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O PSICÓLOGO ESCOLAR NO ENSINO FUNDAMENTAL: REFERÊNCIA PARA


UMA INTERVENÇÃO PREVENTIVA

Article · May 2010


DOI: 10.5380/ef.v0i5.24964

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3 authors, including:

Raquel Souza Lobo Guzzo


PUC Campinas
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SANT'ANA, I. M.; EUZÉBIOS FILHO, A.; GUZZO, R. S. L. O psicólogo escolar no ensino fundamental: referência...

O psicólogo escolar no ensino fundamental: referência para


uma intervenção preventiva1

The school psychologist in the elementary school: reference for


a preventive intervention
El psicólogo educativo en la escuela primaria: referencia para
una intervención preventiva

Izabella Mendes Sant’Ana2


Antonio Euzébios Filho3
Raquel Souza Lobo Guzzo4

RESUMO

Este trabalho visa a apresentar uma experiência do serviço de psicologia presente em uma Escola Municipal
de Ensino Fundamental de Campinas. A atuação envolveu a discussão de casos envolvendo crianças em
situação de risco psicossocial, a ação em conjunto com órgãos públicos de proteção a crianças e suas famílias,
conversas com alunos indicados pelos professores no conselho de classe, a participação nas reuniões de
trabalho docente, dentre outras atividades. Conclui-se que a atuação do psicólogo escolar deve estar voltada
para o contexto educativo-comunitário, tendo em vista a criação de espaços coletivos de discussão sobre
os problemas da escola e da comunidade e a promoção da autonomia e da emancipação dos indivíduos.

Palavras-chave: prevenção; psicologia escolar; contextos educativos e comunitários; emancipação.

ABSTRACT

The aim of this study is to present an experience of the psychological service in an Elementary public school
in Campinas. The intervention involved case discussions about children in psychosocial risky situations and
the collaborative work with public organizations to assist vulnerable families; talks to students indicated by
teachers on the Academic Council; participation in teachers’ meetings, and other actions. The conclusions
showed that school psychological practices should aim at educative and communitarian contexts to promote
group discussion about school and communitarian problems, and to favor the development of autonomy
and emancipation of those individuals.

Keywords: prevention; School Psychology; educative and communitarian contexts; emancipation.

RESUMEN

Este estudio tuvo por objetivo presentar una experiencia do servicio de Psicología presente en una escuela
pública de Campinas. La intervención consistió en la discusión de casos de niños en situación de riesgo
1
Pesquisa realizada com apoio financeiro do CNPq.
2
Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de São João del Rei-MG.
3
Psicólogo, Doutorando em Psicologia pela PUC-Campinas
4
Professora titular da Faculdade de Psicologia da PUC-Campinas.
Agradecemos a participação dos profissionais Adinete Costa, Mara Weber, Fernando Lacerda Junior, Márcia Beckman, Marcela De-
chichi, Ana Paula de Sá, Luciana Mariote, Luiz Paiva e a todos os estagiários que colaboraram para a efetivação do projeto “Voo da
águia” nas escolas.

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psicosocial, la colaboración con instituciones públicas de asistencia a las familias vulnerables, la conversación
con los estudiantes seleccionados por los maestros en el Consejo Académico, la participación en reuniones
de profesores y otras actividades. Los resultados indican que la acción del psicologo escolar debe estar
dirigida para el contexto educativo y comunitario para promover la discusión colectiva de los problemas de
la escuela y de la comunidad, así como para desarrollar la autonomía y la emancipación de los individuos.

Palabras clave: prevención; psicología escolar; contextos educativos y comunitários; emancipación.

