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A primeira prenda do Pai Natal

1.
O Pai Natal acordou muito cedo. Olhou para o lado: a Mãe Natal ainda dormia. Levantou-se
com muito cuidado (se ela acordava de repente ficava impossível de aturar) e, em bicos de
pés, foi até à porta da rua. Abriu-a muito devagar e lançou os olhos, ainda vagamente piscos
de sono, pela imensidão gelada à sua frente. Neve, neve e nada mais além de neve. Uma
brancura que até fazia arder a vista.
-Ainda não é desta… - murmurou desanimado.
Voltou a fechar a porta e sentiu-se muito cansado.
-Mas por que é que, em todo o mundo, só eu é que não tenho direito a receber um presente
de Natal? – murmurou, olhando a lista que a Mãe Natal lhe tinha deixado em cima da mesa,
para que não se esquecesse de nada.
Até ela, até ela tinha direito à sua prenda. Durante muitos anos, limitara-se a pedir «umas
luvas de lã, pois tenho as mãos sempre enregeladas». Mas ao fim de tantos anos já não havia
gavetas que chegassem para guardar as luvas – e as mãos continuavam enregeladas.
-«Um telemóvel… Um microondas… Um Game Boy…»
O Pai Natal suspirou fundo.
-Mas que raio será isto… Um «Game Boy»?
Suspirou mais fundo.
-E para que servirá?
Suspirou ainda mais fundo.
-Esta mulher tem cada ideia…
Suspirou ainda muito mais fundo.
-Que saudades do tempo em que vinha carregado para casa com luvas de lã!
Suspirou tão fundo que a Mãe Natal acabou por acordar.
-Que estás tu aí a resmungar? Não devias já ir a caminho? Sabes perfeitamente que, se não
sais muito cedo, chegas ao engarrafamento da Nuvem 32 com a Nebulosa 23 e estás feito! E,
para além disso, também sabes perfeitamente que a Rena Prateada coxeia de uma pata. Com
ela, nada de pressas.
O Pai Natal fez de conta que não a ouviu. Voltou para o quarto e enfiou-se na cama.
-Tenho muito tempo – disse. – O teu relógio deve estar avariado. Deixa lá, eu dou-te um novo.
Em vez daquelas porcarias que me pedes na lista.
A Mãe Natal protestou, quais porcarias, ele não devia estar bom da cabeça, ela só tinha pedido
coisas úteis, ou ele não sabia que, por exemplo, a Nuvem 78, desde que tinha um telemóvel,
passara a comunicar com a Terra e só chovia quando era mesmo preciso? Ou que o Anticiclone
dos Açores, desde que tinha um microondas, só soprava brisas quentinhas, que até o número
de turistas tinha aumentado e tudo, e que um Game Boy…
Mas por essa altura já o Pai Natal ressonava, sonhando com enormes taças de chocolate
quente, com uma boa braseira, com o Jingle Bells a tocar baixinho.
E com o sorriso de Doroteia.

2.
Foi no ano em que conheceu Doroteia que o Pai Natal sentiu, pela primeira vez, que estava a
ficar velho. Começou a contar os anos de serviços – mas tinham-se acabado os números e
ainda sobravam anos. Verdade se diga, o forte dele nunca fora a matemática, chumbara até
duas vezes no exame final do curso, porque lhe calhava sempre o mesmo problema - «um
trenó tem quatro pares de renas; quantas renas, ao todo, tem um trenó?» - e ele nunca
atinava com a resposta certa. Uma vergonha.
Acabou por ficar com o lugar porque, entretanto, os outros dois candidatos tinham desistido
(um era atreito a pneumonias e estava sempre de cama; o outro tinha asma e era alérgico à
fuligem das chaminés) – mas com a promessa de ser substituído por outro, assim que se
apresentasse candidato à altura.
O que se passou, nunca soube; mas até agora ainda não aparecera ninguém a rendê-lo. Todos
os anos, mal se aproximava o dia 24, lá começava ele a abrir a porta de casa, procurando
descobrir, na imensidão gelada à sua frente, o vulto de um Pai Natal mais novo, prontinho a
entrar ao serviço.
Mas até agora, ninguém tinha chegado. Nem mesmo no ano em que falhara os presentes. No
ano em que conhecera Doroteia.

