Você está na página 1de 16

Barbara Jeanne Fields. “Escravidão, Raça e Ideologia nos Estados Unidos”.

Tradução de Pedro
Ribeiro.

Barbara J. Fields. “Slavery, Race and Ideology in the United States of America”. New Left Review,
1/181, 1990, 95-118.

Há dois anos, um apresentador esportivo nos Estados Unidos perdeu seu trabalho porque falou
demais – ou seja, diante das câmeras televisivas – sobre suas opiniões acerca das “diferenças
raciais”. Quando perguntado o porquê da pouca presença dos negros entre os treinadores de
basquetebol, Jimmy “O Grego” observou que atletas negros já tinham vantagens como jogadores
porque eles tinham coxas mais longas que as dos atletas brancos, visto que seus ancestrais tinham
sido deliberadamente cruzados durante a escravidão para esse fim. “Essa história leva-nos até a
Guerra Civil”, explicou Jimmy O Grego, “quando, durante o tráfico de escravos, o dono, o dono de
escravos podia cruzar negros grandes com negras grandes para que parissem crianças negras
grandes”. Por incrível que pareça, Snyder estava tentando elogiar os atletas negros. Se negros
passassem também a serem treinadores, diz Jimmy, já não haveria lugar para brancos no
basquetebol. Envergonhada com essa expressão grosseira e aberta de racismo na sua forma mais
ignorante, a emissora demitiu Jimmy O Grego. Qualquer idiota deveria saber, deve ter pensado a
emissora, que esse tipo de comentário só se faz na privacidade do vestiário ou entre brancos, mas
não diante das câmeras e do microfone. É claro, Jimmy O Grego nunca reivindicou ser educado ou
bem-informado. Antes de ser contratado para manter as audiências entretidas preenchendo os
tempos vazios de eventos esportivos, ele era um apostador famoso. Ele diz que é especialista em
estatísticas e truques de aposta, não em história, biologia ou genética humana. Mas muitos que se
consideram educados – e nessa medida, empregados – provaram ser tão supersticiosos quanto
Jimmy O Grego. Como superstição predileta de gente ostensivamente educada, a crença na realidade
biológica da raça ultrapassa até a astrologia. Richard Cohen, liberal “da casa” do Washington Post,
escreveu uma coluna defendendo as assunções sub-reptícias da observação de Jimmy O Grego,
mesmo que se afastando do seu conteúdo. De acordo com Cohen, Jimmy estava errado porque
superestimava aquilo que poderia ser feito com o cruzamento deliberado de seres humanos – não
porque acreditava em raça humana. “Nos meus tempos de universidade”, diz Cohen, “eu estudei um
pouco de antropologia. Na antropologia física tínhamos uma coisa chamada “racialização e
sexualização de crânios”. Tratava-se de olhar para o crânio e determinar se era homem ou mulher –
e qual a sua raça”. O que não parecia incomodá-lo era a lógica circular desse raciocínio de definir
certas características como “raciais” pra depois apresentar diferenças nessas mesmas
características como prova de que “raças” diferem. Quando o assunto é fé religiosa, a razão não tem
vez. Cohen exprimiu aquele evento vergonhoso a uma frase que deveria ter-lhe sobreaviso do
pântano intelectual em que estava se enfiando: “Sim, Virginia, as raças são fisicamente diferentes”.

A maioria dos americanos vai entender a referência. Há muitos anos, um editor de jornal respondeu
a uma pergunta enviada por uma criança chamada Virginia, que então experimentava as suas
primeiras e angustiantes dúvidas sobre se o Papai Noel era uma pessoa real. Ela escreveu para o
jornal porque queria uma resposta confiável sobre o assunto. A resposta do jornal saiu num
editorial agora famoso, chamado “Sim, Virginia, O Papai Noel Existe”. Cohen acabou por estar mais
correto do que imaginava quando comparou a sua necessidade – e a dos seus leitores – de acreditar
na raça com a necessidade das crianças de acreditarem no Papai Noel. Qualquer um que continuar a
acreditar na raça enquanto atributos físicos de seres humanos, apesar dos resultados óbvios da
biologia e da genética, também pode acreditar em Papai Noel, Fada dos Dentes, Coelhinho da Páscoa
e geocentrismo.
1
Os jornalistas, de televisão e jornal, têm licença para serem bobos e irresponsáveis, e isso
geralmente não causa grandes danos, já que ninguém em plenas faculdades psíquicas dá muita
atenção a eles. (O comentário de Cohen sobre os “genes brancos” - entidades que nenhum
geneticista de quem eu tenha conhecimento ouviu falar - realçou ainda mais a sua iliteracia
científica). Mas em maio de 1987, foi a própria Suprema Corte que nos forneceu um exemplo mais
sério dessa bobagem – mais sério precisamente porque se tratava da Suprema Corte, não de um
jornalista qualquer. Ela tinha que decidir se judeus e árabes poderiam estar ao a brigo da lei dos
direitos civis caso sofressem discriminação. Ao invés de tomar a posição de que qualquer ato
discriminatório, seja contra quem for, é um ato intolerável na democracia, a Corte decidiu se
perguntar se judeus e árabes eram distintos dos “caucasianos”. Se são, aí então se pode aplicar a lei a
eles. A Corte decidiu que, já que judeus árabes e uma variedade de nacionalidades foram
consideradas grupos raciais no século XIX, elas ainda devem, hoje, serem consideradas grupos
raciais. Noutras palavras, a Corte não encontrou outro jeito de reparar as injustiças do século XIX do
que reentronar os dogmas raciais supersticiosos do século XIX. De fato, a Suprema Corte não tinha
muita escolha, vinculada que está à história americana – vinculada que está, digamos, àqueles rituais
que diariamente criam e recriam a raça, em sua característica forma americana. A Suprema Corte
age sobre as mesmas assunções dos comentários de Jimmy O Grego que, por mais absurdas que
sejam, constituem a ideologia racial dos Estados Unidos. Infelizmente, historiadores e outros
especialistas acadêmicos também pensam segundo as mesmas assunções, logo aqueles que têm de
se distanciar desse tipo de assunção se quiserem fazer o seu trabalho.

A Raça Única

Dessas assunções, aceitas pela maioria da população, uma das mais importantes é aquela que nos
diz que há apenas uma raça, a raça negra. É por isso que a Suprema Corte teve de performar um
verdadeiro contorcionismo intelectual para provar que não-negros poderiam ser concebidos como
pertencentes a grupos raciais, para que pudessem receber proteção das leis que proíbem
discriminação racial. Na América, vê-se pessoas com ascendência africana visível como raciais, mas
o mesmo não acontece com pessoas de sabida ascendência europeia. É por isso que nos Estados
Unidos há estudiosos e estudiosos negros, mulheres e mulheres negras. Saul Bellow e John Updike
são escritores: Ralph Ellison e Toni Morrison são escritores negros. George Bush e Michael Dukakis
eram candidatos à presidência: Jesse Jackson era um candidato negro à presidência.

Além disso, as pessoas nos Estados Unidos não veem como raças aquelas pessoas que não sejam
nem aparentemente africanas nem europeias, exceto quando têm propósito de contrastá-los com
pessoas de ascendência africana; e mesmo aí, usam palavras que tendem a representar mais a língua
e a geografia do que a biologia: asiático e espanhol. Mesmo quando termos geográficos designam
pessoas de ascendência africana, eles significam algo diferente do que quando aplicados aos outros.
Meus estudantes acham estranho quando eu me refiro aos colonizadores da América do Norte como
euro-americanos, mas não têm problemas quando falo em afro-americano, termo que também tem
seus problemas, tanto quanto o primeiro. Eles entendem fácil e rapidamente que ninguém era
realmente europeu, já que os europeus pertenciam a diferentes nacionalidades. Mas parecem
surpresos quando se diz que também ninguém era realmente africano, já que os africanos, como os
europeus, pertenciam a diferentes nacionalidades.