Introdução Lacerda e Guzzo (2005) destacam que,


para se pensar na prevenção primária como
modelo de intervenção alternativo, é primeira-
A busca por um olhar integral sobre o mente necessário se ter clareza das concepções
desenvolvimento humano levou a psicologia a de indivíduo, sociedade, saúde e doença em
adotar modelos alternativos diante da hegemo- um paradigma que suplante as existentes no
nia de um modelo médico e remediativo. Nesse positivismo e avance para uma perspectiva pe-
contexto, a perspectiva preventiva na Psicologia dagógica de conscientização popular, tal como
Escolar apontou a necessidade de uma participa- proposto por Paulo Freire (1999; 2003) em
ção mais ativa do psicólogo junto a educadores, diversas de suas obras.
alunos, famílias e comunidade. Como possibilidade do uso da preven-
A proposta de prevenção primária no ção no Brasil, Lacerda e Guzzo afirmam, em
campo da psicologia surgiu nos Estados Unidos concordância com o estudo de Potts (2003),
a partir da década de 1960, desenvolvida por um que se faz necessário considerar as dimensões
grupo de psicólogos que buscavam uma forma interpessoais e históricas, conceber os sujeitos
de intervenção mais eficaz diante dos problemas como ativos e geradores de sentido, sendo a
sociais verificados nesse país. Essa proposta al- prevenção entendida como uma intervenção
ternativa de intervenção originou-se a partir da essencialmente educativa que pode estar asso-
crítica em relação à prática hegemônica existente ciada à ideia de emancipação popular.
na psicologia – até então associada ao conceito Sob essa ótica, Euzébios Filho e Guzzo
de doença e ao modelo médico (JOFFE; ALBEE, (2005) apontam que a contribuição da educação
1981; ALBEE; GULLOTA, 1997; BLOOM, 1996; emancipadora refere-se ao desenvolvimento de
DURLAK, 1997; ALBEE, 2000). um olhar crítico sobre a sociedade regida pela
No Brasil, o modelo hegemônico de ordem do capital e de sua análise como sistema
atuação foi amplamente criticado por diversos pautado na luta de classes. Para os autores, essa
autores (YAMAMOTO, 1987; PATTO, 1984; proposta necessita ser incluída no contexto da
1990; MEIRA, 2000; GUZZO, 2002, dentre luta da classe trabalhadora a fim de fomentar
outros), que ressaltam o caráter elitista e repro- o avanço da consciência de educadores e da
dutor da ordem social por parte da Psicologia, comunidade sobre suas necessidades e condi-
evidenciado por uma prática reducionista e des- ções de vida, com o intuito de desnaturalizar a
contextualizada, que desconsidera o indivíduo desigualdade social.
como ser essencialmente histórico e social. Assim sendo, a perspectiva de preven-
Nesse sentido, ao focalizar as deficiên- ção adotada neste estudo/intervenção abrange
cias numa perspectiva individual, a psicologia a adoção de uma postura político-pedagógica
reforça o discurso dominante, pois contribui para a mudança social. Envolve a compreensão
para a individualização dos fenômenos sociais e da história e do complexo processo de constitui-
fragmenta o fenômeno psicológico, estabelecido ção humana, inserida numa relação dialética,
na relação entre sujeito e sociedade. associada à visão de um ser humano capaz de
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ressignificar sua realidade e de mudar a sua his- mandas coletivas para a melhoria das condições
tória para a construção de uma sociedade mais de vida da maioria da população. Além disso,
justa e igualitária. necessita desmistificar concepções preconceituo­
Essa premissa é relevante, visto que sas e visões descontextualizadas direcionadas às
cada vez mais a desigualdade social marca o camadas populares que frequentemente culpabi-
cotidiano e a vida das pessoas em nosso país. lizam os indivíduos (PATTO, 1984; 1990).
Isso como resultado de um modelo econômico A ação desse profissional também inclui
capitalista de orientação neoliberal que intensifi- a promoção da reflexão crítica sobre a realidade
ca a pobreza e a exploração de uma elite domi- e o cotidiano da escola, por meio do diálogo en-
nante sobre as camadas populares. A perspectiva tre os diversos participantes da escola (GUZZO,
neoliberal caracteriza-se, dentre outros aspectos, 2005), a realização de planejamentos de atuação
pela primazia da ordem econômica sobre a área coletiva sobre as demandas verificadas e um tra-
social, levando à diminuição dos investimentos balho em torno das relações interpessoais entre
nessa última e, consequentemente, à precariza- os agentes educacionais (ARAÚJO; ALMEIDA,
ção dos serviços públicos (ANDERSON, 1995). 2005), assim como a construção de espaços de
A partir dessas considerações, cabe interlocução no trabalho em rede com outros
agora abordar a ação do profissional de psico- contextos (escola, família e outras instituições
logia que atua em contextos educativos e co- sociais) que têm o objetivo de implementar po-
munitários, segundo a perspectiva previamente líticas de proteção à criança (PRILLELTENSKY;
exposta. NELSON, 2002).
Em primeiro lugar, é importante des- Diante dessas considerações, este tra-
tacar que, ao estabelecer uma relação entre o balho tem por objetivo apresentar e discutir uma
contexto educativo e o comunitário, desvenda-se experiência do serviço de psicologia presente em
uma concepção acerca do caráter abrangente uma Escola Municipal de Ensino Fundamental
do âmbito escolar, caráter este que ultrapassa de um grande município do interior paulista.
o espaço institucional, uma vez que os alunos e
suas famílias inserem-se em uma realidade mais
ampla. Essa análise é coerente com a proposta de
uma psicologia que procura ampliar seu campo A experiência – contexto e objetivos
de análise e que intenta, na busca incessante
de uma reflexão sobre a natureza do seu objeto
de estudo, estabelecer relações entre indivíduo Este estudo é fruto de uma proposta
e sociedade, ou entre os contextos micro e ma- de intervenção preventiva do psicólogo escolar
crossocial. denominada “Voo da águia: prevenindo proble-
Nessa perspectiva, Martin-Baró (1997) mas socioemocionais e promovendo saúde”, que
ressalta a importância de uma nova práxis que está inserida num projeto de pesquisa e extensão
permita conhecer a realidade das camadas opri- intitulado “Do risco à proteção: uma intervenção
midas a partir de um compromisso ético-político preventiva na comunidade”. Este projeto tem por
de transformação. Para o autor, faz-se necessário objetivo identificar os fatores de risco e proteção
que a Psicologia se coloque a serviço das neces- ao desenvolvimento de crianças de comunidades
sidades das camadas populares, contribuindo de baixa renda, buscando favorecer a conscien-
para a libertação dessas populações. tização de crianças, pais, professores e profissio-
A atuação do psicólogo no âmbito nais acerca da realidade em que vivem, isto é,
educativo-comunitário precisa considerar as de- suas condições de vida, a fim de promover uma

