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Caniato, A. M. P.; Moura, R. H. de; Abeche, R. P. C.; Eckstein, D. F.; Santos, D. A. dos; Alves, E. F.; Ligeiro,
R. R. & Costa, V. A. da. Relações afetuosas e solidárias: uma pesquisa-intervenção

Relações Afetuosas e Solidárias:


Uma Pesquisa-Intervenção

Affective and Sympathetic Relations:


An Intervention Research

Angela Maria Pires Caniato1

Renata Heller de Moura2

Regina Perez Christofolli Abeche3

Daniele Fernanda Eckstein4

Danieli Aparecida dos Santos5

Emanoelle Fogaça Alves6

Renata Reginato Ligeiro7

Vanessa Alexandre da Costa8

Resumo
Phenix é um projeto de pesquisa-intervenção que atuou, em 2004, junto ao programa governamental Agente jovem de desenvolvimento social
e humano. O objetivo foi construir junto aos adolescentes participantes do programa uma reflexão que pudesse ajudá-los a se libertar das
atribuições sociais de malignidade (preconceitos) que lhes são imputadas. Por meio da metodologia de pesquisa participante, alunos de
graduação da Universidade Estadual de Maringá (UEM) reuniram-se uma vez por semana com os adolescentes do programa para discutir
problemas trazidos por eles. A intervenção foi realizada por meio de diferentes técnicas de dinâmica de grupo, filmes e programas de
televisão que serviram como disparadores para as discussões sobre os temas propostos. Mensagem subliminar, formação de grupos, exclusão
social, vínculos afetivos e sexualidade foram os temas discutidos. A construção de uma ligação afetiva entre alunos de graduação e
adolescentes do programa Agente jovem e o desenvolvimento de uma postura crítica emancipatória por parte dos últimos foram alguns dos
resultados alcançados.

Palavras-chave: adolescência; indústria cultural; preconceito; educação emancipatória.

1
Professoras do Departamento de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá. Endereço para corresondência: Rua Joaquim Nabuco,
1496, Maringá, Paraná, CEP: 87014-100. Endereço eletrônico: ampicani@onda.com.br.
2
Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá.
3
Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá.
4
Acadêmica do Curso de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá.
5
Acadêmica do Curso de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá.
6
Acadêmica do Curso de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá.
7
Acadêmica do Curso de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá.
8
Acadêmica do Curso de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá.

Pesquisas e Práticas Psicossociais 5(2), São João del-Rei, agosto/dezembro 2010


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Caniato, A. M. P.; Moura, R. H. de; Abeche, R. P. C.; Eckstein, D. F.; Santos, D. A. dos; Alves, E. F.; Ligeiro,
R. R. & Costa, V. A. da. Relações afetuosas e solidárias: uma pesquisa-intervenção

Abstract
Phenix is an intervention research project which was performed, in 2004, jointly with the governmental program Social and human
development younf agent. The objective was to build with the adolescents participating in the program a reflection which could help them to
be released from the social attributions of malignity (prejudice) which are placed upon them. By means of the participatory research
methodology, undergraduate students from the State University of Maringá (UEM) gathered once a week with the adolescents from the
program in order to discuss problems brought by them. The intervention was conducted by means of different group dynamics techniques,
films, and television programs which served as triggers for the discussions on the suggested topics. Underlying message, group formation,
social exclusion, affective bonds, and sexuality were the issues discussed. The construction of an affective bond between undergraduate
students and adolescents from the program Young agent and the development of an emancipatory critical posture by the latter were some of
the results achieved.

Keywords: adolescence; cultural industry; prejudice; emancipatory education.

Apresentação a miséria que vive camuflada nos fundos de várzea


e nas periferias da chamada zona urbana. Em
O projeto de pesquisa-intervenção Phenix: A contrapartida, o projeto federal concede prioridade
ousadia do renascimento da subjetividade cidadã aos jovens fora da escola, entendendo que eles são
teve início em 2000 e, desde então, desenvolve livres de qualquer possibilidade de contenção
pesquisas e intervenções baseadas em estudos de social, o que seria uma das funções desempenhada
Freud e de Adorno. O projeto teve como uma de pelas escolas.
suas frentes de trabalho a intervenção junto a Caniato et al. (2002) afirmam que uma das
adolescentes que participavam do programa finalidades do projeto é "reverter indicadores
governamental Agente jovem de desenvolvimento sociais pela ação corretiva e preventiva do Jovem
social e humano. Agente Social e Humano junto à comunidade". Tais
Em um primeiro momento, quando os indicadores sociais, que exigem ações corretivas,
integrantes do Phenix tiveram contato com o grupo qualificam esses jovens em uma “categoria de
de adolescentes do Agente jovem, foi realizada uma acusação”, termo cunhado por Velho (1987),
análise do programa governamental (Caniato et al., definindo-a como um conjunto de atribuições dadas
2002), fundamentada em um discurso de a determinado grupo de indivíduos que os coloca
desenvolvimento da cidadania. O Governo Federal, em condição de oferecer perigo à sociedade.
por intermédio da Secretaria de Estado da O documento do governo federal utiliza um
Assistência Social, havia elaborado o Agente jovem termo equivalente cunhado pelo Estatuto da Criança
juntamente com o Programa adolescentes e do Adolescente (ECA), denominando o grupo
promotores de saúde – uma metodologia para desses jovens de "grupos especiais de risco".
capacitação, originário da área de saúde do Especificamente, no caso dos jovens, há a
adolescente e dos jovens do Departamento de ações denominação "adolescentes em situação de risco
programáticas estratégicas da Secretaria da Saúde pessoal e social” (Programa Agente Jovem, 1999, p.
do Ministério da Saúde (abril de 2000). O objetivo 10). Tal população, de acordo com esses
de tais programas era formar 8.000 (oito mil) documentos do governo federal, deve ser submetida
jovens entre 15 e 17 anos, oriundos de famílias de a “ações socioeducativas”, ou seja, ser integrada a
extrema pobreza e que, prioritariamente, estivessem grupos para facilitar a sua tutela. Esses grupos
fora da escola. podem ser mais bem vigiados para que, em uma
Em Maringá, segundo Caniato et al. (2002, p. ação de correção, a sociedade seja provida de
98), “o conjunto desses dois programas sofreu uma segurança e seja mantida a ordem social. De acordo
reelaboração”. Sob a municipalização, recebeu um com Caniato et al. (2002), tal programa
adendo ao nome: Programa Agente jovem de governamental possui forte conotação ideológica,
desenvolvimento social e humano – Líder instrumentalizada com o fim de perpetuar a
comunitário do novo milênio. O projeto municipal segregação social e executar certa contenção do que
passou a exigir que, para integrar o programa, os designa “população em situação de extremo risco
adolescentes deveriam “prioritariamente estar na social”.
escola” (p. 98). E ainda, conforme os autores, essa Vejamos outro objetivo a ser atualizado com
exigência “mostra o caráter conservador da cultura os adolescentes por esse programa no primeiro
local que não admite os índices de analfabetismo e semestre de cada ano: “[Com a participação de
evasão escolar” (p. 98) existentes na cidade e nega jovens da comunidade] serão realizadas ações
efetivas na comunidade, identificando problemas,

