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Poder, instituições e elites

7 ensaios de comparação e história


Flavio M. Heinz
(Organizador)

Poder, instituições e elites


7 ensaios de comparação e história

OI OS
EDITORA

2012
© Dos autores – 2012
flavio.heinz@pucrs.br

Editoração: Oikos
Revisão: Luís M. Sander
Capa: Flávio Wild
Arte-final: Jair de Oliveira Carlos
Impressão: Rotermund S. A.

Conselho Editorial:
Antonio Sidekum (Ed. Nova Harmonia)
Arthur Blasio Rambo (UNISINOS)
Avelino da Rosa Oliveira (UFPEL)
Danilo Streck (UNISINOS)
Elcio Cecchetti (UFSC e UNOCHAPECÓ)
Ivoni R. Reimer (PUC Goiás)
Luis H. Dreher (UFJF)
Marluza Harres (UNISINOS)
Martin N. Dreher (IHSL – MHVSL)
Oneide Bobsin (Faculdades EST)
Raul Fornet-Betancourt (Uni-Bremen e Uni-Aachen/Alemanha)
Rosileny A. dos Santos Schwantes (UNINOVE)

Esta publicação apresenta resultados parciais de pesquisas desenvolvidas no âmbito


do projeto PROCAD-NF/CAPES “Composição e recomposição de grupos dirigentes
no Nordeste e no Sul do Brasil: uma abordagem comparativa e interdisciplinar”, reu-
nindo equipes do PPGH-PUCRS, PPGS-UFS e PPGCP-UFPR.

Editora Oikos Ltda.


Rua Paraná, 240 – B. Scharlau – Cx. P. 1081
93121-970 São Leopoldo/RS
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P742 Poder, instituições e elites: 7 ensaios de comparação e história /


Organizador Flavio M. Heinz. – São Leopoldo: Oikos, 2012.
186 p.; 16 x 23cm.
ISBN 978-85-7843-288-1
1. Elite – História. 2. Poder – Instituições. 3. História. I. Heinz,
Flavio M.
CDU 316.344.42
Catalogação na Publicação:
Bibliotecária Eliete Mari Doncato Brasil – CRB 10/1184
Sumário

Sobre os autores ................................................................................... 7


Apresentação ....................................................................................... 9
Comparação e história na ciência social .............................................. 13
Renato Perissinotto
Igreja e construção nacional no Brasil e na Argentina .......................... 33
Ernesto Seidl
Driblando escalas: nota sobre a comparação histórica dos regimes
batllista (Uruguai, 1903-1933) e castilhista (Brasil: RS, 1891-1930) ......... 61
Flavio M. Heinz
Encontros e desencontros do cooperativismo na Argentina
(Província de Buenos Aires) e no Brasil (Rio Grande do Sul) ............... 91
Alba Cristina Couto dos Santos
Marluza Marques Harres
“Um império de cruzes, togas e espadas”. Notas comparativas
sobre as elites políticas do Rio Grande do Sul, do Ceará e da
Bahia no período monárquico ........................................................... 115
Jonas Vargas
Os founding fathers do Parquet: um ensaio comparativo entre as elites
do Ministério Público de São Paulo e do Rio Grande do Sul
durante o Estado Novo ..................................................................... 145
Marcelo Vianna
Ampliando os horizontes das pesquisas em história da saúde:
a comparação em estudos sobre a atuação da Fundação Rockefeller .. 169
Ana Paula Korndörfer
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Poder, instituições e elites

Sobre os autores

Alba Cristina Couto dos Santos é mestranda em História das Sociedades


Ibéricas e Americanas (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul). Licenciada em História (Universidade do Vale do Rio dos Si-
nos) e estudante de Ciências Sociais na mesma universidade, desenvolve
trabalhos relacionados com associativismo, imaginário religioso e me-
mória coletiva.

Ana Paula Korndörfer é doutora em História pela Pontifícia Universidade


Católica do Rio Grande do Sul, PUCRS. Integrante do Laboratório de
História Comparada do Cone Sul, é coautora de Instituições de Saúde de
Porto Alegre – Inventário (Ideograf, 2008), e possui textos publicados, en-
tre outros, em História da Medicina: instituições e práticas de saúde no Rio
Grande do Sul (EDIPUCRS, 2009).

Ernesto Seidl é doutor em Ciência Política pela Universidade Federal do


Rio Grande do Sul. Professor dos Programas de Pós-Graduação em
Sociologia e Antropologia da Universidade Federal de Sergipe,
onde também coordena o Laboratório de Estudos do Poder e da Políti-
ca. É autor de diversos artigos sobre elites e grupos dirigentes.

Flavio M. Heinz é doutor em História e Sociologia do Mundo Contempo-


râneo pela Universidade Paris-Ouest, Nanterre. Historiador e professor
do Programa de Pós-Graduação em História da PUCRS, onde coorde-
na o Laboratório de História Comparada do Cone Sul. É autor de Les
fazendeiros à l’heure syndicale: représentation professionnelle, intérêts agraires
et politique au Brésil, 1945-1967 (Septentrion/ANRT, 1998), e organiza-
dor, entre outros, de Por outra história das elites (Editora FGV, 2006) e
Experiências nacionais, temas transversais: subsídios para uma história compa-
rada da América Latina (Editora Oikos, 2009) e História social de Elites
(Oikos, 2011).

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Sobre os autores

Jonas M. Vargas é mestre em História pela UFRGS e atualmente é aluno


de Doutorado do Programa de Pós-Graduação em História Social da
UFRJ. É autor de Entre a paróquia e a Corte: os mediadores e as estratégias
familiares da elite política do Rio Grande do Sul, 1850-1889 (UFSM, 2010).

Marcelo Vianna é mestre em História pela Pontifícia Universidade Católi-


ca do Rio Grande do Sul e doutorando em História pela mesma univer-
sidade. Historiador formado pela UFRGS, atuou no Arquivo Histórico
do RS e Projeto Memória do Ministério Público do RS. Atualmente
participa do Laboratório de História Comparada do Cone Sul/PUCRS.
É um dos coautores de Comunidade Negra de Morro Alto: Historicidade,
Identidade e Territorialidade (Ed. UFRGS, 2004) e autor de Os homens do
Parquet: Trajetórias e Processo de Institucionalização do Ministério Público do
Estado do RS (dissertação PUCRS, 2011).

Marluza Marques Harres é doutora em História pela Universidade Fede-


ral do Rio Grande do Sul com a tese Conflito e Conciliação no Processo de
Reforma Agrária do Banhado do Colégio, Camaquã, RS. Pesquisadora e
professora do Programa de Pós-Graduação em História da Universida-
de do Vale do Rio dos Sinos. Recentemente participou da organização
da obra Da Região à Nação: Relações de escala para uma história comparada
Brasil – Argentina (séculos XIX e XX) (Editora Oikos, 2011).

Renato Perissinotto é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp. Profes-


sor de Ciência Política na Universidade Federal do Paraná, atua no Pro-
grama de Pós-Graduação em Ciência Política e no Programa de Pós-
Graduação em Sociologia da UFPR. É coeditor da Revista de Sociolo-
gia e Política e um dos coordenadores do Núcleo de Pesquisa em Socio-
logia Política Brasileira da UFPR. Publicou, entre outros, Classes domi-
nantes e hegemonia na República Velha (Unicamp, 1994) e Marxismo como
ciência social (Ed. UFPR, 2011).

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Poder, instituições e elites

Apresentação

Na apresentação de uma obra coletiva precedente, eu e Ana Paula


Korndörfer chamávamos a atenção para o fato de que, embora gozasse de
grande prestígio, a história comparada não possuía, de fato, muitos prati-
cantes*. Como uma das explicações para isso indicávamos a “ausência de
um rol claro de procedimentos a serem seguidos”. Com efeito, embora a
muitos a referência ao método comparativo fosse frequente, para um nú-
mero expressivo de profissionais o conjunto de seus procedimentos, sua
aplicação, permanecia uma incógnita. “Mais grave”, afirmávamos, “quan-
do alguém se lança a buscá-lo, via de regra não encontra respostas objetivas
quanto às suas etapas e consecução”.
Na ocasião, alertávamos para a inexistência de um rol de etapas claras
a serem seguidas por um comparativista debutante e salientávamos que o
cânone da disciplina, a obra de Marc Bloch, e especialmente, dois artigos,
“Por uma história comparada das sociedades europeias” e “Comparação”,
respectivamente, de 1928 e 1930, ofereciam “linhas gerais para pensar a com-
paração, não um manual de procedimentos”. Assim, a enorme repercussão
dos dois artigos “como porta de entrada da história comparada [...] pode não
ter ajudado muito, uma vez que a perspectiva de análise, logo o modus operan-
di do historiador, poderia ser melhor percebida na leitura do conjunto de sua
obra do que nos textos de divulgação sobre as virtudes do método”.
Perceber o modus operandi no trabalho do historiador é aqui o nosso
motto. Este livro reúne textos de historiadores e cientistas políticos interes-
sados nas possibilidades de utilização do método comparativo – ou tão
somente de uma perspectiva ou viés comparativo – na análise histórica e
social. Com certa ousadia e liberdade metodológica, estes autores “ataca-

*HEINZ, F. M. & KORNDÖRFER, Ana Paula. “Comparações e comparatistas”. In: HEINZ,


F. M. (org.). Experiências nacionais, temas transversais – subsídios para uma História Comparada da
América Latina. São Leopoldo: Oikos, 2009.

9
Apresentação

ram” os mais variados objetos de pesquisa, sempre colocando no centro de


suas análises a dimensão comparativa, fosse esta uma possibilidade eviden-
te oferecida por determinado recorte temático ou tipo das fontes disponí-
veis, fosse uma solução menos óbvia, só possível pelo acionamento de uma
operação metodológica complexa. Igreja, governo, parlamento, justiça e
cooperativismo são apenas alguns dos cenários aqui investigados através
da lente comparativista. Neles circulam grupos de indivíduos com saberes
e poderes específicos, especialistas, intelectuais, elites políticas ou profissio-
nais, a própria “carne” dos processos sociais, aqui cotejados com homólo-
gos em outras realidades regionais ou nacionais. O resultado desse proces-
so? Confirmam-se especificidades, é certo, mas se encontram também se-
melhanças insuspeitas e recorrências surpreendentes. Enfim, é isso o que
move os autores e que orienta sua agenda coletiva de pesquisas: o desvela-
mento do social através da realização de uma boa história social e compa-
rada.
Os dois primeiros textos aqui reunidos, “Comparação e História na
Ciência Social”, de Renato Perissinotto, e “Igreja e construção nacional no
Brasil e na Argentina”, de Ernesto Seidl, tomam o tema da comparação
desde a perspectiva da sociologia ou, mais especificamente, da sociologia
histórica. O primeiro desenvolve uma densa e instigante reflexão, no plano
teórico e metodológico, sobre os sentidos do ato de comparar para os cien-
tistas sociais e as razões para o uso da história nessa empreitada. O segun-
do texto explora conexões entre Estado, Igreja e variável religiosa na con-
formação de identidades e na construção do Estado nacional.
No próximo texto, “Driblando escalas? Nota sobre a comparação
histórica dos regimes batllista (Uruguai, 1903-1933) e castilhista (RS: 1891-
1930)”, o organizador deste volume propõe um ensaio mais ou menos livre
sobre as possibilidades da comparação ao analisar, a partir de uma arrisca-
da operação de rompimento de escalas, elites políticas e práticas de gover-
no. Separados pelas dimensões regional/nacional/internacional e pelo sis-
tema de recrutamento político, e informados por correntes ideológicas di-
versas, dirigentes e administrações parecem convergir no desenho de sua
atuação política e no perfil de seu relacionamento com elites sociais, gru-
pos médios e oposição.

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Poder, instituições e elites

Os quatro textos seguintes propõem comparações distintas e ofere-


cem inúmeros exemplos interessantes e tantos outros insights de pesquisa
no âmbito da comparação. Em “Encontros e desencontros do cooperativis-
mo na Argentina (Província de Buenos Aires) e no Brasil (Rio Grande do
Sul): exercício comparativo”, as autoras Marluza Marques Harres e Alba
Cristina Couto dos Santos dedicam-se a perscrutar um determinado modelo
de organização econômica, social e profissional, o cooperativismo, a partir
de sua inserção em dois subespaços regionais de dois países diferentes. Neste
exercício, investigam diferentes variáveis que contribuem para a moldagem
das práticas cooperativistas, como a imigração e a legislação. Em “Um impé-
rio de cruzes, togas e espadas. Notas comparativas sobre as elites políticas do
Rio Grande do Sul, do Ceará e da Bahia no período monárquico”, Jonas
Moreira Vargas propõe um interessante estudo sobre a prevalência de deter-
minados tipos de recursos familiares associados ao sucesso político em três
elites regionais no Oitocentos brasileiro. Assim, o autor nos informa que ter
vínculos familiares com o universo da caserna foi um elemento importante
para carreiras políticas no sul, possuir “tradição” familiar na profissão jurídi-
ca uma variável muito positiva em carreiras na Bahia e, finalmente, ligações
com o clero constituíam um fator determinante do sucesso político na pro-
víncia do Ceará. Marcelo Vianna, em “Os Foundig Fathers do Parquet: um
ensaio comparativo entre as elites do Ministério Público de São Paulo e do
Rio Grande do Sul durante o Estado Novo”, realiza um exitoso estudo de
comparação em história social de instituições. Combinando uma perspectiva
de micro-história social de elites e técnicas de prosopografia, o autor expõe
um perfil dos grupos dirigentes das instituições, indivíduos que concentra-
ram recursos políticos e profissionais nos Ministérios Públicos de dois esta-
dos. Por fim, fechando este volume, o texto “Ampliando os horizontes das
pesquisas em história da saúde: a comparação em estudos sobre a atuação da
Fundação Rockefeller”, de Ana Paulo Korndörfer, mapeia o uso do recurso
à comparação e possibilidades de pesquisas comparativas na produção aca-
dêmica sobre a atuação da Fundação Rockefeller na América Latina, ofere-
cendo um interessante painel de análise no qual se confundem a atuação da
Fundação, a história das políticas públicas de saúde na América Latina e a
conformação mais ou menos recente da agenda de pesquisa na área.

Flavio M. Heinz

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Apresentação

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Poder, instituições e elites

Comparação e história na ciência social

Renato Perissinotto1

As a minimal claim it can be said that what history is,


or should be, cannot be analysed in separation from
what the social sciences are, or should be. However, I
should want to go much further than this. There
simply are no logical or even methodological
distinctions between the social sciences and history –
appropriately conceived
(GIDDENS, 1994, p. 230).

Apresentação
Este capítulo pretende responder duas questões. Primeira, como po-
demos definir exatamente o procedimento comparativo? Segunda, uma vez
definido o que entendemos por comparação, qual seria a melhor maneira
de operacionalizá-la (i.e., de aumentar o seu rendimento analítico)? Na pri-
meira seção, definimos o que entendemos por comparação e discutimos as
possibilidades e limites de sua aplicação nas ciências sociais; em seguida,
procuramos apontar os possíveis ganhos teóricas produzidos pela análise
comparativa de poucos casos baseada em uma perspectiva histórica (o tipo
de trabalho executado pelos chamados “sociólogos históricos” ou “compa-
rativistas históricos”).
Quase nada do que será dito neste artigo pode reivindicar o status de
originalidade teórica ou metodológica. Há, no entanto, uma intenção sub-

1
Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFPR. O autor gostaria de
agradecer a Paolo Ricci e Marcio Oliveira pela leitura e pelos comentários ao texto e aos mem-
bros do Núcleo de Pesquisa em Sociologia Política Brasileira da UFPR, que durante todo o ano
de 2009 participaram do debate sobre metodologia histórica comparativa. Este texto é, em
parte, o resultado das pesquisas feitas para o estágio pós-doutoral no Latin American Centre
(Saint Antony’s College, Oxford University), financiado pelo CNPq.

13
PERISSINOTTO, R. • Comparação e história na ciência social

jacente ao texto que gostaríamos de enfatizar: a defesa de Max Weber como


um cânone das ciências sociais. Esse tipo de afirmação pode parecer supér-
flua, já que Weber é amplamente reconhecido por todos como um dos
fundadores do nosso campo científico. O reconhecimento de Weber como
“pai fundador”, porém, não implica tratá-lo exatamente como um cânone,
isto é, como um intelectual que definiu procedimentos científicos aos quais
temos que recorrer ainda hoje para o exercício de nossas atividades. No
entanto, grande parte do que é dito atualmente pelos teóricos e metodólo-
gos da análise histórica comparativa não faz muito mais do que reiterar,
sob nova linguagem, os procedimentos científicos aplicados e sistematiza-
dos por Weber. Essa insistência numa nova linguagem, porém, parece-nos
prejudicial ao avanço científico na medida em que obriga os cientistas sociais
a fazer um esforço constante de “atualização” em grande parte dispensá-
vel, pois pouco traz de novo do ponto de vista epistemológico. Ao insistir
na necessidade de reconhecer Weber como um cânone, e não apenas como
um pai fundador, pretendemos apenas dizer que devemos valorizar os gan-
hos que esse autor produziu e adotar uma conduta cumulativa, típica de
qualquer ciência, que consiste em aproveitar o que já foi feito (e certamente
ultrapassá-lo, se for o caso), em vez de “inovar” constantemente.
Que fique bem claro: não negamos os enormes avanços técnicos por
que passou o nosso campo científico ao longo do século XX. Estou apenas
dizendo que muito do que hoje se apresenta como “novo” no âmbito da
análise histórica comparativa (a utilização do prefixo “neo” nunca foi tão
abundante) do ponto de vista epistemológico não produz avanços significa-
tivos em relação ao que Weber disse nos seus escritos metodológicos. Ao
contrário, portanto, do que defendem alguns atualmente, acreditamos que,
ao menos para os temas discutidos neste artigo, mais vale a um cientista
político estar a par do que foi dito por Weber no início do século XX do que
estar familiarizado com as “atualizações” da literatura contemporânea2.

2
Um exemplo paradigmático: todas as considerações teóricas acerca do Estado feitas por um
dos mais importantes nomes do “neoinstitucionalismo histórico”, Theda Skocpol, não avan-
çam um passo em relação às formulações weberianas. Cf. Skocpol, 1996, p. 7-9. Como contra-
ponto à ânsia dos cientistas políticos, notadamente americanos, pela “inovação”, ver a tranqui-
lidade com que o historiador contemporâneo Aldo Schiavone lança mão das proposições de
Marx, Weber e Polanyi para encaminhar as suas questões de pesquisa. Cf. Schiavone, 2005,
especialmente capítulos II, IV e VIII. Kohli e Shue, referindo-se à história intelectual da socio-

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Poder, instituições e elites

I. Comparação como operação mental


Giovanni Sartori (1991, p. 243) já observou que existem duas defini-
ções diferentes do procedimento comparativo. Há os que, como Lijphart (1971,
p. 682-684), entendem a comparação como uma técnica de pesquisa específi-
ca utilizada especialmente no estudo comparativo de poucos casos, diferente,
portanto, da técnica estatística; há, por outro lado, os que, como Neil Smel-
ser (1976, cap. I), consideram a comparação uma “operação mental” que
pode ser realizada lançando-se mão de técnicas de pesquisa diversas (experi-
mental, estatística, histórica) (RIHOUX e RAGIN, 2009, p. xviii; MAHO-
NEY e RUESCHEMEYER, 2008, p. 11-15; MAHONEY, 2008, p. 337) 3.
Neste capítulo assumimos a posição de Smelser (1976, p. 5). Enten-
demos o método comparativo como uma “operação mental” cujo objetivo
primeiro é controlar “variáveis”4. Quando comparamos diversos casos, bus-
camos essencialmente identificar condições constantes e variantes a fim de
estabelecer imputações causais confiáveis. As técnicas específicas de con-
trole de variáveis (experimental, estatística, histórica) diferem enormemen-
te no tipo, na efetividade e na utilidade científica, mas todas elas podem ser
entendidas como esforços para explicar fenômenos sociais estabelecendo-
se controle sobre as suas condições de variação. Nesse sentido, tanto a téc-
nica experimental como a estatística e a histórica lançam mão das mesmas
operações mentais quando são utilizadas a serviço da comparação. Dife-

logia política no pós-guerra, observam: “A diferenciação exagerada da produção intelectual


pode produzir ganhos profissionais de curto prazo, mas inevitavelmente põe a perder nossos
melhores propósitos. Gera modismos e falsos começos que frequentemente afligem nossos es-
tudantes, com grandes custos intelectuais para todos nós” (KOHLI e SHUE, 1996, p. 322).
Louve-se a honestidade intelectual dos autores, cujo comentário procura qualificar a sua pró-
pria contribuição – a abordagem state-in-society –, declaradamente tributária da tradição weberia-
na, como apenas mais equilibrada que as visões societalistas e estatistas da política.
3
Para evitar confusão terminológica, definimos “método comparativo” como um conjunto de
operações mentais que confere maior confiabilidade às proposições causais. A nossa posição,
portanto, é a mesma de Sartori, para quem a palavra “método” se refere à estrutura lógica da
investigação científica e não às diversas técnicas de pesquisa à disposição dos cientistas sociais.
A lógica científica da comparação é uma só e pode ser operacionalizada tanto por técnicas
estatísticas como por análises históricas, dependendo do objeto de estudo e do número de casos
analisados. Cf. Sartori, 1970, p. 1033-36.
4
Segundo Sartori, o termo “variável” só poderia ser utilizado para coisas mensuráveis. Neste
texto, tomo maior liberdade e o utilizo para me referir às condições sociais e políticas que
devem ser controladas durante o procedimento comparativo. Cf. Sartori, 1970, p. 1045.

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PERISSINOTTO, R. • Comparação e história na ciência social

rem entre si, porém, quanto à questão de pesquisa, à natureza do objeto


estudado, ao número de casos analisados, ao tipo de explicação fornecido e
às técnicas empregadas5.
Assim entendidos, os princípios lógicos do método comparativo fo-
ram sistematizados por John Stuart Mill no livro III do seu System of Logic,
publicado em 1886. Nesse livro, Mill identificou cinco procedimentos com-
parativos, cada um com limites e potencialidades próprios: o método da
semelhança (agreement method), o método da diferença (method of differen-
ce), o método indireto da diferença (indirect method of difference), o método
dos resíduos (methods of residues) e o método das variações concomitantes
(method of concomitant variations)6. Neste artigo, essencialmente voltado para
a análise histórica comparativa, interessam-nos especialmente os métodos
da semelhança e o método indireto da diferença (uma importante variação
do método da diferença), amplamente utilizados por comparativistas histó-
ricos.
O método da semelhança é aquele em que se comparam casos muito
diferentes entre si, mas que se assemelham quanto à presença do fenômeno
a ser explicado e à presença, em todos os casos, de uma única circunstância
invariante. Supõe-se que essa circunstância invariante seja a causa do fenô-
meno em questão.
No método da diferença, o investigador compara casos muito simila-
res entre si, mas que se diferenciam quanto à presença (casos positivos) e
ausência (casos negativos) do fenômeno a ser explicado. Ao analista cabe
investigar se há uma circunstância que, ao mesmo tempo, esteja presente
em todos os casos positivos e ausente de todos os casos negativos. O méto-

5
Para uma análise exaustiva das diferenças entre as diversas técnicas de controle a serviço do
método comparativo, ver Smelser, 1976, cap. 6, “Classificação, descrição e mensuração”. Logo
no início de seu livro, Smelser (1976, p. 5) observa que os “princípios metodológicos que orien-
tam a investigação comparativa mostrar-se-ão poucos. Mais particularmente, será possível dis-
cernir uma surpreendente continuidade entre todos os estudos comparativos aqui resenhados,
clássicos e modernos. Essa continuidade reside no fato fundamental de que todos os teóricos e
investigadores empíricos que examinaremos estavam tentando controlar e manipular várias
condições causais na vida social e, assim, estabelecer um argumento em favor de uma ou outra
condição selecionada”. Dito de outra forma, os “princípios metodológicos” são poucos porque
a estrutura lógica da comparação não varia; o que varia são as técnicas de pesquisa.
6
A descrição detalhada desses métodos e dos seus respectivos cânones encontra-se em Stuart
Mill, 1886, p. 254-259.

16
Poder, instituições e elites

do da diferença seria o procedimento típico do método experimental. Um


experimento consiste exatamente na produção arbitrária pelo investigador
de situações diferentes que lhe permitam comparar o impacto produzido
por uma variável, presente ou ausente, de acordo com a manipulação con-
duzida por ele. Como esse método é muito exigente quanto à capacidade
de controle sobre as variáveis, Stuart Mill definiu uma variante menos rígi-
da, chamada por ele de “método indireto da diferença”.
O método indireto da diferença faz, na verdade, um uso complemen-
tar dos dois métodos anteriores. Como primeiro passo, o investigador utili-
za uma série de exemplos que contam com o fenômeno que ele pretende
explicar e isola a variável recorrente em todos eles. Como segundo passo,
utiliza outros casos que não contam com o fenômeno em questão a fim de
avaliar se a variável recorrente encontrada anteriormente está ausente dos
casos negativos. No entanto, em vez de um experimento artificial propria-
mente dito, o pesquisador analisa os casos positivos e negativos tal como
eles aparecem na natureza (ou na história, diríamos nós). O método é “in-
direto” porque a diferença não é produzida diretamente pelo pesquisador,
por meio de experimentos artificiais, mas por meio da comparação de ca-
sos negativos e positivos cuja existência independe dele (258-259). Outro
nome dado a esse método é “Método Conjunto da Semelhança e da Dife-
rença” (The Joint Method of Agreement and Difference) (259)7.
O uso desses métodos permite ao investigador descartar causas po-
tencialmente necessárias e suficientes8. Como nos lembra Mahoney, no caso
do método da semelhança, como o resultado a ser explicado está em todos
os casos escolhidos para estudo, é logicamente impossível que uma causa
hipotética não partilhada por todos seja individualmente necessária para ex-
plicar o fenômeno. No que diz respeito ao método da diferença, o fenôme-
no analisado está presente em alguns casos e ausente de outros. Portanto,
se uma causa hipotética está presente em todos os casos, positivos e negativos,

7
O leitor poderá encontrar uma sistematização gráfica desses métodos em Skocpol e Somers,
1997, p. 80.
8
Causa necessária é aquela cuja presença é imprescindível, mas não suficiente, para a produção
do fenômeno; causa suficiente é aquela cuja presença basta, mas não é imprescindível, para a
produção do fenômeno; causa necessária e suficiente é aquela cuja presença é ao mesmo tempo
imprescindível e bastante para a produção do fenômeno.

17
PERISSINOTTO, R. • Comparação e história na ciência social

ela não pode ser considerada suficiente, visto que nem todos os casos que
contam com a presença da causa hipotética contam também com a presen-
ça do fenômeno.
A busca (e a eliminação) de causas necessárias e/ou suficientes é,
portanto, uma das características essenciais desses métodos, que, exatamente
por essa razão, tendem a ser rejeitados por alguns como inaplicáveis ao
estudo dos fenômenos sociais. São três as críticas dirigidas à sua aplicação
nas ciências sociais.

(i) A impossibilidade de realizar o controle exigido por esses métodos


Émile Durkheim rejeitou o uso desses métodos nas ciências sociais,
argumentando que sua aplicação seria impossível em sociologia, pois ne-
nhum inventário plausível dos fatos poderia permitir a um investigador es-
tar certo “de que duas sociedades concordam ou diferem em relação a to-
dos os aspectos, exceto um” (1978, p. 113). Acreditamos poder responder a
essa crítica de duas maneiras.
Primeiramente, é claro que “comparar sociedades”, exigindo-se que
o pesquisador tenha pleno controle sobre as variáveis em questão a ponto
de garantir que tais sociedades se assemelhem ou se diferenciem em todos
os aspectos, exceto um, tornaria tais métodos impraticáveis. Mas o procedi-
mento seria bem menos exigente se nos dedicássemos a comparar não “so-
ciedades”, como sugere Durkheim, mas fenômenos restritos. Nesse senti-
do, Skocpol e Somers insistem que a aplicabilidade da análise histórica com-
parativa com base nos métodos sistematizados por Mill só é viável se o
problema a ser pesquisado for muito bem delimitado (1997, p. 90).
Em segundo lugar, o próprio Durkheim fornece um importante argu-
mento em defesa da aplicação dos métodos de Mill (notadamente o méto-
do da diferença) ao estudo dos fenômenos sociais. A eficácia desses méto-
dos certamente aumentaria se comparássemos sociedades “de uma mesma
espécie e num mesmo estágio de desenvolvimento” (DURKHEIM, 1978,
p. 118 e 121-122). “Sociedades da mesma espécie” facilitam o procedimen-
to comparativo porque aumentam o número de condições comuns às socie-
dades comparadas (as “condições paramétricas”, segundo SMELSER, 1976,
p. 154) e, por conseguinte, diminuem a quantidade de diferenças que terão

18
Poder, instituições e elites

que ser levadas em consideração como possíveis causas pelo analista9. Com-
parar sociedades da mesma espécie nos permite ainda respeitar outra ca-
racterística fundamental do método comparativo. Como nos lembra Sarto-
ri, o procedimento comparativo não pode ser efetuado entre entidades ab-
solutamente idênticas (já que não faz sentido comparar uma coisa com ela
mesma) nem entre entidades absolutamente diferentes (o que impossibili-
taria qualquer tipo de controle). Toda comparação pressupõe certo grau de
semelhança e de diferença entre as coisas comparadas, evitando-se, assim,
comparar o incomparável. Uma boa maneira de fazê-lo, como vimos, é
comparar “sociedades da mesma espécie”, o que pressupõe, como reco-
menda Sartori, o uso de bons critérios de classificação a fim de colocarmos
juntos entidades que de fato partilham alguns atributos importantes (SAR-
TORI, 1970, p. 1035-36 e 1040 e 1991, p. 245-249).

(ii) A inadequação de escolher os casos pela “variável dependente”


Como vimos acima, ao utilizar o procedimento comparativo tal como
sistematizado por Mill, devemos escolher os casos em função da presença
ou ausência do fenômeno que se quer explicar (a “variável dependente”).
Haveria, segundo os críticos, dois problemas nesse procedimento. O pri-
meiro deles consiste na produção de uma amostra enviesada, escolhendo-
se somente os casos que contam com o fenômeno a ser estudado. Esse pri-
meiro problema, do qual o próprio Mill tinha consciência, pode ser evita-
do, como vimos, escolhendo-se também casos negativos para a análise.
O segundo problema reside em escolher casos em que a variável de-
pendente não varia. Desse modo, o analista não teria como medir o impac-
to de supostas variáveis causais sobre a variável dependente simplesmente
porque esta última não varia. Isso, contudo, não é um problema quando o
que se procura saber não é o impacto linear de uma variável sobre outra,

9
Alexis de Tocqueville (1977), Max Weber (1964), Otto Hintze (1975), Karl Polanyi (2000),
Barrington Moore Jr. (1983), Theda Skocpol (1984), Ellen Kay Trimberger (1978) e vários
outros autores produziram excelentes resultados aplicando esse procedimento comparativo aos
seus respectivos objetos de estudo. A importância da relativa similaridade entre as sociedades
como critério para facilitar e tornar mais seguro o procedimento comparativo é defendida também
por vários outros autores, clássicos e contemporâneos: Marc Bloch (1998, p. 123), Gerschenkron
(1976, p. 64), Przeworsky e Teune (1982, p. 26), Lijphart (1971, p. 687-89).

19
PERISSINOTTO, R. • Comparação e história na ciência social

mas a presença/ausência de condições necessárias e/ou suficientes para a


produção do fenômeno que se quer explicar. Nesses casos, selecionar a par-
tir da variável dependente é adequado. Apenas a título de exemplo, basta
pensar na análise weberiana da relação entre protestantismo e capitalismo
racional. Weber não se preocupa em saber o impacto quantitativo que a “va-
riável independente” produz sobre a “variável dependente”, mas sim se os
casos que contêm a “variável dependente” (capitalismo racional) contam tam-
bém com a presença da “variável independente” (ética protestante) e, ao
mesmo tempo, se os casos negativos evidenciam a ausência desta última10.

(iii) Os pressupostos determinísticos desses métodos não se aplicam aos fenômenos


sociais
Os métodos da semelhança e da diferença, como dissemos, estão pre-
ocupados em identificar causas necessárias e/ou suficientes, o que, segun-
do alguns, geraria dois problemas importantes.
Primeiramente, quanto às causas necessárias, os críticos dizem que
há potencialmente inúmeras causas desse tipo, a maior parte delas sem
importância ou triviais (por exemplo, a existência de seres humanos é ne-
cessária para uma revolução social). Da mesma forma, causas suficientes
podem ser óbvias ou tautológicas (por exemplo, a guerra é causa suficiente
de morte em larga escala). No entanto, Mahoney tem razão ao observar
que os cientistas sociais que usam os métodos sistematizados por Mill qua-
se nunca cometem esses erros, conseguindo diferenciar claramente causas
necessárias triviais das não triviais e causas suficientes tautológicas das não
tautológicas (MAHONEY, 2008, p. 348).
O segundo problema, esse bem mais sério, residiria no fato de esses
métodos utilizarem pressupostos determinísticos inválidos para entender
um mundo social governado por leis probabilísticas. Pressupostos determi-
nísticos podem levar a tomar como causas certas aquelas que são apenas
prováveis ou a descartar causas prováveis porque não aparecem como cer-
tas (BORGES, 2007, p. 3-4). Dito de outra forma, tais métodos podem equi-

10
As expressões “variáveis dependentes” e “variáveis independentes” encontram-se entre aspas
porque são inadequadas à perspectiva weberiana da multicausalidade.

20
Poder, instituições e elites

vocadamente eliminar do seu modelo fatores causais probabilísticos, já que


um modelo determinístico exclui qualquer causa que não esteja presente
em todos os casos. Assim, valendo-se do método da semelhança, um ana-
lista que, por exemplo, examinasse três casos de acidente de carro elimina-
ria a bebida alcoólica como causa se ela estivesse presente em apenas dois
casos. Da mesma forma, usando o método da diferença, o analista elimina-
ria a bebida como causa se ela estivesse presente tanto em casos com aci-
dente como em casos sem acidente (MAHONEY, 2008, p. 349).
É verdade que esse tipo de procedimento comparativo, que busca
causas necessárias e suficientes, não permite avaliar o “efeito líquido” do
impacto de uma variável sobre outra. No entanto, o método mostra corre-
tamente, para manter o exemplo dado por Mahoney, que beber não é nem
condição necessária nem condição suficiente para acidentes (uma vez que
nem todo acidente é causado por bebida e nem todo motorista que dirige
bêbado causa acidente). A crítica acima apenas apresenta o tipo de proble-
ma que pode surgir quando se pensa em termos de causação necessária e
suficiente sobre situações em que uma causação linear está operando. O
método ajuda a descobrir se dirigir bêbado em combinação com outras variá-
veis é uma causa suficiente (ou quase suficiente) para acidentes de carros
numa população específica de casos (MAHONEY, 2008, p. 349-350).
Alguns pesquisadores contemporâneos, no entanto, defendem que as
exigências colocadas por tais pressupostos podem e devem ser atenuadas
para que o uso de tais procedimentos produza resultados frutíferos nas ci-
ências sociais (por exemplo, HALL, 2008). Poderíamos dar inúmeros exem-
plos de investigadores que usam os métodos sistematizados por Mill e, ao
mesmo tempo, tomam todo o cuidado para evitar proposições determinís-
ticas. Basta lembrar, porém, o caso de Max Weber e o seu conceito de “cau-
sa adequada”. Weber defende explicitamente o uso do método da diferença
na pesquisa sociológica11, porém jamais formula suas proposições explica-

11
“Nos demais casos [em que o experimento e a quantificação não são possíveis], e como tarefa
importante da sociologia comparada, só resta a possibilidade de comparar o maior número
possível de fatos da vida histórica ou cotidiana que, semelhantes entre si, só se diferenciam em
um ponto decisivo: o ‘motivo’ ou a ‘ocasião’, que tratamos de investigar precisamente por sua
importância prática” (WEBER, 1984, p. 10).

