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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA

CENTRO DE ARTES E LETRAS


CURSO DE GRADUAÇÃO EM ARTES VISUAIS

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Francine da Rosa Furlan

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ERNST LUDWIG KIRCHNER:
VIDA E OBRA

Santa Maria, RS
2022
Ernst Ludwig Kirchner foi um artista expressionista da arte moderna, e sua vida
teve início em 6 de maio de 1880, na cidade de Aschaffenburgo na Alemanha. Nascido
em uma família burguesa, o seu pai trabalhava como engenheiro em uma fábrica de papel,
e desejava que Kirchner estudasse arquitetura. Mais tarde, em 1890, a família se mudou
para a cidade de Chemnitz após o pai ser nomeado como professor na academia
profissional da cidade.

Ainda criança, Kirchner já demonstrava talento e aptidão para as artes,


principalmente o desenho, e aos 21 anos, por influência do pai, começou a estudar
arquitetura na Escola Superior Técnica da Saxônia, em Dresda. Foi na faculdade de
arquitetura que Kirchner encontrou amigos que compartilhavam da sua paixão pela arte,
e começou a exercitar-se no desenho e pintura.

Mais tarde, em 1903, ele viajou para Munique e frequentou uma escola de arte
privada chamada “ateliê de ensino e experimentação das artes aplicadas e livres”, onde
tivera aulas de composição e pintura de nu, um tema que frequentemente faria parte da
sua trajetória como artista. Ainda em Munique, Kirchner frequentou assiduamente
exposições de artistas como Georges Seurat, Camille Pissarro e van Gogh, tornando-se
um acontecimento importante para a sua obra, pois contribuiu para ele encontrar o seu
próprio estilo de pintura. Enquanto desaprovou a pintura de Seurat e Pissarro devido ao
pontilhismo demasiado disciplinado, van Gogh foi o artista que mais o influenciou
durante os seus primeiros anos como artista.

Kirchner, além de dedicar-se a pintura de suas obras, também se pronunciava em


escritos sobre a sua arte e sobre o grupo Die Brücke, uma comunidade de artistas que
integrou de 1905-1913. Embora tenha feito parte de um grupo de jovens pintores com
direitos iguais, fragmentos de diários do artista em seus últimos anos de vida revelaram
uma personalidade egocêntrica e individualista, onde ele salientou a originalidade da sua
obra e minimizou a importância do período que integrou o grupo de artistas.

Em 1914, a Primeira Guerra Mundial despontou e Kirchner alistou-se como


“voluntário involuntário”. Entretanto, pouco tempo depois ele foi acometido por um
colapso físico e mental devido as condições da guerra, e acabou dispensado do serviço
militar em 1915. A partir de então, o artista teve o seu estado de saúde frequentemente
afetado, passando por episódios de paralisia, mania de perseguição e medo de ser alistado
novamente. Nos anos seguintes, passou por diversos sanatórios na Alemanha e por último
na Suíça, até receber alta definitiva, mesmo não estando completamente recuperado de
sua doença.

Após 1918, Kirchner decidiu continuar morando na Suíça, na pacata comunidade


de Davos. Em 1925, após anos sem visitar a Alemanha, ele voltou ao seu país natal em
uma breve viagem, retornando a Suíça em seguida. Nesta sua estadia entre as montanhas
e a natureza, pintou diversos autorretratos que refletiam a sua condição mental fragilizada,
e continuou escrevendo as suas crônicas que o revelaram como uma pessoa difícil de
lidar.

Por fim, em 1937 durante o período nazista alemão, 639 de suas obras foram
confiscadas, e sua arte foi considerada “degenerada”. Assim, nos alpes suíços, em 15 de
junho de 1938, desgostoso pela difamação da sua obra e nunca realmente curado de sua
doença mental, Ernst Ludwig Kirchner decidiu dar um fim a sua vida, aos 58 anos de
idade.