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solucionando e/ou encaminhando aos setores pela internalização dessa violência social (Freud,
responsáveis, sensibilizando a comunidade para as 1981). Sob essa autopunição, esses adolescentes
formas de prevenção e resolução dos problemas estão impedidos de identificar a violência social
detectados” (Programa Agente Jovem, 1999, p. 12). que os maltrata e, consequentemente, os
No dizer de Caniato et. al. (2002, p. 103): impossibilita de se protegerem e de desenvolverem
uma consciência crítica em relação a si e às
Coloca-se aqui o jovem na posição de atuar em sua condições opressoras em que vivem. Tornam-se
comunidade, "identificando” e, portanto, informando presas fáceis dessas padronizações estereotipadas
ou delatando "problemas” não especificados, em produzidas pela sociedade capitalista
princípio, de qualquer natureza, que estejam fora da
"normalidade” e, portanto, passíveis de vigilância e
contemporânea (Adorno, 1986) e, portanto,
até de punição, efetuada pelos próprios agentes cúmplices da opressão social. Mais grave ainda,
jovens. No “caso de não “solucionarem o problema”, esses adolescentes acabam por justificar tais
eles denunciariam tais ocorrências aos “setores estereotipias ao entrarem em uma vida de exposição
responsáveis”, ou seja, ao Estado. a perigos que muitas vezes culmina em atos por
suposição heróicos, podendo ser expostos às ações
Ainda nas palavras de Caniato et al. (2002, p. repressivas da polícia.
103): É importante identificarmos, contudo, que essa
formação de estereotipias está escamoteada nos
Aqui, o “protagonismo” desses líderes jovens discursos demagógicos e ideológicos dos regimes
significa o desempenho da função de policiamento, políticos contemporâneos, ditos democráticos.
de vigilância, aplicando ações corretivas ou punições Ademais, o que justifica a atuação voltada para
aos seus pares e, por fim, a delação de “problemas” atender uma população adolescente pauperizada
ou as condutas desviantes aos órgãos do Estado para está no fato de que, em consonância com Kehl
punição mais efetiva.
(2004), a juventude tem sido o alvo da atual
sociedade de consumo, seja como ideal, seja como
Caniato et al. (2002) acrescentam que, por sintoma. As forças do capital souberam reorganizar
meio desse programa, o governo pretende o caos adolescente em torno da lógica alienadora do
desenvolver agentes para auxiliá-lo na aplicação de dinheiro e da mercadoria como valor norteador de
suas políticas de segregação. Trata-se de um suas condutas. Os adolescentes pauperizados,
trabalho de adestramento de líderes jovens para submetidos a essa lógica, são violentados não só
atuarem no sentido de manter a ordem econômica, pelo caráter enganador das promessas do mercado
política e social, oferecendo ainda à classe na aquisição de mercadorias, mas também pela
dominante a segurança de que tais líderes política das compras a prazo, com parcelas
conseguirão protagonizar a contenção dos seus infindáveis a preços ditos mínimos e em nome da
pares para que, mantendo-os sob vigilância, deixem tão aclamada e perversa inclusão social.
de ser um risco à sociedade. Esse caráter violentador da sociedade frente às
classes pauperizadas é vivenciado pelos
Pressupostos Metodológicos Da adolescentes com intenso sofrimento. Os
Intervenção adolescentes pressentem suas subalternizações e tal
compreensão se evidenciou quando eles
Nossa perspectiva política fundamenta-se na manifestaram, timidamente, a vontade de conhecer
constatação de que as classes sociais pauperizadas melhor o processo de exclusão social que atravessa
estão vivendo sob exclusão psicossocial (Guareschi, o seu dia a dia. O que dizer dos acontecimentos que
1992), expostas a ações marginalizadoras e de cercam os adolescentes pauperizados quando
controle social em sua vida pública e privada. Além submetidos à lógica alienadora do dinheiro e da
disso, essa população vem sendo considerada mercadoria como valores norteadores das condutas
população de risco e sobre ela recaem diferentes dos homens sob o capital?
qualificações preconceituosas, uma vez que é vista No contexto social contemporâneo, predomina
como representando uma ameaça ao status quo o consumismo e a lógica da mercadoria,
dominante. Entretanto, a exposição dessa população entendendo-se que a cultura vem sendo produzida
às “categorias de acusação” (Velho, 1987) e às pelo mercado. Na concepção freudiana, a cultura
injúrias do “mito das classes perigosas” (Coimbra, deveria ser produzida pelos homens e para eles,
2001) torna tais indivíduos vulneráveis ao visando sempre à melhoria das relações humanas e
desenvolvimento do sentimento de culpabilidade à felicidade de cada um. A cultura serviria,
também, para a proteção dos homens contra a

