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09/03/2023 12:05 A escrita sagrada da romancista moçambicana Paulina Chiziane | Cultura

INÍCIO  CULTURA
ÁFRICA - BRASIL
A escrita sagrada da romancista moçambicana
Paulina Chiziane
A primeira romancista de Moçambique fala sobre seus livros, a condição das mulheres em
seu país e o diálogo com o Brasil
Juliana Gonçalves
São Paulo | 21 de Setembro de 2016 às 11:38

A escritora começou a escrever em 1984 e hoje é uma das intelectuais mais respeitadas de seu país -
Norma Odara

Quem olha Paulina Chiziane dificilmente diz que daquela mulher já idosa, negra retinta de
olhos azuis e sorriso tímido, nasce talvez a escrita mais provocativa de Moçambique.

Sua imagem doce e acolhedora, sua voz aveludada e mansa convidam para a uma
aproximação. E, ao ouvi-la, há quem se assuste com o teor de suas palavras, que trazem
ideias de liberdade.

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A escritora nasceu há 61 anos em Manjacaze, sul do país, região marcada por um forte
patriarcado. "Ainda hoje, eu, que sou uma mulher velha, quando chego ao meu vilarejo
tenho que me abaixar quando vejo um homem em sinal de respeito. Pode ser qualquer
um, até mesmo um bêbado’", conta.

Paulina cresceu nos arredores de Maputo, capital do país. Filha de família religiosa cristã,
logo casou-se, teve dois filhos. Conheceu “as primeiras amarguras’’ e começou a
questionar não apenas o seu, mas o lugar reservado no mundo para as mulheres.

Leitora assídua da bíblia, a escritora diz ter descoberto em suas pesquisas um Jesus
“revolucionário, defensor dos direitos humanos e feminista”. Para ela, seus escritos são
tão sagrados quanto a bíblia. “Precisamos desconstruir esse mito que sacraliza as ideias
de uns em detrimento das de outros; a minha inspiração também é sagrada”, afirma.

Escritora

‘’Como me tornei escritora? É algo que não sei responder. Apenas posso dizer que a
escrita me escolheu, da mesma forma que a natureza me tornou mulher” – escreveu em
1992 no texto ‘’Eu, mulher‘’, publicado pela Unesco. Na mesma publicação, Paulina conta
que a contradição que encontrava entre o mundo que a rodeava e o mundo que residia no
seu íntimo a inspiraram a escrever.

“A escrita é um espaço de liberdade onde posso negociar a minha própria identidade,  o


que sou, o que faço, quais são os meus sonhos”, disse em entrevista ao Brasil de Fato
durante sua passagem pelo Brasil, em agosto.

Começou a escrever em jornais em 1984, mas foi apenas em 1990 que publicou o
primeiro livro. Não eram apenas os preconceitos de gênero que dificultavam a entrada de
Paulina na vida literária. Moçambique era um território em conflito.

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Na juventude, participou ativamente da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo).


‘’Escrevi a primeira obra [Baladas de Amor ao Vento] debaixo de estrondos e ameaças de
morte. Publiquei-a. Escrevi a segunda [Ventos do Apocalipse] debaixo do mesmo
ambiente (...). Trabalhar numa atmosfera de morte é minha forma de resistir. Ninguém
tem o direito de interromper os meus sonhos’’, publicou.

Obras

Ao todo a escritora tem nove livros publicados. ‘’Niketche - Uma História de Poligamia’’,
sem dúvidas é o mais polêmico e ganhou edições em todo o mundo.  "Com o livro, os
homens ficaram muitos zangados comigo e as mulheres muito felizes", ri.

Sua última obra lançada em setembro de 2015, ‘’Ngoma Yethu – O curandeiro e o Novo
Testamento’’, causou grande agitação no meio mais conservador de seu país por abordar
em pé de igualdade o cristianismo europeu e o curandeirismo africano. O livro consagra a
parceria com a curandeira Mariana Martins.

“Se a bíblia foi uma arma de opressão pode ser também de libertação’’, afirma a
escritora ao acrescentar que a África vive uma nova colonização realizada por igrejas
evangélicas”.

’’Os brancos evangélicos estão sempre atrás do diabo, e quem é o diabo? Ele é um
espírito que está sempre em um negro. A caça ao diabo começa a eliminar aos poucos a
cultura e memória coletiva’’, comenta.

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Moçambique

A romancista relembra que a colonização deixou um legado de guerras e, por isso, os


homens estão sempre ausentes. "Quem segura a sociedade africana são mulheres",
afirma.

