Você está na página 1de 73

Wife without kisses

Violet Winspear

Sem saber direito o que estava acontecendo, Lilian se viu dentro daquele
fantástico carro esporte prateado, ao lado do não menos fantástico Burke Ryeland. O
que queria um homem tão rico e famoso com uma datilógrafa tímida e insignificante
igual a ela? Só tinham se visto uma vez, e ele agora praticamente a arrastava para
jantar em um restaurante caro. Burke tinha estado perdido nas selvas do Peru. Vai ver
isso afetara sua mente. Embaraçada e meio assustada, aceitou o cálice de vinho que ele
lhe ofereceu e perdeu o fôlego quando o ouviu dizer, muito calmo: “Beba e se alegre,
Lilian, por que dentro de cinco minutos vou pedi-la em casamento!”

Digitalização: Desconhecida
Revisão: Samuka
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear

1ª publicação em 1967
1973
1980

2
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear

Capítulo 1

Era um hotel à beira-mar muito requintado: portas automáticas, toalhas e prataria


impecáveis na sala de refeições e uma moça extremamente simpática na recepção.
Enquanto passava a maleta de joias da sra. Damien de uma mão para a outra,
Lilian olhava em volta desanimada, pensando que aqueles hotéis eram sempre iguais.
Seria mais interessante se a sra. Damien escolhesse, ao menos uma vez, uma casa de
campo ou uma velha estalagem com janelinhas no sótão e telhados de sapê!
Pode ser que Laura Damien tivesse imaginação para escrever, era a autora de
vinte e nove best-sellers românticos, mas Lilian vivia continuamente impressionada com
sua falta de imaginação para viver.
Num gesto teatral, Laura assinou o registro. Perguntou pretensiosamente à
recepcionista:
— Tem alguém importante hospedado aqui?
Passou o registro para Lilian, que assinou, observando disfarçadamente a
expressão de espanto da moça, surpresa com a pergunta e impressionada com a
absurda e colorida maquiagem que tornava aquele rosto uma máscara.
Antes que ela pudesse responder, Laura tinha dado meia-volta e olhava para um
homem que se dirigia para o elevador, um cigarro entre os lábios e uma capa de chuva
jogada nos ombros.
— Deus meu! — exclamou. No mesmo instante, correu em direção a ele,
chamando em voz estridente! — Burke! Burke Ryeland!
O homem virou-se, tirando o cigarro dos lábios. Lilian, atrás de Laura, viu que a
expressão dele tornou-se sombria, quando contemplou aquela mulher obesa, as mãos
gorduchas estendidas para ele.
— Meu rapaz, pensei que estivesse morto! — Agarrou-lhe o braço e o sacudiu. —
Todos nós pensamos que estivesse morto e enterrado naquela assustadora selva
peruana!
Ele a olhou, querendo se lembrar de onde a conhecia. Laura percebeu e deu
numa sonora gargalhada.
— Talvez eu tenha engordado um pouco, meu querido, mas com certeza se
lembra de Laura Damien! Eu estava sempre naquelas festas de Shaw Lacey, em
Richmond. Festas malucas! Com Shaw, garoto travesso declamando poemas, e sua
mulher Letty, dançando sempre. Lembra-se? — Sacudiu-lhe o braço outra vez — Tem
que se lembrar!
— Lógico... Shaw Lacey... e Letfy! — exclamou, afinal. — Lawrence no jantar e
sanduíches de pão dormido no café! — Seu rosto, a princípio indiferente, abriu-se num
leve sorriso. — Éramos todos um tanto birutas naquele tempo, não?
Laura concordou e um súbito olhar de nostalgia varreu o ar de autossuficiência do
rosto redondo.
— Seis ou sete anos atrás, mais ou menos... — disse ela. Olhou para Burke
Ryeland, o rosto traindo curiosidade. — Tenho certeza de ter lido em algum lugar que foi
considerado perdido nas selvas do Peru.
— Fui, mesmo — respondeu, lacônico. Depois seu olhar desviou-se de Laura e
pousou em Lilian, cuja juventude e elegância contrastavam fortemente com a
decadência e gordura da outra. Novamente seu semblante se fechou, enquanto Laura

3
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
continuava a falar.
— Esta é minha pequena Lilian Glyn. Ela bate à máquina para mim. Eu realmente
não conseguiria! Continua escrevendo aqueles seus maravilhosos livros sobre viagens,
Burke?
Ele sacudiu a cabeça e Laura fez uma exagerada expressão de tristeza,
segurando seu braço.
— Olhe, vamos jantar juntos. Quero que me fale sobre o Peru. Tenho certeza de
que viveu aventuras interessantíssimas. Preciso saber como foi que se perdeu na selva.
A sugestão não foi recebida com entusiasmo. Ele livrou o braço das unhas
imensas e apertou o botão do elevador.
— Sinto, mas já tenho um compromisso para jantar.
— Então, que tal amanhã? — insistiu ela, tentando uma expressão coquete. —
Pelos velhos tempos, meu querido?
Ele olhou para Laura, taciturno.
— Não estou mais interessado nos velhos tempos, sra. Damien. Eles não têm
nenhum encanto para mim. — Deu meia-volta, ao ouvir o elevador se abrindo e, sem
olhar para trás, entrou.
Laura Damien ficou imóvel. Lilian percebeu que o sangue avermelhava o rosto
pintado.
— Não precisava ser tão grosseiro! — exclamou a mulher, ajeitando a gola de
pele no pescoço. — Mas foi realmente muito grosso. — Virou-se para Lilian. — Pegue
as chaves. Quero descansar um pouco antes do jantar. Minha cabeça está estourando
por causa da viagem.
Laura tinha reservado uma suíte para ela e um quarto para Lilian. Depois de
desfazer as malas, a moça encostou-se na janela. O quarto dava para a avenida
Hastings. Embora uma garoa fina envolvesse a paisagem, Lilian teve um súbito desejo
de estar lá fora, de se libertar daquele quarto e de mais um jantar em companhia de
Laura, da noite jogando cartas com Laura, da conversa opressiva de Laura.
Suspirou. Ficar livre daquele trabalho! Ter dinheiro para ir aonde quisesse! Ir à
China ou Japão! E, quem sabe, ao Peru.
Passou o dedo no vidro embaçado, sonhando. Mas foi repentinamente trazida à
realidade quando a porta se abriu e Laura entrou num negligee de náilon laranja
revelando o corpo gordo. Tinha uma expressão exagerada de sofrimento.
— Querida, tem alguma aspirina? Minha cabeça está me matando e não tenho
nada para tomar.
Lilian procurou na bolsa, mas não encontrou nada que pudesse ajudar.
— Gostaria que eu comprasse alguma coisa?
Laura concordou, mergulhada em autopiedade.
— Poderia me fazer esse favor, querida? Positivamente não tenho condições de
aguentar esta dor por muito tempo!
Lilian pegou o casaco e a bolsa e saiu para o corredor. Correu pela escada como
uma menina, os cabelos castanhos soltos voando. Mais parecia ter quinze do que seus
dezenove anos, o rosto revelando a alegria que sentia por poder escapar por alguns
minutos daquele hotel deprimente.
Sorriu ao sentir a chuva fina no rosto. Tinha um cheiro gostoso de mar. Caminhou
com passos largos, as mãos nos bolsos do casaco, feliz por exercitar as pernas, depois
da longa viagem de trem.
Laura era engraçada. Estavam no meio do Um Amor de Outono, quando
subitamente declarou que a história era insípida, que se sentia insípida e que uma
rápida estadia à beira-mar faria bem para sua cabeça.
— Vamos levar a máquina portátil — anunciou. — No caso de a inspiração voltar.
Vamos para Hastings. Quando era jovem, era um lugar muito especial!

4
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
Lilian descobriu uma farmácia e comprou um vidro grande de aspirinas. Fez o
caminho de volta reparando num carro prateado estacionado em frente ao hotel. Ficou
fascinada, imaginando como seria maravilhoso passear nele. Sem querer, deu um
encontrão num homem que saía do hotel. Quase caiu, mas ele a segurou.
— Tenha cuidado, Lilian Glyn!
Por um breve instante, ela enfrentou uns olhos intensamente azuis. Ele a soltou e
seguiu pela calçada, entrando no carro prateado.
Lilian ficou ali parada, os olhos assustados ainda, vendo-o sumir na neblina.

As aspirinas solucionavam o problema, e logo Laura estava pronta para o jantar.


Desceu em companhia de Lilian.
Entrou majestosa no salão, resplandecente em um vestido de seda verde, um
comprido colar de pérolas e um anelão no dedo indicador. Enquanto seguia o maitre,
olhava com superioridade os outros hóspedes, consciente de estar causando alvoroço e
claramente contente com isto. Segurou afetadamente o menu e comentou:
— Estou me sentindo abandonada esta noite, querida... e isto exige champanhe.
Ordenou o champanhe, enquanto Lilian reparava num homem com vastos
bigodes, sentado numa mesa próxima, observando Laura. Lilian sorriu.
— Está de bom humor? — perguntou Laura. O sorriso da jovem acentuou-se.
— E que estou me sentindo feliz. Acho que gosto de Hastings.
— Você é uma menina estranha — observou Laura, enquanto seus olhos
percorriam a sala, à procura de alguém. — Acho que ele foi jantar fora — murmurou. —
Gostaria de saber por que está tão arisco.
— Burke Ryeland?
— E quem mais? O que achou dele?
Lilian não sabia o que responder. Não achava nada, a não ser que tinha um belo
carro esporte prateado e uma bela voz.
— Achou-o atraente? — insistiu Laura.
— Dá uma impressão de força e energia, mas não sei se é atraente.
— Forte e viril, hein? — disse Laura, arqueando as sobrancelhas. — Atraente
também, minha cara, pode acreditar em mim. Letty Lacey nos velhos tempos era louca
por ele. Foi uma sorte que aquele seu marido idiota nunca soubesse, pois teria matado
Burke. Não que acredite ter realmente existido um caso entre Letty e Burke... Naquela
época parece que andava com uma jovem bailarina. — Laura calou-se um instante,
pensando, e continuou em seu monólogo: — Gostaria de saber em que deu aquele
caso. E também o que está fazendo aqui em Hastings, depois de todos os lugares por
onde andou. Peru, imagine! Deve ter acontecido alguma coisa muito estranha para que
não queira falar sobre o assunto.
— Para falar a verdade, acho Burke Ryeland uma pessoa muito convencida.
— E por que não? — Laura sorriu. — Sua família é uma das mais ricas e antigas
da Inglaterra. A casa do avô em Somerset, é uma beleza. Você nunca ouviu falar de
King’s Beeches?
Lilian sacudiu a cabeça.
— King’s Beeches, minha cara, é considerada um dos monumentos de Somerset
— contou Laura, com uma espécie de reverência na voz. — Estou surpresa por nunca
ter ouvido falar dela, ou visto alguma foto.
— Pois não ouvi, nem vi — respondeu Lilian, aborrecida.
Laura tinha um interesse tão grande por homens! Várias vezes a deixara sozinha
em companhia de seus jovens amigos. Mas não tinha nada a dizer àqueles homens
cínicos e pretensiosos, descrevendo-a como um "pequeno duende com complexo de
freira".

5
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
Seus lábios tremiam ao lembrar-se destes fatos. Pouco se importava que os
amigos de Laura a achassem engraçada! Não ligava. Recostou-se ao se lembrar do pai
dizendo:
— A coisa mais importante da vida, minha filha, é ser sempre coerente consigo
mesma. Seja sempre assim, querida. Não vá atrás das ideias dos outros, fazendo isto ou
aquilo, porque é moda ou por que vão rir de você. Siga seu próprio caminho, sempre!
Olhou para Laura à sua frente, muito à vontade acendendo um cigarro. Tão
segura de si! Provavelmente nunca havia sido bonita, nem mesmo quando jovem, mas
era inegavelmente popular entre os homens. Era uma espécie de poder, uma coisa que
transcendia o rosto, o corpo, mesmo a idade.
— Pare de olhar para mim — protestou Laura de repente. — Esses seus olhos
grandes me dão nos nervos! O que está tentando descobrir? A minha alma? — Riu. —
Minha conta no banco é grande demais para que eu ainda tenha alma, querida.
— A senhora é muito cínica.
— A gente deve ser. É nossa armadura moderna, minha cara. Este mundo é
imenso e cruel e a gente tem que ser dura, ou aprender a ser, se quiser chegar lá em
cima. Olhe só Burke Ryeland. E um sujeito duro como aço. Atraente, muito rico, e
encantador quando quer. Mas não acredito que alguma vez na vida se preocupou com
alguém. Mesmo aquela dançarinazinha com quem costumava andar. Tenho fortes
suspeitas de que não passava de uma bela distração nos intervalos de suas andanças
pelo mundo. Ela era apaixonadíssima por ele, naturalmente, mas ele mantinha uma
atitude fria e distante com todas as mulheres. Se bem que quando um homem tem o
encanto especial e o dinheiro que ele tem as mulheres aceitam qualquer arrogância. E
parecem até apreciáveis. — Laura sorriu. — Mas você não tem experiência nesses
assuntos, não é?
Lilian sacudiu a cabeça.
— Pois acho que elas devem ser doidas. Serem mimadas como gatinhos e,
depois, abandonadas sem nem um olhar!
— Como você é estranha, menina. Vai me dizer que não gostaria de ser mimada
e mimada por Burke Ryeland? Ou, como um gatinho, você o arranharia, marcando
aquele rosto bronzeado e belo com suas unhas afiadas?
— Ora, sra. Damien!
— Ora, srta. Glyn! — zombou Laura. — Mas não é provável que Burke sinta
algum interesse por você, menina, com esta cara de besta. Portanto, não fique
preocupada. Você não é o tipo dele, a não ser que as florestas peruanas tenham
deixado o seu sangue ralo. Não, eu não acredito que ele perderia tempo com você.
Nunca foi beijada, foi?
— Não — respondeu a moça, muito vermelha. — Não gosto de beijar qualquer
um.
— Guardando-se para o homem certo, hein? Mas só olhar para um homem não
vai ajudá-la a saber se é o tal, menina. Precisa chegar um pouco mais perto, antes de
ter certeza...

Capítulo 2
Na manhã seguinte, como se o champanhe lhe tivesse trazido novo ânimo, Laura
informou Lilian de que pretendia destruir os seis primeiros capítulos de Um Amor de

6
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
Outono e começar tudo outra vez.
Jogou sobre a mesa um maço de papéis, dizendo, com um sorriso complacente:
— Estive escrevendo desde as cinco e meia da manhã. Minha mão está me
matando. Comece a datilografar estas páginas depois do café.
— Sim, sra. Damien — respondeu Lilian, renunciando ao passeio que pretendia
fazer por Hastings.
Se Laura tinha esquecido seu mau humor chegando ao ponto de pegar a caneta e
começar a trabalhar às cinco da manhã, sabia que a máquina de escrever seria sua
única companheira nos próximos dias.
E foi o que aconteceu. Nos seis longos dias que se seguiram, Lilian alimentou a
máquina com laudas e laudas, datilografando sem parar. A chuva que caiu no domingo
em que chegaram tinha desaparecido e um sol claro iluminava a histórica cidadezinha.
Mas, só no sábado à tarde, Lilian teve permissão para um pequeno descanso.
Caminhou até o quebra-mar. Era um dia lindo. Uma pequena multidão
aproveitava o sol. Uns espichados em cadeiras, outros passeando pelas calçadas. Lilian
caminhou por toda a extensão do quebra-mar e depois apoiou-se na amurada,
respirando avidamente o ar marinho, sentindo-o passar pelos cabelos castanhos, dando-
lhe novo rigor. A sua volta, as pessoas conversavam, apreciando a espuma das ondas
batendo contra as pedras lá embaixo.
— Então, finalmente escapou! — uma voz baixa e agradável subitamente
segredou-lhe ao ouvido.
Ela estremeceu e afastou os olhos das ondas para encarar o homem alto a seu
lado.
— A sra. Damien tem trabalhado feito louca em seu novo livro — respondeu ela,
olhando para Burke Ryeland com surpresa e inquietação. Aquele homem tinha um ar de
distinção e autoconfiança que a fazia sentir-se desajeitada e criança. Sem saber como
agir, puxou os cabelos embaraçados pelo vento, sentindo as faces coradas e quentes.
— Você gosta mesmo de trabalhar naquela máquina terrível para a sra. Damien?
— Ela não é uma pessoa desagradável para se trabalhar — respondeu, na
defensiva.
— Ela me lembra uma cobra gigante — comentou o homem, enquanto atirava
preguiçosamente seu cigarro no mar. — E tenho a impressão de que aquela mulher toda
pintada está esmagando você, Lilian Glyn, e tirando toda a sua juventude. Até quando
vai permitir que isso continue?
— Eu... eu não estou compreendendo — respondeu, um pouco nervosa com o
sorriso enigmático dele.
— Que idade tem?
— Dezenove.
— Tudo isso? — Pareceu surpreso observando-a dos pés à cabeça, sem perder
um detalhe daquele corpinho franzino. — E sua mãe sabe como Laura Damien a obriga
a trabalhar?
— Não tenho mãe.
— Nem pai?
Ela mordeu o lábio. Ainda sentia a morte do pai e falar sobre ele a fazia sofrer.
— Meu pai morreu há nove meses, quando teve uma anemia perniciosa e nada
mais pôde ser feito.
— Fala como se sentisse muito a falta dele — disse Burke Ryeland com
surpreendente doçura. — E está trabalhando com Laura Damien desde então?
Ela fez que sim.
— Eu estava sem dinheiro. E... tive muita sorte em conseguir esse emprego.
Costumava datilografar para meu pai. Ele escrevia artigos para revistas de jardinagem...
Era um ótimo jardineiro. E a sra. Damien achou que eu servia.

7
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
— E acha que teve sorte? Você se contenta com bem pouco!
— Não estava em condições de escolher — respondeu, irritada com o rumo da
conversa. — E estou muito grata à sra. Damien. Uma mulher na posição dela poderia
exigir qualquer uma com experiência anterior. Acho que foi extremamente bondosa em
me escolher.
— Oh, desconfio de que a sra. Damien sabia o que estava fazendo — disse Burke
Ryeland. Essa garota provavelmente trabalharia dia e noite, sem fazer questão de
folgas, sem se queixar. Uma qualidade importante para Laura Damien. — Então ela
continua a mesma insensível e predatória, abusando de você sem um pensamento de
piedade!
— Eu... eu pensei que o senhor fosse amigo da sra. Damien — disse Lilian, com
um toque de dignidade que o fez sorrir.
— Na verdade, nós fomos apresentados — corrigiu. — Ela não é uma pessoa que
me interesse muito. Você não tem nenhuma revolta nesta alma jovem, Lilian Glyn?
— Eu... acho que não. Na verdade, eu me rebelo! Como gostaria de arrebentar
minhas cadeias... mas preciso comer!
— Bravo! — aplaudiu ele, rindo. — Estou contente com essa explosão. Aceitaria
um convite para jantar comigo, Lilian?
— Jantar? Mas... mas a sra. Damien está me esperando.
— Que a sra. Damien vá para o inferno! — Suas mãos grandes e fortes
agarraram os ombros de Lilian e a obrigaram a dar meia-volta. — Você merece um
descanso daquela mulher horrível. Ela a aprisionou naquele hotel abafado uma semana
inteira!
— Bem, eu estava trabalhando.
— E agora a semana de trabalho terminou e você precisa se distrair. Vamos! —
Segurou-a pela mão e levou-a para longe do quebra-mar, andando tão apressadamente
que Lilian precisava correr para acompanhar seu ritmo. Ao chegarem ao carro, ele a fez
entrar amavelmente. — Pare de se preocupar. Eu lhe asseguro que não sou um
conquistador barato de mocinhas inocentes. Já ultrapassei esse estágio há muitos anos.
O carro arrancou e Lilian olhou disfarçadamente para o rosto de Burke Ryeland.
Estava completamente atônita por tê-la convidado para jantar, pois não parecia ser uma
pessoa muito sociável pelos comentários de Laura naquela semana. Os olhos de Lilian
brilharam: Laura ficaria furiosa se soubesse que sua insignificante datilografa tinha
recebido um convite para jantar do cobiçado Burke Ryeland.
Seus olhos pousaram nos fios prateados das têmporas de Ryeland. Imaginou que
devia ter uns trinta e cinco ou trinta e sete anos, não mais. Quinze minutos depois, o
carro parou em frente a um restaurante.
Estavam livres das multidões barulhentas. Quando Lilian entrou, acompanhada de
Burke, ficou encantada com a classe e a elegância do lugar. Ela se voltou em pânico
para Burke:
— Mas não estou vestida para... para isto!
— Deixe que eu julgue esse detalhe — respondeu, conduzindo-a para uma mesa.
— Espero que todo aquele trabalho tenha aberto seu apetite. A comida aqui é muito boa.
Gosta de lagostas?
Ela concordou com um movimento nervoso. Ele dirigiu-se ao garçom:
— Vamos querer de entrada maionese de lagostas. Depois, peito de perdizes
com pâté de fois gras, trufas e suflê de batatas.
O garçom inclinou ligeiramente a cabeça e afastou-se. Burke observava Lilian
com um sorriso nos lábios. Seus cabelos estavam completamente despenteados por
causa da corrida e ela tentava recolocá-los no lugar, enquanto admirava a elegância do
ambiente.
— Você está bem apresentável, minha pequena. Portanto, pare de se preocupar

8
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
— murmurou.
— A sra. Damien não costuma comer em lugares como este — comentou.
— Mas eu não sou a sra. Damien!
— Ela teria um chilique se soubesse que estou aqui com o senhor.
— Por quê?
— Acha que tenho medo de homens.
— E tem mesmo, não tem? — Suas sobrancelhas se juntaram sobre os olhos
azuis penetrantes. — Não está, por acaso, meio trêmula?
Ele riu e Lilian baixou os olhos, confusa, o rosto corado.
— Eu... desconfio de que sou desajeitada e um pouco engraçada. Por isso, os
outros caçoam de mim — murmurou, infeliz.
— Deus do céu! Eu não a trouxe aqui para me divertir às suas custas! Mas que
ideia!
— Por que... por que me trouxe, então?
— Depois de jantarmos, eu lhe digo.
Lilian sentia uma revolta. Era tímida com os homens, sim, mas não era uma
idiota. Sabia muito bem que aquele homem rico elegante e bonito não tinha visto nada
especial na datilografa de Laura Damien.
— Quero saber agora — insistiu, levantando o rosto.
— Quer? — Ele sorria. — Ainda desconfiada de mim, Lilian Glyn?
— E por que não? Mal o conheço, sr. Ryeland.
— Então, a cobra venenosa não comentou sobre a minha família?
Desviou o olhar dela, quando o garçom chegou com a lista de vinhos. Escolheu e
ficou em silêncio, até serem servidos. Em seguida, fez um brinde:
— Beba e fique alegre, Lilian, porque dentro de cinco minutos vou pedi-la em
casamento.
Lilian olhou-o estarrecida. A cor desapareceu de seu rosto. Aquele homem era
maluco! Mentalmente transtornado por causa do longo tempo nas selvas do Peru! Por
que, afinal, tinha vindo com ele?
— Não estou louco, Lilian.
— Deve estar! Pedir... pedir alguém que mal conhece... em casamento!
— Pedindo a alguém em que acredito poder confiar para casar comigo — corrigiu.
— Mas... por quê? Isto é loucura... loucura!
— Não tanto assim, minha cara. Tenho um motivo perfeitamente lógico para
precisar de uma esposa, pode acreditar. Vamos conversar sobre isso depois do jantar,
está bem?
Depois do café, Burke começou a explicar a Lilian a razão de sua absurda
proposta. Apoiou os cotovelos na mesa e encarou-a, muito sério. Subitamente, pareceu
mais velho e cansado.
— Como já lhe disse, Lilian, não a trouxe aqui para me divertir às suas custas.
Acredita em mim?
— Eu... não sei em que acreditar. E a coisa mais extraordinária que já me
aconteceu.
— Acredito. Uma proposta de casamento de um estranho é mesmo
extraordinária. Mas espero que, depois de explicar a situação, não ache assim tão
absurdo. — Recostou-se na cadeira e pegou a cigarreira. — Você fuma?
Lilian sacudiu a cabeça. Ele acendeu um cigarro.
Por alguns minutos, ficou calado, fumando, os olhos acompanhando a dança da
fumaça azulada. Depois, começou a falar:
— Tenho um avô muito antiquado. Ele pertence a um tempo que já passou. Um
tempo em que o orgulho familiar e devoção total ficavam acima de todas as outras
coisas. Acredita que o fato de alguém nascer um Ryeland acarreta uma série de

9
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
obrigações... Obrigações que não estou disposto a aceitar. Em resumo, Lilian, ele
espera que eu case com o único fim de produzir um herdeiro. Meu avô tem oitenta e
cinco anos e uma saúde delicada. Como me colocou diante desta obrigação, por razões
sentimentais, acredito que devo ceder.
Com cuidado, sacudiu o cigarro no cinzeiro, os olhos cravados no rosto delicado e
atento de Lilian.
— Eu tinha um irmão mais novo, que meu avó adorava. Todas as suas alegrias e
esperanças estavam nele, mas Phil... há um ano, enquanto trabalhava em uma de
nossas fazendas, morreu esmagado por uma colheitadeira. O choque quase matou meu
avô. Mas, além dessa tragédia, uma coisa muito grave tinha acontecido, que o teria
aniquilado completamente se descobrisse. Desde meninos, eu e Phil éramos amigos da
filha de um dos fazendeiros da região, Dani. Era linda e alegre. Seus pais tinham planos
ambiciosos para ela. Estudou dança e, aos dezesseis, anos, saiu da fazenda e foi viver
em Londres com uma tia para poder frequentar uma escola de bale. Era talentosa e
realizou o sonho dos pais, tornando-se uma bailarina famosa. Durante este tempo, eu
estava viajando pelo mundo e Phil trabalhava na fazenda. Então, recebi, no Peru, a
notícia de que Phil tinha morrido.
Burke desviou o olhar do rosto de Lilian e sombriamente voltou a observar a
fumaça.
— Naturalmente, voltei para a Inglaterra, encontrando meu velho avô muito
doente e uma carta da tia de Dani, que hoje vive aqui em Hastings. Aquela carta foi
outro choque para mim: Dani estava morta. Morreu ao dar à luz o filho de meu irmão.
Apenas a tia sabia que os dois eram amantes. Os pais de Dani não tinham condições
para cuidar da criança e a tia pretendia embarcar para o Canadá e morar com a irmã.
Em resumo, queria saber se eu estava disposto a receber a criança. Se recusasse, teria
de colocá-la num orfanato. Fiquei horrorizado com a ideia. O garoto é meu sobrinho,
filho de Phil, um Ryeland! Desde então, a criança está sob minha responsabilidade. —
Sorriu, amargo. — Com esse menino, metade dos sonhos de meu avô poderão se tornar
realidade. Mas para dar um cunho de veracidade a tudo isso, preciso arranjar uma mãe
para o bebê. Portanto, estou-lhe pedindo, com toda a seriedade, que examine esta
proposta. Posso lhe garantir que é um trabalho bem mais agradável do que o que tem
agora. Não terá que ficar presa a uma máquina de escrever ou se sujeitar ao matraquear
de Laura Damien dia e noite. Moro em Somerset, no meio de pomares e campos, tudo
que lhe peço é que case comigo... só no nome, claro.
Lilian suspirou, agitada, olhando para aquele homem, que lhe fazia uma incrível
proposta. Ele tinha prometido explicar a verdade, mas ela se sentia enveredando para
um sonho!
— Eu... não acho direito. Enganar um velho assim!
— Um velho que está com a saúde abalada e que ficaria encantado em segurar
nos braços um neto. Seu verdadeiro neto, não se esqueça!
— Mesmo assim, não é direito — respondeu Lilian, os olhos brilhando no rosto
pálido. — E se descobrisse? O que aconteceria com ele? Acreditaria que,
deliberadamente, tínhamos espezinhado seu orgulho.
— Não acho que tenha alguma chance de descobrir. Em King's Beeches,
estamos completamente isolados do mundo. Mesmo assim, quem irá contra a minha
palavra, se jurar que o filho é meu? — Encarou profundamente os olhos de Lilian. — Se
lhe interessa, saiba que já o considero meu filho. Peter é meu, pois a mãe representou
muito para mim. — Burke esmagou o cigarro, com raiva. — Nessas circunstâncias, você
aceita a minha proposta? Que mal há nisso? Tornará um velho muito feliz e será mãe de
um bebê desprotegido.
Lilian estava em pânico. Sentia-se nadando em águas turvas. Tinha vontade de
sair correndo dali e voltar ao seu mundo normal e calmo. Mas Burke segurava-a com a

10
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
força dos seus olhos.
— Não sei o que dizer... Não sei...
— Olhe, vamos encerrar a conversa até que você conheça Peter. Amanhã eu a
levo até lá. Está na casa da tia de Dani. — Acenou para o garçom, pedindo a conta. —
Você irá comigo?
Ela hesitou, olhando para aquele rosto preocupado. Era um estranho. Nada sabia
sobre ele, a não ser as coisas que Laura Damien havia contado, que não pesavam a seu
favor. Duro, arrogante, incapaz de amar!
E ela... também uma estranha para ele.
— Por que está pedindo isso a mim? — perguntou, aflita. — Tudo que sabe a
meu respeito é que trabalho para Laura Damien.
— Não concordo! Sei que tem dezenove anos, é sozinha no mundo e tem uma
imensa paciência. Paciência é uma grande virtude, não concorda? — disse, sorrindo. —
Você é exatamente o que eu preciso, Lilian Glyn. Então, vem comigo amanhã para
conhecer Peter?
— Está bem, sr. Ryeland, eu irei — respondeu impulsivamente.

Capítulo 3

Lilian e Laura estavam tomando café, quando de repente Laura levantou os olhos
do jornal de domingo e perguntou:
— O que pretende fazer hoje?
— Se não se importar, sra. Damien, vou dar uma volta por aí.
A mulher olhou-a, intrigada.
— Com algum conquistador de praia? — Lilian corou. — Estou vendo que não
perdeu tempo. Não se envolva com ninguém. Resolvi voltar a Londres amanhã.
A exclamação abafada da moça foi reveladora e Laura sorriu, irônica.
Subitamente, o tempo para tomar sua decisão tinha diminuído. Se aceitasse a proposta
de Burke Ryeland, uma nova vida se abriria para ela, livre de hotéis, de dias monótonos
grudados a uma máquina, aturando os humores variados dessa mulher pretensiosa e
cansativa. Se recusasse, ficaria sujeita a essa vida talvez para sempre!
Burke Ryeland tinha-lhe dito que a apanharia às duas. E às duas em ponto o
esperava, envolvida num casaco de pelo de camelo, o último presente de seu pai.
Burke buzinou e Lilian sorriu para ele. Ele abriu a porta do carro e ela entrou,
sentando-se a seu lado. O coração repentinamente disparou.
— Então, você veio... — murmurou ele, colocando o carro em movimento.
— Pensou que talvez não viesse, sr. Burke?
— Na verdade, eu não sabia o que pensar. Será que conseguiria me chamar de
Burke? Acho, com toda a segurança, que já chegamos a esse grau de intimidade —
acrescentou, com uma ponta de ironia.
— Está bem.
— Aquela cobra venenosa tentou descobrir aonde ia?
— Ela meteu na cabeça que estou de namoro com algum rapaz da praia. E já me
aconselhou a não me envolver muito. Ela... nós... vamos voltar a Londres amanhã.
Burke virou rapidamente o rosto para Lilian.
— Você também vai?