Die Brücke

O grupo de artistas modernistas “A Ponte” foi uma iniciativa de Ernst Ludwig


Kirchner. Em Dresda, 1901, no primeiro semestre da faculdade de arquitetura, Kirchner
conheceu Fritz Bleyl, um colega que partilhava do mesmo interesse pela arte livre, e logo
começaram a praticar o desenho e a pintura juntos.

Mais tarde, em 1904, outra dupla de amigos começou a estudar arquitetura em


Dresda. Tratava-se de Erich Heckel e Karl Schmidt-Rottluff, que foram colegas de escola
em Chemnitz. O irmão de Heckel havia sido colega de turma de Kirchner e apresentou as
duas duplas de amigos. Os quatro possuíam interesses em comum, principalmente pela
pintura, mas o curso de arquitetura era melhor visto para o investimento da mensalidade
paga pelos pais. Eles também procuravam estabelecer uma ligação com a comunidade de
artistas alemães, pois almejavam o reconhecimento como jovens pintores.

Assim, no dia 7 de junho de 1905, em Dresda, os quatro estudantes de arquitetura


formaram o grupo Die Brücke. Inicialmente, a ideia de fundação do grupo partiu de
Kirchner, enquanto o nome foi uma sugestão de Schmidt-Rottluff. Em uma nota de 1958
escrita por Heckel, encontra-se a seguinte justificativa:

Claro que refletimos sobre a maneira como poderíamos nos apresentar


ao público. Uma noite, ao voltar para casa, voltamos a falar no tema.
Schmidt-Rottluff disse que poderíamos chamar Brücke ao grupo, que
era uma palavra multifacetada, que não significava propriamente um
programa, mas que, de certa forma, levava de uma margem à outra.
(ELGER, 2007, p. 15)

O grupo que começou com 4 membros em 1905, se dissolveu em 1913 com


aproximadamente 75 membros. A maioria dos membros eram chamados passivos, e
apenas 5 tiveram papel decisivo no desenvolvimento do grupo depois da saída de Bleyl
em 1907: os três fundadores Kirchner, Heckel e Schmidt-Rottluff, e Pechstein e Otto
Mueller que se integraram ao grupo em 1906 e 1910, respectivamente.

Kirchner definiu o programa do grupo como “qualquer um que exprima


espontaneamente e naturalmente tudo o que o impele a criar faz parte do nosso
movimento” (ELGER, 2007). Os artistas buscavam uma forma direta de exprimir a
realidade em uma abreviatura pictórica, onde valorizavam o ser humano em um ambiente
natural, livre da industrialização que reinava naquela época. Para expressar esse desejo
revolucionário definido como “liberdade de viver”, o grupo tinha como motivo preferido
o nu artístico, praticando a pintura com muitos modelos desnudados ao ar livre.

A comunidade de artistas também procurou uma vida amistosa em conjunto além


da pintura. Enquanto Heckel possuía uma função de organização no grupo, introduzindo
inovações mais formais através da sua habilidade de negociação, Kirchner – que era tido
como a personalidade mais forte dentro do grupo – se ocupou com a definição do estilo
pictórico coletivo. O grupo se reunia diariamente em uma oficina onde não separavam a
vida cotidiana da arte, e neste espaço criavam as suas telas e discutiam os resultados em
conjunto, o que contribuiu naturalmente para criarem um estilo pictórico homogêneo.
Este estilo de pintura pode ser verificado no catálogo da exposição do grupo de 1910, na
Galerie Arnold, em Dresda. O trabalho comunitário dos artistas buscava alcançar este
estilo coletivo, dificultando definir a autoria de algumas obras.

A partir de 1910, os artistas mudaram-se para Berlim, e lá encontraram uma


atmosfera completamente diferente de Dresda. Enquanto Dresda possuía uma calmaria
intrínseca, Berlim era uma metrópole que os apresentou para as discrepâncias entre
classes sociais e a vida noturna, e também os proporcionou o anonimato, pois tiveram de
competir com as atividades de numerosos grupos artísticos distintos. Na cidade grande, o
estilo coletivo que já estava bem desenvolvido pelo grupo não poderia sobreviver por
muito tempo. Assim, tiveram que libertar-se deste estilo homogêneo, e cada artista passou
a reagir de uma forma diferente aos estímulos de Berlim, desenvolvendo um caráter
pictórico pessoal e inconfundível.