3.
Lembrava-se de tudo: as letras muito redondinhas das cartas das meninas, às vezes com erros
de ortografia (ele podia não ser bom a matemática, mas em ortografia ninguém lhe ganhava),
às vezes a saírem das linhas do papel, e todas elas a pedirem uma coisa estranhíssima: uma
Barbie. Havia quem escrevesse Barby, havia quem escrevesse Barbie, havia quem escrevesse
com letra maiúscula, havia quem escrevesse com minúscula. Mas ninguém se lembrara de
explicar que coisa seria aquela.
-Toda a gente pensa que o Pai Natal sabe tudo… - murmurava a Mãe Natal, que acrescentara
imediatamente: -E até devia saber. Por isso é que é Pai Natal. Senão era um pai como os
outros.
O Pai Natal ficara muito ofendido:
-Ninguém nasce ensinado… Se lá no curso me tivessem explicado essas coisas, em vez de se
porem com aqueles estúpidos problemas de renas…
-É capaz de ser alguma coisa de comer! – dissera a Rena Prateada.
-Um ventinho especial para secar melhor a roupa! – dissera o Anticiclone dos Açores.
-Meia dúzia de pingos de chuva transparentes! – dissera a Nuvem 57.
-Ou uma árvore ainda desconhecida! – dissera o Abeto da Curva 18.
Acabara por encher o saco com todos os pedidos de todas as listas – menos aquela coisa
estranhíssima que dava pelo nome de barbi – e partiu para o trabalho.

4.
-Que tens? – perguntou uma menina, que tinha ficado acordada para o ver, na última casa
dessa noite.
-Estou cansado – disse ele.
A menina sorriu e não acreditou.
-O Pai Natal nunca está cansado!
Ele suspirou muito fundo. E acabou por confessar:
-Falhei muitos presentes esta noite. Nunca me tinha acontecido.
-Falhaste, como? – perguntou ela.
-Falhei. Dei jogos, lápis de cor, meias quentinhas – mas não era isso que me tinham pedido.
-E o que é que te tinham pedido?
O Pai Natal suspirou ainda mais fundo.
-Uma coisa que eu não conheço. De que nunca ouvi falar. Nunca me tinham pedido antes.
Fez uma pausa e rematou:
-Uma barbi. E eu não sei o que é uma barbi.
A menina riu. Muito baixinho para não acordar os pais, que nunca gostam que os filhos
tenham longas conversas com o Pai Natal. E levou-o pela mão até ao canto do quarto, onde lhe
mostrou uma boneca, diferente de todas as que ele conhecia. Mais parecia uma mulher em
miniatura, pernas magrinhas, cintura fininha, e uma larga cabeleira loira. O Pai Natal lembrou-
se da primeira boneca que oferecera, de barro pintado, há muitos, muitos anos, e ficou a olhar
para aquela, sem dizer nada.
-Chama-se Barbi. Trouxe-me o meu pai da América – disse a menina.
-Tens um pai na América? – espantou-se o Pai Natal.
A menina tornou a rir.
-Não, parvo! A boneca é que veio da América. O meu pai estava lá e trouxe-me. Só lá é que há.
Mostrei-a às minhas amigas e elas todas quiseram uma igual. Se calhar foram elas que te
escreveram a pedi-la.
-Se calhar… - murmurou o Pai Natal, acrescentando: - Barbi... Mas que nome para boneca!
-É um nome como outro qualquer! – disse a menina. – Eu chamo-me Doroteia, e também acho
que não é lá grande coisa.
O Pai Natal não sabia o que dizer. Acabou por se encher de coragem:
-Não digas às tuas amigas que eu não sabia o que era uma Barbi! Prometes?
-Prometo – disse Doroteia. – Com uma condição.
O Pai Natal olhou para ela, à espera.
-Quando não souberes qualquer coisa, pergunta-me. Vem primeiro à minha casa, e assim pode
ser que ainda tenhas tempo de dar às pessoas aquilo que elas querem!
Olharam um para o outro e sorriram. Um sorriso foi sempre a melhor maneira de selar uma
promessa.
Ficaram amigos.

