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A MAIS ANTIGA MANIFESTAÇÃO DE ATIVIDADE MATEMÁTICA1

Manoel de Campos Almeida


PUCPR-Brasil

Resumo

Artefatos de osso e de ocre da idade média da pedra, encontrados na Caverna


Blombos, África do Sul, podem ser as mais antigas evidências de atividade matemática já
encontradas.

Abstract:

Bone and ochre artefacts from the middle stone age found at Blombos Cave, South
Africa, may be the oldest evidences of mathematical activity ever found.

1.0 Quando surgiu a Matemática? Quais suas primeiras manifestações?

São questões que, de uma forma ou de outra, afloram repetidamente à mente dos
interessados nesta ciência. Para tentar respondê-las, necessitamos primeiro saber o que é
Matemática, e de que forma esta se manifesta. Não é nossa intenção debater aqui sobre
problema ontológico de sua natureza ou a de seus entes, ou de sua existência real ou ideal,
árduas questões filosóficas, porém, relevantes para seus praticantes. Concentrar-nos-emos
em procurar estabelecer uma conceituação operacional que nos permita distinguir o que é
matematizar das outras atividades cotidianas do ser humano, tais como comer, dormir,
caçar, plantar, construir, fabricar, acender, etc.
WEYL, já em 1944, notava que matematizar pode bem ser uma atividade criativa do
homem, como linguagem ou música; uma atividade do seu pensamento, melhor apreciada
historicamente (KLINE, 1980, p. 318).
D’AMBROSIO, apontando que o conhecimento, que é gerado pela necessidade de
uma resposta a problemas e situações distintas, está subordinado a um contexto natural,
social e cultural, resume magistralmente:

1
In: Revista Educação em Movimento. Vol.IV, nº 11=Maio-Agosto 2005. Curitiba, Champagnat, 2005.
…em todas as culturas encontramos manifestações relacionadas, e mesmo identificadas, com2 o que
hoje se chama matemática (isto é, processos de organização, de classificação, de contagem, de
medição, de inferência), geralmente mescladas ou dificilmente distinguíveis de outras formas [de
conhecimento], que hoje são identificadas como Arte, Religião, Música, Técnica, Ciências. Em todos
os tempos e em todas as culturas, Matemática, Artes, Religião, Música, Técnicas, Ciências foram
desenvolvidas com a finalidade de explicar, de conhecer, de aprender, de saber/fazer e de predizer
(artes divinatórias) o futuro. Todas aparecem mescladas e indistinguíveis como formas de
conhecimento, num primeiro estágio da história da humanidade e na vida pessoal de cada um de nós
(D’AMBROSIO, 2002, p. 60 e s.).

Todas essas formas de conhecimento são produtos do pensamento racional do ser


humano, e são consideradas como expressão do comportamento do homem moderno
A razão, ensina COSTA (1980), é a faculdade pela qual concebemos, julgamos e
raciocinamos, isto é, refletimos, pensamos. Caracteriza-se por duas funções:
a) função ou razão constitutiva: é a faculdade que forma conceitos e constitui as
categorias; ou seja, os conceitos-chave do pensamento cognitivo em geral; coordena os
dados da experiência, fornecendo os moldes subjacentes a todo o pensamento objetivo;
b) função ou razão operativa: é a faculdade de combinar conceitos, julgando ou
inferindo.
O conhecimento positivo se efetua mediante conceitos basilares e gerais, como os
de objeto, de relação, de causa, de espaço e de tempo, que a razão elabora com apoio na
experiência, mas extrapolando-a. As duas fontes desse conhecimento, em particular do
conhecimento científico, são a razão e a experiência, sendo que a razão constitutiva nos
permite ordenar os dados empíricos, e a operativa nos permite estender os marcos da
experiência, possibilitando-nos, por exemplo, edificar as ciências lógico-matemáticas.
O homem, em busca do conhecimento, emprega em seu cotidiano grupos de
processos racionais, ou seja, grupos de processos regidos pela razão. Esses processos são
contingentes, baseados no empírico, no real. Podemos listar, entre outras, as seguintes
categorias desses processos: organização: comparação, ordenação, classificação;
quantificação: contagem, medição, pesagem; descrição (desenho, pintura, escultura);
formalização (simbolismo); combinação (operações); relação; causação; lógicos: indução,
dedução.

2
Essa lista não pretende ser exaustiva, nem esses processos são exclusivos da
Matemática. Esta compartilha-os com os demais ramos do conhecimento humano, como as
Ciências, Técnicas, Artes, e mesmo a Música ou a Religião.
Buscaremos agora uma conceituação operacional de atividade matemática, que nos
permita, de um modo pragmático, distingui-la das demais atividades racionais cotidianas do
ser humano.
Para os propósitos do presente trabalho, é útil conceituarmos Matemática como a
ciência que emprega entes ou objetos tais como retas, curvas, figuras e sólidos geométricos
(quadrados, losangos, círculos, espirais, cubos, esferas, ...), números, etc.; conceitos, que
exprimem relações entre estes objetos, tais como distância, paralelismo, simetria,
periodicidade, frações, raízes, etc.; e processos racionais, tais como contagem, cálculo,
construção, indução, dedução. A esses entes, conceitos e processos denominaremos de
matemáticos.
Chamamos a atenção particularmente para os processos matemáticos construtivos,
particularmente as construções geométricas, de especial interesse para nossa pauta. A
moderna corrente construtivista ou intuicionista sobre os fundamentos da matemática,
capitaneada por BROUWER, prescreve que somente objetos matemáticos que possam ser
construídos devam ser aceitos como realmente integrantes da Matemática. Para os adeptos
dessa corrente, uma entidade matemática só existe se puder ser construída; e a própria
Matemática é produto de atividades de construções intuitivas3.
Foi o emprego da razão constitutiva que permitiu ao homem identificar no mundo
empírico os entes de interesse para a Matemática, bem como propiciou a ordenação deles e
a formulação dos conceitos-chave desta; já o emprego da razão operativa lhe permitiu erigir
o arcabouço desta ciência.
Qualquer ser humano que utilize, de modo consciente e racional, entes, conceitos e
processos matemáticos estará, portanto, matematizando, ou seja, praticando uma atividade
matemática.