21
PERISSINOTTO, R. • Comparação e história na ciência social

tivas em termos de causas necessárias e/ou suficientes. O seu objetivo é


sempre a identificação de “causas adequadas”, definindo-as da seguinte
forma: “Dizemos [...] que uma sucessão de fatos é ‘causalmente adequada’
na medida em que, segundo as regras da experiência, exista a seguinte pro-
babilidade: que sempre transcorra de igual maneira”. Ou por outra: “A ex-
plicação causal significa, pois, a seguinte afirmação: que, de acordo com
uma determinada regra da probabilidade [...], a um determinado processo
[...] observado segue outro processo determinado (ou aparece juntamente
com ele)” (WEBER, 1984, p. 11, itálico nosso)12. Como se sabe, a epistemo-
logia weberiana é marcada por uma compreensão complexa da causalida-
de nos fenômenos sociais. Para o sociólogo alemão, a multicausalidade e a
historicidade das ocorrências no mundo social impedem o estabelecimento
de relações causais unívocas e universais. Uma causa, por mais fundamen-
tal que seja, jamais opera sozinha e nunca exatamente da mesma forma em
contextos históricos distintos. Por essa razão, o uso do método da diferença
por Weber não implica aderir aos pressupostos determinísticos original-
mente presentes na sistematização de Stuart Mill.

2. Por que comparar poucos casos e


por que comparar usando a história?
Como dissemos no item anterior, a comparação, tal como sistemati-
zada por Stuart Mill e utilizada por inúmeros cientistas sociais, é uma ope-
ração lógica passível de ser operacionalizada por diferentes técnicas de pes-
quisa. Cabe agora defender um modo específico de fazer comparação, isto
é, estudos comparativos de poucos casos baseados no conhecimento histó-
rico aprofundado de cada um deles. Na verdade, quando nos referimos a
estudos comparativos de poucos casos estamos necessariamente defenden-
do o uso de uma perspectiva histórica e contextual, já que estudos de N
pequeno, i. e., com poucos casos analisados, não admitem o uso de técnicas
estatísticas. Por essa razão, a principal crítica que se faz aos estudos de N
pequeno é que eles conjugam dois problemas sérios para o controle cientí-

12
Vale observar ainda que Max Weber sempre define seus conceitos sociológicos em termos
probabilísticos. Ver, por exemplo, os conceitos de “relação social”, “poder” e “dominação”
em Weber, 1984, p. 21 e 43.

22
Poder, instituições e elites

fico: poucos casos e muitas variáveis. Esse problema (poucos casos, muitas
variáveis), por sua vez, inviabilizaria a formulação de inferências causais
seguras e, por conseguinte, a produção de ganhos teóricos (isto é, a produ-
ção de generalizações). Acreditamos que quatro argumentos podem ser apre-
sentados contra essa crítica.

Primeiro argumento: estudos de N pequeno e ontologia causal complexa


A crítica acerca da conjugação de poucos casos com muitas variáveis
deve ser prontamente aceita, mas deve ser também qualificada, já que os
estudiosos que lançam mão de estudos dessa natureza o fazem exatamente
porque desconfiam da possibilidade de formulação de leis universais, algo
supostamente factível a partir de estudos de N grande. Ao contrário, seus
objetivos consistem fundamentalmente na formulação de “generalizações
modestas”, historicamente embasadas, válidas para contextos claramente
delimitados (TILLY, 1984, cap. 4)13. Esse tipo de estratégia analítica, base-
ada no conhecimento histórico14 de poucos casos, seria mais adequado a
uma outra concepção de causalidade do mundo social que não a causalida-
de linear (HALL, 2008). O entendimento de que a complexidade e a histo-
ricidade dos eventos sociais não podem ser adequadamente captadas por
uma visão linear de causalidade nem por uma visão panorâmica de uma
infinidade de casos demandaria um tipo de estratégia analítica orientada
pela busca de “combinações causais múltiplas” que operariam em contex-
tos específicos e que só poderia ser colocada em prática por meio de estu-
dos de N pequeno e pela análise histórica.
Esse tipo de análise seria, assim, em tudo diferente das pesquisas ba-
seadas em técnicas quantitativas, que, segundo Charles Ragin, limitam-se a
avaliar separadamente o impacto de cada variável independente sobre a
variável dependente. Nesses casos, diz Ragin, o objetivo principal é estimar

13
Segundo David Fischer, generalizações históricas devem ter duas características fundamen-
tais: a) devem ser espacial e temporalmente limitadas e b) devem ser apresentadas na forma de
enunciados probabilísticos. Cf. Fischer, 1970, p. 129.
14
Segundo Charles Tilly, o conhecimento histórico é aquele que revela como o contexto em que os
eventos ocorrem e a sequência em que se dão são fundamentais para a definição do resultado que
se quer explicar. Assim, o desconhecimento do contexto e da sequência dos eventos comprome-
teria radicalmente a explicação dos fenômenos sociais. Cf. Tilly, 1984, p. 79; 2005, p. 4, nota 1.

23
PERISSINOTTO, R. • Comparação e história na ciência social

a contribuição separada de cada causa para a produção do resultado anali-


sado e não o efeito diferenciado de uma combinação de causas. As técnicas esta-
tísticas aplicadas às ciências sociais, portanto, não permitiriam pensar em
termos de “causação múltipla” (1987, p. 64). Desse modo, diz esse autor,
um investigador pode determinar, por exemplo, que a presença de X1 au-
menta a probabilidade de Y ocorrer em 10%, enquanto a presença de X2
aumenta a probabilidade de Y em 15%, enquanto X3 e X4 não têm efeito
sobre a ocorrência de Y. Concluir-se-ia, então, que, juntos, X1 e X2 aumen-
tariam a probabilidade de Y ocorrer em 25%. Esse objetivo de estimar a
contribuição independente de cada causa à probabilidade de ocorrência de
Y é inconsistente com o objetivo de determinar as diferentes combinações de
condições que causam Y15.

Segundo argumento: estudos de N pequeno permitem testar teorias


Os estudos aprofundados de poucos casos podem contribuir para tes-
tar teorias, confirmando-as, refutando-as (sobretudo se forem formuladas
em termos determinísticos) ou reformulando-as. Uma das formas de se re-
forçar teorias é o estudo de least likely cases (RUESCHEMEYER, 2008, p.
311), isto é, quando se escolhe o caso menos adequado para testar a força
de uma proposição explicativa. É o que ocorre, por exemplo, no estudo de
Robert Michels sobre os partidos políticos, em que ele aplica a tese da lei de
bronze da oligarquia ao partido de discurso democrático mais radical. Se a
hipótese passar bem por esses testes mais rigorosos, mais chances ela terá
de ser válida para outros casos.

15
Comentários sobre os limites dos estudos de N grande podem ser encontrados em Sartori,
1970 e 1991; Hall, 2008; Tilly, 1984; Mahoney, 2008; Ragin, 1987; Rihoux e Ragin, 2009;
Przeworsky e Teune, 1982; Borges, 2007. Não pretendemos, de modo algum, encampar a
velha e infrutífera antinomia entre “métodos quantitativos” e “métodos qualitativos”. O nosso
objetivo é antes de tudo defender, frente ao uso indiscriminado dessas técnicas, formas alterna-
tivas de pesquisa que possam revelar aquilo que os números escondem. Quanto a esse ponto,
aliás, vale lembrar, contra certa ingenuidade frente aos procedimentos estatísticos, a frase de
Arthur Stinchcombe, para quem “um número nunca é empírico o suficiente” para ser o ponto
de partida de construção de qualquer teoria. De fato, para que se chegue a um número deman-
da-se tanta codificação, com base em pressupostos teóricos nem sempre explicitados, que seria
ingenuidade tomá-lo, como fazem alguns, como simples expressão numérica da realidade so-
cial. Cf. Stinchcombe, 1978, p. 6-7. Sobre o processo social de produção dos indicadores nu-
méricos como algo que afeta diretamente o resultado das pesquisas, consultar Neil Smelser,
1976, p. 164-165.

24
Poder, instituições e elites

Terceiro argumento: estudos de N pequeno e recusa de modelos causais universais


A atenção à historicidade e à complexidade das relações causais per-
mitiria ainda aos estudos de N pequeno baseados em análises históricas
evitar o sério problema da homogeneidade do modelo causal, recorrente
em estudos de N grande. Nesse tipo de estudo, o pesquisador frequente-
mente aplica um único modelo causal a todos os casos analisados, partindo
do pressuposto de que o efeito da causa é o mesmo em diferentes contextos
(HALL, 2008, p. 383 e RAGIN, 1987, p. 167). Ou seja, não se percebe que
X pode ter o mesmo impacto quantitativo sobre Y nos contextos A e B, mas
o modo pelo qual X afeta Y no contexto A pode ser completamente diferen-
te do modo pelo qual afeta Y no contexto B, exatamente porque o modo de
articulação de X com as demais variáveis e com Y pode ser completamente dife-
rente num e noutro contexto16.
Nesse sentido, a constatação de correlações entre variáveis pouco nos
revela acerca dos processos e mecanismos que vinculam uma variável a
outra, processos e mecanismos que podem alterar qualitativamente a natu-
reza da correlação entre elas (BORGES, 2007, p. 7). Não se trata, portanto,
de dizer apenas que A causa B, mas como A causa B, detalhando-se a “ca-
deia causal” entre ambos. Como nos lembra Sartori (1991, p. 253-54), cor-
relações significativas podem ser mal interpretadas se não houver uma teo-
ria que ajude a interpretar os dados e a levar em consideração o contexto
para evitar afirmações fictícias. É preciso, portanto, evitar o comparativista
ignorante do contexto, isto é, produzir uma (má) informação quantitativa
que pode ser usada sem qualquer conhecimento substantivo do fenômeno
sob consideração (SARTORI, 1970, p. 1039).
Esse tipo de problema levou Charles Tilly a sugerir a inversão dos
procedimentos de pesquisa usualmente aceitos. Normalmente, os investi-

16
Uma ilustração interessante desse fato está presente na discussão de Gerscenkron acerca dos
“pré-requisitos” do processo de industrialização. Segundo este autor, os pré-requisitos da in-
dustrialização inglesa, por exemplo, simplesmente não existiam em outros contextos mais
atrasados, cabendo ao Estado e outras instituições produzirem seus substitutos. Além disso,
determinados fatores que desempenharam o papel de causa da industrialização em contextos
mais avançados, como na Inglaterra, foram, em países atrasados como a Itália e a Rússia, o
efeito desse processo. Cf. Gerscenkron, 1976, p. 113 e 123-24. Dizendo o mesmo em outra
linguagem: o que é variável independente na Inglaterra torna-se variável dependente na Itália
e na Rússia.

25
PERISSINOTTO, R. • Comparação e história na ciência social

gadores se dedicam a fazer estudos quantitativos de muitos casos e, somen-


te depois, análises mais aprofundadas sobre casos exemplares que cum-
prem um mero papel ilustrativo. Para Tilly, nas pesquisas de N grande a
familiaridade com o contexto declina dramaticamente e, por isso, estudos
históricos detalhados de poucos casos devem ser feitos antes de se proceder
à análise estatística de muitos casos, pois o conhecimento do contexto permite
validar melhor a comparação (1984, p. 74 e 77). A ignorância dos contextos
históricos e culturais dos estudos de N grande levou Tilly a formular o duro
julgamento de que “pouco de valor durável para as ciências sociais surgiu
de centenas de estudos conduzidos nas últimas décadas que efetuaram aná-
lises estatísticas incluindo a maioria dos estados nacionais” (1984, p. 77)17.

Quarto argumento: estudos de N pequeno permitem formular novas hipóteses e teo-


rias a partir do conhecimento histórico
A recusa de modelos causais universais não implica dizer que os adep-
tos dos estudos de N pequenos rejeitam a possibilidade de qualquer tipo de
generalização e de ganhos teóricos. A comparação exaustiva de poucos ca-
sos complexos pode levar à elaboração de novas hipóteses e teorias válidas
para contextos similares. Quanto a esse ponto, Rueschmeyer (2008, p. 321-
322) cita como exemplo os tipos ideais de Weber como uma formulação
teórica que nasce da comparação entre casos históricos. Ele lembra que os
tipos ideais não são apenas instrumentos descritivos, mas comportam pro-
posições teóricas. Por exemplo, ao estudar a relação entre capitalismo raci-
onal e Estado moderno, os tipos ideais weberianos sobre os dois fenôme-
nos permitem dizer que a racionalidade econômica tende a ser maior quan-
to mais a ordem política se aproxima da racionalidade jurídica, o que é
claramente uma generalização causal válida para algumas partes do Oci-
dente (RUESCHEMEYER, 2008, p. 321-322). No entanto, tal proposição

17
Na verdade, os adeptos dos estudos de N grande e de técnicas estatísticas defendem a possibilida-
de de inserção de dados contextuais, por exemplo, por meio do uso de variáveis dummies que
indicariam a presença ou ausência de uma dada qualidade contextual. Cf., por exemplo,
Przeworsky e Teune, 1983, p. 13 e 26. No entanto, é preciso observar que o uso desse procedi-
mento de dicotomização pressupõe um profundo conhecimento do contexto histórico dos casos
analisados a fim de que essa codificação não seja mera ficção. De qualquer forma, apesar de útil,
ele representa sempre uma ostensiva simplificação da realidade. Cf. Rihoux e Ragin, 2009.

26
Poder, instituições e elites

causal nunca é apresentada na forma de uma lei universal. O retorno aos


dados históricos permite mostrar que há importantes exceções (a Inglater-
ra, por exemplo) que exigem uma qualificação melhor daquela proposição.
Portanto, estudos de N pequeno conduzem a uma interação mais direta e
frequente entre desenvolvimento teórico e dados, uma combinação mais
próxima entre pretensões conceituais e evidência empírica (RUESCHE-
MEYER, 2008, p. 318). Não é verdade, portanto, que estudos de N peque-
no não possam produzir ganhos teóricos.
Primeiramente, se operacionalizado por meio da lógica comparativa
(sobretudo o método indireto da diferença), esse tipo de estratégia analítica
não está condenado a produzir um conhecimento estritamente idiográfico,
sendo capaz de produzir explicações com alguma possibilidade de gene-
ralização na medida em que a comparação histórica permita identificar pa-
drões de ocorrência dos eventos (revoluções, industrialização, construção de
Estados nacionais, reforma agrária, etc.). Ao mesmo tempo, porém, por ser
uma comparação histórica, esse tipo de procedimento produz “generaliza-
ções modestas”, que reconhecem a especificidade dos padrões detectados,
válidos para certas épocas e regiões do planeta. A comparação histórica, por-
tanto, permite a produção de generalizações historicamente embasadas, um
meio-termo entre o conhecimento estritamente idiográfico e a formulação de
supostas leis universais. Como diz Bendix, o objetivo da análise histórica
comparativa é formular proposições “que são verdades para mais de uma
sociedade, mas não para todas as sociedades” (BENDIX, 1963, p. 539).
Portanto, os estudos de N pequeno conferem lugar de destaque à nar-
rativa histórica como passo importante para elaborar teorias com base em
“analogias históricas” sem recorrer a “teorias epocais” que formulam ex-
plicações universais e apriorísticas sobre épocas inteiras da história huma-
na (STINCHCOMBE, 1978, p. 7 e 19-22). Quanto a esse ponto, Ruesch-
meyer (2008, p. 323) lembra o exemplo de Theda Skocpol, que, nos seus
estudos sobre revoluções sociais, apresenta seus casos por meio de narrati-
vas detalhadas que identificam uma série de eventos causalmente conecta-
dos, compara tais narrativas e, por fim, identifica um padrão de estrutura de
eventos que é enunciado como causa do fenômeno nos três casos analisados.
Em segundo lugar, a comparação histórica é inerentemente preocu-
pada com a identificação de padrões (semelhanças) e de singularidades (di-

27
PERISSINOTTO, R. • Comparação e história na ciência social

ferenças), sendo, portanto, um instrumento adequado para a produção de


classificações pertinentes. Dessa maneira, a comparação histórica nos per-
mite evitar aquilo que Sartori (1991) chamou de catdogs, ficções inexisten-
tes, fruto sobretudo de maus procedimentos classificatórios. Boas classifi-
cações representam ganhos teóricos inestimáveis para qualquer ciência e já
produzem por si só algum grau de generalização.
Em terceiro lugar, a comparação histórica permite ir além da simples
constatação da existência de correlação entre variáveis. O conhecimento
da história é, por definição, o conhecimento do processo, do modo e da
sequência em que os fatos se dão. Sendo assim, a narrativa histórica permi-
te revelar a cadeia causal que preenche o “espaço vazio” entre as variáveis
independentes e as variáveis dependentes. Desse modo, a recuperação his-
tórica de um processo permite realizar aquilo que Peter Hall chamou de
process tracing (ou “análise sistemática de processos”), isto é, o rastreamento
do processo que vai de uma variável causal até o seu efeito.18 É importante
observar, entretanto, que a narrativa histórica na análise comparativa não
deve ser confundida com a descrição exaustiva e detalhista de uma infini-
dade de eventos e fatos históricos desconexos. Não se trata, portanto, de
apenas “contar história”. Essa narrativa, ao contrário, só reconstruirá efeti-
vamente a “cadeia causal” se for feita em termos de identificação e encade-
amento de causas adequadas (para manter a terminologia weberiana), isto
é, recuperando aqueles fatos cuja presença (e articulação entre eles) for fun-
damental para a produção do fenômeno que se pretende explicar19.
Por fim, a análise histórica é fundamental para uma perspectiva ana-
lítica amplamente utilizada atualmente pelos cientistas sociais, a saber, a
perspectiva da path dependence. Segundo Peter Hall, a literatura sobre path
dependence enfatiza dois pontos com sérias implicações para a análise cau-

18
Como exemplo, esse mesmo autor utiliza a correlação existente entre governos social-demo-
cratas e arranjos corporativos de representação de interesse. Diz ele: “Não é suficiente [...]
dizer que a presença de social-democratas no governo explica o desenvolvimento de arranjos
neocorporativos. Para ter um poder explicativo, qualquer teoria desse efeito deve conter algu-
ma explicação da cadeia causal por meio da qual um conduz ao outro” (HALL, 2008, p. 393,
nota 16). Outro exemplo dessa posição pode ser encontrado na seguinte passagem do livro de
Karl Polanyi: “Mesmo que consigamos comprovar, fora de qualquer dúvida, que no cerne da
transformação estava o fracasso da utopia do mercado, ainda temos que mostrar de que ma-
neira os acontecimentos reais foram determinados por essa causa” (POLANYI, 2000, p. 256).
19
Agradeço a Paolo Ricci por essa observação.

28
Poder, instituições e elites

sal. Primeiro, reconhece que os desenvolvimentos causais de grande impor-


tância para o entendimento de um dado fenômeno ocorrem com frequên-
cia bem no início de uma longa cadeia causal. Segundo, sugere que ocor-
rências iniciais podem mudar o contexto de um caso tão radicalmente que
os desenvolvimentos subsequentes de um mesmo fenômeno terão diferen-
tes efeitos em casos diferentes (HALL, 2008, p. 384-85). Nesse sentido, não
se pode pressupor que o impacto do evento x será o mesmo em qualquer
contexto. A intensidade e a natureza do impacto de x dependerão do fato
de a sua ocorrência se dar antes ou depois de w, por exemplo. Por essa
razão, “teorias da path dependence dirigem explicitamente a nossa atenção
para a importância da narrativa histórica (sempre em termos de causas ne-
cessárias e suficientes). Elas implicam que resultados correntes raramente
podem ser explicados apenas com referência ao presente ou ao passado
imediato” (HALL, 2008, p. 385). Como dissemos anteriormente, a análise
histórica comparada, com seu pendor para reconhecer as singularidades
contextuais, desconfia fortemente de modelos causais homogêneos, o que é
plenamente coerente com a perspectiva da path dependence.
Do que foi dito acima podemos concluir mais uma vez que a compa-
ração historicamente embasada permite evitar tanto generalizações abstra-
tas e vazias, de um lado, como, de outro, a “história total” à la Fernand
Braudel, isto é, o conhecimento exaustivo de todos os detalhes de uma épo-
ca (TILLY, 1984, p. 65-74). Dizer que o conhecimento histórico comparativo
está a serviço da produção de generalizações modestas (mas não artificiais)
significa dizer que ele pode, sim, gerar ganhos teóricos para as ciências so-
ciais, diferentemente do que dizem os adeptos radicais dos estudos quanti-
tativos de muitos casos. Ao contrário do que sugere Neil Smelser (1976, p.
157-158), portanto, o uso da história comparativa não serve apenas para
fins ilustrativos, sendo fundamental para revelar adequadamente as rela-
ções causais que produzem os fenômenos sociais em determinadas épocas.

Conclusão
O objetivo deste capítulo não foi defender qualquer estratégia de “pu-
reza metodológica”, a nosso ver sempre infrutífera sob qualquer ponto de
vista. Os cientistas sociais devem ter uma relação utilitária com métodos e

29
PERISSINOTTO, R. • Comparação e história na ciência social

técnicas de pesquisa. Dependendo do objeto de análise e da questão de pes-


quisa, alguns procedimentos são analiticamente mais rentáveis que outros.
No entanto, esse não parece ser a espírito que vigora em algumas
áreas das ciências sociais contemporâneas. O que presenciamos hoje pare-
ce ser a defesa, algumas vezes implícita, outras explícita, de que a única
pesquisa realmente válida é aquela ancorada em estudos que abarcam mui-
tos casos e em técnicas estatísticas de controle de variáveis. Sem a menor
intenção de refutar a validade desse tipo de estratégia investigativa, procu-
ramos, porém, apontar alguns de seus limites (raramente expostos pelos
seus adeptos) e como eles podem ser contornados por formas alternativas
de investigação, notadamente o uso da comparação histórica.
Por fim, ao expor as vantagens desses procedimentos investigativos,
sugerimos que teríamos muito a ganhar com um retorno às contribuições
(metodológicas e substantivas) de Max Weber. Toda a terminologia hoje
mobilizada pelos sociólogos e cientistas políticos que utilizam a compara-
ção histórica em suas pesquisas – “multicausalidade”, “combinação cau-
sal”, “causação conjuntural”, “generalização modesta”, “rastreamento de
processos”, “indução histórica analítica”, “path dependence” – não passa,
no fundo, de uma nova maneira de expressar proposições teóricas e meto-
dológicas há muito tempo encontradas na epistemologia weberiana. Acre-
ditamos, portanto, que por detrás de toda essa “inovação” há, ao contrário
do que sugere Peter Hall (2008, p. 394, nota 19), bem mais do que “alguma
simpatia” por Max Weber.

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32
Poder, instituições e elites

Igreja e construção nacional


no Brasil e na Argentina

Ernesto Seidl1

A principal finalidade deste texto é retomar discussões consagradas


no campo de estudos sobre construção nacional, formação do Estado e do
sistema político e procurar atualizá-las com base em perspectivas menos
correntes ou consideradas pelas ciências sociais no Brasil. Dentro de temá-
tica muito ampla, a atenção está voltada ao papel e peso da Igreja Católica
nos processos argentino e brasileiro de construção nacional. Com ambi-
ções muito limitadas – inclusive pela mobilização exclusivamente de fontes
secundárias, elemento que, sem si, é muito problemático2 –, procura-se for-
necer pistas para problematizações analíticas e encaminhamentos de pes-
quisa pertinentes.

Nation-building em contextos periféricos


Como é sabido, o vasto campo de estudo sócio-histórico voltado para
os processos de nation/state-building tradicionalmente vê-se às voltas com
quantidade muito grande de variáveis a examinar, e seu conteúdo muda de
acordo com as diferentes linhas epistemológico-teóricas disponíveis. Por
seu propósito muito específico, o presente trabalho ficará restrito a um exer-
cício que toma em conta apenas a variável religiosa no contexto de forma-
ção dos Estados nacionais na Argentina e no Brasil.

1
Professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Sergipe.
Pesquisador do Laboratório de Estudos do Poder e da Política – LEPP.
2
Caberia mencionar rapidamente, ao mesmo tempo a escassez de estudos empíricos (monográ-
ficos ou comparativos) e, por outro lado, a disponibilidade de uma bibliografia sobre a “história
da Igreja” produzida quase inteiramente por indivíduos comprometidos em algum grau com a
instituição. No caso brasileiro, isso é evidente, por exemplo, nas publicações coordenadas por
padres, teólogos e “historiadores da Igreja”, no sentido mais ambíguo do termo. Exemplo claro
disso é a coleção História Geral da Igreja na América Latina, editada pela Vozes, editora con-
trolada por franciscanos há mais de um século.

33
SEIDL, E. • Igreja e construção nacional no Brasil e na Argentina

Em um nível geral, cabe apontar, de início, uma questão mais ampla


da problemática abordada, a qual diz respeito à centralidade do exame das
respectivas dinâmicas de formação do Estado nos dois países apontados,
tomando-se em conta suas peculiaridades históricas, estruturações sociais e
contextos culturais. Pretende-se tornar claro, por essa via, um posiciona-
mento que vai de encontro a vertentes clássicas de estudo de formação esta-
tal, todas elas fundadas, em maior ou menor medida, em uma visão de
universalidade do fenômeno político e sobretudo do Estado-nação e, conse-
quentemente, voltadas à observação de suas distintas variações no tempo e
no espaço e ao seu enquadramento no espectro de um suposto desenvolvi-
mento político (BADIE, 1980). Em contrapartida, o pressuposto epistemo-
lógico em que se baseia a perspectiva aqui defendida centra-se na compre-
ensão dos fenômenos políticos em sua multiplicidade e especificidade, colo-
cando-se justamente a comparação como recurso para a apreensão de va-
riantes históricas e culturais. Dessa forma, o desenvolvimento relativamen-
te recente de uma vertente de caráter culturalista no interior da Sociologia
Histórica ou Sociologia do Estado3 tem fornecido um leque de questões de
grande fertilidade.
Um aspecto central nesta corrente, em particular nas obras de Ber-
trand Badie, Pierre Birnbaum e Guy Hermet, diz respeito à concepção dos
fenômenos de constituição do poder político em termos de dinâmicas que
não obedecem a determinantes universais nem a sequências necessárias.
Ao mesmo tempo, também apontam a existência de um fenômeno históri-
co mais amplo de expansão de uma esfera propriamente política ocidental,
cuja característica é justamente “autoproclamar-se universal” (BADIE, 1992,
p. 69 e segs.). Ou seja, se toda a orientação desta vertente baseia-se nas
noções de diversidade e especificidades das manifestações do “político”,
indissociáveis das noções de cultura e história, por outro lado ela chama

3
Às vezes, também denominada genericamente Política Comparada, trata-se de uma vertente
teórica iniciada com trabalhos debruçados sobre padrões comparados de construção nacional,
herdeiros notadamente da sociologia de Max Weber e de Norbert Elias. Para uma visualização
geral do estado da arte nesse campo no início dos anos 1990, ver especialmente a edição n. 133
(1992) da Revue Internationale des Sciences Sociales, e o artigo de Bertrand Badie & Pierre Birn-
baum, intitulado Sociologie de l’État revisitée, publicado na mesma revista, n. 140 (1994); para
questões mais gerais sobre a reaproximação entre história, sociologia e estudos da política, ver
Déloye (2003), Déloye & Voutat (2002), Offerlé & Rousso (2008) e Tilly (1981, 2001, 2007).

34
Poder, instituições e elites

atenção com muita ênfase ao inegável contexto de sua universalização, en-


tendida como ocidentalização, do fenômeno (BADIE, 1992; BADIE &
HERMET, 1993).
Partindo da visualização de uma crescente generalização das formas
ocidentais do “político” em contextos não-ocidentais, isto é, países ou regi-
ões de tradição totalmente alheia a tal processo (América, África e Ásia) e
inclusive, como é o caso da América, de estruturas sociais completamente
extintas com a chegada das potências colonizadoras ocidentais, esta pers-
pectiva acaba lançando ampla agenda de questões a serem devidamente
encaradas. Como fazem ver com clareza os trabalhos acima mencionados,
o processo de difusão de um modelo europeu de formação estatal nacional
não pode ser desvinculado de uma ambição do Estado à sua universalidade
como estrutura (“melhor”, “mais desenvolvida”, “inevitável”, “moderna”,
“racional”) de organização do poder político. De fato, pelo menos a partir
do século XVI, a crescente circulação dos governos e das relações interna-
cionais propiciou a formação de um código comum para todos os atores do
sistema internacional, favorecendo assim o surgimento de uma cena inter-
nacional na qual cada vez mais são difundidas categorias ocidentais de pen-
samento. A construção dos Estados ditos periféricos – no qual se inserem
Argentina e Brasil –, resultado de uma relação de subordinação às metró-
poles, coloca em foco a ambiguidade dos processos de homogeneização
dos âmbitos políticos. Desde vários pontos de vista, o Estado periférico se
estrutura como se sobre ele devessem estabelecer-se as relações de depen-
dência que os unem aos Estados hegemônicos. Por um lado, a dependência
propicia a territorialização dos âmbitos políticos, a construção de um cen-
tro de poder e a formação de estruturas burocráticas, ainda que, por outro,
contribua para limitar a soberania do Estado, a constituição de uma socie-
dade civil diferenciada e estruturada e o estabelecimento de fórmulas de
legitimação suficientemente sólidas.
A importação de modelos exógenos, além dos efeitos citados, tem como
consequência o surgimento de um Estado híbrido, fruto do transplante de
instituições estrangeiras ao interior de sociedades culturalmente diversas,
de tradição completamente desconhecida frente ao modelo importado. Posto
que suas condições de surgimento e de uso social nunca podem ser repro-
duzidas em outras situações, por serem resultado de uma história e cultura

35
SEIDL, E. • Igreja e construção nacional no Brasil e na Argentina

específicas, a estrutura implantada passa por um processo de adaptação e


interpretação que implica necessariamente modificações significativas no
modelo adotado, a ponto de, em muitos casos, resultar em uma deforma-
ção do paradigma original (BADIE & HERMET, 1993, p. 180-209).
As implicações analíticas e metodológicas dessa perspectiva são mui-
tas e de difícil resolução. Em primeiro lugar, colocam-se a centralidade e a
amplitude do fenômeno, fazendo com que todo pesquisador debruçado sobre
tais contextos tenha de tomá-lo devidamente em conta ao conduzir seus
estudos, por mais variados que sejam os objetos. Provavelmente o principal
efeito negativo acarretado pela desconsideração desta dimensão de análise
seja percebido na quantidade não negligenciável de abordagens históricas e
sociológicas que veem em fenômenos sociopolíticos recorrentes em países
periféricos – com toda sua sorte de ismos (populismo, coronelismo, clientelismo,
autoritarismo, personalismo) – manifestações de “atraso”, “subdesenvolvimen-
to”, “excrescência” ou “perversão”, sempre em comparação à “moderni-
dade ocidental”. Tais conclusões, cujos pressupostos ancoram-se em alguns
daqueles que Charles Tilly (1985) chamou de postulados perniciosos da
Sociologia Histórica – sobretudo o “desenvolvimentismo/evolucionismo”
e a “modernização” –, foram por décadas dominantes no cenário das Ciên-
cias Sociais e, em especial, nas suas áreas comparativas4. Da mesma forma,
aparecem de modo mais sutil em análises que, embora percebam e reco-
nheçam concretamente sua ocorrência – como é o caso relativo às influên-
cias “iluminista”, “republicana”, “liberal” e “positivista” nos ideários ar-
gentino e brasileiro do século XIX, assim como às artes nativas desde o
início da colonização –, não conseguem evitar a armadilha de julgá-las como
“ideias fora do devido lugar”, e, portanto, “disfuncionais”, “anômalas”,
“absurdas”, etc.
Em segundo lugar, surgem os problemas propriamente metodológi-
cos e de caráter operacional ligados ao empreendimento analítico. Assim,
se de um lado deve-se tentar apreender os princípios que regem os proces-
sos de importação e exportação de modelos, filosofias e ideologias políti-
cas, bem como suas complexas adaptações e readaptações, isto é, suas lógi-

4
Uma exposição detalhada e as respectivas críticas endereçadas a estas correntes podem ser
encontradas especialmente em Badie (1980, 1983), Badie & Hermet (1993) e Tilly (1985).

36
Poder, instituições e elites

cas de consumo, em contextos culturais diferentes dos de origem, de outro


lado, como aponta Coradini (1996), há uma gama importante de questões
de metodologia que ainda estão por ser resolvidas. Incluem-se nelas as for-
mas de se lançar luz sobre o conjunto de atores envolvidos nos processos de
importação e exportação, através da explicitação dos interesses em jogo e
das lógicas de orientação da escolha dos bens envolvidos, e, principalmen-
te, de se capturar com certa precisão os efeitos da importação desses bens
sobre as respectivas estruturações sociais importadoras. Quanto a essas di-
ficuldades de operacionalização e de estruturação do objeto dentro da pro-
blemática enfocada, não há dúvida de que, além da complexidade analítica
em que estão envolvidas, elas devem-se em larga medida ao próprio estágio
ainda inicial de sua apropriação por cientistas situados fora do eixo norte-
americano e europeu5.

Algumas variáveis
Uma vez expostos, de modo muito sumário, o enquadramento cen-
tral do tema e algumas questões pertinentes à construção do objeto, cabe
agora tentar situá-los mais claramente dentro das perspectivas teóricas aci-
ma apontadas. Ao mesmo tempo, indicam-se alguns níveis e variáveis de
análise a serem privilegiados.
Como foi sugerido acima, o ponto de partida para o exame dos pro-
cessos de formação do Estado nacional no Brasil e na Argentina consiste
precisamente em considerar a condição periférica em que se desenvolvem
e, portanto, tomar em conta as diferentes possibilidades de criação, adapta-
ção e hibridação encontráveis na constituição de um aparato político cen-
tralizado e legítimo. Assim, se uma noção de “Estado”, de instituições po-
lítico-administrativas “estatais” e de um léxico “político ocidental” estão
presentes tanto na Argentina quanto no Brasil, também a existência da Igreja
Católica – parte dos empreendimentos colonizadores espanhol e português
desde seu início – deve ser apreendida em sua lógica peculiar de instituição

5
Podem-se mencionar alguns trabalhos produzidos no Brasil que incluem em sua análise os
pressupostos centrais contidos nesta problemática de importação de bens simbólicos; em espe-
cial, Coradini (1996), Anjos (2002) e Seidl (2010).

37
SEIDL, E. • Igreja e construção nacional no Brasil e na Argentina

ocidental estabelecida em um contexto exógeno. É exatamente nesse senti-


do que se pretende aqui explorar algumas vias para o entendimento do
papel muitas vezes ambíguo desempenhado pela Igreja na construção das
nações argentina e brasileira, destacando sua atuação subordinada ao Esta-
do como parte do aparato administrativo empenhado no trabalho de domi-
nação social.
A longa manutenção da Igreja dentro da órbita do Estado naqueles
dois países, garantida constitucionalmente através do regime de padroado,
deve ser examinada em sua dimensão funcional como característica revela-
dora dos problemas de institucionalização e legitimação de uma ordem
política leiga. Quanto a este aspecto, seria necessário explorar comparati-
vamente as funções específicas desempenhadas pela Igreja Católica – intei-
ramente subordinada ao poder estatal, mas significativamente também parte
dele – nos trabalhos de dominação e de legitimação sociais (inculcação de
símbolos, valores e ideais nacionais, consagração de grupos sociais e de
projetos políticos, etc.). Nesse mesmo sentido, seria pertinente introduzir
uma questão ainda pouco trabalhada pela bibliografia disponível: as rela-
ções entre a formação de uma esfera política e o processo de institucionali-
zação da Igreja pós-padroado por meio da expansão de uma rede escolar
religiosa responsável pela educação de grande parte das elites políticas e de
outros grupos dirigentes. Isto é, mais além das ligações formais entre os
poderes secular e espiritual, de exame sem dúvida necessário, isto consti-
tuiria uma tentativa de apreensão da dinâmica de suas relações objetivas
em sua maior abrangência.