5.
Quando quer recordar há quantos Natais isso foi, não consegue. Mas tem a certeza que foi há
muitos.
De então até hoje, a casa de Doroteia era sempre a primeira em que ele entrava. Distribuía os
presentes, ficavam na conversa, e acabavam os dois a beber canecas de chocolate quente,
junto da braseira. De vez em quando ele perguntava-lhe o significado de alguma palavra nova
que surgia nas listas de presentes, e ela sabia sempre tudo. Às vezes o Pai Natal até se sentia
ligeiramente envergonhado.
-As coisas que tu sabes! – disse-lhe uma noite.
-Ando na escola – disse Doroteia. – Lá aprendem-se muitas coisas.
-Se um trenó tem quatro pares de renas, quantas renas é que tem o trenó?
Doroteia riu muito.
-Oito renas. Que dificuldade há nisso?
O Pai Natal suspirou.
-Nenhuma. Era eu a brincar contigo.
E bebeu o resto do chocolate quente sem dizer nem mais uma palavra.

6.
Sentiu que alguém o abanava. Abriu os olhos, estremunhado.
De telefonia ao ouvido, a Mãe Natal recordava-lhe que eram horas.
-Estás a ouvir? Era o que eu previa… Engarrafamentos e mais engarrafamentos! Ainda por cima
houve uma colisão de trenós na Planície Alfa, está o trânsito cortado. Estão a aconselhar o
desvio que atravessa a nebulosa de Andrómeda, depois cortas a direito pelo meio da
Cassiopeia, mas cuidado que se prevê uma chuva de meteoritos, vê lá não apanhes com algum
na cabeça, e cuidado com a pata da Rena Prateada! Olha que as renas hoje em dia estão pela
hora da morte, temos de as estimar bem se queremos que elas durem. E cautela também com
o piso escorregadio nas imediações da Estrela Polar. Ao que parece, já houve cinco choques
em cadeia!
O Pai Natal não ouvia nada. Ainda nem sequer tinha começado a trabalhar e já se sentia
cansado. Se depois desta noite não chegasse o seu substituo, iria escrever uma carta a Quem-
Tudo-Manda lembrando-lhe o que ficara acordado há… Volta a fazer as contas… Mil… Mil e
cem... Mil e seiscentos… Mil e novecentos… Dois mil… Será possível?... Há milhares de anos
que ele anda nesta lida? Tenta recordar a primeira vez que saiu em serviço, mas não consegue.
Lembra-se, no entanto, de ter uma vez levado ouro, incenso e mirra que uns reis lhe tinham
pedido. E depois esses reis tinham deixado as prendas junto de um recém-nascido, numa
gruta. Fazia muito frio.
«Se calhar dava-lhe mais jeito um xaile», lembra-se de ter pensado.
Mas reis eram reis, e lá deviam saber por que pediam tão estranhas prendas. Nunca mais
soubera nada do recém-nascido. E se ainda se lembra disso, é porque nunca mais ninguém lhe
fez tão estranhos pedidos.
-Vou pedir a reforma – murmurou.
Mas a Mãe Natal continuava de telefonia colada aos ouvidos, a gritar «despacha-te, despacha-
te», e nem sequer o ouviu.
Resignado, pegou na saca das prendas e saiu para a imensidão gelada à sua frente.