A segunda assunção que é inseparável da questão raça em sua característica forma americana, toma
como certo que tudo que um descendente de africanos faz, diz ou pensa é racial por natureza. Assim,
qualquer um que tivesse acompanhado os comentários sobre as primárias da eleição presidencial
de 1988 aprendia que, quase por definição, afro-americanos votaram em Jesse Jackson por

2
identificação racial – apesar das pesquisas demonstrarem que o eleitorado de Jackson tinha maior
propensão a identifica-lo com pauta específicas com as quais concordavam, naqueles assuntos que
importavam a este eleitorado. Os partidários dos outros candidatos, consideravam-nos
intercambiáveis, e tendiam a mudar várias vezes de candidato, ao sabor de rumores e propagandas.

Talvez, a terceira assunção seja a mais intelectualmente debilitante delas todas: nomeadamente,
aquela que supõe que qualquer situação envolvendo descendentes europeus e pessoas de
descendência africana automaticamente cai sob a alçada de “relações raciais”. Argumentos por
definição e tautologia acabam por substituir a análise, em qualquer coisa que se relacione a pessoas
de descendência africana. É provável que a maioria da historiografia americana pense a escravidão
primariamente como um sistema de relações raciais – como se o principal negócio da escravidão
fosse a produção de supremacia branca ao invés da produção de algodão, açúcar, arroz e tabaco. Um
historiador chegou ao ponto de chamar a escravidão de “o segregador absoluto”. Ele não se
pergunta porque europeus à procura do método absoluto de segregação dos africanos teriam todo o
trabalho e despesa de transportá-los através do oceano para esse propósito, quando eles poderiam
atingir o mesmo objetivo simplesmente deixando os africanos em África. Ninguém nem sonha em
analisar a luta entre ingleses e irlandeses enquanto um problema de relações raciais, mesmo que a
razão desenvolvida pelos ingleses para suprimir os “bárbaros irlandeses” tenha servido depois,
palavra a palavra, como razão para suprimir africanos e indígenas americanos. Nem sonha em
analisar as relações de servidão na Rússia enquanto, primariamente, um problema de relações
raciais, mesmo que a nobreza russa tenha inventado ficções acerca do caráter inato e natural da sua
superioridade em relação aos servos, tão absurdas como qualquer uma imaginada por racistas
americanos.

Pensamentos frouxos resultam numa linguagem descuidada, que por sua vez promove
desinformação. Uma apostila de História Americana amplamente utilizada, escrita por muito
distintos historiadores, resume a cláusula constitucional dos três-quintos da seguinte maneira: ‘Seja
para os impostos ou para a representação, cinco negros são equivalentes a três brancos’. A cláusula
dos três-quintos não distingue entre brancos e negros – nem entre pessoas brancas e pessoas
negras. (De fato, os termos negro e branco – ou, nesse sentido, negro e caucasiano – não aparecem
em nenhum lado da Constituição, o que não é de se surpreender num documento legal em que gírias
como essas seriam irremediavelmente imprecisas.) A cláusula dos três quintos distingue entre
pessoas livres - que poderiam ser de descendência europeia ou africana – e outras pessoas, um
eufemismo para escravos. O ponto desta distinção é garantir que donos de escravos tenham
vantagens sobre aqueles cidadãos que não o são. Garantir que a posse de escravos seja vantajosa na
hora de distribuir a representação no Congresso – uma vantagem para os donos de escravos – ou a
responsabilidade tributária por impostos diretos – uma desvantagem. A Constituição respondeu
afirmativamente, mas numa razão de três-quintos, ao invés dos cinco-quintos que os donos de
escravos prefeririam para a representação e o zero-quintos que teriam preferido para a taxação.
Quando pessoas bem-intencionadas afirmam, para efeito retórico, que a Constituição declarou que
os afro-americanos são apenas três-quintos de humano, eles cometem um erro cuja
responsabilidade os historiadores devem aceitar.

Quando virtualmente o todo de uma sociedade – incluindo pessoas supostamente reflexivas,


educadas e inteligentes - se comprometem com a crença em proposições que colapsam no absurdo
sob o mais leve escrutínio, a razão para isso não é alucinação ou ilusão ou simplesmente hipocrisia;
melhor dizendo, é ideologia. É impossível que, permanecendo em seu interior, alguém consiga
analisar uma ideologia racionalmente. É por isso que ainda se prova difícil para historiadores tratar
a raça historicamente, ao invés de em termos metafísicos, religiosos ou socio- (ou seja, pseudo-)
biológicos.

3
Nada ilustra melhor isso que a convicção entre acadêmicos em outros assuntos sensíveis de que a
raça ‘explica’ fenômenos históricos; de que especificamente, ela explica o porquê de pessoas de
descendência africana foram colocadas de parte, em regime de tratamento distintos daqueles
acordados com outros. Mas raça é, na verdade, apenas um nome que se deu a esse fenômeno, que o
explica tanto quanto as revisões judiciais explicam porque a Suprema Corte pode declarar atos do
Congresso como inconstitucionais, ou tanto quanto a Guerra Civil explica porque os americanos
lutaram entre si entre 1861 e 1865.

Apenas se definida enquanto um preconceito racial inato e natural pode a raça ser invocada como
explicação histórica, sem redundar numa repetição da pergunta pela resposta. É aí que um
problema gigantesco se faz presente: já que raça não é algo programado geneticamente, preconceito
racial também não pode ser genético – logo, como a raça, deve emergir historicamente. Os mais
sofisticados entre aqueles que invocam a raça como explicação histórica – por exemplo, George
Fredrickson ou Winthrop Jordan – reconhecem essa dificuldade. A solução preferida que
encontraram é supor que, tendo emergido historicamente, a raça então deixa de ser histórica e se
torna o motor externo da história; a estúpida, mas amplamente repetida fórmula de que ‘toma vida
própria’. Em outras palavras, ao ser adquirida historicamente, a raça se torna hereditária. Essa
metáfora usada oferece a vantagem de obscurecer uma versão tardia de lamarckismo.

A História de uma Ideologia

A raça não é um componente da biologia humana (como respirar oxigênio a reprodução sexuada);
nem sequer chega a ser uma ideia (como a velocidade da luz, ou o valor) que podemos imaginar com
plausibilidade referir-se a coisas que vivem uma vida eterna própria. A raça não é uma ideia, mas
uma ideologia. Ela toma existência num período histórico discernível, por razões históricas
compreensíveis, e está sujeita a mudanças por essas razões. Os bicentenários revolucionários que
americanos celebraram com tamanho fervor – o da Independência, em 1976 e o da Constituição em
1989 – podem também servir como os bicentenários da ideologia racial, já que seus nascimentos
não estão tão longe assim. Durante a era revolucionária, tanto os que apoiavam a escravidão quanto
os que a rechaçavam, colaboravam ao identificar a incapacidade racial dos afro-americanos como
explicação para a sua escravização. A ideologia racial americana é uma invenção original dos
Fundadores, tanto quanto os próprios Estados Unidos. Aqueles que defendiam a liberdade como um
direito inalienável e os que defendiam a propriedade de escravos vinculavam-se por tomarem a raça
como uma verdade auto-evidente. Portanto, devemos começar por restabelecer a raça - quer dizer, a
versão americana de raça – na sua dimensão propriamente histórica.

A Virginia do século XVII é um lugar como qualquer outro a partir do qual começar um breve
resumo dessa história, a história das plantações da América do Norte Britânica. Em seus primórdios,
Virginia afundava economicamente, dependendo apenas da boa-vontade dos indígenas e, depois
dessa boa-vontade ser exaurida pelos colonialistas, da sua tributação extorsiva. No entanto, durante
a segunda década do século XVII, Virginia finalmente descobre a sua vocação: o cultivo do tabaco. O
primeiro boom daquilo que eventualmente se tornaria os Estados Unidos aconteceu em meados de
1620, e foi conseguido graças ao trabalho de ingleses em regime de servidão temporária, não de
escravos africanos. É apenas no fim do século XVII, depois do boom econômico, que os proprietários
de terra passam a comprar escravos africanos e norte-indianos em larga escala – primeiro do norte
da Índia e, após 1680, da própria África. Durante o boom econômico, foram os ingleses ‘nascidos
livres’ que se tornaram, como colocado por um historiador, ‘uma máquina para produzir tabaco
para os outros’.