2.0 Achados na Caverna Blombos

3
Para detalhes consultar KÖRNER (1.985) e também COSTA (1.980).
Recentemente uma série de manchetes espocaram nas páginas da imprensa mundial,
portando títulos tais como “Entalhes incendeiam debate sobre a origem do pensamento
abstrato” (Los Angeles Times, 11/01/2002); “Os antigos humanos pensavam?” (Newsweek
International, 21/01/2002); “Ferramentas indicam que comportamento humano “moderno”
começou na África” (África News Service, 10/12/2001).
Estas manchetes originaram-se de uma série de descobertas efetuadas por uma equipe
comandada pelo antropólogo Dr. Christopher Henshilwood, do South African Museum e da
State University de Nova Iorque, realizadas na Caverna Blombos, localizada a cerca de
300 quilômetros a leste da Cidade do Cabo, na África do Sul. Elas parecem desafiar teorias
correntes que defendem que o comportamento humano moderno teve origem em uma
“explosão criativa” ocorrida na Europa há aproximadamente 35.000 anos atrás, no
Paleolítico Superior, bastante disseminadas e aceitas pela ciência contemporânea.
Representações abstratas ou naturalísticas, bem como ornamentos pessoais, são
geralmente consideradas, entre outras, como expressões arqueológicas de habilidades
cognitivas modernas, bem como evidências da aquisição de uma linguagem oral articulada
(D’ERRICO, HENSHILWOOD, NILSEN, 2001). O uso de símbolos, bem como o de
linguagens e rituais, constituem mecanismos reconhecidos para a criação e manutenção de
identidades grupais.
Os homens modernos parecem ter evoluído na África há cerca de 100.000 anos atrás.
Há aproximadamente 50.000 anos eles se espalharam pela Europa, deslocando os
neandertais, os quais parecem ter constituído uma subespécie humana diferente. Em 1997
Svante Paabo, Anne Stone e Matthias Krings recuperaram e analisaram uma pequena
amostra de DNA de um esqueleto Neandertal descoberto na Alemanha em 1856. Sua
análise encontrou uma seqüência de DNA diferente da dos humanos modernos, o que
parece indicar que eles não foram ancestrais diretos dos homens atuais (KAHN, GIBBONS,
1997).
Alguns modelos científicos correlacionam essas inovações comportamentais a essas
rápidas mudanças biológicas ocorridas na África. Outros modelos sugerem uma evolução
biológica mais antiga e possivelmente mais gradual para o comportamento humano
“moderno”. Além desses modelos biológicos, uma corrente alternativa recente sugere que o
simbolismo pode ter se desenvolvido independentemente de mudanças biológicas, como
conseqüência de mudanças demográficas, ecológicas e culturais.
A Caverna Blombos está situada perto da Baía Still, em um penhasco junto à costa, a
cerca de 100m do Oceano Índico, 34,5m acima do nível do mar. Seu nível estratigráfico
superior, correspondente à camada superficial, é da Idade da Pedra Tardia, apresentando
datações entre 300 e 2.000 anos atrás. Uma camada de areia eólica estéril separa esse nível
superficial dos níveis atribuídos à Idade da Pedra Média (IPM) na África, que corresponde
aproximadamente ao Paleolítico Médio Europeu. Os níveis correspondentes à IPM foram
começaram a ser escavados em 1992, de 1997 a 2000 passaram a ser pesquisados
anualmente. Os itens escavados em 2000, nessa camada, foram classificados em três fases:
uma superior (BBC M1), caracterizada por pontas de pedra faciais bifoliadas e poucos
ferramentas de osso; uma média (BBC M2) que continha mais de 20 ferramentas de osso
com poucas pontas bifaciais; e uma inferior (BBC M3), rica em conchas e restos de peixes.
Técnicas de luminescência, de ressonância eletrônica (ESR), e estudos comparativos de
dados obtidos de escavações localizadas em outros sítios, permitiram estabelecer uma idade
mínima de 70.000 anos para esses achados (D’ERRICO, HENSHILWOOD, NILSEN,
2001). Estudos realizados pelo Aberystwyth Luminescence Laboratory, empregando
técnicas modernas que estimulam oticamente a luminescência de tal modo que permitam
calcular quando um determinado grão de areia foi exposto à luz, possibilitaram calcular a
idade dos grão de areia depositados pelo vento no estrato onde foram encontrados os
artefatos de Blombos. Chegaram a uma idade de 77.000 anos.
Para os nossos objetivos, deter-nos-emos em dois dos achados da Caverna Blombos.
Um é um fragmento de osso com incisões, outro é um pedaço de ocre gravado com um
padrão de linhas paralelas.

Fig. 1 Fragmento de osso com incisões paralelas. Caverna Blombos. Foto


e desenho (apud D’ERRICO, HENSHILWOOD, NILSEN, 2001).
Esse osso foi recuperado em 1992 e pertence à fase BBC M1; é provavelmente um
fragmento de um osso mandibular de um mamífero. Onze incisões foram realizadas
paralelamente ao eixo maior da mandíbula; uma linha superficial e descontínua intercepta
obliquamente outras seis; sete têm um perfil relativamente sinuoso. A ausência de
microdanos nas paredes das incisões e a boa aparência das estrias internas sugerem que o
osso estava fresco quando foram feitas.
Estudos realizados por D’ERRICO, HENSHILWOOD e NILSEN (2001) demonstram
que as incisões foram produzidas intencionalmente, não sendo fruto de descarnagem
produzida por um raspador de pedra (semelhante ao da Fig. 2), nem foram ocasionadas por
causas naturais, tais como riscos por atrito ou estrias produzidas por raízes.
Indubitavelmente essas marcas foram produto de por mãos humanas. Empregou-se para
isso observações com microscópios ótico de baixo aumento e eletrônico de espalhamento,
além de estudos comparativos com ossos descarnados mediante ferramentas de pedra.
Os resultados desses estudos mostram que as incisões nesse fragmento foram feitas
intencionalmente, o que é sugerido pelo número, orientação, perfil sinuoso e localização
anatômica dos entalhes, e pelo uso de uma ponta em vez de um perfil cortante, tal como um
raspador.

Fig. 2 Ponta, gravador e Fig.3 Osso gravado com linhas paralelas.


raspador de pedra. La Ferrassie. Musteriense

Obviamente esse fragmento oferece somente uma apreciação parcial do padrão original
de entalhes do osso, evidentemente muito maior, o que torna difícil avaliar o nível de
complexidade dos procedimentos adotados em sua confecção e o grau de complexidade de
seu projeto. Não é improvável, porém, que os autores desses entalhes tinham intenções
simbólicas quando de sua confecção, observam os autores desse estudo. Também é claro
que eles, dentro das suas limitações de ordem técnica, procuravam desenhar um conjunto
de traços paralelos cuidadosamente entalhados em uma superfície plana.
Cabe aqui uma comparação com objetos semelhantes da Europa. Um osso4 encontrado
em La Ferrassie, na Dordonha, França, junto aos restos de uma criança Neandertal,
atribuído ao período musteriense, do Paleolítico Médio, com uma idade de cerca de 50.000
anos, está gravado com uma série de finos traços paralelos.
B. FROLOV (1977) vê nesses traços “uma primeira estrutura matemática, que nasceu
depois de centenas de milhares de anos de aplicação prática de séries de golpes para
fabricar machados de mão e depois de muitas experiências com instrumentos de corte que
legaram entalhes” (apud GUERDES, 1992, p.19). OKLADNIKOV reconhece nesses
desenhos um passo decisivo no desenvolvimento da arte e da lógica dos conceitos abstratos
(id., op.cit.). Porém, observa apropriadamente GUERDES, essa interpretação não esclarece
o porquê foram entalhados traços paralelos, isto é, qual o simbolismo desses traços.
Expressiva parcela dos antropólogos modernos é de opinião que os Neandertais não
possuiam capacidades intelectuais suficientes para desenvolver os comportamentos
tradicionalmente considerados característicos do Paleolítico Superior; que os ornamentos
pessoais a eles associados não passam de imitações, sem cabal compreensão de seu
conteúdo abstrato; e que eram incapazes de comportamento simbólico, provavelmente por
causa de sua pouco desenvolvida capacidade de fala. Isso porque foram encontrados apenas
algumas poucas dúzias de ornamentos indubitavelmente atribuídos aos Neandertais,
enquanto milhares foram achados em sítios Cro-Magnon, sendo que estes últimos são
considerados legítimos antepassados do homem moderno. Além disso, a arte paleolítica,
expressa através de imagens, está associada praticamente em sua totalidade a sítios Cro-
Magnons. Essa visão, contudo, vem cambiando paulatinamente. Estudiosos como
D’ERRICO, ZILHÃO, JULIEN e outros, em um artigo controverso (1998), entendem que
eram seres humanos dotados de cultura, e que não há razão para se assumir que eram
incapazes de “comportamento moderno”. Argumentam que os Neandertais não poderiam
ter imitado os Cro-Magnon, simplesmente porque já estavam assumindo esse
“comportamento” muito antes destes surgirem no cenário.
Mesmo as concepções tradicionais sobre sua extinção, as quais admitem ter ocorrido
por obra dos Cro-Magnon, ancestrais dos humanos modernos, por volta de 30.000 anos
atrás, não deixando legado, vêm mudando. A Península Ibérica parece ter sido o último

4
Fragmento de osso, segundo GUERDES (1992, p.18), ou de pedra, conforme MARSHACK (1972, p.349).
refúgio dos Neandertais. Em 1999 JOÃO ZILHÃO, diretor do Instituto Português de
Arqueologia, descobriu no Vale do Lapedo, situado a cerca de 140 quilômetros de Lisboa,
o esqueleto de uma criança, o qual apresenta tanto traços de Neandertais como de Cro-
Magnons (KUNZIG, 1999). Esse esqueleto híbrido vem sendo considerado como
testemunho do cruzamento entre essas raças. Desse modo a concepção vigente que os
Neandertais foram substituídos por imigrantes modernos começa a perder o sentido. Uma
emigração da África parece ter ocorrido, mas esses emigrantes foram cruzando, em graus
variáveis, com as populações arcaicas que encontravam pelo caminho.
Passaremos agora a analisar o segundo e o mais importante dos achados na Caverna
Blombos. Trata-se de dois pedaços de ocre que contém desenhos abstratos cuidadosamente
gravados em uma superfície. Resultados de análises criteriosas sobre os mesmos ainda não
foram publicados, ao que temos conhecimento, porém, o que já foi divulgado nos permite
tecer algumas considerações preliminares. Foram encontrados no mesmo estrato da Idade
da Pedra Média da África na Caverna Blombos, portanto, sua idade é superior a 70.000
anos; 77.000 segundo as últimas estimativas. O ocre já apresentado pode ser apreciado na
Fig. 4.