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maior mobilização e participação dos indivíduos Após cada visita institucional, os pro-
da comunidade mediante o fortalecimento das fissionais e estagiários de Psicologia faziam o
redes sociais de apoio. registro de suas observações e ações, compondo
Assim sendo, é uma proposta de um diário de campo, o qual servia de base para
trabalho na rede pública em integração com a discussão, análise e definição de encaminha-
comunidades, baseada na concepção de que mentos durante a intervenção.
as teorias e as práticas psicológicas impactam e As atividades realizadas visaram a
são impactadas pela ordem social, pela cultura promover o desenvolvimento socioemocional
e pela dinâmica das instituições sociais. de crianças e adolescentes, fornecer acompa-
nhamento longitudinal às crianças no seu pro-
cesso de escolarização e vida, integrar família e
Estrutura, funcionamento e dinâmica da escola, além de identificar e construir redes de
intervenção apoio social e afetivo para a comunidade em
que as atividades estão inseridas. Para realizar
essas atividades, foram usados procedimentos e
O referido projeto foi desenvolvido em materiais específicos.
duas escolas públicas municipais de Campinas, Utilizou-se também um termo de con-
uma de Educação Infantil e outra de Ensino sentimento informado, contendo os objetivos e
Fundamental.A experiência relatada aqui focali- explicitando outras normas éticas da pesquisa,
zará o trabalho realizado nesta última. A entrada redigido de acordo com a resolução de dezem-
na instituição ocorreu em 2003, a pedido da bro de 2000 do Conselho Federal de Psicologia
direção da escola, que se queixava de problemas e o que dispõe a Lei Nacional sobre a pesquisa
de indisciplina e violência no espaço escolar. com seres humanos. O projeto foi aprovado pelo
Essa proposta de intervenção foi aprovada no Comitê de Ética da PUC Campinas.
conselho de escola e discutida com todos os Tais ações foram planejadas e efetiva-
segmentos envolvidos (direção, professores, das a partir das necessidades e dos problemas
funcionários e comunidade), portanto, contou evidenciados no cotidiano escolar. Algumas
com o consentimento da comunidade escolar e propostas de intervenção foram detalhadas a
foi finalizada em 2006. seguir e analisadas a partir de sua funcionalida-
A escola apresentava um total de 450 de, dificuldades e perspectivas.
alunos, de faixa etária entre os seis e os 17 anos,
de primeira a oitava série. A escola funcionava Mapeamento geográfico
em dois turnos (manhã e tarde), estava inserida
Como parte da proposta educativo-
em um espaço físico pequeno e em um bairro
-comunitária, a realização do mapeamento
marcado por profundas desigualdades sociais
geográfico teve por objetivo identificar a locali-
(GUZZO et al., 2002).
zação das moradias das crianças no entorno da
É importante mencionar que o serviço
escola, com o intuito de subsidiar atividades de
de psicologia esteve presente até duas vezes por
integração comunidade-escola e de promover
semana na escola e era composto por profissio-
ações educativas direcionadas à discussão de
nais de psicologia (alunos da pós-graduação e
temas como a identidade dos alunos.
um assistente técnico) que eram os responsáveis
Por meio da leitura dos prontuários de
pelas atividades realizadas nas instituições de
todos os alunos da escola, feita a cada início de
ensino, colaborando também na supervisão de
ano letivo, a equipe de psicologia pôde obter
alunos do estágio supervisionado em Psicologia
informações sobre alunos que residem em uma
Escolar e Educacional.
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mesma rua, em relação à estrutura e à distribui- Foram acompanhados oito alunos,