11
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
Ela baixou os olhos, visivelmente confusa.
— Eu... eu não sei...
— Quer voltar?
Não respondeu. Ele tentou controlar a impaciência ao perceber o olhar
preocupado da jovem, que mordia o lábio rosado.
— Não faça isso. Vai ferir o lábio.
— O quê? — perguntou, virando-se para Burke.
Ele percebeu que ela o olhava do mesmo jeito que na véspera: um olhar de corça
procurando forças para escapar da fera dominadora.
— Você ficou com insônia ontem à noite, virando na cama e desconfiando de que
tinha jantado com um maluco?
— Como adivinhou? — Tentou falar descontraída, mas sua agitação e um forte
rubor a traíram. Na verdade, permaneceu acordada, lembrando-se da história de Burke,
temendo as mentiras que tinha que dizer dali para a frente, se concordasse em fazer
parte daquele plano.
— Eu sabia que ficaria preocupada. É natural. Mas sabe que deve considerar
tudo isto como um novo emprego, não? Providenciarei para que tenha uma renda
semanal, ou mensal, deixando-a completamente independente neste aspecto. Se nós
encararmos tudo isto como uma transação comercial, acho que será menos embaraçoso
para você; principalmente a cerimônia de casamento. Isto me lembra que ontem à noite
esqueci de perguntar se tem algum namorado. Tem?
Ela sacudiu a cabeça. Depois viu que ele sorria. Porque seria muito complicado,
se de repente aparecesse algum Romeu reclamando a sua Julieta.
— Diga-me, Lilian, gosta de crianças?
— Nunca tive muito contato com elas. Mas acho que gosto.
— Gostará de Peter. É um lindo bebê.
— Quantos meses tem?
— Cinco. — Burke deu um sorriso malicioso. — Deve estar pensando como vou
explicar um filho de cinco meses a meu avô?
Ela assentiu.
— Bem, se concordar em casar comigo, mentirei sobre a data do casamento. É
por uma boa causa.
— Tem mesmo que agir assim? Não poderia dizer a verdade?
— Meu avô não aceitaria Peter se soubesse a verdade. O maldito orgulho arruína
tudo — comentou amargo.
— Mas você disse... disse que adorava o seu irmão.
— Sim. E o considerava um modelo de virtude — disse Burke com cinismo. — O
velho não aceitaria reconhecer que Phil era... bem, que era tão tolo quanto qualquer um
de nós. Assim, invento a história e o pequeno Peter ficará no lugar a que tem direito.
Neste momento, encostou o carro na guia e estacionou. Tinham parado em frente
a uma casinha simples. Um portão de ferro abria para um jardinzinho. Lilian seguiu
Burke até a porta, esperando silenciosamente enquanto ele batia. Já estava envolvida
nesta trama fantástica, meio comprometida com este homem, que estava pronto a
enganar seu próprio avô, a fim de que o filho de uma dançarina se tornasse o herdeiro
da antiga e bela King’s Beeches.
A porta se abriu e uma mulher morena e baixinha, com olhos escuros, apareceu.
— Alô, querido — disse sorrindo. Ao ver Lilian, ficou séria e visivelmente
surpresa.
— Esta é Lilian Glyn, Polly — explicou Burke, enquanto se soltava das mãos
nervosas da mulher. — Acho que vou me casar com ela.
— Vai se casar? Agora? — A mulherzinha recuou para dentro da casa, dando
espaço para que entrassem. Foram até a cozinha, e ela virou-se e examinou Lilian. —

12
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
Então acha que vai se casar com ela, Burke? Você tem certeza?
Ele deu uma risada e apertou a mão de Lilian.
— Ela quer pedir a permissão de Peter — gracejou. — Vá buscá-lo, Polly.
— Então sabe que vai ter um bebê já prontinho em seus braços?
— Peter na verdade é a maior atração.
Polly Wilmot olhou longamente para Lilian.
— Muitas moças se interessariam antes por King's Beeches. Você não? —
perguntou com certa rudeza.
— Nunca estive lá — respondeu, enrubescendo.
— Nunca esteve... — Os olhinhos da mulher se apertaram ainda mais. — Esta
não é a tal com quem seu avô quer que se case?
— Não, Polly — respondeu Burke secamente. — Agora, por favor, vá buscar o
garoto. Quero que Lilian o veja.
— Antes vou pôr uma chaleira de água no fogo para o chá — disse Polly, e virou
para Lilian: — Sente-se menina.
Burke riu, ao ver o nervosismo de Lilian.
— Polly late mas não morde — disse ele. — Eu a conheci há anos atrás. O que
não altera o fato de que me sentirei bem melhor quando souber que estará logo bem
longe daqui, no Canadá. Assim, nosso pequeno embuste ficará sem testemunhas. Ah,
aqui está ela, com o bebê!
— Vá com calma, rapaz — disse a velha. — Ele está dormindo.
— Ele dorme demais, não é, Polly? — disse Burke enquanto pegava o garoto,
com cuidado.
— Pois garanto que você fazia o mesmo na idade dele. — Polly deu uma piscada
para Lilian e exclamou: — Homens!
Lilian sorriu timidamente quando Burke chegou perto dela e colocou Peter em
seus braços, afastando o chalé azul para que ela pudesse ver melhor o rostinho. Tinha
os cabelos muito negros, encaracolados, e um rosto bem corado.
— Mas ele é realmente lindo! — Lilian gaguejou, fascinada, com o bebê em seu
colo.
— Ele é perfeito! — disse Burke, com a voz emocionada.
Lilian instintivamente descobriu que ele devia estar pensando na mãe da criança.
Como era mesmo que Laura a havia descrito? Indomável como uma águia e adorável
como uma borboleta... Lilian inclinou mais a cabeça para o bebê, sentindo-se
embaraçada, como se tivesse espionando os sentimentos de Burke.
— Vou fazer o chá — disse Polly Wilmot e afastou-se. Ao chegar à porta, ela se
virou: — Quando pretendem se casar?
Burke estava encostado na lareira com as mãos nos bolsos, ao lado de Lilian.
— Se Lilian concordar, gostaria que fosse na próxima sexta.
Lilian levantou o olhar, subitamente agitada.
— Tão... tão cedo? — murmurou.
Burke riu e levantou as sobrancelhas escuras, enquanto comentava com Polly,
ligeiramente contrafeito:
— Minha futura esposa não parece muito entusiasmada, não é? Será que ela está
com medo?
— Todas as noivas ficam com medo — Polly respondeu imediatamente. — É
parte de seu encanto.
E desapareceu pela porta. Logo escutaram o barulho de louça e o apito da
chaleira.
— Então, Lilian, aceita ser minha esposa legal e se casar na próxima sexta? —
Seus olhos azuis observavam atentamente o rosto assustado. — Minha cara, por que
está assim? Eu pensei que ficaria aliviada por poder se livrar daquela insuportável Laura

13
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
Damien. Não acha que eu sou bem mais agradável que aquela cobra venenosa? —
sorriu complacente. — Por favor, diga que sim, Lilian. Eu ficaria muito decepcionado se
recusasse, sabe disso.
Mas Lilian não retribuiu ao sorriso. Inclinou-se sobre o bebê, o centro inconsciente
de todo aquele drama.
— Não acha que devia se casar com alguém em quem confiasse mais? —
perguntou insegura. — Eu sou uma estranha para você... uma pessoa que não tem nada
a ver com sua vida. Sou totalmente... inadequada... Será que não enxerga isto?
— Estou completamente satisfeito com o que estou enxergando — respondeu
paciente. — Acho que se conseguiu suportar Laura Damien por nove meses inteiros,
pacientemente, você está longe de ser inadequada.
— Mas casamento... — Lilian estremeceu involuntariamente. — Eu aceitaria, sem
vacilar, ser a governanta de Peter...
— Vai ter que se casar comigo. — As palavras agora eram ríspidas. — Tem que
se tornar mãe de Peter e minha esposa. A situação não tem nada de complicada. — Riu.
— É até uma ótima oferta. Você vai ter tempo para viver, enquanto eu vou conseguir de
meu avô sua bênção por ter-me tornado finalmente um homem sério. Chegou a hora de
decidir, Lilian. Ou vem comigo ou volta com Laura Damien. Eu posso lhe dar a liberdade,
mesmo se tornando minha esposa. Mas ela a amarrará àquela máquina de escrever nos
próximos vinte anos. Ótimas perspectivas, hein?
Ele se curvou sobre o bebê. Tocou os cabelos escuros com carinho.
— Você disse que ele é bonito. E é mesmo. Eu quero levá-lo para King's Beeches
porque lá é o lugar dele. Ajude-me a fazer isso, Lilian.
Burke acariciou a cabecinha do bebê, que acabou acordando com um ligeiro
murmúrio, agitou os bracinhos e se espreguiçou no colo de Lilian. O coração dela deu
um salto quando ele abriu os olhinhos espantados para ela. Eram tão azuis e com as
pestanas tão escuras, quanto os olhos de Burke Ryeland... o homem que lhe tinha
pedido para se tornar sua esposa, mas que nunca beijaria.
— Na próxima... sexta? Foi o que disse? — perguntou quase num sussurro.
Os dedos que acariciavam Peter ficaram parados. Vagarosamente, ele virou a
cabeça e encontrou os olhos confusos e assustados de Lilian. Observou-os
atentamente. Ela não vacilou e ele moveu a cabaça vagarosamente, confirmando.
— O que pretende dizer a Laura? — perguntou Burke quando voltavam ao hotel.
— O que quer que eu lhe diga?
— Não se importaria de dizer simplesmente que conseguiu um novo emprego?
Acho que quanto menos aquela língua de trapo souber sobre os nossos planos, melhor.
— Por que você antipatiza tanto com ela... Burke? — perguntou, enrubescendo
ao dizer o nome dele. Embora estivesse agora seriamente comprometida com este
assustador projeto de casamento, ainda sentia-se inibida na presença dele, desajeitada,
jovem e terrivelmente intimidada.
— Eu não tenho raiva de Laura Damien — disse. — Nem este tipo de sentimento
eu chego a ter. Ela simplesmente polui o ambiente. Como menino criado no campo, eu
aprecio a beleza e a tranquilidade e a sra. Damien não possui nenhuma das duas
qualidades. E um paquiderme predatório, sempre faminto e sempre na caça.
Lilian deu uma gargalhada, mas em seguida protestou:
— Está exagerando! Ela é barulhenta, eu sei, mas não é completamente
insuportável. A gente acaba admirando toda a sua energia. E escreve bem: tem que
admitir isto.
Ele encolheu os ombros.
— Não sou admirador de seu estilo, mas reconheço que ela consegue que os
corações românticos batam mais depressa — respondeu, olhando de relance para
Lilian. — Você gosta deste tipo de livro, Lilian? Gosta de sonhar ao luar?

14
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
— Não sou do tipo romântico — disse, sorrindo levemente.
— Não é mesmo, Lilian? Quem sabe não foi por isto que esteve com tantas
dúvidas para aceitar um casamento tão pouco romântico? Mas me confesse uma coisa.
Agora que viu o pequeno Peter abandonou todas as dúvidas, mão?
— Eu... eu gostei dele demais — respondeu nervosa. Conversar sobre este
casamento ainda lhe trazia um nó na garganta. Teria que dizer as mentiras, inventar
fatos e odiava isto. Haveria também um velho orgulhoso e surpreso a quem iria
enfrentar. Onde encontrar forças para isto? E se ele descobrisse a mentira de Burke? E
se a desprezasse, não a achando digna de ser a esposa de Burke?
— Ainda preocupada com a reação de meu avô quando eu aparecer por lá com
uma esposa e um filho?
— O que você pretende dizer? Como vai explicar tudo?
— Acho que a situação em si será a melhor explicação, Lilian.
— Mas que explicação? — insistiu.
— Bem, o que importa é que já anda suspeitando que eu tenha uma ligação de
algum tipo, porque me ausento sistematicamente de casa durante os fins de semana. Na
verdade, são minhas visitas a Peter. Portanto, agora, farei o papel de libertino
arrependido. — Burke sorriu. — O velho sempre me considerou um mulherengo,
portanto fique sossegada. Não tentará verificar porque resolvi me casar desta maneira.
Na opinião dele, eu passei para as fileiras dos condenados desde que publiquei meu
primeiro livro há anos atrás. Eu era um Ryeland, imagine! Era perfeitamente aceitável
que eu recolhesse o feno, semeasse nabos ou auxiliasse as vacas a terem seus
rebentos em intervalos dos acontecimentos sociais, onde era um partido desejável, mas
não ficava bem que sujasse meus dedos nas máquinas de escrever ou mergulhasse
meus pés nas águas do Nilo... E, assim, desde o dia em que eu insisti em ambas as
coisas, deixando a administração das terras nas mãos de meu irmão, cada uma de
minhas ações tomou-se suspeita aos olhos dele.
Lilian olhou-o com simpatia.
— E agora renunciou às suas viagens e livros? — perguntou docemente.
— Phil amava vacas e nabos. Adorava as terras e Somerset. Eu amo Somerset...
Espero que o resto venha com o tempo. Uma coisa é certa: eu não teria condições de
me entregar completamente aos interesses de King's Beeches. Por isto foi boa esta ideia
de casamento. Meu avô consegue o que sempre quis e eu deixo de ser olhado como o
grande partido da região, sem um bando de mulheres me perseguindo. E você, minha
pequena, fica livre da pobreza. Assim, as poucas mentiras que seremos obrigados a
dizer, na minha opinião, valerão a pena.

Naquela noite, logo depois do jantar, Lilian disse a Laura que não pretendia voltar
para Londres com ela na manhã seguinte. A mulher ficou enfurecida.
— Como ousa me abandonar assim, de um momento para o outro? Uma
porcariazinha como você? Você vai embora somente quando eu permitir!
Lilian procurou evitar uma discussão neste nível.
— Eu sinto muito, sra. Damien — disse. — Mas me ofereceram outro emprego...
e me convém mais. Eu sinto avisá-la assim tão repentinamente, mas não tenho outra
alternativa.
O olhar de Laura estava cheio de suspeitas.
— Mas que diabo! Quem você encontrou? Quem lhe ofereceu outro emprego?
Lilian enfrentou-a calada, o rosto pálido, os olhos muito abertos, demonstrando
temor e determinação.
Laura chegou perto dela e agarrou seus ombros, sacudindo-a.
— Sua garota falsa e sem-vergonha — grunhiu. — Você andou indo com algum

15
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
homem por aí, não é?
— Não! Isto não é verdade! Eu estou... estou cansada de ser datilografa, é só
isto. Quero fazer outra coisa. Vou trabalhar no campo e tomar conta de um garotinho.
A boca carnuda e grande de Laura expressou sua desconfiança.
— Não é um garotinho, mas um garotão. Estou vendo na sua cara!
— A senhora está... está me insultando — respondeu Lilian, os nervos à flor da
pele. Queria era sair correndo e fugir das insinuações daquela mulher grosseira. — Eu
lhe disse a verdade — insistiu. — Vou para o campo cuidar de um garotinho. Não tem o
direito de pensar... o que está pensando...
— É mesmo? — Laura começou a observar Lilian da cabeça aos pés, vagarosa e
maliciosamente. — Pois vou lhe dizer qual é o direito que eu tenho. Uma semana de
aviso prévio, no mínimo!
— Por quê? A senhora não me paga há três semanas! Não pode me obrigar a
cumprir um contrato que a senhora mesma quebrou.
Laura olhou espantada para ela e depois soltou uma gargalhada estridente.
— Não sei quem é o tipo, mas a verdade é que a tornou vingativa. Preciso
reconhecer que é mérito dele. — Depois aproximou-se da cama, abriu a mala e tirou
algumas notas da carteira. Aproximou-se de Lilian e colocou o dinheiro na sua mão,
sorrindo com superioridade.
— Aceite esta gorjeta, garota, faça a sua farrinha, mas não chore quando o dia
amanhecer... Isso sempre acontece.
Lilian olhou para o dinheiro.
— O que está pensando não é verdade! — murmurou.
— É mesmo? — Laura riu outra vez. — Olhe minha cara, pensa que consegue
me enganar! Sou Laura Damien, não se esqueça: conheço a vida! Sei que está
envolvida com um homem, conheço os sintomas. E daí? Tenho uma mente aberta e até
acho que já estava na hora, mesmo me deixando numa enrascada.
Abruptamente, avançou a mão rechonchuda e segurou o queixo e Lilian.
— Você trabalhou depressa, não beleza? Eu não desconfiava que neste lugar
esquecido houvesse homens à disposição. Você é uma dissimulada! Com aquela
conversa puritana de que não se interessava por homens! Pois divirta-se. Coma seu
bolo, mas, já avisei, não chore quando acordar numa bela manhã e perceber que tudo
que sobrou foi a lembrança do bolo... Os bolos têm a particularidade de sumirem pela
madrugada. Reconheço que, enquanto dura, é muito agradável. Espero que ao menos
este bolo seja gostoso, macio e bem recheado... Este bolo ao menos é recheado?
Lilian não respondeu, mas no íntimo não podia deixar de se divertir. Burke
Ryeland certamente era o que chamaria de bolo de primeira... Recheado e até com
chantilly!

Capítulo 4

O carro de Burke passou pelos portões de ferro. Um guarda em seguida trancou-o


novamente.
— Este é um grande dia para todos nós — disse o homem, esfregando as mãos
encardidas nos lados das calças, não tirando os olhos de Lilian.
— Sim, Simon, é um grande dia — respondeu Burke sorrindo. O carro fez a curva

16
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
no caminho e o homenzinho sumiu. — Nosso primeiro encontro com a curiosidade,
Lilian.
O coração de Lilian batia desesperadamente. O pequeno Peter se mexeu em
seus braços e ela o aconchegou mais perto de si, encontrando a força que precisava
naquele corpinho rosado e gorducho. Era realmente adorável. Um bebê tranquilo e
risonho.
Parecia compreender que aqueles novos braços protegendo-o já o amavam sem
reservas.
Aquele pensamento tranquilizou-a e um pouco da tensão que a dominara durante
todo o dia cedeu. Agora já não havia mais possibilidade de voltar atrás. Já era a esposa
legal de Burke e estava com ele neste jogo de mentiras e dissimulações. Não eram
mentiras desprezíveis, repetia a si mesma incessantemente. Burke só desejava dar
amor e segurança ao pequeno Peter. Era realmente o Ryeland que seu velho avô tanto
desejara. Aquele que asseguraria a continuação da família...
— Estamos em casa, Lilian — disse Burke, interrompendo seus pensamentos.
Ela levantou o olhar e soltou uma exclamação de alegria. King's Beeches estava a
sua frente, sua beleza iluminada pelo sol poente.
A casa era tão bela que Lilian quase perdeu o fôlego. Estava no meio de extensos
gramados, contornada pelos Montes Mendip. Um cenário de extraordinária
magnificência.
O carro estacionou em frente aos degraus de pedra que levavam porta de
entrada. Burke voltou-se sorrindo para Lilian:
— Como é? — perguntou irônico — preparada para ser possuída por esta massa
antiga de tijolos e cimento?
— Oh, não fale assim! — protestou. — King’s Beeches é maravilhosa! — Os
olhos puros e ingênuos encontraram os dele. — Certamente você ama esta casa! Como
poderia não amar?
— Eu a vejo como uma bela e indestrutível construção, Lilian, mas me recuso a
ser possuído por ela... como fez com meu avô e com meu irmão. — Logo seu sorriso
tornou-se terno ao observar a imagem comovente da jovem mãe, compenetrada e
dedicada. — Devo reconhecer que você e Peter não perderam tempo e se apaixonaram
um pelo outro totalmente.
— Bem, nós dois temos muito em comum — respondeu. — Somos dois órfãos,
profundamente gratos por termos a sua proteção.
Burke alto e forte, ao lado deles parecia confirmar suas palavras. Embora aquele
casamento fosse um arranjo entre eles, mesmo assim, não deixava de existir: ela agora
usava o nome de Burke, estava ao seu lado, ia chamá-lo de marido. Ao pensar nisto,
seu coração deu um salto. Este desconhecido era realmente seu marido. Seu marido!
A enorme porta da mansão se abriu e Burke sorriu para o homem parado em
frente.
— Tenho surpreendentes novidades, Tolliver. Trouxe minha esposa para esta
casa.
— Realmente, senhor? — falou o imperturbável mordomo, enquanto descia os
degraus e educadamente segurava as malas que Burke ia tirando do carro. Depois
cumprimentou Lilian, sem trair sua curiosidade nem por um instante.
— Como está o meu avô? — perguntou Burke, voltando ao carro e pegando o
bebê dos braços de Lilian para que ela pudesse descer.
— O senhor seu avô está bem. Seu reumatismo pouco o incomodou nestas duas
ultimas semanas. Possivelmente devido ao bom tempo que tem feito. — Afastou-se para
dar passagem a Lilian, que entrou no saguão.
O saguão era imenso, com enormes arandelas de bronze presas às paredes
forradas de carvalho. De um lado, uma lareira e, ao fundo, a escadaria com balaústres

17
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
de madeira entalhada.
Lilian teve a sensação de ter voltado no tempo. Saíra de um mundo moderno e
agitado para entrar naquela casa pertencente a épocas passadas, onde a vida era presa
a valores e tradições.
— O sr. Philip está na biblioteca, senhor — informou o mordomo.
— Vamos, Lilian — disse Burke.
Ela seguiu a seu lado, gelada, movendo-se automaticamente. Assoprou a leve
franja que lhe caía na testa, enquanto o marido batia na porta antes de entrar
orgulhosamente, segurando Peter num braço e empurrando Lilian para a frente com o
outro.
A única luz na sala era uma lâmpada de leitura ao lado de uma poltrona. Uma
fumaça espessa de cachimbo pairava no ar. Sentado ao lado da lareira estava um velho
de cabelos inteiramente brancos, lendo sossegadamente.
Ele levantou os olhos lentamente, tirando o cachimbo da boca. Seus olhos eram
do mesmo azul dos de Burke. O rosto ainda conservava alguns traços do belo homem
que devia ter sido, mas o olhar era orgulhoso e frio. Olhou com arrogância para Lilian,
que instintivamente procurou proteção na proximidade de Burke.
— Então, afinal voltou para casa! — disse o homem. Depois seu olhar caiu no
bebê, que Burke carregava.
— Eu trouxe para casa o seu bisneto — disse com calma. — Tudo... tudo bem?
O homem ficou imóvel, dominado pela surpresa. Sua imobilidade paralisou Burke
e Lilian, deixando imune só o pequeno Peter, que continuava com seu blá-blá-blá.
Finalmente o homem estremeceu e respirou profundamente.
— Você tem realmente nervos, rapaz, entrando porta adentro e orgulhosamente
apresentando seu pirralho. E quem é esta?
— Minha esposa —respondeu decidido, levantando a cabeça com ousadia.
— Sua esposa? — Os pálidos olhos azuis examinaram com desprezo a figurinha
delicada e juvenil de Lilian, tão tensa ao lado de Burke, os olhos dourados muito abertos.
Em contraste com Burke, alto, forte e muito bronzeado, ela parecia ainda mais jovem.
Nunca uma esposa! Nunca uma mãe!
— Pelos santos óleos, Burke! O que andou aprontando?
— Obedeci às suas ordens, meu prezado avô. Casei-me... e tenho um filho. —
Atravessou a sala com o bebê no colo e sem dizer palavra depositou-o no colo do avô —
Diga que está satisfeito — murmurou. — Eu cumpri o meu dever como o senhor
desejava.
As sobrancelhas grossas e brancas do velho senhor se juntaram. Philip Ryeland
ficou ali, assustado, com o bebê nos braços.
— Um menino, hein? — disse afinal. Depois apalpou o rosto de Peter como se
quisesse se certificar de que a criança era real. Olhou irritado para o neto: — Por que
você não consegue fazer as coisas de uma maneira sensata? O problema é que você
tornou-se cosmopolita demais. Muito parecido com aquela tolinha francesa que seu pai
teimou em desposar.
— Pode ser, senhor — respondeu Burke, imperturbável. — Mas acho que não fiz
um mau trabalho com este garoto, não concorda?
Ele falava meio brincando. Lilian estava abismada com a facilidade com que ele
convencia o avô que o filho era dele. Admirou à sua frente três gerações dos Ryeland e
sentiu-se uma intrusa. O velho senhor a olhou com tanto desprezo! Ela estremeceu,
querendo fugir daquele lugar, e dos olhos daquele homem, que tão claramente a
hostilizavam.
A chegada da criança causou sensação na casa. Duas criadas foram
imediatamente despachadas para arrumarem os quartos para Lilian e Peter, enquanto
na cozinha uma velha empregada esterilizava mamadeiras sob a vigilância competente

18
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
de Burke. Depois Burke voltou com a mamadeira para a biblioteca, onde Lilian fora
instalada com o bebê no colo.
— Espero que saiba o que fazer — disse disfarçadamente para ela enquanto
observava sua tentativa de aproximar o bico da boca faminta do garoto. — Vá com
calma, e deixe que ele respire de vez em quando.
Lilian ouviu e ficou rígida quando o avô voltou à sala para avisar que o jantar seria
servido depois que o bebê tivesse sido alimentado. Moira, uma das criadas, o colocaria
na cama para Lilian.
— O senhor está sendo muito compreensivo, vovô — exclamou Burke, enquanto
o velho se aproximava da poltrona onde Lilian alimentava o bebê.
— E tinha alguma dúvida quanto a isto? — respondeu o velho irritado. —
Envolveu-se com uma menina e achou que eu não aprovaria, não é?
Burke estava representando perfeitamente o papel do libertino arrependido. Um
violento rubor tomou conta de Lilian.
— Eu ficaria profundamente agradecido se o senhor estendesse sua
benevolência a Lilian também, senhor — disse com um vago sorriso. — Afinal de contas,
ela não é somente a minha esposa, mas mãe de Peter também.
O olhar do velho senhor pousou novamente em Lilian. Agora sem casaco, ele
percebia o quanto ela era franzina. Parecia que qualquer ventinho poderia arrastá-la.
para longe! Não, não conseguia fingir que estava satisfeito com esta menina magricela.
Mas o garoto era maravilhoso! Um verdadeiro Ryeland... e incrivelmente parecido com o
seu querido Philip! Suspirou fundo.
Philip Ryeland olhou duramente para ela. Ele claramente não compreendia que
Burke pudesse ser atraído por ela, mas o pequeno Peter em seus braços era a prova
disto. O bebê sadio e forte, agora com seus luminosos olhos azuis abertos enquanto
sugava gulosamente o leite que ela lhe oferecia.
Neste instante Burke aproximou-se do encosto da poltrona e acariciou levemente
seus cabelos.
— Você parece exausta, querida — disse.
— Estou me sentindo bem — replicou ela, confusa por aquele interesse súbito.
— Acho bom que vá para a cama logo depois do jantar — recomendou Burke.
O quarto que lhe tinham destinado era enorme. A luz de dois lampiões era
suficiente para iluminá-lo, e o fogo, que crepitava na lareira, projetava figuras fantásticas
pelas paredes.
O berço de Peter, que Burke tinha trazido, estava ao lado de sua cama, que era
imensa, com quatro colunas e um dossel rosado. As colunas eram todas entalhadas,
combinando com as vigas do teto de madeira escura.
Lilian sentou-se na cama e olhou para Peter. Dormia profundamente. Aquela casa
estranha não o perturbava. Ela estremeceu e andou até a janela. A hera que subia pelas
paredes balançava com a brisa. Não havia lua no céu, que estava negro, e Lilian sentiu-
se muito só, muito distante do mundo agitado que partilhara com Laura Damien.
Lembrou-se do pai, da casinha onde tinha vivido em Chingford. Tão diferente
desta! Aquelas enormes árvores, aqueles imensos gramados, aquele cheiro de cidra que
entrava pela janela. Levavam uma vida rotineira e tranqüila, ele saindo para trabalhar
pela manhã e ela indo para a escola. Mas bruscamente tudo desabou. O mundo de
amor em que seu pai a envolvia sumiu para sempre. Agora só lhe restava a lembrança
daqueles tempos sem sombras.
Um soluço morreu em sua garganta e apressadamente fechou a janela,
preparando-se para dormir. Mas a tristeza não a abandonou. Apagou um dos lampiões e
baixou a luz do outro, no caso do pequeno Peter acordar. E, trêmula de frio, meteu-se
entre as cobertas.
Estava quase adormecida quando a porta do quarto se abriu e a figura alta de

19
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
Burke apareceu. Ele sorriu carinhosamente.
— Vim ver se está bem — sussurrou. — Algum problema?
— Estou me sentindo perdida — murmurou ela.
— Estou vendo. Amanhã vamos providenciar um quarto para o jovem cavalheiro.
Moira poderá tomar conta dele. Ela sabe lidar com crianças, tem uns sete ou oito irmãos.
— Oh, não será preciso — protestou Lilian. — Não me importo de tomar conta de
Peter. Eu... eu gosto até!
— Bobagem. Eu não a trouxe aqui para transformá-la em criada... Isto irritaria
meu avô. Ele tem a crença antiquada que as mães estragam os filhos.
— Você... acha que ele acreditou que sou a mãe de Peter? — perguntou
angustiada.
Burke sentou-se na cama e segurou as mãos delicadas dela entre as suas.
— Ainda é um pouco cedo para sabermos o que achou. Ele não é uma pessoa
expansiva, como deve ter notado. Mas, gostou do garoto, disto eu tenho certeza. Ainda
muito preocupada?
— Eu não consigo evitar — queixou-se. — Acho que o seu avô não simpatiza
comigo. Fui uma decepção para ele.
— Muito provavelmente — concordou Burke, de bom humor. — Você tem uma
aparência pura, minha querida. Ele sem dúvida desconfia que nestas circunstâncias
deve ser um caso de dissimulação. Esconde uma natureza explosiva sob um exterior
falsamente tranquilo. Você se abala por ser considerada um jade tranquilo?
Lilian levantou os olhos para ele.
— Eu na verdade me sinto como uma estátua de jade. Laura Damien se divertiria
com isto! Achava que eu era uma pessoa muito insignificante.
— E ela aceitou facilmente sua desculpa, de ter sido convidada para outro
emprego? — perguntou Burke, subitamente curioso. Desconfiava que Laura tinha ficado
furiosa ao perder esta criança tão paciente e meiga.
Lilian deu uma risadinha.
— Não, ela não acreditou. Ela achou que eu estava tendo uma aventura com um
homem. Desejou felicidades e me disse para não chorar quando... — Lilian calou-se,
muito vermelha ao se lembrar das suas palavras maldosas.
— Continue — pediu Burke.
— Não é nada. Ela achou que eu pretendia fazer algo desaconselhável, só isso.
— Entendo — disse, enquanto rodava a aliança que ele mesmo colocara no dedo
dela naquela manhã.
Caía uma chuva fina naquela manhã. No cartório, silencioso e solene, Lilian tinha
respondido às perguntas protocolares com voz vagamente audível. Quando ele colocou
a aliança em seu dedo, teve a impressão que explodiria em lágrimas. Enquanto iam
buscar Peter, ele acalmou-a:
— Lilian, este casamento foi somente uma formalidade necessária. Não deve
deixar que o fato de ser seu marido a perturbe tanto.
— É que... me sinto culpada — respondeu timidamente. Ela temia a série de
mentiras em que tinha enveredado. Para ele, o casamento era um meio para conseguir
que Peter fosse aceito em King's Beeches. Mas, para Lilian, era um passo dado no
escuro, nada fácil.
— Uma prova de sua natural delicadeza, minha pequena, é que permaneceu
assim depois de nove meses na companhia daquela mulher — disse Burke enfim.
Depois soltou a mão dela e se levantou. — Está contente com este quarto, Lilian? —
perguntou olhando à sua volta.
— Sim, obrigada.
— Dentro de uma semana estará acostumada. Não deve deixar que o meu avô
ou os criados a irritem. Não vai deixar, promete?