4
Na Virginia, os servos temporários trabalhavam por mais tempo, com menos dignidade e menos
proteção jurídica e consuetudinário do que as suas contrapartes na Inglaterra. Eles eram comprados
e vendidos como gado, eram sequestrados, roubados, serviam de aposta em jogos de azar e
adjucados – mesmo antes da sua chegada aos Estados Unidos – às partes vitoriosas de processos
judiciais. Magnatas gananciosos (talvez expressão redundante) restringiam a comida de seus servos,
trapaceavam a trabalharem ainda mais quando seus contratos tivessem chegado ao fim, negando-
lhes a liberdade, ou mesmo obrigando-os a trabalhar mesmo quando já fossem legalmente livres. Os
servos eram espancados, mutilados, assassinados em completa impunidade. Houve um indivíduo
que teve seus dois braços quebrados e a língua atravessada por um furador por ter expresso
opiniões desfavoráveis ao governador e seu conselho. Outro, perdeu uma orelha e foi condenado a
mais sete anos de trabalho servil – servidos a um membro do mesmo conselho que o julgou.

Sejam quais forem as verdades estimadas como auto-evidentes naqueles tempos, nem o direito
inalienável à vida e à liberdade e nem o consentimento enquanto fundamento da governação
estavam entre elas. Virginia era um empreendimento lucrativo; ninguém lucrava através de
métodos democráticos. Durante o boom do tabaco, ficaram ricos apenas os capazes de forçar um
largo número de pessoas ao trabalho. Nem a pele branca nem a nacionalidade inglesa protegiam
alguém das mais grotescas formas de brutalidade e exploração. A única degradação de que se
livraram foi a servidão perpétua, um destino que acabou por recair sobre os descendentes de
africanos.

Muitas vezes, acadêmicos sustentam que os servos brancos escaparam de tal destino a que os
africanos foram submetidos porque os europeus teriam limites a oprimir pessoas de sua própria
cor. Mas eles só podem acreditar nesse folclore enquanto flutuam no mundo crepuscular da
ideologia racial, um mundo contra o qual nem sequer a Suprema Corte parece oferecer muita
resistência. Restaurada a luz do bom-senso diurno, eles sabem mais do que isso. Eles sabem que
gregos e romanos escravizavam pessoas da sua própria cor. Eles sabem que os europeus
mantiveram outros europeus em regime de servidão e escravidão, e que a lei da Inglaterra de Tudor
permitia escravizar os vadios. Eles sabem que para vergar os selvagens e brancos irlandeses, os
ingleses não conheciam limites para a brutalidade. Oliver Cromwell vendeu como escravos
sobreviventes do Massacre de Drogheda nos Barbados, e seus agentes leiloavam crianças irlandesas
para agricultores nas Índias Ocidentais. Os campos de concentração nazistas engoliram não apenas
judeus e ciganos, mas também militantes, resistentes e comunistas, a quem mesmo a Suprema Corte
dos Estados Unidos se sentiria forçada a definir como grupos raciais. De Peterloo a Santiago, do
Chile a Kwangju, passando pela Coréia do Sul e pela Praça da Paz Celestial, até os bairros de São
Salvador, a humanidade aprendeu, uma vez e mais, que cor de pele e nacionalidade partilhada não
estabelece um limite automático à opressão. Em último caso, a única coisa que pode limitá-la é a
força e a efetividade da resistência.
Resistência não é apenas o nome que se dá à luta de indivíduos ou coletivos, feita a qualquer
momento contra alguém que tenta impor alguma coisa contra eles. Também deve ser entendida
enquanto os resultados das lutas anteriores, cristalizadas muito tempo depois em leis e costumes –
como “os Direitos do Homem Inglês”, por exemplo. Os direitos dos ingleses de classe baixa, e os
direitos ainda menores das inglesas de classe baixa, não foram dádivas da nobreza inglesa,
oferecidas devido a uma cumplicidade com pessoas de sua própria cor e nacionalidade. Eles surgem,
sim, depois de longos séculos de contestação diária, explícita e implícita, armada ou não, pacífica ou
violenta. O que se poderia ou não fazer às classes baixas nada mais é que deveres, destilados desta
experiência coletiva histórica, ritualizados como regras de comportamento ou sistematizados no
direito consuetudinário – sempre em risco de serem postos mais uma vez em causa, na mesa de
5
negociações ou no ringue de combate. Cada incremento de direitos que a classe baixa considerava
como sendo-lhes devido, representava o resultado provisório do último round, estabelecendo o peso
dos futuros concorrentes, numa contínua luta de boxe social.

A Lei e o Costume

No round que se sucedeu no início da Virginia colonial, muito do conforto, dignidade e bem-estar
conquistados na Inglaterra foram perdidos. Mas nem tudo. Degradar um número massivo de servos
à escravidão seria esquentar demais a briga, considerando que eles estavam bem armados, eram
maioria e que uma guerra interna poderia resultar em vantagens aos indígenas. Além do mais, a
escravização dos imigrantes que já lá estavam poderia ameaçar o futuro da própria imigração,
chegadas as notícias à Inglaterra. Mesmo o mais ganancioso e míope oportunista poderia prever o
desastre de uma tática dessa. Devido à baixa expectativa de vida em Virginia, um servo escravizado
trabalharia apenas sete anos antes de morrer (entre 1625 e 1640, quinze mil imigrantes só
aumentaram a população de algo como trezentas pessoas para sete ou oito mil pessoas). E a
perspectiva de se conseguir crianças escravizáveis mais adiante – perspectiva incerta, dada a
quantidade ínfima de mulheres que vieram durante os anos do boom – não compensaria pela perda
de imigrantes adultos no presente.

Algumas dessas considerações pesavam contra o emprego em larga escala de descendentes de


africanos escravizados; outras não. Nem sequer é preciso mencionar que a publicidade negativa não
teria o mesmo efeito no caso das migrações forçadas do que nas voluntárias. Ainda mais importante
que isso: africanos e indígenas afro-ocidentais não tinham tomado parte na longa história de
negociações e luta nas quais a classe baixa inglesa trabalhou a relação com seus superiores. Assim, a
lei e o costume que cristalizavam longos anos de luta e contestação não se aplicavam a eles. Noutras
palavras, quando os servos ingleses entraram no ringue de Virginia, eles não estavam sozinhos.
Entraram acompanhados de gerações e gerações que os precederam na luta; e o resultado dessas
lutas anteriores estabeleceram termos e condições às próximas. Mas os africanos e os indígenas
afro-ocidentais de fato entraram sozinhos no ringue. Seus antepassados lutaram batalhas distintas,
que não pesavam sobre a guerra atual. A sua luta começava do zero – e muito longe daqueles que
eles poderiam ter chamado como reforços.

Portanto, africanos e indígenas afro-ocidentais estavam disponíveis para a escravidão de uma forma
que os ingleses não estavam. Eles poderiam ser comprados já escravizados e prontos para o
trabalho, e o foram nos inícios do tráfico transatlântico. Mas é muito tempo depois que isso se torna
uma questão de raça. De fato, a sistematização da escravidão demorou. Apesar dos africanos e
descendentes começarem aos poucos a aparecer a partir de 1619, foi apenas em 1661 que a lei
passou a reconhecer formalmente a condição de escravidão perpétua e a tratar de maneira distinta
descendentes de africanos. De fato, entre 1619 e 1661, escravos africanos gozavam de direitos que
no século XIX nem mesmo um negro livre poderia reivindicar. Mero pragmatismo decidiu sobre essa
questão. Antes de ser sistemática, a escravidão não precisou de um código sistematizando-a. E ela
não poderia se tornar sistemática enquanto um escravo africano vitalício, com altas chances de
morrer antes de completar cinco anos de trabalho, custasse o dobro de um servo inglês que durasse
o mesmo.

