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PFM -M9

Lê o texto.

Ricardo Reis dissera ao gerente, Mande-me o pequeno-almoço ao quarto, às nove e meia, não
que pensasse dormir até tão tarde, era para não ter de saltar da cama estremunhado, a
procurar enfiar os braços nas mangas do roupão, a tentear os chinelos, com a impressão
pânica de não ser capaz de mexer-se tão depressa quanto era merecedora a paciência de
quem lá fora sustentasse nos braços ajoujados a grande bandeja com o café e o leite, as
torradas, o açucareiro, talvez uma compota de cereja ou laranja, ou uma fatia de marmelada
escura, granulosa, ou pão de ló, ou vianinhas de côdea fina, ou arrufadas, ou fatias paridas,
essas sumptuosas prodigalidades de hotel, se o Bragança as usa, a ver vamos, que este é o
primeiro pequeno-almoço de Ricardo Reis desde que chegou. Em ponto, garantira Salvador, e
não garantira em vão, que pontualmente está Lídia batendo à porta, dirá o bom observador
que é isso impossível para quem ambos os braços tem ocupados, muito mal estaríamos nós de
servos se os não escolhêssemos entre os que têm três braços ou mais, é o caso desta vossa
criada, que sem entornar uma gota de leite consegue bater suavemente com os nós dos dedos
na porta, continuando a mão desses dedos a segurar a bandeja, será preciso ver para
acreditar, e ouvi-la, O pequeno-almoço do senhor doutor, foi ensinada a dizer assim, e,
embora mulher nascida do povo, tão inteligente é que não esqueceu até hoje. Se esta Lídia
não fosse criada, e competente, poderia ser, pela amostra, não menos excelente funâmbula,
malabarista ou prestidigitadora, génio adequado tem ela para a profissão, o que é
incongruente, sendo criada, é chamar-se Lídia, e não Maria. Está já composto Ricardo Reis de
vestuário e modos, barba feita, roupão cingido, abriu mesmo meia janela para arejar o quarto,
aborrece os odores noturnos, aquelas expansões do corpo a que nem poetas escapam. Entrou
enfim a criada, Bom dia, senhor doutor, e foi pousar a bandeja, menos prodigamente
oferecendo do que se imaginara, mas mesmo assim merece o Bragança nota de distinção, não
admira que tenha tão constantes hóspedes, alguns não querem outro hotel quando vêm a
Lisboa. Ricardo Reis retribui a salvação, agora diz, Não, muito obrigado, não quero mais nada,
é a resposta à pergunta que uma boa criada sempre fará, Deseja mais alguma coisa, e, se lhe
dizem que não, deve retirar-se discretamente, se possível recuando, voltar as costas seria
faltar ao respeito a quem nos paga e faz viver, mas Lídia, instruída para duplicar as atenções,
diz, Não sei se o senhor doutor já reparou que há cheia no Cais do Sodré, os homens são assim,
têm um dilúvio ao pé da porta e não dão por ele, dormiram a noite toda de um sono, se
acordaram e ouviram cair a chuva foi como quem apenas sonha que está chovendo e no
próprio sonho duvida do que sonha, quando o certo foi ter chovido tanto que está o Cais do
Sodré alagado, dá a água pelo joelho daquele que por necessidade atravessa de um lado para
outro, descalço e arregaçado até às virilhas, levando às costas na passagem do vau uma
senhora idosa, bem mais leve que a saca de feijão entre a carroça e o armazém.
SARAMAGO, José (2016). O Ano da Morte de Ricardo Reis. Porto: Porto Editora, pp. 61-63

Apresenta, de forma bem estruturada, as tuas respostas aos itens que se seguem.
1. Localiza o excerto na estrutura interna do romance a que pertence.

2. Refere um efeito expressivo da enumeração presente nas linhas 5 a 7.

3. Analisa a postura do narrador ao longo do texto.

4. Com base na tua experiência de leitura e colocando-te no papel de crítico literário, redige
uma apreciação crítica do romance saramaguiano O Ano da Morte de Ricardo Reis. A tua
apreciação deverá conter entre duzentas e trezentas palavras.

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