição do crime positivado no Art. 344


do Código Penal, analisa-se a ocorrência de coação no caso

129 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

Mariana Ferrer. Com espeque no material digital disponibili-


zado na rede mundial de computadores, referente a audiência
do processo em que Mariana Ferrer figura como a vítima e
André Aranha sendo o acusado de tê-la estuprado, resta con-
figurada uma conduta inadequada por parte do advogado do
réu, Cláudio Gastão.
Contudo, é premente que haja um estudo minucioso ca-
paz de apontar com sobriedade se a impertinência de Gastão
no trato com a outra parte amolda-se ao tipo penal. Conforme
trechos em que o causídico opera, há um ataque deliberado à
honra objetiva de Mariana, ou seja, a reputação sopesada pela
sociedade em que ela está inserida.
Nessa conjuntura, de plano se descarta um dos núcleos
do tipo, “violência”, porquanto esse termo diz respeito à agres-
são física propriamente dita, o que não aconteceu. Em relação
à “grave ameaça”, faz-se necessário identificar o que configura
esse instituto. Segundo o professor Cezar Roberto Bitencourt:
“Ameaça grave (violência moral) é aquela capaz de atemorizar
a vítima, viciando sua vontade e impossibilitando sua capaci-
dade de resistência.
A grave ameaça objetiva criar na vítima o fundado re-
ceio de iminente e grave mal, físico ou moral, tanto a si quanto

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a pessoas que lhe sejam caras. É irrelevante a justiça ou in-


justiça do mal ameaçado, na medida em que, utilizada para a
prática de crime, torna-a também antijurídica.”
A partir disso, em cotejo entre a definição da grave ame-
aça e da conduta perpetrada pelo defensor do réu à época,
estaria caracterizada na hipótese de haver o dolo em atemori-
zar Mariana quanto a um grave mal, por meio das ofensas a
ela dirigidas, bem como a revelação de fotos sensuais oriun-
das de um ensaio fotográfico para propaganda. Evidente-
mente, a vítima se sentiu constrangida, o que pode ser ates-
tado quando ela chora copiosamente e pede respeito, já que
estaria suportando novamente as dores da violação sofrida,
segundo o que afirmou.
Ocorre que o papel do advogado é o patrocínio da
parte, seja autor ou réu, em busca dos respectivos direitos e
garantias, refutando as acusações ou contradições que pesam
sobre o cliente. Para tal, ele utiliza de todos os meios admiti-
dos em direito a fim de provar sua tese, e por corolário con-
vencer o juízo. A legislação garante o uso de artifícios que
concretizem o direito constitucional à ampla defesa.
Em se tratando de crimes contra a dignidade sexual,
predomina o relato da vítima, dada a dificuldade em obter pro-
vas como fotos ou vídeos do ato em si. Logo, a estratégia pro-
cessual se baseia em desconstruir a imagem da ofendida com

131 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

o fito de mostrar que seu comportamento e conduta anteriores


corroboram a ideia de que houve consentimento.
No processo em escrutínio, Gastão excedeu os limites
do razoável na defesa de direitos, abusando de sua prerroga-
tiva ao atacar propositadamente a vítima. Essa conduta foi en-
gendrada para combater as alegações de Mariana, que afir-
mava ter sido dopada e posteriormente estuprada por André
Aranha. Diante disso, seria de árduo encaixe argumentar que
a eventual grave ameaça teve o condão de aterrorizar Mariana
acerca de um mal físico.
Diametralmente oposto, apresenta-se o melindre de um
aviltamento moral, que pode atingir o âmago de quem sofre,
bem como conspurcar o nome da vítima perante aqueles que
lhe são caros. Essa ramificação da grave ameaça é que mais
se aproxima da postura do ofensor quando ele afirma: “Tu vive
disso Mariana”; “Peço a Deus que meu filho não encontre mu-
lher igual a você."
Contudo, é fundamental destacar que o caso estava
sob sigilo judicial, tal qual a maioria dos crimes contra a digni-
dade sexual. Consequentemente, a matéria discutida estaria
restrita aos participantes do processo. Assim, não há que se
falar em opróbrio no meio social pois o sigilo é conferido com
a finalidade de guarnecer a dignidade da vítima.
Isso posto, é possível arrazoar que o advogado não

132 | P á g i n a
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agiu visando debelar a imagem da influenciadora perante os


olhos de alheios, vez que a ele era proscrito a divulgação do
conteúdo discutido. Quem decidiu por tornar público o caso foi
a própria vítima, alegando que não obteve a égide esperada
do poder judiciário e, por consequência, estaria revisitando as
angústias de outrora.
Nesse diapasão, resiste somente a presença da violên-
cia moral no contexto íntimo, ou seja, o receio capaz de viciar
a vontade, com o escopo de constranger a vítima a não dizer
com propriedade ou de não se sentir segura a narrar o enredo
em suas minúcias, o que comprometeria a parte contrária. Em
análise jurídica, afora o senso comum, percebe-se que Mari-
ana fora sobrepujada pelos silogismos apresentados por Gas-
tão.
Tais argumentos não se deram a partir de um embate
leal, mas em virtude do manejo de ardis como fotos sensuais,
depreciação quanto à vida pregressa e conjecturas quanto à
falsa moral. Então, ela esteve em desvantagem perante o ju-
ízo, pois não recebeu a devida proteção de quem o deveria
fazer, vez que o presidente do ato não interviu adequada-
mente quando o causídico se mostrou infenso.
Nessa perspectiva, a ofendida foi abalada substancial-
mente em razão do desequilíbrio entre defesa e acusação,
pois ela manifesta: “Excelência, estou pedindo respeito, nem

133 | P á g i n a
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mesmo um criminoso é tratado dessa maneira.” Consequen-


temente, o estado emocional ali apresentado certifica a vulne-
rabilidade experimentada, ainda que perante o juízo, facili-
tando o induzimento de um pavor capaz de comprometer a
verdade dos fatos e a liberdade supraditas.
Em epílogo, é factível afirmar a ocorrência de coação
no curso do processo no caso ora estudado, uma vez que foi
empregada a grave ameaça (violência moral), com o fim de
favorecer interesse do réu, isto é, persuadir o julgador a con-
cluir que houve anuência na conjunção carnal e, por conse-
guinte, o pleno gozo das faculdades mentais no momento do
ato. Tal violência foi destinada à figura de Mariana, na forma
de severo ataque à moral daquela, para inculcar medo capaz
de solapar seu depoimento, pois o temor de agravo moral im-
porta em entrave para elucidar os matizes de sua acusação.

4.3 O SURGIMENTO DA LEI 14.245/21

Em razão da vultosa repercussão do caso, preponde-


rantemente nas mídias sociais - onde Mariana deu início à pu-
blicidade dos fatos -, a decorrência foi o interesse legislativo
em dar resposta ao clamor dos milhões de usuários dessas
redes que demonstraram revolta com a condução do processo
e a patente revitimização sofrida pela influenciadora digital.

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As notícias acerca do caso chegaram ao trending topics


do Twitter nacional, além de ser manchete nos principais por-
tais de notícias. Nesse caminho, os meios de comunicação,
que tem a função sensível de informar e, por conseguinte, con-
vencer seus usuários, fomentam um anseio por punição
quando os denominados “digitais influencers” e “formadores
de opinião” difundem a mensagem do inaceitável. Logo, em
consonância ao que as reclamações midiáticas determinam,
os movimentos legislativos seguem a tendência.
Historicamente, as leis são propostas quando há provo-
cação para isso, pois o legislador é aquele que representa o
povo, atuando de forma a materializar as aspirações da soci-
edade, que podem ser expressas através da aglutinação de
generalizada insatisfação, o que houve neste caso. O resul-
tado foi o advento da lei 14.245/2021 (lei Mariana Ferrer), cu-
nhada com essa epígrafe para evidenciar o motivo da criação,
qual seja, o manifesto desrespeito à vítima durante o pro-
cesso, sobretudo por ser um caso envolvendo crime sexual.
A legislação, que protege a vítima e testemunhas de
atos contra a sua integridade moral e psicológica durante o
curso da ação penal, foi aprovada por seguimento do Projeto
de Lei n° 5.096/20 e alterou o Código Penal, o Código de Pro-
cesso Penal e a Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais.