Esse cálculo mórbido só mudou por volta de 1660; e então, outras coisas tinham mudado também. O
preço do tabaco caíra; também a emigração de servos ingleses à América. A expectativa de vida dos
afro-americanos passou a ser elevada o suficiente para que valesse a pena escraviza-los para a vida,
e euro-americanos passaram a viver o suficiente para reclamar a liberdade – e a terra - a que tinham
direito findo os seus contratos de servidão temporária. Esta última situação provocou uma reação

6
daqueles cuja a fortuna dependia do trabalho servil. Uma delas foi inventar desculpas para estender
o tempo da servidão para além do contrato inicial, objetivo perseguido por uma assembleia
vingativa durante as décadas de 50, 60 e 70 do século XVII. Outra face da reação foi a absorção de
terras próximas às marés, o que obrigava os servos libertos ou a alugar terras dos grandes
proprietários ou a ocuparem regiões fronteiriças, longe das rotas de distribuição de água e expostas
a represálias dos indígenas, compreensivelmente indignados com mais uma invasão dos
estrangeiros que já haviam os expulsado das regiões de maré. Em meados de 1670, os governantes
de Virginia confrontavam-se com problemas potencialmente muito sérios: uma ampla classe de
servos (brancos) recém-libertos, jovens, sem-terra, solteiros, descontentes – e bem armados.

No primeiro deslize, os tumultos começaram. Em 1676, justamente um grupo desses jovens livres,
junto dos escravos e dos servos, encetaram a maior rebelião popular da América colonial, pilhando a
propriedade dos bem-de-vida, destruindo a capital, e mandando o governador real e seus asseclas
para um esconderijo temporário na costa oriental de Virginia. Abruptamente, a rebelião cessou, sem
conseguir – quer dizer, sem tentar nem propor – mudanças no sistema dominante de poder e
autoridade. Aquilo que ela sim conseguiu foi fazer com que os ricos passassem a temer e suspeitar
da crescente classe baixa e branca.

Foi uma circunstância fortuita – quer dizer, fortuita para alguns – que fez com que africanos e
indígenas afro-ocidentais estivessem disponíveis para o trabalho no plantio no momento histórico
em que passou a ser fácil e prático a compra de escravos vitalícios, e ao mesmo tempo em que se
tornava difícil e perigoso a continuidade do emprego de europeus como a força motora das
plantações. A importação em larga escala de escravos africanos fez com que fosse possível a
manutenção de um corpo suficiente de trabalhadores sem precisar provocar um conflito explosivo
com uma massa de ingleses armados e ressentidos da negação de seus direitos como homens
ingleses, e dispondo de condições materiais e políticas para fazer valer retaliações.

Eventualmente, as ocupações europeias espraiaram-se para o interior, e os libertos – diminuindo


cada vez mais devido a diminuição do fluxo migratório de servos – conseguiram terras para
chamarem de suas. Conforme o trabalho escravo vitalício substituía o trabalho servil temporário, a
questão dos libertos se tornou coisa do passado. (Tão longe no passado, de fato, que quando a
questão dos libertos fez nova aparição nas pautas nacionais, durante a era da Guerra Civil, o
antiquíssimo precedente sobre os direitos de liberdade já tinha sido esquecido. Quando Abraham
Lincoln e seus contemporâneos falavam em compensar a alforria (compensatedemancipation), eles
não sentiam a necessidade de especificar a quem compensariam. Ninguém sequer falava sobre
direitos de liberdade, apenas da bobagem que era oferecer aos negros ‘presentes’ que não
mereciam.

Da Opressão à Inferiorização

Enquanto ideologia, a raça não emergiu ao mesmo tempo que a escravidão e tomou ainda mais
tempo que a última para se tornar sistematizada. Um lugar-comum que pouca gente para e examina
sustenta que quem já é considerado inferior por natureza, tende a ser mais oprimido. O inverso é
verdadeiro. Quem já é visto como oprimido, é mais facilmente percebido como inferior por natureza.
Os africanos até poderiam ser, vistos pelos olhos dos ingleses, pagãos, de nacionalidade
extravagante e estranha aparência. Mas isso não se completa numa ideologia de inferioridade até a
adição de mais uma parte ao conjunto: a incorporação dos africanos e seus descendentes a uma
sociedade em que estavam privados de direitos que outros não apenas tomavam por garantidos,
mas consideravam ter a natureza de leis naturais auto-evidentes.

7
Toda a sociedade considera-se resultado de uma ordem natural, explícita ou implicitamente. Posto
de outro modo, parte do que os seres humanos entendem por ‘natureza’ é um certo senso de
inevitabilidade que se confere a uma rotina social previsível e repetitiva: ‘os costumes, tão
imemoriais que até se parecem com a própria natureza’, como escreveu Nathaniel Hawthorne. A
nobreza feudal do começo da Idade Média consistia de pessoas que, por terem exércitos,
propriedades ou ambos, eram mais poderosas que o resto. Nenhum dos seus contemporâneos
consideravam-nos superiores por razão de nascimento ou sangue; de fato, tal coisa teria sido uma
heresia. Mas o hábito da dominação vai se entranhando no cotidiano e criando a convicção da
superioridade natural da nobreza, que passa a reger seres inferiores por natureza. No fim do século
XV, aquilo que fora considerado uma heresia em tempos passados tornou-se um verdadeiro artigo
de fé. Os camponeses não estavam sob o domínio da nobreza por virtude de serem considerados
inferiores natos. Muito pelo contrário, eles passaram a ser considerados inferiores por terem sido
subjugados pelo domínio da nobreza.

Dados naturais gerados pelas necessidades da ideologia às vezes adquirem maior importância que
aqueles gerados pela própria natureza. Alguns nobres da Rússia czarista acreditavam piamente que
os ossos de seus servos eram pretos e os seus, brancos. Visto que à época a violência prevalecia,
presumivelmente a nobreza tinha ampla ocasião para observar, em primeira mão, a cor dos ossos de
seus servos. Eis o peso da ideologia, que nem a observação direta pode demover. No entanto, visto
que os czaristas não possuíam nenhuma concepção de igualdade absoluta que repousasse em leis
naturais, eles também não precisavam de uma concepção de desigualdade absoluta radical e
consistente que repousasse nas mesmas leis, como foi o caso dos Estados Unidos aquando da
Revolução. Se leis auto-evidentes da natureza garantem a liberdade, apenas leis tão auto-evidentes e
tão naturais quanto podem justificar a negação da liberdade.

É possível para os historiadores observarem a América colonial no ato de preparação dos


fundamentos da raça sem que perceba o que, mais tarde, emergeria de tais fundamentos. Uma lei de
1664, na colônia de Maryland, estabelecia o estatuto legal da escravidão, atribuindo a sua herança
como patrilinear. Logo tal experimento foi deixado de lado. A paternidade é algo sempre ambíguo,
mas a maternidade não. Os proprietários de escravos logo notaram a vantagem de uma lei diferente
e inambígua de descendência, uma que garantisse aos proprietários toda a prole das escravas, seja
de quem fosse a paternidade, com a pequena desvantagem de perder a prole que poderia ser fruto
da relação de uma mulher livre com um escravo. Seja de que modo for, o intuito do experimento é
claro: prevenir que os escravocratas tivessem perdas de propriedade resultantes do direito à
liberdade de proles de mulheres brancas grávidas de escravos. A linguagem do preâmbulo à lei
deixa claro que a questão ainda não era racial: ‘Porquanto mulheres inglesas e livres, esquecidas de
sua condição de liberdade e para a desgraça da Nação, cruzarem-se com escravos negros, criando
diversas dificuldades para estas mulheres, e um grande dano a cair sobre os Mestres destes
Negros...’