ção de famílias nos bairros próximos, além de sendo os casos discutidos em reuniões mensais
informações referentes à história e ao desem- com representantes de diferentes órgãos públi-
penho escolar dos alunos (como, por exemplo, cos (Secretaria Municipal de Assistência Social,
a defasagem idade-série), aspectos relativos à Centro de Saúde, Conselho Tutelar e Vara da
saúde, adoção, transferências e denúncias no Infância).
Conselho Tutelar. As ações dos diferentes agentes envol-
Os dados obtidos foram agrupados vidos levaram, em geral, à reversão do quadro
em gráficos e tabelas e as informações foram de violência e de negligência a que essas crianças
apresentadas e discutidas nas reuniões de traba- estavam submetidas. Todavia, apesar de a pro-
lho docente. Essas informações também foram posta de atendimento às famílias ser intersetorial,
incluídas nos relatórios de atividades realizadas existiram dificuldades na realização do trabalho
pelo serviço de psicologia, entregues à escola ao em rede, ocorrendo em várias situações a culpa-
final de cada ano. bilização das crianças e das famílias. Ademais,
A avaliação dessa atividade mostrou cabe frisar que o Conselho Tutelar também pode
que a identificação dos alunos por bairro e por funcionar como um instrumento que tende a
ruas deu maior visibilidade sobre a organização reforçar mecanismos de repressão sobre os mais
espacial de famílias, gerando subsídios princi- pobres (SANT’ANA; COSTA; GUZZO, 2008).
palmente para as intervenções da equipe de O serviço de Psicologia da escola in-
psicologia com os alunos. Aqui vale destacar que, terveio a favor das crianças, debatendo, com
embora estivessem disponíveis aos educadores, a equipe da escola e com os diversos setores,
essas informações não foram aproveitadas pela formas de auxiliar essas pessoas. Nesse sentido,
maioria dos professores no decorrer da inter- constituiu-se como um mediador na relação en-
venção. Assim, houve pouco interesse desses tre a escola e os outros órgãos que participavam
profissionais em usar os dados como suporte da rede de proteção à infância. Também buscou
para o planejamento das ações pedagógicas. explicitar as contradições existentes na ação dos
Esses dados poderiam subsidiar uma inter- diferentes serviços que atendiam as crianças e
venção pedagógica que estivesse vinculada à seus familiares, por meio da desmistificação de
realidade de cada aluno, como também poderia rótulos, preconceitos e práticas institucionaliza-
instrumentalizar o educador para uma reflexão, das que não favoreciam mudanças na forma
juntamente com os alunos, sobre a realidade de os profissionais intervirem com as crianças
vivida e o contexto social e econômico de suas e suas famílias.
famílias e comunidade.
Acompanhamento de alunos indicados no con-
Acompanhamento de alunos com denúncia no selho de classe
Conselho Tutelar
Nesta atividade, buscou-se analisar e
Esta ação visou a construir espaços de verificar a preocupação apontada pelos edu-
interlocução no trabalho em rede com outras cadores em relação aos alunos, conhecer as
instâncias que têm por objetivo implementar opiniões e sentimentos das crianças em relação
as políticas de proteção à criança, bem como às suas experiências na vida e na escola, assim
favorecer melhorias nas condições de vida e como desenvolver um trabalho conjunto entre
no desenvolvimento psicossocial das crianças professor, alunos, pais e escola, por meio da cria-
envolvidas e suas famílias. ção de espaços de discussão sobre os problemas