135 | P á g i n a
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Relativamente ao Código Penal, a lei traz em seu bojo


uma alteração no Art. 344, acrescendo um parágrafo único,
que estabelece: “A pena aumenta-se de 1/3 (um terço) até a
metade se o processo envolver crime contra a dignidade se-
xual.” Conforme deslinde anterior, o artigo em questão apre-
senta o crime de coação no curso do processo, sendo o em-
prego de violência ou grave ameaça contra qualquer dos su-
jeitos processuais, com o fim de favorecer interesse próprio ou
alheio.
Na prática, a pena cominada ao delito será aumentada
de um terço até a metade, quando envolver crime contra a dig-
nidade sexual, pois são eles tomados com maior relevância,
em virtude de atingirem a dignidade da vítima de maneira per-
manente. A partir dessa previsão, visa-se coibir a prática de
atos atentatórios à dignidade, agravando a pena para que a
reprimenda seja mais rigorosa, uma vez que pode importar em
privação da liberdade.
Outrossim, tomando por base o ocorrido em audiência,
a lei prescreve dois novos artigos ao decreto-lei 3.689, de 3 de
outubro de 1941 (Código de Processo Penal): o artigo 400-A
disciplina que: “Na audiência de instrução e julgamento, e, em
especial, nas que apurem crimes contra a dignidade sexual,
todas as partes e demais sujeitos processuais presentes no

136 | P á g i n a
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ato deverão zelar pela integridade física e psicológica da ví-


tima, sob pena de responsabilização civil, penal e administra-
tiva, cabendo ao juiz garantir o cumprimento do disposto neste
artigo, vedadas: I - a manifestação sobre circunstâncias ou
elementos alheios aos fatos objeto de apuração nos autos; II -
a utilização de linguagem, de informações ou de material que
ofendam a dignidade da vítima ou de testemunhas.”

Destaca-se que a partir dessa previsão, obriga-se a to-


dos os participantes, seja qualquer dos sujeitos, na audiência
de instrução e julgamento, a velarem pela integridade física e
psicológica da vítima, isto é, oferecer um ambiente onde haja
respeito e proteção adequados para a garantia do estado emo-
cional saudável daquele(a) que sofreu as aflições decorrentes
da violação de sua dignidade. Além disso, o juiz foi eleito como
o garantidor do efetivo cumprimento por todos, uma vez que
ele é o maestro do ato judicial.

As vedações apresentadas também são efeito do ocor-


rido em audiência no caso de Mariana. A primeira veda a ma-
nifestação acerca de circunstâncias ou elementos alheios aos
fatos sob apuração. Significa dizer que não é permitido trazer
ao juízo argumentos que sequer tangenciam o objeto de in-
vestigação, como por exemplo a exposição de opinião sobre a
moral e os costumes da outra parte, principalmente as que são

137 | P á g i n a
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depreciativas, porque não favorece o bom andamento do pro-


cesso, servindo apenas como instrumento de invectiva.

A segunda vedação diz respeito à utilização de lingua-


gem, de informações ou de material que ofendam a dignidade
da vítima ou de testemunhas. Ao proscrever essa conduta, a
lei pretende impugnar o emprego de linguagem impertinente,
que tenha por fim apenas embotar psicologicamente a vítima.
Quanto à utilização de informações, estas são as que menos-
prezam a condição da vítima, por exemplo dizer que ela está
devendo aluguel, não tem onde morar, tem muitos credores.
Esse ardil foi o mesmo utilizado pelo advogado do réu no pro-
cesso da influenciadora.

Acerca do material proibido, trata-se de imagens ou ví-


deos que possuem o condão de comprometer o conceito da
outra parte, ou seja, atingir a dignidade com subterfúgios que,
apresentados fora de contexto, pintam negativamente a honra
esperada de uma pessoa proba, segundo os padrões sociais.

Em suma, a observação legal sobre a preservação da


dignidade das vítimas e testemunhas em audiência repercutiu
na esfera dos procedimentos ordinários, do procedimento do
Tribunal do Júri e também nos processos que tramitam nos
Juizados Especiais Criminais, abrangendo todas as audiên-
cias instrutórias previstas no processo penal brasileiro.

138 | P á g i n a
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4.3.1 APLICAÇÃO DA LEI 14.245/21 NO CASO MARIANA


FERRER

Cumpre salientar os efeitos da aludida lei quanto ao


caso que deu origem a ela. A irretroatividade da lei é princípio
basilar do Direito Penal, tendo sua base constitucional no art.
5º, XL, da Carta Magna: “a lei penal não retroagirá, salvo para
beneficiar o réu.” Dessa forma, não há infração ou sanção pe-
nal sem lei anterior, isto é, sem lei prévia. Esse desdobra-
mento do princípio da legalidade traduz a ideia da anteriori-
dade penal, segundo o qual para a aplicação da lei penal,
exige-se lei anterior tipificando o crime e prevendo a sua san-
ção.
Em regra, aplica-se a lei penal vigente ao tempo da prá-
tica do fato criminoso, de acordo com o princípio do tempus
regit actum. Significa dizer que a lei penal produzirá efeitos,
em regra, no período da sua vigência, de acordo com a lei vi-
gente na época do fato. Conforme ensina Fernando Capez: “O
fenômeno jurídico pelo qual a lei regula todas as situações
ocorridas durante seu período de vida, isto é, de vigência, de-
nomina-se atividade. A atividade da lei é a regra. Quando a lei
regula situações fora de seu período de vigência, ocorre a cha-
mada extra-atividade, que é a exceção”.

139 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

Em relação à retroatividade, decorre também do Art. 5º,


XL, da Constituição Federal. Logo, quando a lei de algum
modo beneficiar o agente, mesmo quando o processo que
apura os fatos já tenha transitado em julgado, deverá retroagir
para alcançar o réu ou condenado com os benefícios trazidos.
Essa é a redação do Art. 2º, parágrafo único do Código Penal:
“a lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente,
aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sen-
tença condenatória transitada em julgado.”
Subscrevendo esse entendimento, declara o professor
Cezar Roberto Bitencourt: “é indispensável investigar qual a
que se apresenta mais favorável ao indivíduo tido como infra-
tor. A lei anterior, quando for mais favorável, terá ultratividade
e prevalecerá mesmo ao tempo de vigência da lei nova, ape-
sar de já estar revogada. O inverso também é verdadeiro, isto
é, quando a lei posterior foi mais benéfica, retroagirá para al-
cançar fatos cometidos antes de sua vigência.”
Seguindo essa linha, infere-se pela impossibilidade de
aplicação da lei Mariana Ferrer ao próprio caso que deu azo a
ela, pois a inovação legislativa agravou a pena do crime de
coação no curso do processo, aumentando-a de um terço até
a metade se o processo envolver crime contra a dignidade se-
xual. Isso contraria a previsão constitucional de que a retroati-
vidade somente é cabível quando resultar em benefício.

140 | P á g i n a
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Para melhor compreensão, faz-se necessário elucidar


que o Código Penal adota a teoria - quanto ao tempo do crime
- da atividade. Segundo a teoria da atividade, também cha-
mada de teoria da ação, considera-se o momento do crime
quando o agente realizou a ação ou a omissão típica. Ou seja,
considera-se praticado o crime no momento da conduta do
agente, não se levando em consideração o momento do resul-
tado, se diverso. A referida teoria está calcada no Art. 4º do
CP: “Considera-se praticado o crime no momento da ação ou
omissão, ainda que outro seja o momento do resultado.”
A partir disso, com base no que fora pormenorizado
alhures, o advogado Cláudio Gastão teria praticado o crime no
dia 27 de julho de 2020, durante audiência de instrução e jul-
gamento, na qual figurava como defensor do réu. Assim, a lei
14.245/21, que entrou em vigor no dia 22 de novembro de
2021, não tem o poder de responsabilizar Gastão pelo fato co-
metido, posto que traz um agravo à pena do crime, tornando-
se prejudicial em relação à condição anterior.
A lei Mariana Ferrer (14.245/21) consiste no que se
chama em direito de novatio legis in pejus. Entende-se por no-
vatio legis in pejus, também chamada de lex gravior, a lei pos-
terior que, de qualquer modo, agrava a situação do agente.
Dessa maneira, aplicando-se o pressuposto já mencionado, a
lei nova que prejudica o agente não retroage, melhor dizendo,

141 | P á g i n a
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deve ser mantida a lei anterior inalterada, o que significa que


em eventual responsabilização do advogado, este responderia
pelo crime de coação no curso do processo sem a causa de
aumento de pena.
Nesse estrado, firmam os mestres Luiz Flávio Gomes e
Valério de Oliveira Mazzuoli: “A lei que terá incidência, nesse
caso, é a antiga (que vai continuar regendo os fatos ocorridos
em seu tempo). Esse é o princípio da ultra-atividade da lei pe-
nal anterior mais benéfica (leia-se a lei anterior, embora já te-
nha perdido sua vigência) diante da lei nova.
Continua válida e aplicável para os fatos ocorridos du-
rante o seu tempo; se a lei nova é prejudicial, ela não retroage,
não alcança os fatos passados; desse modo, eles continuam
sendo regidos pela lei anterior, mesmo tendo essa lei anterior
já perdido sua vigência; aliás, justamente porque já não está
vigente é que se fala em ultra-atividade, ou seja, a lei acaba
tendo atividade mesmo depois de ‘morta’)”.
Malgrado o Art. 344 do CP ter sido apenas alterado (não
houve revogação), essa alteração resulta em desvantagem ao
agente, pois o caso seria abarcado pelo aumento de pena,
uma vez que o processo compreendia crime contra a digni-
dade sexual. Deste modo, não há se falar em aplicação retro-
ativa da lei 14.245/21, porque vai de encontro à previsão cons-
titucional.