Fig. 4 Ocre com padrão geométrico. Blombos.


Foto; desenho do autor.

Ocres vermelhos, que são óxidos de ferro (Fe2O3), provêm de hematitas (palavra de
origem grega, significando “como sangue”) e de outras rochas ricas em ferro (especularita,
limonita, etc.); são relativamente comuns em muitas formações geológicas e em solos.
Nenhum outro pigmento mineral compete com a habilidade do ocre de penetrar os poros
dos arenitos, onde um motivo pintado com hematita se torna quase indestrutível. Outros
pigmentos, mas não o ocre, podem mudar suas cores com a idade.
Quando de alta qualidade, principalmente os com matizes ricos e profundos, eram
muito estimados e procurados, sendo amplamente “comercializados”, isto é, trocados por
bens valorizados, entre os povos primitivos espalhados pelo mundo, que despendiam
considerável tempo em viagens para sua obtenção. São conhecidos principalmente por seu
emprego em pinturas de cavernas e em contextos associados a rituais de sepultamentos,
notadamente entre os Neandertais, todavia também foram amplamente empregados, tanto
por povos antigos como atuais, em medicamentos de uso interno e externo, repelentes de
insetos, conservantes de madeira ou de alimentos, curtimento de peles e em outras
finalidades.
A antiguidade de seu uso é uma questão controversa, pois geralmente está conectada
com os primórdios do comportamento cerimonial e simbólico, bem como com o debate
sobre as origens dos homens anatomicamente modernos. Na África, o primeiro registro
arqueológico de ocre parece ser sua ocorrência em um sítio de Olduvai George (c.500.000
anos idade, ERLANDSON, 1999); os ocres encontrados em Twin Rivers, associados à
indústria lítica Lupemban Inferior, da antiga Idade da Pedra Média da África, têm uma
idade superior a 400.000 anos (BARHAM, 2002). Na Europa, ocres foram identificados em
sítios de Ambrona, do Acheuliano Antigo, com uma idade entre 400.000 e 230.000 anos
(ERLANDSON, 1999). Parcela desses sítios mais antigos, inicialmente correlacionados
com o Homo Erectus, são hoje atribuídos ao Homo Sapiens arcaico.
Os hominídeos da África Central e Oriental parecem ter incorporado a cor em suas
vidas em torno de 270.000 anos atrás (BARHAM, 2002), mas o contexto social de seu uso
permanece especulativo. Uma paleta de suas cores, baseada em amostras de minerais de
Twin Rivers, seria composta de: amarelo, marrom, vermelho, púrpura, rosa e azul escuro.
Cristais de especularita podem produzir um pó que cintila. Os Neandertais também
coletavam e processavam pigmentos, mas predominantemente dióxido de manganês ao
invés de hematita.
Os ocres de Blombos representavam, portanto, bens preciosos, estimados por seus
donos, adequados para ostentarem um conteúdo simbólico importante, convenientes serem
objetos rituais. Lembramos que símbolos e comportamentos baseados em símbolos são, por
definição, arbitrários, e dependem de convenções para que sejam aceitos e tenham sucesso.
Passemos agora a examinar o padrão gravado nesse ocre. Observando-o (Fig.4)
constatamos que a superfície onde aparece a gravura está danificada à direita, talvez o
desenho se prolongasse, mas provavelmente não muito, nessa direção. Aparentemente, seu
autor estava tentando reproduzir um padrão geométrico similar ao da Fig. 5.

Fig.5 Possível padrão geométrico Fig. 6 Trançado de fita, com um ângulo


do ocre de Blombos. de incidência de 60o, ao redor de um
rebordo.

Passaremos a averiguar se esses achados podem ser considerados como produto de


atividades matemáticas. No fragmento de osso detectamos uma tentativa consciente e
intencional de se construir um conjunto de retas paralelas. Nele encontramos entes
matemáticos (as retas); um conceito matemático (o paralelismo entre elas) e um processo
matemático (a construção desse conjunto). Portanto, dentro da nossa conceituação arbitrada
para atividade matemática, podemos dizer, concordando com FROLOV, que realmente
pode ser classificado como produto de uma atividade matemática. É, evidentemente, uma
atividade extremamente rudimentar, primitiva, mas não totalmente isenta de conteúdo
matemático.
Já no ocre de Blombos encontramos indícios de um pensamento abstrato mais
elaborado, poder-se-ia dizer notável, se considerarmos sua idade. Notemos, inicialmente, a
tentativa de se traçar três retas paralelas 1, 2 e 3 (Fig.4). Encontramos aqui entes
matemáticos (as retas 1,2,3) e o conceito matemático de paralelismo. Além disso, o autor
procura traçar as retas 1 e 3 eqüidistantes da reta central 2, o que aponta para o
conhecimento do conceito de distância entre retas. Chamamos atenção para o terceiro
losango, denotado pela letra C, da esquerda para a direita. Nele visualizamos a pista mais
importante de que o autor estava procurando construir, de modo inteiramente consciente e
racional, um padrão geométrico, talvez como o da Fig. 5. Ao traçar a reta 6 o autor errou o
ângulo de incidência, e esta não ficou paralela às demais, tal como a reta 5, o que
demonstra apreensão do conceito de ângulo. Percebendo isso, procurou consertar o erro, e
recomeçou traçando a reta 7, agora com paralelismo melhorado; porém, como ficou algo
sinuosa, terminou traçando a reta 8, muito mais retilínea. Do mesmo modo, não satisfeito
com a distância e o paralelismo da reta 9, traçou a reta 10, e o losango C ficou com sua
forma definitiva, muito mais parecido com o B. Se tivesse condições de apagar as retas 6 e
9, defeituosas, o padrão ficaria com uma forma satisfatoriamente regular; mas, graças a
isso, podemos constatar que o hominídeo autor dessas linhas estava, consciente e
intencionalmente, procurando construir o padrão geométrico que tinha em mente,
mostrando com isso considerável capacidade de abstração. Observamos, igualmente, que
por todo o desenho perpassam os importantes conceitos matemáticos de simetria e
periodicidade (ritmo), fundamentais para a construção de padrões.
Nesse ocre encontramos, portanto, entes (retas), conceitos (paralelismo, ângulo,
distância, simetria, etc.) e processos (construções geométricas) matemáticos. Pode-se então
afirmar, com razoável segurança, ser produto de atividade matemática humana, dentro da
conceituação adotada, constituindo-se assim no mais antigo exemplo de padrão geométrico
até hoje descoberto.
Também é interessante notar que esta mais antiga demonstração de pensamento
abstrado, codificada em uma construção geométrica, produto consciente e intencional de
atividade matemática, foi descoberta na África, o que parece deslocar o pólo inicial da
origem do comportamento humano moderno da Europa para esse continente. Ressalve-se,
porém, que essas descobertas iniciais são muito escassas, e não se pode ainda descartar a
hipótese de que sejam produto de algum gênio paleolítico isolado.
Outra indagação susceptível de ser feita é se esse ocre seria um exemplo de arte ou
de atividade matemática paleolítica. Como D’AMBROSIO justamente observou, nesse
estágio primitivo da evolução do conhecimento, no alvorecer do comportamento humano
moderno, as suas formas, tais como a Matemática e a Arte, surgem inicialmente mescladas
e indiferenciadas. Além disso, a Arte não deixa de ser uma forma de matemática
inconsciente.
3.0 Mitos, rituais e símbolos – origens do pensamento abstrato