‘Mulheres inglesas livres’ – não mulheres brancas – estariam esquecendo a sua condição de
liberdade e desgraçando a sua nação – não ainda esquecendo a sua cor e desgraçando a sua raça. E
desses esquecimentos e desgraças surgiam ‘diversas dificuldades’ e ‘grandes danos’ aos
proprietários de escravos. A raça não serve como explicação para essa lei. Ao invés disso, a lei nos
mostra a sociedade enquanto ainda inventa a raça. Foram imperativos práticos – a necessidade de
clarificações acerca dos direitos de propriedade dos escravocratas e o desencorajamento da
fraternização com escravos – que exigiam a lei. Depois que imperativos práticos desse tipo são
ritualizados com suficiente frequência, seja na forma de comportamentos conformistas ou punição
de comportamentos não-conformistas, eles adquirem um fundamento ideológico que explica para

8
os envolvidos no ritual o porquê é natural e automático agir segundo suas premissas.

Durante o apogeu do império do algodão, a escravidão continuou a se prestar ao serviço que tinha
inaugurado nos tempos coloniais: limitar a necessidade de cidadãos livres (o que é dizer, pessoas
brancas) explorarem-se entre si diretamente, equacionando assim exploração de classe com
exploração racial. Mais do que isso, a dominação escravocrata da sociedade sulista preservou o
espaço social no qual o yeomanry branco – isto é, os pequenos fazendeiros e artesãos que
compunham cerca de três quartos das famílias no sul escravocrata antes da Guerra Civil – podia
gozar de independência econômica e uma ampla medida de autodeterminação, dada a sua posição
insular relativamente ao domínio da sociedade capitalista de mercado. E assim fazendo, a
escravidão permitiu e obrigou a maioria branca a desenvolver sua própria e característica forma de
ideologia racial.

A Yeomanry Branca

Dois terços da população do Velho Sul era branca e livre. Destes, a maioria não era proprietária de
escravos e os poucos que eram, usavam-nos principalmente na caça, pesca, tarefas gerais
domésticas e de agricultura – não nas plantações comerciais de tabaco e algodão. Tendiam a viver
em regiões remotas, áreas montanhosas demais, arenosas demais, inférteis demais, frias demais ou
longe demais de águas navegáveis para serem do interesse dos grandes proprietários. Muitos viram
seus pais e avós serem expulsos de terras mais propícias, à medida que as grandes plantações
escravocratas se expandiam ao ocidente. Era do interesse dos grandes escravocratas evitar
qualquer antagonismo ou interferência nas comunidades locais dos não-proprietários de escravos
que viviam em seus santuários remotos (já que estes grupos – os yeomen – eram maioria em relação
aos proprietários de escravos, e tinham o potencial de vencer votações caso fossem ameaçados).
Qualquer melhoria das áreas remotas – como escolas, estradas, caminhos de ferro – obrigaria os
grandes proprietários a cobrar impostos de si mesmos, algo que eles faziam o mínimo possível. Por
sua vez, os yeomen eram bastante zelosos no que tocava a sua independência de autodeterminação.
Eles não queriam saber do Estado mandando que enviassem suas crianças para a escola, e muitos
tinham desconfiança dos caminhos de ferro, que implicavam a presença de especuladores de terra,
piratas, locomotivas que poderiam incendiar seus campos e atropelar suas crianças e seus animais.

Dentro de suas comunidades, os brancos não-proprietários de escravos desenvolveram um estilo de


vida que se diferenciava tanto dos agricultores escravocratas quanto dos agricultores do Norte,
aonde a agricultura capitalista já prevalecia. Eles cultivavam plantações comerciais (isto é, tabaco e
algodão, visto que arroz e açúcar eram primariamente colheitas de plantação) apenas na medida em
que precisassem para o uso, ou para o pagamento daquelas poucas aquisições em que necessitavam
de dinheiro vivo. De resto, os brancos não-proprietários de escravos concentravam seus esforços
plantando comida – grãos, batatas e vegetais – e na pecuária. Um costume já há muito extinto nos
estados do Norte permitia que qualquer pessoa pudesse pastar seus animais, pescar e caçar em
qualquer terra, pública ou privada, desde que ela não estivesse cercada. Assim, mesmo aqueles com
pouca terra podia ser pecuaristas. Os não-proprietários de escravos negociavam em mercados
locais, não em mercados nacionais ou internacionais, e geralmente as negociações tomavam a forma
de trocas em espécie ou ‘trocas de serviços’ (‘trocas de serviços’ significava que alguém podia trocar
a reparação do telhado do vizinho por uma roda nova para a sua carroça, ou mesmo um par de
botas). Já que as comunidades eram maioritariamente autossuficientes em comida, móveis, sapatos
e roupas, as lojas locais apenas vendiam produtos que a comunidade não produzia – por exemplo,
armas de fogo e munição, melaço e pregos. Quase todo agregado familiar tinha uma roca com que
transformavam algodão produzido localmente em fios para a manufatura das roupas que as famílias

9
usavam. Uma rede de dívidas mantinha a integração da comunidade, ao mesmo tempo que
provocava brigas e conflitos jurídicos: tudo mundo devia algo pra alguém. As lojas locais só
cobravam juros depois que a dívida completasse um ano. A própria lei reconhecia regras básicas de
justiça que prevaleciam adentro às comunidades de não-proprietários de escravos. A maioria dos
estados do baixo Sul tinham uma lei conhecida como ‘a exceção de propriedade’: mesmo se o chefe
de família fosse à falência, seus credores não poderiam tomar sua casa, sua mobília e sua terra – o
que permitia que ele pudesse manter sua independência social e econômica.

Uma forte convicção no valor da independência social levou a que não-proprietários de escravos
partilhassem com os agricultores do desprezo tanto aos trabalhadores assalariados do Norte,
quanto aos escravos do Sul. Para além disso, incutiu-lhes um instinto de igualdade que não lhes
permitia aceitar o direito ao domínio aristocrático de um homem branco sobre o outro – um direito
que os grandes agricultores nunca deixaram de reivindicar em relação às classes baixas de qualquer
cor. A ideologia racial do yeomanry não poderia, portanto, ser a mesma que a dos grandes
agricultores. Ao invés disso, ela emergia das necessidades práticas do seu cotidiano.

Eis que surge uma boa oportunidade para explicar um pouco melhor o que a ideologia é e o que não
é; sem compreender o que é e o que faz a ideologia, como surge e como se sustenta, não podemos
ter uma compreensão histórica genuína da raça. Compreende-se melhor a ideologia se a pensarmos
como um vocabulário que descreve a existência cotidiana, vocabulário este através do qual as
pessoas adquirem um sentido rudimentar sobre a realidade social que vivem e criam diariamente. É
a linguagem da consciência que melhor cabe ao modo as pessoas lidam com seus semelhantes. É a
interpretação intelectual das relações sociais através do qual a existência coletiva é criada e
recriada, seja qual forma essa existência coletiva possa adquirir: família, clã, tribo, nação, classe,
partido, empresa, igreja, exército, clube, e assim por diante. Deste modo, a ideologia não é uma
ilusão. É real, tão real quanto as relações sociais que representa.

Mas não é por serem reais que as ideologias são científicas, ou que elas possam fornecer uma análise
de relações sociais que façam algum sentido para aqueles que não tomam parte em seus rituais.
Algumas sociedades (A Nova Inglaterra colonia inclusa) explicaram relações tumultuosas entre seus
membros como resultantes dos efeitos da bruxaria, ou de possessões demoníacas. Tal explicação faz
sentido àqueles cuja vida cotidiana produz e reproduz a bruxaria, e não há evidência racional que
possa-lhes convencer do contrário. Nestas sociedades, a bruxaria é um fato tão natural e auto-
evidente quanto é a raça para Richard Cohen do Washington Post. No entanto, para alguém que se
distancia, e não toma parte nos rituais que a recriam diariamente, tomando um ponto de vista
exterior, explicar pela bruxaria um aborto espontâneo, uma colheita malsucedida, um adoecimento
súbito, uma morte, é tão absurdo quanto explicar a escravidão pela raça. As ideologias não precisam
ser plausíveis e, muito menos, persuasivas a quem se encontra no seu exterior. O seu trabalho é
ajudar com que as pessoas que vivem em seu interior possam encontrar sentido naquilo que veem e
fazem – repetitivamente e ritualmente – no cotidiano.