Estado híbrido e dinâmica política


Como mostra amplamente a bibliografia dedicada à formação do
Estado na Europa ocidental, este tem sua gênese em um lento processo de
centralização do poder político em torno de um monarca que consegue,
com maior ou menor êxito, eliminar gradativamente forças sociais e políti-
cas concorrentes (exércitos e outras forças militares privadas, Igreja, forças
comerciais, etc.), extinguindo-as ou subjugando-as. Como apontam Badie
& Birnbaum (1979, p. 159), entendido como produto de uma formação
social precisa e determinada, o “Estado-nação se impõe naturalmente como

38
Poder, instituições e elites

uma fórmula política que traz a marca de uma cultura cuja importância
não se poderia subestimar”, sendo sua “invenção controlada e materializa-
da pelos modelos culturais próprios à Europa ocidental”. Especificamente
quanto à Igreja e ao poder religioso, muitas são as indicações que ressaltam
o peso da variável religiosa na explicação dos vários formatos estatais que
tomaram corpo naquele continente. Contudo, em que pese a existência de
variações internas consideráveis (recortes entre tradição católica e protestan-
te, com suas variantes nacionais), a constituição de um centro político unifi-
cador vai inevitavelmente de par com uma separação relativamente clara en-
tre os poderes religioso e político, fenômeno este que também é mais amplo e
se estende a outras esferas sociais, as quais vão progressivamente descolan-
do-se e autonomizando-se umas frente às outras. De fato, o surgimento de
uma esfera política autônoma como “modo privilegiado de resolução das
tensões e dos conflitos” (Ibid., p. 159), acompanhada de um aparato burocrá-
tico-administrativo especializado, implica, neste contexto, uma recomposi-
ção do poder religioso, com perda de terreno na esfera social do político.
Autores como Bertrand Badie, Pierre Birnbaum e René Rémond, entre
outros, ressaltam o peso das relações entre o sistema político e o religioso
no processo de dissociação de um nível propriamente “político”. Segundo
esta perspectiva, “seria incontestável que o cristianismo desempenhou pa-
pel decisivo na construção do Estado”, papel que “não cessou de crescer à
medida que a religião cristã proclamou a autonomia do poder espiritual em
relação ao poder temporal e desenhou assim, em negativo, os contornos de
um campo político específico” (BADIE & BIRNBAUM, 1979, p. 160). De
outro lado, se a história europeia de construção estatal nacional tem na
secularização da política um fator crucial para sua realização, a realidade
dos países situados fora daquela órbita parece ser bastante distinta. Em pri-
meiro lugar, cabe considerar as dificuldades nas tentativas de empreendi-
mento de um aparato político-administrativo dentro de situações históricas
e de contextos sociais e culturais distintos do ocidental. Ou seja, não ape-
nas as condições de dispersão do poder por vastos territórios nas mãos de
proprietários fundiários geralmente armados (estancieiros, caudilhos, co-
ronéis) – como são os casos brasileiro e argentino –, mas também a própria
inexistência de um fenômeno de autonomização da esfera política e buro-
crática conduziram a dinâmicas estatais.

39
SEIDL, E. • Igreja e construção nacional no Brasil e na Argentina

Diferentemente da história europeia de construção de uma ordem


estatal, as dinâmicas estatais argentina e brasileira são fortemente marca-
das por tendências centrífugas que atuaram em sentido contrário à institu-
cionalização de uma ordem política centralizada. A fim de explicar as par-
ticularidades das dinâmicas do poder político sobretudo no contexto lati-
no-americano, muitos especialistas encontraram no conceito de neopatrimo-
nialismo6 instrumento-chave na interpretação das constantes tensões resul-
tantes da implantação de modelos híbridos de Estado. Com base nesse re-
curso analítico, os sistemas políticos da América Latina são compreendi-
dos como estruturados em torno da pessoa do chefe político (presidente,
monarca, caudilho, latifundiário) e tenderiam a reproduzir um modelo de
domínio personalizado, orientado à proteção da elite no poder e limitando
ao máximo o acesso da periferia aos recursos do centro.
Embora Argentina e Brasil possam ser enquadrados nestas condições
de dispersão e personificação do poder, alguns traços estruturais derivados
do período colonial diferenciam seus processos de formação do Estado
nacional ao longo do século XIX. Para Trindade (1985a, p. 64), dois aspec-
tos devem ser observada inicialmente na comparação dos casos brasileiro e
argentino. Primeiro, as diferenças na organização da economia, relativa-
mente restrita na Argentina quando comparada às conexões mais amplas
encontradas no Brasil. Segundo, o peso do legado institucional político-
administrativo, que, no caso brasileiro, “era mais complexo, engendrou a
formação de um estamento burocrático que transmitiu-se intacto em fun-
ção da forma pacífica da transição para a independência”; no caso argenti-
no, por sua vez, teve-se a “herança de um arcabouço institucional mais
simples e descentralizado em função do tipo de controle metropolitano”,
cuja estrutura foi totalmente alterada pelo longo e conflitivo processo de
unificação nacional.
Ao lado desses fatores colocam-se, no exame empreendido por Trin-
dade, três outras variáveis fortes para a compreensão dos diferentes padrões

6
De acordo com Badie & Hermet (1993), deve-se a Samuel Eisenstadt sua sistematização na
tentativa de compreensão dos fenômenos políticos em sociedades em desenvolvimento. No
Brasil, Raymundo Faoro (1958) renovou as reflexões sobre a constituição do Estado brasileiro
ao usar essa categoria e mostrar o peso do legado português dentro da história do país. Outro
trabalho apoiado nessa nessa vertente é o de Uricoechea (1978).

40
Poder, instituições e elites

de desenvolvimento político (em sentido não evolucionista) e do timing dos


processos de estruturação de um aparato estatal nos dois países estudados.
São elas: o perfil das elites políticas e o seu grau de autonomia frente às
classes economicamente dominantes; o peso das forças armadas (Exército
e, sobretudo, milícias civis ou guardas nacionais); e o grau de dissociação
entre o poder político e a Igreja. Na hipótese apresentada pelo autor, “as
diferentes formas de interação desses três fatores com o processo de cons-
trução da ordem política, durante a segunda metade do século XIX, têm
influência decisiva no ritmo de implantação do Estado nacional” (Ibid., p.
67) e podem explicar, em boa medida, a formação precoce de um centro
político no Brasil em contraposição à construção tardia do Estado na Ar-
gentina.

Igreja e Estado na formação de nações


Sem desconsiderar a importância da conjugação de todas as variá-
veis apresentadas, cabe, a partir daqui, centrar o foco naquela que diz res-
peito à relação da Igreja com o “político” e seu respectivo peso na elabora-
ção de ordens sociais legítimas. Nessa pista, um primeiro ponto a ser nota-
do no estudo comparativo da vinculação entre Estado e Igreja na Argenti-
na e no Brasil é a inexistência de contrastes marcantes tais como percebidos
em outros aspectos (formação das elites políticas e estruturação das forças
armadas, por exemplo). De fato, ambos os países são originários de uma
história de colonização realizada por potências europeias de longa tradição
católica e apresentam em seu desenvolvimento, desde muito cedo, forte
presença da Igreja em ambos os territórios, em especial com a atuação pio-
neira dos jesuítas nas reduções indígenas. Desde o início, o empreendimen-
to colonizador levado a cabo pelas Coroas ibéricas revelava-se uma “cruza-
da na qual objetivos políticos estavam essencialmente misturados com ob-
jetivos religiosos” (CORNEJO, 1972, p. 26), os quais, ao mesmo tempo em
que contribuíam para a legitimação da dominação política através de sua
“bênção divina”, valiam-se desta para garantir a continuidade e a penetra-
ção da instituição encarregada do plano espiritual. Talvez com algumas
pequenas variações, tanto o processo colonizador espanhol quanto o portu-
guês na América Latina tiveram na Igreja um agente valioso.

41
SEIDL, E. • Igreja e construção nacional no Brasil e na Argentina

Com relação ao caso português, destaca-se a divisão de tarefas ocor-


rida entre Estado e Igreja na manutenção do domínio colonial e em sua
ocupação efetiva, cabendo ao primeiro o papel fundamental de garantir a
soberania portuguesa sobre a Colônia, dotá-la de uma administração, de-
senvolver uma política de povoamento e resolver problemas básicos. Esta
tarefa pressupunha, de outro lado, o reconhecimento da autoridade do Es-
tado por parte dos colonizadores que se instalariam no Brasil, seja pela
força, pela aceitação dessa autoridade, ou por ambas as coisas. Nesse senti-
do, o papel da Igreja era relevante, pois, ao ter em suas mãos a educação
das pessoas, o controle das almas na vida diária era um instrumento muito
eficaz para veicular a ideia geral da obediência e, em especial, a de obediên-
cia em relação ao Estado.
A condição de baixa diferenciação entre Igreja e Estado e, sobretudo,
de subordinação da primeira ao poder monárquico deve ser entendida den-
tro do padrão de relações estabelecidas entre as Coroas espanhola e portu-
guesa e a Igreja de Roma. A estratégia católica de conceder a ambas as
monarquias o direito de padroado real sobre sua instituição em todos os ter-
ritórios descobertos, em troca da garantia de organização e proteção da
Igreja nas novas terras, permitiu a estruturação de formas complexas de
relacionamento entre os dois poderes. Há várias indicações de que as ten-
sões e conflitos constantes que caracterizam suas relações, especialmente
no final do século XVIII e ao longo de todo o século seguinte, derivam da
problemática de um mau delineamento dos limites de competência de cada
esfera e da estreita submissão da Igreja ao poder temporal.
Ao contrário do processo secularizador ocidental de constituição do
político – objetivado na forma de Estado-nação –, no qual gradativamente
vê-se um relativo distanciamento do poder espiritual frente às questões tem-
porais e, em consequência, a afirmação de uma esfera pública cujo princí-
pio de legitimação passa a ser buscado em outras mitologias sociais (“de-
mocracia”, “bem comum”, “bem público”, “vontade geral”) –, a dinâmica
de construção de uma esfera política nos contextos argentino e brasileiro
mostra-se menos dicotomizada. Se durante todo o período colonial o regi-
me de padroado havia vigorado nos territórios conquistados, os processos
de independência dos dois países não apenas não implicaram sua extinção,
como acabaram por reafirmá-lo através de sua consagração nos textos cons-

42
Poder, instituições e elites

titucionais, fazendo da religião católica a religião oficial do Estado. Por


outro lado, se a manutenção da Igreja sob a tutela do Estado e como reli-
gião oficial manifesta um interesse em legitimar o “político” com base em
princípios de outra esfera (espiritual), coloca-se em estreita conexão a este
fato a possibilidade de utilização da instituição católica e de seus quadros
como parte do aparato administrativo. Assim, se não eram poucas as dificul-
dades de constituição de uma estrutura burocrático-administrativa ampla e
profissionalizada, dada a escassez de recursos e de instituições formadoras, a
incorporação funcional dos serviços da Igreja ao empreendimento estatal
obedecia à lógica patrimonialista de se valer, a um preço muito baixo, de
estruturas não-profissionais (burocrático-racionais) de administração7.
Como já foi referido, por sua presença ao longo de grande parte do
território dos países em questão, a Igreja Católica – assim como viria a ser
com a Guarda Nacional no Brasil – podia simultaneamente levar a palavra
de Deus e a palavra do Estado de modo mais homogêneo àqueles cuja obe-
diência e crença eram fundamentais na criação de um sentimento nacional
unitário. Mais próximos dos indivíduos e da comunidade do que qualquer
outro agente público, não há dúvidas sobre o poder privilegiado de penetra-
ção do clero em meio a uma sociedade altamente dispersa. No entanto, há
que se ressaltar outros aspectos peculiares da presença eclesiástica nos con-
textos estudados. O primeiro deles concerne à intensa atuação da Igreja
nos movimentos de independência argentino e brasileiro, bem como em
movimentos revolucionários, sociedades secretas e academias entre o final
do século XVIII e as primeiras décadas do século XIX (CARVALHO, 1996;
CORNEJO, 1972; FARREL, 1976).

7
Exemplo significativo e bem-sucedido da utilização de “serviços litúrgicos” na construção de
uma ordem social e política no Brasil é o caso da Guarda Nacional, criada sob o molde francês
em 1831. Para Uricoechea (1978, p. 304-305), “a contribuição da Guarda Nacional para a
criação de um Estado burocrático moderno foi impressionante: a relevância das milícias no
processo de construção do Estado reside, entre outras coisas, em sua participação – por vezes
exclusiva – na criação e manutenção de uma rotina administrativa de governo local que era
uma condição necessária para o desenvolvimento de uma ordem institucional além dos confins
da sociedade patriarcal”. Na visão do autor, da qual compartilha Trindade (1985a), o emprego
da ordem prebendalista dessa milícia cívica constitui um fator explicativo do sucesso obtido
pelo Estado brasileiro em sua constituição quando comparado com a Argentina e outros países
latino-americanos.

43
SEIDL, E. • Igreja e construção nacional no Brasil e na Argentina

O envolvimento expressivo de parte do clero (inclusive de alta hierar-


quia) não somente nos movimentos independentistas, mas também em uma
série de outros mais amplos, não pode deixar de ser relacionado ao fato de
a instituição religiosa representar uma porta de entrada privilegiada para
ideias, filosofias e ideologias originárias de centros da Europa e dos Esta-
dos Unidos. Com efeito, as maiores oportunidades de acesso à literatura
ilustrada e de contato direto ou indireto com o pensamento produzido no
contexto revolucionário europeu (e norte-americano) permitiram ao clero
exercer papel importante, no contexto colonial e posterior, na recepção,
reelaboração e divulgação de ideários liberais e iluministas e de suas diver-
sas interpretações. Ainda que referências à participação da Igreja nesses
movimentos sejam encontradas nas bibliografias relativas aos dois países, é
sobre o Brasil que se dispõe de maior quantidade de informações. Por outro
lado, há também indicações de que sua extensão tenha sido mais ampla no
caso brasileiro devido à melhor estruturação da Igreja, sobretudo pela maior
quantidade de seminários existentes8.
Em conhecido estudo sobre a elite política imperial brasileira, José
Murilo de Carvalho compara algumas características contrastantes entre
magistrados e clérigos e relaciona suas origens sociais e formação com um
comportamento diferenciado. Segundo Carvalho (1996, p. 167), “como
membros de uma burocracia ou como indivíduos, os padres se distinguiam
dos magistrados” e, “apesar do Padroado, a burocracia eclesiástica era fon-
te constante de conflitos potenciais com o Estado”, diferentemente da ten-
dência estatista e conservadora incorporada pelos magistrados reais. E, se-
gue o autor, “a formação do clero era menos nacional e menos estatista em
seu conteúdo; a origem social do grupo como um todo era provavelmente
mais democrática; as menores possibilidades de ascensão na carreira torna-

8
De qualquer modo, a realidade da Igreja nos dois países diferia muito pouco também nesse
aspecto. O seminário de Buenos Aires esteve fechado de 1792 a 1865 e o de Salta, de 1813 a
1852. No Brasil, os seminários dependentes dos bispos (episcopais) só surgiram a partir de
1747, ainda sob os cuidados dos jesuítas. “Com a expulsão da Ordem, vários deles foram fecha-
dos temporária ou permanentemente, tal sendo o caso dos seminários da Bahia, Paraíba, Ma-
ranhão, Mariana, São Paulo, Pará. O único mais estável foi o do Rio de Janeiro, criado em
1739, independente dos jesuítas. Após a expulsão, o único seminário episcopal a ser criado foi
o de Olinda, em 1800” (CARVALHO, 1996, p. 166). Destaque-se que os contingentes de sacer-
dotes eram proporcionalmente muito semelhantes em ambos os países.

44
Poder, instituições e elites

vam o grupo eclesiástico menos coeso que o dos magistrados”; há ainda


um aspecto a ser notado: “a atuação da maioria dos padres era muito pró-
xima da população, tornando-os líderes populares em potencial, em con-
traste com os juízes encarregados da guarda da lei e que permaneciam pou-
co tempo em seus postos”.
Em relação ao comportamento dos dois grupos, é notável a partici-
pação dos padres em praticamente todos os movimentos de rebelião desde
1789 até 1842. Quanto ao fundamento de sua participação, sobretudo dos
mais ilustrados, este era dado pelo “ideário das revoluções Francesa e Ame-
ricana, notadamente no que dizia respeito ao combate ao absolutismo, às
liberdades políticas, à democracia. Essas idéias, que não atingiam Coim-
bra, conseguiam chegar aos seminários brasileiros apesar da precariedade
de seu ensino” (ibid., p. 167). Exemplos desse envolvimento são vistos na
Inconfidência Mineira – em que, entre nove padres julgados, cinco foram
condenados – e nas rebeliões pernambucanas de 1817 e 1824. No entanto,
a participação do clero na política não se limitou a esse período mais turbu-
lento da independência. Clérigos permaneceram em postos políticos, com
intensa atividade nos debates das questões nacionais. Seu ponto alto foram
os períodos em que Feijó assumiu o Ministério da Justiça (1831-1832) e foi
Regente do Império (1835-1837), seguido de um retraimento da Igreja den-
tro do espaço político brasileiro.
Entretanto, dadas as condições de estruturação do poder eclesiástico
frente ao poder político, a religião não tardaria a voltar ao centro das dis-
cussões políticas tanto no Brasil quanto na Argentina. A origem da proble-
mática era, no fundo, a mesma nos dois casos, tratando-se da redefinição
da postura da Igreja diante do Estado e da “política” e suas respectivas
ameaças sob a forma do “liberalismo secularizador” que chegava com a
importação de ideologias estrangeiras. A base de sua ação encontrava-se
agora na reação corporativa e ultramontana ao regalismo da política impe-
rial brasileira e à situação de ameaça dos governos liberais argentinos –
representados por Mitre, Sarmiento e Rosas – às tradicionais prerrogativas
da Igreja Católica.
De fato, o ultramontanismo de Pio IX (1846-1878) não fez senão
estimular uma questão desde sempre espinhosa na relação Igreja/Estado
nos dois países, ou seja, a ampla subordinação e dependência da instituição

45
SEIDL, E. • Igreja e construção nacional no Brasil e na Argentina

religiosa definida pelo regime de padroado. Sendo assim, no momento em


que a Igreja tenta reafirmar sua supremacia frente ao poder temporal, con-
denando ao mesmo tempo a “modernidade” e todos os seus “vícios”, vol-
tam a ser questionados os limites entre os dois poderes. De acordo com
Barros (1971, p. 327), “tais idéias ultramontanas encontraram eco no Brasil
algum tempo antes do apostolado intransigente de D. Vital e de D. Antônio
Macedo Costa, se não no seio do clero, pelo menos entre o laicato”. Porém,
interessa mais que se tenha em conta o contexto de reações e reivindicações
liberais e republicanas desencadeadas pelo posicionamento do Vaticano e
que acabaram desembocando na dramática Questão Religiosa no Brasil.
Em suma, a tentativa da hierarquia católica de definir uma política autôno-
ma frente ao Estado acabou levando-os ao choque concretizado na prisão
dos dois bispos leais ao Papa9. Como indica Carvalho (ibid., p. 171), “a
ênfase na lealdade eclesiástica levava necessariamente ao conflito com a
lealdade ao Estado”. Este último seguia, portanto, sua lógica. Insistia o
governo, ao longo do Império, em “não abrir mão do controle da Igreja,
pois além de ser ela um recurso administrativo barato [...], possuía grande
poder sobre a população, de que o governo indiretamente se beneficiava”.
Na Argentina, o período que cobre a segunda metade do século XIX
parece ter sido o de maior retrocesso para o poder católico. Depois de qua-
se duas décadas de boas relações com o governo conservador e autoritário
de Rosas, a quem beneficiou em troca de proteção contra o anticlericalismo
dos unitários10, a Igreja teve seu espaço reduzido em larga medida pela
ascensão de governos liberais menos preocupados em lhe garantir seu anti-
go estatuto. Assim, à semelhança do que ocorreu no Brasil quase concomi-
tantemente, a Igreja esteve na pauta da Assembleia Constituinte argentina
como “o tema mais discutido” (sete sobre um total de treze), embora ape-
nas três sacerdotes estivessem presentes, sintomaticamente “talvez a mais
baixa representatividade do clero em uma assembleia constitucional” (FAR-
REL, 1976, p. 31). O resultado da emergência de forças políticas “liberais”
neste cenário, no que tange ao religioso, concretamente foi a elaboração de

9
Sobre o desenvolvimento e desfecho da Questão Religiosa, consultar especialmente Barros
(1971).
10
Segundo Cornejo (1972, p. 39), Rosas tinha como lema o grito “Religião ou Morte”.

46
Poder, instituições e elites

uma Constituição que “rompe com toda uma tradição do estatuto público
da Igreja Católica. Todas as constituições anteriores [...] foram mais explí-
citas no reconhecimento da Igreja. De outro lado, a Constituição consagra
a liberdade de culto, mantém o Padroado e suprime o foro eclesiástico”
(ibid., p. 31). Tal tendência anticlerical intensifica-se na década de 1880 e
atinge seu auge com a série de medidas legais que retiram da Igreja direito
sobre serviços públicos importantes, como é visto na subordinação dos tri-
bunais eclesiásticos aos civis (1881), na proclamação da educação leiga
(1884), no registro e o matrimônio civis (1884 e 1888) e na secularização
dos cemitérios (1888).
Ou seja, sem dispensar seu instrumento de controle sobre a hierar-
quia e a atuação da Igreja, o Estado não mais mantinha a religião católica
como única prática legalmente reconhecida, o que não deixava de repre-
sentar ataque considerável ao poder da instituição. Porém, cabe lembrar,
como faz Trindade (1985a, p. 82), que o período em questão enquadra-se
em um contexto que previa amplo programa de imigração estrangeira (par-
te do “projeto modernizador liberal”), no qual a liberdade de direitos civis
e religiosos era condição para sua realização. Mais uma vez a comparação
com o Brasil revela grande semelhança entre os dois países, pois também
nessa época o “liberalismo nacional mais esclarecido, aliado ao cientificis-
mo que ainda engatinha no País” (BARROS, 1971, p. 330), trata com clare-
za do “problema da imigração” (igualmente como um “projeto de moder-
nização”) e defende a liberdade de direitos, passando, pouco mais tarde, a
propor abertamente a separação entre Igreja e Estado11. Graças aos “libe-
rais avançados, republicanos ou não”, e aos “republicanos todos, liberais
ou positivistas”, “a questão religiosa se transforma num libelo contra a situa-
ção vigente” e envolve a Igreja e o Império.

11
“[...] Para o liberalismo de então a separação entre a Igreja e o Estado, se não era a única, era,
contudo, a principal condição para tornar o País atrativo ao imigrante, sequioso de uma nova
vida, mas não ao preço de suas crenças. Nos anos da questão religiosa, os debates do Parla-
mento e da imprensa giram com freqüência em torno deste tema: Saldanha Marinho, Cristia-
no Otoni, Silveira Martins e outros muitos batem repetidamente na mesma tecla” (BARROS,
1971, p. 331).

47
SEIDL, E. • Igreja e construção nacional no Brasil e na Argentina

Sistema escolar e formação de elites


Um último aspecto a ser aqui explorado dentro da problemática das
relações entre Igreja e Estado e os processos de construção nacional na
Argentina e no Brasil diz respeito ao papel da Igreja na estruturação do
sistema escolar e na formação de elites políticas, intelectuais e outras. Como
foi referido inicialmente, trata-se de uma dimensão ainda pouco explorada
pelas ciências sociais brasileiras (e, até onde se sabe, argentinas) e cuja ri-
queza pretende-se pelo menos esboçar a partir de algumas pistas encontra-
das na bibliografia.
Tendo em vista a organização dos sistemas educacionais nos dois
países, o traço fundamental que os diferencia reside exatamente em sua
relação com a instituição católica. Em que pese ambos terem um desenvol-
vimento semelhante durante o período colonial – dependendo de modo
praticamente exclusivo da administração católica do ensino –, o período
pós-independência na Argentina marca o início de tendência laicizante que
não encontrou paralelo no Brasil. Neste último, a grande maioria das insti-
tuições de ensino permanece privada e nas mãos de grupos religiosos, ca-
racterística que se estenderá até as primeiras décadas da República.
De fato, o peso do legado colonial católico na estrutura educacional
brasileira do Império e da República deve muito à forte presença de ordens
religiosas dispersas pelo território, dentre as quais destacam-se os jesuítas.
Com grande autonomia frente a Roma e à Coroa portuguesa, obedecendo
a regras próprias à cada instituição e com políticas definidas em relação a
questões vitais da colonização, sua penetração e consolidação como pro-
prietárias de grandes extensões de terras lhes permitiu desempenhar tarefas
importantes em um contexto de baixa institucionalização estatal. Quanto à
tarefa propriamente educativa, sobressai o empenho dos padres jesuítas em
estar presentes em diversas áreas da Colônia e de responder pelo forneci-
mento de um nascente ensino formal, obviamente não desvinculado do
objetivo catequizador de seu empreendimento institucional. Assim, se por
um lado sua preocupação, ao que parece, era menos com a educação do
que com a “difusão de um credo religioso” – dado um ensino marcado pelo
dogmatismo e a abstração –, por outro lado há que se considerar o sucesso
de sua obra mais ampla. Quando foram expulsos do Brasil, “a obra que

48
Poder, instituições e elites

pretendiam realizar estava praticamente consolidada: o país estava unido em


torno de uma mesma fé, sob uma mesma coroa” (WEREBE, 1971, p. 366).
A expulsão dos jesuítas do território brasileiro representou desagre-
gação ainda maior para o campo educacional, o qual passou a ser assegura-
do de modo irregular por outras ordens religiosas e por leigos. A partir das
primeiras décadas do século XIX, intensifica-se a participação religiosa no
ensino secundário12, ampliada com o retorno dos jesuítas, que retomam
suas atividades no setor educacional e fundam importantes colégios, tais
como o de São Luís, em Itu (1867); o Colégio Anchieta, em Nova Friburgo
(1886); e o Nossa Senhora da Conceição, em São Leopoldo (1870) (ibid., p.
374). Em 1837, é criado o Colégio D. Pedro II, por muito tempo o único
estabelecimento secundário oficial do país e que, apesar de público, teria
forte orientação religiosa, sendo em muitas ocasiões dirigido por religiosos.
Pelo lado argentino, como foi mencionado, percebe-se desde muito
cedo em suas constituições a previsão de um sistema educacional de cará-
ter público. Já nos textos de 1819 e 1826 impõe-se formalmente ao Con-
gresso Nacional a “obrigação de formar planos uniformes de ensino públi-
co, fazer construir escolas nacionais e prover e manter os estabelecimentos
deste gênero”. Os primeiros decretos tiveram por objetivo organizar o ensi-
no superior. “Rivadavia havia feito vir da Europa professores hábeis que
deram, sobretudo ao ensino das ciências, um poder e uma extensão desco-
nhecidas até então nas Universidades da América espanhola” (HIPPEAU,
s. d., p. 2). Com efeito, a este quadro vieram dar reforço as ideias contidas
no “projeto modernizador liberal” impulsionado pela “geração de 80”, for-
temente influenciada pelas ideologias “laicizantes” e “cientificistas” do li-
beralismo europeu e, em particular, do francês. Como enfatiza Farrell (1976,
p. 38), “o laicismo escolar era cópia do espírito laico reinante na Europa
[...], cuja problemática será trazida para cá por Amadeo Jacques. A proble-
mática europeia trasladou-se para o país, como uma antecipação do que
vai ocorrer várias vezes na história posterior, por ideólogos da direita ou da

12
Em 1820, os padres lazaristas fundam o Colégio Caraça de Minas Gerais, segundo os moldes
tradicionais jesuítas, tornando-se uma das mais importantes escolas secundárias do Império.
No final do período monárquico, surgem também as primeiras escolas secundárias vinculadas
a grupos protestantes, sobretudo metodistas. Cf. Werebe (1971, p. 375). Sobre o período poste-
rior, consultar Nagle (1977).

49
SEIDL, E. • Igreja e construção nacional no Brasil e na Argentina

esquerda”. Nesse sentido, a lei sarmentina de 1884 proclamando a exclu-


são do ensino religioso das escolas públicas consagrava o esprit du temps
reinante que se coloca em nome do “Estado” ou da “nação”, isto é, da
“política” entendida como “racional”, “moderna” e comprometida unica-
mente com questões temporais.
À intensa ofensiva “liberal” sobre domínios da Igreja Católica na
Argentina esta reagirá com a adoção de um plano de reorganização que
implica a criação de escolas em todos os níveis. Buscava-se, desta maneira,
“formar, frente à elite liberal, uma elite católica que possa com o tempo
chegar aos níveis de decisão política e a partir daí cristianizar as instituições
sociais, do modo como os liberais haviam-nas laicizado” (FARRELL, 1976,
p. 62). O estabelecimento dessas escolas católicas, em sua maioria a cargo
de ordens religosas, fortalecia o prestígio da Igreja, ao mesmo tempo em
que a aproximava tanto das classes médias emergentes quanto das classes
altas, temerosas frente ao fenômeno imigratório e ao novo movimento ope-
rário que surgia. Compartilhando em larga medida esses temores, a Igreja
encontrava na aproximação com aquelas camadas sociais um caminho para
tentar retomar sua antiga posição no espaço social e político argentino. De
par com essa tentativa de “cristianização” das elites dirigentes via sistema
escolar, a organização de um laicado e a criação de instituições católicas
(“centros”, “círculos”, “movimentos”) que levavam a palavra da Igreja para
junto das camadas populares tiveram papel estratégico no processo de reor-
ganização da instituição como força nacional relativamente autônoma e
capaz de difundir seus valores e princípios. A intensa atuação pastoral e
doutrinária da Igreja no “mundo operário”, de um lado, e a formação de
uma intelligentsia de dirigentes católicos detentores de recursos sociais im-
portantes (revistas, jornais, notoriedade), de outro, permitiram à Igreja rea-
dquirir gradualmente prestígio e influência na sociedade argentina do iní-
cio do século, condição que foi reforçada pela ascensão do nacionalismo na
década de 1930 e somente abalada pela perseguição empreendida por Pe-
rón em 1954.
No que toca ao período posterior à separação entre Igreja e Estado
no Brasil, o estudo de sua relações ao longo das primeiras décadas da Re-
pública revela dinâmica não muito distinta daquela vigente no Império, em
que pese a condição formalizada de distinção entre os dois poderes. Ou

50
Poder, instituições e elites

seja, mesmo sendo proclamada uma Constituição republicana que abole o


regime de união entre Igreja e Estado – e, portanto, desvincula a instituição
eclesiástica do aparato burocrático-administrativo do país –, permanece
objetivamente uma situação de interpenetração das esferas temporal e espi-
ritual, com todas as disputas decorrentes dessa condição. De modo seme-
lhante ao processo argentino de retomada de um projeto revitalizador pela
Igreja Católica após a ascensão de um “projeto liberal” que lhe era ofensi-
vo, o caso brasileiro demonstra um momento fundamental de estruturação
da instituição sobre novas bases, as quais, mais do que nunca, passarão por
uma estreita relação com o universo da “política” e seus determinantes.
Vale dizer, se a dependência e subordinação da Igreja frente ao Estado eram
agora extintas pelo novo regime, com a própria abolição do regime de pa-
droado, nada permite afirmar que aquela tenha limitado sua atuação ao
plano meramente espiritual de ação doutrinária. Pelo contrário, mantém-
se e até mesmo acentua-se a presença cotidiana da Igreja na maioria dos
eventos sociais, notadamente os de caráter “político”, da “vida nacional”,
fortalecida pela expansão de uma rede escolar católica.
Em pesquisa sobre as elites do clero católico na República Velha bra-
sileira, Sérgio Miceli (1988) aponta para várias dessas questões. De forma
geral, sua obra consiste em demonstrar, de um lado, os condicionantes do
processo de “construção institucional” da Igreja Católica após sua separa-
ção do Estado e, por outro – em estreita conexão com esse processo –, a
multiplicidade de determinantes sociais na formação da elite daquela insti-
tuição e suas relações com outras esferas sociais, em especial a esfera política.
Miceli tem um de seus focos postos no exame do estabelecimento e manuten-
ção de estreitas conexões entre o clero católico e as elites políticas regionais
ao longo da Primeira República. Ao evidenciar a simultaneidade do proces-
so de autonomização da Igreja frente ao Estado após o declínio do governo
monárquico e o consequente fim do regime de padroado – o que resulta no
que Miceli chama de “‘estadualização’ do cenário eclesiástico”13 –, são abor-

13
Como demonstra Miceli (1988, p. 67),”ao brindar todos os estados brasileiros com pelo menos
uma diocese, a Igreja passou a dispor de um sistema interno de governo que se pautava pelas
linhas de força que presidiram à montagem do pacto oligárquico [...]”. “A política de ‘estaduali-
zação’ foi implementada através de estratégias diferenciadas conforme o peso político e a
contribuição econômica de cada unidade federativa para a manutenção do pacto oligárquico

51
SEIDL, E. • Igreja e construção nacional no Brasil e na Argentina

dados não apenas a funcionalidade das trocas entre as altas esferas católi-
cas e os membros das oligarquias locais, mas também os reflexos dessas
relações sobre os mecanismos de formação da elite do clero. Como se pode
perceber com certa nitidez, se, de um lado, a estreita conexão das frações
mais altas da hierarquia católica com as elites dirigentes regionais foi fun-
damental para a criação de uma estrutura institucional religiosa sólida –
posto que esta se autonomizava frente ao Estado tanto no aspecto material
e financeiro quanto no organizacional e doutrinário –, de outro lado, os
critérios de ocupação de cargos de liderança não ficaram imunes às influên-
cias determinadas pelos grupos detentores de recursos sociais significati-
vos, tais como propriedades econômicas, um determinado capital político e
social e, ligado sem dúvida a estes trunfos, um capital de honorabilidade.
Outro aspecto para o qual o trabalho de Miceli e também os de ou-
tros pesquisadores (DE BONI, 1980; TRINDADE, 1982) chamam a aten-
ção diz respeito à constituição, com maior intensidade a partir do início do
século, de um mercado de ensino fortemente dominado pelas escolas cató-
licas, e que, de acordo com Miceli (ibid., p. 23), foi a “alavanca mais dinâ-
mica e rentável dos empreendimentos eclesiásticos no período em apreço”.
Por outro lado, se esta expansão da rede educacional sob o domínio da
Igreja se deu em quase todo o país, parece ter sido no Rio Grande do Sul,
como mostram De Boni e Trindade, que ela alcançou maior intensidade e
importância dentro da dinâmica social14. Diretamente relacionada à vinda
de padres e religiosos de várias ordens da Europa – iniciada já na metade
do século passado – à região de imigração daquele estado, a criação de
casas de formação eclesiástica, noviciados, seminários e educandários viu
surgir dos diversos estabelecimentos instalados uma elite que, “aos poucos,
acompanhando a ascensão econômica da imigração, foi-se projetando no

e, consequentemente, em função da margem de influência e prestígio já conquistada pela Igre-


ja, do grau de receptividade à sua contribuição por parte dos círculos dirigentes locais e do
potencial de mobilização dos católicos como grupos articulados de pressão a ponto de influir
sobre as decisões governamentais suscetíveis de afetar as áreas vitais de interesse para a pró-
pria organização eclesiástica”.
14
Uma lista extensa contendo os nomes das escolas, as ordens religiosas à que pertenciam e as
datas em que foram instaladas em Porto Alegre e no resto do Rio Grande do Sul é fornecida
por De Boni (1980, p. 246-247). Uma análise da dinâmica de implantação e expansão institu-
cional católica naquele estado pode ser encontrada em Seidl (2003).

52
Poder, instituições e elites

cenário estadual e nacional. Esta elite, na Igreja, assumiu posições relevan-


tes de mando e liderança, com padres, bispos e cardeais de renome interna-
cional” (DE BONI, 1980, p. 245).
Como parte de um projeto mais amplo de reorganização católica
naquele estado, que visava a atingir toda a vida social (incluindo, além das
paróquias, também sindicatos, organizações patronais, cooperativas, jor-
nais, etc.), o controle de uma rede extensa de escolas (que culminaria com a
criação de uma universidade na década de 40) espalhadas ao longo de toda
a região permitia à Igreja uma influência de grande peso na formação inte-
lectual daquelas camadas sociais que dispunham dos recursos necessários
para desfrutar do ensino privado que lhes era oferecido. Um dos resultados
da forte presença católica no âmbito educacional e cultural no Rio Grande
do Sul, de acordo com as indicações de Trindade, foi a constituição na
década de 20 de uma “geração católica” reunindo grande diversidade de
elementos, a qual, “além de atuar no domínio do político, do científico, do
religioso e do universitário, trabalhou em todos os setores da atividade hu-
mana desde o plano moral, que orienta diretamente na privacidade de cada
indivíduo, até a atividade profissional” (1982, p. 39). Formados principal-
mente dentro de uma “rigorosa” tradição intelectual jesuítica15 – e em larga
medida em oposição à “geração positivista” que se destacou até os anos 30
–, seus integrantes lograram organizar-se em diversas instâncias do espaço
social, como a esfera educacional (tanto nas escolas ginasiais quanto poste-
riormente nas faculdades de maior prestígio, como Medicina, Engenharia,
Direito e Filosofia) e a esfera política (Liga Eleitoral Católica).
Embora tal projeto de rearmamento institucional da Igreja Católica,
como o chama Miceli (1979), pareça ter sido mais vigoroso no Rio Grande
do Sul, ele não pode ser desvinculado de uma estratégia que também englo-
ba os grandes centros nacionais, onde terá maior repercussão. Como mos-

15
A presença da ordem dos jesuítas no Rio Grande do Sul, não considerando as primeiras mis-
sões que foram expulsas, remonta à vinda de padres espanhóis em 1842. Suas atividades do-
centes iniciaram-se em 1869, no Colégio Nossa Senhora da Conceição de São Leopoldo, já
com os jesuítas alemães, que, a partir do seu fechamento como externato em 1907, dedicaram-
se intensamente ao Colégio Anchieta, em Porto Alegre, criado em 1890 e “principal responsá-
vel pela formação da ‘geração católica’”. Para maiores detalhes, ver Trindade (1982) e Mon-
teiro (2011).