Segundo ELIADE (1986), o mito é uma realidade cultural extremamente complexa,


que conta uma história sagrada, relata um acontecimento que teve lugar em um tempo
primordial, o tempo fabuloso dos “começos”. É a narração de uma criação, descreve-se
como uma coisa foi produzida, como começou a existir. Sua função soberana é revelar os
modelos de todos os rituais e de todas as atividades humanas significativas: tanto a
alimentação como o casamento, o trabalho, a educação, a arte ou a sabedoria. Daí a
importância dos chamados mitos de criação, os mitos cosmogônicos. Mito e ritual são
complementares; ritual é o drama mágico para o qual o mito é o seu livro de palavras, que
não raro sobrevivem muito depois de ter cessado o desenrolar do drama propriamente dito.
Rituais são desempenhos para assinalar situações de liminaridade, como passagem
de um estágio de um ciclo vital para outro (nascimento, puberdade, casamento, morte); ou
mudança de uma atividade econômica (plantio, colheita); ou relacionados à alteração de
ciclos climáticos (chuvas, primavera, verão, outono, inverno); ou ainda de caráter
propiciatório (caça, pesca); divinatório (predição do futuro) e de cura. A encenação ritual
exige a personificação de seus atores, caracterizada de alguma forma, seja pela sua
ornamentação corporal, pelas suas vestimentas, adornos ou uso de objetos rituais. Tudo é
simbólico em um objeto ritual.
Ensina a etnologia que os mitos narram a origem, a aparência e o modo de uso dos
objetos rituais; portanto, pelo seu estudo e mediante a observação pormenorizada do
cerimonial poder-se-ia, teoricamente, chegar à fundamentação mítica dos objetos rituais.
Isso, contudo, é impossível em se tratando da pré-história, onde tanto os mitos como os
personagens desses cerimoniais há muito se desvaneceram nas penumbras do tempo.
Símbolo é algo que, por convenção arbitrária, designa ou representa uma realidade
complexa. Alerta JUNG, porém, para a importante diferença existente entre sinal (signo) e
símbolo: o sinal é sempre menos do que o conceito que ele representa, enquanto que o
símbolo sempre representa mais do que o seu significado imediato e óbvio. Exemplos disso
temos na balança, símbolo da justiça, e na cruz, símbolo da cristandade. Através da
simples observação de seu aspecto material, ou da mera constatação da sua utilidade, somos
incapazes de intuir a complexidade de seu conteúdo simbólico. Ë geralmente aceito que o
comportamento moderno do homem se iniciou quando começou a pensar abstratamente, ou
seja, a empregar, consciente e intencionalmente, símbolos.
No tocante a fundamental questão, já levantada por GUERDES para o artefato de
La Ferrasie aqui transportada para o ocre de Blombos, de qual o simbolismo contido nos
traços gravados, lembramos que todo o símbolo é, por definição, arbitrário, necessitando de
uma convenção para sua aceitação. Qual a convenção aceita para a interpretação desses
símbolos nos é obscura, passível apenas de especulações, talvez definitivamente sepultada
nas fímbrias do tempo. Se o ocre de Blombos era um objeto ritual, o seu conteúdo
simbólico está, portanto, fora do nosso alcance, podemos apenas conjectura sobre seu
possível significado, baseados em exemplos paralelos emprestados da etnografia.
O que é interessante, ressaltamos novamente, é que atividades que podemos
classificar como matemáticas estão ligadas aos primeiros vestígios de pensamento abstrato,
de comportamento humano moderno, como podemos comprovar com esse ocre.
A seguir passaremos em revista as principais motivações que podem possivelmente
ter influenciado o despertar do pensamento matemático geométrico, com o fito de atualizar,
sob a luz dos desenvolvimentos mais recentes sobre esses assuntos, o que os livros de
História da Matemática contêm acerca da pré-história da geometria.

4.0 Possíveis motivações que podem ter influenciado as origens do pensamento


matemático geométrico

4.1 Natureza

Encontramos na Natureza vários tipos de formas geométricas. Elas aparecem tanto


na natureza morta, inanimada, tais como em cristais; na forma circular do Sol e da Lua; no
formato do arco-íris; na parábola descrita pelo arremesso de uma pedra; etc.; como nas
formas de origem orgânica, na estrutura das colméias; nas conchas; nos desenhos das peles
e das pegadas dos animais; nos polígonos construídos pelas teias de aranha; nas espirais
delineadas nas flores do girassol; nas pinhas; etc.
EVES lembra que “As primeiras considerações geométricas do Homem parecem ter
tido a sua origem em observações simples que provêm da habilidade humana de
reconhecer forma física e de comparar figuras e tamanhos” (apud GUERDES, 1992, p.15).
Essa habilidade geométrica seria, portanto, uma capacidade inata da espécie, do
mesmo modo que o senso numérico também representa uma habilidade humana inata para
números. Essas capacidades seriam transmitidas geneticamente, caracterizando assim uma
herança (geométrica e numérica) da espécie, efetiva, embora limitada e rudimentar
Esse mesmo autor nota que “formas físicas possuem um caráter ordenado...
atraindo necessariamente a atenção da mente refletiva” (id., op.cit). É esse caráter
ordenado, isto é, a percepção de padrões, o fascínio pela simetria, o estímulo estético, que
atrai o interesse do homem por essas formas. Observa, porém, GUERDES: “para
geometrizar são necessários não só objetos geometrizáveis, mas também a capacidade de,
na percepção desses objetos, abstrair de todas as propriedades, para além da sua figura -
esta capacidade é o resultado de um longo desenvolvimento histórico de experiências
humanas” (id.). Nisso reside as bases do comportamento humano moderno, na sua
capacidade de pensar abstratamente, de adotar simbolismos, que encontramos expressas no
ocre de Blombos, peça ilustrativa do mais antigo estágio dessa aventura humana.
Karl Von Steinem, visitando o Brasil no século XIX, notou que padrões
ornamentais, que para nós civilizados parecem puramente formais, para os índios
brasileiros representavam peixes, besouros, cobras, abelhas, vespas e outros animais. A
similaridade de formas entre o puramente convencional e o realístico lhe permitiu intuir que
provavelmente o primeiro se desenvolveu a partir do último.

a b

Fig. 7 Cestaria Baniwa Fig. 8 Padrões Karajás

Alguns exemplos etnográficos brasileiros nos permitem constatar essa afirmação.


Na Fig. 7 encontramos dois exemplos de padrões empregados na cestaria dos índios
Baniwa, da região do Rio Negro: o primeiro (a) é denominado de kettamarhi, representando
o desenho das costas de um determinado tipo de besouro; o segundo (b), makowe ithi,
lembra o olho de certa ave noturna. Os padrões da Fig. 8, empregados pelos índios Karajás,
têm as seguintes interpretações: a) ninhos de vespas; b) morcegos; c) desenho da pele da
cobra cascavel; d), e) e f) desenhos das peles de cobras diversas.
É possível que o padrão do ocre de Blombos tenha como inspiração alguma forma
geométrica regular da Natureza.

4.2 Ornamentação corporal

BERNSTEIN (1970) afirma que um código simbólico reforça um padrão de valores


dado e leva os membros de um grupo a internalizar as normas no processo de interação (cf.
VIDAL, MÜLLER, 1986).
Aspectos de estruturação social tradicional, no que se refere aos sistemas de
classificação social, que categorizam os elementos de um grupo, estão diretamente
relacionados à ornamentação corporal, seja ela feita por meio de pinturas, tatuagens,
penteados elaborados, enfeites e mesmo complementos tais como mantos, tiaras, chapéus,
etc.