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natureza. Adorno (1986), porém, mostra que, violentou. Tem-se, então, um sujeito impedido de
atualmente, a cultura vem sendo expropriada da realizar suas capacidades de pensamento,
maioria dos homens, passando a estar nas mãos de julgamento, decisão, escolha e até mesmo de amor.
um grupo hegemônico que a orienta na Esses mecanismos podem ser notados
manipulação das ações humanas de modo a facilmente e com grande frequência pois são
transformar os indivíduos em uma massa amorfa, veiculados o tempo todo nos meios de
padronizada, passiva e conformista (Adorno, 1986). comunicação: na televisão, estão presentes nos
Não sendo o homem o sujeito da cultura, é grandes reality shows, novelas ou propagandas que
empurrado para a condição de massa e facilmente associam imagens a ideias que lhes são favoráveis;
moldado pela indústria cultural para que o status no rádio, com as músicas de letras referentes a
quo seja mantido. violência, drogadição ou sexo; no cinema, com as
A indústria do entretenimento é um importante megaproduções alienantes; na moda que cria
instrumento da alienação dos homens na subculturas, mantendo cada vez mais a divisão
contemporaneidade. Ela perverte o lazer, rígida de classes, por meio do que seria, em tese,
transformando-o em uma compulsão pelo prazer. A uma maneira de expressão do indivíduo. Isso tudo
alienação da indústria do entretenimento é a de que são meros exemplos frente ao bombardeio diário de
o indivíduo descanse e não identifique todas as mensagens subliminares que pervertem nossa
opressões em que vive em seu cotidiano (Martin & capacidade de pensar e que estão presentes no
Schumann, 1999). cotidiano. Durante nossas reuniões com o grupo
A indústria do entretenimento utiliza-se ainda Agente jovem, esses exemplos foram postos em
dos indivíduos como protagonistas das histórias de pauta e, muitas vezes, surgiram a partir dos próprios
sofrimento que têm um final feliz. Adorno (1985, p. adolescentes.
132) assinala que “a lei suprema é a que eles não Visando alterar esse quadro, o projeto Phenix
devem, a nenhum preço, atingir seu alvo, é atuou junto aos adolescentes para que, por meio da
exatamente [com] isso que eles devem, rindo, reflexão sobre as questões que os mantêm atados a
satisfazer-se”. Isso corrobora a ideia de que os estereotipias, esses indivíduos consigam
indivíduos precisam sofrer para, posteriormente, desenvolver uma consciência crítica. Essa
serem recompensados. Embora eles possam dirigir esperança é o fio condutor do projeto que se inspira
sua destrutividade para um objeto externo a eles, na lenda de Fênix, uma ave fabulosa, única em sua
estão sob a mais-repressão e em condição espécie. Segundo a lenda, ela vivia a muitos séculos
simbiótica com os demais: o ego acaba por atacar a no meio do deserto da Arábia; quando sentia a
si mesmo. aproximação de sua morte, construía um ninho de
Freud (1981) chama esse fenômeno de plantas aromáticas que os raios do sol incendiavam
“sentimento de culpabilidade”, uma distorção da e nele deixava-se consumir. Da medula de seus
culpa reparatória, que se revela de forma ossos, nascia um verme que se transformava em
inconsciente na autopunição em que o sujeito outra Fênix.
acredita piamente que é ele quem deve ser punido, A esperança dos integrantes deste projeto de
visto que, sob a debilidade egóica que se instala, pesquisa-intervenção é que a lenda seja possível de
não está em condições de identificar o seu real ser atualizada por meio das discussões que
agressor. Podemos enunciar, então, que a indústria realizamos com os adolescentes. O desejo de cada
cultural funciona à base da mais-repressão, uma participante é o de que, nesse deserto em que
vez que impede que o sujeito consiga identificar seu vivemos, possamos ser como folhas aromatizantes
agressor, que, para ele, é onipotente. ao redor de cada indivíduo que se sinta sucumbindo
Sabemos que não há lugar para todos os e, à luz da reflexão, possamos aquecer e consumir a
indivíduos sob as promessas enganosas da indústria apatia causada pelo fatalismo (Martin-Baró, 1987)
cultural e que não depende do esforço de cada um para que seja possível o renascimento da
atingir o patamar de sucesso idealizado para si. O subjetividade cidadã.
mecanismo de ilusão utilizado é o acaso, ou seja, a A orientação metodológica do projeto encontra-
ideia de que todos têm uma chance de alcançar se pautada na pesquisa participante de observação
êxito. militante, que questiona, de acordo com Thiollent
A integração total do indivíduo àqueles que o (1981) e Brandão (1981), os princípios ideológicos
violentam e manipulam acarreta a abstenção de sua que sustentam a produção do conhecimento. O
autonomia, singularidade, alteridade e – por que princípio da neutralidade, por exemplo, cai por terra
não? – de sua humanidade, visto que ele se torna ao percebermos que “nenhum conhecimento é
mero componente legitimador desse processo que o neutro e nenhuma pesquisa serve teoricamente a