53
SEIDL, E. • Igreja e construção nacional no Brasil e na Argentina

tra aquele autor, desde o início dos anos 20 a Igreja aferra-se ao “ideal de
ampliar suas esferas de influência política através da criação de uma rede
de organizações paralelas à hierarquia eclesiástica e geridas por intelectuais
leigos”. Deste modo, a instituição empenhou-se em “preservar e expandir
sua presença em áreas estratégicas como o sistema de ensino, a produção
cultural, o enquadramento institucional dos intelectuais, etc.”, e, “em troca
da manutenção de seus interesses em setores onde a intervenção do Estado
se fazia sentir de modo crescente (o sistema educacional, o controle dos
sindicatos, etc.), a Igreja assumiu o trabalho de encenar grandes cerimônias
religiosas das quais os dirigentes políticos podiam extrair amplos dividen-
dos em termos de popularidade” (ibid., p. 51). Desta forma, a união, já não
mais legalmente formalizada, entre a “cruz e a espada” mostrava agora sua
funcionalidade a ambas as partes. Não apenas Estado e dirigentes políticos
eram auxiliados e legitimados no trabalho de organização do país, mas tam-
bém a Igreja Católica adquiria espaço e estrutura próprios aos seus objeti-
vos institucionais.
Quanto às relações entre Igreja e campo intelectual, duas instituições
de enquadramento intelectual receberam a incumbência de congregar o
núcleo de intelectuais leigos que passaram a atuar como porta-vozes orgâ-
nicos dos interesses da Igreja: a revista A Ordem (1921) e o Centro Dom
Vital (1922). Ao criar centros de difusão doutrinária e de tomada de posi-
ção sobre uma série de questões temporais, reunindo e formando uma inte-
lectualidade socialmente reconhecida, a Igreja ampliava significativamente
seu espectro de atuação no espaço social16 e entrava com maior força nas
disputas pela definição e classificação das questões “sociais” e “políticas” a
serem legitimamente tratadas.
Da mesma forma que outros grupos de intelectuais, o que incluía
uma fração escolarizada do Exército, reivindicavam uma “vocação para

16
Entre as agremiações organizadas pela Igreja, destacam-se a Ação Universitária Católica, que
mobilizava estudantes das grandes cidades, o Instituto Católico de Estudos Superiores (embrião da
futura Pontifícia Universidade Católica), editoras (Agir), além de organizações ligadas à esfe-
ra literária, como a revista Festa (publicada no Rio de Janeiro). Cf. Sérgio Miceli,1988, p. 52. De
modo semelhante, também na Argentina é criada em 1928 a revista Criterio, a qual ganha relevo
nos anos 1930, subordinando-se às rígidas normas da Ação Católica e à censura eclesiástica. Cf.
Fausto & Devoto, 2004, p. 219.

54
Poder, instituições e elites

elite dirigente”, como aponta Daniel Pécaut (1990), também os intelectuais


seduzidos pelo movimento católico organizado em torno do Centro Dom
Vital manifestavam sua posição frente à “grande questão” da época: “como
organizar a nação”. “[...] Leitores de Joseph de Maistre, Charles Maurras,
Henri Massis, Léon Bloy, Jacques Maritain e outros – sonhavam com uma
contrarrevolução católica. Jackson de Figueiredo (um dos principais expo-
entes desse grupo e dirigente do Centro Dom Vital) acreditava que somente
a religião poderia assegurar a base da nação”. Alceu Amoroso Lima, outro
líder intelectual católico e também dirigente do Centro, “transformou-se
em guardião vigilante de uma ordem moral e, após 1930, em incansável
defensor da tutela da Igreja sobre o ensino público” ( ibid., p. 28). Tomando
a própria “cultura” como seu veículo, a criação de meios variados de divul-
gação do pensamento católico – simpatizante de um nacionalismo conser-
vador – mostrou ser instrumento de peso na constituição da Igreja como
ator social de primeira grandeza, um dos próprios pilares de construção da
nação.

Considerações finais
Como foi indicado inicialmente, o exercício de comparação aqui re-
alizado não propôs respostas definitivas sobre o papel da variável religiosa
nos processos de construção nacional argentino e brasileiro. Sua função
consistiu em trazer elementos para uma problematização coerente do tema
e, a partir daí, apontar possibilidades de construção de objetos de pesquisa.
Dentro desta orientação, destacou-se a fertilidade analítica de abordagens
da Sociologia Histórica que rompem com pressupostos deterministas, ao
mesmo tempo em que abrem um espectro de exame de fenômenos políti-
cos e, dentro destes, dos processos de formação estatal em contextos ex-
traeuropeus ou “periféricos”.
Dentro dos propósitos do estudo, a intenção principal com o uso de
tais enfoques foi tentar esboçar as especificidades dos fenômenos estatais e,
de modo mais amplo, da própria dinâmica de construção do “político” em
determinados contextos sociais e culturais, buscando-se, assim, escapar às
comparações tradicionais num suposto modelo ocidental. Noções como
“importação”, “readaptação” e “hibridação” de modelos políticos e outros

55
SEIDL, E. • Igreja e construção nacional no Brasil e na Argentina

bens simbólicos servem, deste modo, como instrumentos analíticos valio-


sos para pensar a constituição de uma esfera “política” interpenetrada por
outras esferas sociais em determinados meios culturais, como é o caso das
sociedades latino-americanas.
Nessa direção, o exame das relações entre Igreja e Estado no período
de construção nacional argentino e brasileiro revela alto grau de imbrica-
ção entre essas duas esferas, as quais inclusive permanecem por muito tem-
po indistintas, servindo a Igreja como fonte privilegiada de serviços admi-
nistrativos ao precário aparato estatal. Também dentro desta ótica deve ser
entendido o constante envolvimento direto do clero na política formal, ou
então, de modo ainda mais intenso, em movimentos políticos revolucioná-
rios e em alianças com frações da elite dirigente, indicando a existência de
contextos sociais nos quais a dimensão política é supervalorizada, isto é,
contextos de hiperpolitização, como dizem Bertrand Badie e Guy Hermet.
Conforme visto, tanto a Argentina quanto o Brasil apresentam em
seus processos de construção política um padrão de relacionamento entre
Igreja e Estado que segue em larga medida os mesmos traços. Ambos os
países têm na longa subordinação da Igreja ao poder do Estado um ins-
trumento funcional ao empreendimento de construção de uma unidade nacio-
nal e, ao mesmo tempo, uma forma de cerceamento de poderes concorren-
tes ao centro político. Sintetizando a discussão em linhas gerais, Fausto &
Devoto (2004, p. 136) apontam que “as elites de ambos os países tinham
perseguido objetivos comuns de uma modernização que implicava redução
do espaço da Igreja Católica e a criação de um Estado laico”. Por outro
lado, e de modo ambíguo, “também em ambos os países, as próprias elites
limitavam o processo, ao combiná-lo com a ideia de utilidade da Igreja
como mecanismo de controle e consenso social”.
Encarregado de levar a palavra da Igreja sem jamais deixar de lado
aquela do Estado, o clero católico difundiu por vastos territórios a ideia de
obediência ao Estado, por menos clara que esta fosse, levando aos habitan-
tes uma série de novas categorias identitárias e de lealdade, como “nação”
e “nacionalidade”. Nesse aspecto, o peso da Igreja dentro do sistema esco-
lar adquire especial relevância e se constitui, provavelmente, no principal
traço divergente entre as realidades argentina e brasileira, embora não se
creia que ele possa explicar – sem ser conjugado com outras variáveis – as

56
Poder, instituições e elites

diferenças nos seus padrões de construção do Estado. De todo modo, este é


um ponto que merece investigação comparativa sistemática que implique
exploração de grande variedade de fontes.

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59
60
Poder, instituições e elites

Driblando escalas: nota sobre a comparação


histórica dos regimes batllista (Uruguai, 1903-1933)
e castilhista (Brasil: RS, 1891-1930)1

Flavio Heinz

Neste texto, analisamos certas características da trajetória social e


intelectual das equipes dirigentes de dois partidos governantes, o Partido
Republicano Rio-Grandense e o Partido Colorado (Uruguai), no final do
século XIX e primeiras três décadas do século XX, a partir de duas variá-
veis principais: [1] primeiro, a orientação intelectual dominante nos meios
políticos e partidários em questão, focalizando a problemática da recepção
e incorporação política e programática do “positivismo” entre os republi-
canos castilhistas e do “krausismo” pelos colorados uruguaios sob a égide
do batllismo; [2] segundo, o impacto das origens sociais e da orientação inte-
lectual e política dominante em cada grupo partidário na formação das
políticas públicas e consequente definição dos perfis social e econômico do
Estado nacional uruguaio e do RS. Busca-se verificar nestas elites elemen-
tos que permitam explicar a convergência de práticas político-administrati-
vas ao longo destes anos: ênfase no dirigismo econômico estatal; discipli-
namento ideológico; direcionamento não oligárquico da ação estatal, in-
corporação de novos grupos sociais e expansão em número e qualidade das
políticas sociais. Para tanto, algumas questões orientam nossa reflexão:
Quais as possibilidades e os limites da análise comparada quando oscila-
mos entre casos de diferente grandeza, como este de tipo nacional/regio-

1
Este texto foi originalmente publicado em espanhol sob o título “Elites, estado y reforma en
Uruguay y Brasil meridional: castilhismo y batllismo en perspectiva comparada – El caso de las
elites de Rio Grande do Sul en la transición del siglo XIX al XX”. In: REGUERA, Andrea. Los
rostros de la modernidad – Vías de transición al capitalismo, Europa y América Latina, siglos XIX-XX.
Rosario: Prohistoria Ediciones, 2006.

61
HEINZ, F. • Driblando escalas: nota sobre a comparação histórica dos regimes batllista e castilhista

nal? Como pensar a questão da circulação e recepção de ideias políticas no


final do século XIX na região platina? Se pensarmos a disseminação de
práticas e a implementação de políticas como oriundas do ambiente político
e intelectual vivenciado pelas elites políticas, como entender que a partir de
circunstâncias políticas e intelectuais diferenciadas em curso no Uruguai e
no RS tenha sido possível o aparecimento de um modelo – em princípio –
semelhante de intervenção pública e reforma social?

*****

Este texto discute o papel das elites políticas do estado do Rio Gran-
de do Sul, Brasil, e de seu ambiente intelectual – com a influência doutriná-
ria do positivismo comtiano –, para a consolidação e disseminação de uma
ideia de intervenção estatal de caráter reformista e “modernizador” assu-
mida pelos governos do Partido Republicano Rio-Grandense durante o
período da República Velha (1889-1930). Nesta perspectiva, da ação das
elites rio-grandenses resultariam políticas públicas que influenciaram forte-
mente a definição do cenário econômico regional e que seriam, anos mais
tarde, a inspiração política e intelectual das políticas de regulação social e
intervenção econômica postas em ação durante o 1º período Vargas (1930-
1945). Ao longo de nossa apresentação, buscaremos oferecer elementos para
a comparação do caso em questão com o processo em curso no Uruguai
durante o período de intensa mobilização reformista econômica e social
dito batllista das administrações do Partido Colorado, entre 1903 e 1933.
Um estudo sobre as experiências de gestação e formação de políticas
públicas na América Latina deveria necessariamente interessar-se pela óti-
ca da ação de grupos/elites dirigentes e pela história do pensamento políti-
co que orientou os processo de modernização do Estado latino-americano
em curso no começo do século XX. Assim, a comparação, por exemplo,
das equipes governantes ligadas ao Partido Republicano Rio-Grandense
(PRR), no período 1891-1930, sob a influência do castilhismo2, e do Partido

2
Por castilhismo entende-se o período de influência política das ideias de Júlio Prates de Casti-
lhos (1860-1903), fundador do PRR, do jornal republicano A Federação e principal liderança
republicana do Rio Grande do Sul. Castilhos foi deputado à Constituinte Nacional e autor da

62
Poder, instituições e elites

Colorado, no Uruguai, sob o batllismo3, mapeando traços intelectuais e ideoló-


gicos e tentando perceber sua influência na ação política destes grupos nos
respectivos Estados, ofereceria algumas pistas para o entendimento das for-
mas de produção do welfare state e/ou do estado nacional-desenvolvimen-
tista no continente. Caracterizados pela relativa autonomia de suas iniciati-
vas políticas em relação aos setores oligárquicos então economicamente
dominantes no Rio Grande do Sul e no Uruguai, os grupos dirigentes em
questão marcaram suas ações pela implementação acelerada de políticas
públicas agressivas de intervenção e modernização econômica ou de refor-
ma social, definiram o padrão da presença estatal no desenvolvimento eco-
nômico de suas regiões – que persistiria por boa parte do século XX – e a
nova configuração social dos centros urbanos, sobretudo pela incorporação
subordinada de novos grupos sociais urbanos – classes médias e operariado
– ao campo político.
No que toca especificamente ao caso brasileiro, em um já clássico
texto sobre o surgimento da perspectiva desenvolvimentista e do Estado-
providência no país, Alfredo Bosi indicava a presença, ainda em fins do
século XIX, de uma matriz positivista no modelo desenvolvimentista brasi-
leiro – antecipando-a, portanto, em muito à perspectiva cepalina – e a asso-
ciava a ideias que à época circulavam nas capitais platinas e cuja incorpora-
ção nos meios políticos e intelectuais era acompanhada por uma redefini-
ção do papel atribuído ao Estado na regulação social e na intervenção na

carta constitucional do Rio Grande do Sul (Constituição de 14/7/1891), tendo dirigido o esta-
do entre 1892 e 1897. Mesmo após sua morte, Castilhos seguiu sendo a principal referência
política e moral dos republicanos do Rio Grande do Sul. Seu governo e, por analogia, seu
período de maior influência na política regional foram caracterizados pelo autoritarismo go-
vernamental, intervencionismo econômico, disciplina férrea imposta aos militantes republica-
nos, defesa ideológica das virtudes da ditadura científica positivista e pelo combate sistemático
à dissidência e à oposição. Foi sucedido por Antônio Augusto Borges de Medeiros, herdeiro e
propagandista de sua obra política. Borges foi constituinte em 1891, desembargador em 1892 e
chefe de polícia em 1895, e governou o Rio Grande do Sul entre 1897 e 1908 e entre 1913 e
1928; daí a denominação do período em análise também como castilhista-borgista.
3
Por batllismo entende-se o longo período de influência de José Batlle y Ordoñez, duas vezes
presidente, na vida política uruguaia. Para o nosso interesse neste artigo, limitar-nos-emos a
tratar o período conhecido como primeiro batllismo, entre os anos de 1903 a 1933. O termo
batllismo será aqui utilizado para nos referirmos às ações e à obra governamental de caráter refor-
mador empreendida pelo grupo político do Partido Colorado, liderado por Batlle durante todo o
período, e não apenas durante seus dois mandatos presidenciais, i.e., 1903-1907 e 1911-1915.

63
HEINZ, F. • Driblando escalas: nota sobre a comparação histórica dos regimes batllista e castilhista

vida produtiva do país. Segundo o autor, a “historiografia política [apenas]


começa[va] a aclarar os modos pelos quais um ideário importado [havia]
podi[do] nutrir uma ideologia de longa duração capaz de legitimar a ação
intervencionista do poder público em um contexto local e, depois da Revo-
lução de Trinta, nacional” (BOSI, p. 277). No desenvolvimentismo brasi-
leiro haveria, assim, a marca evidente do positivismo instrumentalizado e
militante que os dirigentes republicanos, isto é, pertencentes aos quadros
do Partido Republicano Rio-Grandense4, haviam implantado regionalmente,
no sul do país, em sequência ao golpe republicano, sobretudo a partir da
Constituição Rio-Grandense de 14 de julho de 1891 e da vitória sobre os
opositores federalistas5 na Revolução de 1893-1895. Se a chamada Consti-
tuição do 14 de Julho inovava pela organização proposta para o Estado e
pelos dispositivos fiscais previstos, a vitória sobre os opositores marcava o
início de um período de hegemonia dos republicanos liderados por Júlio de
Castilhos no cenário regional, situação que só seria brevemente ameaçada
por ocasião de um novo enfrentamento armado, em seguida à última recon-
dução do mandato do presidente do Estado, Borges de Medeiros, em 1923.
Na mesma época, experiências sociais análogas se desenvolviam na
foz do Prata, o que permitia ver na experiência rio-grandense um viés mais
sistêmico, menos “exótico”. Com efeito, como notou Bosi, “não se trata[va],
a rigor, de uma idiossincrasia local. As mesmas ideias informavam os pro-
jetos estatizantes dos colorados uruguaios [...]6. O Rio Grande do Sul, o

4
Fundado ainda sob a monarquia, em 1882, o PRR foi a força hegemônica da política regional
durante todo o período da República Velha, isto é, de 1889 a 1930, passando por contestações
episódicas em 1891-92, pela guerra civil conhecida como Revolução Federalista, entre 1893-
1895, e pela Revolução de 1923.
5
O Partido Federalista, criado em 1892, recuperou parte expressiva das antigas lideranças que,
sob a monarquia, dirigiram o Partido Liberal e controlaram a política na Província do Rio
Grande. Durante praticamente todo o período, o Partido Federalista representou a principal
força política de oposição à hegemonia republicana no Rio Grande do Sul.
6
Do industrialismo utópico de Saint-Simon e do positivismo social de Comte emerge a primeira
“vertente ideológica voltada para retificar o capitalismo mediante propostas de integração das
classes a ser cumprida por uma vigilante administração pública dos conflitos”. Para Bosi, a
inspiração profunda desta vertente é ética e, “tanto em Saint-Simon quanto em Comte, evoluiu
para um ideal de ordem distributivista”. Assim, o positivismo social, “transferido quase em
estado puro para o contexto republicano gaúcho (ou variamente combinado com o racionalis-
mo krausista, no Uruguai colorado), deu à nova configuração econômica modelos de ação
política cuja coerência interna ainda impressiona” (BOSI, p. 282).

64
Poder, instituições e elites

Uruguai e a Argentina, ressalvadas as diferenças de escala, eram formações


sócio-econômicas similares. Nas três, a economia pecuária e exportadora,
firmemente implantada ao longo do século XIX, teve de enfrentar, desde os
fins deste, a alternativa menor, mas dinâmica, da policultura voltada para o
mercado interno e das novas atividades urbanas de indústria e serviços.
Agricultores operosos carentes de crédito oficial, industriais de pequeno e
médio porte estabelecidos nas cidades maiores e uma crescente classe de
assalariados vindos com as grandes migrações europeias passaram a cons-
tituir polos de necessidades e projetos não raro opostos aos velhos estan-
cieiros e ganaderos. [...] Daí terem-se formado, nas três regiões contíguas,
grupos de pressão que demandavam políticas de estado resistentes, quando
não francamente contrárias ao laissez-faire propício ao setor oligárquico-ex-
portador” (BOSI, p. 281).
Se é verdade que a ideia da origem rio-grandense e positivista do “de-
senvolvimentismo” brasileiro não é partilhada pelo conjunto dos historia-
dores brasileiros, torna-se, contudo, cada vez mais frequente o recurso à
pista regional e à variável positivista para a explicação das origens da ideia
da intervenção e da regulação social que caracterizaram o Estado brasileiro
pós-30 (CARVALHO, 2001, p. 111-112). Assim, a ascensão de Vargas ao
poder em 1930, num quadro de cisão intraoligárquica, esconderia um sig-
nificado importante, a saber, o deslocamento para o primeiro plano da cena
política do Estado brasileiro de uma perspectiva diversa daquela das elites
regionais envolvidas na condução política da república oligárquica que, no
Brasil, sucedera a monarquia: as elites gaúchas, representadas na figura de
Getúlio Vargas, ex-ministro da Fazenda de Washington Luís e presidente
do Estado do Rio Grande do Sul, traziam ao centro do poder federal a
experiência administrativa e política da gestão do Partido Republicano Rio-
Grandense, fortemente antiliberal nas práticas econômicas e doutrinaria-
mente autoritário na esfera política. Este “ideário reformista, comum aos
tenentes e aos líderes do Partido Republicano Rio-Grandense, irá funda-
mentar o programa da Aliança Liberal7 vitoriosa em outubro de 30” (BOSI,
p. 280).

7
Nome dado à coalizão partidária encabeçada por Vargas nas eleições presidenciais de 1930.

65
HEINZ, F. • Driblando escalas: nota sobre a comparação histórica dos regimes batllista e castilhista

Alçado à presidência por uma coalizão envolvendo elites regionais


periféricas – ou simplesmente não incluídas no pacto governativo federal –,
dissidências políticas da elite paulista e tenentes – jovens oficiais do Exército
que, nos anos 20, haviam angariado prestígio e simpatia junto à população
por meio de ações armadas espetaculares e uma ambígua agenda política
reformista e antioligárquica –, Vargas era provavelmente o mais liberal dos
políticos rio-grandenses de estatura nacional, o que o credenciava para uma
disputa presidencial nacional. Mas este membro da chamada “geração de
1907”, testado nas posições diretivas do PRR e na presidência do Rio Grande
do Sul, era também um profundo conhecedor das possibilidades que a dire-
ção centralizadora dos negócios do Estado e a prática política autoritária
ofereciam para governante (LOVE, 1975). Assim, na raiz das transforma-
ções brasileiras pós-1930 estaria a experiência política e administrativa de
quase 40 anos dos republicanos rio-grandenses, e o positivismo teria sido o
núcleo intelectual e doutrinário desta experiência. “Parece indiscutível [...]
que a mais tarde denominada ideologia desenvolvimentista foi gestada não na
década de 1940, ou no pós-guerra, mas na década de 1920; e que sua raiz
encontra-se no positivismo8, o qual liberava-se de sua forma inicial para,
através do crédito e do intervencionismo, afirmar seu princípio doutrinário
da busca da harmonia social” (FONSECA, 1988, p. 17).

Positivismo e krausismo
Lideranças intelectuais e políticas republicanas, ainda sob o Império,
interessavam-se pelas possibilidades do discurso do “progresso dentro da
ordem”, perfeitamente ajustável às necessidades das elites brasileiras no

8
Para Bosi, o “termo développement no sentido forte de progresso material e social já comparece
em Saint-Simon e no jovem Comte [que fora seu secretário particular]. Para estabelecer o siste-
ma seria indispensável instaurar uma economia planejada que regulasse o desenvolvimento da
nação como um todo. A Lei interviria, se preciso, até o limite de abolir o instituto da herança,
um dos maiores óbices criados ao progresso por manter privilégios individuais em detrimento
da solidariedade social. [...] Quanto aos ganhos pecuniários que a produção trouxesse para o
capital, poderiam ser redimidos de qualquer mancha egoísta pela instituição de uma sociedade
altruísta, termo cunhado então para designar um regime próspero e distributivo [...]. Nascia,
deste modo, o ideal reformista do Estado-Providência: um vasto e organizado aparelho público
que ao mesmo tempo estimula a produção e corrige as desigualdades do mercado” (BOSI, p.
273-274).

66
Poder, instituições e elites

período. Assim, as “instituições imperiais deveriam ser abolidas, entre as


quais a escravidão, e o ‘marasmo’ do Império deveria ser substituído por
um governo disposto a enfrentar os grandes problemas do país, como o seu
atraso: era preciso, pois, romper com a estagnação para alcançar o progresso”.
No caso do Rio Grande do Sul, abandonar seu caráter exclusivamente pe-
cuário e fomentar a policultura e a imigração, capacitando a economia lo-
cal para ganhar o mercado nacional e enfrentar as crises com menor vulne-
rabilidade. Assim, o progresso [...] não deixava de significar desenvolvi-
mento das forças produtivas capitalistas [...]” (FONSECA, 1988, p. 14).
Ao se situarem doutrinariamente, através do positivismo, de forma
antagônica ao liberalismo, os republicanos gaúchos aproveitaram para de-
nunciar a incapacidade deste em fazer frente aos problemas administrati-
vos, bem como sua propensão a gerar o caos político. O positivismo apare-
cia aos olhos dos republicanos gaúchos como “uma doutrina científica que
possibilitava a organização da política e da administração do estado de uma
forma verdadeiramente democrática, onde o bem geral, a incorporação do
proletariado à sociedade e a administração pública voltada para os interes-
ses das classes produtoras se realizava completamente. No positivismo o
PRR encontrou um modelo para as instituições políticas autoritárias que
implantou no estado” e “através dele [...] construiu um discurso não-oli-
gárquico e [...] apresentou estas instituições como as únicas capazes de res-
ponder às necessidades da população” (PINTO, p. 108).
Paralelamente, a expansão da ideologia krausista9 em meio aos seto-
res emergentes da elite política uruguaia – e também argentina –, em fins
do século XIX, também significou o atendimento a certas necessidades de
afastamento e liberação do peso da tradição católica, de combate ao cienti-
ficismo positivista (por demais representativo, nestes países, das pretensões

9
Relativo ao pensamento e à doutrina de Karl Christian Friederich Krause, nascido em Eisen-
berg, em 1781, e morto em Munique, em 1832. Krause, que elaborou um sistema filosófico
próprio, o “racionalismo harmônico”, foi introduzido no espaço intelectual ibérico da década
de 40 do século XIX, através de traduções de obras de dois de seus discípulos, Heinrich Ahrens
e Guillaume Tiberghien. A disseminação da doutrina krausista entre intelectuais liberais espa-
nhóis a levou, em seguida, ao conhecimento e incorporação ao ambiente político e intelectual
de várias nações hispano-americanas, como o Uruguai e a Argentina. No Brasil, o pensamento
krausista ficou restrito às faculdades de Direito e pouco ou nenhum efeito teve no que concerne
a uma eventual incorporação pelas elites políticas.

67
HEINZ, F. • Driblando escalas: nota sobre a comparação histórica dos regimes batllista e castilhista

intelectuais da oligarquia) e, por fim, de incentivo à mobilização política.


Segundo Monreal, a atração exercida pelo sistema krausista se dera por-
que: (a) “en tanto que sistema amplio y armónico, el krausismo oferecía
respuestas o al menos vías de reflexión para todas las cuestiones que inqui-
etaban el hombre del siglo XIX. En los numerosos libros escritos por Krau-
se [...] aparecían concepciones metafísicas, religiosas, morales, pedagógi-
cas acompañadas frecuentemente de propuestas para la acción”; (b) “se
trataba de [...] un sistema espiritualista que reemplazaba la antropología y
la cosmología cristianas pero que guardaba puntos de contacto con ellas.
Las almas liberales se sentían liberadas del dogma católico y de los precep-
tos de la moral cristiana, pero adherían a un deísmo fundado en la razón y
a una moral del deber”; (c) “el krausismo se manifestaba también como
una filosofía que lanzaba a sus discípulos a la acción y los comprometía en
la transformación de la sociedad. No se trataba solamente de comprender y
de explicar el hombre y el mundo, sino de transformalos” (MONREAL, p.
169-170).
Ainda às margens do Prata, a incorporação das ideias de Krause não
foi menos significativa em meio à elite política argentina. Analisando a
influência do krausismo na formação intelectual dos dirigentes da União
Cívica Radical, nos primeiros anos do século XX, por exemplo, David Rock
afirmou que a “ideología radical efectiva estaba fuertemente impregnada
de un tono notoriamente ético y trancendentalista. Su énfasis en la función
orgánica del Estado y en la solidaridad social presentaba un agudo contras-
te con el positivismo y el spencerismo de la oligarquía, y a menudo tenía
notables reminiscencias de Krause. La importancia de estas ideas, que ha-
bitualmente se expresaban de una manera confusa e incoherente, era que
armonizaban con la noción de la alianza de clases que el radicalismo termi-
nó por representar, y que habría sido mucho más difícil de alcanzar si hubi-
era adoptado doctrinas positivistas” (ROCK, p. 63). É interessante notar
que, embora contrastados no discurso, os sistemas de ideias presentes na
região, krausismo e positivismo, acabavam sugerindo uma percepção co-
mum, não oligárquica e, em certa medida, solidarista, às elites políticas
emergentes do Partido Colorado e do Partido Republicano Rio-Granden-
se, e isso porque o positivismo [político] adaptado em sua variante sul-bra-
sileira realçava muito mais os compromissos dos governantes com a inter-

68
Poder, instituições e elites

venção reguladora e harmonizadora no mundo social, ou ainda a necessi-


dade de incorporação das classes, do que o tom cientificista e socialmente
determinista que caracterizava sua apropriação pelas oligarquias platinas.

A ação política explicada pela ideologia


A perspectiva que vê na ação dos dirigentes do Partido Republicano
Rio-Grandense (PRR), formação política regional hegemônica na maior
parte do período que vai do golpe republicano de novembro de 1889 à as-
censão de Vargas ao poder em 1930, uma intenção modernizadora e antio-
ligárquica, sustentada pela disciplina partidária e coesão ideológica positi-
vista, opõe-se a outra que percebe tal perspectiva exatamente como a re-
sultante do trabalho de mistificação política e pregação doutrinária deste par-
tido, armadilha ideológica à qual teriam sucumbido os historiadores atuais.
Esta clivagem é aqui ilustrada pelas teses relativas ao Estado rio-grandense
no período da República Velha, com os trabalhos de Ronaldo Herrlein Jr.
(2000), Luiz Roberto Pecoits Targa (2002) e Gunter Axt (2001).
Para Targa, amparado em vasta documentação de natureza econô-
mica e fiscal, é no Rio Grande do Sul que se funda o Estado burguês brasi-
leiro, muito antes deste esboçar-se no restante do país. O autor sugere que a
análise histórica e econômica influenciada pela perspectiva centro-periferia
invisibilizou o fato de que a revolução burguesa no Brasil se dera, primordial-
mente, no Rio Grande do Sul, única região do país a substituir no início da
República o Estado oligárquico-patrimonial a partir da realização de três
“tarefas” fundamentais pela vanguarda republicana e positivista no poder:
(a) a criação da autonomia do Estado em relação à classe dominante, obtida
através da derrota da “fração mais numerosa, militar e politicamente mais
poderosa da classe dominante regional: a dos pecuaristas do Partido Libe-
ral da fronteira sudoeste (Campanha)”, na revolução de 1893-1895; (b) a
realização da separação entre esfera pública e esfera privada, entre 1895 e 1906,
através da retomada e oferta à colonização de terras públicas ilegalmente
apropriadas pelas oligarquias rurais no período final do Império; e (c) a
realização de uma reforma fiscal, abandonando a estrutura fiscal do Estado
oligárquico, patrimonialista e mono-agro-exportador, substituindo-se o
imposto de exportação pelo imposto territorial, gravando primordialmente

69
HEINZ, F. • Driblando escalas: nota sobre a comparação histórica dos regimes batllista e castilhista

a grande propriedade e tornando o erário menos dependente face às suas


receitas clássicas, i.e., impostos de importação e exportação (TARGA, 2003a,
p. 7).
O Estado buscaria diversificar (ampliando os itens da base exporta-
dora) e desonerar as exportações, diminuindo já em 1893 as taxas aplicadas
às exportações, variando de percentuais de 9, 10 e 13 durante o Império
para 4, 6 e 10 naquele momento, segundo a mercadoria. Durante o perío-
do, reduziu-se a participação das exportações no conjunto das receitas to-
tais do Estado de 53,8%, em 1893, para 19,5%, em 1929. Se a pecuária
seguia mantendo uma participação elevada (média de 53,2%) no valor total
das exportações, sua taxa de crescimento foi de apenas 3,74%, enquanto
que a uma taxa que é quase o dobro desta (6%), a participação dos produ-
tos da região de povoamento e agricultura majoritariamente familiar foi
em média de 32%. Em outra frente, o Estado se ocupa da criação de um
imposto territorial em vista da substituição das receitas declinantes da ex-
portação. A partir de 1902, instituiu a cobrança relativa ao valor venal da
terra e à sua extensão, imposto que seria reformado em 1912 e 1913 (TAR-
GA, 2003b, p. 9). Por outro lado, o imposto sobre exportações, que em
1903 representava 38% das receitas, caiu para 10% em 1929; o imposto
territorial subiu de 10 para 12%; o imposto sobre a transferência de proprie-
dades rurais caiu de 15 para 11%; o imposto sobre a indústria e profissões
manteve-se estável; aquele sobre o consumo subiu de 6 para 16% do total
das receitas. “Não por acaso, medidas similares de tributação da terra esta-
va sendo tomadas pelo presidente Batlle no vizinho Uruguai em um corpo-
a-corpo flexível e brioso com os ganaderos. O governo colorado não só
taxou os campos de gado como buscou recuperar para o patrimônio públi-
co as tierras fiscales que estavam nas mãos de latifundiários grileiros. O para-
lelo da política fundiária de Batlle com as intervenções de Castilhos e Bor-
ges na retomada pelo estado das terras devolutas é flagrante [...]” (BOSI, p.
285). Assim, os governos do Partido Republicano Rio-Grandense teriam
deliberadamente buscado reorientar o modelo de acumulação vinculado às
exportações pecuárias para um modelo voltado ao mercado interno e ao
estímulo à produção das novas zonas coloniais. Ao operar esta mudança, o
projeto econômico do Estado associou-se à perspectiva dos novos agentes
sociais, desvinculados do latifúndio, que promoviam a diversificação da

70
Poder, instituições e elites

base produtiva estadual e conferiam dinamismo à economia regional. De


forma análoga, no caso uruguaio, afirma-se que, “para Batlle, o Estado devia
intervir nos problemas sociais e econômicos. Devia ser o árbitro entre o capi-
tal e o trabalho, apoiando o mais fraco, o trabalho [...] No econômico deu um
novo papel ao Estado e neste sentido não era um liberal. Com sua estratégia
de estatização e nacionalização desenvolveu as chamadas funções secundárias
do estado. Apoiando-se em Ahrens, Batlle viu que o Estado não apenas devia
cumprir o papel de ‘juiz e gendarme’, mas também proporcionar o desenvol-
vimento econômico e o progresso social” (ARTEAGA, p. 139).
Os gastos públicos foram decisivos para a promoção das transforma-
ções e da expansão da economia gaúcha, contribuindo para que se instau-
rasse um círculo virtuoso, na medida em que o crescimento propiciava a
ampliação das receitas públicas. Para Ronaldo Herrlein Jr., levadas em conta
as condições do período, a “postura ideológica conservadora e o caráter
geral da intervenção econômica do Estado revelaram-se extremamente pro-
gressistas, favorecendo o desenvolvimento integrado e harmônico da eco-
nomia regional” (HERRLEIN, p. 82).