4.2.1 Pintura corporal

Estudos etnológicos nos permitem afirmar que a pintura corporal de um indivíduo


conforma uma linguagem simbólica que expressa uma ampla gama de informações sobre o
seu status social, sexo e idade, bem como sobre os grupos cerimoniais a que pertence,
classificados segundo os papéis que desempenham nos rituais, bem como seu grau de
iniciação. Pode adquirir dimensões transcendentais, estando então associada ao domínio da
natureza (magia); ou interpretações cosmogônicas (mitos de criação); ou cosmológicas
(estruturação do mundo, ordem cósmica). De certa maneira, a ornamentação corporal é a
forma direta e concreta de comunicar identidade pessoal e social.
A pintura corporal pode empregar pigmentos tanto de origem mineral, por exemplo
o ocre, como de origem orgânica, tais como o suco de jenipapo, o carvão vegetal e o
urucum, que desaparecem ao fim de um certo tempo, devido à higiene corporal ou ao atrito.
Essa é uma vantagem, pois os padrões pintados podem ser substituídos por outros, de
acordo com as necessidades da ocasião.
Provavelmente o homem passou a empregar a pintura corporal quando incorporou a
cor em suas vidas, o que parece ter ocorrido, na África, há cerca de 270.000 anos.
Exemplos etnográficos demonstram mostram ser comum e universal o emprego de
padrões geométricos em pinturas corporais.

4.2.2 Tatuagens

As tatuagens também configuram uma linguagem simbólica semelhante à da pintura


corporal, porém são duradouras. A técnica da tatuagem consiste em perfurar a pele com
objetos pontiagudos, como dentes de cotia, de tubarão, ossos de pássaros, etc., previamente
mergulhados em uma tinta indelével, geralmente negro de fumo, embora outros pigmentos
possam ser empregados. São executadas seguindo padrões geométricos ou animalísticos
tradicionais.
O emprego do negro de fumo gera um problema para os humanos de pele escura,
como os negros africanos ou os australianos, pois o desenho então não é visível. A solução
que esses povos encontraram consiste em praticar incisões na pele em vez de perfurá-la.
Depois, esfregando-se na ferida substâncias irritantes, como areia ou cinza, se obtém a
formação de um tecido cicatricial, caracterizado por intumescimentos. A esse processo se
denomina escarificação. Os desenhos formados por esses intumescimentos podem
constituir formas geométricas complicadas.
A dor associada a esses procedimentos constitui importante fator psicológico,
componente essencial da conscientização dos participantes sobre a importância dos rituais
de iniciação que os exigem.
Evidentemente, testemunhos arqueológicos do emprego desses processos implicam
na preservação da pele humana, o que só ocorre em circunstâncias excepcionais.
Em 1929 o arqueólogo russo Sergei Rudenko “escavou” alguns kurgans, montes
sepulcrais de terra, artificiais, em Pazyrik, local não distante do ponto onde as fronteiras
modernas da Rússia, da Sibéria e da China se encontram. Nessa região o solo está
permanentemente congelado (permafrost). A “escavação” foi feita mediante baldes de água
quente cuidadosamente despejados no conteúdo congelado dos sepulcros. Recuperaram-se
magníficos objetos de couro, tapetes, têxteis e outros bens igualmente perecíveis, bem
como os corpos preservados de seus donos, em seus esquifes de madeira, com suas peles
cuidadosamente tatuadas. Esses sepultamentos datam de 500 a.C..
Em 1991, transeuntes praticando trilhas nos Alpes no norte da Itália encontraram os
restos congelados de um homem neolítico, conhecido como o homem de Hauslabjoch ou,
popularmente, Ötzi, o homem do gelo. Com uma idade de 5.300 anos, sua pele está gravada
com 59 tatuagens. Seu simbolismo é desconhecido, embora as marcas de tatuagens nas
costas e na perna coincidam com pontos de tratamento de dor por acupuntura. Estudos
radiológicos mostraram evidências de osteoporose em Ötzi, que pode ter respondido à
acupuntura. A acupuntura, contudo, é presentemente acreditada como surgida na China há
cerca de 2000/3000 anos atrás. Embora isso possa ser apenas uma coincidência fortuita,
alguns especialistas crêem que essa evidência possa apontar para que a acupuntura possa ter
aparecido simultaneamente em várias culturas; bem como que populações pré-históricas
poderiam ter um profundo, possivelmente intuitivo, conhecimento do corpo humano,
associado talvez à prática de tatuagens.

4.2.3 Adornos diversos

Podem também ostentar uma linguagem simbólica complexa, do mesmo modo que
as pinturas, as tatuagens e as escarificações corporais. Não raro se constituem em objetos
rituais, prezados e valiosos entre os povos que os cultuam. Além disso, muitas vezes seu
apelo estético também os tornam bastante requisitados.
São feitos dos mais diversos materiais, desde que disponíveis, tais como: ossos,
dentes, conchas, madeira, sementes, contas, pedras, semi-preciosas ou não, couro, chifres,
marfim, unhas, plumas, etc.. Assumem variadas formas: pendentes, colares, tiaras,
diademas, braceletes, braçadeiras, pingentes, cilindros labiais e auriculares (botoques),
bastões, anéis e outras. Penteados elaborados também constituem adornos corporais.
Conforme o artefato, ou pode ser gravado com complexos desenhos, ou a
combinação criteriosa de diversos de seus elementos componentes, como sementes, contas,
etc., pode formar elaborados padrões geométricos decorativos.

Fig.10 Figura feminina Fig. 11 Bracelete de Mezin e seu desenvolvimento.


estilizada. Predmostí. Pendente proveniente de Lalinde.

Os fabricantes de ornamentos do paleolítico, ao escolherem, por exemplo, dentes de


certas espécies como matéria prima, provavelmente estavam tentando assumir algumas das
qualidades desses animais. O processo conceitual de que uma parte simboliza o todo do
animal é denominado metonímia. Uma fundamentação metonímica para a confecção de
ornamentos corporais é bem conhecida pelos antropólogos, por meio do estudo recente de
pequenas sociedades, cujos membros têm rituais em que assumem as qualidades desses
animais.
Diversos exemplos de adornos paleolíticos são conhecidos. De particular interesse é
a figura feminina estilizada (Fig. 10), gravada em uma presa de mamute, encontrada em
Predmostí, Moravia, na antiga Tchecoslováquia. Pertence à cultura Pavloviana, datando de
29.000 a 24.000 anos atrás. Parece contar com uma série de adornos, bem com uma tiara (?)
de desenho complexo. Na Fig. 11 vemos um intricado desenho geométrico gravado em um
bracelete, também de marfim de mamute, descoberto em Mezin, na antiga União Soviética,
bem como um grande pendente decorado, proveniente de Lalinde, França. Numerosos
outros exemplos demonstram ser comum o uso de padrões geométricos em adornos
paleolíticos (ver Jelínek, 1976).
4.3 Fatores neurofisiológicos

4.3.1 Estados alterados de consciência – xamanismo

O termo xamanismo, primeiro empregado para descrever práticas e credos dos


“feiticeiros”, “homens sagrados”, ou “curandeiros” siberianos, hoje descreve um conjunto
de preceitos e costumes partilhados por muitos povos no mundo. Algumas das
características dos sistemas xamanísticos, ensina a etnologia comparativa, são
fundamentais, arquetípicos diríamos, e amplamente disseminados ao redor do globo.
Etnólogos consideram que o xamanismo é amplamente encontrado em sociedades
igualitárias, habitualmente de caçadores-coletores, embora nem todas essas sociedades
sejam xamanísticas.

Fig. 11 Esq.: “feiticeiro” de Trois Fréres (Breuil); centro: xamã siberiano,


Witsen, 1705; dir.: dança xamãnica tupinambá, Lery,1706.