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todos dentro de mundos sociais concretamente fundamentarmos nossa intervenção, buscamos


desiguais” (Brandão, 1981, p. 11). A relação de apoio na Psicologia da Forma (Gestalt), já que essa
troca é o fundamento desse método de pesquisa, escola da Psicologia aprofundou seus estudos a
porque dessa forma o problema a ser estudado respeito do funcionamento da percepção humana.
(objeto de pesquisa) deve surgir dos Nessa teoria, a percepção é uma totalidade, uma
questionamentos feitos pela própria população na gestalt, e toda tentativa de analisá-la ou reduzi-la a
relação com o pesquisador. elementos provoca sua destruição. As mensagens
Para não perdermos de vista essas discussões e subliminares, no entanto, não colocam à disposição
as atividades desenvolvidas, registramos todos os de seus interlocutores todos os elementos que
passos do processo em diários que chamamos de permitam a gestalt, impedindo que seja possível
diário antropológico. Essas anotações foram uma apreensão perceptiva correta da realidade.
realizadas tanto no trabalho realizado com o grupo As mensagens subliminares emitem estímulos
de adolescentes participantes do projeto Agente fracos, inconstantes e de duração tão efêmera que
jovem, como nos seminários teóricos semanais escapam à nossa percepção consciente. Elas podem
realizados na UEM. O diário antropológico serviu veicular, então, ideias distorcidas e induzir o nosso
de memória histórica de todos os episódios vividos comportamento segundo essas “ideias”, sem que
na pesquisa-intervenção. possamos identificar, de forma correta, o que está
ocorrendo.
Uma Breve História dos Encontros No segundo e no terceiro encontros,
aprofundamos um pouco a discussão e a definição
do conceito por meio de cenas do filme Clube da
Apresentaremos, a seguir, os resultados obtidos Luta de David Fincher (1999), em que podemos
a partir da discussão de cada um dos temas que observar a presença de mensagens subliminares;
recebeu destaque durante a intervenção. houve intensa discussão sobre o assunto.
No quarto encontro, levamos algumas revistas
Mensagem subliminar com propagandas e imagens que demonstravam
claramente a veiculação de mensagens
Iniciamos a reflexão com o tema mensagem subliminares. Cada adolescente escreveu em um
subliminar para desvelar uma das estratégias de papel o que havia compreendido sobre aquelas
manipulação ideológica. Nossa intenção era ajudar imagens.
os adolescentes a desenvolver um olhar crítico para No quinto encontro, quando o conceito já fora
que pudessem assistir à TV e refletir sobre a mídia bastante discutido, levamos material de recorte para
naquilo que ela tenta nos envolver. Trabalhamos que os adolescentes, em grupo, criassem imagens
esse tema tendo em vista leituras como as de que transmitissem um conteúdo subliminar. O
Adorno (1985) e suas discussões sobre a indústria primeiro grupo apresentou um cartaz tratando da
cultural. mensagem ilusória que o PT vem mostrando na
Para que pudéssemos apresentar esse assunto atualidade. Mostrou que o discurso do PT, por trás
de forma acessível e claramente compreensível à de uma sedução, impõe suas determinações. O
população-alvo, foram necessários sete encontros. segundo grupo trouxe a ideia de como a marca
No primeiro, apresentamos o assunto e solicitamos Omo de sabão em pó se sobrepõe às outras marcas.
aos adolescentes expressarem aquilo que sabiam A ideia transmitida foi a de que as pessoas
sobre o tema mensagem subliminar. Os compram marcas e não produtos. O terceiro grupo
adolescentes alegaram que se tratava de algo tratava da questão ideológica submetida à ideia de
veiculado pela televisão, mas não sabiam precisar que o dinheiro traz felicidade. A ideia principal
do que se tratava. Nesse primeiro encontro, daquele grupo era indicar que, atualmente, é preciso
discutimos o conceito com base no que eles sabiam “ter” para “ser”. Eles colocaram em discussão a
e asseveramos que a mensagem subliminar é uma polêmica de que as mulheres são atraídas pelas
mensagem transmitida a um nível abaixo da posses de um homem. O último grupo procurou
percepção, na qual “os estímulos seriam tão fracos mostrar que cerveja e cigarro são geralmente unidos
ou de duração tão efêmera que escapariam à a mulheres bonitas, procurando desmascarar a ideia
percepção da consciência, mas suficientemente de que cigarro e cerveja trazem satisfação.
poderosos para influenciar o comportamento” Com o envolvimento e as expressões dos
(Pasquolotto, 2004). jovens, percebemos que eles entenderam os
Para compreendermos melhor como funcionam mecanismos pelos quais a indústria cultural age,
as mensagens subliminares e a fim de