A explicação pela ideologia como mistificação


No extremo oposto, situa-se a perspectiva historiográfica que perce-
be uma mistificação na leitura do processo político-econômico como resul-
tante de um determinado ambiente intelectual e doutrinário. Para ela, o
declínio da política liberal de concessões de serviços e o alargamento do
intervencionismo estatal verificados no Rio Grande do Sul, sobretudo nos
anos 1900/1910, “nada têm a ver com eventuais determinações da cartilha
positivista”, mas derivariam de “respostas programáticas engendradas pela
elite dirigente e pela aliança dominante de frações de classe [...], no sentido
de construção da hegemonia política e econômica [...], agregando valor a
interesses específicos, em detrimento de outros” (AXT, p. 413). Se alguns
autores veem na ação política dos republicanos rio-grandenses uma intencio-
nalidade modernizadora orientada pela ideologia positivista, aqui a perspecti-
va é outra: a exitosa política fiscal do governo Borges de Medeiros, sobretu-
do os aspectos concernentes ao imposto territorial, por muitos saudada como
impulsionadora da diversificação econômica e da dinamização das expor-

71
HEINZ, F. • Driblando escalas: nota sobre a comparação histórica dos regimes batllista e castilhista

tações, é vista por um outro prisma, o da busca pura e simples do fortaleci-


mento do aparelho estatal.
Com uma abordagem sofisticada que privilegia a reconstrução do
peso das tramas e ajustes políticos locais e postula a percepção do pragma-
tismo político e da instrumentalização da doutrina como variáveis indis-
pensáveis para o entendimento do espaço político regional, Axt incorpora
uma crítica de natureza eminentemente historiográfica à sua análise históri-
ca. Diz ele: “O autor [Targa] diferencia a trajetória histórica paulista e gaú-
cha, sustentando que a primeira foi ‘um produto da ordem econômica’, ao passo
que a segunda foi ‘conduzida pelo primado do político’. Esta tese, que se coloca
na inteira contramão do marxismo, leva a extremos a ideia de especificidade
do Rio Grande do Sul em relação ao resto do Brasil. A insistência no desco-
lamento do estado das injunções econômicas que fermentam o tecido social,
investe o estamento burocrático de uma capa sacerdotal, capaz de converter
a política em algo quase divino, na medida em que o discurso político é cap-
tado como transformador da ordem social” (AXT, p. 15).
Não é nosso propósito aprofundar a discussão historiográfica subja-
cente, mas sugerir indícios para pensar o possível papel do PRR e da influên-
cia doutrinária do positivismo na percepção sobre o desenvolvimento econô-
mico presente na política varguista pós-1930. Contudo, é interessante notar
que os autores em questão tendem interpretar o debate e a posição de cada
um no debate a partir das questões postas pelos agentes históricos analisados.
Assim, se Axt ironicamente identifica em Targa um “vigoroso paladino da
missão renovadora do Estado”, Herrlein Jr., num longo comentário em ro-
dapé onde relativiza e põe em perspectiva a associação ação/discurso, ponto
central da crítica de Axt aos autores que tendem a superestimar o caráter
intencionalmente modernizador da “vanguarda” republicana, aproveita para
criticar Axt por assumir “figura simétrica ao discurso da oposição liberal contra
o ‘inchaço’ e o arbítrio do Estado, de cujo controle fora excluída” (HERR-
LEIN, p. 66, n. 13). Assim, de certa forma, a oposição político-histórica – e
que se tornou “folclórica” – rio-grandense entre “chimangos” (republicanos)
e “maragatos” (federalistas) parece encontrar eco entre os historiadores.10

10
Note-se que esta não é uma observação de menor relevância, uma vez que esta oposição é, de
tempos em tempos, recuperada na interpretação de outros aspectos e clivagens da vida política

72
Poder, instituições e elites

Sem descuidar das possíveis armadilhas ideológicas postas à análise


historiográfica11, a perspectiva historiográfica aqui sugerida é aquela inicia-
da por Bosi e desenvolvida, com maior ou menor grau de simplificação
analítica, por Targa e Herrlein Jr. Ela percebe a agenda do Estado para os
diferentes setores como desvinculada de uma tradição liberal-oligárquica.
Esta, primordialmente orientada para a satisfação e preservação da conti-
nuidade dos interesses da principal elite proprietária, encontrava-se invaria-
velmente assentada sobre a agroexportação e com franco acesso aos recur-
sos do poder estatal. Gozando de ampla autonomia federal e possuindo os
mecanismos para controlar o fortalecimento da oposição e evitar a compe-
tição política, o PRR apresentava uma percepção própria sobre a natureza
das relações que deveriam existir entre as instituições públicas e as classes
sociais. O estímulo à expansão do mercado interno e a preservação de uma
certa autonomia da autoridade pública face às demandas de grupos sociais
e econômicos parecem melhor caracterizar esta política: “The state should
be self-sufficient, avoiding budget deficits and inflation […]. It should at all

e cultural do Rio Grande do Sul. O último episódio desta natureza talvez tenha sido o clima de
extrema radicalização política que envolveu a sociedade regional quando da chegada ao go-
verno estadual de Olívio Dutra, ex-prefeito de Porto Alegre, do Partido dos Trabalhadores,
entre 1999 e 2002. Vários intelectuais ocuparam os espaços de mídia escrita e eletrônica, seja
para denunciar a polarização histórica que divide os gaúchos desde a Revolução Federalista,
ou talvez, num recuo ainda maior, desde a Revolução Farroupilha, seja para identificar nos
agentes políticos contemporâneos traços das identidades políticas do passado. Assim, se o
governo petista era identificado pela oposição, na linha direta da tradição castilhista, como de
tipo autoritário, com “flagrantes” tendências ditatoriais, na melhor das hipóteses “estatizante
e contra o mercado”; a oposição era, por sua vez, identificada pelo partido no poder como
“desinteressada pela sorte dos demais grupos sociais, elitista, intolerante e rancorosa frente à
legitimidade popular do governo”, críticas gerais que caberiam perfeitamente no discurso de
uma liderança do PRR sobre os oponentes federalistas!
11
Com efeito, parece haver por vezes certo exagero – para não dizer clara ausência de cautela
metodológica – na convicção com que Targa trata a vinculação ideologia/ação política:
“L’intervention de l’État dans l’économie gaúcha avait un caractère doctrinaire. Elle ne s’est
pas traduite dans un discours creux, puisque les Positivistes l’on vraiment pratiqué pendant 37
ans (1893-1930) durant lesquels ils restèrent au pouvoir au Rio Grande do Sul. Elle n’avait rien
à voir avec une pratique squizofrenique d’intervention économique accompagnée de la défen-
se verbale des principes du laissez-faire, qui a caracterisé la démarche de l’élite paulista.
Au Sud, il n’y avait pas de contradiction entre idéologie et les pratiques d’intervention de
l’État. Celui-ci était envisagé comme responsable de la régulation de l’économie et de la soci-
été et était donc chargé de corriger la direction perverse que pouvait prendre l’économie de
marché. L’intervention de l’État s’accordait parfaitment à cette représentation de son rôle,
dans la mesure où il cherchait à socialiser les services publiques, à éviter la formation de
monopoles, à promouvoir le bien-être social et à ne jamais favoriser un seu secteur ou groupe
de capital” (TARGA, 2002, p. 407).

73
HEINZ, F. • Driblando escalas: nota sobre a comparação histórica dos regimes batllista e castilhista

costs avoid unnecessary intervention in the economy, particularly when such


intervention favored certain groups at the expense of others. Ideally the
state should face an economy made up of independent producers engaged
in free competition, its proper role being the maintenance of the conditions
necessary for such competition. It should also abstain from interfering in
class conflict originating from the regular operation of capitalism. […] [T]he
state had its own needs and imperatives which should not be sacrificed to
the demands of classes and groups” (BARETTA, p. 55-56).

Contraponto: alguns traços do reformismo batllista


Uma série de reformas foram incluídas na agenda do Estado uru-
guaio sob a influência de José Batlle y Ordoñez. Segundo nos sugere José
Claudio Williman, retomando algumas conclusões de Nahum e Barrán,
entre os “temas do reformismo” batllista encontram-se a percepção de que
os problemas centrais do país (desigualdade, pobreza, monocultura, debili-
dade financeira do Estado) resultavam de uma estrutura centrada no lati-
fúndio pecuarista. O questionamento do latifúndio levou o “reformismo” a
questionar a propriedade privada como direito absoluto, não para negar
legitimidade à propriedade, mas, fundamentalmente, para invalidar certos
abusos, e a maneira com que este questionamento operou foi semelhante
àquele verificado no sul do Brasil: a defesa da recuperação das tierras fiscales
indevidamente tomadas pelos latifundiários (em discussão já no primeiro
governo Batlle) e o estabelecimento de um Cadastro de Terras (a partir de
1908) (WILLIMAN, p. 68-69). Também, os governantes do batllismo vi-
ram na expansão da agricultura, tanto em área plantada como tecnológica,
a fonte principal para a reforma de um mundo rural marcado pela pecuária
e social e culturalmente relacionado à oposição política do Partido Nacio-
nal. A expansão da área agrícola já existente ou a introdução de novos
projetos de colonização apresentavam-se aos olhos das lideranças batllistas
como alternativas à frequente instabilidade social das áreas de pecuária
extensiva, esteio da mobilização do Partido Blanco.
Tal como no caso rio-grandense, a política fiscal constituía a base da
ação reformadora do batllismo nas áreas rurais. “El régimen tributario cons-
tituyó para el ‘reformismo’, el instrumento por medio del cual pretendió

74
Poder, instituições e elites

enfrentar las características negativas del latifundio pastoril y promover el


cambio en los procesos de explotación, con esperanzadas repercusiones en
el orden social” (WILLIMAN, p. 70). A contribuición inmobiliaria passou a
ser calculada sobre um preço médio regional de venda das terras12 diminuído
de 20%, e os ingressos de receita daí produzidos permitiram ao Estado de-
sonerar parte dos salários dos funcionários da administração pública, eli-
minando alguns descontos previstos em lei e impulsionando um crescimento
da renda destes setores. Ainda, algumas iniciativas do período, como a im-
posição aos latifundiários com área superior a 300 ha do cultivo agrícola de
pelo menos 5% da área, obtiveram pronta oposição dos setores proprietári-
os e nunca foram aprovadas na Câmara de Deputados.
Se as medidas impositivas são inegavelmente as mais espetaculares,
também a criação de uma infraestrutura mais adequada à dinamização da
economia agropastoril passou a ser objeto da ação do governo, sobretudo
com a expansão do crédito e a interiorização do sistema bancário, através
do Banco de la República e do Banco Hipotecario del Uruguay, e a expansão da
malha viária, sobretudo com melhoramentos para a navegação fluvial. Por
outro lado, medidas de proteção a indústrias locais iriam se multiplicar nos
primeiros anos do período e culminariam com a Lei de 12 de outubro de
1912, que desonerou importações de matérias-primas e insumos industriais.
Segundo Marcos Alves de Souza, “as principais modernizações empreen-
didas pelo batllismo foram de âmbito econômico e social, principalmente
as que revisaram a relação Estado/economia, bem como o processo de
industrialização, as políticas agropecuárias e fiscais, além das políticas
sociais e da legislação trabalhista”. Além das estatizações e nacionaliza-
ções generalizadas em alguns setores de serviços (bancos, setor de seguros,
ferrovias, por exemplo), houve ampliação do protecionismo aduaneiro, es-
timulando a indústria, e um número crescente de questões incorporadas à
agenda social13 do Estado. Ainda, é necessário citar a expansão do ensino
público e laico, primário14 e secundário, ainda no primeiro período de pre-

12
Na verdade, foram estabelecidos preços médios para cada uma das 140 zonas fiscais do país.
13
Por exemplo, em seu segundo mandato presidencial, a partir de 1911, Batlle coloca em pauta
a regulação das relações de trabalho, com a fixação de jornadas de oito horas diárias, descanso
remunerado, sistema de aposentadoria, previsão de indenizações por acidente ou demissão e
interdição do trabalho de menores.

75
HEINZ, F. • Driblando escalas: nota sobre a comparação histórica dos regimes batllista e castilhista

sidência, e a melhoria de condições gerais de saneamento, pavimentação e


habitação durante a primeira década do batllismo (SOUZA, p. 48-49).
Na origem das transformações acima citadas, o batllismo encontrara
no racionalismo krausista a base ideológica inspiradora de sua ação políti-
ca: “Con base en el espiritualismo, el racionalismo y el krausismo (la vida
en armonía, que es la expresión de la armonía divina) que le animaban,
Batlle desarrolló su humanismo con creencia de que el hombre es un sujeto
capaz de llevar adelante los cambios sociales dentro de una estructura libe-
ral y democrática. Para eso era necesario alentar la participación de todos
los ciudadanos en la vida política. Batlle pensaba que el Uruguay, como
sociedad nueva, podía evitar los errores del viejo continente y convertirse
en una especie de laboratorio social, de ‘país modelo’” (ARTEAGA, p.
139). Como bem afirma Susana Monreal, a política fundada nos princípios
do direito era, para Krause e seus seguidores, a doutrina dos princípios e
dos meios da reforma do Estado e da sociedade (MONREAL, p. 180).

A elite republicana e a elite batllista


Numa obra clássica sobre a política gaúcha no cenário da República
Velha, O regionalismo gaúcho e as origens da Revolução de 1930, Joseph Love
referia-se às lideranças republicanas do Rio Grande do Sul como perten-
cendo a um novo eixo político assentado nas relações Serra – Litoral, e não
mais Campanha – Litoral15. Embora Love não tenha se dedicado à elabora-

14
Reformas nesse sentido fora introduzida primeiramente em 1877, no Governo Varela.
15
Província sob a monarquia e Estado da federação sob a república, situado no extremo meridio-
nal do Brasil, o Rio Grande do Sul pode ser dividido, para efeitos explicativos, em quatro
grandes regiões: (a) a Campanha, correspondendo à metade sul do território, incluindo toda a
área de fronteira com o Uruguai e, em certa extensão, com a República Argentina, é região de
excelentes campos naturais e concentra historicamente as grandes propriedades de terra e a
atividade pecuária tradicional do Estado; (b) a Serra é a designação genérica da metade norte
do Estado, incluindo a região das Missões e do Planalto próximas ao Estado de Santa Catari-
na, abrigando uma pecuária economicamente menos importante que aquela do sul, bem como
alguma atividade agrícola; (c) a Zona Colonial compreende áreas da encosta da Serra Geral e
da própria Serra, a leste e ao norte da capital. A Zona Colonial concentrou a parte substancial
das correntes imigratórias de origem europeia (basicamente de origem alemã ou italiana) do
século XIX no sul do Brasil e foi, a partir da segunda metade daquele século, o centro de uma
produção agrícola rica e diversificada, baseada numa estrutura tipicamente camponesa e vol-
tada para o mercado interno regional; (d) o Litoral compreende a costa atlântica e o sistema da
Lagoa dos Patos, incluindo as grandes cidades comerciais do Estado, como a capital, Porto
Alegre, e a cidade portuária de Rio Grande.

76
Poder, instituições e elites

ção de um perfil social dessas lideranças, ele retomou a perspectiva já pre-


sente na obra regional clássica de Sérgio da Costa Franco, Júlio de Castilhos
e sua época, de que a cisão entre republicanos e federalistas revelava um
corte no interior da classe proprietária entre aqueles estancieiros da região
da Campanha, defensores intransigentes dos privilégios de classe e da pri-
mazia de seus interesses na agenda do Estado, e aqueles da Serra, menos
abastados e menos vinculados ao circuito econômico exportador da pecuá-
ria regional e, portanto, mais inclinados a atender às demandas oriundas
das classes médias e do espaço social da pequena propriedade de origem
imigrante. Ainda, os laços destes proprietários serranos com os comercian-
tes do Litoral estariam na origem de um novo equilíbrio tendente a colocar
em destaque as preocupações de uma gama ampla de setores econômicos e
indicar a impossibilidade de permanecer-se atrelados a uma agenda centra-
da no atendimento exclusivo dos interesses dos grandes proprietários da
Campanha. Esta nova configuração afastaria a elite dirigente ligada à “aris-
tocracia” fundiária do sul do Brasil e representada nas fileiras do Partido
Liberal, durante a monarquia, e do Partido Federalista, durante a Repúbli-
ca, do centro do poder regional. Esta percepção, contudo, avança pouco,
uma vez que sugere uma “excepcionalidade da política gaúcha”, isto é, a
presença de uma cisão no seio da elite rio-grandense, como resultante de
um certo determinismo geográfico e econômico. Assim, estancieiros da Serra
comporiam as fileiras do Partido Republicano, enquanto os estancieiros da
Campanha representariam a base social dominante do Partido Federalista,
derivando daí tomadas de decisão em boa parte “autoexplicativas”. Trata-
se daquilo que Gunter Axt chamou de ‘matiz marxista-mecanicista’ ou “ti-
pológico” da explicação histórica sobre o estado gaúcho na República Ve-
lha, embora pouca ou nenhuma vinculação com o materialismo histórico
possa ser observada nos autores referidos (AXT, p. 11, 16-17).
Por sua vez, numa tese defendida na Universidade de Pittsburgh em
1985, Sílvio Baretta analisou comparativamente propriedades sociais de
líderes republicanos e federalistas16 e encontrou certa consistência nas in-

16
A amostra investigada incluiu 29 inventários que puderam ser recuperados sobre um total de
148 líderes republicanos e outros 25 inventários sobre um total de 111 líderes federalistas.

77
HEINZ, F. • Driblando escalas: nota sobre a comparação histórica dos regimes batllista e castilhista

formações generalizadas anos antes por Franco e Love a partir de dados de


algumas lideranças políticas: lá estavam a maior presença de lideranças fe-
deralistas na região da Campanha, a localização da origem de vários líde-
res republicanos na região da Serra e, por fim, a presença da classe média
urbana e de intelectuais nos quadros do Partido Republicano. Contudo, a
investigação encontrou uma surpreendente indiferenciação entre os padrões
de fortuna de federalistas e republicanos.17 Para o autor, o Partido Republi-
cano “was in its core a party of urban intellectuals. But urban should not be
construed here as meaning that these intellectuals, who had gone to the
best universities Brazil had to offer, were opposed in principle to ranchers
and to landowners. On the contrary, the most important among them –
Júlio de Castilhos, Assis Brasil and Demétrio Ribeiro, for instance – were
ranchers themselves. […] What distinguishes them from the Federalista cat-
tle-raisers is that the Republicans were also professionals and intellectuals,
and saw themselves as such. It is because they saw their identity, at least
their political identity, in broad ideological terms that they were able to
bridge the gap between landowners and the rising urban classes – merchants,
small industrialists and bureaucrats, among others. Ultimately, loyalty to
the party and to Republican ideas mattered more than social origins. This
and the demands for political and economic democratization made repu-
blicanism compatible with urban aspirations” (BARETTA, p. 211).
Também, comparativamente às lideranças federalistas, mais concen-
tradas na região de Bagé e em alguns poucos municípios da Fronteira e
apresentando vínculos familiares entre si, os republicanos talvez fossem
entre si menos “parecidos” como grupo. O equivalente republicano ao clus-
ter ‘vizinhança’ para os federalistas era o fato de que muitos haviam sido
colegas na Faculdade de Direito de São Paulo: “Their common education
and common ideological environment shaped their party in the same way
as familiy and neighborhood ties shaped the Federalistas” (BARETTA, p.

17
Há que referir-se aqui ao problema da sobrerrepresentação da fortuna “legal” presente nos
inventários, sobretudo no que tange às lideranças federalistas, geograficamente concentradas
na região de fronteira com o Uruguai. Possivelmente, como de hábito na elite proprietária da
região, parte das lideranças investigadas deveria possuir propriedades e ativos substanciais no
país vizinho, o que evidentemente “desaparece” na análise dos inventários.

78
Poder, instituições e elites

210). Esta aproximação em virtude de uma formação comum pode ser per-
cebida num levantamento pioneiro efetuado por Walter Spalding, onde, de
30 lideranças republicanas cuja formação profissional pôde ser identifica-
da, 2/3 aparecem como tendo estudado na Faculdade de Direito de São
Paulo. Ainda, o fato de mais da metade de um total de 37 líderes republica-
nos cuja idade pôde ser confirmada ter nascido no período 1855-1864 suge-
re o entendimento da adesão ao movimento republicano também por um
viés geracional.
Numa amostra de 69 altos funcionários (secretários de Estado, dire-
tores, vice-diretores e chefes de seção) atuantes em três secretarias de Esta-
do no período 1891-1930, reencontramos um perfil caracteristicamente ur-
bano: 20 de 52 altos funcionários cuja localidade de nascimento foi possí-
vel recuperar eram originários da capital; de 48 funcionários com formação
universitária, 22 eram formados em Direito, 11 em Engenharia e 7 eram
médicos. Entre estes altos funcionários, o tempo médio de permanência em
um cargo de secretário de Estado (na Secretaria do Interior e Exterior) foi
de 6,8 anos; de um diretor geral, 5,6 anos; dos diretores da 1ª , 2ª e 3ª
diretorias, respectivamente, de 5,5, 6,6 e 5 anos em média. Esta média ele-
vada de permanência em um cargo de chefia aponta para uma possível
estabilidade da carreira administrativa.18
Mas se os trabalhos que buscam investigar o perfil social das elites
políticas regionais ainda são incipientes no Brasil, oferecendo à análise o
conhecimento de apenas algumas poucas propriedades sociais das lideran-
ças, no caso uruguaio há pelo menos uma grande investigação de tipo pro-
sopográfico permitindo extrair significativos traços coletivos das direções
batllistas. Referimo-nos ao estudo de José P. Barrán e de Benjamin Nahum

18
Dados de uma pesquisa em curso sobre o perfil prosopográfico das lideranças do Partido
Republicano Rio-Grandense. Numa ampliação desta amostra, reunindo agora 392 funcionários
das mais variadas atividades, nas três secretarias – excluindo apenas tarefas administrativa-
mente pouco especializadas, como porteiros e estafetas – encontramos médias ainda mais
elevadas: 8,4 anos na Secretaria do Interior e Exterior; 7 na Secretaria de Obras Públicas; e 9,8
na Secretaria da Fazenda, perfazendo uma média geral de 8,4 anos de dedicação ao serviço
público. Se é possível que esse número não impressione se comparado a algumas longevas
carreiras públicas verificadas durante a monarquia, o fato é que o quadro de ampliação acele-
rada de serviços e, portanto, de incorporação de novos funcionários sugere mais uma vez, face
às médias assinaladas, uma situação de estabilidade de carreira destes funcionários.

79
HEINZ, F. • Driblando escalas: nota sobre a comparação histórica dos regimes batllista e castilhista

no terceiro tomo da obra Batlle, los estancieros y el Imperio Británico. Nahum e


Barrán trabalharam sobre uma amostra de dirigentes batllistas organizada
a partir de duas listagens originais: a primeira de 81 ministros, chefes polí-
ticos ou representantes eleitos ao Senado e à Câmara de Deputados e cujos
mandatos tiveram duração de nove ou mais anos, entre 1905 e 1913; a se-
gunda, de 24 dirigentes batllistas (altos funcionários, dirigentes de institui-
ções autônomas e membros do serviço diplomático) ingressados na ativi-
dade pública entre 1911 e 1914 e com presença média no cargo de 5 anos
cada. Do total de 105 dirigentes, os autores obtiveram dados biográficos19
para 66. Sobre o perfil obtido para este grupo, apontamos a seguir alguns
traços gerais.
Uma primeira constatação é a longevidade, logo a representativida-
de do grupo em questão, com 14 anos em média de atuação política como
legisladores, chefes políticos, ministros e presidentes, entre 1879 e 1933.
Por outro lado, destaca-se o caráter precoce de seu ingresso na vida políti-
ca, com uma idade média de 36,5 anos ao incorporar-se ao grupo dirigente,
idade que cai para 34,5 anos quando tomamos apenas o grupo que ingres-
sou entre 1911 e 1915, período de maior avanço do processo reformista, o
que permite sugerir uma associação entre juventude e radicalização refor-
mista. Por outro lado, o caráter urbano do movimento é inegável: 68,5%
dos líderes estudados haviam nascido em Montevidéu, isso quando a capi-
tal do país não chegava a representar 30% da população. Descontados aque-
les nascidos em outros países, o interior uruguaio não contribuía com mais
que 26,5% das lideranças batllistas. A elite batllista é também uma elite
extremamente bem “escolarizada”, com 77,2% dos dirigentes incluídos na
amostra possuindo título universitário. A Faculdade de Direito era a ori-
gem mais comum destas lideranças com formação superior: 59% dos diri-
gentes estudados formaram-se ali (o que corresponde a 76% de todas as

19
As 19 variáveis incluídas no estudo foram: ano de nascimento; idade ao ingressar na vida
política; idade ao aderir ao batllismo; local de nascimento; nacionalidade dos pais; se foi diri-
gente estudantil; se realizou viagem de estudos à Europa; se o pai tinha atividade política; se
possuía militância anticlerical notória; se buscou ingressar na Escola Elbio Fernández; núme-
ro de anos de atividade política; se participou na Revolução do Quebracho; se participou do
grupo colorado na guerra de 1904; se foi empregado público antes de assumir o cargo político;
se teve emprego público posterior ao cargo; se possuía título universitário; se era jornalista; e,
por fim, se era escritor profissional.

80
Poder, instituições e elites

lideranças com título universitário). Outros 7 dirigentes eram médicos (11%)


e 5 engenheiros (8%) (NAHUM e BARRÁN, p. 101-102).
Em relação à origem social das lideranças batllistas, Nahum e Barrán
encontram 16 líderes – entre eles o próprio Batlle – filhos de dirigentes e ho-
mens de Estado do século XIX e que, enfim, eram membros do “patriciado”,
“pertenecían a los estratos sociales superiores pero raramente a las clases eco-
nomicamente altas” (NAHUM e BARRÁN, p. 98); outros 26% eram conside-
rados de origem humilde, enquanto que 6% originavam-se nos estratos econô-
micos superiores do país; 17% eram filhos de imigrantes, o que sugere também
a origem entre os estratos “humildes” ou médios da população; por fim, em 18
casos ou nos restantes 27% da amostra não foi possível indicar a condição
social de origem das lideranças, embora a constatação de que existe entre eles
uma esmagadora maioria de titulados universitários sugira também uma ori-
gem social nos setores médios. A origem imigrante é também um dado interes-
sante, uma vez que sugere a presença de um componente socialmente inclu-
dente na política uruguaia e, particularmente, nos meios batllistas, no início do
século XX: 24 casos ou 36% do total descendiam de pai ou mãe (ou ambos)
estrangeiro, enquanto 17 ou 24% eram confirmadamente filhos de pai e mãe
uruguaios; os demais 25 não puderam ter identificada a origem dos pais, em-
bora apresentem, em muitos casos, sobrenomes de origem claramente italiana.
De qualquer forma, ainda que considerássemos apenas o percentual
“seguro” de 36% de origem estrangeira, o dado é surpreendente se compa-
rado ao caso brasileiro. Embora não tenhamos dados para o Rio Grande do
Sul, o que constitui o foco de nosso interesse, dados disponíveis para outras
regiões do país sugerem um contraste impressionante com a experiência de
incorporação e ascensão de filhos da imigração no campo político no Bra-
sil. Referimo-nos ao trabalho, empreendido por Joseph Love e Bert Barick-
man, de análise e nova tabulação de dados sobre três elites políticas regio-
nais no período 1889-1937, logo contemporâneas à elite dirigente rio-gran-
dense analisada neste artigo, e que haviam sido objeto de três estudos im-
portantes20 realizados nos anos 1970: as elites de São Paulo, Minas Gerais e

20
Os estudos originais são as teses de doutoramento de WIRTH, John. Minas Gerais in the Brazilian
Federation, 1889-1937. Stanford: Stanford University Press, 1977; LEVINE, Robert M. Pernambu-
co in the Brazilian Federation, 1889-1937. Stanford: Stanford University Press, 1978; e LOVE, Jose-
ph L. São Paulo in the Brazilian Federation, 1889-1937. Stanford: Stanford University Press, 1980.

81
HEINZ, F. • Driblando escalas: nota sobre a comparação histórica dos regimes batllista e castilhista

Pernambuco. Nele, a partir de uma amostra de 753 ocupantes de altos car-


gos dos poderes executivo, legislativo e judiciário, nos níveis nacional e re-
gional, constata-se que “menos de 1% da elite política nasceu no estrangei-
ro, e apenas 4% tinha ao menos um dos pais nascidos no exterior”! E, com-
pletam os autores, “this is striking, given the mass immigration Brazil expe-
rienced in this period. Moreover, there was little difference among the sta-
tes. Despite the fact that São Paulo received half of all Brazil’s immigrants
for the period studied, its elite contained only one foreign-born member
(N=239) – Miguel Costa, who accompanied his parents to Brazil from
Argentina as a child” (LOVE e BARICKMAN, p. 9). Estes dados sugerem
uma maior permeabilidade do campo político para as populações oriundas
da imigração no caso uruguaio, bem como o acesso franqueado à vida pú-
blica para as classes subalternas ou setores médios, em clara dissonância
com o que se passava no Brasil à época, onde o sistema partidário da Pri-
meira República simplesmente inviabilizava o ingresso na vida política de
candidatos situados fora das redes sociais dominantes em cada estado. Con-
tudo, e embora não tenhamos dados produzidos para o caso do Rio Gran-
de do Sul no que tange à incorporação das populações oriundas da imigra-
ção na cena política regional, acreditamos que, mesmo sem apresentar nú-
meros semelhantes ao uruguaio, uma maior incidência de participação de
populações de origem imigrante pode ter se verificado, sobretudo se levar-
mos em conta a intensa participação das regiões de imigração (Zona Colo-
nial) nas disputas que marcaram a política regional “intraelites”, como a
Revolução Federalista (1893-1895) e a Revolução de 1923.

Considerações finais
Este artigo apresenta uma proposta arriscada, a de expor o caso da
ação das elites governantes no Rio Grande do Sul tendo como pano de
fundo a comparação entre duas realidades históricas e políticas de diferente
escala: o próprio caso gaúcho, sob a República Velha, e o caso do Estado
nacional uruguaio. A regra da cautela metodológica sugere não se misturar
laranjas e maçãs, mas, face às flagrantes assimetrias sugeridas pela simples
confrontação de um caso regional a outro nacional, impõe-se uma série
impressionante de similitudes nas práticas e resultados obtidos ao longo

82
Poder, instituições e elites

dos períodos. As elites governantes em Montevidéu e Porto Alegre puse-


ram ênfase no dirigismo econômico estatal e orientaram a ação pública
num sentido não oligárquico, visando diversificar a base econômica e dire-
cionar o investimento público a setores outros que a grande propriedade
fundiária. Buscaram promover a incorporação de novos grupos sociais
(como o proletariado urbano, por exemplo) e expandiram em número e
qualidade as políticas sociais. Mesmo que os resultados não sejam comple-
tamente equivalentes, os aspectos comuns não podem ser ignorados: ba-
tllistas e republicanos castilhistas representaram, em certa medida, a ma-
nifestação, no sul da América do Sul, de uma tendência reformista “mun-
dial” em curso nas primeiras décadas do século XX.
De certa forma, a peculiar formação do federalismo brasileiro desde
o declínio da presença militar no centro do poder republicano e da tomada
de controle do núcleo do poder federal pelos representantes da elite paulis-
ta, a partir de 1894, associada à pactuação da política de governadores,
garantiu um grau bastante amplo de autonomia às elites políticas regionais
capazes de mobilizar recursos políticos – e este era o caso no Rio Grande
do Sul. Prova disso, se necessário fosse, seria o fato de ter vigido no estado,
durante quatro décadas, e em completo desacordo com a Constituição Fe-
deral brasileira, a carta constitucional “castilhista-positivista” do 14 de Ju-
lho de 189121. Assim, a elite republicana gaúcha pôde exercer, como elite
regional, um poder normalmente exercido por governos nacionais, seja na
estruturação de um complexo sistema fiscal regional e na formulação de
políticas de proteção e estímulo a diferentes setores produtivos, seja, num
registro menos nobre, na perseguição formal e institucional da oposição
política.
Se sugerimos que práticas intervencionistas e políticas reguladoras
originam-se no ambiente político e intelectual vivenciado pelas elites políti-
cas, como entender que a partir de circunstâncias políticas e intelectuais
diferenciadas, como aquelas em curso no Uruguai e no Rio Grande do Sul,
tenha sido possível o aparecimento de um modelo – em princípio – seme-

21
Simbolismo da data à parte, o caráter algo jacobino da ação dos republicanos gaúchos, já
analisado por Hélgio Trindade, aparece também entre os reformistas batllistas.

83
HEINZ, F. • Driblando escalas: nota sobre a comparação histórica dos regimes batllista e castilhista

lhante de intervenção pública e reforma social? Ora, o autoritarismo e o


disciplinamento ideológico positivista das elites governantes gaúchas não
se aproximavam do racionalismo krausista, em tudo uma experiência inte-
lectual mais liberal e tolerante. Não obstante, nos dois casos as elites tive-
ram como estratégia a formulação de agendas públicas de desenho seme-
lhante. É possível imaginar que não se trata aqui de uma simples coincidên-
cia: positivismo, krausismo, georgismo eram sistemas de ideias populares
entre grupos letrados em fins do século XIX e veiculavam proposições coe-
rentes com as necessidades de modernização e de incorporação social dos
diferentes atores de um mundo urbano radicalmente novo e complexo. O
Estado pensado pelas elites em análise é, oscilando-se dos matizes mais
liberais aos mais autoritários, e na confluência das prédicas positivista e
krausista, um Estado próximo, que intervém, provê, acolhe e planeja.
Este Estado se tornara indispensável aos olhos de uma parte expressiva das
elites intelectuais e políticas, emergentes e contemporâneas à fase de esgo-
tamento das instituições liberais e oligárquicas de fins do século XIX.
Mas talvez encontremos no timing dos processos uma diferença im-
portante entre a experiência republicana rio-grandense e a experiência ba-
tllista. Assim, enquanto os resultados das políticas gestadas sob o batllismo
se fizeram sentir na vida econômica e social uruguaia já nas primeiras dé-
cadas do século, com um extraodinário empuxe no conjunto da atividade
econômica nacional e uma melhoria acentuada nos indicadores sociais – e
isso sobretudo pelas maiores e melhores possibilidades de utilização de re-
cursos que só uma administração nacional, não submetida a qualquer cons-
trangimento jurídico-institucional superior, era capaz de mobilizar –, o
mesmo não ocorreu no Rio Grande do Sul. No caso rio-grandense, os efei-
tos das políticas devem necessariamente ser analisados no longo prazo. Com
efeito, apesar dos indicadores econômicos e sociais favoráveis, a vitalidade
das políticas dos republicanos gaúchos só parece poder ser medida plena-
mente na perspectiva de seu sentido histórico: o Rio Grande do Sul casti-
lhista e positivista não como um fim em si mesmo, mas como laboratório
da era Vargas, como espaço de gestação de uma perspectiva intervencionis-
ta, centralizadora e reguladora que seria, a partir de 1930, estendida ao
conjunto da federação e da sociedade brasileiras. Nas palavras de um histo-
riador regional, “como administrador e como político, é fundamental vê-lo

84
Poder, instituições e elites

[a Vargas] como um representante típico do castilhismo” (FRANCO, 1993,


p. 18). De fato, Vargas, que se lançara na política sob a proteção e o apadri-
nhamento de Borges de Medeiros, conhecia perfeitamente as possibilida-
des oferecidas a uma gestão de conflitos patrocinada pelo Estado e enten-
dia como poucos as virtudes da centralização das políticas do Estado e da
contenção forçada dos grupos de oposição.
Nesse sentido, como se daria a transição do universo regional, logo
restrito da experiência republicana sulina para esta sociedade que estava
contribuindo para gerar? É sabido que, embora a adesão doutrinária dos
dirigentes republicanos pudesse sugerir uma atitude de abertura e estímulo
à intervenção em situações de desequilíbrio dos agentes produtivos ou de
desarmonia social, a doutrina impunha, em certos casos, elementos restriti-
vos ao desenvolvimento econômico “puxado” pelo Estado, como a ênfase
dada à moralização e ao orçamento equilibrado. “Como instituição mais
evoluída da sociedade, o Estado deveria dar o exemplo, não gastando de-
masiadamente, recorrendo o mínimo a empréstimos e seguindo à risca a
norma das finanças sadias; ao contrair déficit ou recorrer a empréstimos, o
Estado dava mau exemplo, ao gastar o que não era seu. E, ao priorizar
determinados setores, regiões ou classes, feria seu princípio de Estado Neu-
tro: em tese, não haveria por que dar crédito à indústria, por exemplo, sem
que no mesmo montante fossem atendidos os anseios da agricultura” (FON-
SECA, 1988, p. 15).
Estes princípios, embora seguidos pela elite dirigente republicana com
empenho desigual, segundo circunstâncias históricas e conveniências polí-
ticas, permitem mostrar as dificuldades que a aplicação da doutrina acaba-
va por oferecer ao desenvolvimento econômico. Mesmo que advogando
maior intervenção sobre o mercado e sobre a sociedade, o positivismo, “ape-
sar de representar a gênese do desenvolvimentismo”, apresentava limita-
ções concretas ao desenvolvimento capitalista. Este necessitaria, para além
de maior intervenção e planejamento, de “meios mais eficazes para conse-
gui-lo”, como, por exemplo, através do fortalecimento da indústria face ao
setor agrícola. “Ausência de crédito, orçamento equilibrado e Estado Neu-
tro são propostas inconsistentes com qualquer projeto de crescimento capi-
talista a longo prazo.” Com a chegada de Vargas à chefia do Estado rio-
grandense, em 1928, verifica-se uma inflexão na rigidez positivista em al-

85
HEINZ, F. • Driblando escalas: nota sobre a comparação histórica dos regimes batllista e castilhista

guns dos itens centrais da política econômica do governo borgista, a saber,


o equilíbrio orçamentário, a questão do crédito e os empréstimos externos.
“O saneamento financeiro como objetivo primordial do governo cederia
espaço, mesmo que timidamente, à proposta de que a tarefa do Estado era
promover o desenvolvimento econômico [...]” (FONSECA, 1988, p. 15-16)
[grifo nosso].
Concluindo, enfatiza-se aqui que, desde sua ascensão ao poder, o
governo Vargas incorporou à agenda pública uma perspectiva desenvolvi-
mentista que, na sua origem, derivava da peculiar apropriação do positivis-
mo comtiano no seio de uma elite política regional emergente, e isso num
quadro de transição política nacional e de superação do modelo político-
administrativo monárquico pela experiência republicana. Neste quadro, a
reconfiguração do campo político regional, precipitada pela dinâmica do
processo político nacional, desalojara a principal elite regional, hegemôni-
ca econômica e politicamente durante o Império – os proprietários/criado-
res da região da Campanha outrora reunidos no velho Partido Liberal –, e
abrira caminho para um realinhamento de forças políticas em torno de um
grupo de jovens lideranças republicanas não vinculadas àquelas tradicio-
nais regiões. De certa forma, contrariamente ao mainstream do movimento
republicano nacional, que herdara o caráter não conflitual das práticas po-
líticas sob a monarquia e cuja transição para o liberalismo político de feição
oligárquica se fizera de forma “natural” e suave, o republicanismo gaúcho,
em contestação aberta por parte de uma elite com sólidos e históricos laços
com o poder central e regional, buscou numa maior coesão e disciplina
ideológica a chave para o enfrentamento e execução de seu projeto político.
A política econômica dos republicanos rio-grandenses ganhou den-
sidade e sua experiência ajudou a consolidar a posição estratégica do Esta-
do gaúcho no concerto político nacional ao longo da Velha República. Ao
incorporar esta experiência, uma vez na chefia do Estado brasileiro após a
Revolução de outubro de 1930, Vargas reconhecia talvez melhor do que
ninguém as virtudes do modelo regional e suas limitações.22 “[...] O desen-

22
“O sentimento de que as indústrias locais e o mercado interno mereciam prioridade e proteção
se reavivaria toda vez que os positivistas se defrontassem com a questão abrangente do desen-
volvimento nacional. [...] [O] discurso industrialista, com maior ou menor ênfase antiimperi-
alista, só receberia acolhimento oficial ao longo do consulado getuliano [de Getúlio Vargas]

86
Poder, instituições e elites

volvimentismo nasceu em plena ‘república oligárquica’, ainda sob a hege-


monia da burguesia agrária e comercial, e por influência do positivismo.
Ao ganhar autonomia enquanto proposta de organização econômica e so-
cial, entretanto, romperia, mesmo paulatinamente, com alguns princípios
básicos do positivismo.” Fomentando o crédito, ampliando a captação de
empréstimos externos e mesmo chegando a aceitar a possibilidade de défi-
cits, deixava-se em segundo plano a austeridade e lançava-se na busca do
crescimento, negando-se, de certa forma, a própria prédica positivista. “Esta
negação implicaria, em última instância, a consciência de que a economia
capitalista diferia da economia mercantil, ou mesmo da economia domés-
tica: o desenvolvimentismo desde logo supunha capitalismo, embora não o explici-
tasse” (FONSECA, 1988, p. 18).