142 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

Finalmente, a lei Mariana Ferrer adveio para impugnar


os atentados à dignidade da vítima e de testemunhas, va-
lendo-se do aumento de pena no crime de coação no curso do
processo como meio de coibir a prática de atos contrários ao
estabelecido nela. Surgiu como resposta ao evento emblemá-
tico denominado “caso Mari Ferrer” que foi conhecido por um
público superabundante, apesar de estar sob sigilo judicial, já
que a promotora de festas resolveu disseminar o fato em razão
de sua insatisfação.
A indignação popular moveu o poder legislativo para a
confecção de uma lei que tivesse por fim a supressão de ou-
tros casos como aquele. Portanto, o ordenamento jurídico tem
inscrito em seus anais um notório progresso na defesa de di-
reitos das vítimas que não recebem o devido suporte de quem
deveria protegê-las, sendo a lei 14.245/21 o instrumento para
a efetivação dessas garantias.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O advento da lei 14.245/21 é um marco importante para


a proteção da vítima, principalmente no que concerne aos cri-
mes contra a dignidade sexual, vez que tais crimes são de
maior gravidade e acarretam uma penitência imensurável para
quem os sofre. Nesse sentido, acrescentar outra ferramenta

143 | P á g i n a
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cogente ao cabedal de proteção jurídica é fundamental para


minimizar a ocorrência desse delito.

Outro resultado importante diz respeito ao enfrenta-


mento à revivificação, isto é, o processo penal pode dar azo
para que a vítima repise toda a aflição sofrida quando da per-
petração do crime. Tal situação é comum porque no decurso
da apuração realizada em juízo é premente que seja narrado
todo o enredo em suas minúcias. Além disso, o patrocínio do
réu, lançando mão da ampla defesa, pode contestar a alega-
ção em uma perspectiva mais íntima.

Nessa toada, a alteração no Código de Processo Penal


visa coibir a prática de atos atentatórios à dignidade da vítima
e de testemunhas, compelindo todas as partes e demais sujei-
tos processuais a zelar pela integridade física e psicológica da
vítima, sob pena de responsabilização civil, penal e adminis-
trativa. Para garantir o fiel cumprimento dessa previsão, ou-
torga ao juiz, que é o presidente do ato, a fiscalização para
que a ordem seja obedecida, incluindo-o no rol dos sujeitos à
sanção.

Quanto à alteração no Código Penal, precisamente no


Art. 344 (delito de coação no curso do processo), trata-se de
manobra para prevenir o ocorrido com Mariana Ferrer, pois o
aumento de pena de 1/3 até a metade se o processo envolver

144 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

crime contra a dignidade sexual é reprimenda que compre-


ende o que sucedeu outrora. Porém, em respeito ao princípio
da irretroatividade da lei penal mais gravosa, tal sanção não
alcança o caso da influenciadora digital.

Apesar da absolvição do acusado quanto ao cometi-


mento do estupro, a maneira como se deu o processo trouxe
prejuízo à vítima pelo modo como ela foi abordada nas intera-
ções durante a audiência. Restou evidenciado o desequilíbrio
e a inadequação do patrono do réu no exercício das garantias
de seu cliente. O advogado retirou seu fundamento de defesa
a partir de circunstâncias alheias aos fatos objeto de apuração
nos autos, bem como utilizou linguagem, informações e mate-
rial que ofenderam a dignidade da vítima.

Por fim, com base em todo o exposto, resta configurada


a assertividade da norma em comento no que toca ao valor e
eficiência agregada na solução dos imbróglios jurídicos e seu
alcance de proteção. A sanção mais grave deve ser dedicada
aos crimes de maior grau de reprovabilidade social, conforme
o caso que deu ensejo à edição da lei 14.245/21. Como não é
possível vaticinar todos os fatos jurídicos em uma sociedade
que está evoluindo vertiginosamente, a novidade legislativa é
instrumento de prevenção após a ocorrência de caso que faça
a vez de exemplo a ser evitado. Nesse compasso, a invectiva

145 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

sofrida por Mariana Ferrer esclareceu que ainda há muito a


ser edificado para garantir plena dignidade à vítima, ainda que
na fase processual.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Aspectos da lei Mariana Ferrer. Disponível em:


https://ambitojuridico.com.br/noticias/lei-mariana-ferrer/.
Acesso em: 2022.

BRASIL. CASO Mari Ferrer: Abaixo – Assinado Atinge 4,2


milhões e Quebra Recorde no Brasil. Disponível em
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BRASIL. Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940.


Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-
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BRASIL. Decreto-lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Dis-


ponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-
lei/del 3689.htm. Acesso em: 2022.

BRASIL. Lei Mariana Ferrer. Disponível em: https://www.con-


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ampla-defesa/. Acesso em: 2022.

BRASIL. Lei nº 14.245, de 22 de novembro de 2021. Dispo-


nível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-
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Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

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359-h / Cléber Masson – 8. Ed. – São Paulo: Forense, 2018.

MOUGENOT, Edilson, Curso de processo penal / Edilson


Mougenot. – 13. ed. – São

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PRADO, Luiz Regis, Tratado de Direito Penal Brasileiro,


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REZENDE, Guilherme Carneiro de. O Direito Humano da Ví-


tima a um Processo Penal Eficiente. Curitiba: Juruá, 2021.

147 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

5
A UTILIZAÇÃO DE CARTAS PSICOGRAFADAS COMO
MEIO DE PROVA NO TRIBUNAL DO JÚRI

THE USE OF PSYCHOGRAPHED LETTERS BY


THE WAY TO PROVE ON JURY COUTRT

Willamy de Oliveira Carvalho8


Arthur Braga de Souza9

CARVALHO, Willamy de Oliveira. A utilização de cartas psicogra-


fadas como meio de prova no Tribunal do Júri. Trabalho de Con-
clusão de Curso de graduação em Direito – Cetro Universitário UNI-
NORTE, Rio Branco, 2023.

8
Discente do 9º período do Curso de Bacharel em Direito pelo Centro
Universitário Uninorte.
9 Graduado em Direito pelo Centro Universitário Uninorte. Pós-Graduado

em Direito Processual Civil pela Universidade Cândido Mendes. Servidor


Público Federal do TRF da 1ª Região. Professor Universitário no Centro
Universitário Uninorte.

148 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

RESUMO

Este artigo traz como tema principal a possibilidade de utiliza-


ção de cartas psicografadas como meio de prova no Tribunal
do Júri, com ênfase no que prevê a Constituição Federal de
1988, em seu artigo 5º, inciso LV, que trata do princípio do
contraditório e da ampla defesa. A psicografia é o ato de es-
crever cartas de espíritos desencarnados praticado por mé-
diuns e foi classificada por Allan Kardec como uma manifesta-
ção inteligente. As cartas psicografadas já foram utilizadas no
tribunal judiciário brasileiro evidências, inclusive em crimes do-
losos contra a vida. Um exemplo disto ocorreu durante o jul-
gamento do incêndio ocorrido na Boate Kiss, em janeiro de
2013, na cidade de Porto Alegre, onde a advogada Tatiana
Barbosa utilizou uma carta psicografada atribuída a uma das
vítimas para sustentar a defesa de um dos réus. A utilização
de cartas psicografadas em plenário divide opiniões não só de
membros do Poder Judiciário, mas da população em geral. Em
suma, este trabalho busca contribuir com a disseminação
desta prática, pois é considerada algo inovador no âmbito ju-
rídico e que vem ganhando repercussão ao longo dos últimos
anos.

Palavras-chave: cartas psicografadas; meio de prova; tribu-


nal do júri.