Eis o que é a ideologia. A seguir, o que a ideologia não é. Ela não é uma entidade material, não é uma
coisa que você pode transmitir, ou passar como uma peça de roupa, germes, espalhar como um
rumor, ou impor como um código de vestuário ou princípios de etiqueta. Nem é uma coleção de
crenças dissociadas – ‘atitudes’ é o jargão costumaz entre cientistas sociais e os historiadores que
foram hipnotizados por eles – que você pode abstrair de seu contexto e medir através de uma
pesquisa de inquérito retrospetivo. (Um dia, a reificação de comportamentos em “atitudes” parecerá
tão pitoresco e arcaico quanto a sua reificação em “humores corporais” – fleumático, colérico,
melancólico, sanguíneo – nos parece agora. Tampouco é um Frankenstein que toma vida própria.

10
A ideologia não é o mesmo que propaganda. Alguém que dissesse algo como, ‘a ideologia anti-
escravocrata se infiltrou nas regiões de escravatura através de jornais antiabolicionistas ilícitos’,
estaria mais a falar de propaganda que de ideologia. A ideologia anti-escravocrata dos escravos não
poderia ter-lhes surgido através do contato com textos estrangeiros contrabandeados. É através da
vida cotidiana que as pessoas deduzem e verificam sua ideologia. A ideologia anti-escravocrata dos
escravos teve de surgir a partir da sua própria vivência de escravidão, e da sua relação com
proprietários de escravos e outros membros da sociedade escravocrata. Frederick Douglass não
estava a propor um paradoxo, mas a dizer a simples verdade quando disse que a primeira aula sobre
anti-escravidão que teve, foi dada por seu mestre quando este tentava explicar à sua amante o
porquê de escravos não poderem aprender a ler e escrever. Do mesmo modo, os escravos que
decidiram desde o primeiro tiro da Guerra Civil – o mesmo antes, com a eleição de Lincoln – que a
emancipação estava finalmente entre as pautas da nação, não estavam respondendo às propagandas
do Norte (cujo teor, à altura, nada prometia nesse sentido). Foi a sua experiência com os
proprietários de escravos, e não menos a equação histérica feita pelos proprietários de escravos, do
Partido Republicano com a abolição, que fez com que os escravos vissem Lincoln como um
emancipador mesmo antes de Lincoln ver-se a si mesmo nesse papel. E, devo acrescentar, foi a
antevidência dos escravos, e sua ação nesse sentido, que fez com que Lincoln tenha sido forçado a se
tornar o emancipador.

Ideologia, Propaganda e Dogma

Ao insistir que ideologia e propaganda não são a mesma coisa, não quero dizer que não têm
relações. O propagandista mais bem-sucedido é aquele quer compreende a ideologia dos alvos da
sua propaganda. Quando, antes da Guerra Civil, os propagandistas da separação enfatizaram os
perigos da possibilidade de os nortenhos comprometerem o direito à autodeterminação dos
sulistas, eles estavam enfatizando um tema que ressoava bem tanto no mundo dos não-
proprietários de escravos como no dos plantadores que possuíam escravos, mesmo que esses dois
mundos diferissem então como a noite difere do dia. ‘Nós nunca seremos escravos’ era uma boa
propaganda separatista. ‘Não devemos deixar que tomem nossos escravos’ teria sido uma má
propaganda e os separatistas sabiam disso; assim como hoje ‘Iniciativa de Defesa Estratégica’ é uma
boa publicidade para o projeto armamentista, mas ‘Iniciativa Ofensiva Estratégica’ ou ‘Iniciativa
Atacar Primeiro’ não é.

Além disso, ideologia também não é o mesmo que doutrina ou dogma. Uma doutrina pró-
escravatura pode bem sustentar que a palavra de um branco é sempre mais importante que a de
qualquer negro. Mas a realidade crua de qualquer plantador proprietário de escravos lhe dirá que,
em algumas situações, a palavra do escravo valerá mais que a de um supervisor. Afinal de contas,
supervisores iam e vinham enquanto os escravos permaneciam; e o objetivo era a produção de
algodão, açúcar, arroz, tabaco e não de supremacia branca. A perfeita subordinação dos escravos ao
supervisor, acompanhada de uma má produção, significaria um desastre para qualquer plantador.
Deste modo, a ideologia do proprietário – isto é, o vocabulário a partir do qualquer ele significa as
suas ações e experiências cotidianas – tem de deixar espaço para contestação e confronto (talvez
formuladas em linguagem racista e paternalista), mesmo se a doutrina racista especificasse uma
hierarquia eterna entre negros e brancos. Doutrina e dogma podem ser impostos, e muitas vezes
são: dissidentes podem ser excomungados da igreja ou expulsos do partido. Mas a ideologia é um
licor que se destila a partir da experiência. Não há ideologia aonde não há uma experiência capaz de
evocá-la. Os plantadores do antigo sul não poderiam impor a sua ideologia nos escravos e nos não-
proprietários de escravos se, antes, não tivessem transformado as vidas dos últimos para que se
parecessem com a própria.

11
A ideologia tem de ser constantemente criada e ratificada pela e na vida social; se não é, morre,
mesmo se está organizada de tal modo que facilite a sua transmissão. Muitos cristãos ainda creem
que estar ajoelhado, de mãos unidas ainda é a postura apropriada para quem reza, mas poucos
sabem o porquê disso; e os poucos que sabem, mesmo que desejem, não podem esperar que tal
postura signifique hoje o mesmo que significou àqueles para quem tal postura fazia parte de uma
ideologia ainda viva no cotidiano. As relações sociais que davam um sentido explícito ao gesto ritual
de subordinação do vassalo ao seu senhor estão tão mortas como um peixe fora d’água, e assim
também está morto o vocabulário ideológico – incluindo a postura de quem reza – nas quais essas
relações vinham à vida.

Os argumentos supracitados levantam a questão de como o entendimento, a compreensão de


realidade de um grupo, parecem prevalecer sobre a de outros no que toca ao seu poder político real
e efetivo. Dependendo de quem coloca a questão, trata-se do problema da ordem social, da
conversão de poder em autoridade, ou de hegemonia política. A resposta mais óbvia para esse
problema – a violência – não é bem uma resposta. Nunca há força suficiente para isso, e ainda há
menos interesse na força se considerarmos que a submissão de um grupo dificilmente é um fim em
si mesmo. Se os proprietários de escravos tivessem produzido supremacia branca sem produzir
algodão, o seu poder teria desaparecido em pouquíssimo tempo. Um dominador colonial não quer
apenas a submissão e a obediência dos nativos. Os nativos devem, além disso, produzir comida,
pagar impostos, trabalhar nas minas e para o Estado, fornecer gente ao exército, e ajudar na defesa
das fronteiras contra poderes rivais. Para que tais atividades sejam possíveis, os nativos não devem
apenas se submeter, mas cooperar. Mesmo nos casos em que a submissão é um fim em si mesmo, a
força bruta nunca é suficiente. Proprietários de escravos, colonizadores, guardas prisionais, a polícia
dos Xás – todos tiveram a possibilidade de perceber que, quando apenas a força permanece, nada
permanece e ponto final. A dominância de qualquer grupo, de qualquer poder de Estado, apenas em
última análise baseia-se na força. Qualquer um que pense um pouco sobre esse assunto chega a tal
conclusão, e pensadores tão diferentes no tocante a outros temas, como Weber, Marx, Maquiavel e
Madison não teriam problema em concordar neste tema. Mas um grupo dominante ou um Estado
que depende em primeira análise da força bruta está sob a pressão de um cerco, rebelião, guerra ou
revolução.