Listaremos três dessas características. A primeira é a crença em um universo


composto de diversos níveis superpostos, ou mundos paralelos. Os eventos que ocorrem em
nosso mundo são diretamente condicionados pela influência dos poderes que habitam um
ou outro desses mundos. A segunda, é a crença em que certos indivíduos, os xamãs, em
determinadas circunstâncias, podem fazer contacto direto com esse(s) outro(s) mundo(s),
tendo assim o poder de alterar eventos no nosso mundo. A terceira característica é de que o
xamã estabelece esse contacto, em uma direção ou em outra, empregando espíritos
auxiliares, que muitas vezes assumem a forma de animais, os quais ou vêm ao xamã ou este
se transforma neles. Esse contacto muitas vezes assume a forma de um vôo místico, através
de sensações de desencorporeamento, falta de peso, viagens a lugares distantes, que
incluem mudanças de perspectiva, com visualizações aéreas dos arredores.
O fato de que o xamanismo se encontra amplamente disseminado ao redor do globo
não é devido ao contacto direto, ou indireto, entre os diversos povos que o praticam, mas
porque, ao menos parcialmente, está enraizado na inevitável necessidade que o ser humano
tem de racionalizar, de controlar a natureza, bem como no uso de estados alterados de
consciência, que são intrínsecos ao sistema nervoso central humano, e aparecem, de uma
forma ou de outra, em praticamente toda a sociedade.
Certas pessoas, em todo o tempo e lugar, e em qualquer sociedade, são objeto de
visões e alucinações. Essas experiências podem ser provocadas pelo uso de drogas, ou
devido a certos estados patológicos, bem como podem ser provocadas por fatores tais como
isolamento, escuridão, concentração intensa, enfado extremo, jejuns prolongados, falta de
sono, sofrimento, ou sons vibrantes e ritmados, semelhantes ao latejar. A sociedade
racionalista moderna encara essas pessoas como doentes, viciadas ou insanas, porém, nas
sociedades primitivas, elas assumem papéis de líderes espirituais, profetas, pajés ou xamãs.
Muitos espeleologistas têm descrito os efeitos alucinatórios que as cavernas podem
provocar, onde o frio, escuridão, umidade e a ausência de referências sensoriais encorajam
o surgimento de visões. Pode-se classificar a ocupação das cavernas na idade da pedra,
especialmente no paleolítico europeu, em três tipos: a) cavernas para habitação: geralmente
não são muito profundas, não raro são apenas reentrâncias, simples abrigos, em paredões
rochosos; b) cavernas santuário: raramente visitadas e nunca usadas para habitação,
normalmente se extendem profundamente sob a superfície; c) cavernas de utilização
comunitária, cujos exemplos mais conhecidos são as cavernas de Lascaux, na França, com
17.000 anos de idade, e Altamira, na Espanha, com 12.000 anos. Abrigos rochosos
decorados são muitas vezes considerados como “portais” de duas mãos entre o mundo real
e o “outro” mundo.
As sociedades primitivas faziam uso de diversos tipos de drogas capazes de
provocar alucinações, transes e visões. O uso ritual de Nymphaea caerula como parte do
culto de Osiris é conhecido no Egito Dinástico; os incas empregavam folhas de coca; os
astecas consideravam cogumelos alucinogênicos serem teonanacatl, ou seja, serem a carne
do Deus; Heródoto descreve a prática de inalação de fumaça de cânhamo (Cannabis) pelos
citas; os arianos do Rig Veda ingeriam o soma, uma bebida intoxicante; lembramos ainda o
emprego do vinho nos cultos de Dionísio (Grécia) e Baco (Roma). Os índios da América do
Sul, especialmente da região amazônica, utilizam o tabaco (Nicotina); folhas e chá de coca
(Erythroxylon coca); bebidas alcoólicas fermentadas; o rapé alucinógeno de Piptadênia;
plantas do gênero Banisteriopsis, que produzem bebidas narcóticas conhecidas como
hayahuasca, yagé, pinde, etc.; e preparados narcóticos empregando plantas do gênero
Datura: borrachero, miaya, yerba de huaca, etc.. Cogumelos, como o Amanita muscaria, ou
o cactus peyote, também têm seu uso como alucinogênicos bastante difundido entre
diversas culturas.
SHERRAT (1997) estudou a ocorrência de narcóticos em rituais no Neolítico,
particularmente de sementes de papoula (Papaver somniferum) e cânhamo (Cannabis
sativa). Sementes de papoula já tinham sido identificadas desde 1878 entre materiais
recuperados de vilas neolíticas lacustres suissas, e também foram mais tarde foram
encontradas em cavernas dessa era na Espanha. O uso de cannabis durante a Idade do
Ferro, desde a Europa ocidental até a China, é bem documentado; provavelmente esta
espécie se difundiu das estepes para a Europa e China. Essas plantas eram conhecidas dos
primeiros agricultores na Europa, que muito provavelmente sabiam de suas propriedades
narcóticas.

4.3.2 Processos neurofisiológicos

4.3.2.1 Fosfenos

Quando os olhos se relaxam, adaptando-se à escuridão, o campo visual se ilumina


com pequenas nuvens e clarões luminosos que se movimentam, geralmente em tons pastéis
de azul, verde, laranja e amarelo. Se pressionarmos os olhos aparecem uma série de outras
figuras, geralmente formando padrões geométricos. Essas visões são denominadas de
fosfenos, do grego phos, luz, e phainein, mostrar. Como se originam dentro do olho e do
cérebro, eles constituem fenômenos perceptuais comuns à toda humanidade.
Fosfenos podem tanto ser produzidos espontaneamente como provocados de certos
modos. Aparecem espontaneamente apenas quando o olho carece de estímulos visuais e
está sujeito a uma prolongada abstinência visual. Alguns especialistas acreditam que os
fosfenos podem ser responsáveis pelo fenômeno de “ver a luz”, reportado por místicos
religiosos que meditam na escuridão. As pessoas que sofrem batidas na cabeça geralmente
“vêem estrelas”, que nada mais são que fosfenos induzidos por meios mecânicos. Um
método menos traumático de se produzir fosfenos consiste em pressionar os globos
oculares com os dedos, com as pálpebras fechadas, conforme indicado na Fig. 13.
Podem também ser induzidos por uma ampla gama de agentes químicos, como
álcool, toxinas e drogas alucinogênicas, ou pela aplicação de estímulos elétricos ao córtex
cerebral. Mesmo pessoas cegas vêm fosfenos se seu cérebro é estimulado eletricamente.

Fig. 12 Esquerda: padrões de fosfenos; direita: padrões da arte paleolítica,


Altamira, Espanha (modificado de OSTER, 1970).

Max Knoll identificou 15 categorias básicas formadoras de fosfenos eletricamente


induzidos, mostradas na Fig. 14.
OSTER (1970) sugeriu que os fosfenos podem ter inspirado os padrões geométricos
encontrados na arte paleolítica. A repetição do losango básico (9) da classificação de Knoll
pode dar origem ao padrão que encontramos no ocre de Blombos.
LEWIS-WILLIAMS e DOWSON proporam em 1988 que muitos dos signos
abstratos encontrados na arte paleolítica e neolítica podem ser originários de processos
neurofisiológicos determinados por práticas xamanísticas, como o uso de drogas, que
induzem o aparecimento de fosfenos. Se o córtex cerebral do hominídeos daquelas eras é
equivalente ao dos atuais humanos é possível que os fosfenos possam ter sido fonte dos
padrões geométricos dessas artes, porém, como bem observa BEDNARIK, não podemos
estar certos que tais hominídeos estavam engajados em práticas xamanísticas, pois
encontramos exemplos de fosfenos também na arte de povos que não as praticam nem
recorrem a experiências ou drogas alucinatórias. Esse autor acredita que os fosfenos são um
componente universal fundamental na origem da arte primitiva, pois todos os humanos,
incluindo as crianças e os cegos, os experimentam. Sugeriu que, para os habitantes
europeus das cavernas, a carência de luz durante os invernos prolongados, associada à
severa e restrita dieta alimentar vigente, poderiam igualmente explicar a causa da
experiência com os fosfenos.