149 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

ABSTRACT

This article deals with as main topic the possibility of uses of


psychograph letters by the way of prove on Jury court, with
emphasis on 1988’s Federal Constitution, in your article 5º, in-
cise LV, deals with of contradictory principle and broad de-
fense. The Psychograph is the act of writing letters from dead
people (spirits) practiced by mediums and was classified by Al-
lan Kardec like as smart manifestation. The psychograph let-
ters were used on Brazilian Jury Court as evidence, including
on intentional crimes against life. An example of this happened
during the judgment of Boate Kiss fire, in January 2013, in
Porto Alegre, where the lawyer Tatiana Barbosa used on psy-
chograph letter attributed to one of victims for sustain your de-
fense. The utilization of psychograph letters in plenary split
opinions not only members of the Judicial Power, but also the
general population. In short, this article find contribute with the
dissemination of this practice, as it is considered something in-
novative in the legal scope and has been gaining repercus-
sions a few years ago.

Key words: psychographed letters; prove; Jury court.

150 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

INTRODUÇÃO

O tema da pesquisa é bastante polêmico e causa in-


teresse pela relevância do assunto que levanta questões que
dividem opiniões no meio jurídico. Com este estudo, pretende-
se abordar assuntos que de alguma forma contribuam para
orientar de maneira legal na resolução de problemas que pos-
sam surgir quando forem utilizadas as cartas psicografadas
como prova para a condenação ou absolvição do réu, no tri-
bunal do júri. Portanto, faz-se necessário um estudo aprofun-
dado e claro a respeito do assunto.

Para tanto, temos uma breve exploração do que seriam


cartas psicografadas e dos seguintes questionamentos: cartas
psicografadas podem ser usadas como meio de prova no tri-
bunal do júri? É um tipo de prova? Não é um tipo de prova?
Quando e como utilizá-las? O que diz a Constituição brasi-
leira? Há a possibilidade da utilização de cartas psicografadas
no tribunal do júri?

Assim sendo, ao levantarmos os questionamentos


acima citados e levando em consideração a importância do
estudo aprofundado sobre cada um, é que colocamos em des-
taque seu objetivo principal que é a validade jurídica das car-
tas psicografadas no tribunal do júri, e, partindo daí, teremos

151 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

que identificar e citar o que é prova, os meios de provas admi-


tidos pelo Processo Penal, para depois apurar se uma carta
psicografada é constitucionalmente válida e saber como se dá
de forma legal a dinâmica do contraditório no Tribunal do Júri.

Vale ressaltar que, a pesquisa sobre a legalidade das


cartas psicografadas utilizadas como meio de prova no Tribu-
nal do Júri é de grande importância, visto que, trata-se de um
assunto que levanta muitos debates no Direito, como ocorreu
após a apresentação destas no Plenário do Tribunal do Júri no
dia do julgamento do caso do incêndio ocorrido na Boate Kiss,
por Tatiana Barbosa, advogada de Marcelo de Jesus dos San-
tos, parte ré.

Procura-se enfrentar essa problemática, analisa-se o


que diz a lei sobre o assunto, se há alguma proibição ex-
pressa, além de comentar a jurisprudência, para que se torne
possível uma conclusão clara, imparcial e fundamentada so-
bre o tema.

Cartas psicografadas não são novidades no meio jurí-


dico, uma vez que já houve muitos outros casos em que estas
foram utilizadas. Apesar de não ser um tema novo, este é um
assunto atual, que traz novas indagações e questionamentos

152 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

sobre sua validade e pode ocorrer em qualquer município bra-


sileiro.

Vale ressaltar que serão abordadas questões relevan-


tes sobre a religião espírita, principalmente no Brasil onde se
encontra o maior número de pessoas espíritas. E, tendo um
dos mais importantes médiuns, Chico Xavier, que já teve uma
de suas cartas psicografadas usada em um processo judicial.
Portanto, é de suma importância o conhecimento deste tema,
especialmente no que diz respeito à validade jurídica de cartas
psicografadas no Tribunal do Júri.

A metodologia utilizada foi o estudo de pesquisas bibli-


ográficas para ampliar o conhecimento no processo penal e
ressaltar que os assuntos em questão possuem abordagem
qualitativa, com objetivo exploratório. Foram realizadas pes-
quisas em livros, artigos científicos, leis e jurisprudência. Além
de coletar dados processuais, viabilizando assim o desenvol-
vimento do trabalho.

5.1 CARTAS PSICOGRAFADAS

A psicografia trata-se de uma técnica de escrita utili-


zada por médiuns, sendo classificada por Allan Kardec como

153 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

um tipo de manifestação inteligente, a qual passou a ser reco-


nhecida por volta do século XIX, na Europa, tendo como in-
fluência o positivismo e cientificismo. Contudo, deve-se ressal-
tar que a mediunidade, está presente na história da humani-
dade, desde o início dos tempos.

Neste caso, trata-se de um sistema passível de questi-


onamentos, suscetível a reformulações e correções. Visto
que, estas revelações se dão por espíritos mortos, e não por
divindades como acontece nas religiões, chamado de escrita
do sagrado, como, por exemplo, Corão, Bíblia e Vedas.

A prática da escrita psicográfica pode ser considerada


o ato de escrever realizado por uma pessoa dotada de mediu-
nidade, a qual a exercita por um espírito que transmite a men-
sagem, esta sendo neural que se dá a partir da glândula pineal
ou epífise, que está localizada no cérebro do médium.

A glândula pineal capta o campo eletromagnético, por


onde se faz uma ligação espiritual. Não só se trata do espiri-
tismo, mas qualquer religião que estiver fazendo uma prece,
podendo ser católico, protestante, hindu. Assim, estará ati-
vando sua capacidade de se conectar com o mundo espiritual,
de acordo com Oliveira (1996).

154 | P á g i n a
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Kardec, em O Livro dos Médiuns (2013d [1861], p. 410),


traz a definição de médium como alguém que é intermediário
entre espíritos e os seres humanos. Sendo assim, a “faculdade
dos médiuns”, a mediunidade, possui dois sentidos:

[...] todo aquele que sente, num grau qualquer, a


influência dos Espíritos é, por esse fato, médium.
Essa faculdade é inerente ao homem; não cons-
titui, portanto, um privilégio exclusivo. Por isso
mesmo, raras são as pessoas que dela não pos-
suam alguns rudimentos. Pode, pois, dizer-se
que todos são, mais ou menos, médiuns. Toda-
via, usualmente, assim só se qualificam aqueles
em quem a faculdade mediúnica se mostra bem
caracterizada e se traduz por efeitos patentes, de
certa intensidade, o que então depende de uma
organização mais ou menos sensitiva (KARDEC,
2013d [1861], p. 171).

Apesar desta faculdade ser um fenômeno natural do ser


humano, ela se manifesta de diferentes maneiras, o qual não
é considerado crença, mas sim as aptidões que se manifestam
conforme a sensibilidade e percepção de cada um. Com isso,
os médiuns são divididos em dois grandes grupos: os de efei-
tos físicos e de efeitos inteligentes.
Posto isso, deve-se considerar com prioridade a mediu-
nidade de efeitos inteligentes, onde a psicografia se encontra.
Assim, também chamada de efeitos subjetivos, o médium age

155 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

como intérprete das ideias transmitidas pelos espíritos, utili-


zando o intelecto e a racionalidade. São eles: a intuição, a vi-
dência, a audiência, o desdobramento, a psicometria, a psico-
grafia e a psicofonia.
Deve ainda ser, segundo Allan Kardec (O Livro dos Mé-
diuns, Cap. 2), para ser uma manifestação inteligente, um ato
livre e voluntário, de maneira sábia onde o médium possua
boas condições morais e doutrinárias. Os médiuns psicográfi-
cos ou escreventes, possuem outras subdivisões, sendo os
principais eles: médium mecânico, médium intuitivo e o mé-
dium semimecânico.
O médium mecânico é aquele que no momento da co-
municação o espírito impulsiona a mão do intermediário para
escrever de maneira involuntária e sem nenhuma consciência
do que escreve:

Quando atua diretamente sobre a mão, o Espírito


lhe dá uma impulsão de todo independente da
vontade deste último. Ela se move sem interrup-
ção e sem embargo do médium, enquanto o Es-
pírito tem alguma coisa que dizer, e para, assim
ele acaba. Nesta circunstância, o que caracteriza
o fenômeno é que o médium não tem a menor
consciência do que escreve. Quando se dá, no
caso, a inconsciência absoluta; têm-se os mé-
diuns chamados passivos ou mecânicos. É pre-
ciosa esta faculdade, por não permitir dúvida al-

156 | P á g i n a
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guma sobre a independência do pensamento da-


quele que escreve (KARDEC, 2013d [1861], p.
186).