As suas obras trazem essa dualidade e revelam a existência de dois países distintos
dentro de um. De um lado há o sul, região mais rural e patriarcal, onde são as mulheres
que fazem a manutenção do machismo, enquanto os homens passam dias longe de casa
nas lavouras. Do outro, há o norte, onde as mulheres vivem um “matriarcado feliz”,
segundo Paulina.

A escritora afirma que seu país possui um dos maiores movimentos feministas da África.
“Depois da libertação, a pauta das mulheres entra como política de estado; somos a nação
com mais mulheres em cargos de poder na política”, afirma.

  Brasil-África

Se negros brasileiros vão beber em fontes africanas como um resgate da identidade e


ancestralidade, a escritora acredita que a África precisa também se aproximar do Brasil.

“Me tornei mais atrevida em relação a minha escrita quando entrei em contato com os
movimentos negros brasileiros, isso me deu vitalidade de discutir o que significa ser
negro dentro e fora da África”, finaliza.

BdF entrevista l Paulina Chiziane

Confira a entrevista: 

Como é a situação da mulher moçambicana hoje?


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Paulina Chiziane: É como a situação das mulheres em quase todo o mundo. A nossa
diferença é que o nosso movimento de libertação priorizou a emancipação das mulheres,
mas sinto algumas vezes que isso é mais uma sobrecarga, ela participa da vida pública,
política e familiar.

Suas personagens são inspiradas em mulheres reais?

Em África não precisamos ter o trabalho de imaginar ou sonhar, essas mulheres desfilam
nas ruas perto dos nossos olhos. Às vezes pego meu gravador, sento na rua e converso
com a primeira mulher que passa e tenho uma história. Eu não privilegio o feminino,
mas sou parte do feminino, estou a escrever sobre mim, sou mulher, escrevo sobre
pessoas que me rodeiam, que também são mulheres.

Como vê a produção literária sobre Moçambique?

Considero meu país um lugar virgem, ainda não foi escrito, o acesso à  escrita é muito
limitado. A nossa independência é muito recente, apenas 40 anos. E mulheres que
tenham experiência e gostem de escrever ainda são poucas… A literatura é arma para
desconstruir toda a mentira histórica que vem sendo reproduzida em todas as bibliotecas
do mundo sobre nós, africanos.

Pode falar sobre seu livro “Por Quem Vibram os Tambores do Além’’, de 2013?

Esse livro foi muito difícil, pois quebrava muitos tabus. A função dele é a preservação da
cultura moçambicana através da escrita, isso ainda não está feito em Moçambique.

“Niketche - Uma História de Poligamia”’, é seu livro de maior sucesso. Como surgiu a
ideia de escrevê-lo?

Não planejei escrever sobre isso. Um dia estava na varanda de casa quando vejo três
mulheres discutindo por um homem. O que me chamou atenção foi a forma como cada
uma falava que seu modo de fazer sexo era o preferido daquele homem… Passou-se
alguns anos e resolvi entrevistá-las e falei com ele também. Assim nasceu o livro que
quebrou todas as fronteiras, justamente por falar sobre a necessidade de mudança nas
relações de poder entre homens e mulheres.

Como enxerga o diálogo entre Brasil e África?

Acredito que esse diálogo apenas está começando. Minha escrita mudou desde que
comecei a intensificar minha conversa com os movimentos brasileiros, em especial de
mulheres negras. A África muitas vezes esquece de seus filhos nesse continente. Há os
africanos que estão em África e os que estão espalhados pelo mundo.

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Em seus livros, você aborda muitos assuntos religiosos de uma maneira considerada
subversiva... Qual foi o papel da religião na história africana?

Usaram o nome de deus para ficar com a nossa terra, nosso nome, nossa vida. Em nome
dele nos colocaram em desgraça. A religião foi a primeira grande arma usada pela
colonização. Isso me faz descrente do cristianismo, mas não de Jesus, a quem considero
um revolucionário. Além disso, somos (africanos e afro-brasileiros) produtos do milagre
divino, algumas pessoas teriam sucumbido após a colonização e escravidão, mas nós
sobrevivemos. Esses questionamentos são necessários para assumirmos o nosso lugar na
história do mundo. Sou filha de gente de grande pensamento, tenho herança cultural,
religiosa e histórica, se me foi tirado algo vou lutar para recuperar o que é meu.

Como os jovens dialogam com as suas obras?

Meus livros estão presentes nas escolas. Os jovens leem e gostam muito. Mesmo assim,
as gerações mais novas tem um defeito: esquecem o que passou e pensam que o mundo é
algo que está pra vir, mas o passado está sempre presente. É muito bom quando me
reúno com eles e sou a mais velha porque na minha terra as mais velhas sentam-se em
roda com a geração mais nova para falar sobre o passado e sonhar o futuro.

Edição: Simone Freire.

Edição: ---

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