4.3.2.2 Processos do córtex visual – modelo neurofisiológico

Vários autores, como GOMBRICH, BEDNARIK, HALVERSON, LATTO e


HUDSON, enfatizaram que os motivos primitivos, especialmente as formas geométricas,
são esteticamente interessantes não apenas porque refletem características do mundo, mas
sim porque estimulam propriedades do sistema visual humano.
Em 1980 HUBEL e WIESEL descobriram que células do córtex visual primário são
organizadas para responder à orientações específicas de uma linha, e que a percepção de
formas pode ser fabricada pela agregação de características selecionadas. Descreveram
como o córtex pode funcionar como um estágio primário na análise da orientação de linhas,
e como é um aspecto importante do processamento da informação visual, que se efetua por
meio de uma hierarquia de células simples, complexas e hipercomplexas, através das quais
a natureza da informação acerca da linha pode se tornar cada vez mais abstrata.
BARLOW propôs a teoria da detecção de características, pela qual as células
corticais, que formam o nível inferior de uma hierarquia de células, respondem
progressivamente às características geométricas cada vez mais abstratas das formas. Dessa
maneira, células dos mais baixos níveis responderiam às linhas mais primitivas, enquanto
que as dos níveis mais altos responderiam à características geométricas simples dessas
linhas, como ângulos, paralelismo e perpendicularismo e, na seqüência, pelas combinações
de atividades de células complexas e hipercomplexas particulares, surgiria a percepção de
formas geométricas mais elaboradas, como retângulos, losangos e círculos, e assim por
diante, até a percepção de figuras representacionais, que envolveriam centros de alta ordem
do córtex cerebral e do cérebro.
Embora essa seja uma simplificação do processo real, que ainda não é inteiramente
compreendido, pesquisas recentes tendem a confirmar esse quadro, mostrando como o
córtex primário processa informações referentes à orientação de linhas, ângulos e
perpendicularismo entre elas (HOGDSON, 2000).
Para essa corrente, a preocupação com a feitura de signos geométricos seria um
estímulo importante para o desenvolvimento do olho e do cérebro humano, um pré-
requisito importante para a realização de formas representacionais, as quais envolveriam
outras áreas do córtex visual.
Dentro dessa concepção, a geometria seria uma capacidade inata do ser humano. As
habilidades geométricas adquiridas nas tarefas cotidianas desenvolveriam e ampliariam
essa capacidade.

4.4 Vestimentas, Têxteis, Teares

O homem pré-histórico é costumeiramente imaginado como vestidos de peles,


vagando em caçadas. Na realidade, achados arqueológicos de couros e peles pré-históricos
são extremamente raros, pois esses materiais só se conservam em circunstâncias
excepcionais, principalmente em ambientes anaeróbicos. Até a descoberta das vestimentas
de Ötzi, feitas de pele, à exceção de um notável casaco, confecionado com longas
gramíneas, provavelmente empregado como proteção para repelir água de suas vestimentas
e equipagem de couro e pele, apenas dois outros achados do Neolítico Europeu eram
conhecidos: uma bainha de uma faca de pedra, proveniente de Wiepenkathen, Alemanha; e
um poncho de pele da Dinamarca (WAATERINGE, LONDEN, 1999). Já da Idade do
Bronze e do Ferro exemplos de artefatos de couro e pele são conhecidos oriundos
principalmente de pântanos turfosos, como os da Dinamarca, Alemanha e Holanda; outros
exemplares são provenientes de esquifes de carvalho ou minas de sal, tais como as de
Hallstatt (id.).
Presentemente essa concepção arraigada sobre as vestimentas do homem primitivo
vem se alterando substancialmente. Recentemente foi documentada a existência de
tecnologias têxteis diversas e sofisticadas no paleolítico, que incluem produção de cordas e
redes, entrançamento de cestos, fiação e fabricação de tecidos mediante teares. A evidência
arqueológica provem de 36 impressões de têxteis encontradas em fragmentos de argila,
queimados ou não, provenientes de Dolni Vestonice e Pavlov, produtos da cultura
Pavloviana, com cerca de 29.000-24.000 anos de idade. A fabricação de cordas tinha sido já
reportada em sítios mais jovens como Lascaux, França; Kosoutsy, Moldava; Mezhirich,
Ucrânia. O aparecimento de agulhas com olho durante o gravetiense acrescentou a costura à
essas tecnologias; embora talvez inicialmente estivessem associadas à fabricação de redes,
posteriormente podem ter sido empregadas em bordados. Alguns artefatos que podem ter
servido como peso para teares sugerem a existência destes no paleolítico.
Foram recuperadas mais de 200 exemplares de figuras femininas do paleolítico,
principalmente do período gravetiense, compreendido entre 27.000 e 20.000 anos atrás,
denominadas de “Vênus” na literatura. Cada tipo dessas figuras provavelmente tinha seu
próprio conteúdo simbólico, traduzido pela sua pose e valorização de determinadas partes
da anatomia feminina. ABRAMOVA e GVOZDOVER, em 1960 e 1989, respectivamente,
foram os primeiros a estudar os padrões da decoração dos corpos das Vênus, e a sugerir que
alguns deles poderiam indicar alguma espécie de vestimentas. Vários outros estudiosos,
entre eles ADOVASIO, SOFFER, BARBER, chegaram à conclusão que esses ornamentos
das figuras européias de Vênus clara e indubitavelmente representam têxteis ou entrançados
baseados em fibras vegetais.
A cabeça da Vênus de Willendorf (Fig.15) é considerada como coberta com uma
touca ou chapéu tecido em fibras. Os estudiosos eliminam a hipótese de que possa ser um
elaborado tipo de penteado, baseados na forma com que o cabelo humano cresce. Também
é possível que seja alguma modelo de rede para os cabelos. Esse tipo de cobertura da
cabeça foi identificado em corpos femininos recuperados nas turfeiras dinamarquesas.
A Vênus de Kostienski mostra indícios de um bandeaux, claramente tecido,
sustentado por tiras. Cintos, algumas vezes sustentando saias de cordas, são vestidos na
cinturas ou nos quadris. A saia da Vênus de Lespugue consiste de 11 cordas ligadas a uma
corda base que serve como cinto, e observações do artefato confirmam que foi
confeccionada de fibras vegetais. BARBER (1992) acredita que essas saias de corda são
símbolos da fertilidade feminina.

Fig. 15. A partir da esquerda: Vênus de Willendorf; Vênus de Lespuge; Vênus de


Kostienski, frente e costas; Vênus (Dame) de Brassempouy.

Provavelmente o uso de vestimentas tecidas de fibras vegetais se alternava com o


uso de peles, atendendo assim a parâmetros sociais ou sazonais.
Como é sabido, a tecnologia da tecelagem de tecidos, das redes, de artefatos
entrançados, implica em conhecimentos geométricos elaborados, necessários para a
construção dos padrões geométricos que aparecem nestes produtos.

4.4 Entrançamento de fibras vegetais

Fig. 16 A partir da esquerda: “brasão”, Lascaux; entrançamento de um


Na caverna de Lascaux, França, encontramos, entre as pinturas murais ali existentes,
figuras retangulares divididas como um tabuleiro de xadrez, um tanto irregular, sendo que
quadrados alternados são pintados com cores diferentes (Fig.16). São conhecidas como
“brasões”. Provavelmente foram inspiradas na arte de entraçar. Como em poucos minutos o
entrançamento de tiras ou fitas vegetais pode produzir, por exemplo, um cesto simples,
prático, para o transporte de alimentos; essa arte, graças à sua utilidade, possivelmente
apareceu muito cedo na história da humanidade. A cestaria era conhecida no paleolítico,
onde provavelmente antecedeu a tecelagem, que pode ter evoluído dela.
GUERDES (1992) nos ensina como entretecer um padrão hexagonal simples. A
partir de uma fita que incide com um ângulo de 60o em um rebordo, se atam outras fitas, às
quais se entrelaçam fitas horizontais, formando o desenho indicado na Figura 16. O padrão
hexagonal pode ser observado na natureza, por exemplo, nas colméias de abelhas.
É interessante notar que se atarmos uma tira a um rebordo duas vezes mais largo,
com um ângulo de incidência de 60o, obtém-se um padrão semelhante ao do ocre de
Blombos (ver Fig. 6), onde parece figurar um padrão hexagonal. Se o desenho desse ocre
foi inspirado na arte de entrançar, ou em algum padrão geométrico da natureza, é
impossível decidir; sob a perspectiva dos milênios transcorridos, pode-se apenas
conjecturar.