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impondo sutilmente, via mídia, valores que desejam redefine como pessoa, em uma busca de si mesmo.
ou não que sejam internalizados por nós. Trata-se da transição da identidade infantil para a
No sexto encontro, a professora co- identidade adulta, ou seja, nessa fase ocorre a
coordenadora do projeto apresentou para os desestruturação e a reorganização estrutural da
adolescentes a sua tese de doutorado (Abeche, identidade e personalidade.
2003) em que trabalhou os efeitos midiáticos O grupo adquire uma importância
internalizados pelos indivíduos por intermédio do transcendental para o adolescente, já que ele
programa Big Brother Brasil II. Ela mostrou, transfere ao grupo grande parte da dependência que
especialmente, como os valores são construídos e anteriormente mantinha com a estrutura familiar e,
veiculados pela mídia para serem sutilmente especialmente, com os pais. Knobel (1981, p. 37)
internalizados por nós. propala que “as atuações do grupo e dos seus
No sétimo e último encontro sobre esse tema, integrantes representam oposição às figuras
utilizamos uma dinâmica que consistia em colar nas parentais e uma maneira ativa de determinar uma
costas de cada participante um rótulo de tal forma identidade diferente da do meio familiar.”
que todos conseguissem ver o que o outro O grupo fraterno é também um complemento
representava, menos ele próprio. Usamos essa indispensável para o desenlace da relação edipiana
dinâmica para explicitar como nossas relações do do adolescente com os pais (Kehl, 2004, p. 112). Os
cotidiano estão bastante pautadas sobre os rótulos e grupos de jovens permitem ao adolescente sua
valores veiculados pela mídia e não sobre o que as autoafirmação, em que o outro semelhante serve de
pessoas verdadeiramente são. parâmetro.
Durante a dinâmica, surpreendemo-nos ao Levisky (1998) pontua o fato de que todos no
observar que nós e os adolescentes formávamos grupo estão a reboque do que os demais do grupo
grupos espontaneamente, reunindo-nos pela são ou fazem, pois:
afinidade que tínhamos, ou melhor, pelos rótulos
que carregávamos. Formou-se o grupo dos vestem-se de forma parecida, usam a mesma
drogados, dos traficantes, dos ladrões, dos linguagem, fumam, bebem ou chegam a fazer uso de
assassinos; o grupo das galinhas e das prostitutas; o alguma droga, geralmente a maconha. Outros se
grupo dos universitários, dos CDFs, das santinhas; reúnem para realizar atividades culturais ou sociais.
o grupo dos homossexuais e das lésbicas, entre No grupo, uns se parecem com os outros, e nisso se
confortam. Um é modelo para o outro. Sofrem de
outros. O interessante era que reconhecíamos o angústias semelhantes, e na identificação se
nosso rótulo pelos grupos nos quais éramos aceitos encontram. (p. 54)
ou rejeitados e pelo modo como nos tratávamos.
Pudemos perceber que os jovens entenderam
O destino do grupo de adolescentes não
como a indústria cultural age e por quais meios vem
depende apenas da vontade de seus membros, mas
impondo sutilmente os valores que a sociedade quer
da existência de perspectivas coletivas, sobretudo
ou não que internalizemos. Concluímos que a nosso
políticas, para que as pequenas transgressões
favor temos apenas a nossa consciência, ou o que
secretas e primitivas dos jovens realizem sua
restou dela após anos de manipulação e coerção.
potência de agir sobre o espaço público e alterar as
condições de vida em sociedade (Kehl, 2004, p.
Formação de grupos 113-114).
Pensando nessas transformações da
O tema formação de grupos surgiu no decorrer adolescência e na importância de encontrarem
da dinâmica dos rótulos, por meio da qual modelos que auxiliem na estruturação de um sujeito
percebemos a necessidade de esclarecer aos independente e solidário, utilizamos, no primeiro
adolescentes a importância do coletivo na vida de encontro, duas dinâmicas por meio das quais foi
cada um, ressaltando que os grupos podem ser possível refletirmos acerca da importância do grupo
formados sem rotulações que denigram a imagem para cada um de nós, no sentido de fortalecimento
do outro, mas sim buscando no outro o amparo e o da identidade e apoio mútuo. Além disso,
parâmetro para a própria forma de ser indivíduo. discutimos sobre o processo de cooperação, sobre
Entendemos que a pertença a um grupo é um dos as diferenças existentes entre os membros de um
fatores determinantes da construção da identidade mesmo grupo e sobre as diferenças entre os grupos,
do adolescente. na tentativa de encontrarmos meios para lidarmos
A adolescência é a fase na qual, em com elas.
conformidade com Levisky (1998), o indivíduo se

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Na primeira dinâmica, dividimos os seguro para testar os limites impostos e exercer sua
adolescentes em grupos. Cada um recebeu alguns liberdade, separando o que é da ordem da lei e dos
materiais: cola, papel e pincel. A instrução que limites dos pais.
demos era a de que, com o material entregue, Em uma sociedade complexa, em constantes
teriam de construir uma ponte. Os grupos fizeram a transformações como a atual, o adolescente tem
atividade de modo que um precisou do outro para dificuldade no processo identificatório, visto que as
construir a ponte. Os adolescentes, porém, possibilidades são praticamente ilimitadas. A falta
construíram uma ponte para todos os grupos, de imposição de limites claros por parte da
utilizando todos os materiais. A nossa escolha de sociedade pode propiciar que a turma ou grupo de
construir a ponte ocorreu justamente pelo símbolo adolescentes, com seus testes de liberdade e
que ela representa: a ligação. Alguns adolescentes, pequenos atos desviantes, tornem-se gangues
entretanto, que não tinham uma ligação maior com praticantes de atos delinqüentes (Kehl, 2004). O
aqueles que tomaram a frente da atividade, não outro passa então a funcionar “como parceiro e
participaram da dinâmica. cúmplice nas moções de transgressão em relação à
Kehl (2004), ao abordar o individualismo e o interdição paterna (...), fundando, na delinqüência,
conservadorismo disfarçado das gerações jovens, uma gangue” (Kehl, 2004, p. 09). Acreditando no
aponta para as formações fraternas próprias da direito de fazer a própria lei, muitos adolescentes
saída da infância que servem de ancoragem a novos ingressam na criminalidade.
pólos de identificação. Ademais, o adolescente No segundo encontro, para tratar do tema de
renova-se culturalmente por meio do grupo, grupos, fizemos uma dinâmica pautada nessa
mantendo-se atualizado quanto à linguagem, como fundamentação teórica, objetivando o
forma da cultura oficial, ampliando os espaços de fortalecimento da identidade do grupo, do apoio
criatividade coletiva. mútuo. Voltamos à discussão sobre o processo de
À medida que se desenvolve intelectualmente e cooperação necessário aos grupos, sobre as
separa-se dos pais da infância, o adolescente passa diferenças existentes entre os membros de um
a atualizar e/ou substituir os valores que traz mesmo grupo e sobre as diferenças entre os grupos,
consigo. Surgem os ideais e o idealismo. Interessa- na tentativa de encontrarmos meios para lidar com
se por questões políticas, sociais, econômicas, elas. Para facilitar a discussão dessas questões,
religiosas, estudantis ou amorosas (Levisky, 1998, fizemos a dinâmica denominada teia de aranha −
p. 53). um rolo de barbante era jogado de um para o outro
Constatamos, todavia, que o adolescente atual para enlaçar todos pelos pés. Dependendo do
vive solitário, não se interessando pelas movimento de cada um, a “teia” podia se
contingências sociais que o circundam, muito desmanchar e o grupo se desequilibrar, desfazendo
centrado em si mesmo, talvez até em uma o laço que os ligava, até que um deles viesse a cair
constrição defensiva diante da violência da no chão. Surgiria a cooperação quando a corda
sociedade. estendida mantivesse a tensão do fio para não
Levisky (1998) registra que, por meio de desequilibrar o grupo.
reivindicações ou contestações, o adolescente Na segunda dinâmica relativa a esse tema,
externaliza seus conflitos. Alguns podem tivemos a intenção de avançar um pouco mais na
manifestar o conflito mediante agressões passivas reflexão acerca da cooperação entre os membros do
aos hábitos e valores tradicionais da sociedade. Por grupo; ela consistia em cada um dos adolescentes
exemplo, existem os grupos de hippies, playboys, encher um balão e permanecer com ele cheio até o
punks, funks etc., variando de acordo com cada final da música. Assim, só ganharia a prova o
época. A formação dos grupos dá-se por estratégias participante que estivesse com seu balão cheio. A
defensivas (punks, funks), sem outras preocupações dinâmica encerrou-se e quase não havia balões
políticas e sob uma falsa pretensão de identidade cheios na sala, até que um dos adolescentes saiu
diferenciadora (certa simbiose). Isto porque em correndo da sala, durante a dinâmica, para “salvar”
seus vínculos eles denotam um afastamento de um seu balão dos outros que queriam estourá-lo.
verdadeiro sentido coletivo e do diferente como Conversamos sobre a necessidade que foi gerada de
alteridade. estourar o balão do outro sem que houvesse
Kehl (2004, p. 112) assinala que “a turma necessidade, já que todos poderiam ganhar a
funciona como elemento essencial para que ele premiação.
possa simbolizar a Lei e relacionar-se como adulto Ampliamos a reflexão para as questões sociais
com as restrições que ela impõe”. Com a sobre o individualismo existente na atual sociedade,
cumplicidade do grupo, o adolescente sente-se mais em que o outro é um inimigo em potencial, que só