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apontados e aspectos do desenvolvimento infan- e, como resultado, manteve-se a concepção


til, respeitando o sigilo das conversas individuais. do fracasso escolar baseada na culpabilização
O intuito aqui era alterar a visão pre- do aluno pelo baixo desempenho. Apesar do
dominante dos educadores, que frequentemente esforço da equipe de psicologia em concretizar
culpam a criança e sua família pelos problemas essa proposta de intervenção conjunta e de al-
escolares. A partir da observação na escola, gumas ações isoladas da professora de educação
das conversas com os alunos, com os pais ou especial, que desenvolvia seu trabalho a partir
responsáveis e do contato com a comunidade, da perspectiva da inclusão, pouco se avançou
a equipe de psicologia buscava conhecer como em relação à superação das dificuldades desses
a criança comportava-se na escola e no bairro, alunos.
como percebia a escola, o professor e seu pro- Outra sugestão referiu-se à discussão
cesso de aprendizagem, a fim de favorecer a coletiva sobre as regras da escola em cada sala
expressão de suas potencialidades e auxiliá-la na de aula por causa da existência de problemas de
superação das dificuldades, caso elas realmente descumprimento das regras da escola, e desta
fossem identificadas. As informações foram dis- vez a atividade foi concretizada.
cutidas com a equipe docente nesses espaços e
daí surgiram propostas para dar suporte a essas Levantamento sobre as regras da escola
crianças. Também foram realizadas reuniões
O objetivo desta atividade foi investigar
devolutivas para os responsáveis.
as opiniões de alunos, professores e funcionários
Pôde-se perceber um alto número
sobre as regras da escola, a fim de dar suporte
de alunos encaminhados (média de 15% do
para a discussão coletiva entre professores e
total de alunos), principalmente por causa de
alunos e contribuir para a melhoria das relações
uma suposta dificuldade de aprendizagem e
interpessoais no contexto escolar. No entanto,
de “problemas” envolvendo indisciplina. Con-
somente alunos e funcionários se dispuseram
tudo, vários alunos que foram encaminhados
a participar.
para a equipe de psicologia não necessitavam
Trinta e sete alunos e nove funcioná-
do acompanhamento psicológico (ou melhor,
rios responderam a um questionário contendo
clínico-individualista, como queria a maioria dos
questões sobre as seguintes dimensões: conheci-
professores). Notaram-se também contradições e
mento acerca das regras da escola, identificação
conflitos entre o que alunos e professores relata-
de regras positivas e negativas, sugestões de
vam, o que indicou a necessidade de melhoria na
mudança das regras e vivência de situação de
comunicação e na relação entre ambas as partes.
punição (descrição, percepções e sentimentos
Uma sugestão dada pelo serviço de psi-
sobre a situação vivenciada).
cologia foi a realização de oficinas de leitura e es-
Em termos gerais, constatou-se que os
crita com o objetivo de favorecer o aprendizado
alunos menores conheciam as regras da escola,
dessas crianças. Tal atividade necessariamente
já os mais velhos apontaram conhecer pouco
deveria contar com a participação da professora
ou desconhecer as regras escolares. Entre os
regular, da professora de educação especial e da
funcionários, todos mencionaram conhecer as
equipe de psicologia, em busca da construção de
regras. Foram apontadas algumas sugestões de
um trabalho integrado que, de fato, auxiliasse os
mudança que podem fazer parte das discussões
alunos. Contudo, por causa da falta de interesse
em momentos de avaliação e planejamento do
e de diferenças de concepções sobre a prática
projeto pedagógico. Grande parte dos alunos já
pedagógica, a proposta das oficinas de leitura e
foi punida na escola e sentiu-se injustiçada e com
escrita não foi efetivada. Nesse caso, evidenciou-
medo de levar suspensão. Todavia, observou-se
-se a fragmentação das ações das educadoras
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uma variedade de respostas e que, muitas vezes, dos psicólogos, argumentando que o pedagógico
a presença ou ausência de regras evidencia que se separa do psicológico e, portanto, segundo
falta uma discussão sobre o sentido das regras, essa concepção, a ação do psicólogo deve se
como elas afetam a vida de cada um e da co- voltar somente para questões do comportamento
letividade. Os resultados foram discutidos com e da indisciplina dos alunos. Essa situação gerou
os educadores e foi apontada a necessidade da um conflito que foi discutido nas reuniões de tra-
construção coletiva a respeito das regras com balho docente. Notamos um descontentamento
os alunos. Isso foi feito e produziu algumas me- dos professores, que reclamavam por algo mais
lhorias nas inter-relações existentes no contexto prático que se referia, na maioria das vezes, a
escolar. uma resposta imediata dos psicólogos e à con-
firmação da visão de culpabilização do aluno.
Participação nas reuniões de trabalho docente,
nos conselhos de classe e de escola Fórum de pais