O médium intuitivo, como descreve Kardec, diferentemente


do primeiro, não possui movimentos involuntários. Agora a co-
municação se dá por pensamentos do espírito, que serão
transmitidos ao intermediário, o qual irá escrever consciente-
mente. Sendo definido por Kardec (2013d [1861], p. 186).

O Espírito livre, neste caso, não atua sobre a


mão, para fazê-la escrever; não a toma, não a
guia. Atua sobre a alma, com a qual se identifica.
A alma, sob esse impulso, dirige a mão e esta
dirige o lápis. Notemos aqui uma coisa impor-
tante: é que o Espírito livre não se substitui à
alma, visto que não a pode deslocar. Domina-a,
mau grado seu, e lhe imprime a sua vontade. Em
tal circunstância, o papel da alma não é o de in-
teira passividade; ela recebe o pensamento do
Espírito livre e o transmite. Nessa situação, o mé-
dium tem consciência do que escreve, embora
não exprima o seu próprio pensamento. É o que
se chama médium intuitivo.

Por fim, o médium semimecânico, trata-se de uma jun-


ção dos anteriores. Visto que, o intermediário movimenta sua
mão de maneira involuntária, como foi descrito no primeiro.
Contudo, ele tem consciência das palavras e frases na mesma

157 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

proporção que as escrevem. Sendo esse o mais comum, Kar-


dec (2013d [1861], p. 187).

No médium puramente mecânico, o movimento


da mão independe da vontade; no médium intui-
tivo, o movimento é voluntário e facultativo. O
médium semimecânico participa de ambos esses
gêneros. Sente que à sua mão uma impulsão é
dada, mau grado seu, mas, ao mesmo tempo,
tem consciência do que escreve, à medida que
as palavras se formam. No primeiro o pensa-
mento vem depois do ato da escrita; no segundo,
precede-o; no terceiro, acompanha-o. Estes últi-
mos médiuns são os mais numerosos

Apesar de a psicografia ser entendida como uma ciên-


cia, foi na Doutrina Espírita que o fenômeno mediúnico foi es-
tudado de maneira precisa e através dela se tornou bastante
conhecido. Portanto, entende-se que esta escrita desempe-
nha um papel determinante na constituição e legitimação do
espiritismo.

E assim, busca-se comprovar a hipótese da vida após


a morte, a mediunidade, e a comunicação com os mortos, atra-
vés do registro material, ou seja, as cartas psicografadas
(MASCARENHAS, 2013, p. 375-398). Anteriormente, as co-
municações se davam por pancadas, as quais eram bastante
demoradas, eram realizadas em torno de mesas de preferên-

158 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

cia pequenas, chamadas “mesas girantes”. Porém, este mé-


todo era visto como brincadeira, demonstrando desdém e des-
crença na visão de Kardec.

Logo, surgem os primeiros registros da escrita mediú-


nica onde um lápis era preso a uma prancheta, ou “cesta de
bico”, conforme descrito por Kardec (2013d [1861], p. 20-22),
método este indireto e pode se dizer arcaico, e ainda através
de batidas na mesa. Com isso, surge a forma já conhecida,
em que o intermediário por meio de suas mãos escreve, con-
forme a interação que este tiver com o espírito, denominada
“direta e manual” em O Livro dos médiuns, Kardec (2013d
[1861]) onde estabelece esta distinção.

Deste modo, pode-se afirmar que o desenvolvimento da


psicografia se deu através do Espiritismo, portanto, de matriz
religiosa. E a doutrina kardecista baseia sua fundamentação e
explicações sobre essas atividades sobrenaturais (MASCA-
RENHAS, 2013).

Chegado ao Brasil há cerca de 150 anos, sendo os imi-


grantes os principais divulgadores, despertando interesse
principalmente à classe média urbana (STOLL, 2003, P.49). A
partir deste momento a literatura espírita se destacou, um dos
motivos pelos quais o Brasil tem o maior número de adeptos e
simpatizantes da religião.

159 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

Além disso, Chico Xavier foi considerado o maior mé-


dium espírita brasileiro, com mais de 490 livros psicografados,
e mais de 15 mil cartas consoladoras. Nas suas obras, per-
cebe-se os detalhes bastante específicos, como apelidos ínti-
mos, acontecimentos que somente a família teria conheci-
mento e outros. Além de suas cartas serem escritas em varia-
dos estilos e idiomas (inglês, alemão, italiano, francês e ou-
tras), sendo assim, presume que vários espíritos se comuni-
cavam com ele (MELO, 2013, p. 166).

Através da literatura espírita de Chico Xavier, houve o


momento de maior repercussão na mídia, adaptações televisi-
vas, teatrais e cinematográficas de sua obra ou de sua biogra-
fia. Alcançando assim, visibilidade dentro e fora do país, cons-
truindo assim a trajetória cultural do Brasil.

Neste contexto pode-se concluir que a mediunidade


além de ser uma questão de fé, também é uma questão cien-
tífica, biológica e natural dos seres humanos. Que a partir
disso, foram criadas as cartas psicografadas, as quais pos-
suem grande valor sentimental, e muitas vezes esclarecedo-
ras. Mas será que poderiam ser consideradas meios de prova
no direito penal brasileiro?

160 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

5.2 PROVAS NO PROCESSO PENAL

O Código de Processo Penal, introduzido no ordena-


mento jurídico brasileiro pelo Decreto-lei 3.689, de 3 de outu-
bro de 1941, entrou em vigor em 1° de janeiro de 1942. Du-
rante sua edição, vigorava a constituição de 1937, conhecida
como “Polaca” por ser inspirada na constituição da Polônia,
que era de tendência fascista, ou seja, todo o poder estava
centrado nas mãos do líder do governo. O governo poderia
tomar qualquer decisão sem consultar previamente os repre-
sentantes da sociedade (Scarance, 2011).
Desde sua publicação, passamos por três Constitui-
ções: 1946, 1967 e 1969 até chegarmos à Constituição de
1988. Diversos artigos do Código foram revogados tanto pelas
Constituições como também por leis infraconstitucionais, em
virtude do crescente processo de redemocratização. Portanto,
os anos foram se passando e o Código de Processo Penal em
virtude de ser um instrumento legislativo foi ficando ultrapas-
sado e carecedor de reformas sistêmicas urgentes, principal-
mente para alinhá-lo ao texto constitucional vigente.
O termo prova teve origem do latim probatio, que signi-
fica exame, argumento, verificação, ou seja, é o ato que busca
comprovar a verdade dos fatos a alguém. Para Garcia (2011),

161 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

no contexto jurídico, o exercício da prova consiste em demons-


trar e reproduzir situações no processo judicial. Desta forma,
afirma que a palavra prova é plurissignificante, pois pode refe-
rir-se a um meio, um resultado ou uma atividade.
Estes três sentidos que podem definir a prova também
são mencionados por Nucci (2022). Assim, o meio irá tratar do
instrumento pelo qual será demonstrada a veracidade de algo,
como, por exemplo, a prova testemunhal. O resultado da ação
de provar é o produto decorrente da operação da prova, na
busca e apuração da verdade. E por fim, a atividade que é o
método de que se valem as partes do processo para produzir
as provas, e estas serão devidamente analisadas, como
ocorre na fase probatória do processo. Assim sendo, conclui-
se que o processo penal e a prova integram os modos de cons-
trução do convencimento do julgador que influenciará na sua
convicção e legitimará a sentença.

5.2.1 CONSIDERAÇÕES SOBRE PRINCÍPIOS EM MATÉRIA


PROBATÓRIA

O acusado é presumido inocente, conforme dispõe o


art. 5º, LVII da Constituição, onde está previsto que ninguém
será considerado culpado até o trânsito em julgado de sen-
tença penal condenatória.