Quadro comparativo
Batllismo Castilhismo/borgismo
Periodização 1903-1933 1889-1930
Líderes políticos José Batlle y Ordoñez Júlio de Castilhos e Borges de Medeiros
Modelo socioeconômico Agroexportador pecuarista Agroexportador pecuarista
dominante
Sistema de ideias Krausismo/Liberalismo/Cientificismo Positivismo (político)
Positivismo (não político)
Forma de organização Aparece como facção do Partido Colorado Aparece como movimento republicano sob
original a monarquia para transformar-se depois no
Partido Republicano Rio-Grandense
Possibilidade de dissidência Sim Não
no partido governante
Oposição política Partido Nacional – Blancos Partido Federalista
Episódios de violência Sim Sim
política e guerra civil
Liberdade de imprensa Sim Sim, relativa

que foi incorporando, lenta e pragmaticamente, as sugestões aventadas pela ala marchante dos
nossos empresários. O dirigismo estatal e o progressismo burguês encontrariam, a partir dos
meados da década de 30, uma zona de intersecção de que ambos se beneficiariam. [...] [O]
pendor industrializante dos homens de 30 era temperado por um respeito, igualmente comtia-
no, pelo ideal do equilíbrio orçamentário. [...] [A] práxis republicana no Rio Grande, amplia-
da pelo grupo que subiu ao poder na Revolução de Outubro, interferia no processo de acumu-
lação da burguesia ora mediante instrumentos fiscais, tributando ou isentando, ora mais dire-
tamente, pela encampação de redes de transportes segundo o lema da socialização dos servi-
ços públicos” (BOSI, p. 292-294).

87
HEINZ, F. • Driblando escalas: nota sobre a comparação histórica dos regimes batllista e castilhista

Vitória militar sobre a Guerra Civil (1904) Revolução Federalista (1893-95) e


oposição Revolução de 1923
Possibilidade de livre Não, na maior parte do período Não, nunca
competição eleitoral para
a oposição
Sistema político dominante Democracia representativa com Ditadura republicana
exclusivismo colorado
Perfil social dominante da Setores médios urbanos Elites rurais “não centrais” e setores
equipe dirigente médios urbanos
Peso da imigração na Sim Não
origem das lideranças
Perfil social das lideranças Elites rurais Elites rurais (majoritariamente da
de oposição região da Campanha)
Relação com movimento Incorporação/conciliação Incorporação/conciliação
operário
Intervenção e regulação Sim Sim, mas limitada em função da
social legislação maior (federal)
Intervenção e regulação Sim, ampla Sim, parcial
econômica
Instrumento mais comum Política fiscal Política fiscal
em política econômica
Protecionismo econômico Sim Sim, mas limitado em função da
legislação maior (federal)

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90
Poder, instituições e elites

Encontros e desencontros do
cooperativismo na Argentina (Buenos Aires)
e no Brasil (Rio Grande do Sul)

Alba Cristina Couto dos Santos1


Marluza Marques Harres2

O cooperativismo constitui uma prática associativa com grande desta-


que nas sociedades latino-americanas. A tradição desse associativismo, for-
mada ao longo de todo o século XX, tem revelado uma profunda capacidade
de adaptação a diferentes contextos e crises. Dificilmente poderíamos falar
de um modelo universal de cooperativismo, embora se possam encontrar,
nas mais diversas experiências, um fundo comum, que pode ser traduzido
nos ideais de um humanismo social que persiste orientando a prática desse
associativismo. Existe uma pluralidade de estruturas e métodos, cujo desen-
volvimento tem desafiado, de modo positivo e inovador, a preservação dos
valores e princípios cooperativistas. Privilegiando valores como a democra-
cia e a participação igualitária, o cooperativismo configura-se, ao mesmo
tempo, como associação de pessoas e como empresa econômica, represen-
tando a construção de uma inserção diferenciada. Neste artigo, apresenta-
mos os resultados parciais de uma pesquisa que viemos desenvolvendo nos
últimos anos objetivando investigar e analisar comparativamente importante
período do cooperativismo rural no Rio Grande do Sul (Brasil) e na Provín-
cia de Buenos Aires (Argentina), abrangendo as décadas de 1950, 1960 e

1
Licenciada em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (2009/2) e mestranda em
História na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
2
Doutora em História pela Universidade Federal do Rio Grande Sul. Professora e pesquisadora
do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos.

91
SANTOS, A. C. C. dos; HARRES, M. M. • Encontros e desencontros do cooperativismo na Argentina e no Brasil

1970.3 Sistematizamos, no texto ora apresentado, alguns aspectos da trajetó-


ria do cooperativismo nos dois países, em especial a questão legal, a monta-
gem da rede de cooperação, a interação com o Estado e a preocupação com
a política cultural-educativa das cooperativas nas décadas destacadas acima.
A abordagem comparativa, inspirada na perspectiva de Marc Bloch
de buscar comparar sociedades próximas em termos espaciais e temporais,
abertas a influências mútuas e sujeitas ao compartilhamento de traços de
origens e condicionamentos comuns, amplia a capacidade de identificar e
compreender o peso das particularidades e diferenças nos fenômenos estu-
dados. Concordamos ainda com as colocações de Mancuso a respeito da
existência de três pontos perceptíveis no estudo comparativo da História: o
de contribuir para que o estudo histórico seja construído e através dele sur-
jam novas questões para cada caso estudado, o resgate de relações que até
então não eram identificadas e o auxílio para compreender as transforma-
ções dos espaços temporais (MANCUSO, 2005, p. 272).

Presença de imigrantes
Na Argentina o cooperativismo, como experiência associativa, apa-
rece já no século XIX, com os imigrantes europeus. No Brasil, encontra-
mos, também no século XIX, a difusão do ideal cooperativista e algumas
experiências pioneiras, mas somente no início do século XX temos registro
das primeiras cooperativas agrárias, o que ocorreu em áreas de colonização
alemã e italiana. A respeito da imigração, cabe destacar que, a partir do
processo de independência, esses países passaram a receber de modo ex-
pressivo imigrantes de diversas partes da Europa. No Brasil, uma das polí-
ticas adotadas no que se refere à recepção de imigrantes foi a povoação das
províncias do Sul, ou seja, as regiões fronteiriças e conflituosas do país.
Este movimento ganhou força nas décadas de 1820 e 1830 e caracterizou-

3
Este texto apresenta resultados parciais da pesquisa desenvolvida no Programa de Pós-Gradua-
ção em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos intitulada “Cooperativismo Rural.
Estudo comparado: o Rio Grande do Sul e a Província de Buenos Aires (1950-1970)”, realiza-
da no período entre 2008 e 2010 por Marluza Marques Harres, com apoio dos bolsistas de
iniciação científica Alba Cristina Couto dos Santos e André Ricardo de Andrade. A ele agrade-
cemos pela leitura e sugestões apresentadas a este texto.

92
Poder, instituições e elites

se como uma imigração centralizada, organizada e subsidiada pelo Estado;


ou seja, os imigrantes receberam terras concedidas nas províncias do Rio
Grande do Sul e de Santa Catarina.
Na província de Buenos Aires, a promoção de uma política de colo-
nização se deu no início da década de 1820, oferecendo terras e crédito aos
imigrantes. Contudo, as colônias de imigrantes não floresceram na Argen-
tina em função de dificuldades econômicas referentes à comercialização,
ao tipo de terras, aos locais de instalação e ao tamanho das unidades de
exploração. Segundo Fausto & Devoto (2004), nenhuma das colônias so-
breviveu. A imigração espontânea teve mais sucesso e foi significativa para
esse país. Desde 1810 estava estabelecida na Argentina, através da Primeira
Junta de Governo, a liberdade de imigração, o que favoreceu a entrada de
comerciantes europeus, ingleses e franceses, que se beneficiaram tanto das
liberdades comerciais quanto do fim do monopólio colonial. A imigração
europeia para a Argentina se intensificou a partir da década de 1830 por
conta do vazio demográfico que as guerras de independência e civis deixa-
ram no Litoral. Iniciou-se o povoamento em cidades e vilas da região, bem
como em algumas zonas rurais, sobretudo do sul de Buenos Aires4.
As cooperativas agrícolas passaram a integrar a lógica econômica,
introduzidas, principalmente, pelos imigrantes; mas, com o tempo, passa-
ram a ser instrumentalizadas pelos governos, o que aconteceu tanto na Ar-
gentina quanto no Brasil. Compreendemos cooperativa como “sociedades
de pessoas, organizadas em bases democráticas, que visam não só a suprir
seus membros de bens e serviços como também a realizar determinados
programas educativos e sociais” (PINHO, 1965, p. 8).
Como ideal de cooperação solidária, a prática cooperativista pene-
trou no Brasil nos finais do século XIX. Sua institucionalização estaria li-
gada aos problemas de abastecimento, provocados pelo crescimento dos
centros urbanos e industriais. Surgiu como uma proposta para eliminar,
mesmo que parcialmente, a crise, sendo apoiada primeiramente por grupos
de produtores mercantis e, após a década de 30, pelo Estado. Segundo

4
Ver mais sobre o estudo comparativo da população de Argentina e Brasil em: Fausto, Bóris;
Devtoto, Fernando J. Brasil e Argentina: um ensaio de história comparada (1850-2002). São
Paulo: Ed. 34, 2004. p. 40-50.

93
SANTOS, A. C. C. dos; HARRES, M. M. • Encontros e desencontros do cooperativismo na Argentina e no Brasil

Mendonça (2002, p. 17), desde 1910 um projeto de cooperativização agrí-


cola já era defendido por quadros ligados ao Ministério da Agricultura,
sem, contudo, redundar em medidas efetivas. O fato é que a presença e a
experiência dos imigrantes alemães e italianos na região Sul e dos japone-
ses na região Sudeste ajudaram a consolidar o movimento, incialmente com
completa independência em relação à estrutura estatal.
Segundo os autores Lauschner & Lens (1969), o Rio Grande do Sul foi
um dos estados do Brasil que mais contribuiu para o desenvolvimento do
cooperativismo no Brasil, embora se encontrem experiências em outros esta-
dos já no final do século XIX.5 Especialmente em relação ao cooperativismo
agrário, a experiência gaúcha foi decisiva, primeiro nas zonas de colonização
alemã, com as “Caixas Raiffeisen”, e depois na zona italiana, com as primei-
ras cooperativas vinícolas. A introdução e difusão dessa forma de organização
contaram com o apoio de algumas lideranças, como o Pe. Teodoro Amstad,
cuja atuação se destacava na área de colonização alemã, e Stéfano Paternó, o
grande mentor do cooperativismo na área de colonização italiana.
Na Argentina, uma primeira experiência de busca de cooperação em
bases associativas surgiu em 1898 no meio rural. Imigrantes franceses pro-
venientes de Aveyron (França) se instalaram na localidade de Pigué, Pro-
víncia de Buenos Aires, onde decidiram criar uma sociedade que suprisse
os danos causados pelo granizo nas plantações. Esta sociedade recebeu o
nome de “El Progreso Agrícola” e, para muitos, não pode ser considerada
uma cooperativa rural por excelência, pois seu objetivo era apenas assegu-
rar um seguro à lavoura (IZQUIERDO, 1972). A Liga Agrícola Ganadera,
fundada em 1904, em Junín, Província de Buenos Aires, representa inte-
gralmente uma cooperativa agrária, oferecendo aos associados diversos ser-
viços relativos à qualificação da lavoura e comercialização das colheitas.
As cooperativas fizeram com que os agricultores argentinos não dependes-
sem mais dos armazéns de ramos gerais, pois ofereciam o que os produto-
res precisavam para seu trabalho e distribuíam a renda de forma justa, eli-
minando intermediários.

5
No ano de 1891 surgiu, em São Paulo, a Associação Cooperativista dos Empregados da Com-
panhia Telefônica na cidade de Limeira, e, em 1895 foi fundada, em Pernambuco, a Coopera-
tiva do Proletariado Industrial de Camaragibe.

94
Poder, instituições e elites

A primeira comparação que estabelecemos diz respeito à forma como


o cooperativismo foi criado nas duas regiões, na Província de Buenos Aires
e no Estado do Rio Grande do Sul. Em ambas, foi fundamental a presença
de imigrantes originários da Europa, sendo uma marcada por programas
de colonização subsidiados e outra por forte presença de imigração espon-
tânea. No Estado do Rio Grande do Sul, a marca da colonização permane-
ce até hoje, e foi neste meio que o cooperativismo floresceu. Nesta encon-
tramos a vontade e perseverança de lideranças, uma delas religiosa, moven-
do e fomentando o cooperativismo, enquanto na Argentina o que se desta-
ca é a vontade coletiva, caracterizando um estilo e motivações diferentes.

Legislação e políticas públicas até 1949


O cooperativismo no Brasil surgiu sem um marco jurídico preexis-
tente, e os primeiros decretos não afetaram a independência do movimento
associativista que estava em andamento. A orientação legal da década de
1930 apresentou outras características, conformando efetivamente uma
política estatal cooperativista, e o Decreto-lei nº 22.239 de 1932 tem sido
reconhecido por muitos estudiosos como o marco jurídico do cooperativis-
mo. Esta legislação se apresenta com um traço bastante paternalista, que
comprometeu a autonomia das associações. O mérito principal deste De-
creto foi definir as cooperativas como sociedades de pessoas e não de capi-
tais, acrescentando tratar-se de uma forma jurídica sui generis. A Lei incor-
porou também, pela primeira vez, a figura do retorno das sobras proporci-
onalmente às operações, sem vinculá-lo ao capital. Para Pinho (1965), a
promulgação da Lei de 1932 desfez confusões, até então frequentes, entre
cooperativas e outras sociedades, como sindicatos. Entretanto, os dispositi-
vos apresentam algumas falhas consideradas imperdoáveis, como “limita-
ção do valor das quotas-partes de cada associado; quorum de funciona-
mento e deliberação das assembleias; indivisibilidade do fundo de reserva;
e singularidade pessoal do voto” (LIMBERGER, 1982, p. 13).
A década de 1930 é um período de grande relevância para o coopera-
tivismo brasileiro, pois este passou a integrar a estratégia econômica e polí-
tica do poder público para o campo. As cooperativas foram instrumento de
desenvolvimento rural, especialmente no âmbito da pequena propriedade,

95
SANTOS, A. C. C. dos; HARRES, M. M. • Encontros e desencontros do cooperativismo na Argentina e no Brasil

organizando os produtores rurais e a sua produção, transferindo-lhes além


do crédito e da renda, tecnologia para processar o produto e acelerar a in-
dustrialização no campo.
Na Argentina, como já indicado, muitas cooperativas rurais surgi-
ram nas primeiras décadas do século XX, inspiradas pelos ideais de Roch-
dale. Porém estas cooperativas rurais encontravam-se num estado de isola-
mento, representavam os sócios em determinadas localidades e raramente
se relacionavam umas com as outras. Esta barreira seria quebrada com o
surgimento das Federações, cooperativas de segundo grau que representa-
vam pessoas jurídicas, ou seja, as cooperativas, e eram constituídas por de-
terminadas categorias de cooperativas, podendo ser rurais, de seguros agrí-
colas e urbanas. As Federações rurais defendiam os interesses comuns en-
tre as cooperativas associadas, representando-as diante dos poderes públi-
cos, difundindo os ideais do cooperativismo, promovendo a educação, faci-
litando a exportação.
A Federação pioneira no território argentino surgiu no ano de 1922,
na localidade de Rosário, com o nome de Asociación de Cooperativas Ru-
rales Zona Central. Inicialmente contou com dez cooperativas associadas
nas Províncias de Santa Fe e Córdoba. Em 1927, esta Federação mudou
seu nome para Asociación de Cooperativas Argentinas (ACA) e, em 1944,
sua sede central foi transferida para a Província de Buenos Aires. Esta é,
sem dúvida, a Federação com maior destaque no movimento cooperativis-
ta argentino, devido ao fato de acompanhar ativamente toda a evolução do
cooperativismo rural argentino,
Com o crescimento que o cooperativismo argentino alcançou, tor-
nou-se importante normatizar nacionalmente o funcionamento das coope-
rativas. No dia 20 de dezembro de 1926, foi aprovada a Lei nacional nº
11.388 sobre o Regime Legal das Sociedades Cooperativas. Esta Lei possi-
bilitou o reconhecimento do cooperativismo como uma organização de-
mocrática com finalidade socioeconômica. A Lei 11.388 também aceitou
os princípios dos Pioneiros de Rochdale6 e expressou um forte sentido dou-

6
Os 28 tecelões em situação de greve e de demissão em massa começaram a esboçar, desde fins
de 1843, o que em dezembro do ano seguinte se traduziria na cooperativa de consumo, que, na
sobriedade operária, surgiu pequena e modesta, e desenvolveu-se ininterruptamente até nossos
dias (SCHNEIDER, 1994, p. 10).

96
Poder, instituições e elites

trinário, destacando a neutralidade política, étnica e religiosa e o desenvol-


vimento da educação. Após esta lei ser sancionada, surgiram muitas outras
federações e, com elas, o processo de difusão dos princípios de ajuda mútua
e solidariedade entre os sócios que se tornaram valores culturais fortemen-
te predominantes.
No Rio Grande do Sul, o avanço das cooperativas foi crescente, mas
somente na década de 1950 surgiram as primeiras Federações de Cooperativas
Agrícolas, com o propósito de representação administrativa e econômica, ou
seja, com as funções estabelecidas pela Associação Internacional de Coopera-
tivas. As primeiras federações foram: a Federação das Cooperativas do Vinho
do Rio Grande do Sul Ltda. (FECOVINHO), em 1952; a Federação das Coo-
perativas de Arroz do Rio Grande do Sul (FEARROZ), em 1953; a Federação
das Cooperativas Tritícolas do Rio Grande do Sul Ltda. (FECOTRIGO), em
1958; a Federação das Cooperativas de Lã do Rio Grande do Sul Ltda.
(FECOLAN), em 1959; e a Federação das Cooperativas de Carnes do Rio
Grande do Sul Ltda. (FECOCARNE), no ano de 1969.
Examinando os dois casos, fica claro que, na década de 1920, a Ar-
gentina já apresentava uma organização de cooperativas de segundo grau
gerenciando os interesses agrários dos cooperados. Neste mesmo período,
o cooperativismo no Brasil estava caminhando a passos lentos. Como des-
tacado anteriormente, a primeira legislação que contribuiu definitivamente
para o sistema cooperativo foi o Decreto-Lei de 1932, mas, ao mesmo tem-
po, feriu muitos dos princípios cooperativos. Em relação ao movimento de
organização e ao respaldo jurídico observa-se um grande descompasso: o
cooperativismo argentino estruturou-se bem antes do brasileiro. Outra di-
ferença fundamental se refere aos princípios de autonomia e autogestão do
cooperativismo argentino. O que se percebe na experiência do cooperati-
vismo no Rio Grande do Sul é, incialmente, a presença e influência religio-
sa e, depois, uma forte intervenção do Estado, centralizando o poder admi-
nistrativo e burocrático no Ministério da Agricultura.

Intervenção estatal, legislação e políticas públicas


No Brasil, as normas legais para o cooperativismo sofreram várias
alterações, dificultando a formulação e aplicação efetiva de uma política

97
SANTOS, A. C. C. dos; HARRES, M. M. • Encontros e desencontros do cooperativismo na Argentina e no Brasil

cooperativista. Este breve histórico legislativo serve para que entendamos


as barreiras que o cooperativismo sul-rio-grandense enfrentou.
Em 1933, o Decreto nº 23.611 revogou o Decreto de 1932 e trouxe
consigo os chamados consórcios profissionais-cooperativos, ou seja, corpo-
rações sem comprometimento com as características básicas do cooperati-
vismo. Em 1934, institui-se o cooperativismo sindicalista com o Decreto nº
24.647. Em 1938, o Decreto nº 581 revigorou o de 1932, assumindo, de
alguma forma, a ortodoxia rochdaleana. A legislação de 1938 dispôs sobre
o registro, fiscalização e assistência das cooperativas. Os registros seriam
entregues no Ministério da Agricultura por duas razões: a primeira, por se
tratar, na maioria dos casos, de cooperativas rurais; e a segunda, por ser
este ministério o mais antigo e, por isto, o mais aparelhado. A década de
1940 avançou na preocupação com o crédito, sendo criada a Caixa de Cré-
dito Cooperativo (CCC) por meio do Decreto-Lei nº 5893/1943, tempos
depois transformada em Banco Nacional de Crédito Cooperativo (BNCC)
através da Lei nº 1.412/1951.
A tentativa de regulamentação e controle ampliou-se com o Conse-
lho Nacional do Cooperativismo (CNC), criado por meio do Decreto nº
46. 438/1959. Este conselho ficou responsável pelo “estudo, recursos, con-
sulta, articulação, interpretação, definição de princípios econômico-sociais
e diretrizes técnico-doutrinárias e educativas, planejamento, difusão cultu-
ral, investigação socioeconômica e legal do cooperativismo brasileiro” (LIM-
BERGER, 1982, p. 20). A composição do Conselho era formada por repre-
sentantes de diversos órgãos: Ministério da Agricultura, Ministério do Tra-
balho, Ministério da Indústria e Comércio; Ministério da Educação e Cul-
tura; Ministério da Fazenda; Banco do Brasil, BNCC; Serviço Social Ru-
ral; Conselho Nacional de Estudos Cooperativos (CNEC) e União Nacio-
nal de Associações Cooperativas (UNASCO), que era uma entidade de re-
presentação nacional do cooperativismo criada em 1956.
Na medida em que o governo aprofundava a política de cooperativi-
zação, fez-se necessário constituir formas de organização nacional das coo-
perativas, revelando-se logo as dissenções e rivalidades também nesse meio.
Desde 1956, o movimento cooperativo era dividido em duas alas de repre-
sentatividade nacional: União Nacional de Associações Cooperativas
(UNASCO) e Associação Brasileira de Cooperativas (ABCOOP). Por con-

98
Poder, instituições e elites

ta das divergências internas das duas organizações, tornou-se difícil o aten-


dimento tanto das necessidades das próprias cooperativas como das políti-
cas econômicas do Estado que demandavam a participação das cooperati-
vas. Em 02 de dezembro de 1969, no IV Congresso Brasileiro de Coopera-
tivismo, em Belo Horizonte, foi criada a Organização das Cooperativas
Brasileiras (OCB). Essa nova instituição surgiu como resultado da decisão
do então governo militar de encerrar os desentendimentos internos das re-
presentantes nacionais do cooperativismo, correspondendo também à von-
tade dos cooperados, que se sentiam desassistidos. Com essa medida, o
governo militar pôde: concentrar o poder e o controle do Estado sobre as
cooperativas; inviabilizar as representações democráticas e a possibilidade
de participação e decisão das sociedades cooperativas em sua estrutura de
representação, ou seja, na OCB; usar os recursos públicos do cooperativis-
mo numa estrutura superior controlada, sem beneficiar diretamente a auto-
nomia das organizações de base, entre outras providências (FERREIRA,
2006, p. 01).
No Regime Militar, a política de modernização agrícola encontrou
dificuldade para manter-se. As cooperativas com expressividade estavam
no campo e possibilitaram assim, o apoio necessário para o desenvolvi-
mento dos planos econômicos. Com a implementação de um novo modelo
político, a agricultura empresarial articulou-se com a indústria, imprimin-
do uma nova visão baseada no cultivo intensivo do solo, na utilização de
insumos químicos e no emprego de máquinas industrializadas.
Essa mudança na política para o campo teve impacto sobre o coope-
rativismo. O Decreto-Lei nº 59/1966 revogou expressamente nove instru-
mentos legais, considerados conquistas do movimento cooperativo, que até
então estavam vigentes. Em meio à crise financeira aberta com a retirada
brusca das isenções tributárias e a carência de recursos, as deficiências no
quadro operacional das cooperativas apareceram de maneira mais expres-
siva, agravando as dificuldades. No exame desse contexto crítico são enfa-
tizadas “a ausência de educação cooperativista dos associados e dirigentes
e a falta de capacitação técnico-administrativa e empresarial dos dirigentes
e técnicos” (LIMBERGER, 1982, p. 22).
Lauschner & Lens (1969, p. 180) realizaram um estudo sobre esta
crise. Dentre as 173 cooperativas canceladas durante o período 1960-1969,

99
SANTOS, A. C. C. dos; HARRES, M. M. • Encontros e desencontros do cooperativismo na Argentina e no Brasil

102 o foram nos últimos dois anos e meio. “Mostra tal fato o corte violento
que foi feito no processo rápido de surgimento de cooperativas e a total
inversão de tendência do processo, após a introdução do ICMS (Imposto
sobre Circulação de Mercadorias e Serviços).
Na Argentina, as relações do cooperativismo rural com o Estado ocor-
riam por meio da representação feita pelas federações e pela confederação.
O cooperativismo rural argentino defendia a ideologia da não intervenção
estatal, porém, durante o período estudado, manteve constantes relações
com o Estado, visando à defesa dos seus interesses.
Durante o governo do general Juan Domingo Perón, uma politica de
sacrifícios para o setor rural resultou do I Plano Quinquenal de Governo
(1947-1951), cuja principal fonte de financiamento vinha do Instituto Ar-
gentino de Promoción del Intercambio (IAPI). Esse órgão tinha como fun-
ção intervir e controlar as importações e exportações realizadas pela Ar-
gentina, tomando parte direta nas transações de compra e venda dos pro-
dutos agropecuários, o que acabou gerando saldos positivos para o governo
(LATTUADA, 1986, p. 86).
O desenvolvimento veio com o Segundo Plano Quinquenal (1953-
1957) na medida em que foram sendo aplicados múltiplos incentivos eco-
nômicos. De modo geral, o programa previa: uma política de colonização e
de reordenamento do uso da terra; o aumento da mecanização para a pro-
dução agropecuária; a capacitação técnica para os produtores; a fixação
antecipada dos preços visando a uma melhor remuneração para os agricul-
tores; o fomento da indústria agropecuária regional, e preferentemente co-
operativa, entre outras providências indicadas. Este Segundo Plano reser-
vava um papel importante para o cooperativismo, estabelecendo como meta:
“fomento especial para la organización cooperativa de los productores agro-
pecuarios, las cuales deberán transformarse en las unidades básicas de la
economía social-agraria, que progresivamente participarían de la coloni-
zación, comercialización interna e externa e industrialización de la producción
agropecuária” ( LATUADA, 1986, p. 99).
Perón também teve uma preocupação especial com o crédito, um gran-
de aliado de sua política, alavancando o crescimento econômico no meio
rural. Um dos principais agentes de crédito era o Banco de la Nación Ar-
gentina, que desde a década de 1930 já operava neste sistema. Em 1946, o

100
Poder, instituições e elites

Consejo Agrario Nacional passou a atuar juntamente com o Banco de la


Nación, registrando, no mesmo ano, vínculo com 70% das 600 cooperati-
vas agrárias que existiam na argentina (BLACHA, 2006, p. 29). A política
adotada por Perón pretendeu atender a todos os segmentos, pequenos,
médios e grandes produtores, por meio do crédito ágil e barato. Facilitou o
acesso ao crédito para assistência técnica, introdução de máquinas agríco-
las, novas ferramentas de trabalho e sementes para que os trabalhadores
rurais pudessem produzir, acelerando, assim, o processo capitalista.
Outro instrumento forte de poder que o presidente argentino utilizou
foi o discurso, por meio do rádio, da televisão ou diretamente ao público.
Nos discursos, Perón falava de uma sociedade ideal, uma nova Argentina
que precisava da ajuda do produtor rural, e para isso seria fornecido todo o
material de trabalho de que este precisasse. Para sensibilizar o setor rural,
nos discursos o presidente procurava demonstrar os benefícios que sua po-
lítica agrária trazia (LATTUADA, 1986, p. 92).
Algumas federações, como a Asociación de Cooperativas Argentinas
(ACA), conseguiram entrar no sistema de créditos fornecidos pelo Banco
de la Nación. Visando ao incremento da venda de grãos das cooperativas
sócias, a ACA pediu, no ano de 1950, a ampliação do crédito para financiar
as operações de venda da produção dos associados para o Instituto Argen-
tino de Promoción del Intercambio – IAPI (BLACHA, 2006, p. 33). Por
meio da compra de grãos efetuada pelo IAPI, a ACA passou a ser a princi-
pal Federação de venda de grãos, como também efetuou uma espécie de
troca de favores com o Estado. Enquanto o Estado fornecia crédito por
intervenção de Perón, a ACA vendia seus produtos para o órgão autárqui-
co. Em 1952, o Banco de la Nación passa a ter uma Gerência Departamen-
tal de Cooperativas, revelando a importância destas na política governa-
mental, por um lado facilitando-lhes o crédito, mas por outro ampliando o
controle sobre as mesmas, e incentivando inclusive o surgimento de novas
agências representativas.
Em março de 1950, autoridades nacionais e provinciais se reuniram
na Primeira Conferência de Cooperativas Agrárias, ato que constituiu uma
nova associação de cooperativas. Esta recebeu o nome de Asociación de
Cooperativas Agrarias Bonaerenses e agia sob total intervenção do Estado,
sendo beneficiada pelo mesmo. Segundo Mateo, “esta nueva federación se

101
SANTOS, A. C. C. dos; HARRES, M. M. • Encontros e desencontros do cooperativismo na Argentina e no Brasil

beneficia con la primera adjudicación de 125 máquinas agrícolas que lle-


gan al país a mediados de 1950 y con envases necesarios para la cosecha”.
Após saber deste fato, as duas maiores federações de cooperativas da Pro-
víncia de Buenos Aires, FACA e ACA, não permaneceram caladas e se
manifestaram. A ACA afirmava não ter intenção nenhuma de estabelecer
um conflito com o Estado, mas posicionou-se contra todo apoio que o go-
verno ofereceu preferencialmente para a Asociación de Cooperativas Agra-
rias Bonaerenses, pois não considerava adequado o governo instalar uma
outra entidade na mesma zona onde já funcionava uma deste gênero (MA-
TEO, 2002, p. 12). Além disso, neste mesmo ano também foi fundada a
Asociación de Cooperativas Agrarias Ltda. (ADCA), que também tinha
sua sede na Província de Buenos Aires, possuindo um grande número de
cooperativas filiadas. O principal objetivo desta federação era a produção
de grãos dos seus associados.
O crítico período do pós-guerra se configurou como um contexto de
forte intervenção nos dois países. Os primeiros 40 anos de história do coo-
perativismo agrário argentino serviram para formar uma estrutura firme-
mente constituída, que seria um dos pontos de apoio da política agrária
durante a presidência de Perón. O quadro de relações na Argentina guarda
diferenças, pois já existia uma cooperativa de terceiro grau, uma Confede-
ração Intercooperativas Agropecuárias que congregava a maioria de fede-
rações (PINHO, 1965, p. 74).
Nas duas regiões, as políticas públicas demonstraram interesse em fo-
mentar e articular com as cooperativas uma estratégia de ação econômica. Com
décadas de crise e de apoio à industrialização, a atração pelas cidades cresceu
significativamente, fazendo com que os governos federais também voltassem
seus olhares para o campo, a fim de evitar o êxodo rural e assegurar o aumento
da produção de bens agropecuários, especialmente para exportação.

Renovação na década de 1970


A Argentina teve uma importante mudança no início da década de
1970. No ano de 1971, a Secretaría de Estado de Agricultura y Ganadería
passou a integrar o Ministério de Economía y Trabajo, estando o coopera-
tivismo representado no Consejo Asesor de Política Agropecuária. Neste

102
Poder, instituições e elites

Conselho, o cooperativismo tinha a representação da CONINAGRO, que


defendia os interesses dos produtores rurais e todo assunto que possuísse
alguma relação com o movimento cooperativista rural argentino. Neste
mesmo ano, foi criado, pela Lei 19.219, o Instituto Nacional de Acción
Cooperativa (INAC), que passou a autorizar, controlar e fomentar as coo-
perativas naquele país. Em 1972, foi aprovada a Lei 19.550, que reformula-
va o regime das sociedades comerciais, de alguma forma presente desde
1889 no Código do Comércio. Esta lei teve relativa importância, pois criou
um artigo onde estabelecia o cooperativismo como parte específica, uma
sociedade que não visava a lucros. Percebendo a necessidade de criar uma
nova lei nacional de cooperativas que reformulasse a antiga, o cooperativis-
mo passou a organizar-se rapidamente e propôs uma nova lei no ano de
1973, que se concretizaria na Lei 20.337.
Durante 47 anos, a Lei 11.388 foi um exemplo de doutrina do coope-
rativismo argentino, sendo uma iniciativa anterior ao caso brasileiro. Além
disso, a nova Lei 20.337/73 manteve os princípios cooperativos proclama-
dos anteriormente, detalhando, adaptando e renovando novos aspectos. O
modo como o cooperativismo cresceu exigiu uma lei que se adaptasse a
nova realidade do movimento.
Nesta mesma época, no Brasil presenciaram-se mudanças e a criação
de novos órgãos estatais, como o Instituto Nacional de Colonização e Re-
forma Agrária (INCRA) no Decreto-Lei nº 1.110, que substituiu o Institu-
to Brasileiro de Reforma Agrária (IBRA) e o Instituto Nacional de Desen-
volvimento Agrário (INDA). A regulamentação veio em 1971 pelo decreto
nº 68.153. Este instituto era responsável pela fiscalização das cooperativas e
por dar continuidade à política de cooperativas de reforma agrária iniciada
pelas instituições IBRA e INDA. A reformulação da máquina estatal foi acen-
tuada com o INCRA, introduzindo outro sentido para a reforma agrária.
A fase de renovação da legislação cooperativa surgiu com a Lei nº
5.764, de 1971, a qual foi gestada com plena participação das próprias inte-
ressadas. Esta importante lei considerou muitos pontos problemáticos do
Movimento Cooperativo Nacional referentes à estrutura econômica; à na-
tureza associativa; ao cunho organizacional; à área operacional; aos meios
e às cooperativas de caráter misto. Por essa lei, o Ministério da Agricultura
determinou ao INCRA que promovesse um maior incentivo ao cooperati-

103
SANTOS, A. C. C. dos; HARRES, M. M. • Encontros e desencontros do cooperativismo na Argentina e no Brasil

vismo rural, pois o governo federal entendia que esta era a melhor forma de
normalizar o abastecimento, reduzir os conflitos fundiários e promover o
desenvolvimento agrícola. Para Perius (1994, p. 24), a lei carregava as mar-
cas da interferência do Estado na vida das cooperativas, mas cabe também
destacar que abriu as portas para a educação cooperativista ao destinar 5%
das sobras líquidas das cooperativas para serem investidos em um Fundo
de Assistência Técnica, Educacional e Social.
Neste contexto, evidencia-se que, tanto na Argentina quanto no Bra-
sil, obtiveram-se renovações nas estruturas cooperativas. No entanto, a in-
tervenção estatal brasileira se fez mais presente que na Argentina, marcan-
do o período de forte centralismo estatal.