Kirchner foi o membro que teve maior repercussão na cidade grande, alcançando
o reconhecimento que tanto ambicionou. O artista reagiu de maneira expressiva ao novo
ambiente, e seu estilo de pintura sofreu algumas modificações. O seu traçado de formas
arredondadas deu lugar a um traço anguloso, a tinta aplicada lado a lado em camadas
finas passou a ter uma aparência entrelaçada, aplicada em pinceladas vigorosas, enquanto
o tema pictórico superou o nu, incluindo a paisagem e cenas noturnas que observava em
Berlim.

As mudanças aconteceram, além da obra, na vida pessoal de cada integrante do


grupo. Assim, em 1913 os membros do grupo já haviam se afastado demasiadamente uns
dos outros, tanto no plano artístico como emocional. Uma crônica escrita por Kirchner
neste mesmo ano foi o impulso que faltava para a dissolução do grupo. Em 27 de maio
de 1913, o grupo Die Brücke enviou um comunicado aos membros passivos, informando
o fim da comunidade de artistas.
Figura 1 – KIRCHNER, Ernst Ludwig. Um Grupo de Artistas: Mueller, Kirchner, Heckel, Schmidt-
Rottluff, 1926/27. Óleo sobre tela, 168 x 126 cm. Colónia, Museum Ludwig.

Fonte: (ELGER, 2007).


Obra

Nos primeiros anos de Kirchner como artista, o estilo pictórico de van Gogh foi o
que mais o influenciou. Na obra “Cabeça de Mulher Defronte de Girassóis” (figura 2), é
possível ver a referência ao artista pós-impressionista, tanto nas pinceladas curtas e
dinâmicas, na escolha das cores, quanto por incluir um objeto bastante conhecido nas
obras de van Gogh – os girassóis. O quadro é um exemplo do estilo pictórico das primeiras
obras de Kirchner. Este trabalho é uma pequena pintura executada em 1906, e trata-se de
Dodo, a namorada de Kirchner na época. Nesta obra, é possível reconhecer um esforço
em concentrar uma força de expressão nas pinceladas. As cores são aplicadas de forma
plana, uma ao lado da outra, e os tons utilizados são vibrantes. As sombras não estão bem
desenvolvidas, assim, a forma curta e direcionada das pinceladas são responsáveis pela
sensação de volume. Há um contorno vermelho nas flores que se estende até a cabeça, e
esse traçado é um elemento estilístico que pode ser encontrado também em outras obras
do artista.

A imagem seguinte (figura 3), é uma obra do período que Kirchner mudou-se para
Berlim e modificou a sua forma de pintar. O traçado que o artista usou para a obra
“Elisabethufer Vermelho em Berlim”, de 1912, é bastante diferente do que é visto dos
tempos em Dresda. Este trabalho representava um canal da metrópole, e demonstra uma
pincelada mais ritmada, mais angulosa e mais direcionada através de uma cor vibrante
em meio aos outros tons cinzentos. A direita, é possível reconhecer dois corpos, mas a
paisagem foi o ponto principal desta pintura, que transparece uma sensação de cidade
isolada, sem a presença humana.

Este tema de paisagem urbana tornou-se comum na obra de Kirchner, e pode ser
observado também na pintura “A Torre Vermelha em Halle” (figura 4) de 1915. Nesta
obra, Kirchner também retratou a arquitetura da cidade de Berlim, através de tons
cinzentos e poucas cores vibrantes que chamam a atenção, como o tom avermelhado e
bem demarcado. Os traços agudos permanecem na representação da arquitetura, bem
definidos pelas pinceladas de cores fortes aplicadas de maneira precisa.
Figura 2 – KIRCHNER, Ernst Ludwig. Cabeça de Mulher Defronte de Girassóis, 1906. Óleo
sobre tela, 70 x 50 cm. Offenburg, Coleção Burda.