20
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
— Vou tentar — disse sorrindo timidamente. Aquela aliança brilhando em seu
dedo não significava nada. Nunca se sentiria dona daquela casa enorme, nem a
verdadeira esposa deste homem bonito, charmoso, sorridente e seguro de si... este
estranho! — Espero não decepcioná-lo.
Novamente Burke inclinou-se para ela, fazendo com que o encarasse.
— Tudo vai dar certo, minha pequena. Agora durma. Boa-noite.
E deixou-a, saindo silenciosamente do quarto.
Reconfortada, Lilian aconchegou-se nos travesseiros e adormeceu.

Capítulo 5

Peter acordou Lilian na manhã seguinte. Chorou muito e ela pulou da cama.
Levantou-o do berço e olhou para o rostinho vermelho e zangado.
— O que há, meu garotinho? — sussurrou. — Gostaria que pudesse falar! Eu sou
uma droga de mãe, não é? Está com fome, meu filhinho?
O menino soluçou sentido e ela sentiu seu coração pesado no peito. Será que
Moira estava de pé? Ela saberia o que fazer!
Em seguida, Lilian embrulhou-o no cobertor e saiu do quarto. Parou no corredor
olhando para os lados. Qual seria o caminho da cozinha? Indecisa, tentando acalmar o
faminto Peter, Lilian ficou sem saber o que fazer. Estava tudo muito quieto e o dia mal
tinha amanhecido.
Neste instante, uma porta se abriu atrás dela. Voltou-se e enfrentou a figura de
cabelos brancos do dono de King's Beeches. Ele a olhava irritado, vestido num robe cor
de vinho.
— Esse garoto está fazendo uma algazarra terrível, moça! O que há com ele?
— Ele... está com fome... eu acho — Lilian não conseguia esconder o pavor que
sentia. — Eu estava indo até a cozinha...
— Existe uma campainha em seu quarto — interrompeu-a. — Volte e toque-a.
Uma das criadas virá atendê-la. — Depois deu meia-volta e entrou no quarto, fechando
a porta atrás de si.
Com o rosto queimando e os olhos cheios de lágrimas, Lilian voltou ao quarto.
Encontrou a campainha e pressionou-a. Dentro de instantes, Moira, agitada, entrava no
quarto.
— Bom-dia, madame — cumprimentou-a, pegando Peter nos braços.
— Mas ele está todo molhado! — exclamou, olhando para Lilian, como se
adivinhasse sua incompetência. — Vou levá-lo comigo, madame, e logo darei um jeito.
O sr. Ryeland disse que eu devo ficar à sua disposição e ajudá-la com o bebê.
— E muito gentil — sorriu Lilian.
— Obrigada, madame — respondeu a criada, caminhando decidida para a porta
com Peter nos braços. — O chá será trazido dentro de minutos, madame.
A porta fechou-se e Lilian ficou sozinha no imenso quarto. Abriu as janelas. O
quintal estava apinhado de galinhas brancas e marrons, fugindo de dois cachorros. Mais
adiante, depois do muro, os campos ainda mergulhados na neblina da manhã.
Seu ânimo começou a voltar. O lugar era lindo e o ruído dos animais dava mais
vida a tudo. Mais tarde, poderia dar uma volta pelo campo.
Uma copeira logo trouxe o chá. Era menos intrometida que Moira, mas não

21
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
menos curiosa. Os olhos escondidos sob a touca branca observavam Lilian
atentamente. Percebendo isto, decidiu dizer alguma coisa:
— Espero que Moira tenha conseguido acalmar o meu... meu filho — disse,
aproximando-se da mesinha e provando um biscoito. — Ele é um bebê muito calmo.
Mas desconfio que ele estranha a casa.
— Muito provavelmente, madame — respondeu, repentinamente intimidada.
Lilian sorriu para ela.
— A que horas é o café da manhã?
— Oito e meia, madame. Mais alguma coisa, madame?
— Pode me explicar como chego à sala de jantar? Esta casa é tão grande!
— Pois não, madame. É a primeira porta à direita, descendo a escada do lado
esquerdo.
— Obrigada — agradeceu Lilian, começando a tomar o chá. Sem dúvida, ela
repetiria a conversa com madame lá na cozinha, pensou. E provavelmente ainda
comentaria: "Mas que moça mais sem graça! Como o patrão quis se casar com ela?" E
todos se divertiriam muito às suas custas.
Burke não apareceu para o café e Lilian sentiu-se muito mal, sozinha com o sr.
Ryeland. Ele propositalmente ignorou-a, por trás de um jornal. Embora quisesse
perguntar onde estava Burke, não ousou dirigir-se a ele.
A sala tinha imensas janelas que davam para um terraço, onde um cachorro
passeava. De vez em quando, o cachorro batia as patas no vidro. Repentinamente, o
homem gritou:
— Pare com isso! — O cachorro imediatamente obedeceu e deitou-se,
desanimado.
— Como se chama? — Lilian perguntou timidamente.
O velho senhor agitou o jornal, dando a impressão que hesitava se devia ou não
responder. Lilian mordeu os lábios ao sentir tanta hostilidade.
— O nome é Rafe — disse, finalmente. — Mas tenha cuidado com ele, moça.
Parece amigo, mas não gosta de palmadinhas e tapinhas. Não está acostumado com
isto. — Pôs o jornal de lado e começou: — Seu marido, se quiser saber, foi verificar
algumas coisas para mim e só estará de volta à tarde. Ele disse alguma coisa sobre uma
mobília do bebê que vai chegar. Quer que coloque no quarto que foi dele e do irmão.
Pegue uma das criadas para ajudá-la nisto.
Ela assentiu, corando sob o olhar implacável do velho senhor.
— É inacreditável! — exclamou ele afinal, seus olhos azuis desbotados
examinando-a dos pés à cabeça com visível desprezo. — O rapaz quis me pregar uma
peça! — Depois levantou-se e saiu para o jardim.
Lilian ficou sozinha até que Tolliver entrou silenciosamente na sala.
— Tolliver... — ele voltou-se e ela hesitou antes de continuar: — Tolliver, quando
voltar à cozinha, quer por favor dizer a Moira que venha até aqui? Quero que ela me
ajude a desocupar o antigo quarto de meu marido. A mobília nova chegará hoje de
Tauton e quero tudo em ordem.
— Sim, madame. — Um sorriso iluminou seu rosto: — E muito agradável ter uma
criança em casa, se madame permite que eu diga. Nós os empregados, estamos
realmente encantados.
— Verdade mesmo, Tolliver? — perguntou Lilian, surpresa com aquelas palavras.
— Trabalha há muitos anos com a família?
Aquele rosto tão ingênuo e puro, ignorando a vida do marido, fez com que Tolliver
sentisse uma simpatia especial por ela. O sr. Burke tinha trazido coisas estranhas de
suas andanças pelo mundo, mas nada tão estranho quanto aquela pequenina esposa já
com um filho nos braços.
— Desde jovem, madame. A mãe deles faleceu quando o sr. Philip nasceu. Eram

22
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
ótimos garotos, madame, embora o sr. Philip tivesse sido o mais sossegado dos dois.
Acho o pequeno sr. Peter muito parecido com o tio.
— É mesmo, Tolliver? — Por um instante o coração de Lilian assustou-se. — Meu
marido e o irmão não eram parecidos?
— Somente os olhos, madame. O sr. Philip parecia com a avó.
— Entendo. A morte dele deve ter sido um grande golpe para o avô. Meu marido
me contou que eram muito chegados.
— É verdade, madame. O sr. Philip desde menino adorava King’s Beeches.
— É uma bela casa. E tão grande! Sei que vou me perder muitas vezes aqui
dentro. Mas estou atrapalhando seu serviço, Tolliver. Por favor, mande Moira, sim?
Estarei no jardim.
Ele inclinou a cabeça, adiantando-se até a porta para abri-la para Lilian. Ela foi
para o jardim. O sol estava mais quente, tornando as flores mais luminosas.
Parou diante de um relógio de sol, no meio do gramado, e leu a inscrição: "O
tempo caminha à minha frente e o destino segue os meus passos". Sorriu ao se lembrar
do velho Ryeland. Ele não a suportava. Sua tensão só diminuía quando Burke estava a
seu lado. Mas, longe dele, se sentia a intrusa deselegante e ridícula.
Mas se não fosse por sua discrição e timidez, não estaria ali. Eram estas
qualidades que agradavam Burke. Ele a tinha tornado a sra. Burke Ryeland, de King's
Beeches, mas nunca exigira nada dela. Continuaria a ser para sempre a pequena Lilian
Glyn, que ele conheceu como datilografa num hotelzinho à beira-mar.
De repente, Lilian virou-se e viu uma moça dirigindo-se a ela. Estava vestida
numa elegante roupa de montaria. Os cabelos castanhos eram cortados muito curtos, o
que lhe dava uma aparência de impecável elegância. Não era exatamente bonita, mas
tinha a aparência extremamente requintada.
— Quem é você? — perguntou com arrogância.
— Eu... eu sou Lilian Glyn... isto é, sou a esposa de Burke. Nós... nós chegamos
ontem à noite.
— Deus do céu! — a moça exclamou incrédula. — Ora essa! Burke não se
casaria com um bebê como você!
— Bem... mas... casou... — respondeu Lilian sentindo-se infantil e ridícula diante
daquela mulher. Devia ser a moça com quem o avô de Burke queria que ele se casasse.
— Burke gosta de gracinhas, eu sei — disse a outra com desprezo. — Mas nunca
chegou a este ponto! Explique esta história senhorita...
Neste instante, Moira apareceu com toda a sua energia, trazendo o pequeno
Peter nos braços.
— O bebê não aguenta mais ficar longe de madame — disse rindo. — Olhe como
esperneia em meus braços!
Lilian imediatamente aconchegou a criança junto a si. Depois virou-se, com os
olhos brilhando:
— Este é o filho de Burke. Não é mesmo lindo?
— Filho de Burke! — A moça fitou atônita a criança, o rostinho sadio e risonho,
enquanto tentava com a mãozinha rechonchuda segurar a blusa de Lilian. — Filho de
Burke! — ela repetiu. — Pois não acredito!
Chegou mais perto, observando a criança que olhava para ela, os olhos azuis
como os de Burke. Mas aquela moça não estava com disposição de se encantar com o
pequeno Peter.
— Quantos meses ele tem?
— Cinco — respondeu Lilian.
Na verdade, sentia-se realmente mãe daquela criança que a segurava tão
avidamente. Peter lhe deu forças e ela não mais temia aquela moça arrogante.
— Está querendo me convencer que Burke está casado há... mais de um ano? —

23
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
Os olhos dela enfrentavam Lilian mostrando toda a sua frustração. — Pois eu não
acredito! Ele não teria deixado de me contar, não teria escondido de mim! Ele... —
Subitamente lembrou-se da presença de Moira. — O que quer? — perguntou irritada.
— Madame deseja que eu a ajude a preparar o quarto do pequeno Sr. Peter,
senhorita — respondeu Moira com decisão.
— Ah! — A moça batia o chicote regularmente nas calças de montaria. Depois,
sem dizer mais nenhuma palavra, deu meia-volta e subiu correndo os degraus de pedra,
entrando na casa.
Lilian estremeceu. Aquela moça, muito mais do que ela, pertencia a King's
Beeches.
— Quem é ela? — perguntou a Moira.
— Srta. Íris Mollary, madame, de Mallory Court. Ela está sempre por aqui. O velho
sr. Ryeland gosta muito dela.
— Compreendo... — disse enquanto olhava as portas por onde a srta. Mallory
havia entrado. Era uma moça assim que o sr. Phillip Ryeland queria como esposa de
seu neto. Bela e arrogante. Nascida para administrar uma casa como King’s Beeches e
dar à luz meia dúzia de belos rebentos.
Baixou os olhos para Peter aninhando-o no colo. Certamente ele não estava
incluído no ódio do velho. Então as lágrimas, que tinha segurado tanto, caíram soltas por
seu rosto.
— Oh, Peter! Como eu adoro você! — E o menino sorriu, como se tivesse
compreendido. — Ele não é lindo, Moira? — Lilian exclamou, o rosto molhado pelas
lágrimas.
— Lindo e rosado como uma maçã de setembro, madame — concordou Moira,
sorrindo comovida.
Quando Lilian sorria, aquele rostinho delicado se iluminava e um intenso charme
a envolvia. Seus enormes olhos castanhos brilhavam. Quem sabe o sr. Burke tinha se
apaixonado por aquele sorriso? Por que tinha mantido aquele casamento em segredo?
A srta. Mallory tinha ficado furiosa. Todos sabiam que ela esperava um dia ser a senhora
de King’s Beeches. Mas esta menina, simples e tímida, tinha conseguido ganhar a
parada.
Moira pensava admirada. Esta criaturinha tinha muito mais do que se via à
primeira vista. Íris Mallory podia ser elegante e bonita, mas o sr. Burke tinha preferido
esta mocinha suave e doce.

Capítulo 6

A mobília infantil e um verdadeiro zoológico de bichos de pelúcia chegaram


naquela tarde. Lilian e Moira passaram horas ocupadas arrumando tudo no enorme
quarto que um dia fora de Burke e Phil.
Depois de pronto, o quarto parecia ter saído de um conto de fadas.
— Lindo, não é Moira? — exclamou Lilian animada.
— Muito lindo, madame — disse Moira. — O pequeno Sr. Peter tem muita sorte.
— Sim, sim, Moira, muita sorte.
— Bem, agora vou levá-lo para dar um passeio pelo jardim em seu novo carrinho,
madame. — Antes de sair, ainda se voltou para mais uma olhada, sentindo-se orgulhosa

24
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
em ser agora a pajem do bebê.
Lilian continuou ali, abraçada ao elefantinho, olhando sonhadora o belo jardim.
Era uma tarde ensolarada e quente. Estava apreciando os jardins quando Burke entrou
no quarto. Estava com botas e calças de montaria, a camisa aberta no peito. Aquelas
roupas acentuavam a sua virilidade.
Ele aproximou-se da janela.
— Gostou dos brinquedos, Lilian? — perguntou amável.
Ela balançou expressivamente a cabeça. Cuidadosamente pôs o elefante de lado.
— Peter vai adorar todos eles! Parecem saídos de um conto de fadas!
— Brinquedos devem encantar — respondeu sorrindo, tornando mais sedutor seu
rosto másculo. — O que fez o dia todo? Ainda não ficou amiga do meu avô?
Ela sacudiu a cabeça, sorrindo levemente.
— Espera que ele goste de mim? Como poderia? Uma águia nunca aprecia um
passarinho.
— E que tal uma pomba? — perguntou Burke, pegando Lilian pela mão. — Venha
comigo. Quero mostrar uma coisa a você.
Puxou-a para fora do quarto, fazendo-a seguir seus passos largos pelo corredor:
abriu uma porta e Lilian arregalou os olhos admirada. Não lhe deu tempo para parar e
levou-a até uma enorme lareira, sobre a qual estava o brasão dos Ryeland: uma pomba
branca pousada no cabo de uma espada. Embaixo estava o lema em latim: Fortes
Fortuna Juvat.
— Sabe o que quer dizer, Lilian?
"A sorte favorece os fortes" — respondeu. — Eu nunca arrepiarei minhas penas
sobre a espada de seu avô. E muita pretensão. Eu não sou... Íris Mallory...
Imediatamente ele largou sua mão e, afastando-se um pouco, resmungou alguma
coisa que ela não conseguiu ouvir. Virou-se exclamando.
— Então conheceu a terrível Íris? Parece que ficou impressionada.
— Achei-a muito bonita.
— Escute uma coisa, Lilian, ao contrário do que as pessoas dizem, eu nunca dei
a Íris Mallory nenhuma razão para que tivesse esperanças de se casar comigo. Sei que
meu avô gostaria que isto acontecesse e possivelmente isto influenciou Íris. Estou
dizendo isto porque não quero que tenha a impressão que eu agi mal com ela. Fiz isto
uma vez na vida e até hoje me arrependo terrivelmente.
Foi até a janela e apoiou os ombros nela, o rosto sombrio.
— Você acredita, Lilian, que a gente paga pelos erros cometidos? Será que a
gente tem que pagar durante a vida inteira?
Aquelas palavras abalaram-na. Olhou para ele, aquele homem orgulhoso, de
repente tão abatido. Teve um impulso de se aproximar dele, mas a timidez impediu-a.
— Não, se os erros não forem propositais, Burke.
— O problema é este — disse, encarando-a. — Meu erro foi proposital. — Mas
logo deu uma risada, tentando afastar a melancolia. Convidou-a para dar uma volta no
pomar. O ar lá fora estava perfumado pelas árvores carregadas de maçãs de cidra.
Colheu uma para Lilian. — Para uma boa menina — gracejou.
Andaram lado a lado. Burke a olhou e riu.
— Você parece que tem quatorze anos! Acho que vou lhe comprar um velocípede
para brincar no jardim...
— Não diga isto! — protestou. — Tenho certeza que sou o assunto preferido dos
empregados. Moira me olha de um jeito!
— E como Íris Mallory olhou para você? — Ele soltou aquele seu sorriso radiante.
— Deve ter pensado que eu era um moleque da vizinhança. Tive a impressão que
queria me pegar pelo pescoço e me expulsar daqui. Mas Moira salvou a situação...
trazendo Peter para mim.

25
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
— E a prova do crime fez a bela e insuportável Íris reconhecer o seu lugar! —
comentou Burke, bem-humorado. — Eu gostaria de ter visto a cena! Oh, Lilian, não tem
jeito mesmo! Esta situação toda é muito engraçada!
Pode ser que para Burke tudo fosse muito divertido, mas não para ela. Lilian
parecia embaraçada.
— Preciso dizer que conheço o Peru? Nunca estive lá e não sei nada sobre
aquele país!
— É quente, úmido e primitivo — disse Burke, divertindo-se. — Vamos dizer a Íris
que eu encontrei você debaixo de uma figueira, vestida com folhas tingidas! Vou dizer
muito pouco, e só o que eu quiser. Não se deixe intimidar por Íris. Pode ser que ela seja
o encanto de meu avô, mas sabe muito bem que eu não vou admitir que se meta com o
que é meu! — Passou o braço pelos ombros dela, e levou-a de volta à casa. — Íris é
uma boa pessoa, realmente. Mas foi estragada pelo pai.
Lilian tinha dois vestidos, mas nenhum deles era apropriado para jantar na
luxuosa sala de King's Beeches. E ambos estavam em Londres no apartamento de
Laura Damien! Assim, mais uma vez, sentou-se à mesa com sua roupa de linho azul-
marinho. Íris estava presente, elegantíssima e sedutora. Lílian sentiu-se mais
desajeitada e apagada.
Comeu em silêncio, sentindo os olhos de Íris pregados nela.
— Eu vi o seu filho, Burke. Já sabia? — disse Íris. Ele levantou lentamente os
olhos para ela.
— Com quem acha que ele se parece?
— Com você, naturalmente, querido.
— Bobagem! — protestou o velho senhor. — O garoto é a cara do meu Phil!
— Verdade? — a moça perguntou arregalando muito os olhos. — Vou ter que
olhar outra vez para ele.
— Sim, faça isto, Íris — disse Burke. — Peça a Lilian para levar você até o quarto
depois do jantar. Vai adorar os brinquedos... ele tem um zoológico lá em cima, não é
mesmo, Lilian? — disse, dirigindo-se carinhosamente a Lilian. — Mostre o elefante cor-
de-rosa, aquele com que você gosta de brincar.
— Ah, então ela usa os brinquedos também? — caçoou Íris. — Que coisa...
cômica...
— É mesmo, não? — Burke respondeu. Tomou um gole de vinho e comentou
com o avô: — Esse vinho é realmente suave. É italiano?
— Tab Gresham me recomendou e eu comprei uma caixa para experimentar. Ele
entende de vinhos. Mas, como todo médico, não sabe jogar bridge.
— O senhor e o seu bridge — disse Íris sorrindo, dando um tapinha na mão de
seu velho amigo. — Que tal nós quatro fazermos um joguinho esta noite?
— Eu... eu não sei jogar... — interrompeu Lilian, aflita.
— Não precisa ficar assim triste, minha queridinha. Eu gosto de você exatamente
como você é, sem nenhum vício — disse Burke.
— Mas ela não tem nem um pequenino, para fazer a sua vida mais excitante? —
provocou Íris. — Você monta?
Lilian sacudiu a cabeça.
— Nunca tive oportunidade de aprender.
— Que extraordinário! Burke vive em cima dos cavalos quando está em King’s
Beeches. — E virando-se para ele: — Onde foi que encontrou sua esposa, Burke? Num
convento?
O coração de Lilian deu uma cambalhota. Seus olhos ficaram grudados no rosto
de Burke.
— Bem, nós nos encontramos no estrangeiro. Lilian era secretária de uma
conhecida minha. Eu a libertei. — Sorriu para Lilian.

26
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
— Depois da sobremesa, querida, leve Íris lá em cima para ver o bebê. — E
voltou-se para Íris: — Quase não se pode acreditar que ela tem um filho, não é? Ela
mesma parece ainda um bebê!
— Não sei não — retrucou Íris. — Águas paradas escondem perigos terríveis!
— E águas agitadas, muita mediocridade.
Lilian percebeu que Íris tinha ficado tensa. Ama Burke, pensou, e ele sabe disto.
Até aquele instante, Burke só tinha mostrado bondade para ela, mas e se um dia usasse
sua língua ferina contra ela? Estremeceu. Era o seu único amigo naquele mundo
estranho.
Discretamente, observou-o conversando com o avô. Conhecia tão pouco dele!
Laura Damien tinha dito que era implacável, que nunca se importou com ninguém em
toda a sua vida. Mas estava convencida que havia amado a mãe de Peter. Não era por
Peter ser um Ryeland que o tinha trazido para King’s Beeches, mas porque de alguma
forma havia ferido a mãe dele. A moça chamada Dani.
Que coração estranho, ansiando por horizontes mais vastos, mas renunciando a
tudo para passar o resto de seus dias ali.
O comentário de Burke tinha deixado Íris sem ação, chocada. Foi amável com
relação a Peter. E olhou sem interesse os bichinhos que enfeitavam o quarto.
— Vai descer? — perguntou a Lilian.
— Acho que vou ler um pouco — respondeu a moça. — Por favor peça desculpas
a Burke e ao sr. Ryeland por mim.
— Está bem — respondeu a outra secamente. Parou um instante para olhar Lilian
que novamente se aconchegava no banco ao lado da janela. Parecia
encantadoramente, jovem, frágil e suave. O ódio que tinha sentido ao saber da noticia
do casamento renasceu mais forte ainda. Aquela era a esposa de Burke! E explodiu: —
Você não está fazendo o terrível erro de imaginar que Burke está apaixonado, não é?
Ele é incapaz de amar, sabia? Ele queria um filho para King's Beeches... não uma
esposa! Você é perfeita. Plácida, apagada! Deu-lhe um filho e a qualquer instante vai-se
livrar de você! Não sei se você o ama, mas que Deus a proteja se amar!
— Deus... me proteja?
— Sim, que Deus a proteja, porque Burke Ryeland, sua boba, adora destruir
quem o ama. Detesta o amor. Simplesmente porque pode tirar sua preciosa liberdade!
Como deve ter odiado Phil por ter morrido... e como deve odiar você porque teve que se
casar e ficar aqui! Ele teve que se casar, entendeu? Foi por causa disto que você o
agarrou!
Irritada, Íris virou-se e saiu, deixando no quarto um pesado silêncio.
Lilian ficou no mesmo lugar. Seu coração disparou. Estava aprendendo muito
sobre Burke... até demais... e estava assustada.
Resolveu deitar e manter-se calma.
Estava lendo quando alguém bateu na porta. Em seguida, Burke entrou e a
realidade voltou amarga para Lilian.
— Oh... alô...
— Mas por que não desceu? — perguntou ele, chegando perto da cama e
examinando o livro que ela estava lendo. — Íris assustou você?
— Oh, não! Eu queria estar com Peter, só isso. Eu... eu gosto muito dele.
— E com ele se sente segura. Não pode com perguntas não é? — Ele a olhou
com atenção. — Notei que você quase morreu quando Íris quis saber como nos
conhecemos. Ela voltou a perguntar alguma coisa, aqui em cima?
— Não. — Lilian enrubesceu, lembrando-se do que Íris tinha dito.
Burke percebeu que alguma coisa estava errada.
— Está com medo do quê? De mim? — Seus olhos a examinavam atentamente.
— Não precisa ter medo de mim, Lilian. Eu não faria nada que a ferisse, como não faria

27
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
com Peter. Vocês dois agora são minha família, sabe disto?
— Nós dois? — Seus olhos mostravam sua surpresa. — Você pensa em mim
como... como uma filha?
Os olhos de Burke se abriram, atônitos. Depois estudaram o rosto tão jovem, tão
sem malícia, levantado esperançosamente para ele.
— Bem, Lilian, uma coisa assim. Por que não? — E sorriu. — Certamente eu
tenho idade para ser seu pai, pensando que eu poderia ser bastante precoce para me
casar com dezessete anos.
— Burke, você era precoce? — ela perguntou impetuosamente, sorrindo para ele,
esquecendo todos seus receios.
Ele segurou seu queixinho e respondeu:
— Deve fazer esta pergunta a meu avô. Lembro que costumava escrever para o
jornalzinho da escola. Eu era meio bolchevista naquele tempo, e me expulsaram. Meu
avô ficou furioso comigo. Daquela época em diante fui considerado a ovelha negra da
família. Sim, pensando bem, acho que fui precoce, Lilian. Você gosta de ler?
— Gosto, gosto muito de Dickens. O livro de que mais gosto é o Conto de Duas
Cidades. Você leu? Eu sempre choro quando leio.
— Você me acha um pouco cínico, não? — perguntou Burke.
— Eu... eu não sei. — Passou a mão nervosa nos cabelos. — Acho que deve ser
uma mistura. Você fala da vida de um jeito cínico, mas às vezes é muito romântico.
— É a minha cabeça de escritor.
— Por que não escreve outro livro?
— Não. Não daria certo, minha querida. Eu ficaria descontente com... com as
coisas como são agora. É melhor não. Esta página da minha vida está virada... Agora é
melhor que durma. Quer que apague os dois lampiões?
— Não, um só. Este quarto é grande demais e escuro...
— Sua menininha... — comentou, carinhoso. — Está bem assim?
— Sim, obrigada.
— Vai dormir? Não vai ficar acordada pensando? Amanhã, vou levar você para
conhecer melhor Somerset. — Depois riu alegre. — Quer que eu compre um elefante
rosa para você?
— Não devia ter dito a Íris que eu brinco com os brinquedos de Peter. Eu me senti
uma idiota!
Ele deu uma risada bem-humorada e dirigiu-se para a porta.
— Pobre Íris. Ficou muito espantada. Vai dizer por aí que achei minha esposa
numa creche. Vou ter que comprar umas roupas bem sofisticadas para você. Vamos
fazer umas compras assim que eu tiver algum tempo... — E fechou a porta.
Lilian ficou ali, sozinha, pensando nas coisas extraordinárias que tinham
acontecido naqueles dois dias.
O avô de Burke irritado na hora do desjejum... Mas entendeu-o melhor, ao se
comparar com a orgulhosa Íris. Sentia-se uma moça insignificante, sem nenhum
encanto. Como poderia ter-se casado com Burke? Burke Ryeland, tão atraente, tão
bonito e inteligente, tão rico!
Esposa de Burke! Mas que piada!
No entanto, Íris não tinha achado graça. Tinha sentido um ciúme terrível. Suas
palavras cruéis lhe voltavam à lembrança:
— Burke destrói quem o ama!
E sabia, com certeza, que era isto o que tinha feito com Dani Larchmont.

28
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear

Capítulo 7

O tempo logo mudou e as chuvas começaram a cair. Muitas vezes com violência,
entrando pelas enormes chaminés de King’s Beeches e chiando ao cair sobre as toras
de cidra que ardiam nas lareiras.
Lilian adorava ficar lendo, toda encolhida, no escritório de Burke. Ele trabalhava
muito na fazenda, mas, no fundo, ainda era um viajante.
— A administração de uma fazenda poderia ser bem mais fácil — disse uma vez
à Lilian. — Mas é necessário uma papelada imensa: Formulários e mais formulários!
Olhe só para isto!
Quando Burke trabalhava no escritório, Lilian lia ou trazia Peter com alguns
brinquedos. Brincava com ele sobre o tapete, em frente à lareira.
— Já está se acostumando com a vida aqui, não está? — perguntou Burke um
dia.
Ela concordou... mas sabia que estava apenas sendo protegida dos problemas,
ao lado de Peter e Burke, com cortinas cerradas isolando-a das montanhas lá fora e a
porta fechada, sem perigo do avô de Burke aparecer.
Nunca ia lá. Ele parecia se irritar com o fato daquele salão ser o refúgio de Burke.
Apareceu uma manhã, com seu cão. Para desgosto do dono, o cão tinha se
afeiçoado a Lilian. Mas o velho senhor permanecia hostil.
— Soube que ficou acordada, ontem à noite, com o menino — disse, ríspido. —
Ele está doente?
— Os dentes estão rompendo — explicou Lilian. — Espero que ele não tenha
incomodado o senhor.
— Não , não... Mas pensei que seria uma boa ideia chamar Tab Gresham para
examiná-lo. Não quero que o garoto fique doente por nada neste mundo!
Lilian olhou admirada para o velho. Então, sob aquela capa de indiferença, se
importava com Peter! Sentiu uma imensa alegria.
— Para dizer a verdade — disse ela, procurando vencer a natural timidez —
gostaria muito. Estou... muito contente que tenha sugerido. Com este tempo, pode
apanhar uma bronquite. E eu não quero que isto aconteça.
— Não, não! — exclamou. — Não queremos nada disso. Como diz, é uma criança
gorducha. Vou mandar um dos criados com um bilhete para Tab. O que Burke acha?
Não disse que o garoto precisa ter um médico?
— Ele disse que chamaria o dr. Gresham se Peter não melhorasse até a hora do
almoço.
— Pois bem, vou mandar chamar Tab agora. — Olhou-a daquela maneira hostil e
saiu do quarto, com Rafe atrás.
Tab Gresham chegou em uma hora.
Lilian surpreendeu-se, pois pensava tratar-se de um homem de meia-idade. Mas
ele regulava com Burke. Um homem magro, de cabelos muito louros, espertos olhinhos
azuis e uma cicatriz na face esquerda. Era uma pessoa simpática, um homem simples e
confiável.
Cumprimentou Lilian com amabilidade e comentou enquanto subiam até o quarto:
— Já deveria ter vindo antes para conhecê-la, sra. Ryeland, mas estive
descansando nestas últimas três semanas. Fui até a Escócia, pescar.
— Então o senhor é um traidor — gracejou. — Burke costuma dizer que o melhor
lugar para se pescar na Inglaterra é no Barle.