4.5 Cerâmica

Os mais antigos vestígios da tecnologia da cerâmica são as figurinhas encontradas


em Dolni Vestonice, com 26.000 anos de idade, cerca de 14.000 anos mais velhas do que os
mais antigos vasos cerâmicos. A fabricação de vasos utilitários de cerâmica tem 12.500
anos de idade no Japão, 8.400 no sudoeste da Ásia e 12.000 anos no norte da China.
Embora considerando que seis exemplares de terra ou argila modelados a mão e
possivelmente endurecidos pelo fogo sejam conhecidos de sítios do paleolítico superior,
provenientes de Mas D’Azil e La Bouiche, nos Pirineus, França; em Kostienski, na antiga
U.R.S.S.; em Maina, na bacia do Yenisei, na Sibéria; em Zazaragi, no Japão; contudo, nos
sítios Morávios de Dolni Vestonice, Pavlov, Predmosti e Petrkovice na Tchecoslováquia
foram encontrados mais de 10.000 fragmentos de cerâmica, de longe o maior inventário
dessa tecnologia já descoberto.
Em Dolni Vestonice foram descobertos os restos de dois fornos empregados para
queimar cerâmica, os mais antigos já encontrados. A cerâmica desse sítio é particularmente
durável, o que levanta a possibilidade de que essa tecnologia fosse mais difundida do que
demonstra o registro arqueológico, pois peças de outras áreas podem não ter se preservado
devido a problemas de durabilidade em objetos queimados a baixas temperaturas, com uma
composição vítrea instável.

Fig. 17 Painel pintado. Fig. 18 Fachada de templo. Fig. 19 Prato policrômico.


Çatal Huyuk. Uruk. Tel Halaf.

A cerâmica pintada surgiu no Neolítico, principalmente no Oriente Médio, em sítios


como Çatal Huyuk, Jarmo, Hassuna, Samarra, Tel Halaf, e também mais tarde na cultura
Yang Shao, na China, entre outros lugares. Desde os seus príncipios encontramos motivos
geométricos, alguns bastante elaborados, como no prato policrômico proveniente de Tel
Halaf mostrado na Fig. 19, que data de 4.500-4.000 a.C., que indica um domínio sofisticado
da geometria.

4.6 Armadilhas, habitações, painéis e mosaicos

Fig.20 Esquerda: desenhos geométricos: El Castillo, Espanha; centro e direita: desenhos


de Font de Gaume, França.
Diversos motivos geométricos da paleoarte vinham sendo considerados como
representativos de armadilhas, escudos, redes, ou mesmo habitações (Fig. 20). Ou mesmo
admitia-se um significado ritual para eles, como armadilhas ou cabanas para os espíritos.
A partir da década de 1960, contudo, uma corrente encabeçada por André Leroi-
Gourhan e Annete Leming-Emperaire propôs uma nova interpretação. A freqüência e a
distribuição espacial das figuras de cavalos e bisões na arte parietal fez surgir a idéia de que
esses animais possuíam significado simbólico. Esses pesquisadores, independentemente um
do outro, chegaram à conclusão que eles simbolizavam a divisão das sociedade paleolítica
em elementos masculinos e femininos. A paleoarte refletiria, portanto, essa divisão. A
distribuição topográfica dos animais nas paredes das cavernas, segundo essa corrente,
representava a estrutura da sociedade dos caçadores.

Fig. 21 Símbolos masculinos Símbolos femininos

Os símbolos geométricos também foram divididos em masculinos e femininos,


segundo a divisão proposta para a sociedade paleolítica (Fig. 21).
Essa concepção influenciou profundamente os trabalhos posteriores sobre o tema,
até o surgimento de novos modelos, como o da associação de estados alterados
(xamanismo) com fosfenos, e o modelo neurofisiológico, já descritos.
Com o advento das primeiras vilas e cidades, no neolítico, como Jericó (c. 8000
a.C.) e Çatal Huyuk (c.7000 a.C.), as habitações começaram a ter suas paredes decoradas.
Surgem, então, os primeiros painéis murais pintados, muitas vezes com motivos
geométricos. Na Fig. 17 vemos um exemplo, proveniente de Çatal Huyuk, que mostra uma
erupção vulcânica ameaçando uma cidade.
Na seqüência apareceram os mosaicos, muitas vezes compostos de materiais
diversos, como no apresentado na Fig. 18, uma fachada de um templo de Uruk, cidade que
floresceu no alvorecer da história, em torno de 3200 a.C., onde encontramos um mosaico de
motivos geométricos, feito com cones de argila queimada em forma de “pregos”.
O emprego de motivos geométricos na decoração de construções se generalizou a
partir daí, se transmitindo para as civilizações históricas posteriores.
Finalizando nossa revisão coincida sobre a pré-história da geometria, gostaríamos
de frisar o que segue. Os achados de Blombos, notadamente o ocre estudado, parecem
representar as mais antigas evidências de atividades matemáticas descobertas até a presente
data. Evidentemente, também denotam a mais remota indicação de pensamento abstrato,
simbólico, por parte de um hominídeo.
Se considerarmos isso como pistas de um “comportamento moderno”, por parte da
espécie humana, cumpre notar que foram descobertas na África, sinalizando que esse
“comportamento” pode ter aí surgido antes da “explosão criativa” acreditada ter acontecido
na Europa, até o momento dada como origem do mesmo. Igualmente assinalamos que,
considerando que essas mais antigas pistas de pensamento simbólico por parte do ser
humano podem ser classificadas como matemática, isso nos autoriza a afirmar que a
matemática está profundamente incrustada nas origens do pensamento abstrato da nossa
espécie.
O estágio atual do conhecimento apenas nos permite afirmar que a origem da
cognição, do pensamento simbólico, abstrato, que parece estar de certa forma ligada à
matemática, bem como muitos outros aspectos do comportamento moderno, é parte de um
mosaico de evoluções, sendo produto, com efeito, de uma convergência entre muitas
trajetórias evolucionárias. O próprio cérebro humano evoluiu diferentemente, a taxas
variadas, como o comprova a diversidade física dos diversos hominídeos presentes na faixa
temporal em pauta. Vários comportamentos (gregarismo, xamanismo, etc.), incluindo
tecnologias diversas (ornamentação corporal, tecelagem, trançados, cerâmica, armadilhas,
construções, etc.), simbolismo e linguagem, também seguiram por vias distintas ao longo
de trajetórias particulares. Essas trajetórias foram submetidas no tempo e no espaço a
pressões seletivas, podendo ter convergido em áreas diferentes de formas relativamente
distintas. Em alguns poucos casos podem ter ocorrido fenômenos isolados, de iniciativas
adiante de seu tempo, que, porém, não tiveram continuidade.
O mesmo pode-se afirmar do surgimento da geometria. Fatores evolutivos
anatômicos, especialmente do córtex visual, devem, como sublinhamos, ser considerados.
Esses fatores precisam ser associados às diversas motivações que o pensamento geométrico
do homo experimentou ao longo desse tempo. Provavelmente não houve uma motivação
principal diretora da evolução do pensamento geométrico, mas sim uma composição de
motivações, cada qual com uma intensidade distinta, atuando segundo trajetórias diversas,
em momentos diferentes.

AGRADECIMENTO

Agradecemos sinceramente ao ilustre Prof. Dr. Ubiratan D’Ambrosio, por nos ter
chamado a atenção para os achados da Caverna Blombos.

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