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se defende de forma individualista, bem como sobre As discussões continuaram utilizando a


o crescente processo de exclusão social em que brincadeira Escravos de Jó, na qual se fez uma
vivemos. readaptação de tal forma que pudéssemos
Também rediscutimos o fato de que nos exemplificar o processo de exclusão e
relacionamos com as pessoas de acordo com os culpabilização do indivíduo na esfera do trabalho
rótulos pré-determinados socialmente, (isso porque esses adolescentes, ao completarem 17
estigmatizando grupos e como muitas vezes damos anos, começavam a participar do Projeto
adesão aos rótulos da moda que dão pertinência a Adolescente Aprendiz para posterior tentativa de
esse ou àquele grupo. ingresso no mercado de trabalho).
Nessa dinâmica, cada participante dispunha de
Exclusão social um copo que era trocado com o parceiro do lado de
acordo com a música. Aqueles que erravam saiam
Esse tema foi trabalhado simultaneamente com da brincadeira. No decorrer das rodadas, o número
outros temas, por se tratar de uma insistente de adolescentes diminuía e a brincadeira se tornava
demanda dos jovens e de ser uma temática em que mais rápida, ou seja, com um grupo menor
escancaramos o descompromisso da sociedade que participando. Nesse ponto, havia maior necessidade
registra a hierarquização econômica e subjetiva de habilidade dos participantes no manuseio do
como critério de aceitação social e de possibilidade copo, que era passado mais rápido ao companheiro
de se ser “cidadão”. do lado.
Para entendermos o conceito de exclusão Ao final da dinâmica, foram feitas várias
social, recorremos a Guareschi (1992), autor que analogias referentes à brincadeira nas quais os
discorre sobre os diversos tipos de exclusão. Para próprios “agentes jovens” exemplificavam como
ele, a existência do excluído culturalmente é o uma engrenagem, em que não se pode parar de
resultado da hierarquização/qualificação de saberes fazer o mesmo movimento, torna o trabalho
na sociedade contemporânea. O excluído mecânico e não passível de reflexão. Ressaltamos
culturalmente é vitima da “inaceitação do ainda que, conforme as engrenagens do sistema,
diferente”. Deveríamos reconhecer a grandeza de aqueles que não se adaptam às exigências, não são
cada cultura, porém o que acontece é um eficazes ou hábeis, são excluídos do processo e
julgamento feito por uma cultura padronizada como culpabilizados por sua incompetência por não se
superior, dentro de uma escala que prioriza o lucro. moldarem às exigências febris do mercado de
A exclusão econômica funda as exclusões trabalho.
políticas, religiosas e culturais. O excluído político Com essa atividade, conseguimos mostrar o
que aspira a uma nova ordem é visto como caráter violento da sociedade contemporânea que,
subversivo. na visão de Severiano (2007), não capacita os
O tema da exclusão social foi tratado como indivíduos com os instrumentos necessários para o
algo que tem prejudicado a formação de grupos desenvolvimento do trabalho e ainda acaba por
sadios, impedindo o fortalecimento da identidade e culpabilizar o próprio indivíduo por não alcançar o
do apoio mútuo. A partir dessa contextualização do “modelo-ideal” de trabalhador proposto pela
caráter excludente da sociedade atual, percebemos sociedade, o que o torna um “fracassado” e,
certa angústia nos jovens e em nós mesmos frente consequentemente, um excluído, um rejeitado.
aos desafios que a sociedade violentadora nos Dentre essas formas de exclusão analisadas por
impõe. Guareschi (1992), o tipo de exclusão pela qual os
Partindo dessa fundamentação teórica inicial, adolescentes mais se consideram atingidos é a
realizamos uma dinâmica com os adolescentes que exclusão econômica. Não buscam acesso aos
consistia em assinalar quais as formas de exclusão serviços de saúde, à qualidade da educação, ou seja,
social que mais eram vivenciadas por eles. Optamos não há uma tentativa de se inserirem no meio social
por dividir o conceito de exclusão em cinco visando à saúde e à educação, mas sim a ter o “tênis
categorias, nomeadas da seguinte maneira: exclusão da Nike” que todos têm. O que permite que esses
do trabalho, exclusão da educação, exclusão do jovens se sintam iguais aos outros é o que eles
“ter”, exclusão sentimental, exclusão do “ser”, bem deveriam “ter” e não o que são na realidade. A
como deixamos espaços em branco para que outras inferioridade da pobreza representa “o não ter
formas de exclusão pudessem ser nomeadas pelos dinheiro para comprar”.
adolescentes. O poema Eu, Etiqueta, de Carlos Drumonnd de
Andrade (1984), desvela justamente o ser humano
tornado coisa, uma mercadoria, sendo valorizado