29
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
— Ah sim, mas Burke é um homem de Somerset. Soa escocês, sra. Ryeland.
— Compreendo — disse ela sorrindo, tão à vontade que chegou a ficar surpresa.
Era difícil que conversasse com estranhos. Tinha sempre em mente aqueles amigos de
Laura Damien, radicalmente diferentes deste homem encantador.
Entraram no enorme quarto. Moira estava sentada com Peter no colo, tentando
distraí-lo. Normalmente ele adorava aqueles brinquedos, mas hoje estava infeliz,
chorando muito.
Tab Gresham começou a examiná-lo, comentando:
— Mas ele é ótimo! O que o avô acha dele? — depois riu. — Aposto que o adora!
Quem não adoraria? — Apalpou o pescoço do garoto. — Hum... os dentes estão
rompendo. Além disso, está com uma inflamação na garganta e uma pequena dor de
ouvido. Pobrezinho!
— Os pulmões estão bem? — perguntou Lilian, preocupada.
— Este chiado é por causa da garganta — explicou. — Eu trouxe um remédio
comigo para aliviar as dores nas gengivas.
— É amargo?
Tab riu. Estava achando Lilian encantadora.
— Posso lhe garantir que não. Eu não ousaria dar a seu bebê um remédio
amargo.
Quando desceram, o lanche estava servido. Lilian, Tab e o velho Ryeland já
estavam na mesa quando Burke chegou.
— Alô, Tab — cumprimentou alegre. — Esteve examinando o garoto? Ele está
bem?
— Muito bem. São os dentes, Burke. E está com uma dorzinha de ouvido e
inflamação de garganta. Mas já dei à sra. Ryeland um remédio. Ficará bom dentro de
um ou dois dias.
— Que alívio! — exclamou Burke. — Não ficou com inveja? Acho que está na
hora de você assentar também.
— Nunca pensei que viveria para escutar isto — disse o outro, sinceramente
espantado. Depois virou-se para Lilian: — Foi a senhora quem fez este milagre! Sabe
disto?
O sorriso de Lilian não foi espontâneo. Ela sabia... e só ela, o desesperado
esforço de Burke, para parecer convincente.
— Então o menino não tem nada sério? — interrompeu o velho senhor.
— Nada que uma boa noite de sono não conserte, senhor.
— É um garoto e tanto, não?
— Sem dúvida — concordou o médico. — É forte como o pai.
— Você fala como se eu fosse um estivador — reclamou Burke. — Não pode se
esquecer que sou um poeta, viajante e escritor aposentado. — O avô fez uma careta,
mas Lilian comentou risonha:
— Tenho tentado convencer Burke para escrever outro livro, dr. Gresham. Ele
poderia ditar e eu bateria à máquina depois.
— Mas que ideia esplêndida! — disse Tab. — Não desperdice seu talento, Burke.
Sei que agora é fazendeiro, mas como bom profissional, deve fazer tudo.
— Também penso assim. Seu campo de imaginação, se continuar abandonado,
vai ficar cheio de pedras e pragas.
Burke riu.
— Vou deixar mais um ou dois anos e depois...
— Burke, não fale assim — protestou Lilian, assustada com o cinismo que lia em
seus olhos.
— Burke está certo — afirmou o velho senhor. — Agora é um fazendeiro. E
esqueceu essas bobagens de literatura. — Olhou com rancor para Lilian. — Lembre-se

30
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
disto, moça, e deixe de atormentá-lo.
Lilian enrubesceu.
— Mas não é justo que...
— Pare com isto, moça! — disse o homem, dando um soco na mesa, fazendo as
louças pularem. — Não quero mais ouvir estas idiotices!
Burke levantou o olhar, as narinas dilatadas.
— Não há necessidade de falar com Lilian neste tom, senhor. Estas "idiotices",
como diz, ainda representam muito para mim, embora eu tenha renunciado a elas. Sinto-
me grato a Lilian por sua oferta, embora não possa aceitá-la.
— Verdade? — retrucou o velho. — E também acha que eu sou grato... por você
fazer o que me desagradaria?
— Se nossas simpatias, finalidades, gostos e desgostos sempre foram opostos,
não foi proposital de minha parte, pode acreditar. Tinha que seguir o meu caminho,
como Philip tinha que seguir o dele. E se o caminho dele coincidia com o meu, também
acho que não era proposital.
— Não fale de Philip! — berrou o avô. — Philip foi tudo que você nunca pôde ser!
Ele deu muito mais a esta casa do que você sequer pode dar! Deu seu coração, seu
sangue! — empurrou a cadeira para trás e levantou-se tremendo, o rosto branco de
raiva. — Desculpe-me Tab, sei que é grosseiro discutir em frente de hóspedes mas...
diabo! Ele nunca escutou a voz da razão. Nunca! — E saiu da sala, batendo a porta com
violência.
— Deus... — murmurou Burke. — Nós dois não conseguimos diminuir nossas
diferenças ou controlar nossos gênios! Não adianta mesmo! — Serviu-se com uma mão
ligeiramente insegura. — O diabo é que estou amarrado a esta casa! Por causa de
minha maldita consciência. Você não sabia que eu tinha uma, não é, Tab? — Burke
estava melancólico. Levantou-se, deu a volta na mesa e segurou os ombros frágeis de
Lilian: — Pare de achar-se culpada por toda esta discussão. — Beijou-a levemente nos
cabelos. — Nós sempre brigamos assim. A vida inteira. Não se preocupe.
— Não posso deixar de me preocupar — disse, olhando para ele com amargura.
— Não é justo que ele pense que é... Não é justo!
— As pessoas dificilmente são justas quando perdem o que mais amam e ficam
com o que desprezam. É muito simples, minha querida. Simples e cruel!
Embora a tarde estivesse cinzenta, Lilian resolveu dar um passeio para escapar
do sentimento de opressão que sentia naquela casa.
Assim, depois de se despedir do dr. Gresham, assegurou-se de que Peter estava
dormindo, vestiu seu casaco de pelo de camelo e foi dar uma volta pelo bosque, além
das campinas.
As enormes faias lançavam seus galhos formando uma cúpula majestosa, depois
apareciam os verdes olmos e os carvalhos. Tinha já andado uns vinte minutos, quando o
bosque começou a rarear. Lilian achou-se diante de um caminho cheio de curvas,
ladeado de amoreiras. Começou a caminhar mais depressa, apreensiva. Tinha a
estranha convicção de que alguma coisa a empurrava.
Então, abruptamente, achou-se diante de uma porta branca, num muro de mais
ou menos nove ou dez metros de altura. Aproximou-se lentamente da porta, atraída por
ela. Encostou nela e ela imediatamente se abriu. Lilian atravessou o portal e entrou em
um pátio em frente a uma velha casa da fazenda. Tinha várias chaminés. Era
encantadora em sua solidão, fazendo com que ela parasse, extasiada. Subitamente,
alguém gritou:
— Fique parada, moça! Fique parada agora!
Ela parou aterrorizada. Um homem forte, de cabelos grisalhos, se aproximou com
um Bull terrier numa coleira. Ao chegar mais perto, disse:
— Isto é propriedade particular, moça.

31
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
— Eu... eu estou muito envergonhada por ter entrado em sua casa! — gaguejou
Lilian. — Eu... eu não pensei...
— É um hábito perigoso este, moça, não pensar antes de agir. O cachorro
poderia ter atacado a senhora, se eu não estivesse por perto. — Sério, ele examinou-a
da cabeça aos pés. — E acho que sei quem é a senhora. É a mocinha de King’s
Beeches, não é? Eu a vi no outro dia no carro com o jovem sr. Ryeland.
Ela confirmou com a cabeça, nervosamente.
— Sim, eu sou a sra. Ryeland.
— Ah... — o homem ficou pensativo, e abriu um sorriso tímido. — Estava
pensando, senhora, já que está aqui, não aceitaria uma xícara de chá? Minha mulher
recebe poucas visitas. Ela é paralítica, e as pessoas não gostam de gente doente. Entre.
A casa fica muito triste assim isolada. — Depois sorriu e estendeu a mão para Lilian: —
Sou James Larchmont, senhora, um dos arrendatários do sr. Ryeland.
Seus olhos brilharam.
— Eu gostaria demais de tomar um xícara de chá com sua esposa, sr. Larchmont.
— Então venha por aqui, senhora.
Passaram pelas imensas nogueiras e pelo pátio, até a porta da frente da casa.
James Larchmont a abriu convidando Lilian a entrar. No mesmo instante, ela sentiu um
aperto no coração, adivinhando que alguma coisa terrível a esperava naquela casa
assustadora. Ficou parada, sem conseguir se mexer.
— Tem certeza de que sua esposa não se importará?
— Tenho toda a certeza — falou ele com convicção, percebendo sua hesitação.
— Venha comigo, não fique assim nervosa. Minha esposa é uma amável criatura.
Lilian entrou com ele para uma sala, onde encontrou a figura delicada de uma
mulher de cabelos prateados, recostada num sofá.
Logo imaginou que aquela mulher um dia fora belíssima. Mas seus olhos foram
mais além, pousando num quadro em cima da lareira onde uma linda moça, com um tipo
cigano, de olhos e cabelos negros a olhava com ousadia.
Lilian sentiu o coração lhe pesar dentro do peito. Nunca tinha visto uma mulher
tão bela assim! E sabia quem era ela... sabia!

Capítulo 8

— Eu trouxe uma visita para você, minha querida — disse James Larchmont,
gentilmente fazendo com que Lilian se adiantasse até onde estava sua esposa. — Esta
é a jovem sra. Ryeland, de King's Beeches.
— Sra... Ryeland? — Os olhos, fixos em Lilian. Então exclamou: — Oh,
naturalmente! Jim contou-me que Philip tinha se casado. Que bom para ele! — Voltou os
meigos e apagados olhos para o marido: — Ponha uma cadeira para a sra. Ryeland aqui
perto, Jim. Não a deixe em pé. Sei que deu uma longa caminhada.
— Eu... eu vim pelo bosque — explicou Lilian, um pouco agitada. — Não levou
tanto tempo.
— Pelo bosque? — os olhos se arregalaram. — Mas não é um lugar seguro para
se andar sozinha, minha querida. E muito escuro e assombrado! Não devia... não devia
mesmo ter andado por ali!
— Oh... mas não me importei — disse Lilian sentando-se na cadeira colocada ao

32
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
lado do sofá. — Havia somente árvores e pássaros.
— Nunca gostei do bosque — disse a mulher. — Não gostei mesmo, não é Jim?
Quando cheguei aqui, recém-casada, não tinha coragem de ir lá. Jim costumava rir
muito de minhas maneiras da cidade... eu era de Londres... — Estendeu uma mão muito
branca e segurou o pulso de Lilian. — Você veio de Londres, não veio?
Lilian abanou a cabeça, concordando silenciosamente.
— Que estranho Philip ter-se casado com uma moça de Londres... ele com todo o
seu amor por Somerset!
— Mas não sou casada com... — Lilian calou-se ao notar que James Larchmont
tinha apertado seu ombro, com força, seus dedos firmes pedindo que se calasse.
Levantou os olhos para ele, confusa...
— King's Beeches é uma casa maravilhosa, não é? — comentou a sra.
Larchmont. — Deve gostar de viver lá, não é? Sempre achei que parecia uma casa de
contos de fada... Você não acha? Aquele clima de sonho, que só ela tem... — Olhou
para Lilian, a cabeça levemente inclinada: — Sim, vejo que você ama King’s Beeches.
Philip iria querer isto, ele que também a ama tanto, não? Agora, o irmão dele... Espero
que tenham falado dele para você... Falaram? Pois ele é tão insatisfeito, tão sem
sossego! King's Beeches não o prendia. Foi embora, sabe? — Depois ficou séria e seu
olhar desviou-se do rosto de Lilian, enquanto passava as mãos pelos cachos prateados
de seus cabelos. — Sim, ele foi embora... os dois foram embora...
— Os dois? — O coração de Lilian saltou no peito e novamente os dedos fortes
de James em seus ombros a fizeram calar.
— Vera — disse ele —, vou até a cozinha fazer um bule de chá. Quero que
mostre à sra. Ryeland ás rendas que você faz. Vou buscar, está bem?
— Mas... está bem, Jim. Estão no armário, ao lado da cama. Tome cuidado para
não amassar as minhas sedas.
Ele saiu da sala e o silêncio caiu entre as duas. A mulher parecia ter perdido todo
o interesse na conversa, os olhos se voltando lentamente para o retrato sorridente, em
cima da lareira, sonhadores. Lilian teve a impressão que ela esperava por aquela moça,
que um dia se chamara Dani... a filha que nunca voltaria. Tão linda para ter sido
abandonada, tão linda para estar morta!
Lilian estremeceu, percebendo mais uma pessoa naquela lúgubre sala. Virou-se
assustada e encontrou dois olhos negros exatamente iguais aos do retrato. Soube que
aquele homem insolente e risonho era o irmão de Dani. Tinha tanta certeza disto como
se alguém lhe tivesse dito. Eram iguais, mas o que havia de alegria na face da moça,
nele estava transformado em insolência. Ele se parecia, pensou Lilian, com um cigano
perigoso!
— Uma visitante, hein? — disse ele então, entrando na sala.
A sra Larchmont afastou os olhos do retrato e voltou-se para o rosto arrogante do
filho.
— Ah... é você, Jack... — disse sem entusiasmo.
— Sim, mãe, sou eu. Black Jack. — E sorriu cruelmente, enquanto se
aproximava, parando à frente de Lilian. — A casa de Larchmont sente-se muito
honrada... sra. Ryeland. — Os olhos negros dominaram diabolicamente o olhar dourado
de Lilian, que estava fascinada.
— Permita que me apresente. Sou Jack, o filho desta encantadora dama e do
estimável cavalheiro que está agora trazendo o chá.
James Larchmont passou por ele como se não estivesse ali e colocou a bandeja
numa mesinha ao lado do sofá da esposa. Depois olhou para o filho:
— Jack — disse —, eu deixei alguns trabalhos de renda de sua mãe na cozinha.
Por favor, vá buscá-los.
— Imediatamente, senhor. — Jack Larchmont dirigiu-se para a porta e, de lá,

33
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
lançou o mesmo olhar zombeteiro para Lilian, percorrendo-a de alto a baixo.
— Aceita açúcar? — perguntou o sr. James a Lilian.
Jack trouxe uma peça de renda cuidadosamente dobrada e colocou-a no colo da
mãe.
— Posso ficar para o chá também, não?
A mulher não respondeu. O marido interferiu:
— Pare com isto, Jack. Sei muito bem que não gosta de chá. Vá agora tratar de
sua vida e traga as vacas para dentro. Já são quase quatro horas.
— Quem sabe a sra. Ryeland quer que eu fique — insistiu Jack.
Lilian ergueu o rosto corado para ele.
— Eu não me atreveria a afastá-lo de seu trabalho, sr. Larchmont! — exclamou.
— Mas poderia... facilmente! — disse ele. O rosto fascinante e belo abriu-se num
sorriso. — Então está me expulsando para as cocheiras?
— Desapareça, rapaz — ordenou o velho. — Esta jovem senhora não está
acostumada à sua maneira de falar. Pode sentir-se ofendida.
— É mesmo, jovem senhora? — perguntou Jack insolentemente. — Está se
sentindo ofendida com o pobre Jack, quando ele não lhe deseja mal algum?
Lilian desviou o olhar fugindo daqueles olhos magnéticos, tomando um gole de
chá. Ainda com os olhos baixos, ela sacudiu a cabeça em resposta. Ouviu-o rir.
Deliberadamente, Jack veio se colocar a sua frente, aproximou tanto seu rosto do dela,
que Lilian não teve outra saída senão olhar para ele.
— Eu sou terrivelmente malvado, menina, como todos por aqui vão logo lhe dizer.
Gosto de beber, sou vadio quando deveria estar ordenhando as vacas... mas gostaria de
ser seu amigo. Posso ser seu amigo?
— Naturalmente — respondeu Lilian. Sentia-se dolorosamente abalada... mas ao
mesmo tempo sentia uma imensa piedade. Não entendia por quê. Ele parecia a última
pessoa no mundo que precisasse de pena. Era um homem excepcionalmente bonito,
obviamente bem-educado e, pelo modo como ele falava com ela, era evidente que tinha
sucesso com as mulheres. Entretanto, olhando bem dentro daqueles olhos impiedosos,
não podia deixar de sentir uma piedade intensa! A desgraça daquela casa não tinha
poupado Jack Larchmont. Ele podia rir dela, mas, no fundo de seu coração, aquela
infelicidade o estava consumindo.
— Quer realmente tornar-se minha amiga? — perguntou ele. — Não vai ter medo
de mim, ou virar o rosto quando me encontrar na cidade?
Ela sacudiu a cabeça e sorriu.
— Você não parece ser um monstro — disse.
— Eu escondo meus chifres e meus cascos durante o dia, sra. Ryeland. Algum
dia nos encontraremos à luz da lua e a senhora me verá como sou na verdade.
Depois levantou-se e saiu da sala. A sra. Larchmont pareceu enfim acalmar-se.
Então mostrou a Lilian seu trabalho. Era realmente um trabalho delicado e paciente,
verdadeira obra de arte.
— Eu mesma desenho os padrões — contou, orgulhosa.
— Uma beleza, realmente lindo! Que paciência a senhora deve ter! — Lilian
comentou.
— Vera é uma pessoa muito paciente, senhora — disse o marido, acariciando os
ombros da esposa com amor. — E também me ensinou a sê-lo, Deus a abençoe.
— Bobagem, Jim — disse rindo. — Ele é a pura imagem, da paciência... e do
sofrimento. Ele tem sofrido muito. — Os olhos desbotados se fixaram em Lilian. — Se
encontrou um amor como o que este homem me dedica, encontrou um tesouro. —
Apertou a mão dela. — Gosto de você, criança. Acho que Philip teve muita sorte em
descobri-la.
Meia hora depois, Lilian saía com James Larchmont da casa. Enquanto se

34
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
dirigiam para a porta do muro, ele falou:
— Eu não podia deixar que explicasse que está casada com o sr. Burke. Ela não
compreenderia. Desde que caiu doente... a morte de nossa filha que causou isto... ela
está com a cabeça confusa. Mas lhe faz muito bem ver uma jovem como a senhora.
Lilian segurou o braço dele com simpatia.
— Eu achei-a adorável — disse Lilian. — Não há nada que se possa fazer por
ela?
Ele sacudiu a cabeça desanimado.
— Ela recebeu um golpe. Não sabíamos que a nossa menina estava doente, nem
em perigo de vida. Até que chegou um telegrama enquanto eu estava trabalhando no
campo. Quando voltei, minha esposa estava atirada como uma morta. Tive que ficar
aqui com ela... Eu a teria perdido se a abandonasse. E nossa garotinha... bem, ela foi
enterrada enquanto eu estava preso à cabeceira de minha esposa. — Suspirou
profundamente e olhou para Lilian. — Existem coisas que nós dois sabemos, sra.
Ryeland... é melhor nem mencionarmos, mesmo entre nós. Mas estou grato pela
responsabilidade que seu marido tomou sob seus ombros, e que não tive coragem ou
caridade de assumir.
— O senhor... sabe? — sussurrou ela.
Ele sacudiu lentamente a cabeça e fitou-a.
— Sim, sei que o menino que estão criando é meu neto. Eu sei que a minha Dani
entregou-se sem amor ao jovem Philip Ryeland! O que está feito não pode ser desfeito...
— Abriu a porta branca e Lilian encontrou-se novamente na tranquila alameda. Ele
continuou: — Não volte pelo bosque, senhora. Não é que exista alguma coisa errada por
lá; mas vai se lembrar do que a minha esposa lhe disse e ficará nervosa. — Apontou
para o outro lado e recomendou: — Siga por aqui, senhora. Este caminho a levará até
sua casa.
— Está bem — disse sorrindo. — Obrigada por ter-me levado até sua esposa, sr.
Larchmont.
— Obrigado por ter desejado conhecê-la, senhora. — Elevou a mão até o chapéu
num cumprimento rápido e desapareceu pela porta branca. Lilian seguiu pela alameda.
O vento estava mais forte e no céu as nuvens ficavam mais pesadas. Lilian enfiou
as mãos nos bolsos, caminhando apressada. Como Burke pudera ferir aquela moça tão
encantadora? Ela o tinha amado! Na verdade, Laura Damien tinha dito que ela era louca
por ele.
A chuva começou a cair, gelada. Lilian imaginou que por trás do sorriso bondoso
de Burke podia existir uma incrível crueldade. Era carinhoso com ela e com Peter, mas
desconfiava que só agia assim porque fora cruel um dia. E, mesmo, o que custava ser
amável com dois... dois bebês? Exigiam dele apenas alguns sorrisos, alguns brinquedos
e uma ou duas horas de seu dia.
Mas Dani Larchmont ousara exigir seu coração...
Deixou a alameda e logo encontrou-se na estrada principal que levava a King's
Beeches. Corria já, fugindo da chuva. O vento fustigava seu rosto e despenteava os
cabelos, que caíam grudados à testa lisa.
De repente, escutou o galope de um cavalo aproximando-se. Soltou uma
exclamação assustada e, quando viu quem era, o cavaleiro parou. O rosto moreno a
olhava de cima do cavalo.
— Sou eu, sou eu, Lilian — exclamou.
— Eu sei que é você.
— Minha pobrezinha encharcada! — disse Burke sorrindo, enquanto o cavalo
sacudia a cabeça, indócil. Inclinou-se na sela e estendeu o braço para Lilian: — Não vou
deixá-la aí. Suba comigo.
Ela hesitou um instante, mas percebendo a impaciência dele, abandonou-se em

35
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
seus braços. Os músculos de seu peito e de seus ombros se retesaram sob o casaco
enquanto ele a puxava para cima, colocando-a à sua frente.
— Não está com medo de Rebelde, está?
— Não, não.
— Mas parecia estar, agora mesmo.
— Não, está tudo bem.
— Nós dois a assustamos, não? — disse ele sorrindo, e depois esporeou
levemente o animal, que partiu a galope.

Capítulo 9

Envolvida pelos braços de Burke, com a cabeça apoiada em seu ombro, Lilian
observou seu perfil. Repentinamente achou-se comparando-o com o rosto forte e duro
de Jack Larchmont. Um rosto que poderia ser gravado numa moeda romana!
Lilian mordeu os lábios ao pensar no olhar doce e amargo daquele rosto, que
notou quando Jack se ajoelhou diante dela, pedindo sua amizade.
Deveria contar a Burke que tinha conhecido os Larchmont?
No mesmo instante esqueceu-se deles, pois Burke falou:
— Vou a Londres neste fim de semana, Lilian. Tenho que assinar os últimos
papéis da adoção de Peter. — Depois olhou carinhosamente para aquele rostinho
molhado pela chuva. — Quer vir comigo, minha carinha de fada? Afinal, tinha prometido
levá-la para algumas compras, não é?
— Mesmo? — Seu coração bateu mais depressa ao pensar em Londres. — Oh,
seria bom ver Londres outra vez...
— Você é uma garota estranha — comentou. — Sabe muito bem que sim! —
Achou graça numa gota d'água em sua face e com o dedo afastou-a. — Pensei que
poderíamos comprar alguma coisa realmente sensacional para você usar no aniversário
de Íris. Ela vai dar uma grande festa.
— Eu adoraria viajar para Londres — exclamou. — Mas e Peter? Não gosto da
ideia de deixá-lo aqui.
— Ele ficará em boas mãos, querida. Moira é dedicadíssima e, se nós não
estivermos em casa, meu avô passará grande parte do tempo com ele.
— Então está combinado, Burke, eu não quero ir só para comprar coisas. Não
quero que gaste muito dinheiro comigo. Não há necessidade.
— Há necessidade sim, minha pequena, porque quero fazer isto! — Olhava para
ela completamente encantado com aquela ingenuidade. — Não quer ofuscar a
sofisticada Íris?
— Oh! Burke — exclamou. — Eu nunca conseguiria ofuscar Íris! Ela é linda!
— Muito linda, muito linda... — caçoou Burke. — Ela é, na verdade, a
personificação de todas as virtudes que os habitantes do condado esperam para seus
filhos e filhas! — Seus olhos azuis brilhavam ironicamente. — Lilian, minha menina com
tantos problemas de consciência... quando vai deixar de se sentir culpada por causa de
nosso casamento? Nós estamos indo maravilhosamente bem. E conseguimos enganar a
todos muito satisfatoriamente.
— Conseguimos mesmo?... — Com um movimento ingênuo, ela escondeu o rosto
no casaco de tweed de Butke. Nunca teve coragem de lhe contar que se sentia uma

36
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
intrusa, uma hóspede indesejada toda vez que ele ficava longe dela.
Nunca lhe contou as horas que passara se escondendo nas poltronas ao lado das
janelas, atrás de pesadas cortinas, em cantinhos no pomar. Ele não desconfiava de seu
embaraço, quando o avô a chamava para tomar o chá com algum visitante que, ela
sabia, tinha vindo até ali examiná-la. Nunca lhe disse de como automaticamente
emudecia nestas situações, sentindo-se insegura e desajeitada.
— Eu gostaria que... que você tivesse se casado com Íris... com qualquer outra
pessoa, menos eu! — exclamou, impetuosa.
— Ei! Não queira empurrar Íris para mim! — protestou.
— O seu... seu avô gosta muito dela. Eles conversam muito, quando ela vem
visitar. Ela toca piano para ele. Eles... eles se entendem. E eu acho, Burke, que ele teria
perdido boa parte da amargura que sente por você se você tivesse se casado com ela.
— Eu aprendi a aceitar, embora não consiga sempre tolerar, a amargura de meu
avô, Lilian. E mais fácil para mim, do que se tivesse que aturar uma esposa possessiva
e apaixonada demais.
— Você não quer... não quer ser amado? — perguntou Lilian, com a voz
embargada.
Ele ficou em silêncio e Lilian afastou o rosto de seu casaco para encará-lo. Ele
imediatamente riu, ao olhar o rostinho molhado, uma face vermelha por causa do
contato com o tweed áspero.
— Burke, o que faria se me tornasse possessiva e apaixonada?
— Você? — ele riu e fez um carinho na franja molhada. — Eu a devolveria ao
reino das fadas.
Por coincidência Íris Mallory estava visitando a casa quando os dois chegaram,
montados no cavalo de Burke.
Estava em companhia do sr. Ryeland, na sala das armas. A sala tinha janelas que
davam para o pátio e Íris ficou irritada ao ver os cabelos negros de Burke contrastando
com a cabecinha loura da moça em seus braços. E os dois estavam rindo... rindo na
chuva...
— Meu Deus como eu a odeio! Como a odeio! — exclamou.
O velho Ryeland levantou os olhos da espada que examinava e olhou para ela.
Foi até a janela e, ao lado dela, olhou para fora. No pátio, Burke desmontou e levantava
Lilian para colocá-la no chão.
O velho e arrogante dono de King’s Beeches olhava com desdém aquele rostinho
miúdo.
— Ele parece que gosta de gnomos, minha querida. Mas melhor ela do que
aquela menina Larchmont! Isto eu não conseguiria aguentar. O sangue daquela gente é
selvagem! Olhe só o rapaz Jack. Passa metade de seu tempo pelas tavernas.
— Ela... morreu — disse Íris, os olhos fixos no chão molhado do pátio, agora
vazio, pois Burke e Lilian tinham ido acomodar o cavalo. Sabia que Burke gostava de
escovar o animal e provavelmente Lilian estaria sentada vendo-o trabalhar. — Dani
Larchmont morreu... — repetiu.
— Sei — respondeu o velho, lacônico. — Enquanto Burke estava no Peru, ela
esteve aqui. Teve o desplante de vir aqui! Queria que eu desse o endereço dele. Na
verdade eu não tinha, mas ao invés disto, eu respondi que ele tinha deixado
recomendações para que não dessem seu endereço a ninguém. Ela pareceu estranha,
muito estranha, quando disse isso a ela. Saiu da casa chorando. Era evidente que
tinham tido uma discussão antes dele viajar.
As unhas compridas de Íris estavam ferindo a palma de suas mãos enquanto
escutava, pois Dani Larchmont era mais um dos seus motivos de sofrimento.
— E o senhor... o senhor a viu novamente?
Ele sacudiu a cabeça.

37
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
— Não vi nem queria ver! Depois houve aquele boato de que todos da expedição
tinham morrido. Encontrei Jim Larchmont na cidade uma manhã e ele me parou para
indagar se era verdade. Lógico que ficou decepcionado, pois gostaria que aquela filha
com cara de feiticeira se casasse com um Ryeland. Mas, pelo que todos sabiam, Burke
estava morto. E, assim, livre para sempre das garras daquela cigana. Eu não estava
triste, e disse isto a Larchmont.
— O senhor... disse isto a ele? — perguntou Íris, chocada. — Não se importaria
se Burke tivesse morrido? Burke...
— O meu Philip estava vivo naquele tempo — respondeu rudemente. — Burke
nunca se importou com isto aqui. Tudo o que ele queria era estar longe, conhecendo
outros lugares. Ele nunca foi um autêntico Ryeland — continuou, deixando transparecer
todo o seu ódio. — Escrevendo livros, se envolvendo com gente como esta menina
Larchmont! Andou com ela durante anos, certamente preferia vê-lo morto a vê-lo casado
com ela! Eu costumava dizer a Philip que se ele se casasse com aquela selvagem o
proibiria de entrar nesta casa. E preferia queimar tudo a deixar que ele trouxesse um
filho dela para cá... — Então o velho engoliu em seco, e agitou a mão, amargurado. —
Mas as coisas felizmente não aconteceram assim, e ele teve um filho que, graças a
Deus, não é dela.
— Mas o senhor não sabe nada sobre esta Lilian!
— Eu sei o que meus olhos me dizem. — Os ombros magros, que apesar da
idade não se curvavam, se levantaram num gesto expressivo. — Ela é pequena e
miúda, concordo com você. Mas é muito bem educada, sem dúvida. E teve um belo
filho, o pequeno Peter.
Ao ouvir estas palavras, Íris perdeu o controle.
— Não precisa atirar isto em meu rosto! — exclamou, os olhos verdes brilhando
de revolta. — O senhor me faz sofrer, dizendo uma coisa destas!
— Minha cara...
Mas ela continuou a falar, aturdida pela dor.
— Durante anos, o senhor bem sabe, eu vivi com a esperança de um dia dar
filhos a Burke. Eu... eu renunciaria a qualquer coisa por isto! Eu o amo... como sempre
amei. — Calou-se, vendo a chuva caindo constante lá fora. Escondeu o rosto nas mãos,
torturada pela visão de Lilian nos braços de Burke... torturada pelo pensamento daquele
bebê de olhos azuis lá em cima.
O velho sr. Ryeland bateu levemente em seu ombro.
— Era a minha esperança também, minha querida, desde que ele voltou do Peru,
Que vocês dois formassem um casal feliz. Mas não era para ser assim. Ele já tinha esta
moça. Já estava casado...
— Casou para dar ao senhor o que o senhor desejava! Só se casou para
assegurar a herança de King's Beeches. Realmente pouco se importa com esta moça.
Nós dois sabemos muito bem disto... e esta coisa insignificante fica aí pelos cantos,
fingindo não estar presente. Ela não exige nada dele, contentando-se com migalhas de
afeição que recebe de vez em quando. Dormem em quartos separados. Um corredor
inteiro a separa de Burke. E suponho que agora que ele conseguiu um filho...
Mas o velho sr. Ryeland era antiquado e não queria discutir a vida íntima de
Burke com ninguém.
— Agora chega, Íris — disse secamente. — Está esquecendo de si mesma!
— Está querendo dizer que esqueço que sou uma lady? — retrucou nervosa. —
Como desejaria não ser! Se fosse uma camponesa ou uma datilógrafa ordinária, quem
sabe Burke se interessaria por mim! — Íris estava ofegante. — Tenho vontade de matá-
lo... ele e sua estúpida e insignificante mulherzinha!
— Íris, seja uma boa menina. Você precisa crescer! — disse o velho senhor.
— Eu já sou bem crescidinha, obrigada! — disse irritada. Depois deu meia-volta e

38
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
foi embora.