Experiência com a juventude cooperada


Na Argentina, o envolvimento da juventude nas cooperativas agrárias
de primeiro grau foi frequente, o que ocorria de diversas formas. Já na dé-
cada de 1930, encontram-se o incentivo e a fundação de clubes agrários,
contando estes com apoio e orientação do conselho de administração da
cooperativa. O trabalho realizado afirmava os valores culturais do coopera-
tivismo, como solidariedade, ajuda mútua e participação responsável.
A Associação de Cooperativas Argentinas (ACA) incentivava a for-
mação de centros juvenis nas cooperativas primárias, para que os jovens
pudessem desenvolver suas atividades regionalmente também. O incentivo
à participação ativa dos jovens surgiu como uma forma de renovar a ener-
gia, aperfeiçoar e ampliar o movimento cooperativista. Em 20 de maio de
1944, partiram do interior da Argentina as delegações juvenis, conduzidas
pelo presidente e membros do conselho administrativo desta Associação,
para um Congresso Agrário em Olavarría, onde foram recebidas pela ju-
ventude agrária cooperativista local e por representantes de outros centros
do sudeste e sudoeste de Buenos Aires. Tal congregação resultou na decla-
ração de princípios das juventudes cooperativistas agrárias e no incentivo à
institucionalização dos grupos juvenis em todas as cooperativas. Por meio
da criação de um Consejo Central se tentou aglutinar as Juventudes Agrá-
rias Cooperativistas (JAC) com o objetivo de capacitação e elevação da
qualidade de vida no meio rural (MATEO, 2006, p. 69 e 70).

104
Poder, instituições e elites

A Escuela Cooperativa Móvil, fundada pela Asociación Cooperativa


Argentina (ACA), passou a funcionar a partir de 1963, levando às coopera-
tivas filiadas os princípios do cooperativismo. Itinerantes, instalavam-se nas
dependências das cooperativas filiadas, ali permanecendo por uma sema-
na, com uma equipe de profissionais qualificados ministrando cursos e pa-
lestras sobre o cooperativismo, sua organização, economia, contabilidade,
legislação e comercialização (CRACOGNA, 1968, p. 119), além de abor-
dar temas como a ecologia, a cooperativa frente à globalização, evolução
de serviços, administração e como funciona a juventude agrária cooperati-
vista. Muitos jovens, após a conclusão do curso, aderia à causa adotada
pelo movimento militante cooperativista.
El cooperativismo, por su doctrina y organización democrática, se transfor-
ma en un verdadero sistema socio-económico corrigiendo los abusos de los
sistemas capitalistas y colectivistas y facilitando un mejor desarrollo de las
relaciones de justicia e igualdad entre los hombres. El cooperativismo pre-
tende crear así una nueva sociedad basada en el respecto mutuo y la demo-
cracia (ACA, 1984, p. 17).

A Escuela Cooperativa Móvil busca divulgar a filosofia cooperativis-


ta e formar pessoas aptas e capacitadas. Leva seus programas a distintos
lugares do país, sejam povoados rurais ou cidades com estrutura urbana.
Atua com os centros juvenis de cooperativas associadas, juntamente com a
ACA. O ensino é aberto para jovens, estudantes e docentes do ensino pri-
mário, secundário e universitário, fornecendo conhecimento sobre a dou-
trina econômica e social cooperativa.
Desde sua fundação, o movimento juvenil cooperativista argentino
tem seu trabalho voltado para a difusão da cultura entre os trabalhadores
rurais, demonstrando capacidade de informar os associados, promover a
ajuda mútua, tornando o campo um espaço em que podem ser praticados
valores coletivos e educação.
No Rio Grande do Sul, este incentivo para uma educação cooperati-
va surgiu através de convênios entre os governos federal e estadual e as
cooperativas. A primeira experiência foi a dos Clubes 4S (Saber, Sentir,
Saúde e Servir). Este movimento juvenil iniciou no Brasil no ano de 1952,
no Estado de Minas Gerais, através do apoio ao Serviço Público de Exten-
são Rural. No ano de 1956, o movimento surgiu em São Lourenço do Sul,
no Estado do Rio Grande do Sul. O projeto de extensão rural foi o princi-

105
SANTOS, A. C. C. dos; HARRES, M. M. • Encontros e desencontros do cooperativismo na Argentina e no Brasil

pal patrocinador dos Clubes 4S e fundamenta as razões de criação destes


clubes no estado. Sua filosofia é: “capacitar os jovens para a produção agrá-
ria competente e eficiente administração do lar”. Baseados no princípio “apren-
der fazendo”, os jovens do campo aprendiam novas técnicas de agropecuária;
serviços domésticos; noções de saúde e de alimentação, além de desenvolve-
rem o associativismo e o espírito de liderança (RIZZO, 1989, p. 34).
Em 1959, foi firmado convênio entre a prefeitura de Porto Alegre, o
governo do Estado, na ocasião sob o comando de Leonel Brizola, e a Asso-
ciação Sulina de Crédito e Assistência Rural – ASCAR.7 A sua finalidade
era a execução de um amplo programa de extensão articulado com as enti-
dades já existentes no município. A prefeitura comprometeu-se a cooperar
financeiramente com as ações da ASCAR no campo: auxílio aos agriculto-
res na organização e aproveitamento dos seus recursos naturais; orientação
técnica; promoção do desenvolvimento comunitário; assistência econômi-
ca às famílias; incentivo à criação de clubes agrícolas juvenis 4S.
Diante desta notícia, podemos perceber a expansão do programa e
da implantação dos Clubes 4S, inclusive implantados na capital do estado,
a fim de atender a sua zona rural. Segundo Rizzo (1989, p. 34), os objetivos
principais destes clubes foram dar oportunidade ao jovem de conhecer e
experimentar tecnologias agropecuárias de gerência, bem-estar social e ad-
ministração do lar; viabilizar a participação da juventude em cursos profis-
sionalizantes, dirigidos aos diversos setores da economia; desenvolver o
espírito crítico, criativo e prático do jovem; e desenvolver o espírito associ-
ativo e de liderança comunitária.
Os clubes recebiam apoio das cooperativas associadas, por meio do
fornecimento de insumos e da comercialização de sua produção. A assis-
tência técnica lhes era proporcionada pelos extensionistas rurais (engenhei-
ros, agrônomos e técnicos), e tinham acesso aos meios de comunicação
através da igreja local.
O Estado do Rio Grande do Sul recebeu também o projeto-piloto
denominado Centro Cooperativo de Treinamento Agrícola (CCTA). Este
projeto foi apresentado em 1954, no III Congresso Nacional dos Municípios,

7
Correio do Povo, Porto Alegre, 3/01/59, p. 7.

106
Poder, instituições e elites

em forma de tese, pelo engenheiro agrônomo Francisco Gago Lourenço Fi-


lho. Após esta experiência, criou-se um CCTA para todo o país, mostrando
que a estrutura do Centro era eficaz no atendimento ao jovem filho de agri-
cultor. Os CCTA provocaram o interesse das Caixas Rurais, prefeituras e
comunidades que almejavam a instalação dos centros em seus municípios.
Em 1958, a notícia intitulada “Novos Centros Cooperativos de Trei-
namento Agrícola” indicava a implantação do CCTA no estado, que deve-
ria responder pela intensificação da educação rural, conforme projeto do
Conselho Nacional de Educação Rural (CNER). O objetivo do CNER era
treinar os jovens filhos de agricultores, sob o regime cooperativista, em téc-
nicas agrícolas e pecuárias para despertar-lhes e firmar o interesse pelo meio
onde viviam, evitando o êxodo rural.8
As cidades do Rio Grande do Sul que ganharam o CCTA com o
auxílio das Caixas Rurais foram: Dois Irmãos e Cerro (1959); São Francis-
co de Assis e Panambi (1960) e Júlio de Castilhos (1961).
No ano de 1965, um novo acordo foi firmado entre o Ministério da
Educação e Cultura, juntamente com o Instituto Nacional do Desenvolvi-
mento Agrário (INDA), e o Governo do Estado do Rio Grande do Sul,
representado pelo Instituto Gaúcho de Reforma Agrária e pela Secretaria da
Educação e Cultura, buscando a reformulação e dinamização dos CCTAs.
Entre os objetivos constavam: (1) Melhorar a adaptação do homem ao meio
rural, organizar um plano que tivesse atividades práticas agrícolas e zootéc-
nicas, desenvolver um programa entrosado no trabalho do campo, sempre
com práticas, tentando civilizar o homem e o meio e elevá-lo cultural e
economicamente. (2) O regime cooperativista pretendia dar capacitação
profissional aos jovens filhos de agricultores e criadores, ou ainda àqueles
que tinham uma tradição no meio rural. Sempre perseguindo os objetivos,
capacitá-los a melhorar tecnicamente os métodos de produção e criação.
Além deste treinamento, dar ensinamentos e assistência aos adultos, cursos
rápidos para moças e esposas de agricultores nas lides domésticas. (3) Os
centros tinham ainda como objetivo orientar a energia e a inspiração cria-
dora dos jovens, em favor de suas comunidades, renovando-lhes as condições

8
Correio do Povo, Suplemento Correio Rural, Porto Alegre, 19/09/1958, p. 19.

107
SANTOS, A. C. C. dos; HARRES, M. M. • Encontros e desencontros do cooperativismo na Argentina e no Brasil

gerais, individuais e sociais, despertando no jovem a capacidade de lideran-


ça, para que desenvolvesse a comunidade rural a que pertencesse, de modo a
integrá-la no desenvolvimento rural brasileiro (CORRÊA, 1969, p. 155).
Em primeiro lugar, fica clara a pretensão do CCTA de evitar o êxodo
rural destes jovens através dos estudos, fazendo com que eles se sentissem
integrados na comunidade rural e no país. Além disso, estimulava o desen-
volvimento da região a que pertencessem, através da viabilização das técni-
cas agrícolas. E mais, não podemos deixar de destacar a importância destes
centros na divulgação do sistema cooperativo através da educação; mesmo
que visassem no primeiro momento à promoção financeira dos envolvidos,
desenvolvia também a capacidade de liderança e decisão do jovem coope-
rativado, exercitando a democracia e autogestão.
O processo educativo se dava por meio de três modalidades de treina-
mento. No Treinamento Integral, o jovem passava por todas as atividades
do projeto, principalmente, as que se apresentavam relacionadas com a cul-
tura e criação da região. Daí a importância das atividades serem significati-
vas para a região. Deveriam ter idade entre 15 e 20 anos, com instrução
mínima da quinta série do Ensino Fundamental. No Treinamento em Ati-
vidades Específicas, o jovem permanecia no centro somente o tempo neces-
sário (não ultrapassava três meses) para adquirir conhecimentos técnicos e
práticos sobre aquilo que queria aprender especificamente. Durante a sua
permanência no CCTAs, poderia receber e executar tarefas, cooperar em
outros projetos, conforme sua capacidade e interesse. Por fim, havia o Trei-
namento em Atividades Restritas. Este treinamento não era direcionado
somente para jovens. Por ser intenso e de curta duração (cinco dias), servia
também para os agricultores e suas esposas, dependendo do curso. Além
dos Treinamentos, participavam de outras atividades educacionais: reali-
zando encontros educacionais informais com os agricultores, para discuti-
rem problemas da região, transmitiam-se informações técnicas e tantos
outros assuntos que interessavam ao meio. Dentre eles estava o cooperati-
vismo. Participavam desses encontros os técnicos, assistentes sociais, edu-
cadoras sanitárias, técnicas em nutrição e técnicas em recreação.
Desta forma, o jovem se instruía e vivenciava a realidade de uma
cooperativa educacional, desenvolvendo um relacionamento íntimo com o
sistema cooperativista.

108
Poder, instituições e elites

É através da educação cooperativista e pela experiência que adquirem na


prática de uma entidade deste tipo, como sócio ou como membro de sua
diretoria, que preparamos os jovens para o futuro, organizando os produto-
res de sua zona a juntos promoverem a defesa de seus interesses (CORRÊA,
1969, p. 160).

Encontramos a presença da igreja através da Frente Agrária Gaúcha


(FAG), a partir de 1968, fomentando a educação juvenil e associativa no
meio rural. Outras iniciativas surgiram na década de 1970, iniciativas de al-
gumas cooperativas isoladas, como da Cooperativa Agropecuária Alto Uru-
guai (COTRIMAIO), que passou a realizar cursos de formação voltados
para os jovens a partir de 1979. A Cooperativa Tritícola de Panambi Ltda.
(COTRIPAL), em conjunto com a Secretaria Municipal de Ensino e Cultu-
ra, desenvolveu um programa de educação nas escolas – entre as disciplinas
estava o cooperativismo – nos municípios de Panambi, Pejuçara e Condor.9
No Encontro Gaúcho de 1978, chamava-se a atenção para as motiva-
ções externas que conduziam o movimento cooperativista gaúcho, necessi-
tando, assim, reforçar o caráter solidário e integrado do sistema.
O fortalecimento e autonomia do Movimento Cooperativista só se darão,
portanto, a partir de um processo de desenvolvimento dos recursos huma-
nos em consonância com tais objetivos, considerando-se não apenas os qua-
dros diretivo e funcional, mas também o corpo associativo, como recursos
humanos a serem permanentemente desenvolvidos em número e qualidade
crescente (MARQUES, 1978, p. 1).

Mesmo nos movimentos culturais e doutrinários, percebe-se a forte


intervenção do Estado no Brasil, sendo muitas vezes o fomentador da edu-
cação nas cooperativas em âmbito regional. Na Argentina, esta iniciativa
coube às Federações, que, muito cedo, na década 1940, passaram a investir
em programas de educação voltados para os jovens do campo. A educação
permanente para os recursos humanos revigora o sistema frente às necessi-
dades cambiantes da realidade, o que não acontece com os treinamentos
esporádicos de técnicas e mecanismos de desenvolvimento.
Não evidenciamos no Brasil uma declaração de princípios da juven-
tude, como aconteceu na Argentina. A preocupação com os jovens, desde o

9
Para saber mais sobre a presença da juventude e as experiências cooperativas, ver: Vânia
Rizzo, 1989.

109
SANTOS, A. C. C. dos; HARRES, M. M. • Encontros e desencontros do cooperativismo na Argentina e no Brasil

primeiro momento, era com a contenção do êxodo rural, estimulando, as-


sim, a educação, o conhecimento e o bem-estar no meio rural. Já na Argen-
tina, este trabalho foi direcionado para o ensinamento e fortalecimento do
sistema cooperativo.

Considerações finais
Tanto no Rio Grande do Sul como na Argentina, as origens do co-
operativismo remontam ao final do século XIX e vinculam-se às experiências
trazidas pelos imigrantes europeus. Para a Argentina, “el crecimiento del
número de cooperativas fue progresivo en todo el país, especialmente en la
región central, y tuvo su momento de mayor expansión entre mediados de
la década de 1940 y 1950.”10 Entretanto, um exame do número de associa-
dos revela uma forte expansão do cooperativismo até o início dos anos de
1970. Algumas associações foram particularmente importantes no desen-
volvimento do movimento cooperativo argentino, como Agricultores Fe-
derados Argentinos, criada em 1932 por iniciativa da Federação Agrária
Argentina, que impulsionou, a partir dos anos de 1950, a criação de Cen-
tros Cooperativos Primários em diversas localidades, incluindo o norte de
Buenos Aires. A Federação Agrária Argentina estimulou a criação, em 1947,
da Federação Argentina de Cooperativas Agrárias (FACA), que chegou à
década de 1970 como a mais importante empresa cooperativa de comerciali-
zação de grãos do país. A Associação de Cooperativas Argentinas (ACA)
foi a primeira cooperativa das cooperativas agrárias que funcionou neste
país, estando em funcionamento na atualidade.
Para o Rio Grande do Sul, os períodos de destaque pela expansão
expressiva das cooperativas e federações de cooperativas são as décadas de
1950 e 1970. Segundo José Odelso Schneider, em 1961 eram apenas três as
Cooperativas Centrais, chegando a sete em 1978. Quanto às Federações de
Cooperativas, havia cinco em 1961, num total de 11 em todo o país, e oito
em 1981, com destaque, no âmbito rural, para a FECOTRIGO, FECOVI-

10
LATTUADA, Mario. El cooperativismo agrário ante la globalización. Buenos Aires: Siglo XXI,
2004. p. 25.

110
Poder, instituições e elites

NHO, FEARROZ, FECOLÃ, FECOERGS, FECOCARNE. No Rio Gran-


de do Sul, a propaganda e a cultura do associativismo cooperativo encon-
traram outras formas de difusão, como o sindicalismo rural influenciado
pela igreja e também os movimentos sociais rurais, que foram os grandes
estimuladores e orientadores para a organização dos pequenos e médios
produtores rurais em cooperativas. Talvez seja pertinente examinarmos,
para o caso gaúcho, os incentivos e a contribuição representada pelas orien-
tações e promoções destas outras associações para a formação de uma cul-
tura cooperativa.
Nas duas regiões, Província de Buenos Aires e Rio Grande do Sul, o
cooperativismo foi um importante fator para o desenvolvimento econômi-
co, responsável pela integração dos produtores rurais nos moldes de produ-
ção capitalista, embora sem perder, pelo menos em termos de princípios, a
percepção da capacidade alternativa oferecida por esse sistema de produ-
ção e relação comercial. A organização cooperativa, especialmente quan-
do pensamos nos pequenos e médios produtores, abriu canais para o diálo-
go com o poder público, estabelecendo novas formas para negociações e
representações de interesses.
Talvez na atenção à educação, especialmente na Argentina – em mãos
da própria rede de cooperativas e organizada operacionalmente no âmbito
do sistema cooperativo agrário –, ainda tenham permanecido vivos muitos
dos princípios inspiradores do cooperativismo, no sentido de buscar cons-
truir outras relações econômicas. Isso não impediu, entretanto, a estrutura-
ção de um sistema agrário cooperativo aberto ao mundo dos grandes negó-
cios, atuando e funcionando na lógica do capitalismo Neste sentido, a es-
truturação do cooperativismo rural nas duas regiões em nada diferiu. Em
relação ao Rio Grande do Sul, há que aprofundar a reflexão sobre o que
exatamente significava a diferença, em termos doutrinários, representada
pela influência do catolicismo que caracterizou parte expressiva da expe-
riência cooperativista no estado sulino.

111
SANTOS, A. C. C. dos; HARRES, M. M. • Encontros e desencontros do cooperativismo na Argentina e no Brasil

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113
114
Poder, instituições e elites

“Um império de cruzes, togas e espadas”


Notas comparativas sobre as elites políticas do
Rio Grande do Sul, do Ceará e da Bahia
no período monárquico

Jonas Vargas

Nos últimos anos, alguns estudos contribuíram significativamente para


uma nova visão acerca da história da construção do Estado imperial brasi-
leiro. Neste sentido, cada vez mais os pesquisadores vêm se interessando
pelo papel das elites regionais no interior do sistema político oitocentista.1
Tradicionalmente vistas como forças centrífugas ou obstáculos a serem der-
rotados pelos estadistas da Corte2, atualmente estas elites também são estu-
dadas como importantes protagonistas ao longo deste processo, tendo in-
fluído nos ritmos e na própria forma em que a mesma monarquia se conso-
lidou. O presente estudo segue o caminho destas novas pesquisas.
Desde que o Brasil se tornou independente de Portugal, as províncias
viram-se no direito de escolher seus representantes políticos na Corte, tanto
na Câmara dos Deputados quanto no Senado. Além disso, a partir de 1834,
também foram criados órgãos legislativos em nível provincial, o que se cons-
tituiu num verdadeiro divisor de águas no arranjo institucional herdado do
período colonial. Estas Assembleias Legislativas serviriam como espaço
privilegiado das elites provinciais ao longo de toda a monarquia, não sendo
extintas pelo chamado Regresso conservador (DOLHNIKOFF, 2005). Por-
tanto, além de terem conquistado o direito de legislar sobre questões pro-
vinciais de ordem tributária, policial, de infraestrutura, entre outros seto-

1
Ver, por exemplo, Graham (2001), Dolhnikoff (2005), Martins (2007), Dantas (2009), Gouvêa
(2008).
2
Sobretudo, nas teses de Carvalho (2003) e Mattos (1990).

115
VARGAS, J. • “Um império de cruzes, togas e espadas”

res, estas elites ainda participaram ativamente do governo central por meio
da sua atuação na Câmara e no Senado – importantes espaços de represen-
tação nacional e que, sendo eletivos, refletiam a expressão política das eli-
tes regionais.
Entretanto, a complexidade deste sistema político não se esgotava na
separação das esferas de atuação dos cargos que o compunham. Quando se
tomam as famílias como unidade política de análise, observa-se que sena-
dores e deputados gerais estavam vinculados por laços de parentesco tanto
aos deputados provinciais quanto a importantes lideranças nas localida-
des.3 Além do mais, o exercício de funções legislativas num âmbito nacio-
nal não vetava o compromisso dos deputados e senadores com seus interes-
ses regionais e até mesmo locais. Na prática, as razões de Estado, entendi-
das como politicamente superiores, não se chocavam diretamente com as
redes clientelísticas mantidas pelos mesmos agentes e que os conectavam
com as suas regiões de origem. Era na realização destas últimas que muitos
aspectos das primeiras acabavam se concretizando. Conforme Graham, este
tipo de relação “não conflitava com o crescimento do poder central, pois as
autoridades local e central coexistiam numa relação recíproca” (GRAHAM,
2001, p. 41). O pertencimento de ambas as autoridades a um mesmo parti-
do sedimentava estes vínculos. No interior destas redes de relações que en-
volviam os parlamentares na Corte, os recursos materiais e imateriais transa-
cionados reuniam agentes da sua própria base eleitoral, ou seja, favoreciam
suas regiões de origem. Tudo isto resultava num verdadeiro mosaico de
interesses políticos e econômicos que compunham o Legislativo da Corte,
pois o perfil sociológico das elites provinciais que ocupavam tais cargos
refletia naturalmente as singularidades de cada região. No entanto, havia
uma convergência de interesses e opiniões políticas entre muitos membros
destas elites, sendo a permanência da monarquia e da escravidão algumas
das mais notáveis.
Portanto, as diversidades econômicas e socioculturais de cada região
influíam na diversidade do perfil socioeconômico das elites políticas, e, num
olhar mais macroanalítico, que vai além das histórias dos gabinetes e dos

3
Como demonstraram Martins (2007) e Vargas (2010a), entre outros.

116
Poder, instituições e elites

debates parlamentares, é possível capturar culturas políticas regionais na


longa duração. Estas podiam ter raízes profundas no período colonial e
apresentar traços permanentes no período republicano. Neste sentido, en-
tendo que a unidade política do Império, entre outros fatores, foi mantida
pela ação de ricas e influentes famílias em diferentes níveis de poder políti-
co, das suas paróquias até a Corte, que agiam em cada um deles por meio
de seus membros mais qualificados e possuíam interesses regionais diver-
sos, mas também muitos interesses em comum. Estes foram defendidos em
momentos cruciais da história do Império, como na Independência e na
sua consolidação, no combate às revoltas regenciais, na participação das
eleições com suas clientelas sustentando a maioria parlamentar necessária
para a governabilidade, na defesa da permanência da escravidão, no con-
trole social local por meio da Guarda Nacional e demais cargos paroquiais
que mantinham a ordem social em suas regiões, entre outros.
Entretanto, no interior destas famílias somente alguns indivíduos
possuíam a capacidade de adentrar o círculo político restrito da Corte, ne-
gociar alianças, encaminhar pedidos e obter ganhos para suas regiões de
origem sem deixar de atuar em causas de caráter mais nacional. Eram ho-
mens que entendiam os dois mundos pelos quais transitavam e foram fun-
damentais para intermediar os interesses do governo central e os das lide-
ranças políticas regionais. Ao realizarem tais tarefas, eles constituíram-se
em mediadores, tornando-se peças-chave no interior de todo o sistema. Por-
tanto, antes de iniciar a análise, é necessário fazer algumas considerações
sobre estes indivíduos.

O “mediador”
A distância física e temporal que separava as províncias do mundo da
Corte constituía-se num obstáculo por onde somente alguns poucos indiví-
duos conseguiam transitar com distinção e obter ganhos dele. Os “media-
dores” (brokers) eram pessoas que possuíam características diferenciadas
dentro da sua “aldeia” e eram responsáveis por vincular a sua comunidade
com o mundo exterior, defendendo interesses ligados à sua região de ori-
gem, à sua facção política e aos seus clientes, sem deixar de compartilhar
de parte dos interesses mais nacionais com os governantes dos principais

117
VARGAS, J. • “Um império de cruzes, togas e espadas”

centros de poder político e administrativo. Portanto, o mediador possuía as


chaves de acesso aos poderosos do centro decisório de um sistema maior, e
o poder de realizar esta conexão o transformava num chefe político em
potencial.
Os mediadores estão presentes em todas as sociedades agrárias e pré-
industriais onde um centro político incorpora e administra outras localida-
des outrora mais autônomas ou independentes – muitas vezes consideradas
as periferias de um sistema político e/ou econômico. A análise do seu pa-
pel nestas sociedades foi estudada por muitos antropólogos, historiadores e
sociólogos. Para Sydel Silverman, o mediador é um tipo específico de inter-
mediário, responsável por estabelecer uma conexão entre um sistema local
e outro nacional, estando aquele necessariamente inserido neste. Seria como
um município dentro de um estado ou uma aldeia dentro de um reino, por
exemplo. No entanto, para uma melhor utilização do termo, Silverman deixa
claros alguns aspectos fundamentais. Primeiro, o mediador é um indivíduo
que reúne em si (portanto, trata-se de atributos exclusivamente pessoais e
não transmissíveis) a habilidade de interagir tanto com o sistema local quanto
com o nacional. Além disso, o seu poder na comunidade local está susten-
tado exatamente na sua capacidade exclusiva de atingir o mundo exterior e
dele trazer recursos e informações necessárias para a segurança e o desen-
volvimento do sistema local (SILVERMAN, 1977, p. 293-304).
Neste sentido, o mediador também funcionaria como uma espécie de
“patrão” de uma determinada comunidade, cujos membros podiam consti-
tuir parte de sua clientela e ser disputados por outros mediadores em potencial.
Conforme Carl Landé, uma relação patrão-cliente é uma “aliança diádica
vertical”, uma vez que envolve duas pessoas “de status, poder ou recursos
desiguais que acham útil ter como um aliado alguém superior ou inferior a si
mesmo”. O membro superior nesta aliança é o patrão e o inferior, o cliente.
Esta relação é baseada na lealdade e confiança pessoal e tem como principal
finalidade a troca de favores e a ajuda mútua em caso de necessidade. Por
serem de camadas sociais diferentes, os benefícios trocados também são di-
versos. Conforme Landé, geralmente os patrões fornecem favores “materiais
em espécie”, “assistência econômica” e “proteção física em tempos de emer-
gência”, enquanto os clientes lhes retribuem com mão de obra, apoio políti-
co e, quando necessário, serviços militares (LANDÉ, 1977, p. 19-20).

118
Poder, instituições e elites

Os diálogos interdisciplinares entre historiadores e os demais cientis-


tas sociais favoreceram a utilização da ferramenta analítica do “mediador”
(broker) nas análises históricas, sobretudo em sociedades agrárias e pré-in-
dustriais.4 Ao estudar a aproximação da elite navarra com a Corte espanho-
la, por exemplo, José Maria Imizcoz identificou que os mediadores ocupa-
ram um papel central neste sistema político. “As relações de patronagem
entre a Corte e as províncias e comunidades locais foram um elemento
importante da articulação política e social, tanto no Antigo Regime como
no século XIX”. Neste jogo, “os governantes buscavam apoio na Corte para
conseguir mercês e privilégios vantajosos em favor de suas famílias e de
suas comunidades”. O mediador utilizava suas “relações privilegiadas não
somente para promover os seus, mas também para ocupar-se do governo”. O
“seu importante capital relacional e seus conhecimentos lhe conferiam uma
capacidade de ação e de consecução de objetos notáveis, que fazia dele um
homem necessário e buscado pelos membros da comunidade para mover
seus assuntos”. Conforme Imizcoz, pessoas de fora o procuravam para inter-
vir dentro da comunidade e pessoas da comunidade procuravam-no para inter-
vir fora dela. Isto “reforçava sua posição ante as outras famílias de notáveis,
que podiam necessitar sua mediação para ascender a certas instâncias ele-
vadas e obter determinados favores” (IMIZCOZ, 2001, p. 248-250).
Portanto, como o papel do mediador estava bastante ligado às relações
de intermediação entre o centro e a periferia, é necessário destacar que em
regiões cuja extensão geográfica é bastante ampla não há apenas um “tipo”
de mediador, uma vez que, conforme Patrícia Genovez (2003, p. 187-188),
não existem apenas um centro e uma periferia. Esta relação depende muito
da escala em que se observa, pois um centro pode ser a periferia de outro
centro e assim por diante. Neste sentido, as características básicas da função
de mediador são as mesmas, mas os atributos reunidos pelos indivíduos para
exercer este papel se distinguem de região para região. Os seus poderes polí-
ticos e a sua capacidade de influir nos diferentes sistemas dos quais fazem
parte dependem de uma série de fatores que envolvem o seu capital relacio-
nal, a sua posição econômica e social na comunidade e o tipo de ligação

4
Ver, por exemplo, Ladurie (s. d.), Uricoechea (1978), Levi (2000). Para uma boa síntese do uso
do conceito entre os micro-historiadores italianos ver Lima Filho (2006).

119
VARGAS, J. • “Um império de cruzes, togas e espadas”

realizado. Num país continental como o Brasil, estas variações de atributos


materiais e imateriais tendem a ser mais diversificadas ainda.
Tendo em vista o que foi escrito até aqui, é possível afirmar que a
análise dos agentes que compunham as elites políticas provinciais e uma
comparação entre diferentes regiões podem auxiliar na compreensão do
funcionamento do sistema político monárquico, acrescentando fatores até
então pouco considerados pelos analistas. Este exercício teórico-metodológi-
co pode revelar que tipo de recursos materiais e imateriais favorecia a vitória
eleitoral de um político no Ceará, na Bahia ou no Rio Grande do Sul oito-
centista, quais as semelhanças e as diferenças entre ambos e se havia varia-
ções conforme a importância dos cargos. Em suma, eles oferecem um refe-
rencial analítico para entender melhor como as elites provinciais atuavam
politicamente no interior do sistema político monárquico compartilhando
tanto dos códigos políticos das regiões que representavam quanto dos códi-
gos políticos do mundo da Corte, algo necessário para a estabilidade do pró-
prio sistema.

Rio Grande do Sul, Ceará e Bahia


Desde os anos que se sucederam à Independência, o Ceará e o Rio
Grande do Sul constituíram-se em províncias com uma representação polí-
tica inferior à da Bahia. No início da Regência, o Rio Grande possuía três
deputados, enquanto o Ceará tinha quatro parlamentares. Nas últimas le-
gislaturas do período monárquico, o Ceará apresentou oito vagas na Câma-
ra dos Deputados e o Rio Grande seis. Na mesma época, por exemplo, os
baianos possuíam 14 cadeiras, ou seja, mais que o dobro dos rio-granden-
ses. Com relação aos lugares no Senado, a diferença era praticamente a
mesma. Enquanto o Rio Grande do Sul possuía três senadores e o Ceará
quatro, a Bahia tinha sete representantes, ficando somente atrás de Minas
Gerais, que possuía 10 cadeiras. Estas vagas foram fixadas pela Constitui-
ção de 1824, e, ao longo da monarquia, buscou-se equilibrá-las de acordo
com o aumento populacional, mas, conforme Dolhnikoff (2005), estas
medidas não foram seguidas rigorosamente. O fato é que as províncias com
mais parlamentares possuíam maiores chances de fazer valer seus interes-
ses políticos e econômicos, gerando certa discórdia entre os representantes.

120
Poder, instituições e elites

Uma das reclamações dos rebeldes farrapos, em 1835, foi exatamente com
relação às poucas cadeiras que os sul-rio-grandenses possuíam na Câmara.
Ceará, Bahia e Rio Grande do Sul também se diferenciavam quanto
às suas estruturas socioeconômicas. A economia cearense destacou-se, so-
bretudo, pela pecuária e, em menor medida, pela agricultura de alimentos
voltada para o abastecimento das principais vilas. Desde o século XVII, a
pecuária cearense esteve fortemente vinculada ao porto de Recife e ao abas-
tecimento dos engenhos pernambucanos. Importantes vilas cearenses, como
Aracati, que possuía uma significativa produção de carne-seca, dependiam
das conexões com comerciantes pernambucanos tanto para remeter sua
produção para outras regiões quanto para obter sal, escravos e demais mer-
cadorias. Na passagem do século XVIII para o XIX, o cultivo do algodão e
da cana-de-açúcar encontrou certo desenvolvimento, mas não chegou a
acompanhar a importância da criação de gado ao longo do oitocentos. No
entanto, estas atividades foram recorrentemente afetadas pelas secas. Se a
de 1777 foi prejudicial à economia regional, a de 1791-92 praticamente
inviabilizou o desenvolvimento das charqueadas cearenses, dizimando seus
rebanhos. No século XIX, as secas de 1825 e 1845 também foram notáveis,
trazendo enormes perdas para os criadores de gado. Mas foi a de 1877 que
afetou duramente a economia provincial, provocando a migração de ho-
mens ricos e pobres para as áreas urbanas, acelerando a saída de cativos
para os cafezais do sudeste, o que veio a contribuir decisivamente para o
precoce abolicionismo da mão de obra escrava na província.5
No Rio Grande do Sul, nas primeiras décadas do século XIX, o cul-
tivo do trigo encontrou um importante desenvolvimento, mas entrou em
declínio ainda na década de 1820. A economia pecuária praticada nas es-
tâncias da fronteira e o complexo charqueador no vale do Jacuí, mas, sobre-
tudo, em Pelotas lideraram as exportações por décadas. Esta produção era
destinada basicamente para o mercado interno, mas também se destacou
pelas vultosas remessas de couros para a Europa e, em menor medida, do
charque para Havana e Lisboa.6 Na segunda metade do século XIX, o de-

5
Para uma análise mais aprofundada Girão (1982), Paiva (1978), Pinto (1984), Oliveira (1984).
6
Ver Osório (1999), Silva (1979), Corsetti (1983).