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pelo que tem e não pelo que é em essência. O de Sam Mendes (1999), pois é um filme que, muito
poema aponta-nos que para estarmos inseridos na fortemente, explicita o quanto temos nos
sociedade temos de compartilhar dos mesmos relacionado superficialmente, apenas por interesses
valores consumistas determinados pela classe individuais e sem enxergar o outro e a nós mesmos.
dominante. A partir dessa visão, a autoestima dos Segundo Bauman (2004), o mundo
jovens é afetada, visto que eles não têm o poder contemporâneo tem gerado um forte sentimento de
aquisitivo para sua inserção no meio consumista. insegurança no que diz respeito ao estabelecimento
Na busca da indicação de uma saída capaz de dos vínculos afetivos. Afirma o autor que estamos
amenizar tamanho mal-estar, adentramos o tema vivendo em uma sociedade líquida, na qual homens
dos “vínculos afetivos”, considerando e enfatizando e mulheres desconfiam da condição de estarem
a forma de construção dos vínculos na ligados, já que os sentidos são facilmente
contemporaneidade, baseada na lógica perversa do descartáveis, tais como os demais produtos do
capital. Há uma tendência a interpretar a mercado.
aproximação entre as pessoas como uma forma, A sociedade traz hoje a promessa do aprender a
apenas, de usufruir do outro unicamente como amar, tornando essa relação uma oferta para o
descartável, como instrumento para a satisfação dos consumo. Ela diferencia amor de desejo e examina
próprios desejos. como o desejo capturado pela mercadoria reduz-se
à vontade de consumir, absorver, devorar, ingerir e
Vínculos afetivos digerir, ou seja, aniquilar a si mesmo e ao outro. O
amor é a vontade de cuidar, de preservar e precisa
Onde está o amor em nossa sociedade? Foi de tempo para se consolidar. Na atualidade,
com esse questionamento que iniciamos as contudo, a satisfação deve ser instantânea, levando
discussões referentes ao tema vínculos afetivos. o indivíduo a agir por busca de contatos primitivos,
Cientes de que a sociedade atual é regida pela apenas sensoriais.
doutrina neoliberal que impõe o primado da Para concluirmos este tema, fizemos ainda mais
economia sobre a política de forma que os alguns encontros, nos quais, por meio de dinâmicas
indivíduos devam prezar o lucro e o acúmulo de e atividades com recortes e colagens, procuramos
capital, notamos que as relações nesse contexto se estreitar os laços afetivos entre os membros do
inserem em um novo formato: são relações grupo. No decorrer dessas discussões, os
amplamente individualistas, excludentes, baseadas adolescentes pediram que os integrantes do Phenix
em posses e nos rótulos determinados aproveitassem as questões ligadas às relações
socioeconomicamente. É a competição que rege as afetivas e abordassem de modo mais profundo os
relações entre os indivíduos que vivem sob a vínculos sexuais.
perspectiva de “levar vantagem em tudo” e,
consequentemente, são formas de destrutividade e Sexualidade
inveja que organizam a vida dos grupos. Ao mesmo
tempo em que os indivíduos se iludem na busca de Os dados de uma pesquisa realizada em uma
um ideal romântico em que conseguiriam um escola do Rio Grande do Sul revelam que os
relacionamento acolhedor e estável, interessante adolescentes geralmente pensam que as questões
sexualmente, autêntico, feliz e de preferência relacionadas à sexualidade estão limitadas à relação
duradouro, os sujeitos vão na contramão desse sexual entre um homem e uma mulher (Tonatto &
ideal, acreditando que é a grande quantidade de Sapiro, 2004).
bens acumulados que trará felicidade às suas vidas. Nesse sentido, ao enfocar a sexualidade
Ao colocarmos em discussão o tema vínculos simplesmente pelo aspecto biológico, nega-se o fato
afetivos, pensamos na possibilidade de refletirmos de que ela envolve fatores psicológicos, sociais,
sobre o que mantém grupos unidos por relações de históricos e culturais.
amor e fraternidade e o que pode contribuir para o Para trabalharmos esse tema, detivemo-nos nas
fortalecimento de relações ternas e profundas. questões inerentes à sexualidade durante quatro
Ao longo de dois encontros, discutimos a encontros. No primeiro, abordamos as categorias de
música Where is the love?, de Black Eyed Peas gênero feminino e masculino. Por meio de uma
(2007), e refletimos sobre os relacionamentos gincana, com atividades que ora favoreciam as
superficiais e a banalização do amor. capacidades masculinas e ora favoreciam as
No terceiro encontro, direcionado à discussão habilidades femininas, discutimos as diferenças de
desse tema, assistimos ao filme Beleza Americana, gênero e a necessidade de sua complementaridade.