Lilian e Burke partiram para Londres na manhã de sábado, bem cedo. Lilian
estava radiante. Sua alegria estava estampada nos olhos. Ficou aliviada por poder ficar
longe de King's Beeches por alguns dias, longe de todo aquele fingimento. Agora podia
ser ela mesma.
Chegaram em Paddington Station por volta de uma da tarde e tomaram um táxi
até o hotel.
Já no quarto, Lílian tomou um banho. Estava penteando os cabelos em frente ao
espelho, quando Burke bateu ligeiramente na porta que ligava seus dois quartos.
— Não vamos almoçar aqui no hotel — Eu conheço um ótimo restaurante
espanhol Piccadilly, perto do Atelier de Madame Baum, onde a deixarei esta tarde,
Lílian.
— Madame Baum? — perguntou Lilian intrigada, enquanto se virava para olhar o
marido. — É uma loja de... vestidos?
— É onde Íris compra as roupas dela. E Íris, tem que reconhecer, é muito
elegante.
— Mas eu não sou do tipo de Íris! — protestou. — Ela é muito sofisticada. Eu
ficaria um horror se usasse roupas parecidas com as dela!
Ele riu e levou-a para a porta.
— Madame Baum não vai vestir você com lantejoulas nem cetim, lhe prometo. Ela
vai olhar para esta sua carinha engraçada e escolher alguma coisa como as fadas
usam...

Na verdade, Madame Baum escolheu roupas para Lilian que ficariam ridículas em
Íris. A própria Lilian admitiu que a mulher não lhe deu um ar sofisticado e sim de algo
etéreo, como se tivesse saído de alguma história fantástica e romântica.
Um vestido era de cores nacaradas e contrastava suavemente com o forro lilás.
Os outros eram creme, quase amarelo, branco e um florido. Mas o que mais encantou
Lilian foi um vermelho, de seda com reflexos dourados. A pequena e ativa Madame
Baum o havia batizado de "crisântemo".
Lilian, olhando-se no imenso espelho da sala de provas, estava admirada. Tinha
transformado de tal maneira sua aparência, e acrescentando uma luminosidade à sua
pele clara, realçando o dourado de seus cabelos, e acrescentando nela um mistério de
mulher adulta, que nunca suspeitou possuir!
Seu coração batia feliz.
Era este vestido que usaria no dia do aniversário de Íris Mallory.
Muitas outras roupas foram separadas. Lilian não sabia se devia possuí-las, mas
Burke havia pedido a Madame Baum que suprisse sua esposa com um guarda-roupa
completo. Lilian sentia-se embaraçada. Mas a sra. Baum estava encantada com ela e
recebeu-a de braços abertos.
— Minha queridinha — disse, movimentando-se graciosamente. — Acho que tem
um marido encantador. Agradeça a ele... e deixe que gaste seu dinheiro. — Deu uma
risadinha. — Pense só em seu prazer quando a vir vestida assim! — E levantou uma
camisola de seda rosa chá, divertindo-se muito ao ver o rubor cobrindo o rosto de Lilian.
As roupas deveriam ser enviadas diretamente para King's Beeches. Mas como
sabia que Burke tencionava sair com ela naquela noite, resolveu levar para o hotel um
elegante vestido de lã amarelo e um casaco combinando. Madame Baum ainda
aconselhou um pequenino chapéu preto, sapatos de camurça, bolsa e luvas. Lilian
olhava maravilhada para tudo aquilo. Nunca tinha possuído coisas tão lindas!

39
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
Madame foi com Lilian até o elevador. Ao cruzarem as pesadas portas do ateliê,
através das quais entravam diariamente as mulheres mais elegantes de Londres,
madame pensou que raramente uma moça assim modesta e com uma natureza tão
verdadeiramente aristocrática entrava em sua casa. O marido daquela menina era rico e
bem nascido. Oh, sim, madame já tinha ouvido falar de King's Beeches! Entretanto não
havia nenhum sinal de arrogância na moça. Aquela menina era genuinamente boa.
— Sra. Ryeland — disse sorrindo, ao se despedir. — Quando usar sua bela
toalete esta noite, use um pouco de batom que eu coloquei em sua bolsa. Só um
pouquinho, para que seus lábios brilhem. Vai ficar realmente muito atraente. Faça isto
por seu marido. Promete?
Lilian riu, confusa.
— Madame Baum, a senhora está me encorajando a ser leviana... — acusou.
Mas a mulher insistiu, carinhosa.
— Isto nunca acontecerá, minha pequena. É o que torna o seu generoso marido
um homem de muita sorte.
Lilian ficou pensando nesta afirmação em seu caminho até o hotel.
Era muito natural para pessoas como Madame Baum aceitar belos vestidos e
luxuosas camisolas como provas de amor por um homem. Mas ao olhar para as caixas
em seu colo, Lilian sentiu uma profunda depressão. Havia adorado os vestidos, mas o
que a magoava um pouco é que Burke só queria que ela lhe agradecesse formalmente.
Todas aquelas coisas não eram, como Madame Baum pensava, provas de amor.
Tudo aquilo era mais uma defesa contra a suspeita que brilhava nos olhos
rancorosos de Íris Mallory. E muito possivelmente alimentaria o orgulho de Burke. Era
um homem rico e Lilian reinava como a senhora de King’s Beeches. E agora tinha
proporcionado a ela um guarda-roupa digno de sua posição.
Lilian olhou para as caixas em seu colo.
Sedas para Lilian Glyn, a esposa de Burke Ryeland...

Capítulo 10

Lilian olhava a imagem do espelho, um pouco assustada com o que via. Não tinha
escutado Burke bater à porta, e não sabia que ele estava no quarto até vê-lo refletido
atrás dela. Estava parada, quieta, olhando a figura esguia vestida com lã amarela e ficou
tensa quando ele segurou seus ombros e fez com que se virasse para vê-la melhor.
— E um lindo vestido, não é? — perguntou insegura. — São todos lindos! Estou
tão contente, Burke, que tenho vontade de chorar!
— Não ouse! — exclamou brincando. — Lágrimas e vestidos sofisticados não
combinam.
— É mesmo sofisticado, não é? — Ela olhou outra vez para o espelho. — Eu não
estou parecendo boba, estou?
— Olhe bem para o espelho e me conte o que está vendo.
Ela olhou para o espelho, mas não para sua figura. Sorriu para Burke, alto e
impecável, em um terno escuro.
— Como você parece assustador — murmurou.
— Eu não sou assustador. — Passou os dedos pelo rosto suave. — Pelo menos
agora, minha querida, estou bonzinho e inofensivo... — Depois, olhando em volta, pegou

40
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
o casaco e ajudou Lilian a vesti-lo. — Tenho também um chapeuzinho — disse Lilian
apanhando a caixa ainda em cima de um móvel.
Ele a olhava sério, enquanto Lilian ajeitava o chapéu preto na cabeça, com uma
elegância que o surpreendeu. Ela estava realmente encantadora. Uma criança fingindo
ser adulta...
— Está gostando de sua imagem agora, Lilian?
— Não parece que sou eu — respondeu ela. — Tenho a impressão de que... de
que fui levada, como um dos personagens de H. G. Wells. E acho que vou acordar e me
encontrar novamente no ancoradouro de Hastings.
— Será que isto ajudará a fortalecer o encantamento ou o quebrará? — Burke
tirou a mão do bolso e aproximou-se dela. Depois segurou sua mão direita e colocou ali
um delicado relógio de ouro, em forma de losango. — Gosta?
— Oh, Burke! Não posso aceitar! — olhou, extasiada, o relógio.
— Provas de uma sincera admiração, Lilian. Você fez bem mais do que vir para
King's Beeches e assumir uma posição desagradável. Aceitou Peter em seu coração. E
isto assegurou o lugar dele em King’s Beeches, muito mais do que a minha afeição teria
feito. Já percebeu como meu avô está impressionado por seu carinho pelo filho?
— Ele... ele disse isto a você...?
Burke ainda rindo, abraçou-a levemente.
— Sim, minha querida. Agora, depressa, vamos sair e procurar o restaurante mais
elegante de Londres para jantarmos.
E como era luxuoso! Todo decorado em prata, com candelabros enormes de
cristal sob um teto de vidro translúcido turquesa. Havia uma orquestra tocando. O
garçom tinha a dignidade de um bispo!
— Ele é incrível — comentou Lilian sorrindo. — Lembra-me Tolliver.
— Tolliver, minha querida, não gostaria nada de ser comparado a um garçom. É
considerado o mais perfeito mordomo de Somerset.
— Adora Peter, sabe? Gosta de levá-lo para passear no carrinho, mas não perde
seu ar de dignidade. Eu gosto dele. Pelo menos não me faz sentir uma... intrusa...
— Ora, você não é uma intrusa. Você é dona de King’s Beeches!
— Não! — Lilian sacudiu a cabeça protestando. Odiava quando diziam que era...
aquilo! A palavra certa era intrusa. Burke nunca conseguiria mudá-la para "dona"
somente com um sorriso e belas roupas. — Burke, não vamos fingir quando estivermos
sozinhos.
— Mas eu não estou fingindo, sua tolinha! Eu sei que tem um voto secreto de me
amarrar a Íris Mallory, mas Íris devora homens... pele... ossos... pés!...
— Oh... você! — Lilian não pôde deixar de rir.
— Você escolheu um vestido bem sensacional para usar na festa de Íris?
— Escolhi — disse, acompanhando com um gesto de cabeça. — Mas vou
escondê-lo até a noite da festa. Não vou mostrar nem mesmo para você.
— Mas que maldade! Estou pensando em não lhe dar mais champanhe só para
me vingar...
Ele apertou carinhosamente a mão dela, mas, seu sorriso morreu quando viu
alguém atrás dela. A mulher aproximava-se rapidamente de onde eles estavam, os olhos
quase saltando das órbitas. Burke já estava carrancudo antes dela falar.
— Eu nunca poderia imaginar! Mas é mesmo Lilian Glyn!
Lilian virou a cabeça e sua boca ficou aberta, completamente atônita. Atrás dela,
olhando-a com seus olhinhos azuis curiosos, estava Laura Damien. Foi Burke quem
respondeu:
— Não quer fazer companhia a mim e a minha esposa e tomar um copo de
champanhe, sra. Damien?
Levantou-se e, educadamente, afastou uma cadeira para Laura sentar. A mulher

41
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
estava excitada, vermelha, cheia de perguntas para fazer, mas Burke preparava-se para
enfrentá-la, chegando até a se divertir com isto.
— Então era você! — explodiu ela.
— Era eu. — Serviu-se do champanhe e reclinou-se na cadeira, tomando
pequenos goles da bebida com evidente satisfação.
— Você podia ter-me dito! — reclamou Laura, olhando para Lilian. — É quase
inacreditável! Há quanto tempo estão casados?
— Exatamente depois de duas semanas de nos conhecermos — disse Burke. —
Romântico, não?
Laura deu uma risada grosseira:
— Você é um homem calculista, Burke. Aposto que foi você quem recomendou a
Lilian que não me dissesse nada. Por que o segredo?
— Por que gosto das coisas a meu modo.
— Você sabia que eu faria perguntas — Laura afirmou. — Sabia que eu me
interessaria em saber por que você, entre todos os outros, poderia querer se casar com
a minha pequena Lilian. Afinal de contas, meu caro, nós dois concordamos que ela
exatamente não brilha, não é? Uma criança meiga e doce... mas... — Ela sorriu para ele,
através da borda do copo. — Sabemos que um homem sofisticado e experiente como
você... exige bem mais do que isto.
— Uma criança meiga e doce — Burke repetiu. Sorriu maquiavelicamente para
Laura. — Não acha que sou um homem de sorte?
— Ela me disse que ia morar no campo e tomar conta de um menino — disse
Laura com ironia. — Foi você quem mandou que ela dissesse isto?
— Para falar a verdade, não mandei nada — respondeu. — Que esperteza a dela!
— Oh, admito que foi esperta — disse Laura significativamente. Tomou mais um
gole do champanhe e acrescentou: — É uma ótima datilografa, mas não consigo vê-la
comandando o exército de empregados em King's Beeches. Sabe de uma coisa?
Costumava quase tropeçar na língua quando tinha que dar ordens ao rapaz no hotel.
— Verdade, minha querida? — perguntou, cravando os protetores olhos em Lilian.
— Se é verdade? — perguntou Lilian confusa, vermelha até a raiz dos cabelos.
Baixou os olhos para o copo de champanhe em sua mão. A alegria que sentira havia
instantes atrás desaparecera, deixando-a friamente deprimida. — Se é verdade? —
repetiu. E repentinamente levantou a cabeça, enfrentando Laura. Com uma nota de
desafio, continuou: — Eu não era uma idiota? Acho que continuo idiota, porque ainda
fico "estupidamente vermelha" como a senhora costumava dizer.
— Oh, mas que gênio! — exclamou Laura abrindo os olhos espantada.
Aborrecido Burke interveio:
— Sinto muito interromper a comemoração, sra. Damien, mas Lilian e eu temos
entradas para o Covent Garden. Vamos chegar atrasados se não sairmos agora. — Deu
a volta na mesa e quase arrancou Lilian da cadeira. Apressadamente, ajudou-a a vestir
o casaco.
— Então vocês ainda vão ao balé? — perguntou Laura levantando-se também. —
Foi sempre uma fraqueza sua, não é meu querido? Nunca me esqueci do belíssimo
rosto daquela dançarinazinha de balé tão íntima sua. O que aconteceu com ela?
Aposentou-se?
Lilian sentia que perdia o fôlego, pois as mãos de Burke a apertavam com dedos
de aço, embora ele não tivesse consciência disto. Puxou-a para trás, fazendo com que
se apoiasse em seu peito e respondeu seco:
— Ela morreu.
— Coitadinha! — exclamou Laura, os olhos espantados. — Tão jovem e
talentosa! Tão linda! Que perda trágica! Você nunca, nunca... poderá substituí-la! Você
precisava ver aquela moça, Lilian, era tão feliz e tão doce! Sempre sorridente. Viva,

42
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
atraente! — Lílian parecia encolher cada vez mais, pálida e humilhada. — Burke, do que
foi que ela morreu? Era tão jovem!
— Tinha vinte e sete anos — respondeu. — Provavelmente trabalhou mais do que
devia. A vida de uma bailarina não é fácil, você sabe.
— Sei sim. — O olhar de Laura pousado no rosto sério de Burke voltou ao de
Lilian, segura como se fosse um escudo contra o peito de Burke. — Sabe, mal posso
acreditar no que vejo. Você e a pequena Lilian... casados!
— Se eu tivesse comigo a certidão de casamento a exibiria agora, para acalmar
suas dúvidas, sra. Damien — retrucou Burke, com deliberada violência.
— Oh, eu não estava insinuando nada disso. Quis dizer que é uma combinação
surpreendente. Você e a pequena Lilian. É uma criança tão retraída e tímida! — Então,
como Burke não respondesse nada, disse: — Preciso ir. Meus amigos estão me
esperando. — Laura riu e pousou seu olhar em Lilian. — Vai me convidar para conhecer
King’s Beeches, minha pequena? Eu adoraria!
— Mas sra. Damien — respondeu Burke. — Nós ainda estamos em lua de mel e
seríamos uma companhia muito maçante para a senhora. Ficamos de mãos dadas o dia
inteiro.
— É mesmo? Mas que gracinha! Pois bem — disse sorrindo contrafeita. —
Espero o convite mais tarde, meu caro rapaz. Assim poderemos falar dos velhos
tempos.
— Dos velhos tempos? Eles fazem parte de um livro que não leio mais, sra.
Damien.
— Por causa daquela linda moça! — Laura insistiu. — Compreendo, compreendo!
O que tem agora realmente não compensa a perda, não é mesmo? Preciso ir,
realmente, queridos! Que bom vê-los novamente.
E ela afastou sua volumosa figura passando entre as mesas, deixando atrás de si
um rastro de perfume e silêncio. Lentamente Burke soltou os braços de Lilian.
— Que pesadelo, encontrá-la novamente — ele corrigiu.
Lilian, no escuro, estava deitada com os olhos abertos, pensando. Descobriu que
já estava habituada com o conforto de sua imensa cama em King's Beeches... Virou-se
para um lado e para o outro. A lembrança das coisas que ouviu naquele dia não a
deixavam. O luxuoso perfume do atelier de Madame Baum, Laura Damien agredindo-a,
a leveza das dançarinas do Covent Garden.
Não aguentava aquilo! Tantas sensações novas e contrastantes! Sentou-se na
cama e acendeu o abajur da mesa de cabeceira. Se ao menos tivesse um livro!
Qualquer coisa para acalmar sua cabeça que rodopiava loucamente! Suspirou e cruzou
os braços em volta dos joelhos encolhidos.
Que horrível ter encontrado Laura outra vez! Tinha estragado a noite. Burke tinha
ficado taciturno. E, durante todo o espetáculo de balé, Lilian via à sua frente a figura de
Dani Larchmont. Cada pirueta era feita por Dani, cada gesto, cada passo!
Burke não fez comentário algum quando saíram do espetáculo e sua fisionomia
preocupada conseguiu reforçar a timidez de Lilian. Ela encolheu-se muda no táxi. Sentiu
que sua presença era um peso para ele... Se a simples reaparição de Laura Damien
tinha reacendido as lembranças de Dani, então realmente se aborrecia com ela.
Lilian mordeu os lábios, infeliz. Burke perguntou de repente:
— A gente um dia para de pagar pelos nossos erros?
Devia estar querendo Dani em seus braços... mas agora era tarde demais. Os
braços de Lilian se apertavam mais em volta dos joelhos. Como gostaria de poder ajudá-
lo...
Então sua cabeça se levantou e ela olhou para a porta. Burke tinha acabado de
abri-la.
— Eu acordei... e vi luz em seu quarto por baixo da porta — explicou. — Você

43
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
está bem?
— Não consigo dormir — respondeu: — Sinto muito se a luz o acordou.
— Não, não foi a luz. Eu estava preocupado. — Sentou-se ao lado da cama dela,
passando a mão pelos cabelos castanhos despenteados. — Por que não consegue
dormir?
— Oh... acho que estou com saudade de Peter. Fiquei pensando se ele não
sentiu a minha falta. — Seu olhar tornou-se sonhador ao se lembrar do bebê tão
rechonchudo sorrindo com os grandes olhos azuis para ela. — Peter se parece com a
mãe?
Burke sacudiu a cabeça.
— Não. Ele tem o nariz e a boca de Phil e, por sorte, os olhos azuis dos
Ryelands.
— Os olhos dela eram escuros, não é? Negros como os de uma cigana.
— Sim, como é que você sabe? — perguntou subitamente sério.
— Vi o retrato dela. Eu estava passeando... naquele dia em que você me
apanhou com Rebelde. Encontrei o sr. Larchmont por acaso, fui até sua casa conhecer a
sra. Larchmont. Eu vi o retrato na sala. — Depois olhou para Burke e sorriu. —
Compreendo por que a ama tanto!
— Só porque viu o retrato e achou que era bonita? — perguntou irritado.
— Sim. Ela deve ter sido tão cheia de vida! Eu até posso imaginá-la rindo.
— Sim... costumava rir muito. — Abruptamente, Burke se levantou e começou a
andar pelo quarto.
— Lilian, o meu avô nunca poderá saber que Peter é metade Larchmont. Odeia
aquela família. E Dani foi um dos motivos de suas queixas contra mim. Pensou que
queria me casar com ela.
— E não queria? — perguntou suavemente.
— Eu nunca quis me casar com ninguém! Este era o problema, o grande
problema! — Olhou para Lilian, pensativo. — Sempre fui muito egoísta, Lilian! O fato de
ter nascido um Ryeland me deu muitos privilégios muito cedo na vida. Eu sempre tirei
das pessoas e nunca dei nada em troca. Phil era diferente. Eu só queria a minha
liberdade e vagar pelo mundo, sem me sentir ligado a nada nem a ninguém. Queria o
riso e a alegria de uma moça como Dani, mas não queria dar nada em troca. Queria que
ela me divertisse! Meu Deus... quando olho para trás e penso em toda a minha
arrogância! Se Dani não tivesse me conhecido, estaria viva agora.
— Oh, não! — protestou Lilian. — Não deve pensar assim, Burke. E isto não é
verdade!
— Você é fatalista, hein? Acredita que um Poder mais alto traça o nosso destino
na terra, não é?
— Acho que acredito nisto — respondeu vagarosamente.
— Porque isto diminui o golpe, Lilian — retrucou. — Porque torna as coisas
menos terríveis, menos assustadoras e a gente pode dizer a si mesmo: "esta pessoa
morreu porque sua hora tinha chegado". Bem, não consigo pensar assim, Lilian. Não
consigo.
— Então seu coração nunca deixará de doer, Burke! Você sempre carregará
mágoa.
— Eu sei — riu amargamente. — Meu coração está sofrendo, agora. —
Aproximou-se da cama e ficou olhando para ela. — Como você é criança — disse.
— Você acha? Tenho dezenove anos. Não sou mais criança!
— Você é um bebê... e eu a deixei triste. Maldito coração o meu! Não quero que
se preocupe mais com isto! Quero que seja feliz.
— Eu sou feliz quando estou com você e com Peter.
— Lilian, quero que me prometa ficar longe da família Larchmont. É um lugar

44
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
sombrio e triste.
— E seu avô se aborreceria se soubesse que estive lá — Lilian acrescentou. —
Mas é uma pena! A sra. Larchmont recebe tão poucas visitas. Tenho tanta pena dela!
— Mesmo assim, fique longe daquele lugar, Lilian. — Subitamente os braços de
Lilian o abraçaram.
— Burke, você é tão bom para mim. Sou muito grata a isto! — E sem que ele
tivesse tempo de recuar, deu-lhe um beijo rápido no rosto.
No mesmo instante, sentiu que ele ficava tenso. Encolheu-se nos travesseiros,
sentindo-se como se tivesse ultrapassado os limites.
— Por que... por que você está me olhando assim? Está zangado comigo?
— Está é uma hora perigosa da noite... ou da madrugada... para beijos —
respondeu irônico. Depois, cuidadosamente soltou os braços dela e que ainda rodeavam
seu pescoço. — Estou contente porque gostou dos vestidos, minha pequena. Agora
deve dormir, como uma boa menina. — Olhou-a escorregar para debaixo das cobertas...
Apagou a luz do abajur ao lado da cama e foi embora.
Mas Lilian não dormiu imediatamente.
A noite envolveu-a e sentiu aroma de um cigarro. Pensou que nunca conhecera
nada mais solitário do que o aroma do cigarro de Burke chegando até ela no silêncio da
noite.
Suspirou, virando de lado.
Seu rosto queimava contra o travesseiro. Burke tinha pensado... oh, ela sabia o
que tinha pensado! Mas ela não tinha intenção de seduzi-lo com aquele beijo!
Seduzir Burke... Seu coração sangrava naquela noite por causa da bela Dani
Larchmont?

Capítulo 11

Tolliver mal havia aberto a porta e Lilian entrava ansiosa.


— Alô, Tolliver! Que bom voltar para casa... preciso ver Peter. — E deixou o
mordomo e Burke olhando para ela, partilhando divertidos de sua espontânea
impaciência.
Lilian abriu a porta do quarto... e parou.
Íris Mallory, muito elegante num fino vestido de chiffon estava sentada perto da
janela com Peter nos braços, sorrindo para Tab Gresham. O velho sr. Ryeland estava
sentado na cadeira de balanço de Moira.
O aborrecimento que transpareceu nos olhos de Lilian, ao ver Íris carregando
Peter, logo cedeu lugar à preocupação vendo Tab.
— Por que está aqui, Tab? — perguntou. — Peter está doente? — Atravessou o
quarto com a ansiedade de uma jovem mãe, para segurar o filho. Mas Íris
deliberadamente apertou-o nos braços, rindo maliciosamente para Lilian.
— Então, a mãe pródiga retornou.
— Peter está muito bem, sra. Ryeland — disse Tab sorrindo. — Fui convidado
para o jantar, só isso.
— Ah! — Lilian acalmou-se. — Ao vê-lo aqui pensei que a garganta dele tivesse
piorado outra vez. — Depois inclinou-se para o bebê. — Alô, meu garotinho! Sentiu a
minha falta?

45
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
— É melhor que tenha, meu velho — disse Burke sorridente atrás dela. — Sua
mãezinha quase morreu de saudade! — Olhando os outros, comentou: — A festa é
comemoração pela nossa volta?
O avô deu uma risada, enquanto Íris respondia:
— Como estava Londres, meu caro? Aproveitou sua folga dos deveres rurais...
quando a sua esposa não estava chorando por causa do filho?
— Oh, eu dei um jeito para que ela não chorasse o tempo todo — retrucou Burke,
atravessando o quarto até onde Íris estava e tirando o bebê dos braços dela. — Alô,
meu garotão! — disse ele, sem se importar com Íris. Com o filhinho nos braços, formava
um quadro comovente.
Íris sentiu o coração na garganta. Como o amava! Não era justo... na verdade era
grotesco que este homem maravilhoso pertencesse àquela... datilógrafa medíocre... esta
menina insignificante! O olhar inconsciente de ódio de Íris varreu Lilian da cabeça aos
pés.
— Lilian — exclamou Burke. — Já se pode ver dois dentinhos quando ele ri!
— Verdade mesmo? — Lilian segurou os bracinhos rechonchudos de Peter. —
Ria para mim, meu filhinho. — Ele bem-humorado riu e ela enxergou os dentinhos. —
Parecem duas pequenas pérolas! — exclamou — Dr. Gresham, o senhor viu os
dentinhos de Peter? Viu?
— Sim... querida... nós vimos — respondeu Íris, que se levantou com a habitual
elegância e segurou o braço do velho sr. Ryeland:
— Vamos descer agora?
— Mas não tinha dito que queria ver o banho do garoto? — perguntou o avô.
— Não agora, meu amigo. — E saiu do quarto, majestosamente.
— Tenho vontade de atirar uma coisa nessa mulher! — comentou Tab.
— E por que não atira? — gracejou Burke, sentando-se na cadeira que o avô
acabara de deixar e brincando com Peter em seus joelhos. — Ela poderia recobrar seu
juízo e se apaixonar por você. Não é o que sempre quis?
Tab enrubesceu ligeiramente.
— Ela nunca olhará para mim — disse. — E, mesmo que olhasse, eu não tenho
condições de dar a ela a vida a que está acostumada.
— Não? Ela o pegaria pelo pescoço e o obrigaria a clinicar em Harley Street. E
dentro de seis meses você seria o médico mais badalado do lugar.
— Prefiro não ter Íris a isso!
Os dois ficaram com Lilian para ver o banho de Peter e desceram. Ela estava toda
molhada. Foi então trocar de roupa no quarto. Já ia pegar no armário o vestido azul-
marinho quando se lembrou do belo vestido de lãzinha amarela. Hoje à noite, não
precisava ser ofuscada pelo belo vestido negro de Íris.
Sim, aquele vestido caía impecavelmente. Não ficava parecendo mais um garoto
ou uma menina de escola. Um sorriso feliz dançava em seus lábios, enquanto escovava
os cabelos castanhos.
Sentindo-se elegante e luminosa, desceu as escadas.
Escutou o som do piano antes de chegar à sala. Quando entrou, seus olhos se
arregalaram ao ver o velho sr. Ryeland sentado ao piano.
Afundou sem ruído numa das poltronas, reprimindo um sorriso ao sentir que Íris a
examinava da cabeça aos pés.
Tab Gresham aproximou-se por trás da poltrona de Lilian e murmurou em seu
ouvido:
— Estamos tomando xerez, sra. Ryeland? Quer também?
— Eu prefiro sidra — sussurrou de volta. E, depois, segurando a manga de seu
casaco: — E, por favor, me chame de Lilian.
— Se prometer me chamar de Tab — retrucou em outro sussurro.