Não nos servirá supor que o grupo dominante capturou as mentes e os corações dos dominados,
induzindo a que eles internalizassem a ideologia dominante. Supor tal coisa é imaginar que a
ideologia pode ser transmitida como uma velha peça de vestuário, passada como um germe,
espalhada como um rumor, ou imposta como um código de vestuário. Qualquer um desses casos
pressupõe que uma experiência das relações sociais pode ser transmitida segundo os mesmos
meios, o que é impossível.

Ainda assim, de algum modo o poder se torna autoridade. O sinal vermelho, o levantar da mão de
um policial de trânsito, faz com que as pessoas parem seus carros (ao menos nos lugares aonde as
pessoas tendem a obedecê-los) sem que haja o exercício de poder – um carro não pode ser parado
por uma luz vermelha ou pelo levantar de uma mão – mas com o exercício da autoridade. Por quê?
Não é, com certeza, porque as pessoas partilham uma crença ou atitude coletiva que supõe a
“santidade” da lei, ou porque tenham mesma conceção acerca dos deveres civis. Muitas das cidadãs
que, sem hesitar, parariam seus carros no sinal vermelho, num cruzamento deserto às duas horas da
manhã, poderiam também calcular cuidadosamente os custos relativos e as vantagens de violarem
leis referentes à poluição ambiental, à segurança dos negócios internos; poderiam não declarar bens
à Receita Federal, e assim ir obedecendo ou não às leis segundo a maneira e o resultado dos seus
cálculos.

12
Não é uma crença abstrata, ou uma atitude cristalizada, que faz com que as pessoas parem no sinal
vermelho. Ao invés disso, as pessoas descobrem as vantagens de poderem tomar como garantido
que todas as outras pessoas pararão no sinal vermelho num cruzamento congestionado. Ou melhor,
elas cresceram em uma sociedade que constantemente ritualiza tal descoberta – fazendo com que as
pessoas parem, todas as vezes, no sinal vermelho – sem que cada pessoa tenha que fazer essa
descoberta mais uma vez a cada cruzamento. Ambas as partes são necessárias: a vantagem
demonstrável de se parar e a constante reencenação da postura apropriada, uma reencenação que
faz com que o cálculo constante da vantagem seja retirado do cotidiano. Não é a ‘transmissão de
atitudes apropriadas’, mas a repetição ritual do comportamento social apropriado que garante a
continuidade da ideologia. Aí reside a chave da explicação do porquê pessoas que antes pareciam
subservientes a uma certa ideologia, subitamente desligam-se dela. A ideologia não é um conjunto
de atitudes que as pessoas têm, como um resfriado. Seres humanas vivem em sociedade negociando
um certo terreno social, cujo o mapa é mantido vivo em suas mentes através da repetição ritual e
coletiva das atividades que devem ser levadas a cabo para que o terreno seja negociado. Se o terreno
social muda, também suas atitudes mudarão, o que também fará mudar o mapa.

Moldando o Terreno

Permitam-me prosseguir um pouco mais com a analogia do terreno. Imaginem então uma paisagem
física: aqui árvores, um rio lá, montanhas, vales, areia movediça, deserto, e assim por diante. E
imaginem uma pessoa a observá-la a partir da altitude de um satélite terrestre, alguém que por
alguma razão é capaz de acompanhar as rotas que as pessoas fazem sobre o terreno, sem poder ver
os detalhes da paisagem. A observadora vê pessoas entrando sob o terreno, subindo sobre ele,
correndo ora à esquerda, ora à direita, movimentando-se com estranhos trejeitos, ou mesmo
desaparecendo sob a areia movediça. Sob a influência de um módico treino na ortodoxia da tradição
historiográfica americana, tal observadora poderia concluir que as pessoas nesta parte do terreno
têm certas ‘atitudes’ que as convocam para certo tipo de movimento, enquanto as pessoas na outra
parte do terreno têm ‘atitudes’ convocando-as para outro tipo – todas essas ‘atitudes’ parecem ter
uma vida própria. Dada uma módica sabedoria, tal observadora chegaria à conclusão que a chave
para a compreensão dos movimentos dessas pessoas está na análise do próprio terreno.

Nisto reside a chave de compreensão da maneira como um grupo adquire autoridade, impõe a
ordem, ou alcança a hegemonia. Exercer a dominância significa ser capaz de moldar o terreno.
Suponhamos que um grupo dominante deseja que todos em nossa paisagem se movam para o Leste,
e para isso comecem um incêndio nas florestas do Oeste. Missão cumprida: todos se movem para o
Leste. Mas isso é porque todos partilham de uma convicção – de uma ‘atitude’ – glorificando as
virtudes da movimentação ao Leste? Não necessariamente. Toda essa ordem, autoridade e
hegemonia requer que os interesses das massas de não serem incineradas vivas façam intersecção
com os interesses dominantes de mover toda a gente para o Leste. Se, a seguir, as movimentações a
Leste se tornam parte da rotina através da qual as massas organizam suas vidas
independentemente dos dominantes, de modo que tal movimento se torna parte de uma rotina
social constantemente repetida, logo então um vocabulário explicará - não analiticamente, mas
descritivamente – o que significa se movimentar para Leste. E tal vocabulário não precisa e nem
pode ser uma mera duplicação do vocabulário dos dominantes.

A ideologia racial forneceu um vocabulário capaz de explicar a escravidão a pessoas cujo terreno era
uma república fundada nas doutrinas radicais da liberdade e dos direitos naturais; e, mais
importante que isso, uma república em cujo seio tais doutrinas eram capazes de representar
apropriadamente o mundo no qual todos menos uma minoria viviam. Apenas quando a negação da
liberdade se tornou uma anomalia aparente mesmo ao mais distraído e irrefletido observador euro-

13
americano é que a ideologia passa a explicar a anomalia. Mas a escravidão floresceu por cem anos
desde seu aparecimento sem que precisasse de uma razão ideológica que fundasse na raça. A razão
para isso é simples. A raça explicava o porquê podia ser justificada a negação daquilo que era
garantido a todos: nomeadamente, a negação da liberdade, que supostamente era um evidente
presente de Deus. Mas não havia nada o que se explicar até que todas as pessoas pudessem tomar a
liberdade por garantida – nem os servos temporários e nem os ingleses livres despossuídas podiam
tomá-la por garantida.

Não eram os afro-americanos que precisavam de uma explicação racial; não foram eles que
inventaram a raça. Euro-americanos resolveram a contradição entre liberdade e escravidão
definindo os afro-americanos enquanto raça; os afro-americanos resolveram essa contradição mais
diretamente clamando pela abolição da escravidão. A partir da era das revoluções dos Estados
Unidos, da França e do Haiti adiante, eles clamaram pela liberdade enquanto um direito natural. Não
foram eles que deram origem à vasta literatura do século XIX que procurava provar a sua
inferioridade biológica, e muito menos aceitaram-na. O vocabulário pode ser muito enganador.
Tanto os afro quanto os euro-americanos usaram palavras que hoje denotam raça, mas eles não
tinham um entendimento igual ao nosso dessas palavras. Afro-americanos compreendiam a razão
da sua escravização não como uma questão de cor, mas uma questão de crime. Os afro-americanos
se inventaram não como raça, mas como nação. Eles não tinham problemas, como muitas
acadêmicas têm, em expressar esse senso de nacionalidade através de um vocabulário racial.
Aqueles soldados africanos que se alistaram em nome dessas ‘Pobres nações de cor’ e ‘Pobres
nações de raças de cor’ não viam nada de incongruente em sua linguagem.