Fonte: (ELGER, 2007).


Figura 3 – KIRCHNER, Ernst Ludwig. Elisabethufer Vermelho em Berlim, 1912. Óleo sobre
tela, 101 x 113 cm. Munique, Staatsgalerie moderner Kunst.

Fonte: (ELGER, 2007).


Figura 4 – KIRCHNER, Ernst Ludwig. A Torre Vermelha em Halle, 1915. Óleo sobre tela, 120
x 91 cm. Essen, Museum Folkwang.

Fonte: (Google Arts & Culture, 2022).


Em Berlim, Kirchner também passou a retratar as cenas da vida noturna, e muitas
de suas obras foram influenciadas pela sua nova namorada da época. Erna Schilling foi
representada em muitas pinturas junto a sua irmã, na agitada noite da cidade. A obra “Rua,
Berlim” (figura 5) de 1913 retrata as duas mulheres, e faz parte da série “Cenas de Rua”,
com sete pinturas e sessenta gravuras e desenhos relacionados, criados entre 1913-1915.
Esta série foi exibida em uma exposição no Museu Metropolitano de Arte Moderna, em
2008. Sobre essa obra em questão, há uma passagem no site do MoMA:

Kirchner criou esta pintura em um período de solidão e insegurança


logo após a dissolução do grupo Die Brücke em 1913. Ela mostra duas
prostitutas bem vestidas passeando pelas ruas, cercadas por homens que
olhavam furtivamente. Para Kirchner, a prostituta era um símbolo da
cidade moderna, onde o glamour e o perigo, a intimidade e a alienação
necessariamente coexistiam, e tudo estava à venda. As cores intensas e
conflitantes aumentam a excitação e a ansiedade, e o horizonte
inclinado desestabiliza a cena. (moma.org, acesso em dezembro 2022).

Em 1915, após passar por um colapso enquanto atuava na Primeira Guerra


Mundial, foi dispensado do serviço militar e pintou os seus autorretratos mais famosos.
Entre essas obras, a mais expressiva foi “Autorretrato como Soldado” (figura 6), que
demonstrava o seu sofrimento físico e psíquico. A pintura mostra Kirchner no uniforme
que utilizou no serviço militar, levantando um braço sem a mão, que simbolizava a sua
criatividade perdida. Ao fundo da pintura é possível reconhecer um corpo nu, um dos
temas que o artista costumava pintar, mas seu olhar está direcionado para a frente, vazio
e apagado.

Até 1938, Kirchner produziu diversas pinturas em óleo sobre tela e xilogravuras,
nas mais diversas temáticas, como o nu, paisagem natural, paisagem urbana, retrato e
autorretrato; além de ter se pronunciado sobre a sua arte em diversos escritos. Ainda que
mais de 600 das suas obras tenham sido confiscadas de coleções públicas e difamadas
como “degeneradas” pelos nazistas, muitas das suas obras expressionistas podem ser
encontradas online (figuras 7 e 8).
Figura 5 – KIRCHNER, Ernst Ludwig. Rua, Berlim, 1913. Óleo sobre tela, 120,6 x 91,1 cm.

Fonte: (moma.org, 2022).


Figura 6 – KIRCHNER, Ernst Ludwig. Autorretrato como Soldado, 1915. Óleo sobre tela, 69,2 x 61 cm.
Oberlin (Ohio), Allen Memorial Art Museum.

Fonte: (ELGER, 2007).


Figura 7 – Google Arts & Culture, 2022.

Figura 8 – MoMA, 2022.


REFERÊNCIAS

Elger, Dietmar. Expressionismo: Uma revolução alemã na arte. Tradução: Ruth Correia.
Taschen, 2007.

The Museum of Modern Art. <moma.org> Acesso em dezembro 2022.

Google Arts & Culture. <https://artsandculture.google.com/> Acesso em dezembro 2022.

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