46
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
— Prometo.
Viu-o afastar-se, servir a bebida para ela no bar. Tinha se surpreendido ao saber
de sua paixão por Íris. Ele parecia tão sólido e sensato, tão diferente de Íris! E Íris estava
apaixonada por Burke. Era evidente. Estava sentada a seu lado, a mão esquerda
tocando o ombro dele e seus olhos verdes admirando seu perfil. Lilian estava abismada
como Íris externava seu amor. Um amor que não recuaria diante de nada, nem mesmo
diante da esposa e do filho que ele trouxera para King’s Beeches.
Tab trouxe-lhe o cálice e sentou-se a seu lado.
— Gosta de música? — perguntou.
— Gosto. Toco um pouco de piano. De ouvido. — Sorriu para ela, amável.
Depois do jantar, Íris sugeriu uma mesa de bridge.
— Somos quatro.
— Somos cinco — emendou Tab, calmo.
— Oh, mas eu não jogo — disse Lilian, depressa. — Vocês podem jogar. Eu não
me incomodo de ficar assistindo.
— Tem certeza, Lilian? — perguntou Burke, olhando para ela através da fumaça
do cigarro. — Não é uma coisa muito estimulante assistir aos outros jogando cartas.
— Não gosta de costurar, minha cara?... ou fazer tricô? — perguntou Íris com
ligeiro desdém na voz.
— Gosto de ler — disse Lilian ficando de pé. — Não vou atrapalhar ninguém. Vou
pegar a minha sidra e ir até a biblioteca. Espero que a lareira ainda tenha fogo.
— Traga seu livro para cá — sugeriu Burke.
— Não, vocês vão me atrapalhar — ela respondeu com um leve sorriso, e,
servindo-se da sidra, afastou-se decidida.
Uma meia hora depois, a porta da biblioteca se abriu inesperadamente. Lilian
estava confortavelmente sentada no sofá. Levantou os olhos e encontrou Tab Gresham.
— Estou fora enquanto arrumam as cartas — explicou. — Vim conversar com
você. Estava louco para vir até aqui desde o começo do jogo.
— Que afirmação galante, doutor... quero dizer... Tab.
— Posso lhe fazer companhia? — Deu a volta e sentou-se no enorme sofá, ao
lado dela. — Permita que lhe diga que gosto muito da cor de seu vestido, Lilian? É linda.
— É mesmo, não? — Passou os dedos pelo vestido, admirando-o. — Burke
comprou uma porção de vestidos maravilhosos! Eu nunca tive coisas tão lindas! — Os
olhos dela brilhavam. Depois levantou o pulso para ele. — E ganhei isto também.
— Muito bonito — disse Tab, segurando o pulso dela entre suas mãos. — Conte-
me uma coisa, Lilian, você não está preocupada com Íris, está? Quero dizer... deve ter
notado que não procura esconder o que sente por Burke. Ela sempre teve esperança de
um dia se casar com ele. Você entende, não é do tipo que desista das coisas que
deseja. Na verdade, quero dizer que não deixe que a atitude dela a aborreça. Se ela não
conseguiu atraí-lo para sua teia enquanto Burke era solteiro, agora que está casado... e
muito feliz, não conseguirá nada.
— Você acha mesmo? — perguntou muito ansiosa. — Acha que ele é feliz?
Como gostaria de fazê-lo feliz!
— Mas você já o fez! — Tab a olhou surpreso. — Você deu-se a ele... e também
lhe deu o pequeno Peter!
— S-sim, eu sei — respondeu, afastando os olhos de Tab. — Mas talvez isto não
seja o bastante — disse confusa. — Acho que ele ainda gostaria de poder viajar. Parece
difícil que ele fique atrelado aqui em King's Beeches quando seu coração anseia por
lugares diferentes... Você acha isto também?
— Não, realmente não acho — respondeu com convicção. — Em minha opinião,
uma vida feliz no lar é a melhor coisa para um homem. Talvez isto soe estranho vindo de
um solteirão como eu, mas posso garantir que Burke está bem mais feliz com este

47
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
casamento do que se podia imaginar. Imagine-o com Peter esta noite.
— Sim, ele ama Peter — concordou Lilian, mas ainda mantinha os olhos
desviados de Tab. Ele a observava, cada vez mais intrigado. E engraçado, pensou,
como ela se fechava numa concha sempre que a conversa recaía em seu casamento.
Parecia assustada... sim, assustada de falar sobre seu casamento.
Tab afastou o olhar para a lareira. Era evidente que havia algum mistério no
encontro de Burke com esta jovem e com esta decisão surpreendente de casar com ela.
Tab não acreditava que ele a tivesse encontrado no Peru. De fato, desconfiava que ela
nunca tinha saído da Inglaterra.
E se isto fosse verdade... se fosse verdade, onde tinham se conhecido... e
quando?
Era certo que Burke tinha estado no Peru. Fora uma dificuldade entrar em contato
com ele quando Phil morreu. Sua expedição estava espalhada. Levou alguns meses até
que Burke voltasse à civilização e fosse informado da morte do irmão. Voltou para a
Inglaterra, imediatamente, mas não mencionou uma esposa e um filho.... que já tinha
que ter àquela altura.
Tab estava profundamente concentrado, pensando. O que o avó de Burke
dissera? "Peter é igualzinho ao meu Philip. O meu garoto parece com Philip outra vez".
Tab estremeceu violentamente. Meu Deus, o que estava imaginando? A criança era de
Burke. De Burke e desta menina. Era só ver os dois com Peter para ter certeza que eles
o adoravam.
Tab afastou aqueles pensamentos e voltou-se para Lilian, uma graciosa figura
dourada. Íris podia dizer que esta menina era uma anã descolorida. Mas Íris era uma
mulher e não podia ver em Lilian o que um homem, um homem com sensibilidade, podia
enxergar. Lilian era uma pintura em pastel, suave e doce, e suas cores nunca
desbotariam.
— Imagino que pretenda ir à festa que Íris vai dar na próxima semana.
— Se me convidar — gracejou Lilian. — Será que ela convida esposas para suas
festas de aniversário?
— E depois as usa como lenha na fogueira que acendem no pátio da entrada da
casa. Vai cair bem na noite de Guy Fawkes, você sabia?
— Sim, Burke me contou.
— Reserva algumas danças para mim, Lilian? Quase sempre chego tarde e não
encontro mais ninguém para dançar.
— Claro, Tab... se conseguir convencer Íris a não me atirar na fogueira. —
Descontraída, se mexeu no sofá e o livro que estava lendo caiu no chão. Tab abaixou-se
para apanhá-lo e leu o título.
— Ah, mais um livro de Burke! — exclamou. — Eu me lembro de quando ele
escreveu este. Nunca tinha escrito um romance antes. Está gostando?
Lilian olhava atenta para Tab. Ele lia a dedicatória do livro: "A dois olhos feiticeiros
sobre uma boca de anjo". Aquilo não era um mistério para Lilian, pois vira o retrato de
Dani. Depois se recompôs, e respondeu com calma:
— É muito bem escrito, naturalmente, mas me deixa triste.
— Burke vê os sonhos sempre pelo outro lado, Lilian, e fica fascinado com isto.
Não gosta de pensar que Paul nunca terá sua Caprice, não é?
Lilian sorriu, sacudindo a cabeça.
— Está me dando uma opinião terrivelmente machista, Tab. Você acha que as
mulheres são tão bobas e querem que sempre tudo dê certo?
— Não, Lilian — respondeu Tab fechando o livro. — Homens, até mesmo
médicos, desejam que seus sonhos se tornem realidade. Somos todos vulneráveis neste
aspecto. Se não pudéssemos ter esperanças a vida perderia a graça — Tab afastou o
olhar do rosto atento de Lilian e observou a porta que se abria. — Não vamos mais

48
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
conversar sobre sonhos, Lilian. Eles são nossos segredos.
Pelo barulho dos saltos, percebeu que Íris tinha entrado e riu, enquanto ela se
aproximava deles.
— Uau, isto aqui está aconchegante — disse Íris e virou-se para Burke: — Olhe
só estes dois aqui juntinhos no sofá! — e virando para Lilian, disse com malícia: —
Então é por isto que você nunca aprendeu a jogar?
— É sim. Não acha que é esperta? — respondeu Tab, encarando Íris com
firmeza.
Bruke passou pelo sofá e aproximou-se da lareira, olhando com bom humor a
figura delicada de Lilian, encolhida entre as almofadas, e Tab a seu lado.
— Você tem pés absurdamente pequenos, Lilian — comentou.
Imediatamente Lilian curvou-se e procurou afobada seus sapatos. Aquele tom!
Ele falava com ela com a mesma voz que usava lá em cima quando conversavam com
Peter. E agora falava com ela da mesma maneira, em frente de Íris!
— Meus pés absurdos combinam com o resto absurdo de meu corpo —
respondeu, as faces queimando, aflita porque não conseguia achar o sapato direito, que
estava enfiado em baixo do sofá.
Íris deu uma risada estridente.
— Você também acha que ela é absurda, querido... toda absurda?
— E lógico que é — respondeu Burke, os olhos azuis brilhando agora com uma
estranha chama, causada pela irritação de Lilian, tão difícil nela. Com um movimento
rápido levantou-a nos braços, trazendo-a para perto de seu peito. — É tão absurda
quanto o elefante rosa de Peter, não é? — Lilian esperneava, seu rosto expressando
todo o embaraço... ou confusão... ou... raiva. Burke estava fazendo tudo aquilo
deliberadamente para impressionar Íris. Sentia-se ferida, principalmente porque
lembrava que ele tinha rejeitado seus braços, exatamente na noite anterior, por não ter
uma plateia para assistir.
— Ponha-me no chão, Burke! Oh, me largue! — reclamava dando socos em seus
ombros. — Não sou Peter... ou sequer um elefante rosa!
— Pois não largo! Você é minha para que eu faça o que quiser!
— Por Deus, Tab! Não parece um homem das cavernas? — comentou Íris.
Tab sabia que o ciúme a estava corroendo, deixando seus nervos em pedaços, e
por isso resolveu vir em seu socorro!
— Já está ficando tarde, Íris. Acho que seria uma boa ideia irmos agora. Eu já
estou de carro e posso levá-la para casa.
— Está bem.
— Estamos indo então, Burke — ele disse.
— Certo! — Rindo ainda, Burke pôs Lilian no chão. — Pronto, meu amor, agora
pode desempenhar suas funções de anfitriã.
Com o rosto corado e os cabelos em desalinho, Lilian foi até a porta, seguida por
Íris.
Íris olhou de lado o vestido de Lilian.
— Então Burke levou você para fazer algumas compras em Londres? O que
achou de Madame Baum? Seu vestido é de lá.
— Gostei dela. É muito amável.
— Oh, tinha que ser! — disse Íris rindo maliciosa. — Madame gosta de clientes
ricos. Naturalmente, Burke não permitiria que você andasse sempre como uma colegial.
Ele aprecia roupas elegantes. — Seus olhos varreram o corpo de Lilian. — E uma pena
que você seja tão magra, Lilian. Você mal tem busto, embora eu tenha que admitir que
não está nada mal nesse vestido. E bem cortado e isto faz a diferença. — Seus olhos
caíram no pulso de Lilian. — E joias também! Estou vendo que Burke é um marido
generoso!

49
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
— S-sim... — respondeu timidamente Lilian, sem saber como agir com a
curiosidade de Íris. Entraram no quarto de Lilian e Íris vestiu com graça o casaco de
peles, amarrando um lenço em volta dos cabelos. Depois voltou-se para Lilian, que
estava apoiada numa das colunas da cama, parecendo irremediavelmente perdida
naquele imenso quarto.
— Para alguém que diz não saber jogar cartas, jogou as suas magistralmente
bem, minha cara. Vocês, balconistas ou datilógrafas, devem ser muito espertas...
embora o gosto de Burke sempre fosse meio ordinário. Antes era uma camponesa...
— Isso é uma coisa muito cruel de se dizer!
— Entretanto é a verdade, minha cara. — Íris alisou despreocupada uma das
mangas de seu casaco. — Entretanto, é a verdade!
— Dani Larchmont não era uma camponesa — retrucou Lilian. — Ela era
lindíssima! Se Burke a amou, quem pode culpá-lo?
— Não você, evidentemente — respondeu Íris, surpreendida ao ver a reação de
Lilian. — Então Burke não faz nada errado a seus olhos? Não me admira que este
casamento convenha a ele! Não somente uma esposa acomodada, mas alguém que se
atira a seus pés em adoração! Bem, aproveite bastante enquanto puder. Com seu
temperamento inconstante ninguém sabe quanto tempo durará esta viagem dele pelas
terras das ninfas e dos gnomos. Sabia que parece um gnomo, querida? A gente logo se
lembra daquela gentinha sentada em cima dos chapéus dos cogumelos.
E a sua, pensou Lilian, profundamente ressentida, me faz lembrar a de uma gata
ciumenta!
Tab e Burke já tinham saído da biblioteca e esperavam Íris ao pé da escada.
— O sr. Ryeland já foi deitar-se, Íris, e eu me despedi dele por você — disse Tab.
— Então vamos indo. Boa-noite, crianças. Nós os deixamos para poderem brincar
à vontade. — E desceu as escadas animadamente segurando a mão de Tab. — Vamos,
caro doutor, vamos admirar a estrelas e o silêncio da noite.
— Mas que convite, meu velho! — Burke exclamou rindo.
— Não se impressione. Íris sabe que meu carro é tão velho que eu tenho que
guiar com as duas mãos — gritou Tab de volta. Ajudou-a a entrar no carro e lá se foram
eles numa nuvem de fumaça.
A noite estava agradável apesar de já ser quase inverno. Tab falava sobre o
tempo, mas Íris não respondia. Ele a olhou intrigado percebendo-a imóvel.
— Desista, Íris — disse. — Burke não quer você. Nunca quis. Aprenda a aceitar
esta verdade e conseguirá ultrapassar essa sua paixão. Talvez possa perceber que
existem outros homens no mundo, prontos para darem a você o amor que nunca terá de
Burke Ryeland. Ele pertence a Lilian... a Lilian, escutou?
— Não... não fique repetindo isto! — respondeu, dolorosamente. — Você é cruel,
Tab, muito cruel!
— Gostaria de ser bom. Como eu gostaria de ser bom com você, Íris. Se ao
menos me deixasse...
Houve um instante de silêncio e depois Íris deu uma risada nervosa.
— Mas você é Tab Gresham e por mim poderia até estar no Polo Norte. — Deu
uma palmadinha no seu braço. — Vou dar uma olhada por aí e ver se encontro para
você um belo bichinho... Existe Lilian Ryeland... não serve? E caseira e ronrona quando
alguém ri para ela e lhe faz um carinho.
— Lilian Ryeland é a garota mais adorável que eu já conheci! É boa e sincera.
— Sincera? Pois eu não acho. Acho que existe alguma coisa muito, muito
estranha na esposa de Burke.
— Estranha? — perguntou Tab, olhando Íris de relance. — Por que diz isso?
— São várias coisas. Tem a metade da idade de Burke, é sem graça, e fica de
todas as cores do arco-íris quando alguém menciona o Peru... Por que age assim? Por

50
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
favor, me diga, Tab. Estou curiosa.
As mãos de Tab seguraram o volante com mais força. Então Íris também estava
duvidando da história de Burke, de que ele e Lilian tinham-se conhecido no Peru? Meu
Deus, era melhor que Íris não ficasse curiosa demais! Desejava Burke e era
inescrupulosa.
— Está dizendo bobagens e sabe muito bem disto — respondeu então,
procurando desviar o Peru da cabeça de Íris. — Lilian não é uma moça sem graça. Tem
a delicadeza de porcelana, de Chelsea.
— Porcelana de Chelsea! Meu caro Tab, você perdeu o juízo! — Íris recostou-se
na poltrona e deu uma risada. — Aquela anãzinha ridícula é muito sem graça! — disse
com maldade. — E é perfeitamente óbvio porque Burke casou-se com ela. Queria
alguém que não se intrometesse em sua vida. Maldito! E ainda se atreve a brincar de
bobo feliz na minha frente!
— Ele é casado com ela...
— Por enquanto! — retrucou Íris. — Por enquanto!
— Íris! Você é uma mulher linda, tem o mundo inteiro a seus pés! Esqueça
Burke... por você!
— É o mesmo que me pedir para não respirar mais... — respondeu
apaixonadamente.

Capítulo 12

Os galhos do centenário teixo arqueavam-se fantasticamente até o chão,


emoldurando o portãozinho que se abria para o caminho até a igreja local.
Era um caminho quase particular, pois ia desde King's Beeches. Raramente Lilian
cruzava com alguém por ali. Naquele dia, Lilian admirava a beleza da árvore. Ouviu
então passos firmes atrás de si e virou-se.
A sua frente estava Jack Larchmont. Ele parou, belo e misterioso, com aquele seu
ar de atrevimento, um leve sorriso nos lábios. Apontou para a árvore.
— Parece um velho broxo, não acha? — Depois apoiou o pé no portãozinho. —
Não vai me dizer alô?
— Alô... — disse Lilian, as mãos fechadas dentro dos bolsos. Desviou os olhos de
Jack. — É mesmo uma árvore fantástica, não é? Eu... eu acho que me impressiono com
estas coisas por sair de Londres.
— Um pequeno pardal de Londres... — disse Jack suavemente e Lilian recuou
assustada. — Eu gosto de Londres, mas não tenho muitas ocasiões para ir até lá. Eu
sou um trabalhador do campo, muito ocupado.
— Não parece estar muito ocupado no momento — disse Lilian.
— Verdade, grande verdade. — O sorriso de Jack se acentuou. — Fiquei
acordado a noite toda, bancando a parteira de vaca! Parece que não tem uma opinião
muito boa a meu respeito...
— Bem, disse-me que tinha chifres e cascos...
— Ah, disse. Mas mesmo assim, menina, é verdade o que eu disse sobre a vaca.
Ela é muito meiga e eu gosto de coisinhas meigas e doces, que dificilmente se
encontram. E quando a gente as encontra, já pertencem a outras pessoas. Triste, não?
— Acha? — Lilian, com os olhos baixos, não entendia bem o que ele estava

51
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
querendo dizer.
— Terrivelmente triste! Naturalmente, a gente sempre pode estender a mão e
agarrar o que quer, sem se importar com o dono. Acha que devo fazer isto, Lilian?
Ela ficou tão surpreendida por ele saber seu nome que não reparou na pergunta.
— Como sabe o meu nome?
— Ora, eu conheço a sua criada — explicou. — A pequena Betty. Ela nunca lhe
falou de mim? Pois ela fala muito sobre você e me conta coisas muito interessantes.
— Betty? — Lilian olhou para ele espantada. — O que foi que disse?
— Oh... coisas muito surpreendentes. Empregados são pessoas muito
observadoras, Lilian. Seus olhos não perdem nada.
— Mas o que ela não perde? — Lilian estava começando a se irritar. — Você não
tem o direito de perguntar sobre a minha vida. O que ela andou dizendo?
— Disse que seu marido é um homem muito esquisito.
— Esquisito? Burke? — Ela agora estava começando a se assustar. Na verdade,
empregados eram pessoas muito curiosas. E Betty, com aquela cara de sonsa, gostava
de bisbilhotar.
— Sim, esquisito. Acho muito esquisito que um homem não partilhe da cama da
esposa.
As palavras caíram duras entre eles e Lilian enrubesceu violentamente.
— Como ousa dizer uma coisa destas? Como ousa discutir a minha vida e a do
meu marido com uma criada?
Jack Larchmont deu uma risada debochada.
— Por que não? Ele é uma espécie de divindade? Seu nome não deve estar na
boca do povinho?
— Você é desprezível! — exclamou Lilian. — Escutando as fofoca de Betty...
Interpretando, a seu modo, as coisas que ela diz? É claro que ela não sabe de nada! —
Ficava cada vez mais revoltada ao ver o brilho de zombaria nos olhos de Jack. — Eu
tenho um filho, não se lembra? Será que a curiosa Betty acha que eu achei Peter num
repolho?
— Ele não é nem seu Peter... nem de Burke! — afirmou Jack. Depois agarrou os
pulsos de Lilian e chegou mais perto dela. — Eu escutei o que meu pai disse a você
naquele dia em que foi até minha casa, mas sabia antes de todos que Philip Ryeland
não era o modelo de virtudes que todos diziam... Um corvo reconhece outro corvo, eu
acho. — Tinha Lilian completamente sob seu domínio. — Não nos encontramos à meia-
noite, Lilian, mas os cascos e os chifre estão aqui! Eu lhe disse que os veria, não disse?
— E verdade — respondeu. — E fui tola demais sentindo piedade por você no
outro dia. Odeio você. Acho que se alegra fazendo maldades.
— Oh, mas vai depender só de você — disse ele, rindo. Seus dedos apertavam
com mais força os pulsos delicados de Lilian. — Não quero que me odeie, Lilian. E
pretendo guardar os segredos dos Ryeland se prometer ser... minha amiga.
— O que quer dizer com isto? Diga abertamente o que pretende.
— E ofender sua modéstia, minha menina? Você não sabe nada da vida, não é?
Esposa e mãe! Só rindo! O galante Burke casou mesmo com você?
— E lógico que casou!
— E lógico que casou! Emprestar alguma verdade à grande mentira, hein? Seria
terrível se a verdade aparecesse, não? O velho expulsaria vocês três do lar ancestral.
Porque Burke está fazendo isto? Pela casa ou pelo dinheiro?
— Acha que todos os homens são ordinários como você? Burke ama Peter e o
avô. E está fazendo isto por eles!
— Que nobre! Não seria porque aprontou uma sujeira com minha irmã e com isto
acalma sua consciência?
Ele estava perigosamente perto da verdade e Lilian assustou-se.

52
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
— Não deve contar nada! Não vai contar, vai? — pediu. — Burke só quer fazer o
bem! Adora Peter e o sr. Ryeland. Se ele descobrisse a verdade, seu coração se
despedaçaria... E nada do que disser poderá trazer sua irmã de volta... Só manchará
seu nome e provavelmente matará sua mãe. Pense ao menos nela, se não consegue
pensar em mais ninguém! Você a ama, eu sei que a ama!
— Mas o amor é uma emoção vazia quando não é correspondida, Lilian. Isto dói,
torna amargo e só estimula a maldade. — Pressionou a mão de Lilian sobre seu
coração. — Ele bate, Lilian, bate. E sente coisas que não devia sentir. Sente que deseja
a esposa de outro homem... e sabe que vai consegui-la. Pode ficar chocada, tenha todas
as reações possíveis, mas não se esqueça que tenho nas mãos a reputação de todo o
clã Ryeland. Depende de você revelar ou não o que sei. Não me importo com o coração
de minha mãe, pois não se quebra o que já está quebrado. — Abruptamente Jack
soltou-a. — Pense bem no que eu disse — continuou. — Nós nos encontraremos
novamente. — Depois deu meia-volta e afastou-se.
Lilian tremia muito quando voltou para King's Beeches. Jack Larchmont sabia! O
que ela podia fazer agora?
Tomou o chá no quarto de Peter, com ele e Moira. O pesadelo daquela tarde
apagou-se um pouco de sua mente. Mas na hora do jantar, sentada à frente de Burke, e
vendo-o conversar com o avô sobre a fazenda, tudo voltou. E principalmente a
afirmação de Jack: "Acho esquisito um homem que não partilha da cama da esposa".
Lilian baixou os olhos para a torta de cerejas. Como ele se atrevia a dizer uma
coisa destas? O que o avô pensaria destes boatos de cozinha, se chegassem até seus
ouvidos?
Então estremeceu ao perceber que Burke tinha lhe feito uma pergunta.
— O que disse? — perguntou aflita, sem ter a menor ideia do que ele tinha dito.
— O que há com você, Lilian? Por que está assim?
— Assim como? — perguntou pousando o garfo desajeitadamente no prato.
— Bem, minha queridinha, está parecendo assustada como se eu a
surpreendesse roubando a prata da família... Agora termine seu vinho, se não pretende
passar o resto da noite na mesa — disse Burke bem-humorado.
Ela pegou o cálice e deu um grito de susto. A delicada haste escorregou de seus
dedos nervosos e espatifou-se no chão... o copo de cristal veneziano!
Lilian pulou da cadeira com os olhos fixos no rosto transtornado do velho Ryeland.
— Eu sinto! Eu sinto tanto! — gaguejou. E logo lágrimas lhe caíam dos olhos,
enquanto catava os cacos espalhados pelo chão.
— Deixe isto, Lilian! — ordenou Burke, que tinha dado a volta na mesa e agora a
erguia. Viu que um de seus dedos estava ferido e soltou uma exclamação abafada. —
Sua tolinha, porque tinha que pegar esses cacos? — Tirou um lenço do bolso e
começou a limpar o ferimento, enquanto a voz seca do avô se fez ouvir:
— Sabe, moça, que você quebrou uma peça insubstituível dos cristais da família?
Lilian engoliu em seco. As lágrimas corriam pelo rosto.
— Eu sinto! Sinto muito! — repetiu.
— Sentir muito não vai substituir o copo! — ele insistiu.
— Estamos perfeitamente cientes do fato, senhor — disse Burke, enquanto
amarrava o lenço em torno do dedo de Lilian. — Lilian não fez isso de propósito.
— Podia aprender a tomar mais cuidado — o avô respondeu. — Não está mais
morando num subúrbio qualquer, bebendo água em copos de vidro barato.
Burke levantou os olhos para o velho.
— Este comentário é inteiramente desnecessário.
— Mas mesmo assim, muito verdadeiro, não é? — Um ar de desprezo tomou
conta daquele rosto autocrático. — Temo que seja seu sangue francês que seja
responsável pelos gostos tão plebeus.

53
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
— Então agradeço a Deus por isto, pois senão poderia ser igual ao senhor! — E,
passando o braço pela cintura de Lilian, saiu da sala.
Burke acendeu a luz de seu escritório e Lilian foi se sentar no chão, ao lado da
lareira.
— Um copo tão lindo! — lamentou. — Eu devia mesmo ter sido mais cuidadosa...
e ele tem razão quando fala de copos de vidro. Papai e eu não podíamos nos dar ao
luxo de usar copos de cristal veneziano ou vinhos importados! — Durante algum tempo
ficou olhando para as toras de madeira queimando. — Não devia ter me trazido para cá,
Burke. Eu não combino com este lugar! Eu sabia disto.
Burke a observou um instante, atravessou a sala, e chegou perto do tapete e
segurou-a nos braços, sentando-se com ela numa poltrona. Era muito leve em seus
braços, e subitamente ela o abraçou pelo pescoço, como uma criança necessitando
desesperadamente de apoio. Não era Burke quem estava ali, era seu pai, consolando-a
como quando esfolava os joelhos. Encostou-se nele, sentindo todo o vigor daquele peito
forte. Depois de algum tempo, murmurou:
— Eu sou um bebê muito manhoso, não? Pior ainda do que Peter quando os
dentinhos nasceram.
— Você é uma garota muito sensível, só isso. — Burke segurou seu queixo e fez
com que levantasse os olhos para ele. — Talvez eu não devesse mesmo ter trazido
você, Lilian. Viver uma mentira não está sendo fácil, não é?
— O que aconteceria se seu avô descobrisse?
— O choque poderia matá-lo — respondeu. — Mas é um risco que preciso correr.
A felicidade de um menino de um lado e a possibilidade de meu avô descobrir minha
mentira do outro. Eu pesei tudo muito cuidadosamente e decidi pela felicidade de Peter.
Foi o orgulho dos Ryelands que causou este nascimento, e nada mais justo que
aguentem a carga.
Lilian estremeceu ao sentir a dureza na voz de Burke. Ela não tinha nenhum
orgulho, mas um coração aflito e assustado. Não podia enfrentar com a mesma calma
de Burke a destruição da vida do velho avô, se um dia descobrisse que o seu adorado
Philip não era digno do orgulho que sentia. Peter era a prova viva de que Philip não
hesitara em aviltar um nome que dizia adorar e respeitar. Jack Larchmont não atrasaria
a vida deles como tinha ameaçado, não se isto dependesse dela. Lembrando-se
daquele rosto arrogante, tremeu incontrolavelmente.
Burke assustou-se, e pôs a mão em sua testa, ansioso.
— Acho que está ficando resfriada — disse.
— Eu... eu estou bem. E por causa daquele copo. Estou com um pouco de dor de
cabeça.
— Coitadinha! — Burke acariciou-a e trouxe-a mais para perto de si. — Lilian,
gostaria de ir embora de King's Beeches? — perguntou lentamente.
— Embora? — abriu os olhos assustada, seus braços involuntariamente
apertando seu pescoço. — Para longe de você... e de Peter? Oh! Não!
— Tem certeza? — deslizou um dedo pelo rostinho pálido, marcado pelas
lágrimas. — Não parece estar feliz e acho que não tenho o direito de prendê-la aqui.
— Eu... eu sou feliz bastante. Amo Peter. Não aguentaria ter que me separar
dele! — abraçou-o aflita. — Você não quer que eu vá embora quer, Burke?
— E lógico que não! — Deu-lhe um rápido beijo na testa. — Eu sentiria
terrivelmente a sua falta!
— Sentiria mesmo? Nunca achei que reparasse em mim. Vai reparar em mim
quando formos à festa de Íris, no sábado?
— Quando estiver toda elegante com seu novo vestido? Mas eu pensei que não
quisesse ofuscar Íris...
— Oh, não espere que a ofusque! — disse imediatamente. — Mas acho que você

54
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
vai gostar do meu vestido. É lindo! Ele... ele ruge...
— Ruge, hein? — Burke achou graça. Seus olhos pousaram nos cabelos
dourados. — Você é uma boa menina.
— Não sou uma menina! — Sentou-se ereta em seu colo e teve a impressão que
não fazia outra coisa senão dizer a ele que não era mais uma criança.
— Nem um elefante rosa para se brincar, não é? Minha queridinha, eu sou tão
mais velho que só posso achá-la uma criança.
— Tem trinta e seis anos e não é velho. Eu gostaria de ter trinta e seis anos!
— Para quê?
— Eu... eu teria mais... dignidade e mais... mais conhecimento do mundo. —
Baixou os olhos pensando em todas as coisas que Jack Larchmont tinha dito.
— Nem sempre a idade traz sabedoria, minha querida. Muitas vezes traz a
desalentadora noção de como fomos idiotas. — Então levantou-se e soltou-a. — Agora
pegue seu livro. Eu tenho que trabalhar um pouco esta noite.
Tão bom... mas tão distante! Acariciando-a sempre distraidamente. Sem saber
que o medo nos olhos dela aquela noite era por causa da repulsa que sentia pela paixão
de outro homem. Lembrou-se dos olhos negros de Jack — ousados, oblíquos de desejo.
Sua respiração ficou ofegante. Tinha vontade de pedir socorro a Burke, nas não
ousava...
Jack não hesitaria em espalhar tudo o que sabia sobre o nascimento de Peter se
ela tentasse se proteger, deixando Burke sem defesa. Assim como o sr. Ryeland, a sra.
Larchmont e Dani!
Todos à mercê de outros, desprezados e desonrados...
Lilian estremeceu.