Na sua manifestação mais radical e americana, a ideologia racial é expectável de uma sociedade em
a escravização é a exceção a uma liberdade radicalmente definida, assim de tal maneira que não era
preciso esforços imaginativos para tomá-la como garantida. É a ideologia própria de uma sociedade
‘livre’ na qual descendentes de africanos são uma exceção anómala. Não há nenhum paradoxo nisso,
faz muito sentido. De fato, ainda vou mais além: na iminência da Revolução Americana, foi nos
Estados do Norte aonde a ideologia racial teve maior importância, na sociedade livre e burguesa do
Norte, aonde ambas a escravidão e a presença de afro-americanos se tornavam mais e mais
exceções menores. O paroxismo da violência racial que convulsionou o Sul durante os anos da
emancipação, e a crescente codificação legal detalhada da proscrição racial, representam a
nacionalização da raça, uma ideologia que cabia melhor ao Norte burguês que ao Sul escravocrata.

Para aqueles que viviam no Sul escravocrata durante sua fase de amadurecimento, a ideologia racial
na sua forma radical e americana não era capaz de descrever a sua paisagem social. Lá, a escravidão
não era uma exceção menor mas o princípio de organização central da sociedade, atribuindo os
espaços sociais não apenas aos escravocratas e escravos, como também à população negra livre e à
maioria branca que não possuía escravos. A desigualdade não era vista como um mal necessário a
ser tolerada apenas no caso dos negros e nem como uma necessidade que se derivasse de
propriedades biológicas. (No Sul, o auge do racismo científico – e do sexismo científico – se deu
depois, não durante a escravidão.) A desigualdade era um ordenamento divino, não científico, e não
era apenas aplicável à relação entre os donos e seus escravos, mas às relações entre homens e
mulheres, e entre as elites da agricultura e a maioria não-proprietária de escravos. Democracia não
era uma grande aspiração da classe das elites da agricultura. Na verdade, os intelectuais orgânicos
da classe das elites agricultoras (que rivalizavam com Engels na sua denúncia das péssimas
condições que enfrentavam os trabalhadores sob a mão de ferro do capitalismo industrial)
lamentavam-se de não poderem trazer sob as asas do benevolente regime escravocrata – referida
em eufemismos tácitos como “subscrição sem qualificação étnica” e “escravidão no abstrato” - os
trabalhadores brancos de sua sociedade. Não ia dar muito certo, afinal, dizer a uma maioria branca,

14
armada e com posses que ela, também, estaria muito melhor se fosse escravizada.

A Raça Hoje

A reticência dos intelectuais pró-escravocratas de afirmar tal conclusão publica e explicitamente é


capaz de explicar porque os Estados Unidos da América, até hoje, não desenvolveu um
conservadorismo político rigoroso, consistente e honesto. O único terreno histórico propício para
isso – nomeadamente, a sociedade escravocrata do Sul – foi contaminada pela necessidade de
responder às aspirações democráticas de uma maioria branca livre, de posses e armada. São poucos
os autoproclamados conservadores que hoje nos Estados Unidos ousam argumentar segundo o
princípio de que a desigualdade hereditária e a subordinação devem ser o destino da maioria das
pessoas. Ao invés disso, aqueles que são capazes de defender a desigualdade, fazem-no sobre a base
de um liberalismo de livre-mercado bastardo, associado tosca e inconsistente a determinismos
sexuais, étnicos e raciais.

Enquanto isso, muitos convictos na verdade e na justiça sucumbem a determinismos biológicos – a


égide do próprio inimigo – ao constatarem os horríveis sinais de que o racismo continua a persistir
no mundo. Impacientados pela luta, eles jogam as suas mãos para o céu e declaram que o racismo, se
não é geneticamente programado, é apesar disso uma ideia tão antiga e arraigada que tomou uma
‘vida própria’. Agindo assim, chegam muito mais próximo do que imaginam das ideias a que se opõe
ostensivamente. Hoje, é muito comum que torçamos o nariz àqueles que atribuem incapacidades
biológicas aos que pertencem a certa raça, mas está muito na moda atribuir incapacidades
biológicas – ou um equivalente – àqueles que se mostram racistas. De qualquer modo, os africanos e
seus descendentes se tornam uma categoria especial, posta à parte pela própria biologia: numa
instância a sua própria categoria, noutra a dos seus perseguidores.

Mas a raça não é nem um destino biológico e nem uma ideia tornada destino biológico através de
uma herança lamarckiana.
É uma ideologia e ideologias não têm vida própria. Como tal, não pode ser transmitida nem herdada,
como pode uma doutrina, ou um nome, uma propriedade. Se a raça hoje ainda vive, não é porque a
herdamos de nossos antepassados do século XVII, XVIII ou XIX - é porque continuamos a recriá-la
hoje. David Brion Davis teve a coragem necessária para defender a tese perturbadora segundo a
qual, durante a era da Revolução Americana, tanto os escravagistas quanto os abolicionistas eram
cúmplices na medida em que ambos estabeleciam a raça enquanto explicação histórica. Temos de
ter a coragem de admitir algo similar sobre o nosso próprio tempo e nossas próprias ações.

Aqueles que criam e recriam a raça atualmente não são apenas a horda que matou um jovem afro-
americano em uma rua no Brooklyn, ou as pessoas que se unem ao KuKluxKlan e a Ordem Branca.
São também as escritoras acadêmicas cuja a invocação de ‘atitudes’ autômatas e erros trágicos
estabelecem os africanos e seus descendentes enquanto uma categoria especial, colocando-os em
um mundo à parte e próprio, exclusivo e fora da história – uma forma de apartheid intelectual não
menos feio e opressivo do que a dos bio e teo-racistas, a despeito de suas aspirações à bondade
(para não dizer sentimento de bondade narcísica), que nada mais são que armadilhas pelas quais as
vítimas, como os antigos escravos, supostamente devem ser gratos. Estes são os acadêmicos
“liberais”, “progressistas” cujas as versões da raça fazem substituir palavras como escravidão,
injustiça, opressão e exploração por jargões “neutros” como diferença e diversidade, divergindo a
atenção da origem nada neutra que essas palavras denotam. Aqueles que criam e recriam a raça
atualmente são a Suprema Corte e os porta-vozes das ações afirmativas, incapazes de definir ou
promover a justiça sem aumentar o prestígio da raça; objetivos que continuarão perseguindo

15
enquanto seus fins forem o realocar do desemprego, da pobreza e da injustiça ao invés da sua
abolição.

Criadores e recriadores da raça incluem a mulher que, ao perguntar ao seu filho de quatro anos
sobre se o amiguinho de quem falava era negro, riu-se quando ele respondeu que não, que ele “era
castanho”. A sua risada foi provocada pela inocência da resposta da criança, tão cedo já corrompida.
A sua risada, apesar de benevolente, precipitou sobre a criança a corrupção que ela lamentava, já
que ensinou ao seu filho que a sua descrição empírica do coleguinha era fofa, mas incorreta. Fê-lo
crer que, de um modo que a transmissão de estereótipos não poderia fazer, que é a descrição é que
segue a raça, e não o contrário. É desses pequenos, inócuos e constantes rituais, muitas vezes
levados a cabo com as melhores intenções, que a raça é feita criada e recriada todos os dias. O mal
pode surgir de más e boas intenções. Eis o caráter falível e trágico da história humana – ou, para
usar outro vocabulário, eis o seu caráter dialético.

Nada que nos foi relegado pelo passado poderia manter a raça viva, não a reinventássemos e
ritualizássemo-la de modo a que caiba em nosso terreno social. Se a raça ainda vive hoje, é só
porque nós continuamos a criá-la e recriá-la na nossa vida social, é porque continuamos a ratificá-la,
e portanto continuamos a necessitar de um vocabulário social capaz de nos permitir fazer sentido,
não daquilo que os nossos ancestrais fizeram à época, mas daquilo que nós devemos escolher fazer
agora.

16

Você também pode gostar