A inserção da equipe de psicologia O intuito dessa atividade foi o de pro-


nesses espaços visou a favorecer a construção mover espaços de discussão com os pais sobre o
de um espaço de reflexão sobre os diferentes as- contexto de vida das crianças e suas experiências
pectos e desafios referentes à atuação docente no de vida, tendo em vista favorecer a autonomia,
contexto educativo, buscando discutir questões ampliar as possibilidades de participação dos
sobre o desenvolvimento infantil, saúde mental pais na escola, bem como integrar família e
do professor e acerca dos conflitos e problemas escola na construção de um projeto pedagógico
verificados no cotidiano escolar; assim como democrático e emancipador.
estabelecer relações entre a vida dos alunos e o A proposta inicial mencionava a realiza-
processo de aprendizagem. ção de encontros mensais com pais e membros
A equipe de psicologia participou da da comunidade. Contudo, foram realizados
maioria das reuniões e dos conselhos de escola apenas quatro encontros com os pais, em virtude
e de classe e também coordenou algumas reu- de problemas de comunicação, na distribuição
niões, discutindo temas como gênero, compor- dos convites e da falta de participação da co-
tamento humano, violência, medo, desenvolvi- munidade.
mento infantil e regras na escola. Em termos gerais, como aspectos
Nesses espaços, o serviço de psicologia positivos podem ser destacados: uma maior
procurou estabelecer uma relação entre as infor- aproximação com os familiares das crianças
mações técnicas do trabalho realizado na escola acompanhadas nas escolas, o que favoreceu
e as demandas da instituição. Houve avanços a intervenção do serviço de psicologia com os
em alguns aspectos da relação professor-aluno alunos mediante o conhecimento da realidade
(por exemplo, as regras da escola), mas alguns em que estão inseridos e também o debate sobre
aspectos ainda continuavam conflitantes (como, diversos temas (aspectos do desenvolvimento in-
por exemplo, o trabalho com alunos com dificul- fantil, educação de filhos, violência, medo) apon-
dade de aprendizagem). tados pelos pais e responsáveis. Como aspectos
Além disso, cabe destacar que, no turno negativos, podemos citar: a participação de um
de trabalho de professores de 5ª a 8ª séries, a número reduzido de pais; a grande rotatividade
presença da equipe de psicologia nas reuniões na formação dos grupos, o que prejudicou de
docentes foi questionada pelos professores, es- certa forma a continuidade das discussões; além
pecialmente pela orientadora pedagógica, que da pouca integração da comunidade na cons-
apresentou discordância em relação ao trabalho trução do projeto político-pedagógico da escola.