Capítulo 13

O olhar sempre plácido de Betty desapareceu. Olhava Lilian com surpresa e


admiração.
— A senhora está bonita demais! — exclamou, enquanto olhava a patroa. — Está
mesmo parecendo uma fada!
Lilian deu um risinho alegre, enquanto girava dentro de seu vestido novo.
Olhou-se no espelho com alegria infantil. A pele nua dos ombros e dos braços
parecia de cetim em contraste com a seda flamante. Os lábios tinham somente um toque
de batom e os olhos brilhantes de felicidade refletiam o dourado do vestido.
— Pegue a capa, Betty — pediu ela.
A empregada trouxe um elegantíssimo casaco de veludo e ajudou-a a vesti-lo.
— Não vai usar nenhuma joia, madame? — perguntou.
Lilian sacudiu a cabeça, sorrindo levemente.
— Eu só tenho o relógio, Betty, e não posso usá-lo com este vestido. — Depois
caminhou para fora do quarto.
— Divirta-se bastante, madame — disse a empregada, timidamente.
— Obrigada — respondeu Lilian, virando-se para ela. Repentinamente a figura
tenebrosa de Jack Larchmont veio à sua cabeça, e o sorriso de Lilian sumiu dos lábios.
Passou pelo quarto de Peter, pois queria que Moira a visse antes de sair.
— A senhora será a mais bela do baile! — exclamou juntando as mãos. —

55
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
Verdade! Nunca vi um vestido mais lindo, nem mesmo em Íris Mallory!
Lilian divertiu-se com o comentário, e depois despediu-se de Peter.
— Boa noite, meu tesouro. Diga boa-noite para a mamãe...
Ele deu uma gargalhada alegre.
— O jovem sr. Ryeland vai ficar orgulhoso da senhora — disse Moira.
Lilian desceu as escadas radiante. Já estava na metade quando alguém a
observava lá de baixo.
Viu Burke, estupendo num elegantíssimo smoking, os olhos azuis brilhando
intensamente, enquanto a esperava.
Quando chegou mais perto, estendeu a mão e ajudou-a a descer os últimos
degraus. Com mãos frias e firmes, ele a fez tirar o casaco. Depois afastou-a um pouco,
ainda segurando suas mãos para vê-la melhor.
— Não acha que este vestido arrebatador merece um presente?
— Oh, não! Não, Burke! — protestou, confusa.
— Oh, sim, sim! — respondeu rindo, enquanto a fazia girar, deixando-a de costas
para ele. Sentiu então as mãos frias em seu pescoço e, baixando os olhos, viu que tinha
colocado nela uma corrente de ouro, de onde pendia um pequeno camafeu.
— Oh, Burke! Mas é lindo! Onde conseguiu esta joia?
— Encontrei numa loja de antiguidades aqui perto em Tauton, na semana
passada. Não pude resistir, porque se parecia com você: delicada, inocente, meiga. —
Sorriu ao ver as faces coradas de Lilian. — Por que está envergonhada? Não gosta de
receber elogios?
— Gosto, mas me deixam embaraçada.
— A maioria das mulheres gosta de elogios. — E Burke ajudou-a a vestir o
casaco novamente. — Vamos só nós dois hoje. Meu avô resolveu ficar em casa. Está
com as dores nas pernas outra vez.
— Que pena! — exclamou Lilian.
Foram até o carro, Burke carregando o sobretudo no braço. A noite estava fria e o
céu estrelado e limpo. Lilian aconchegou-se melhor em seu casaco, olhando preocupada
para Burke.
— Não vai vestir o sobretudo? — perguntou.
Ele sacudiu a cabeça e jogou o sobretudo no banco de trás. Depois virou-se
sorrindo para ela e segurou-lhe a mão:
— Não estou sentindo frio. Vamos, entre.
A enorme fogueira já estava crepitando quando chegaram à festa, soltando
fagulhas e espalhando sua luz milhas à volta. Burke estacionou o carro e acompanhou-a
entre a pequena multidão de convidados que já se comprimia nos jardins da casa,
cumprimentou os conhecidos, sempre com o braço enlaçando a cintura de Lilian. Ela
invejava sua autoconfiança e calma, pois sentia os nervos tensos, sabendo que as
pessoas a examinavam o tempo todo. Chegaram até onde Íris estava recebendo os
convidados. O pai, orgulhoso da bela filha a seu lado, sorria contente.
Íris nunca estivera mais bela, pensou Lilian ao vê-la. Seu vestido, de seda de um
verde profundo, simples, realçava os maravilhosos olhos, que refletiam as milhares de
luzes daquela noite. A única jóia que usava era um colar de ouro, incrustados com jade,
exatamente da cor de seus olhos.
— Vá entrando, minha cara — disse a Lilian. — Ache o lugar para guardar seu
agasalho. Enquanto isso, vou distrair o seu marido, se não se importa.
Os olhos de Lilian refletiram imediatamente sua aflição. A ideia de ser
abandonada sozinha, no meio de toda aquela gente, a fez ter ímpetos de se atirar a
Burke, desafiando qualquer um a tirá-la dali.
— Tudo bem, Lilian — disse ele, percebendo imediatamente o que estava
acontecendo com ela. — Passe um pente no seu cabelo que eu a espero aqui.

56
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
Lilian estava no toalete arrumando os cabelos despenteados pelo vento, quando
sentiu que alguém a observava pelo espelho. Era uma mulher grandalhona e muito
queimada de sol, com os cabelos curtos e grisalhos. Lilian sorriu.
— Preciso tirar um pouco o brilho — a mulher explicou. — Para dizer a verdade,
sinto-me uma verdadeira idiota. Prefiro estar em cima de uma sela a ter de cavalgar
pelos salões. Meu nome é Rita Coe. Por que Burke ainda não levou você para me
visitar? Ele tem medo que ache meus cavalos melhores do que os dele?
Rita Coe? Mas naturalmente! A mulher que tinha uma escola de montaria. Burke
já tinha falado dela. O sorriso encantado de Lilian foi tocante. A boa mulher logo
percebeu como ela estava se sentindo sozinha no meio de tantos estranhos.
— Burke me contou que a senhora tem um garanhão quase tão veloz quanto
Rebelde — disse sorrindo.
— Quase tão veloz! O meu Talleyrand pode ultrapassar o arisco Rebelde de
Burke em qualquer dia da semana. Meu cavalo tem estilo, ah, isto ele tem! O de Burke é
simplesmente um cavalo temperamental. — Riu e recolocou o porta-pó na bolsa. —
Acho que Burke sabe montar muito bem. Você gosta de montar, menina?
Lilian sacudiu a cabeça, explicando que não montava. A sra. Coe olhou para ela,
espantada.
— Mas precisa aprender, minha filha! Todos por aqui gostamos muito de andar a
cavalo. Vou conversar com Burke para que a mande para mim. Você é magrinha, não
tem muita força, mas vai ficar perfeita em cima de uma égua negra. Hum... você é uma
menina linda! Bem que Burke me falou.
— Burke falou-lhe a meu respeito? Que era bonita? — exclamou Lilian, logo se
arrependendo da pergunta.
Rita olhou para ela intrigada.
— Ele não diz estas coisas para você? — Depois com pena do embaraço de
Lilian, mudou de assunto: — Venha, vamos nos juntar aos outros. — Saíram em direção
ao salão de baile. — O que acha de Íris? Gatinha bonita, não? Nós demos de presente a
ela um corte de tweed irlandês, autêntico. Eu e meu marido Bill... você precisa conhecê-
lo. O que deram a ela?
— Uma sela. Burke trouxe ontem.
— Você não deixa que ele venha aqui sozinho sempre, deixa? — perguntou. —
Não deixe, minha filha! Íris gosta de Burke. Não sabia?
— Sabia sim — Lilian respondeu com um sorriso travesso.
— Tenho que reconhecer que Íris não a abala. Está com o rapagão enrolado no
dedinho, hein?
— Não é isso — Lilian respondeu rindo. — Mas ele é muito apegado ao nosso
filho. Não me preocupo.
— Boa menina! Vai ser uma ótima amazona!
Chegaram ao salão e atravessaram as portas de vidro que davam para os jardins.
A enorme fogueira soltava fagulhas para o alto, sua luz alegrando a fachada sóbria de
Mallory Court.
— Mas onde será que Bill se meteu? — reclamou Rita. — Aposto que está por aí
jogando cartas com os rapazes ou experimentando o gim do coronel. Está vendo Burke?
Lilian sacudiu a cabeça, olhando ansiosamente à sua volta.
— Bem, fique aqui que vou procurar meu marido — disse a mulher. — Tenho de
encontrá-lo antes que ele se encharque de gim. Voltarei logo... com ele! — E lá se foi
ela, arrastando a cauda do vestido de veludo vermelho escuro. Lilian não se conteve e
começou a rir.
— Concordo que ela é irresistivelmente engraçada — comentou alguém atrás
dela. Lilian deu meia-volta e lá estava Jack Larchmont, olhos negros magnéticos, um
cigarro preso aos lábios. A luz fugidia iluminou o rosto belo e duro. Estava com um

57
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
elegante terno escuro, e seus cabelos negros brilhavam à luz da fogueira. Olhou com
insolência e prazer para o rosto assustado de Lilian e deu uma risada:
— Por que não? Eu me misturo com a elite, do mesmo modo como me misturo
com os criados. É uma vantagem das ovelhas negras...
De repente agarrou o braço de Lilian.
— Vamos fugir desta gente — disse, sem se importar se alguém os visse,
forçando-a a ir para um pequeno bosque ao lado da casa. Lilian deixou-se levar, gelada
e trêmula. Tinha vontade de gritar, mas não se atrevia...
Jack atirou longe o cigarro e abraçou-a, chegando o rosto moreno perto de seu
pescoço claro.
— Eu te adoro! — sussurrou. — Não consigo deixar de pensar em você nem um
só minuto! Não tem pena de mim? Não tem pena de me deixar acordado a noite inteira
desejando-a desesperadamente? Oh, Lilian, você me enlouquece! Eu nunca amei assim
antes! Tem que ser minha!
Os lábios agora acariciavam o rosto dela. Ela estremeceu violentamente quando
se uniram aos seus.
Por alguns segundos não reagiu, mas depois o medo foi mais forte e Lilian
começou a se debater, apavorada.
E naquele momento, exultante para Jack Larchmont, mas de terror para ela,
escutaram os passos de alguém que se aproximava.
— Faça o favor de largar a minha mulher, Larchmont, a não ser que queira que
lhe quebre o pescoço! — exclamou Burke.
Imediatamente Jack soltou-a. Depois virou-se para Burke e passou a mão pelos
cabelos, sorrindo.
— Não quebre o meu pescoço, Burke. Sua mulher não gostaria disto. Meu
pescoço é muito precioso para ela.
— Seu porco insolente! — gritou Burke avançando para ele. Jack não recuou.
Enfiou as mãos nos bolsos e ficou parado, no mesmo lugar, provocando-o. Assustada,
Lilian se pôs entre eles, com as mãos no peito de Burke.
— Não faça isto, Burke — imploro.
Ele baixou os olhos e olhou-a por algum tempo. Depois respondeu com desdém:
— Pode poupar suas lágrimas, minha cara. Não vou privá-la do precioso pescoço
dele. — Deu meia-volta e largou Lilian pregada ao chão, branca e desesperada. Quando
Jack Larchmont tentou segurá-la, encolheu-se enojada.
— Eu devia ter deixado que ele o matasse! — murmurou.
— E por que não deixou, doçura? — disse irônico. — Ficou com medo que eu o
matasse? Não se apegue muito a ele, pois o seu destino já está traçado ao meu lado!
— Só consigo sentir ódio por você! — exclamou, fugindo do bosque para o
movimento da festa.
Parou perto da porta, procurando por Burke entre os pares que dançavam.
Quando o encontrou quase desmaiou. Estava com Íris nos braços, sorrindo encantado
para ela, sem traço algum do desdém e da raiva de poucos minutos. Seus olhos só
revelavam admiração pela bela moça.
Virou-se e deu um encontrão exatamente em Tab Gresham.
— Puxa vida! — ele exclamou. — Aonde estava indo assim depressa?
Ela levantou o rosto pálido para ele, tentando responder alguma coisa coerente.
Não queria que ele percebesse que alguma coisa estava errada, pois explodiria em
lágrimas... Tinha medo de acabar lhe contando alguma coisa.
— Eu... eu estava indo ver a fogueira — mentiu.
— Para se atirar nela? — ele brincou. Olhando um pouco mais longe descobriu
Íris com Burke. A pobrezinha estava com ciúme! Entendeu o que estava sentindo, pois
sentia o mesmo.

58
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
Íris estava maravilhosa naquela noite, mas só se importava com a atenção de um
homem... que estava com ela naquele minuto. Desprezava o amor de Tab, embora
estivesse usando o colar de jade que ele lhe tinha enviado.
— Exijo a minha valsa agora, Lilian — disse Tab corajosamente. — Venha.

Capítulo 14

Fiuuuu! O primeiro foguete cortou os ares e explodiu barulhento no ar, formando


uma chuva de estrelas coloridas. Como se fosse um sinal para o começo do caos... O
coronel Mallory e meia dúzia de amigos apareceram correndo, trazendo um boneco de
palha, o Guy Fawkes, uma espécie de judas.
— Onde está Íris? Ela precisa ver o velho Fawkes se queimar na fogueira.
— Onde está Íris? — outra pessoa perguntou.
Tab Gresham, ao lado de Lilian e dos Coes, assistia à cena, enquanto as vozes
chamando Íris estavam cada vez mais altas. Íris tinha sumido na última meia hora...
assim como Burke. A ideia que os dois tivessem procurado um canto mais discreto fazia
o sangue de Tab ferver. Como Íris ousava fazer uma coisa destas? E Lilian?
Tirou o lenço e enxugou o suor da testa.
— O que há rapaz? — perguntou Rita Coe. — Está com calor? — Depois ergueu
os olhos para o céu: — Que maravilha! Viu este agora, Lilian?
— O quê? — perguntou Lilian, interrompendo os pensamentos sombrios e
voltando à festa.
— Aqui está ela! — alguém gritou quando Íris surgiu. — Vamos queimar o boneco
agora!
Os braços e pernas recheados de palha passavam de mão em mão, dando
cambalhotas no ar, até ser definitivamente atirado no fogo. Lilian assistia a tudo ao lado
de Tab muito tensa. Seus dedos procuraram o camafeu. Onde Íris tinha estado, pensou
desesperada. Como seus olhos verdes brilhavam!
E... onde estaria Burke?
Ele não tinha chegado perto dela, nem mesmo olhado para ela, depois da cena
no bosque, e após dançar inúmeras vezes com Íris. O olhar de triunfo da outra era
insuportável para Lilian. Burke estava propositalmente devotando a noite a ela. E quanto
a ela... sentia-se só, apesar de ter despertado a atenção de muitos. A valsa que dançara
com Tab fez com que todos reparassem nela. Vários homens ficaram à sua volta
exigindo uma dança.
Agora, ali fora, fria apesar do calor da fogueira, sozinha como nunca se sentira
antes, apertava o camafeu que Burke lhe tinha dado e lágrimas de desespero borravam
a imagem de vencedora de Íris.
Íris Mallory atravessava o jardim e se aproximava dela. Enquanto andava,
lembrava da conversa que tinha tido com Burke instantes atrás. As palavras feriam seu
orgulho ao voltar à mente:
— Oh! Burke, pensa mesmo que me enganou? Sei que não ama esta
insignificante Lilian... como poderia amá-la? Você olhou para ela com desprezo a noite
toda. Livre-se dela, Burke! Poderemos então ficar juntos. Fomos feitos um para o outro.
Fazemos parte do mesmo chão, do mesmo ar. Se você se livrar dessa menina idiota,
podemos ficar juntos para sempre!

59
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
Sabendo quanto era bela, Íris tinha quase certeza da resposta dele... e apoiou-se
em seus ombros.
Mas, ao contrário, ficou abalada e humilhada, quando Burke afastou-a de si. Mal
podia acreditar que a tivesse recusado.
— Sempre fomos amigos, Íris, e isso não deve mudar. Não desejo o seu corpo.
Nunca desejei.
— Mas eu estou lhe oferecendo o meu coração... o meu coração!
— Os dois são certamente a mesma coisa para uma mulher — respondeu ele,
dando meia-volta e deixando-a sozinha, para odiar Lilian ainda mais!
Observou Lilian, tão delicada e adorável em seu vestido carmesim, depois seu
olhar caiu sobre Tab, ao lado dela, inclinando a cabeça para comentar qualquer coisa.
Estava tão perto que até ouviu a risada de Lilian. Nenhum dos dois a tinha visto. E Íris
pegou um foguete e acendeu-o, esticando o braço na direção de Lilian.
Talvez só desejasse assustá-la, mas a saia foi envolvida em fogo. Os primeiros
gritos de alarme vieram de Rita Coe, que viu horrorizada o fogo subindo pelo belo
vestido. No mesmo instante, uma figura escura pulou perto dela, agarrou-se em Lilian e
com as mãos começou a apagar o fogo que a ameaçava. Lilian viu o rosto de seu
salvador: Jack Larchmont. E desmaiou. Alguém correu até a sala de jogo.
— Ryeland! Ryeland, é melhor que venha depressa! Houve um acidente! Sua
mulher... a roupa dela pegou fogo!
— O quê? — exclamou Burke derrubando a cadeira ao se levantar.
— Sua mulher... o vestido dela pegou fogo!
— O vestido... meu Deus! — jogou as cartas longe e saiu correndo.
O corredor parecia inacabável, até que conseguisse chegar ao jardim e depois até
onde Tab Gresham e Rita Coe estavam abaixados, ao lado de Lilian.
Ela parecia uma flor esmagada, um casaco de homem cobrindo o vestido em
trapos. Tab levantou os olhos para ele.
— Graças a Larchmont — disse ele. Jack, com as mãos queimadas fora da vista,
olhava desolado para Lilian. — Ele apagou o fogo com as próprias mãos. Ela não está
muito ferida.
— Como aconteceu? — perguntou Burke, ajoelhando-se ao lado da esposa, uma
veia latejando em seu pescoço, enquanto carinhosamente afastava os cabelos do rosto
de Lilian. Ela não se mexeu, continuando com os olhos fechados. Burke olhou
desesperado para Tab. — Meu Deus, como aconteceu? Alguém sabe? — perguntou,
olhando à sua volta.
Tab fez o mesmo e durante um segundo seus olhos pousaram em Íris, abraçada
ao pai. E teve a certeza! Sabia o que tinha acontecido, apesar de seu coração não
querer acreditar. Mas não conseguia esquecer a pressão dos olhos dela no instante em
que Rita Coe tinha gritado. O rosto de Íris, no meio de toda aquela gente, revelou-se
como a própria máscara de ódio.
— Eu acho... acho que ela chegou perto demais do fogo. Ah... ela está
acordando... — Segurou a mão de Lilian entre as suas e depois falou-lhe suavemente:
— Está tudo bem, Lilian, tudo bem. Burke está aqui. Vai levá-la para casa.
— A minha casa está à disposição da sra. Ryeland — ofereceu o coronel. — Ela
pode ficar aqui, Tab.
Mas ele sacudiu lentamente a cabeça, sem levantar os olhos, para não ter que
enfrentar os de Íris.
— Não, Lilian ficará melhor em sua própria casa. Mas gostaria que emprestassem
alguns cobertores. E se tiver um pouco de conhaque...
— Naturalmente, naturalmente! — respondeu o coronel apressadamente se
afastando para providenciar a bebida e terminar com aquele episódio desagradável.
Pobrezinha, pensou ele, podia ter morrido! Logo voltou com o conhaque.

60
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
Tab colocou uma generosa dose no copo de Lilian e a fez beber. Ela estremeceu
em seus braços, mas logo começou a voltar à realidade, e lembrou-se do terror que
sentiu com as chamas envolvendo-a. Um soluço sacudiu seu corpo frágil, e mais outro,
até que repentinamente livrou-se de Tab e atirou-se cegamente para o calor dos braços
de Burke. Então ele a carregou através das pessoas que assistiram a tudo, penalizadas.
Foi direto para o carro. Impaciente com a demora dos cobertores, embrulhou-a
em seu sobretudo. Levantou a gola para protegê-la sentindo as lágrimas quentes caindo
em suas mãos. Depois sentou-se atrás do volante, deu a partida, fez a manobra e saiu.
As rodas chiavam pela estrada vazia. Ainda abalada, Lilian olhava a noite escura.
Só começou a sair de seu torpor quando o carro parou em frente aos degraus de pedra
de King's Beeches. Burke deixou-a um instante para tocar a campainha e chamar
Tolliver. Voltou e carregou-a no colo pelos degraus. Não suportando mais o seu silêncio,
Lilian murmurou em pânico:
— Por favor, por favor, Burke, não fique zangado comigo! Não posso aguentar!
— Zangado? Mas eu não estou zangado, Lilian! — seu olhar não dizia nada.
— Então... então por que está olhando assim para mim?
— Não estou zangado — repetiu. A porta se abriu e ele passou por Tolliver, com
Lilian nos braços. Tolliver fechou a porta e depois virou-se para Burke, muito pálido com
a esposa nos braços.
— Houve um pequeno acidente — explicou Burke. — Nada grave. Mas quero que
traga algumas garrafas com água quente para o quarto da sra. Ryeland. E alguma
bebida quente.
Depois atravessou o hall, sem dar a oportunidade de o criado dizer nada, subindo
os degraus de dois em dois.
Lilian não podia mais pensar coerentemente. Burke empurrou a porta e finalmente
colocou-a na cama. Acendeu as luzes, avivou o fogo da lareira e ficou ao lado dela.
Com uma infinita delicadeza, tirou o que restava do belo vestido, a combinação e
vestiu-lhe a camisola. Sorriu e puxou as cobertas até o queixo.
— Que tal me acha como camareira? — caçoou.
— Você... você é muito bom.
Ela ficou pensando nas mãos queimadas de Jack Larchmont, a cena terrível das
chamas subindo pelo seu vestido. Mas corajosamente sorriu para Burke, observando-o
quando foi até a porta atender à discreta batida de Tolliver.
Quando voltou estava carregando garrafas com água quente, e uma caneca de
prata com uma bebida fumegante. Colocou a bandeja na mesinha e as garrafas entre as
cobertas.
— Não estão muito perto dos pés, estão?
Ela sacudiu a cabeça. Estava começando a sentir-se melhor.
— Agora vai-se sentar um pouquinho. Quero que tome o leite quente. — Sentou-
se ao lado da cama e envolveu-a nos braços, segurando a caneca enquanto ela tomava
aos golinhos.
O braço dele tocava levemente seu seio esquerdo. Percebia agora, sem sombra
de dúvidas, que amava aquele homem. Amava-o não como uma criança ama seu
protetor, mas com o coração dolorido e apaixonado de mulher. Mas, de repente, Jack
invadiu seu pensamento e ela estremeceu de horror. Baixou os olhos para a mão forte
de Burke. Como ela o amava! Não podia esquecer Jack, mas cada nervo de seu corpo
vibrava por Burke. Não queria que Jack a tocasse outra vez, nunca! Amava a Burke,
embora ele não quisesse o amor de ninguém!
— Eu... eu não quero mais — ela disse afinal.
Ele colocou a caneca sobre a mesa. Acomodou-a nos travesseiros e viu seus
olhos cheios de lágrimas.
— Não precisa mais chorar, Lilian — exclamou, curvando-se e secando-lhe as

61
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
lágrimas. Mas elas continuavam a cair e, num súbito impulso, tomou-a novamente nos
braços, embalando-a docemente. — Vai acabar doente. Por favor, pare de chorar! Por
favor, menina!
Acalmou-se um pouco, os olhos ainda vermelhos prenderam-se em Burke.
— Sinto muito, Burke, mas precisava chorar. Não pude evitar.
— Pobrezinha, eu compreendo. Teve um medo horrível. — E então pensou do
que ela havia escapado e abraçou-a. Por algum tempo os dois ficaram em silêncio. Ela
pôde sentir o coração agitado dele contra o seu peito. Depois, ela afastou o rosto ainda
marcado pelas lágrimas e ergueu os olhos para ele:
— Obrigada por ser tão bom, Burke.
Ele sorriu e acariciou seus cabelos.
— Você está mesmo uma coitadinha. Quer dormir agora?
Ela concordou e ele mais uma vez acomodou-a entre as cobertas.
— Está mais quente agora?
— Estou ótima — respondeu, o rosto revelando a exaustão que a dominava.
Lentamente baixou as longas pestanas e a boca foi se relaxando.
Como Peter, pensou Burke, quando adormece. Lilian mergulhou rapidamente
num sono profundo, enquanto Burke examinava aquele rosto tão suave com uma ponta
de cinismo. Como esta mocinha tão inocente podia ter estado havia poucas horas
abandonada nos braços de Jack Larchmont?
Burke levantou-se da cama, desalentado. Bem, a vida era dela e tinha o direito de
fazer o que quisesse. Não tinha nenhum direito sobre ela. Se queria Larchmont, como
poderia proibir? Afinal de contas, Larchmont fora o homem que ferira as mãos para
salvá-la do fogo.
Burke baixou a luz do lampião, pois lembrou-se que Lilian não gostava da
escuridão daquele imenso quarto.

Capítulo 15

Tab Gresham desceu as escadas, atravessou o hall e bateu na porta do escritório


de Burke. Suas sobrancelhas arquearam-se ao encontrar a sala envolta numa pesada
nuvem de fumo.
— Está querendo se matar de tanto fumar, homem? — reclamou, aproximando-se
de Burke jogado numa poltrona.
— Como está ela, Tab?
— Exausta. Exausta e infeliz. Ela me disse que você não subiu para vê-la, e que
manda Moira ver como está. Acho isto uma crueldade, Burke. Aquela menina lá em cima
quase morreu na noite passada.
— E o nosso precioso galã, Larchmont? — perguntou Burke, irônico. — Como
está?
— Tem queimaduras bem sérias — respondeu Tab, intrigado com a atitude de
Burke. — O que está acontecendo com você?
— Nada — respondeu Burke com ar de surpresa. — Não acontece nada mesmo.
— Pensa que sou bobo? Estava se portando estranhamente ontem à noite,
ignorando Lilian, desaparecendo com Íris...
— Fazendo o quê?

62
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
— Não tente negar! — exclamou subitamente irritado. — Vocês dois sumiram um
pouco antes dos fogos começarem!
— Ah, então estava espionando? — respondeu Burke, os olhos brilhando
perigosamente. — Tab, eu sou um homem casado e não quero saber de outras
mulheres e muito menos de Íris. Pode ser que isto o surpreenda, Tab, mas Íris me deixa
completamente frio.
— Então, por quê?
— Por que ela me carregou para o terraço? Queria me mostrar as lanternas
chinesas.
Tab fez um gesto de impaciência.
— Não costumo espionar ninguém. Sabe disso muito bem, Burke. É que... que
não gosto de ver nada que possa estragar o seu casamento. Lilian... Lilian é uma ótima
moça.
— É mesmo? Ora, Tab, isto se chama julgar um livro por sua capa. Eu fiz o
mesmo erro.
— O que está querendo dizer?
— Estou querendo dizer que eu pensei que ela fosse uma criança. Pensei que a
tinha tirado do berço. Fiz isto deliberadamente e agora tenho que pagar o preço por
fazer loucuras assim... o preço das ilusões despedaçadas. — Levantou os olhos para o
rosto atônito de Tab. — Lilian apaixonou-se por outra pessoa, meu velho. Eu sabia que
isto podia acontecer, mas eu pensei que ainda demoraria séculos. Parecia tão... tão
imatura, como se estivesse debaixo de um encanto. Acho que estou condenado a fazer
erros no julgamento sobre pessoas... não, com as mulheres com quem me envolvo.
— Não com Lilian! — Tab insistiu teimosamente. — Nunca diga que Lilian seria
capaz de trair sua confiança. Ela é completamente pura! Eu apostaria minha vida nela!
— Mas Tab, não estou falando do que poderia acontecer! Estou falando do que
realmente aconteceu. — O sorriso de Burke estava agora ainda mais amargurado.
— Eu não acredito! Não acredito que Lilian faça alguma coisa errada! — Inclinou-
se para o amigo: — É Larchmont? Está pensando que ele...
— Larchmont e Lilian estão apaixonados. Não sei até onde eles chegaram, mas
conhecendo-o como conheço, não tenho muitas dúvidas.
— Meu Deus! — lamentou Tab. Lembrou-se do rosto agoniado de Jack, enquanto
apagava com as próprias mãos as chamas que ameaçavam Lilian. E esta manhã,
quando fora fazer seu curativo encontrara o rapaz com humor sombrio. Nada dos
comentários cínicos de sempre. Tab tinha atribuído o silêncio à dor nas mãos... mas
agora... agora Burke tinha revelado a provável razão. Tab estava chocado e confuso.
— Peter é realmente seu filho, Burke? — perguntou repentinamente.
Burke levantou a cabeça surpreso, os olhos semicerrados.
— É uma pergunta muito estranha, Tab.
— Eu sei. — Tab passou a mão pelos cabelos, embaraçado. Não era de sua
natureza intrometer-se na vida dos outros. Entretanto, lembrando-se de Lilian perdida lá
em cima, tentando segurar as lágrimas quando se queixava que Burke não viera vê-la,
sentia-se compelido a ir até o fim naquele mistério. — Eu sei, Burke. Mas o caso é que...
certos aspectos de seu casamento são realmente intrigantes. Não posso engolir esta
história que Lilian esteve realmente no Peru.
— E não esteve — respondeu. — Lilian e eu nos conhecemos há dois meses, em
Hastings... eu tinha uma forte razão para querer uma esposa depressa.
— Peter?
— Isto mesmo. Ele é filho de Philip.
Tab não sentiu nenhum choque. Na realidade, aquela súbita conversão de Burke
à vida familiar soara falsa desde o princípio. Casamento, bebês... e Burke! Burke, que
sempre seguira livremente seu caminho... Mesmo Dani Larchmont, tão linda e atraente,

63
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
não tivera condições de prendê-lo.
Dani Larchmont! Os olhos de Tab repentinamente se arregalaram. Somente
alguns meses separaram sua morte da de Philip. E por que uma criatura jovem morreria
assim? Um acidente ou uma doença fatal. Ou o nascimento de uma criança!
— Dani Larchmont foi a mãe de Peter, não foi, Burke?
Burke abanou a cabeça concordando.
— Chocante, não? Eu pelo menos tive a decência de me contentar com alguns
beijos. E, mesmo assim, aqueles poucos beijos a atiraram nos braços de Philip. Foi por
culpa minha que isso tudo aconteceu. Eu fui embora, fugi dela, porque confessou que
me amava. Mas eu não queria amor. Amor aprisiona um homem, pensei. E por mais
alegre e bela que fosse não queria me prender. Fui para o Peru e deixei-lhe uma carta,
dizendo que nunca poderia me casar com ela, friamente disse que procurasse alguém
que lhe pudesse oferecer casamento. Desconfio... desconfio que, depois disto, procurou
Phil. Ambos agiram sem escrúpulos. O resto você já sabe. Phil morreu e me casei com
Lilian para que Peter pudesse vir para cá como meu filho. Agora é meu filho. Eu o adotei
legalmente. — Levantou-se e foi até a escrivaninha, onde pegou outro cigarro e
acendeu. — O meu casamento é uma fraude, Tab. Eu não tenho vida conjugal com
Lilian. E quando vier me pedir sua liberdade, tenho que lhe dar.
— Porque acha que ela ama Larchmont?
— Exatamente por causa disto.
— Mas... mas como pode ter tanta certeza?
Burke deu meia-volta e seus olhos azuis, agora duros e frios, enfrentaram o
amigo.
— Eu os surpreendi juntos. Eu a vi nos braços daquele sujeito. Não são
alucinações, pode acreditar. Sei do que estou falando.
— Lilian? Pois eu mal consigo acreditar!
— Pois é verdade. Estava nos braços de Larchmont e ele beijava seu pescoço. A
princípio pensei que estivesse agarrando-a à força. Queria até dar uma surra nele, mas
Lilian impediu, chegou a implorar para que eu não fizesse nada. — Os olhos refletiam
sua mágoa. — E deixei seu namoradinho intacto.
Levantou os olhos para Tab.
— Acho que foi sábio se apaixonar por Íris. Ela pelo menos não finge ser nenhum
anjo. Se algum dia a conquistar, saberá exatamente o que esperar. Não alimentará
ilusões vazias. Ilusões perdidas machucam. Machucam como o diabo!
Tab não sabia o que responder. Também tinha recebido um golpe.
— Estou de saída, homem. Ainda tenho algumas visitas a fazer. Disse a Lilian
para passar o dia deitada. Não deixe que se levante.
— Ela... está bem?
— Está ótima. Mas precisa de repouso. — Tab ainda ficou um instante na porta:
— Burke, nunca lhe ocorreu que talvez Jack Larchmont saiba o que Peter é de Dani e
Phil?
Burke olhou para Tab surpreso, depois sacudiu a cabeça:
— Polly Wilmot, a tia de Dani, me garantiu que Jim Larchmont era a única pessoa
que sabia sobre Peter. Ele não pôde estar presente ao funeral porque sua esposa Vera
teve uma crise, mas logo que conseguiu, deu um pulo até Hastings e ela lhe contou
sobre Peter. Mas não teve coragem de levar a criança de volta com ele, pois temeu que
o choque matasse a esposa. Vera sempre fez planos ambiciosos para a filha, querendo
que se tornasse uma Ryeland.
— Mesmo assim, eu ainda acho que Jack pode ter descoberto.
— Não é possível — contestou Burke, com convicção. — Ele não estava vivendo
em casa quando Dani morreu. Estava na Irlanda, ajudando a treinar cachorros de caça.
E só voltou para Somerset uma semana depois da morte de Dani quando foi despedido

64
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
de seu emprego. Não, Tab, não sabe de nada. Se soubesse ele se teria aproveitado
disto. Ele não é do tipo que recue diante de chantagem.
— Belo caráter... E ainda assim acha que Lilian...
— Oh! Deus, não vamos falar novamente sobre isto! — protesto Burke. —
Larchmont não presta, mas Lilian o quer. Quem sabe... fará dele um homem melhor? O
que fez ontem à noite, poucos homens fariam.
— Isto é verdade. — Tab pensou nas graves queimaduras que Jack sofrera nas
mãos e nos braços por Lilian, e também notara que ele estava abalado e mudado.
Amor... o que é o amor? Seu amor por Íris sempre lhe parecera eterno e imutável,
entretanto tinha ficado reduzido a cinzas na noite anterior, no mesmo instante em que
Jack Larchmont salvava a vida de Lilian.
Terminado... reduzido a cinzas... tudo o que sentia agora por ela era repulsa.
Sentia-se aliviado ao perceber que Burke não tinha ideia de que fora Íris quem tinha
causado o acidente.
Então, Tab deu um fundo suspiro e abriu a porta, despedindo-se de Burke.