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A sexualidade, entendida a partir de um participação de uma aluna do Curso de


enfoque amplo e abrangente, manifesta-se em todas Enfermagem da UEM para esclarecer e tirar
as fases da vida de um ser humano e, ao contrário dúvidas dos adolescentes sobre a sexualidade.
da conceituação vulgar, tem na genitalidade apenas No quarto e último encontro referente ao
um de seus aspectos. Em uma compreensão mais assunto, discutimos sobre "ficar com” e suas
ampla, podemos considerar que a influência da implicações emocionais para a vida dos "ficantes".
sexualidade permeia todas as manifestações Para nos auxiliar na discussão, usamos as letras das
humanas, do nascimento até a morte. músicas Só quero ficar, de Kelly Key (2002),
Atualmente, há mais abertura para se discutir Mutante, de Daniela Mercury (2003), e Já sei
sexualidade. A mídia, todavia, tem exercido forte namorar, dos Tribalistas (2002). A maioria dos
influência disruptiva sobre a vida afetivo-sexual dos adolescentes demonstrou que sonha em se
adolescentes. Há um forte apelo ligado à relacionar de forma duradoura, mas a maioria
exterioridade das sensações corporais. A mídia costuma ficar, apesar das suas consequências
focaliza a sexualidade sob o primitivismo do negativas.
biológico, que é exibido nas propagandas nos Com esse tema, finalizamos nossas
moldes da superficialidade consumista. intervenções no ano de 2004. Realizamos ainda
No segundo encontro, pedimos para que os uma reunião para o encerramento das atividades do
adolescentes escrevessem em um papel o que eles ano, na qual fizemos uma retrospectiva das
entendiam por sexualidade e que também questões discutidas e uma confraternização de
anotassem suas dúvidas. As dúvidas estavam despedida.
bastante ligadas a questões biológicas. Nesse dia,
também apresentamos algumas definições de Chegando ao Fim de uma Travessia
sexualidade e refletimos acerca da dicotomia amor
e sexo mediante a música da Rita Lee (2004), Amor
e Sexo. Por meio de todos os temas discutidos,
Chaves (2001) argumenta que o sujeito na procuramos empreender uma análise das
atualidade está tão acostumado a comercializar a contradições da sociedade expostas na realidade e
felicidade e a consumir o bem-estar que tem nas práticas cotidianas, distinguindo entre o que é e
buscado relações que dêem prazer máximo e o que deveria ser. Buscamos um conhecimento
sofrimento mínimo. Essa forma de relacionamento mais próximo da realidade para podermos entender
se configura por meio do “ficar com”. a inserção social dos adolescentes diante das forças
Nesse cenário, fica configurada a banalização dominantes da macroestrutura social.
da sexualidade humana, que vem sendo Procuramos levar informações e transmitir
desconstruída exatamente por estar perdendo o que ideias que fizessem os adolescentes pensar sobre
essencialmente a torna humana: o amor e todas as suas próprias condições de vida, sobre seus próprios
suas implicações. "Não há o trabalho, a conflitos e relacionamentos. Percebemos que
disponibilidade, o tempo, o exercício da muitas vezes esses adolescentes tinham ideias
aproximação-afastamento entre duas pessoas até distorcidas dos fatos psicossociais e a respeito de si
que elas encontrem uma distância intermediária que próprios e, em outros momentos, percebemos que
lhes permita uma coexistência mais tolerável” eles já haviam adquirido certa criticidade.
(Chaves, 2001, p. 136). Sabemos que o trabalho que realizamos foi um
Ao resumirmos a sexualidade a uma mera esforço de conscientização que só permite colher
satisfação de prazeres instintivos, questionamos: resultados a médio e longo prazo. Esse processo de
onde estão a razão e o envolvimento emocional tomada de consciência de si enquanto um ser social
peculiares à raça humana? Respondemos que isso é lento e a transformação da consciência em ação é
tudo é reflexo de uma sociedade sem Estado/pai/lei, algo mais complexo ainda. Entendemos que nós
gerando uma sexualidade regredida que, mesmos estamos passamos por esse processo e
inconscientemente, teme o incesto e, por isso, não pensamos que ele é contínuo em nossas vidas. Não
consegue estabelecer laços duradouros e profundos. há como afirmarmos que já estamos
O adolescente, nesse contexto, tem motivos para se suficientemente conscientes e que não precisaremos
encontrar desesperado, pois além de ter que mais nos conscientizar a respeito de algo. Sempre
elaborar o luto pela perda das garantias da infância, estamos precisando trazer à consciência fatos,
é lançado em um mundo sem garantias, um mundo gestos, histórias, imagens de acontecimentos que
de relacionamentos superficiais. marcaram e estão presentes em nosso dia a dia e
No terceiro encontro, contamos com a que influenciam/influenciarão o nosso viver, mas

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que nós nem sempre conseguimos entender Fincher, D. (1999). Clube da Luta. [DVD]. Direção:
prontamente. Esse processo, no entanto, é interno e David. Produção: Ross Bell, Cean Chaffin e
depende muito de quanto estamos dispostos a Art Linson. EUA: Fox 2000 Picture.
questionar nossas certezas, conceitos, virtudes ou
defeitos, permitindo que a transformação ocorra de Coimbra, C. M. B. (2001). Operação Rio – o mito
dentro para fora. Acreditamos que aí resida o das classes perigosas. Rio de Janeiro: Editora
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Categoria de contribuição: Intervenção


Recebido: 11/01/10
Aceito:02/12/10

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