162 | P á g i n a
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Em regra, o juiz não poderá condenar alguém cuja cul-


pabilidade não tenha sido completamente provada, respei-
tando o princípio do in dubio pro reo (a dúvida interpreta-se em
favor do acusado). Além disso, deve-se observar o princípio
do contraditório, previsto no art. 5º, LV, CF, que consiste na
ciência bilateral das partes a respeito da realização dos atos
processuais.
É importante salientar que o contraditório e a ampla de-
fesa são princípios jurídicos fundamentais do processo judicial
moderno. Os dois princípios geralmente caminham de ma-
neira bastante próxima e o art. 5º, LV, da Constituição Federal
preceitua que “aos litigantes, em processo judicial ou adminis-
trativo, e aos acusados em geral são assegurados o contradi-
tório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela ineren-
tes”, colocando os dois próximos. Essa aproximação pode até
mesmo ser confundida com similaridade, principalmente no
processo civil, contudo os desdobramentos de cada direito têm
consequências particulares.
O contraditório é igualmente aplicável à acusação e à
defesa, razão pela qual ambos devem ser informados dos au-
tos praticados para eventualmente refutá-los. Ou seja, os dois
elementos básicos do contraditório são: necessidade de infor-
mação e possibilidade de reação. Isto é, o contraditório seria,
assim, a necessária informação às partes e a possível reação

163 | P á g i n a
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a atos desfavoráveis, contraditório se faz tão importante para


o bom andamento do processo penal que o art. 155 do Código
de Processo Penal veda a fundamentação de sentença do ma-
gistrado pautada unicamente em elementos colhidos durante
a investigação, ressalvadas as provas cautelares, as que não
são repetíveis e as antecipadas.
A ampla defesa é o conjunto de meios que os acusados
penalmente dispõem para rechaçar uma acusação que consi-
deram injustas ou excessivas. Vale ressaltar também que a
ampla defesa manifesta-se por meio da defesa técnica, exer-
cida por um advogado ou um defensor público, e a autodefesa,
exercida pelo próprio acusado. A defesa técnica é exercida por
um profissional com capacidade postulatória, que a exerce no
melhor interesse do réu no âmbito do processo criminal. Já a
autodefesa é aquela realizada pelo próprio acusado nos mo-
mentos processuais em que tem a possibilidade de se mani-
festar.
De acordo com Nucci (2022), a ampla defesa e a pleni-
tude de defesa são princípios que se complementam. Con-
tudo, o segundo princípio é o principal foco, pois este só é pos-
sível em casos de crimes dolosos contra a vida, e se desen-
volve no Tribunal do Júri, assim como prevê o artigo 5º, inciso
XXXVIII, da Constituição Federal.

164 | P á g i n a
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5.2.2 OS TIPOS DE PROVAS

As provas podem ser classificadas de várias formas,


sendo a divisão clássica compreendida em três tipos básicos:
documental, pericial e testemunhal. Estes são normalmente
considerados típicos, pois são previstos e regulados com pro-
cedimentos próprios nos ordenamentos processuais penais
(SCARANCE, 2011).

O documento é definido pelo artigo 232 do Código de


Processo Penal como escritos, instrumentos ou papéis, públi-
cos ou privados. No entanto, a doutrina jurídica sentiu a ne-
cessidade de ampliar esse conceito, a fim de que se tornasse
mais apropriado aos casos concretos analisados, bem como
instruísse melhor a produção de prova. A prova documental,
possui uma grande força de convencimento e registra materi-
almente algum fato.

A prova pericial é formada por exames, avaliações ou


vistorias, que leva ao conhecimento do julgador os fatos. Con-
forme Scarance (2011), ela serve para comprovação da exis-
tência do crime e bastante utilizada no desvendamento da au-
toria. Com isso, Fernando da Costa Tourinho Filho (2003) de-
fine que a perícia é um exame realizado por uma pessoa que

165 | P á g i n a
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possui conhecimentos específicos, técnicos e científicos


acerca dos fatos, no intuito de comprová-los.

Portanto, deve ser realizado por meio de métodos cien-


tíficos e que, normalmente, também representa um “grande
peso” na convicção do magistrado. Está previsto no art. 275
do Código de Processo Penal Brasileiro.

Diferentemente da documental, onde a juntada ocorre


na inicial ou na contestação, esta será constituída no decorrer
do processo. Ela está presente nos artigos 158 a 184 do Có-
digo de Processo Penal, os quais abrangem o corpo de delito
e outras perícias específicas, as quais farão a avaliação cien-
tífica dos vestígios deixados no local do crime, ou até mesmo
na vítima.

A prova testemunhal, tem como objeto principal a tes-


temunha que, conforme Malatesta (1927), é esta a pessoa que
revela o que sabe sobre os fatos que teve conhecimento atra-
vés dos seus sentidos corporais como a visão e audição, prin-
cipalmente, mas também, pelo tato, paladar e olfato. Deve se
considerar ainda, que, segundo dispõe Malatesta (1927), o
fundamento desta prova é a presunção da veracidade hu-
mana, ou seja, supõe-se que mesmo o ser humano podendo
mentir, este optará por falar a verdade.

166 | P á g i n a
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5.2.3 MEIOS DE PROVAS

Os meios de provas são aqueles através dos quais o


juiz tomará conhecimento da veracidade ou não de determi-
nada situação fática, a fim de formar sua convicção para deci-
dir sobre o caso. São meios de prova, dentre outros, a decla-
ração do ofendido, a prova testemunhal, a prova pericial, a
prova exame de corpo de delito, e o interrogatório.

É importante ressaltar que, meio de prova não é o


mesmo que objeto de prova, ou seja, o sujeito que presta de-
poimento não é meio de prova, mas sim o seu depoimento. O
meio de prova alcança uma finalidade, assim, todas as partes
têm o direito de empregar todos os meios legais de provas.

Das provas em espécie, os meios de produção de pro-


vas previstos em lei, encontram-se nos artigos de 158 a 250,
do Código Processual Penal Brasileiro. De acordo com Nucci
(2022) são estes: perícia, exame de corpo e delito, interroga-
tório, confissão, ofendido, testemunha, reconhecimento de
pessoas e coisas, acareação, documentos, indícios e busca e
apreensão.

A perícia, trata-se do momento que o juiz se utiliza do


exame pericial, resultante no laudo pericial, sendo o docu-

167 | P á g i n a
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mento elaborado pelos peritos, resultante do que foi exami-


nado na perícia. O exame de corpo e delito, são elementos
materiais ou vestígios que indicam a existência de um crime.
Este é uma importante prova pericial, sua ausência em caso
de crimes que deixam vestígios gera a nulidade do processo.

O interrogatório é o momento em se ouve o acusado


sobre a imputação a ele dirigida; o interrogatório é considerado
um meio de prova porque leva elemento de convicção ao jul-
gador. Este é um ato obrigatório da instrução, e sua importân-
cia é relativa, pois

quando o acusado invoca o direito ao silêncio e


nada diz, de sua atitude não pode brotar ne-
nhuma presunção contra a sua defesa. Por outro
lado, ao fornecer a sua versão dos fatos, tem in-
tegral liberdade de mentir, sem que possa ser por
isso apenado.(NUCCI, 2022)

Portanto, esta é a oportunidade do acusado apresentar


sua versão dos fatos. Deste modo, deve ser um ato espontâ-
neo, ser qualquer forma de pressão ou coação

A testemunha é qualquer pessoa que narra os fatos de


que tenha conhecimento, acerca do objeto da causa. Deve-se
ressaltar que, toda e qualquer pessoa pode ser testemunha
(art. 202 do CPP), porém os que prestam esclarecimento sem

168 | P á g i n a
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o compromisso de dizer a verdade são somente declarantes


(NUCCI 2022). Por este motivo, possui uma grande possibili-
dade de ser falha, pois não é possível muitas vezes discernir
o comportamento humano. Contudo, em muitos processos
este é o único meio de prova possível, por consequência uma
das mais utilizadas no âmbito jurídico. De maneira que se
torna fundamental ferramenta para o processo penal.

No reconhecimento de pessoas e coisas, uma pessoa


admite e indica como certa, a identidade de outra ou a quali-
dade de uma coisa. Para que isso ocorra deve haver, previa-
mente, uma descrição de quem ou do que precisa ser reco-
nhecido, conforme Nucci (2022).

Acareação é quando se colocam frente a frente duas ou


mais pessoas que fizeram declarações divergentes sobre o
mesmo fato. Para assim, provar a retratação de quem está
mentindo, visando à busca da verdade. Sua relevância é mí-
nima.

A prova documental, é o documento constituído especi-


ficamente para servir de prova para o ato ali representado. A
relevância do documento é inconteste, sendo uma prova direta
e de fácil assimilação. Desse modo, as cartas, por exemplo,
podem ser consideradas documentos.

169 | P á g i n a
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Indícios são meios de prova indireta, bastante relevan-


tes para a sustentação de uma condenação. Estes se baseiam
em dados isolados e conhecidos, e através do raciocínio indu-
tivo pode-se chegar a alguma conclusão.