Lilian olhava para o dossel de sua cama, os olhos ainda maiores no rostinho
pálido, refletindo um medo bem diferente do que tinha sentido na noite anterior.
A fogueira em Mallory Court fora um verdadeiro pesadelo, mas seu medo agora
era ainda pior.
— Acho melhor a senhora ir, madame. — Falou Betty. — Jack disse que se a
senhora não for ele vem até aqui. Disse que vai esperar no bosque pela senhora a tarde
toda...
Lilian mexia-se agitada. Como poderia ir? Era domingo e Burke estava em casa.
Burke! Não tinha vindo vê-la. Em vez disto, mandava Moira perguntar como estava
passando, assim como Jack mandava Betty. Mas Jack tinha dito que precisava vê-la!
Que queria vê-la!
Cada vez que o relógio batia os quartos de hora, Lilian ficava mais angustiada,
sentindo que seu tempo estava acabando. Logo a tarde terminaria...
Subitamente escutou o relincho de Rebelde. Ficou paralisada. Seria mesmo
Rebelde? Levantou-se, apoiando-se nos cotovelos, e escutou nitidamente os relinchos
de Rebelde, quando Burke o montava.Os cascos de Rebelde se chocavam com o chão
de pedra. Os ruídos ficando mais distantes até sumirem completamente.
Vestiu-se apressadamente e passou um pente nos cabelos, com as mãos
trêmulas. Cinco minutos depois, saiu da casa e correu pela alameda.
Entrou na floresta. Agarrou o camafeu que Burke lhe presenteou na véspera,
como se pudesse protegê-la.
— Então veio? — disse uma voz quente atrás dela.
Lilian virou-se e viu Jack Larchmont. O camafeu escapou de suas mãos,
escorregando de volta ao pescoço.
— Está pálida, minha querida — murmurou ele. — Conseguiu dormir?
— Eu... eu estou bem. — Seu olhar caiu sobre as mãos enfaixadas, e um vinco
de preocupação surgiu em sua testa. — Eu... espero que suas mãos não estejam
doendo muito. Por que... por que fez aquilo?
— Você sabe o porquê — disse, os olhos subitamente brilhantes.
Lilian sentiu o sangue queimando seu rosto e, sem pensar, gemeu assustada, as
mãos levantadas.
— Não! Por favor!
— Por quê? Ainda me odeia?
— Não, não — respondeu, sacudindo a cabeça. — Eu não o odeio. Você me
salvou a vida. Não posso odiá-lo.

65
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
— E pode me amar?
— Eu... não posso! — Afastou-se dele, encostando a testa no tronco de um
carvalho. — Não posso! Eu amo Burke. Ele é tudo para mim!
— E o que acha que é para ele? Um pequenino parafuso em sua infernal máquina
de mentiras... nada mais. Quando for conveniente se livrar de você, não tenha dúvidas
que o fará! Ele só vive para seus interesses egoístas, ainda não descobriu isso? Oh, é
amável e delicado, mas não se iluda, Lilian. Eu o considero responsável pela morte de
minha irmã. Envolveu-a, fez com que se apaixonasse por ele e depois abandonou-a. E
diz que o ama! Como consegue?
— Sempre... sempre foi muito bom para mim. Uma vez me falou sobre sua irmã,
disse-me como era linda. Não queria destruir a vida dela...
— Não me venha com essa! — Jack protestou irritado. — Dani foi mais um
brinquedo de que ele se cansou. Largou-a e foi embora!
— Não é assim! — disse Lilian na defesa de Burke. — Burke garantiu que Peter
vai herdar King's Beeches. Não está preocupado que, se algum dia tiver seu próprio
filho, virá em segundo lugar.
— E quem lhe dará este filho... você? Não venha me dizer que é seu amante!
Você nunca teve um amante!
— Não — respondeu, afastando o olhar de Jack. — Nunca tive um amante.
— Mas agora terá um, Lilian. No começo virá comigo forçada, mas depois se
apaixonará por mim. O fogo do meu amor também a consumirá, Lilian!
— Oh, não! Não quero que me fale estas coisas! Eu nunca poderia amar você!
Nunca... nunca... nunca!
— Tudo pode terminar num minuto, Lilian. Então? Quando posso ir conversar com
seu marido? Esta noite? Quanto mais cedo conseguir o divórcio, melhor.
— Divórcio! Do que está falando?
— Do seu divórcio, amor. Eu quero me casar com você. O que pensou que eu
queria?
Lilian olhou para ele. Casamento? Com este homem?
— Deve estar louco! Eu prefiro morrer a me casar com você!
— Isto não é nada lisonjeiro, minha querida. Mas nunca fui homem de apreciar
conquistas fáceis. Por que tem tanta repugnância pelo amor? Não acredita que a ame?
— Acho que... pensa que me ama. O verdadeiro amor não é exigente e
insensível. O amor é querer dar, não tomar!
— Deve entender disto, apaixonada por Ryeland como está. Mas vai ter que
esquecê-lo. E vir comigo!
— Não! Eu... eu não posso! Por favor, Jack...
— Por favor, Jack... — imitou. Depois chegou mais perto dela, excitado pelo medo
nos seus olhos. — Malditas mãos! — exclamou. — Eu quero beijá-la, Lilian, preciso de
você!
— Não, não!
Ela virou-se e fugiu correndo, soluçando. Quando chegou à alameda, suas pernas
mal aguentavam o corpo. Só desejava chegar em casa, voltar para seu quarto. Lá
estaria protegida. Jack não a alcançaria lá... Olhou para trás, não a seguia. Mas o alívio
durou pouco. Ao chegar ao pátio, Rebelde trotava vindo do outro lado da casa e Lilian
encarava Burke.
Seu coração batia loucamente, quando ele desmontou e com a mão agarrou-a
com força. Seu rosto estava severo e, nos longos momentos em que a fitou, Lilian ficou
sem saber o que fazer.
— Sei onde esteve, naturalmente — Burke disse, afinal. — Foi ver Jack
Larchmont. — Fixou as mãos nos ombros frágeis. — Deve ter sido uma terrível agonia
ter de esperar que eu saísse. — Soltou-a. — Vá até o meu escritório. Lá poderemos

66
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
conversar.
Obedeceu sem discutir. Ele chegou lá dez minutos mais tarde. Lilian estava
encolhida no chão, perto do fogo, muito pálida.
Burke encostou as costas na porta, os olhos frios, fixos nela. Aquele seu ar infantil
e ingênuo tornava seu desprezo ainda mais profundo.
— Quero que saiba, Lilian, que não vou tolerar uma esposa vivendo comigo e
tendo um caso com uma criatura desclassificada como Jack Larchmont, aproveitando-se
de minha ausência para encontrá-lo. Se está assim tão louca por ele, acho melhor ir
para lá de uma vez. Tem toda a liberdade para ir com ele, Lilian. Vá agora. Nossa
mentira ridícula... está cancelada. Não vai precisar se contentar com alguns minutos
apenas para dedicar a seu amor. Está livre... e eu prefiro que vá esta noite mesmo.
Deu as costas para ela e acendeu um cigarro. Lilian levantou-se e saiu
silenciosamente, fechando a porta atrás de si. Neste instante, a máscara caiu. O orgulho
ferido sumiu e só restou a lembrança dela na noite anterior, tão frágil, aconchegada em
seus braços. Tragou e soltou a fumaça, lentamente. Então isto... isto é que era um amor
não correspondido, que despedaçava o coração, deixando-o ferido e humilhado? A sala
estava vazia, na penumbra, e uma chuvinha fina começava a cair lá fora. Um gemido
surdo saiu de seu peito. Sabia naquele momento que estava pagando plenamente o
amor desesperado e não correspondido que Dani Larchmont lhe devotara.

Capítulo 16

O jantar terminou e Burke recusou secamente o convite do avô para um jogo de


cartas. O velho senhor levantou-se enquanto observava o neto com olhos atentos. Lilian
não apareceu. O sr. Ryeland perguntou por ela. Burke explicou, frio, que havia deixado
King's Beeches, provavelmente para sempre. Não explicou a causa. Mas parecia estar
sofrendo muito.
— Que é isto, Burke, não vai se importar com aquelazinha, vai? — perguntou com
sua arrogância costumeira. — Acho que teve sorte de se livrar dela.
— Tive mesmo? — perguntou Burke, com ironia.
— Lógico que sim. Nunca entendi o que viu nela. Ela nem sabe conversar!
— Quem sabe não era sua conversa que eu admirava — retrucou, apertando as
mãos.
— Mas ainda tem o menino — disse o avô. Lembrou-se das vezes em que o vira
risonho no colo dela, tão doce e meiga. — Ora, Burke, se queria tanto a menina, por que
a deixou ir?
— Porque o que quero não coincide com o que ela quer.
— O que há com você, rapaz? — perguntou o avô espantado. — Está de miolo
mole? Se a quer, vá atrás dela, dê-lhe uma boa sacudida e a traga de volta. Ela adora
aquela criança lá em cima. Não voltaria por ela?
Burke não respondeu. Acendeu um cigarro, com gestos bruscos, tão diferente de
sua habitual calma.
— Lilian não voltará — respondeu afinal. — Não há nada aqui que ela deseje.
Mas o senhor pode ficar satisfeito, pois conseguiu o que queria. — Levantou-se e saiu
da sala, dirigindo-se para seu escritório, mas a voz de Tolliver o segurou. — Sim,
Tolliver? — disse irritado.

67
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
— O sr. Jack Larchmont está aqui, senhor — disse o mordomo. — Levei-o para a
biblioteca.
— Jack Larchmont! — Depois de leve hesitação, Burke caminhou com passos
largos para a biblioteca.
Jack estava sentado no sofá, com as mãos enfaixadas. Olhou para ele com
insolência.
— Boa-noite, Ryeland.
— O que está fazendo aqui?
— Vim pedir-lhe que liberte Lilian.
Burke teve ímpetos de torcer o pescoço de Jack, mas controlou-se.
— Mas já disse a Lilian que lhe daria o divórcio. Ela não precisava mandá-lo aqui.
— Mandar-me, aqui? — Jack perguntou sem compreender. — Ninguém me
mandou aqui, meu velho. Do que está falando?
— Bem, ela está em sua casa, não está, Jack? Naturalmente eu pensei que...
— Em minha casa? Na fazenda? — Jack ficou tenso e seus olhos pousaram
desconfiados em Burke: — Que história é esta, Burke? Lilian não está em minha casa.
— Mas tem de estar! Tem de estar! Eu disse a ela que era livre e que podia ficar
com você!
— Você fez isto? E pode me dizer quando?
— Há duas horas e meia. — Sem querer Burke perdeu o controle e colocou a
mão no ombro de Jack. — Não venha com brincadeiras comigo, Larchmont! Eu sei
muito bem que Lilian está em sua casa. Onde mais ela poderia ir?
— Este é o problema. Para onde poderia ir, Ryeland? Sim, porque juro que não
está em minha casa.
Burke olhou para o rival, examinando o belo rosto insolente.
— Larchmont, não estou disposto a me comportar como idiota.
— Posso ser muitas coisas, Ryeland, mas não sou mentiroso. Não tenho a menor
ideia onde Lilian possa estar... se não está aqui!
— Ela... não está aqui. — Burke largou o ombro de Jack e explicou: — Disse a ela
para ir, para sair daqui. Pensei naturalmente que iria para junto de você... que é amante
dela.
— Eu sou o quê? É isto realmente o que pensa?
— Eu vi vocês dois juntos.
— Ah, sim, no bosque, em Mallory Court. E queria quebrar meu pescoço, não é?
Teria feito isto, sem dúvida, se Lilian não tivesse impedido. Ela tem um coração sensível.
— Jack olhou para Burke, com ódio. — Então teve uma discussão com Lilian e
expulsou-a do lar de seus ancestrais? — Agitou as mãos enfaixadas para as janelas,
onde a chuva fina batia. — Devo reconhecer que escolheu uma bela noite, Ryeland.
Lilian está lá fora, na chuva, sabe-se lá onde...
— Meu Deus, acha que eu não sei disso? — Burke estava atormentado,
chegando perto da janela. — Eu... tinha certeza que ela correria para você, Larchmont.
— Depois deu meia-volta e Jack viu, completamente pasmo, a máscara de imenso
sofrimento em que se transformou o rosto de Burke. — Será que fui injusto com ela? Eu
precisava saber, Larchmont. Preciso saber o que você significa para Lilian!
— Mas você sabe, meu velho — respondeu Jack com cinismo, conseguindo
reacender o ciúme que sentiu naquela mesma tarde.
— Maldição, Larchmont, não serve para ela! Você a envolveu...
— Eu a envolvi... — Jack olhava para Burke, seus olhos negros revelando todo o
ódio que sentia. Nenhum dos dois percebeu que a porta tinha sido aberta. — Você é
quem sabe como se faz para se envolver uma moça, não é Ryeland? Agiu assim com a
minha irmã... e depois a abandonou! Ela também não servia. O sangue camponês não
podia se misturar ao seu, não é? Meu Deus, Phil não hesitou em se aproveitar da

68
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
fascinação que os Ryelands tinham sobre ela. Esta criança é de Dani e Phil!
Neste instante um gemido abafado interrompeu o diálogo e os dois viram o velho
sr. Ryeland na porta. Então era isto! Ele sabia sobre Peter!
— Isto não é verdade! É uma infâmia contra o meu rapaz! — exclamou o velho. —
Vou expulsá-lo de King's Beeches por causa do que disse, Larchmont!
— Mas é verdade — insistiu Jack, a coragem insolente não o abandonou. O velho
se aproximou dele, Jack continuou sorrindo desafiadoramente e foi esbofeteado uma,
duas vezes.
— Não há necessidade disso, senhor — disse Burke, segurando o avô pelos
ombros. — Não deve se importar com o que ele diz.
— Para o diabo com isto! — protestou Jack, com a boca machucada pelos golpes
do sr. Ryeland. — Está na hora de este orgulho idiota e cego ser eliminado desta casa!
E que a verdade enfim apareça! Este garoto, Peter, não é filho de Burke. É de seu
precioso Philip... e de minha irmã.
— Cale a boca, maldito! — exclamou Burke.
— É... de... minha irmã! — Jack repetiu devagar, sem se importar com Burke. —
Minha irmã, Dani Larchmont! E quer saber de mais coisa? Philip casou-se com minha
irmã! Sim, se casou com ela! E tinha tão pouca certeza do seu afeto que implorou a Dani
para manter segredo. Sabia que o expulsaria de King's Beeches, se descobrisse que ele
era bastante humano para se apaixonar. Ele sabia que tinha que dar corpo e alma para
esta casa maldita...
— Está falando a verdade, Larchmont? — perguntou Burke. — A tia de Dani não
me disse nada sobre o casamento entre ela e Phil.
— Ela não sabia. Tia Polly é muito linguaruda e Dani achou melhor esconder dela.
Eu só descobri a verdade porque passei alguns dias com Dani em Londres. Fui remexer
as gavetas à procura de dinheiro e encontrei a certidão de casamento. Ficou histérica
quando falei sobre isto. Ela não queria Phil, queria você! — exclamou Jack com ódio. —
Sabe o que ela fez? Arrancou a certidão de minha mão e jogou no fogo! E disse que não
se incomodaria de manter aquele miserável casamento em segredo.
— E permaneceu em segredo — disse Burke. Os ombros de seu avô tremiam
incontrolavelmente sob suas mãos. — Não fique culpando Phil. Dani Larchmont era uma
moça adorável. Phil era bastante jovem para se impressionar com isto. Eu também... —
disse ao avô.
— Você! — Com um safanão, o velho se libertou das mãos de Burke. — É ainda
mais desprezível do que Philip e esta menina Larchmont... me enganando desta
maneira! Por que não podia me dizer que o menino era de Philip?
— Não me atrevi! A única coisa que eu achava correto era que Peter viesse para
King’s Beeches, mas eu sabia que ele teria pouca chance se soubesse que era filho de
Dani Larchmont... e de Phil, fora do casamento. Não sei porque odiava tanto aquela
moça!
— E eu não sei por que tinha que se apaixonar por ela! Uma dançarina cigana!
— Eu, apaixonado por Dani? Eu nunca amei Dani!
— Andava com ela por todos os lados. Pensa que não sabíamos sobre isto? A
mãe dela vivia contando do namoro de sua preciosa filha...
— Eu nunca amei Dani! Admirava sua beleza, mas nunca quis mais de que sua
amizade! Quando percebi que ela queria mais do que isto, resolvi me afastar. Naquela
época o meu egoísmo não me deixava acreditar que existia amor!
Por algum tempo Burke ficou calado olhando o fogo. Seus olhos se levantaram
para o avô e ele continuou:
— Não podia deixar que o filho de Dani fosse atirado num orfanato. E foi muito
bom encontrar Lilian... Havia nela uma aura de inocência que tornaria qualquer farsa
real. Assim, achava que aceitaria Peter sem restrições, se o visse... nos braços de Lilian.

69
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
— Muito esperto de sua parte! — protestou o velho. — Sempre se achou, não é?
Mais esperto que um mero fazendeiro. Bem, este lugar não precisa de você. Posso
empregar um gerente para fazer o que faz. King's Beeches não precisa de você... assim
como aquela menina... e nem eu! — Sacudindo o dedo no nariz de Burke, repetiu: —
Nem eu!
— E o menino? Pela lei, agora é meu filho. E se eu o levar embora? O que vai
sobrar para o senhor a não ser um amontoado de tijolos? Por mais que o ame, pode
segurá-lo nos braços e escutá-lo rir? Pode me dizer, com toda a sinceridade, que odeia
Peter?
— Eu... eu — o velho orgulhoso vacilou. — É filho de Philip...
— Sim, é filho de Philip. Pode odiá-lo ao saber que o sangue de Philip corre em
suas veias?
— Fique quieto! — ordenou o avô em voz alta.
— Então faria isso? Teria coragem de expulsar Peter e eu para fora desta
cidadela de orgulho onde vive? Se é isto mesmo o que quer, vamos embora esta noite
mesmo!
Os olhos azuis desbotados, cheios de raiva e dor encararam os de Burke.
— Não! — disse afinal, os ombros perdendo um pouco da rigidez. — Somos um
par de idiotas, gritando um com o outro. O garoto fica, é lógico que fica! Vocês dois
ficam, você também! Disse coisas absurdas agora há pouco. Estava revoltado porque
não tinha me contado a verdade. Mas não quero perder Peter!
— Dani era a mãe dele — disse Burke. — Se não tivesse resolvido detestá-la
somente porque era bela, rebelde e porque dançava para viver, estas cenas nunca
precisariam ser vividas e Philip não teria achado melhor manter seu casamento em
segredo. Se aceita Dani, eu e o menino ficaremos. Não quero feri-lo mais do que já foi
ferido.
— Você me mataria se levasse o garoto embora. Eu não sou feito de pedra. Não
quero passar o pouco tempo que ainda me resta mergulhado em solidão e remorso...
embora seja isto que mereça. Aqui é o seu lar. Será herdeiro e pode proteger o garoto.
— Aqui, o meu lar? — repetiu Burke com desalento. — Só se tivesse conseguido
deter Lilian.
— Mas o casamento não foi uma farsa também?
— Sim.
— Seu tolo, idiota. Não me admiro que ela o tenha abandonado! Este sangue
francês em suas veias!
Jack Larchmont deu uma gargalhada e imediatamente o velho Ryeland virou-se
para ele, os olhos soltando chispas.
— Fora de minha casa, antes que eu chame os cachorros!
— Eu já vou, não se preocupe — respondeu Jack. Na porta, voltou-se para Burke:
— Estava mesmo surpreso por eu saber que não era pai do garoto?
— Naturalmente — respondeu Burke. — Pensei que faria chantagem se
soubesse. O que o fez hesitar?
— Talvez eu não tenha hesitado! — respondeu o outro enigmaticamente. Depois
saiu da biblioteca deixando a porta aberta.
Burke ficou ali parado, as palavras de Jack martelando sua cabeça. Lembrou-se
do rosto de Lilian naquela tarde, pálido, ferido, atormentado. Meu Deus, será que ele
tinha cometido um erro?
"Talvez eu não tenha hesitado", disse Jack.
Então Burke estremeceu violentamente quando o avô pôs a mão em seu ombro.
— Rapaz, para onde foi a menina? Se foi para Londres, vá atrás dela. O próximo
trem sai às oito e quarenta e cinco.
— Eu... eu não acho que ela me ama, senhor. Eu lhe disse para ir embora e ela

70
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
foi. Acho que ela gostou de escapar das mentiras... Odiava todas estas mentiras! Ela
sempre disse que eu devia contar-lhe a verdade. Meu Deus, será que algum dia vou
deixar de cometer tantos erros?
— Vá para a estação — insistiu o velho. — Se não for, cometerá o pior erro de
sua vida!

Capítulo 17

Aquele velho, pensava Jack saindo de King's Beeches, falando como se Deus
recompensasse as pessoas pelas perdas. Já estava perto dos portões quando o carro
de Burke passou por ele e freou.
— Entre! — convidou Burke. — Eu o deixarei na fazenda.
— Não, obrigado...
— Mas é caminho para mim...
— Caminho para a estação? — O sorriso de Jack era amargo. — E acha que
pode ser generoso com um chantagista?
— É isto mesmo, Larchmont. Gostaria de quebrar o seu pescoço!
— Mas depois se lembra que salvei a vida de Lilian e volta a ser generoso —
disse Jack, o belo rosto cínico molhado pela chuva. — Pois eu pensei na estação há
mais de meia hora... mas o fato é que eu tinha todos os fatos e você não...
— Você não presta — gritou Burke batendo a porta.
Levou vinte minutos para chegar à estação. Entrou pela sala de espera, irritado
consigo mesmo por causa da teia de intrigas em que tinha envolvido Lilian. Olhou em
volta. A sala estava vazia, a não ser por um fazendeiro esperando. Nada de Lilian...
Deu meia-volta e dirigiu-se para o balcão, batendo impaciente na janela. O
funcionário levantou a portinhola e olhou zangado para ele.
— Por que todo este barulho? Para onde deseja ir? — perguntou
— Olhe, achei que o trem para Londres só passasse às quinze para as nove. Mas
já passou...
— Não passou não! — O homem olhou para o relógio pendurado na parede: — O
senhor ainda tem dez minutos. Quer uma passagem?
— Não — respondeu Burke. — E que eu pensei que uma jovem senhora deveria
estar esperando o trem. O senhor não viu uma mocinha comprando passagem para
Londres? Por favor, é muito importante!
— Bem... — O homem esfregou o nariz e olhou desconfiado para Burke. — Havia
uma mocinha sim... pequena, magrinha, com olhos muito grandes...
— E ela! É Lilian! — Os olhos de Burke se iluminaram e seu grito ecoou pela sala.
— Quando foi isto? Por que ela não esperou?
— Calma, calma, não fique tão nervoso — exclamou o funcionário. — Acontece
que o dr. Gresham apareceu por aqui para buscar um pacote há uma hora atrás. Falei-
lhe sobre a moça, porque parecia estar doente quando comprou o bilhete. Ele foi até a
sala de espera e logo depois ele a levou embora daqui.
— Obrigado! Muito obrigado!
— Tudo bem — respondeu o homem, mas Burke já estava longe.
Burke guiou até a casa de Tab, que ficava do outro lado da cidade. A sra. Jarret,
governanta de Tab, atendeu à porta.

71
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
— O doutor não está em casa. Teve de atender ao chamado da mulher do
ferreiro, que vai ter gêmeos. — Logo reconheceu Burke. — O senhor!
— Sra. Jarret, minha mulher está aí? — perguntou Burke com ansiedade.
No sofá desbotado de Tab, toda encolhida, Lilian olhava desalentada para o fogo.
Ainda não tinha tido oportunidade de conversar com Tab, pois, logo que chegara, a sra.
Jarret informara que era esperado com urgência. Antes de sair, Tab fez Lilian prometer
que o esperaria. Cansada e com frio, emocionada com o interesse de Tab, estava
esperando-o. Fugir para Londres não adiantaria nada... e ela sabia que não teria
coragem de subir naquele trem.
Com um gemido, escondeu o rosto no encosto do sofá. O que faria com Jack?
Escutou então a porta da rua se abrir. Levantou a cabeça e olhou para a porta.
— Tab — começou a dizer, mas as palavras gelaram em sua boca ao ver Burke.
Burke, com os cabelos molhados e em desordem, tinha os olhos fixos nela enquanto
atravessava a sala. Ela encolheu-se mais, mas não havia maneira de escapar dele. Ele
inclinou-se, estendeu os braços e abraçou-a com paixão.
— Não tenha medo de mim, Lilian — pediu, aflito. — Oh! Minha querida, por que
não me contou que Larchmont estava chantageando você? Por que deixou que dissesse
as coisas cruéis que lhe disse esta tarde? Estou num verdadeiro inferno, pensando...
— Você... você sabe, Burke? — perguntou, tocando o seu rosto como para
certificar-se de que era real.
— Eu sei, Lilian. E meu avô também. A história toda e mais ainda. Todas as
mentiras se acabaram.
Rapidamente ele contou tudo o que tinha acontecido e o que tinha sido
descoberto. Quando a história toda terminou, Lilian estava abraçada a ele.
— Lilian, Lilian — murmurou. — Será que consegue me perdoar por ter duvidado
de você?
— Eu perdoaria qualquer coisa... perdoaria tudo! — respondeu. — Se tivesse
matado por ódio, ainda assim o perdoaria!
— Eu a amo! Eu a amo! — explodiu ele, enquanto seus lábios beijavam o rosto
dela, seu pescoço, até cobrirem os lábios palpitantes. Quando finalmente levantou a
cabeça, seus olhos azuis estavam brilhantes.
— Será que conheço você? — ela perguntou incrédula.
— Sou o homem com quem se casou... mas gostaria de ser seu marido...
— Gostaria mesmo? — riu feliz. — Acho que isto pode ser providenciado...
— Verdade, Lilian? — despenteou ainda mais os cabelos castanhos de Lilian.
Seus olhos não eram mais os de uma criança, pensou. Olhava-o como uma mulher. —
Eu te amo, Lilian, e muito, muito. Talvez mais ainda porque o amor chegou tão tarde
para mim.
— Mas Burke... e Dani Larchmont? Pensei que a tinha amado.
— Dani? Ela era minha amiga... você é meu amor. Eu a feri porque não a amava.
E na sua dor, ela se voltou para Phil.
— Oh, Burke, você não teve culpa por não a amar. Acho que ela não gostaria que
sofresse tanto por ela. Eu não gostaria!
— Mas você é só amor, só coração. Lilian, será que não sou velho demais para
você? Uma vez você pediu para ser minha filha...
— Eu não era uma tolinha? — perguntou, sorrindo. Depois sentiu-se novamente
tímida, pensando que o amor torna as meninas mulheres, e os homens meninos... —
Não quero mais ser sua filha. Estou bem crescidinha...
— Quando foi que você cresceu, Lilian?
— Acho que foi naquela noite em Londres — disse. — Beijei você, lembra-se?
Depois tentei me convencer de que tinha beijado por gratidão. Mas meu coração sabia a
verdade, e doeu a noite toda. Oh, Burke! Eu gosto tanto de você que não sonharia em

72
Bianca 160 – Um Presente do Destino – Violet Winspear
impedir que fizesse o que gosta. Eu nunca... nunca prenderei você!
— Sei disto, Lilian. Mas nunca mais me separarei de você. Estou tranquilo e a
sede de procurar terminou. Agora posso sossegar e me tornar um verdadeiro fazendeiro
inglês a seu lado.
— E também de Peter.
— Peter! Gostaria que Peter herdasse King's Beeches, se não se importar. Pode
ser que nós dois tenhamos um menino.
— Um garoto que vai querer percorrer os sete mares, e que não vai querer ficar
preso a um monte de tijolos e cimento!
Depois de algum tempo, ficaram calados, abraçados, até que uma voz falou atrás
deles:
— Muito bem, meus filhos, acertaram as diferenças?
— Alô, Tab — cumprimentou Burke sem qualquer embaraço. — Já acertamos
tudo. Até o fim!
— Ótimo! — Tab aproximou-se da lareira e deu uma mexida no carvão. Depois
acendeu calmamente o cachimbo. Sorriu para os dois: — A propósito, encontrei o
coronel Mallory esta tarde. Contou que ele e a filha estão de partida para a América.
— E você lamenta? Bem que tinha um fraco por Íris...
— Hum, mas isso foi há algum tempo. — Tab sorriu para Lilian, aconchegada
entre os braços de Burke. — Você parece estar muito à vontade. Conte-me uma coisa.
Falaram também sobre Jack Larchmont?
— Pobre Jack — ela murmurou. — Ele se queimou tanto!
De repente, Tab caminhou até o bar.
— Acho que devemos beber ao futuro. O que acham?
— Meu futuro depende de Lilian, portanto vamos beber em sua homenagem —
disse Burke, olhando para ela encantado. Os lábios delicados se abriram então num
delicioso sorriso e ele curvou-se e beijou-a.

73

Você também pode gostar