7.
Estranhou não encontrar Doroteia junto da chaminé, à sua espera, como sempre. Mas a
caneca de chocolate lá estava, em cima da mesa da cozinha.
Tirou a lista das prendas de dentro do bolso do casaco.
-Ora vamos lá a saber que coisa será esta de… «Game Boy»…
Doroteia sabia, de certeza. Doroteia sabia sempre tudo.
Enquanto bebia o chocolate, recordou os presentes que fora trazendo a Doroteia ao longo
destes anos todos. A memória já lhe falhava, mas lembrava-se do ano em que ela quisera uns
patins, e depois quando quisera um diário («com uma capa às florinhas cor-de-rosa, como eu
vi na montra da Papelaria da Moda», escrevera ela nesse ano), e depois um bâton, e depois
roupa, anos e anos seguidos só a pedir-lhe roupa, saias compridas, e no ano seguinte saias
muito curtinhas, e depois outra vez saias compridas, e ele a rir com aquelas manias dela. O
pior foi quando ela lhe pediu um automóvel. Isso é que foi mesmo complicado, e o que aquela
porcaria pesava dentro do saco! Chegara tão derreadinho que ela até lhe dera duas canecas de
chocolate em vez de uma, e mais um cálice de Vinho Porto para retemperar forças.
Mas este ano os presentes que Doroteia pedira pesavam pouco. O Pai Natal até sorrira, ao ler
a carta dela.
-Voltou a brincar outra vez… - murmurava, enquanto enfiava para dentro do saco, o urso de
peluche que ela queria.

8.
Estava a acabar de beber o chocolate.
-Tenho de ir… - murmurou para si próprio.
Pela primeira vez, nestes anos todos, Doroteia não o viera receber à cozinha. Logo nesta noite,
que seria certamente a última em que ele trabalhava. Logo nesta noite em que iria despedir-se
dela, anunciar que outro Pai Natal viria em seu lugar nos próximos tempos, que ele estava
velho, já se esquecia de muitas coisas, já não tinha paciência para ouvir a gritaria da Mãe
Natal, já lhe doíam as costas de tantas horas seguidas a guiar o trenó, já tinha as renas a
precisarem também de reforma, qualquer dia ficava para aí estendido numa qualquer colisão
entre nuvens, e ninguém se iria importar, ou sair em sua busca. Tem mesmo de partir.
Tira o peluche de dentro do saco e pousa-o junto da chaminé.
-Se calhar é melhor assim… - murmura. -As despedidas põem-me sempre muito triste.
Mas quando se prepara para subir pela chaminé («por que será que não se pode entrar e sair
pelas portas?», perguntara ele, nesse longínquo exame de fim de curso, e apanhou uma
descompostura dos professores que ainda hoje não esqueceu), um leve murmúrio leva-o a
virar a cabeça.
-Ias-te embora sem esperares por mim?
Doroteia está na sua frente, com uma boneca ao colo.
-Demoraste tanto! – diz ele.
A boneca mexe-se, começa a chorar. O Pai Natal não se lembra de alguma vez ter dado a
alguém uma boneca que chorasse como aquela.
Doroteia aproxima-se dele.
-Queres pegar nela? Nasceu há dois dias. E vai chamar-se Natal, por tua causa.
O Pai Natal não sabe o que dizer. De repente lembra-se daquele recém-nascido na gruta, e dos
reis, e daqueles estranhos presentes.
-Se calhar – murmura – devia ter-lhe trazido ouro, incenso e mirra.
Doroteia sorri. Nunca ninguém lhe sorriu como Doroteia.
-O urso de peluche serve muito bem. – diz ela. – E daqui a uns anos, não te esqueças: vais ser
tu a dar-lhe uma Barbi!
-Combinado! – diz o Pai Natal, esquecido das dores nas costas, dos gritos da Mãe Natal, das
renas coxas, dos engarrafamentos, dos meteoritos, das colisões e choques em cadeia.
A reforma vai ter de esperar.
-Combinado! – repete.
Quer dizer qualquer coisa de muito especial, dizer que aquela é a sua primeira prenda de Natal
nestes anos todos, que afinal o Pai Natal também pode receber presentes, e que aquele é o
melhor presente do mundo.
Mas, sem saber como, dá por si a dizer:
-Quatro pares de renas são oito renas!
-Bravo! – exclama Doroteia. – Não te enganaste na conta!
Riem os dois, baixinho, olhando o rosto adormecido de Natal.

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