Por fim, conforme Nucci (2022), a busca e apreensão


possuem natureza tanto investigatória quanto assecuratória.
Portanto, sua finalidade é levantar provas ou encontrar objetos
úteis ao processo, ou à vítima. E, além disso, garante que os
bens sejam retidos para futura devolução ao ofendido ou para
a produção de prova.

Conclui-se que a finalidade da prova é a demonstração


lógica da realidade com o único objetivo de subsidiar ao ma-
gistrado a certeza em relação aos fatos discorridos e alega-
dos, no que diz respeito à verdade processual. Todo conteúdo
sobre prova, será importante para acontecer a efetivação da
justiça.

5.3 AS CARTAS PSICOGRAFADAS NO TRIBUNAL DO


JÚRI

Em 1822 foi instituído o Júri no Brasil, com a finalidade


de julgar os delitos de abuso da liberdade de imprensa. Depois
foi incluído no capítulo referente ao Poder Judiciário, sendo

170 | P á g i n a
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ainda prevista a possibilidade de o Tribunal julgar causas cí-


veis e criminais.
Atualmente, a Constituição Federal de 1988 disciplina a
instituição do Tribunal Popular no capítulo referente aos Direi-
tos e Garantias Fundamentais, em seu art. 5º, inciso XXXVIII,
onde afirma que:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distin-


ção de qualquer natureza, garantindo-se aos bra-
sileiros e aos estrangeiros residentes no País a in-
violabilidade do direito à vida, à liberdade, à igual-
dade, à segurança e à propriedade, nos termos
seguintes:
XXXVIII - e reconhecida a instituição do júri, com
a organização que lhe der a lei, assegurados:
a) a plenitude de defesa;
b) o sigilo das votações;
c) a soberania dos veredictos;
d) a competência para o julgamento dos crimes
dolosos contra a vida;

E ainda conforme o professor Fernando Capez, o Tribunal do


Júri:

Sua finalidade é ampliar o direito de defesa dos


réus, funcionando como uma garantia individual
dos acusados pela prática de crimes dolosos
contra a vida e permitir que, em lugar do juiz to-
gado, preso a regras jurídicas, sejam julgados
pelos seus pares.

171 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

O Tribunal do Júri é formado por 23 jurados, cidadãos


leigos os quais passam por uma pré-seleção, entre pessoas
comuns da sociedade, brasileira (natas ou naturalizadas), mai-
ores de 18 anos, de notória idoneidade, alfabetizadas, no gozo
de seus direitos políticos e residentes na comarca. Ainda, via
de regra, entre pessoas que não sofrem de deficiências em
suas faculdades mentais. Além da participação do juiz, presi-
dente do Júri.
Vale salientar que é obrigatório servir como jurado no
Tribunal do Júri. Contudo, conforme o artigo 437 do Código de
Processo Penal, em seus incisos afirma que estão isentos
destes serviços o Presidente da República e os Ministros de
Estado; os Governadores e seus respectivos Secretários; os
membros do Congresso Nacional, das Assembleias Legislati-
vas e das Câmaras Distrital e Municipais; os Prefeitos; os Ma-
gistrados e membros do Ministério Público e da Defensoria Pú-
blica; os servidores do Poder Judiciário, do Ministério Público
e da Defensoria Pública; as autoridades e os servidores da
polícia e da segurança pública; os militares em serviço ativo;
os cidadãos maiores de 70 (setenta) anos que requeiram sua
dispensa; aqueles que o requererem, demonstrando justo im-
pedimento.
Portanto, serão os cidadãos que atenderem os requisi-
tos anteriormente citados que irão tomar a decisão da questão

172 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

posta à sua apreciação sob juramento, conforme a sua cons-


ciência e livre convicção. Exercendo assim, um direito humano
fundamental, uma vez que o Tribunal Popular é uma instituição
que dá permissão ao cidadão brasileiro tomar parte nos as-
suntos do Judiciário.
Desta forma, apresentadas as considerações pertinen-
tes sobre psicografia e os meios de prova admitidos pelo Tri-
bunal do Júri, deve-se ressaltar que as cartas psicografadas
por serem consideradas provas documentais podem ser utili-
zadas como objeto de prova, e devem ser submetidas a todas
as regras que se refere às provas documentais. Assim, esta
poderá passar por um exame grafológico, para poder ser ga-
rantido aos participantes do plenário do Júri maior veracidade
(OLIVEIRA, 2017).
Como é sabido, a perícia é um meio de prova que se
respalda por um exame realizado por um profissional, que pos-
sui conhecimentos técnicos específicos, a respeito de fatos
necessários à causa. Trata-se, portanto, de um juízo técnico,
exercido por especialista, com o ideal de prestar auxílio ao ma-
gistrado. (CAPEZ. 2013).
Perícia grafotécnica é a responsável por avaliar as cau-
sas geradoras e modificadoras da escrita, por metodologia
adequada, para que assim seja comprovada sua autenticidade
gráfica e da autoria gráfica. Logo, no art. 174 do Código de

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Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

Processo Penal estão previstas regras para que se haja o re-


conhecimento da escrita por comparação da letra,

Art. 174. No exame para o reconhecimento de


escritos, por comparação de letra, observar-se-á
o seguinte:
I – a pessoa a quem se atribua ou se possa atri-
buir o escrito será intimada
para o ato, se for encontrada;
II – para a comparação, poderão servir quaisquer
documentos que a dita
pessoa reconhecer ou já tiverem sido judicial-
mente reconhecidos como de
seu punho, ou sobre cuja autenticidade não hou-
ver dúvida;
III – a autoridade, quando necessário, requisi-
tará, para o exame, os
documentos que existirem em arquivos ou esta-
belecimentos públicos, ou
nestes realizará a diligência, se daí não puderem
ser retirados;
IV – quando não houver escritos para a compa-
ração ou forem insuficientes
os exibidos, a autoridade mandará que a pessoa
escreva o que lhe for
ditado. Se estiver ausenta a pessoa, mas em lu-
gar certo, esta última
diligência poderá ser feita por precatória, em que
se consignarão as
palavras que a pessoa será intimada a escrever.
(BRASIL, 1988).

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Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

A carta psicografada deve ser utilizada conjuntamente


com outras provas que foram produzidas no âmbito do pro-
cesso. Desta forma, deve ainda ser analisada por seu caráter
científico, estando em conformidade com a laicidade estatal e
com os princípios, contraditório e ampla defesa. Visto que,
mesmo que haja um exame grafotécnico, que verifica a vera-
cidade do documento, não há como saber se o conteúdo da
carta é verdadeiro, somente quem a escreveu.
A utilização destas cartas não é novidade, visto que já
foram apresentadas em alguns processos no Tribunal do Júri.
E, em alguns casos muito importantes, que se tornaram famo-
sos no meio jurídico, como, por exemplo, o caso da Boate
Kiss, em Santa Maria/RS.
No dia 26 de janeiro de 2013, estudantes da Universi-
dade Federal de Santa Maria organizaram uma festa denomi-
nada “Agromerados”, que teve a estimativa de 500 a 1000 pes-
soas na boate. Na madrugada do dia 27 de janeiro de 2013,
enquanto se apresentava a banda “Gurizada Fandangueira”,
o vocalista Marcelo, acendeu o artefato chamado Sputnik, que,
conforme a Associação Brasileira de Pirotecnia (ABP), deve
ser usado em ambiente externo. E, acabou ateando fogo na
espuma de isolamento acústico, que se espalhou em minutos
pelo local.

175 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

A princípio, muitos foram impedidos de sair pela única


porta de saída, por acreditarem ser somente uma briga e não
um incêndio, e também evitando que saíssem sem pagar o
consumo. Com isso, muitas pessoas confundiram as portas
dos banheiros com portas de emergências, onde foram encon-
trados 90% dos corpos. Resultando em um total de 242 víti-
mas fatais, a maioria asfixiada pela fumaça, e 600 feridos.
Causando não somente danos aos envolvidos, mas esta tra-
gédia também chocou e comoveu o país inteiro.
Porém, somente após 9 anos foram condenados quatro
réus por homicídio simples com dolo eventual. Sendo eles, Lu-
ciano Bonilha Leão, produtor da banda Gurizada Fandan-
gueira, Marcelo de Jesus dos Santos, músico do grupo, além
de Elissandro Spohr e Mauro Londero Hoffmann, sócios da
boate Kiss, pelo Tribunal do Júri no dia 10 de dezembro de
2021.
Na tentativa de inocentar seu cliente, o vocalista, e os
outros réus, a advogada de defesa Tatiana Borsa apresentou
a carta psicografada em nome de Guilherme Gonçalves, uma
das vítimas da tragédia. Esta foi escrita por um médium de
Uberaba, seis meses depois do ocorrido. Onde diz que deve-
riam ser aceitas as determinações divinas, e que os culpados
não tiveram intenção na tragédia acontecida. Foi considerado
por muitos como uma atitude desrespeitosa e sensacionalista.