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Dentre os aspectos negativos, destaca- • Criação de espaços de reflexão e


mos a falta de participação dos pais. Esse fenô- discussão com alunos, pais e funcionários sobre
meno pode ser explicado, dentre outras questões, a inserção destes no processo educativo e rela-
pela distância entre a escola e a comunidade e cionamento interpessoal;
pela visão da escola como um espaço descolado • Discussão sobre a realidade dos alu-
dos problemas reais da comunidade (SANT’ANA nos com professores por meio da participação
et al., 2007). nos espaços de trabalho docente;
• Compreensão do fracasso da criança
na escola por meio do conhecimento de suas
experiências de vida (dentro e fora da escola)
Discussão
e da visão de seus pais, visto que isso fornece
subsídios para a definição de estratégias de
A proposta de intervenção foi pautada intervenção;
na perspectiva preventiva e emancipadora e foi • Discussão coletiva sobre temas im-
discutida em vários momentos com os diversos portantes para o desenvolvimento infantil, como
segmentos da escola. Ademais, todas as ativi- sexualidade e regras, além de aspectos sobre a
dades foram compartilhadas, documentadas e violência na escola e possíveis estratégias de
avaliadas pelos pais, professores, estudantes e superação.
funcionários (GUZZO et al., 2007). Por outro lado, destacamos algumas
Debatemos a ideia de que o psicólogo dificuldades e desafios relativos a:
inserido em instituições sociais não é um mágico, • Diferença de concepções existentes
um leitor de mentes nem o responsável por legi- sobre o sentido e a importância do processo
timar a vitimização das crianças ou a individuali- educativo, que refletem ações e atitudes na sala
zação dos problemas (SANT’ANA et al., 2009). de aula geradoras de conflito entre professores
Mas, ao contrário, partimos da compreensão de e alunos;
que o psicólogo escolar é um profissional que • Atendimento às demandas surgidas
atua com a direção, os professores, os funcio- no cotidiano, o que pressupõe uma construção
nários, os alunos, os pais e a comunidade com conjunta de estratégias e ações compartilhadas
vistas a contribuir para o desenvolvimento e a entre professores e equipe técnica;
emancipação humana, tal como assinala Martin- • Mudança de expectativa sobre o
-Baró (1997). papel do psicólogo – da visão de que este profis-
Entendemos que as relações sociais sional pode modificar sozinho a realidade, bem
constituem as pessoas e que o processo educati- como da dificuldade de construir um trabalho
vo tem uma importância crucial no favorecimen- sob uma visão de que o pedagógico separa-se
to ou na acentuação de problemas na trajetória do psicológico;
de crescimento dos alunos. • A inserção do psicólogo na rede – isso
A análise do trabalho realizado pela não é uma realidade no município, o que contri-
equipe de psicologia aponta para alguns avanços bui para que este profissional não esteja presente
referentes a: no cotidiano das escolas, o que muitas vezes
• Construção de espaços de interlocu- contribui para a falta de clareza dos educadores
ção no trabalho em rede com outras instâncias sobre a prática deste profissional;
que visam a implementar as políticas de proteção • Dificuldade de aproximação dos pais
à criança por meio do acompanhamento de e de uma reflexão que indicasse outra visão so-
alunos em situação de vulnerabilidade social; bre a escola, que não aquela que a trata como
instrumento de controle.
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Em síntese, a atuação do psicólogo _____. Educação e mudança. São Paulo: Paz e Terra, 2003.
escolar deve estar voltada para o contexto GUZZO, Raquel Souza. Novo paradigma para a formação
educativo-comunitário, a partir da perspectiva e atuação do psicólogo escolar no cenário educacional bra-
sileiro. In: GUZZO, Raquel (Org.). Psicologia escolar: LDB
preventiva e emancipadora, com vistas à cria-
e educação hoje. Campinas: Alínea, 2002. p. 131-144.
ção de espaços coletivos de discussão sobre os
_____ et al. Um censo comunitário: finalidades, dificul-
problemas da escola e da comunidade. Todavia,
dades e contribuições para o conhecimento da realidade.
nem sempre os professores aceitavam essa forma In: CONGRESSO BRASILEIRO DE PSICOLOGIA: CIÊN-
de debater as questões apresentadas, pois que- CIA E PROFISSÃO, 1. Anais... São Paulo, 2002.
riam que o psicólogo legitimasse os problemas _____. Escola amordaçada: compromisso do psicólogo
como sendo dos alunos, tal como salienta Patto com este contexto. In: MARTINEZ, Albertina (Org.).
Psicologia escolar e compromisso social. Campinas, SP:
(1990). Ainda assim, essa visão sobre o psicólogo Alínea, 2005. p. 17-29.
não é fantasiosa, dado que, como destacamos
_____ et al. Preventive intervention in school: students,
anteriormente, a atuação deste profissional é parents, teachers an school satff's evaluation (pôster). In:
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