176 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

Assim sendo, neste caso da boate Kiss houve a admis-


sibilidade da carta como meio de prova. E consequentemente,
o Júri teve por entendimento que os réus deveriam ser conde-
nados, no julgamento que começou em 01/12/2021 e teve o
fim em 10/12/20. Mas, o julgamento foi anulado, por questões
referentes ao andamento e aos procedimentos formais que de-
vem ser respeitados durante o julgamento.
Mas, vale reforçar que pela plenitude de defesa pode
ser apresentada ao Júri qualquer meio que tenha a possibili-
dade de provar a inocência do réu, possibilitando a absoluta,
total e completa produção de sua defesa. Sendo assim, des-
tacam-se alguns argumentos a favor da admissibilidade da
psicografia, como dito anteriormente, não existe oposição ex-
pressa no nosso ordenamento jurídico; a doutrina espírita é
uma ciência, que possui explicações racionais. É de suma im-
portância saber que mesmo o Estado sendo laico não significa
dizer que ele não aceita a religião, mas que não tem religião
oficial.
Há aqueles que defendem não ser possível a utilização,
pois desrespeitaria os princípios gerais de direito, à moral e
aos bons costumes. Além de afirmarem que a prova ilícita é
gênero do qual a prova ilegal e a prova ilegítima são espécies,
eis que a ilicitude manifesta a contrariedade ao ordenamento

177 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

jurídico de modo geral, compreendendo, portanto, o dano às


normas de direito material e processual.
E também, o Direito não pode reconhecer provas base-
adas em religião; não é possível juramentar o “espírito” em um
tribunal e nem indicá-lo por falsidade documental; a admissi-
bilidade fere a segurança jurídica e o Estado de Direito; a pre-
dição de quem pode ser testemunha, disposta no art. 202 do
CPP, não faz referência direta a espíritos. (OLIVEIRA, 2017).
Este argumento afirma que a psicografia é um elemento religi-
oso, uma crença que se deu a partir da Doutrina Espírita, po-
dendo ser considerado um retrocesso histórico confundir reli-
gião com direito.
Assim, o Ministério Público segue este mesmo entendi-
mento, pois o conteúdo das cartas, bem como a sua autoria,
não é passível de comprovação pela razão, tendo em vista se
tratar de um fenômeno cuja veracidade depende apenas da fé.
Pode-se dizer que considerar a validade jurídica das cartas
seria o mesmo que possibilitar ao Estado uma intromissão na
convicção religiosa dos participantes do processo.
O primeiro caso, que se utilizou as cartas psicografadas
no Brasil, ocorreu quando a viúva e os três filhos do escritor
Humberto de Campos, no ano de 1944, impetraram Ação na
Justiça, no âmbito Cível, reivindicando a titularidade dos direi-
tos autorais dos livros ditados pelo espírito de Humberto de

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Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

Campos ao conceituado médium psicógrafo Francisco Cân-


dido Xavier.
E também, já houve casos no Brasil, no âmbito penal,
em que houve absolvição de réus, onde as vítimas de assas-
sinatos buscavam inocentá-los, como o caso de Henrique
Emmanuel Gregoris, que as cartas foram escritas por Chico
Xavier. Este caso trata-se de um homicídio, que ocorreu na
cidade de Aparecida, Goiânia. Este foi o primeiro caso em que
Chico Xavier levou a mensagem psicografada para o âmbito
penal.
Henrique estava com seu amigo, João França e mais
duas moças, “brincando” de roleta russa. Com isso, João aci-
dentalmente atira em Henrique, levando-o à morte. Deste
modo, João Batista França foi acusado de cometer crime de
homicídio doloso, pois não tinha intenção de matá-lo, mas as-
sumiu o risco que isto poderia acontecer.
O magistrado responsável pelo caso era Orimar de
Bastos, que julgou improcedente a acusação com fundamento
nas evidências das provas e perícia de que o réu não agiu com
dolo nem culpa, e também considerou a mensagem psicogra-
fada, e assim foi absolvido. Porém, vale ressaltar que não foi

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Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

a carta que o absolveu, mas sim a decisão dos jurados do Tri-


bunal Júri, e que havia sido um acidente entre amigos
(SOUZA, 2021).
Os jurados não precisam votar com fundamentação nas
provas, mas sim de acordo com seu entendimento, e este
pode ter alguma base religiosa ou não. Sabe-se, portanto, que
as cartas psicografadas já foram aceitas como meio de provas
não só nesses casos, mas em outros. Apesar disso, elas não
são devidamente reconhecidas.
Outro caso famoso é o de Iara Marques Barcelos, uma
senhora de 63 anos que conseguiu absolvição da acusação
do assassinato de Ercy da Silva Cardoso, ambos tinham um
relacionamento amoroso extraoficial, no Rio Grande do Sul.
Iara foi acusada de encomendar o assassinato de Ercy, que
sofreu dois disparos de arma de fogo.
Em seu julgamento, duas cartas psicografadas foram
utilizadas como prova, uma endereçada a Iara e a outra ao
marido dela. O advogado de Iara, após ter conhecimento do
conteúdo das mesmas, afirmou que elas eram “ponto de de-
sequilíbrio do julgamento”. Logo, foi de fundamental importân-
cia para absolvição de Iara, cinco votos a inocentaram.

180 | P á g i n a
Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

Diante destes casos, apesar das complicações, pode-


se perceber que é possível a utilização das cartas psicografa-
das no Tribunal do Júri. Já que não há norma que a proíba, e
assim pode ser analisada conjuntamente com os demais ele-
mentos probatórios. Assim, auxilia na busca da verdade real
dos fatos a ser decidido pelos juízes leigos da sociedade, es-
senciais para a absolvição ou condenação do réu, devendo
ainda ser imparciais de acordo com suas consciências e se-
gundo os ditames da justiça.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Concluindo o estudo, verificou-se que assuntos relaci-


onados a cartas psicografadas no tribunal do júri são polêmi-
cos, por se tratar de uma questão de religiosidade e crença.
Para colocar a carta psicografada como prova em um pro-
cesso criminal, faz-se necessário sabermos qual a função da
prova.
A prova tem como objetivo reconstruir a verdade dos
fatos a fim de que se alcance uma sentença justa e adequada
ao caso, chegando-se, para tanto, à verdade real. Assim
sendo, podem ser considerados meios de prova toda maneira
de se enriquecer o processo com informações que permitam
esclarecer o que aconteceu, tanto quanto ao fato, como

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Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

quanto à autoria, para se chegar à verdade real a fim de formar


a convicção do juiz de maneira justa.
O Código de Processo Penal, em seu artigo 232, coloca
que a Prova Documental é quaisquer escritos, instrumentos ou
papéis, públicos ou particulares. Ou seja, documentos são: fo-
tografias, vídeos, áudios e demais objetos móveis que possam
ser incorporados ao processo e que executem uma função
persuasiva e probatória, neste caso, a carta psicografada.
No nosso ordenamento jurídico não há presença de ne-
nhuma regra explícita que proíba que o material psicografado
seja admitido no processo. A carta psicografada só não seria
aceita se fosse uma prova classificada como ilícita, mas ela
não ofende nenhuma norma de direito material processual.
Por esses motivos é que muitos juristas aceitam a mesma
como prova. Porém, é importante ressaltar que, é uma respon-
sabilidade muito grande por parte da pessoa que usa a carta
psicografada como prova, seja para absolver ou para conde-
nar. É correr o risco de seus objetivos não serem alcançados
visto que o Brasil é um país laico, portanto, a carta psicogra-
fada só será aceita por quem crê na doutrina espírita ou quem
não tem conhecimento da doutrina espírita e aceite o que for
proposto pela carta psicografada.
E, desta forma, devemos também saber que a carta psi-
cografada pode ser juntada aos autos do processo. Mas, que

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Ciências Jurídicas na Amazônia Sul-Ocidental

a mesma deve somar com as outras provas adquiridas e


nunca sozinha. Assim, não podemos absolver ou condenar al-
guém através de algo que não conseguimos provar a sua exis-
tência.

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185 | P á g i n a
Este livro reúne cinco artigos, na área
de Ciências Jurídicas, redigidos por
concludentes do Curso de Direito da
UNINORTE – Ac, sob a supervisão do
Prof. Esp. Arthur Braga de Souza
EAC
Editor

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