121
VARGAS, J. • “Um império de cruzes, togas e espadas”

senvolvimento dos municípios de colonização alemã, principalmente nas


décadas de 1850 e 1860, provocou uma transformação econômica notável.
A sua produção agrícola encontrou um importante mercado consumidor
na Corte, dinamizando as atividades produtivas e mercantis da província.
Nesta mesma época, o Rio Grande do Sul viu-se envolvido diretamente em
conflitos belicosos com os vizinhos platinos, sendo a Guerra do Paraguai
(1864-1870) o mais importante. A perseguição das autoridades uruguaias aos
proprietários rio-grandenses com terras naquele país e a consequente dificul-
dade dos mesmos em trazer o seu gado para este lado da fronteira estiveram
entre os principais motivadores das guerras. Na década de 1880, o complexo
charqueador-escravista de Pelotas entrou em franca decadência.7
A Bahia distanciava-se deste quadro socioeconômico. Apesar das
épocas de declínio, a economia açucareira do Recôncavo não encontrou
uma grande crise até os anos 1860. O complexo açucareiro estava intima-
mente vinculado à produção de farinha para o abastecimento dos engenhos
e da capital e às lavouras de fumo, produto que também ocupava o topo das
exportações da província. Estas atividades concentravam a maior parte da
escravaria, mas, após 1850, começaram a perder mão de obra em larga es-
cala para o sudeste cafeeiro. Em contrapartida, as vias de comunicação que
levavam até o sertão da província eram muito precárias, colaborando para
que aquela região estivesse economicamente mais conectada com outras
províncias vizinhas do que com a própria capital baiana e o seu Recôncavo.
Salvador, por sua vez, constituía-se num importante centro mercantil res-
ponsável pela entrada de cativos e outros produtos, como o charque sul-rio-
grandense, destinado principalmente à alimentação dos escravos.8 Politica-
mente, como já foi dito, a Bahia distanciava-se da posição ocupada pelo
Ceará e pelo Rio Grande do Sul. Mesmo que, a partir da década de 1830, as
exportações de café já houvessem superado de vez as de açúcar, a aristocra-
cia do Recôncavo continuou com grande peso na política nacional. Ao lon-

7
Sobre a produção agropecuária ver Zarth (1997) e FarinattI (2007), para a integração da produção
colonial ao mercado carioca, Graça Filho (1992), para os fatores políticos e econômicos regionais
que provocaram a Guerra do Paraguai, Vargas (2010b).
8
Para uma análise mais completa ver Chaves (2001), Mattoso (1992), Ximenes (1999), Neves
(2000), Barickman (2003).

122
Poder, instituições e elites

go da monarquia, os baianos compuseram cerca de 20% do total de minis-


tros de Estado do Império. O fato de 50% dos presidentes dos Conselhos de
Ministros da década 1880, ou seja, quando a economia açucareira já estava
em crise, serem baianos demonstra sua força e proximidade maior com o
governo central (CARVALHO, 2003).
Todos os fatores aqui mencionados acabaram se refletindo na consti-
tuição das respectivas elites políticas, como demonstrarei. A comparação
realizada a seguir envolve as elites políticas das três províncias menciona-
das. Para tanto, além dos dados que coletei sobre a elite política rio-gran-
dense (VARGAS, 2010a), utilizei as pesquisas de outras duas historiadoras.
Kátia Mattoso (1992) estudou a Bahia no século XIX e Maria Paiva (1978)
a elite política do Ceará no mesmo período. Além dos deputados gerais e
dos senadores, também analisarei o perfil sociopolítico dos deputados pro-
vinciais, amplamente estudados pelas autoras. A comparação apresentada
possui um limite metodológico, pois Mattoso analisou o período entre 1822
e 1889 como um todo, ou seja, não dividiu o quadro político estudado em
subperíodos para buscar perceber as mudanças e permanências ao longo do
século, como fez Paiva. Na comparação realizada a seguir, busquei investi-
gar questões relativas à concentração de mandatos, ao perfil socioeconômi-
co das respectivas elites, os principais setores profissionais que compunham
o grupo, o que as diferenciava e as assemelhava. Por fim, destaco traços
singulares relativos ao topo da elite política e os recursos necessários para
ingressar no mesmo, oferecendo uma demonstração empírica do papel do
mediador no interior do sistema político monárquico.

Analisando os dados
Uma das características comuns a muitas elites políticas eleitoralmente
constituídas é a concentração dos mandatos nas mãos de poucos indivíduos.
Neste sentido, as três províncias apresentaram índices semelhantes, com
mínimas variações. Começando pelos deputados provinciais, é possível ve-
rificar que, na Bahia, 80% deles exerceram três mandatos ou menos no
parlamento regional (1835-1889). No Rio Grande do Sul; este índice che-
gou a 81%, e no Ceará ele alcançou 85%. A província meridional revelou-
se a mais instável para os estreantes no seu parlamento, pois, analisando os
números relativos aos deputados que exerceram somente um mandato, tem-

123
VARGAS, J. • “Um império de cruzes, togas e espadas”

se 44,6% para a Bahia, 48% para o Ceará e 50,6% para o Rio Grande do
Sul. Combinando estes indicadores com o dos deputados que mais acu-
mularam mandatos provinciais, é possível considerar que houve uma maior
concentração de poder na elite rio-grandense. Enquanto no Ceará os deputa-
dos provinciais que ultrapassaram os sete mandatos chegaram a 2%, na Bahia
eles somaram 2,4% e no Rio Grande do Sul 4,8%. Os dados revelam que o
parlamento provincial rio-grandense se caracterizou por um diminuto grupo
de deputados (5,6% do total) que concentrou 22% dos mandatos na casa
entre 1835 e 1889. Um deputado rio-grandense chegou a acumular 14 man-
datos. Tais números revelam que os “concentradores” do topo da elite rio-
grandense pareciam bloquear a reeleição dos estreantes no parlamento.
Analisando os deputados gerais, verifica-se uma tendência diversa.
Como o acúmulo de mandatos entre os deputados gerais era menor, pois
havia poucas cadeiras disponíveis e os mandatos eram de quatro anos e não
de dois, a reeleição nas províncias que possuíam menos cadeiras, como o
Rio Grande do Sul, era difícil.9 Por isso, nesta província, os parlamentares
que se elegeram somente uma vez atingiram 62,5%, enquanto na Bahia,
que possuía mais que o dobro de cadeiras, eram 43,5%. O Ceará, por sua
vez, atingiu 57,5% para os estreantes que nunca retornaram à Câmara. No
topo, enquanto no Ceará e na Bahia 20% dos deputados haviam acumula-
do quatro mandatos ou mais, no Rio Grande do Sul este feito foi realizado
por somente 9,3% dos parlamentares. Portanto, nesta casa parlamentar os
rio-grandenses não conseguiram impor a mesma capacidade de concentra-
ção que apresentaram em nível provincial. Mesmo que o menor número de
cadeiras ajude a explicar este fenômeno, ele também parecia ser resultado
da maior intervenção que os ministros de Estado realizavam nas eleições
gerais, pois os mesmos dependiam da maioria na Câmara para governar.
Nestas investidas, eles buscavam favorecer seus correligionários, inviabili-

9
Os parlamentos provinciais rio-grandense e cearense possuíam 28 cadeiras quando foram ins-
talados em 1835. Em meados do século XIX, eles possuíam 30 cadeiras. Portanto, havia a
mesma possibilidade de acúmulo de mandatos para ambos os grupos de políticos. Mas na
Câmara, o Ceará possuía oito cadeiras contra seis dos rio-grandenses. Em contrapartida, a
Bahia possuía 40 cadeiras no parlamento provincial e 14 no parlamento geral. É interessante
observar que mesmo oferecendo maiores espaços para os políticos baianos acumularem man-
datos, a Bahia não revelou os índices de concentração rio-grandenses, o que reforça mais ainda
a concentração de poder no interior da elite rio-grandense.

124
Poder, instituições e elites

zando que políticos dos partidos opostos conseguissem acumular muitos


mandatos sequencialmente, o que dificultava aos rio-grandenses manter os
seus padrões de concentração regional na Câmara.10
A análise do local de nascimento dos membros da elite política indi-
ca que regiões estavam mais propensas a formar líderes políticos regionais
e nacionais e onde estavam as famílias mais influentes da província. Para a
Bahia, Kátia Mattoso localizou tais dados para 63% dos deputados provin-
ciais, entre 1835 e 1889. Os números revelam que 70% dos deputados eram
naturais de Salvador e 15% do seu Recôncavo. Entre os deputados gerais, a
concentração na Capital e no Recôncavo foi ainda maior (92%), e, com
menor intensidade, o mesmo se verificava entre os senadores (73%). Isto
reproduz a pouca integração econômica de Salvador e do Recôncavo com
outras regiões, como o sertão, por exemplo. Os 70% alcançados por Salva-
dor constituem uma nítida sobrerrepresentação dos deputados nascidos nas
suas paróquias, pois, em 1872, elas somavam 28% do total da população da
província (MATTOSO, 1992, p. 110). No Ceará, por sua vez, os deputados
provinciais distribuíam-se muito mais pelas regiões da província, não haven-
do um nível de concentração tão alto como na Bahia. Aracati foi o município
com o maior índice de deputados (14%), seguido por Fortaleza (8%), sendo
que o restante estava dividido entre 42 municípios da província. No entanto,
Paiva afirma que os deputados que ficavam mais tempo na carreira eram dos
municípios economicamente mais importantes (PAIVA, 1978, p. 196). A
autora não apresentou dados para os deputados gerais e senadores.
O Rio Grande do Sul estava mais próximo do Ceará do que da Bahia.
Entre 1868 e 1889, reuni dados sobre a naturalidade para 68% dos deputa-
dos provinciais. Destes, 34% haviam nascido em Porto Alegre, Pelotas e
Rio Grande – principais polos econômicos e mercantis da província. Pelo-
tas constituía-se no maior núcleo charqueador e era vizinha de Rio Grande
– único porto marítimo regional e que escoava a produção de charque e
couros para o exterior. Porto Alegre também tinha importância por con-
centrar boa parte da burocracia da época, além de oferecer maiores oportu-

10
Isto se torna mais notável ao se perceber que os maiores concentradores de mandatos parla-
mentares provinciais pertenciam ao Partido Liberal rio-grandense. Este foi hegemônico na
província, controlando a Assembleia Legislativa em muitas ocasiões, inclusive quando os con-
servadores estavam no poder, como de 1873 a 1877.

125
VARGAS, J. • “Um império de cruzes, togas e espadas”

nidades para os profissionais liberais. Outros 18% haviam nascido na re-


gião da campanha (fronteira sudoeste) – onde predominavam os grandes
criadores de gado. Somente 6% eram naturais das regiões do planalto norte
da província. No total tem-se 22 municípios diferentes, sendo Porto Alegre
o local de nascimento de 17,5% e Pelotas de 13%. Entre os deputados ge-
rais e senadores, o Rio Grande do Sul também apresentou uma maior con-
centração no eixo Pelotas-Rio Grande-Porto Alegre, mas nada que chegas-
se aos índices baianos. Entre os deputados gerais, os nascidos nestes três
municípios somavam 38%, e entre os senadores, 50%.
No interior da elite política também havia espaço para indivíduos
nascidos fora da província. No Ceará, cerca de 10% dos deputados provin-
ciais eram naturais de outras províncias, mas no Rio Grande do Sul, entre
1868 e 1889, este índice chegou a 19%. Muitos destes deputados eram ofi-
ciais militares e magistrados removidos para quartéis e comarcas do Rio
Grande do Sul, onde ingressavam na política. Merecem destaque cinco
deputados nascidos na Alemanha e que notabilizaram-se regionalmente ou
pela sua vinculação com as regiões de colonização europeia ou pelo seu
papel na área dos negócios financeiros, sendo que um deles também foi um
importante jornalista. Sua eleição só ocorreu após 1881, quando a Lei Sa-
raiva ampliou os direitos políticos aos estrangeiros naturalizados. Kátia
Mattoso não apresentou dados a este respeito para a Bahia.
É sabido que os elementos que compunham as elites políticas monár-
quicas pertenciam, na sua grande maioria, às camadas mais abastadas da
sociedade. Neste sentido, a origem social dos membros das elites aqui ana-
lisadas pode ser avaliada a partir da ocupação econômica dos seus pais. No
entanto, estas informações são muito difíceis de reunir. Kátia Mattoso loca-
lizou-as para apenas 25% dos deputados provinciais baianos. Destes, 66,5%
eram filhos de senhores de engenho. O restante dos pais distribuía-se entre
proprietários do sertão, comerciantes ricos, altos magistrados e profissio-
nais liberais. Para o Ceará, Maria Paiva não analisou profundamente estes
indicadores, mas destacou que os grandes políticos cearenses pertenciam
aos principais “clãs” da província, nos quais os ricos proprietários de fazen-
das de gado se destacavam.
Para o Rio Grande do Sul também localizei informações seguras so-
mente para 25% dos deputados provinciais entre 1835 e 1889. Destes 85

126
Poder, instituições e elites

deputados, 38% eram filhos de estancieiros, 13% de comerciantes e 9% de


charqueadores. Portanto, somadas estas três atividades econômicas, nota-
damente as principais da província, têm-se 60% da ocupação dos pais aqui
investigados. Outro grupo de significativa importância foi o dos militares,
que reuniu 17% e evidencia a imbricação dos senhores da guerra com a elite
política rio-grandense. O restante estava composto por homens ligados à bu-
rocracia, como os magistrados e os empregados públicos, e às profissões libe-
rais, como os advogados e os médicos. Cada um destes detinha 4% da amos-
tra. Entre os deputados gerais não há muitas diferenças. Dos 29 indivíduos
que assumiram este cargo entre 1868 e 1889, têm-se 10 filhos de estancieiros,
três de charqueadores e dois de comerciantes, grupo que, assim como entre
os deputados provinciais, compunha mais da metade dos parlamentares ana-
lisados. Outros quatro eram filhos de militares e um de magistrado. Já entre
os 11 senadores que exerceram seus mandatos entre 1826 e 1889, quatro eram
filhos de militares, três de estancieiros e dois de comerciantes.11
A educação superior foi algo que também distinguiu as elites políti-
cas em todo o Brasil oitocentista (ADORNO, 1988; CARVALHO, 2003).
As faculdades de Direito e Medicina e os cursos de Engenharia foram im-
portantes centros de formação não apenas profissional, mas também políti-
cas. Neste sentido, um diploma era condição quase necessária para que o
seu portador galgasse mais altos postos. Mas a maior ou menor presença de
políticos diplomados oscilou dependendo da época analisada, dos locais de
origem e dos cargos ocupados. No Ceará, por exemplo, 53,4% dos deputa-
dos provinciais eleitos entre 1835 e 1889 possuíam diploma de curso supe-
rior. Entre os deputados gerais, o índice de políticos com formação entre
1823 e 1889 chegou a 81%, e entre os senadores o mesmo atingiu 89%. A
tendência do nível de formação educacional acompanhar a importância do

11
É importante destacar que o fato dos indivíduos aqui mencionados serem classificados como
membros da burocracia ou das profissões liberais não exclui a ligação dos mesmos com as
atividades econômicas de esfera mercantil e agropecuária. Não foi raro aos membros das
elites oitocentistas dedicarem-se a mais de uma atividade econômica, podendo combiná-la
com o exercício de uma profissão. Além do mais, muitos eram filhos ou genros de grandes
proprietários, vindo a defender os seus interesses no parlamento. Portanto, a classificação dos
membros das elites políticas por critérios socioprofissionais não diverge de outra que busca
caracterizá-los por sua ocupação econômica. Para um exemplo de uma análise integrada e
que tem nas famílias o objeto principal de investigação ver Vargas (2010a).

127
VARGAS, J. • “Um império de cruzes, togas e espadas”

cargo político eletivo também foi verificada na Bahia e no Rio Grande do


Sul, no mesmo período. Entre os deputados provinciais baianos, apenas
40,5% possuíam formação superior, enquanto que para os deputados ge-
rais este índice era aproximadamente de 89%, e para os senadores, 96,3%.
No Rio Grande do Sul, para os mesmos cargos, têm-se respectivamente
50,5%, 88% e 91%, o que confirma a tendência geral. Portanto, a desigual-
dade nos níveis de formação dos cearenses era a menor, enquanto que entre
os baianos constituía-se na maior. Estes números acompanham a mesma
diferença verificada anteriormente na distribuição geográfica dos deputa-
dos, quando o Ceará ofereceu maiores espaços a indivíduos de diversos
municípios, enquanto a Bahia concentrou sua elite em Salvador e no seu
Recôncavo.
Mas tais índices não foram homogêneos ao longo de todo o período,
apresentando variações, sobretudo no que diz respeito aos deputados pro-
vinciais. Como Mattoso não analisou a presença de deputados provinciais
diplomados por períodos, é possível comparar somente Ceará e Rio Gran-
de do Sul. Na província meridional, o grande aumento no número de de-
putados diplomados deu-se a partir na década de 1840, ou seja, após o
término da Guerra dos Farrapos (1835-1845). Se na década de 1830 este
índice foi de pouco mais de 30%, a partir da década de 1850 em diante ele
atingiu mais de 60%, tendo uma leve queda nos últimos decênios. O Ceará,
por sua vez, também apresentou um maior crescimento na década de 1840,
quando ultrapassou os 50%, chegando a ter 78% em uma legislatura da
década de 1850. No entanto, a partir da década de 1870, a presença de
indivíduos com formação superior começou a diminuir, chegando a apre-
sentar somente cerca de 1/3 dos parlamentares nas últimas legislaturas da
década de 1880. Trata-se de um fenômeno interessante, pois esta diminui-
ção divergia da tendência corrente entre os deputados gerais cearenses. Para
estes, o aumento dos deputados com formação superior após a década de
1850 foi notável, e a partir deste período os deputados com diplomas soma-
ram 100% em quase todas as legislaturas até o final da monarquia.
Estes indicadores possibilitam algumas considerações. A partir deles
é possível verificar que as famílias com melhores condições econômicas do
Ceará estavam enfrentando dificuldades para continuar a investir nos estu-
dos superiores de seus filhos e que o declínio do número de bacharéis estava

128
Poder, instituições e elites

afetando o perfil da elite política cearense. Comparando as estatísticas rela-


tivas aos alunos formados na Faculdade de Direito de Recife, entre 1832 e
1889, é possível verificar que, entre as décadas de 1860 e 1880, o Ceará foi
a província nordestina que apresentou os piores índices relativos ao núme-
ro de formandos. De acordo com a Tabela 1, apesar de possuir 17% da
população livre das províncias do Nordeste, o Ceará reunia, no mesmo
período, somente 7,6% dos bacharéis formados em Recife. Províncias que
apresentavam índices inferiores ao Ceará entre 1832 e 1859, como Sergipe,
Paraíba, Rio Grande do Norte e Alagoas, melhoraram a sua situação no
período seguinte. A grande diminuição no número de formandos cearenses
se deu na década de 1870 e 1880.12

Tabela 1 - Relação entre os bacharéis em Direito formados em Olinda/


Recife e a população livre das províncias do nordeste, por períodos

% População livre % Bacharéis % População livre % Bacharéis


do Nordeste formados do Nordeste formados
(1823) (1832-1859) (1874) (1860-1889)
Alagoas 6,29 3,6 7,7 7,0
Bahia 30,39 28,6 27,7 18,1
Ceará 12,59 7,7 17,0 7,6
Maranhão 4,74 7,4 7,0 6,3
Paraíba 7,16 7,9 8,4 9,7
Pernambuco 23,09 37,8 18,6 39,4
Piauí 5,59 2,4 4,4 3,4
R. G. do Norte 3,95 2,1 5,4 2,8
Sergipe 6,16 2,2 3,4 5,4
Totais 100,0 100,0 100,0 100,0

Fonte: Beviláqua (1977), Conrad (1874, p. 345), Carvalho (2003, p. 73).

12
A primeira turma de formandos é de 1832. Analisando somente os bacharéis cearenses verifi-
ca-se que na década de 1860, formaram-se 41 bacharéis, que perfaziam 10,5% do total de
nordestinos. Na década de 1870, os mesmos índices eram de 41 bacharéis e 7% do total, acu-
sando uma grande queda. Nos anos 1880, apesar do aumento do número de bacharéis para
66, o índice sofreu nova queda para 6,1%, ou seja, diminuiu 42% desde a década de 1860
(BEVILÁQUA, 1977).

129
VARGAS, J. • “Um império de cruzes, togas e espadas”

As estatísticas de 1874 também demonstram que o Ceará era a pro-


víncia do Nordeste com o menor percentual de escravos entre a população
total, somando 4,4%.13 É provável que a diminuição do número de bacha-
réis também fosse resultado do declínio econômico da província nas últi-
mas décadas da monarquia. A seca de 1877 influiu profundamente na eco-
nomia regional, acentuando mais ainda este processo. Segundo Paiva, ela
provocou a migração de muitos fazendeiros e homens livres pobres para
outras regiões e áreas urbanas, provocando alterações significativas em
muitos projetos familiares. Não foi coincidência que, em 1884, o Ceará foi
a primeira província brasileira a abolir totalmente a escravidão em seu ter-
ritório.
Esta sub-representatividade de bacharéis cearenses merece ser desta-
cada pelo simples fato de que advogados, juristas e magistrados, desde os
tempos coloniais, possuíam um espaço de alta proeminência no interior
das elites políticas e administrativas (SCHWARTZ, 1979). Estes percentuais
menores se refletiram na composição das elites políticas aqui estudadas,
pois a presença de bacharéis em Direito entre os deputados provinciais ce-
arenses também foi muito inferior ao Rio Grande do Sul e à Bahia. En-
quanto 65% dos deputados com formação superior na província meridio-
nal haviam estudado Direito e 68% compunham o mencionado índice en-
tre os baianos, o Ceará apresentou somente 28%. Nesta província, os depu-
tados com formação eclesiástica reuniam 19% do grupo dos formados, ou
seja, muito próximo dos bacharéis em Direito.
No entanto, se os cearenses são pouco representados entre os bacha-
réis em Direito, é possível supor que eles ocupassem uma posição de desta-
que no Seminário de Olinda. A lista dos alunos matriculados na instituição
no ano de 1828 revelou a presença de 29 pernambucanos, 10 cearenses,
oito paraibanos, cinco norte-rio-grandenses, três alagoanos e um baiano,
formando “uma comunidade representativa de todo o nordeste, cujo terri-
tório correspondia ao da própria diocese de Olinda” (ARAÚJO, 1992, p.

13
Em 1836, este índice era de 12,5% (OLIVEIRA, 1984, p. 67). Conforme José Marcelo Pinto,
de 1854 a 1865, o Ceará perdeu 3.652 cativos para o tráfico interprovincial. O mesmo mercado
capturou 7 mil escravos cearenses, entre 1871 e 1881. O destino da grande maioria deles foram
os cafezais do Sudeste (PINTO, 1984, p. 122).

130
Poder, instituições e elites

275). É sabido que a manutenção de um aluno num Seminário ou numa


Academia Militar era menos custosa do que nas Faculdades de Direito e
Medicina. Mas a escolha do encaminhamento dos filhos não deve ser vista
somente como reflexo das possibilidades financeiras dos pais. Importantes
famílias cearenses possuíam padres políticos entre seus membros e investi-
am em tal formação educacional, provavelmente porque valorizavam as
funções clericais na sociedade local, atribuindo certo status às mesmas. O
Rio Grande do Sul também não ocupava uma posição privilegiada no índi-
ce de bacharéis por habitantes.14 Em compensação, de acordo com Celso
Castro, era uma das províncias com mais alunos matriculados na Escola
Militar do Rio de Janeiro, onde os nordestinos também ocupavam um pa-
pel de destaque (CASTRO, 1995, p. 30-31).
Estes dados relativos à formação educacional acabaram se refletindo
no perfil sócio-ocupacional e profissional das elites políticas das três pro-
víncias. Os números para a Bahia são os mais incompletos. De acordo com
Kátia Mattoso, magistrados, funcionários, eclesiásticos e advogados cons-
tituíam a maior parte dos deputados provinciais, entre 1835 e 1889. No
entanto, a autora não especificou os números exatos. Mas, ao mencionar
que 225 dos 554 deputados provinciais possuíam formação superior, Mat-
toso destacou que 152 eram formados em Direito, 42 em Medicina e 19
eram eclesiásticos. Portanto, a partir destes dados é possível saber que pelo
menos 19 deputados eram padres (somando 3,4% do total) e 42 provavel-
mente eram médicos ou professores da Faculdade de Medicina de Salvador
(somando 7,5%). Entre os formados em Direito não é possível deduzir a
profissão, pois os mesmos podiam ser magistrados, advogados ou emprega-
dos públicos, mas os dados permitem verificar que eles compunham a maio-
ria dos deputados provinciais com formação superior, devendo o restante
ser formado por grandes proprietários, comerciantes, professores, milita-
res, entre outros.

14
Teotônio Simões (1983), ao estabelecer uma relação entre o número de bacharéis por provín-
cias e a sua respectiva população, encontrou dados interessantes. Entre eles, observa-se que o
Rio Grande do Sul, apesar de ser a sétima província mais populosa do Império e uma das mais
importantes economicamente, apresentava-se em 13.° lugar (entre 20 províncias) na relação
número de bacharéis a cada 100 pessoas, atrás de províncias menores como Alagoas, Paraíba,
Sergipe e Piauí. O Ceará ocupava a 11º posição (CASTRO, 1995, p. 30-31).

131
VARGAS, J. • “Um império de cruzes, togas e espadas”

Entre os deputados gerais, em que o índice de indivíduos diplomados


foi muito maior, o número de médicos ou professores de Medicina foi de
12%, o de padres foi de 3,4% e o de engenheiros de somente 2%. Cerca de
92 destes parlamentares eram formados em Direito e pelo menos 40 deles
foram magistrados, ou seja, 27% do total dos deputados gerais entre 1823 e
1889. A presença significativa dos magistrados, ou seja, juízes de direito e
desembargadores, na elite política baiana cresce em importância quando se
observa a profissão dos senadores. Dos 28 baianos que exerceram este car-
go entre 1826 e 1889, 21 (75%) eram magistrados, sendo que 16 haviam
estudado em Coimbra. A forte presença destes burocratas de toga no topo
da elite política baiana também esteve presente em outras províncias, mas a
Bahia foi de longe a que mais teve senadores magistrados, o que será co-
mentado adiante.
No Rio Grande do Sul, os dados são mais completos. Até a década
de 1850, os membros da burocracia, como os magistrados, os padres e os
militares, formaram a maioria da Assembleia provincial, oscilando entre
35% e 41% dos deputados. A partir desta mesma década, os profissionais
liberais ultrapassaram este grupo, chegando a somar 47% do total dos de-
putados nas duas últimas décadas, com destaque para os advogados, que
atingiram quase 1/3 do total. Na Câmara dos Deputados é possível verifi-
car a mesma tendência, com um predomínio ainda maior dos advogados
nas últimas legislaturas. Entre 1826 e 1856, os magistrados e os militares
somavam 50% dos deputados gerais, com os padres e os empregados públi-
cos reunindo 25%. Mas de 1857 a 1889, os advogados sozinhos somavam
57%, sendo que na última década eles perfaziam 72% dos deputados. Neste
mesmo período, os magistrados e militares somavam somente 10,5%. Os
padres, desde a década de 1830, haviam sido banidos do cargo. No Senado
rio-grandense, os advogados continuaram com força. Dos 11 senadores rio-
grandenses, três foram advogados e outros três foram magistrados. No en-
tanto, os advogados só estrearam na Câmara na última década da monar-
quia, certamente movidos pela maior importância política do cargo nesta
época. Mas sua presença não surpreende tanto, pois foi comum às demais
elites políticas do período. A singularidade rio-grandense diz respeito aos
militares. Eles ocuparam 1/3 das cadeiras senatoriais rio-grandenses no
Segundo Reinado. Neste período, a província foi a que teve mais oficiais do

132
Poder, instituições e elites

Exército no Senado. Sua influência política foi tão alta que eles consegui-
ram eleger-se após a lei eleitoral de 1855, que cerceava a possibilidade das
suas candidaturas.15
A elite política do Ceará apresentou um perfil diverso. Entre os depu-
tados provinciais, os magistrados e os padres somados atingiram índices
que oscilavam entre 30% e 45% das cadeiras do parlamento de 1835 até a
década de 1870. Nas últimas décadas, eles continuaram com força, mas os
empregados públicos, os fazendeiros e os negociantes também se fizeram
representar com percentuais aproximados. O destaque é que, ao contrário
do Rio Grande do Sul e da Bahia, os advogados poucas vezes passaram dos
5%, ao contrário dos rábulas, que, na década de 1880, chegaram a ocupar
20% das cadeiras numa das legislaturas.16 Na média geral, os padres são o
grupo que mais acumulou mandatos na Assembleia, somando 16,1% das
representações. Ao todo, cerca de 78 padres conseguiram tomar assento
nesta Casa.
Entretanto, quando se sobe para outro nível de poder político, o per-
fil desta elite sofre algumas alterações. Entre os deputados gerais cearenses,
até a década de 1850, os padres rivalizavam com os magistrados e os milita-
res na representatividade; entretanto, a partir da década de 1850, os milita-
res perderam espaço e, nos anos 1860, os padres começaram a dar lugar ao
grupo dos profissionais liberais. Nas últimas décadas, professores, médi-
cos, engenheiros, jornalistas e advogados somavam mais da metade dos
representantes. Neste espaço de poder político, os advogados formados su-
biram em importância e os rábulas se elegeram muito pouco. Analisando o
Senado cearense, percebe-se que os padres também tiveram importância no
topo desta elite política. Apesar de 30% dos senadores cearenses terem sido

15
A Lei eleitoral de 1855 buscava dificultar a eleição dos magistrados e dos militares proibindo
que os mesmos se elegessem nos seus distritos de jurisdição, tendo que buscar seus votos em
outro distrito mais distante no interior da província. Um dos motivos da lei foi investir mais
fortemente na profissionalização de ambas as carreiras burocráticas; para isto, acreditava-se
ser necessário afastá-los da vida política.
16
Os rábulas eram os advogados sem diploma e que conseguiam licença para exercer esta profis-
são junto às câmaras municipais. É interessante notar que o aumento da importância política
deles é inversamente proporcional à diminuição do número de bacharéis em Direito na socie-
dade cearense nas décadas de 1870 e 1880, conforme descrevi anteriormente.

133
VARGAS, J. • “Um império de cruzes, togas e espadas”

magistrados, o Ceará foi a província que teve mais senadores padres no


Império, somando três políticos.17
Comparando o Ceará com o Rio Grande do Sul, foi possível perce-
ber uma notável ascensão dos profissionais liberais na segunda metade do
século XIX. Embora no Rio Grande o predomínio dos advogados na Câ-
mara tenha sido mais marcante, as elites cearense e rio-grandense seguiram
a tendência ocorrida na elite política imperial estudada por José Murilo de
Carvalho (2003), ou seja, do predomínio dos profissionais liberais sobre os
membros da burocracia nas últimas décadas da monarquia. Outro ponto a
ser comentado sobre as três elites comparadas é que, se entre os deputados
provinciais era possível os indivíduos sem formação superior atingirem o
parlamento, entre os deputados gerais seu acesso era muito dificultado – o
que revela que estava em jogo um outro tipo de recrutamento político. Cer-
tamente, era uma condição imposta pelo caráter mais elitista do cargo, que
transformava o seu portador num mediador político entre a sua província e
a Corte e exigia um maior refinamento sociocultural. Além disso, em todas
as províncias, a presença dos bacharéis em Direito entre os deputados ge-
rais e senadores foi marcante, pois era mais uma exigência da Corte para
que seus súditos pudessem frequentar os mais importantes espaços de po-
der do que uma simples escolha das elites provinciais. Neste sentido, coube
às famílias ricas adaptar-se a este processo de formação dos jovens candida-
tos, o que não deixou de ser uma escolha permeada por uma estratégia
familiar complexa (VARGAS, 2010a).
Estes dados podem indicar que certos ofícios e profissões atraíam
mais alguns grupos de famílias do que outros, que alguns grupos sociopro-
fissionais conseguiam converter mais facilmente seu prestígio social em votos
e que certos espaços de formação superior estavam restritos para determi-
nados grupos de famílias. A presença marcante de padres no Ceará até o
final do Império e a sua total ausência no Rio Grande do Sul apenas acen-
tuam as diferentes formas de recrutamento político e os diferentes atributos
carismáticos e de prestígio social existentes nas províncias. Destaca-se ain-

17
Assim como o Ceará, a província de Minas também teve três padres. No entanto, o Ceará teve
19 senadores ao longo da monarquia contra 45 mineiros, o que revela a maior proporcionali-
dade dos padres no interior da elite política cearense.

134
Poder, instituições e elites

da a total ausência de militares e padres entre os senadores baianos, quan-


do os mesmos conseguiram ocupar os principais postos no Rio Grande do
Sul e no Ceará. Outro fator interessante foi a enorme ausência de advoga-
dos formados entre os deputados provinciais cearenses, ao contrário da Bahia
e do Rio Grande do Sul. Se pensarmos na eficácia das redes de relações
sociais dentro do mundo da alta política e em como as academias as molda-
vam e reforçavam, isto pode ajudar a explicar a pouca representatividade
da elite cearense dentro da Corte nas últimas décadas do Império e a ascen-
são do Rio Grande do Sul no final da monarquia e durante a República.
Mas ainda é preciso tecer algumas considerações finais sobre os padres ce-
arenses, os magistrados baianos e os militares rio-grandenses...

Considerações finais
Cada uma das elites políticas aqui analisadas apresentou um grupo
socioprofissional que se destacou mais do que os outros, sobretudo entre os
senadores. Na Bahia, os magistrados dominaram as cadeiras senatoriais.
No Rio Grande do Sul, os militares se constituíram num grupo socioprofis-
sional importante, enquanto que no Ceará o Senado apresentou um signifi-
cativo número de padres. Uma análise dos senadores de todas as outras
províncias do Brasil confirma a existência de tais singularidades numa com-
paração mais ampla. A Bahia foi de longe a província que mais teve sena-
dores magistrados durante a monarquia. O Ceará, por sua vez, empata no
número de padres senadores com Minas Gerais. No entanto, como Minas
possuía mais que o dobro do número de cadeiras no Senado, os três padres
cearenses ocupam um percentual muito maior do que os padres entre os
mineiros. Com o Rio Grande do Sul acontece o mesmo. A província teve
três senadores militares, perdendo somente para Pernambuco, que teve qua-
tro. No entanto, os três senadores rio-grandenses compõem um percentual
bem maior que os militares entre os pernambucanos, província onde havia
nove senadores magistrados, por exemplo.
A existência destes perfis sociais distintos revela que os recursos ne-
cessários para que um candidato vencesse as eleições parlamentares envol-
viam uma série de fatores comuns a todas as regiões, mas também traziam
componentes distintos, de acordo com a província analisada. Um dos indí-

135
VARGAS, J. • “Um império de cruzes, togas e espadas”

cios desta diversidade era a alta capacidade eleitoral que o exercício de cer-
tas ocupações profissionais fornecia aos seus portadores em determinadas
províncias. Na Bahia, por exemplo, os juízes de direito, mas, sobretudo, os
desembargadores, eram um dos grupos socioprofissionais portadores de tal
prestígio social e, notadamente, os mais competentes em converterem este
prestígio em capital político. Tal fenômeno possui explicações históricas
que devem ser buscadas desde os tempos coloniais. A Bahia foi a sede do
primeiro Tribunal de Relação do Brasil, criado em 1609. Composto por de-
sembargadores com larga experiência jurídica, o mesmo permaneceu como
único tribunal de segunda instância no Brasil até o período pombalino.
Estudando este grupo de elite, Stuart Schwartz (1979) considerou-o
como um dos principais agentes administrativos da colônia nos séculos XVII
e XVIII. Ele formava uma elite de letrados distinta do grosso da população
formada de degredados, escravos, livres pobres, comerciantes e senhores de
engenho. No exercício de suas funções judiciárias, os desembargadores re-
produziam na colônia todas as idiossincrasias corporativas alimentadas na
metrópole. Mas, ao mesmo tempo em que serviam à Coroa, eles gozavam de
autonomia suficiente para estabelecer alianças matrimoniais e de compadrio
com as famílias mais ricas da Bahia, notadamente a elite açucareira. Confor-
me Schwartz, com o tempo, os magistrados fizeram de seu cargo um suporte
de status social. Os aposentados mantinham o título e continuavam influindo
nas decisões de seus pares, além de serem respeitados por toda a população
local. Esta posição foi habilmente manejada por muitos desembargadores
que enfeixaram grande poder em suas mãos e buscaram sempre influir para
que seus familiares permanecessem no tribunal nas gerações sucessoras. Um
outro número significativo de desembargadores também foi provedor da Santa
Casa de Misericórdia, estreitando seus laços com a Igreja. O abrasileiramen-
to dos desembargadores, nas palavras de Schwartz, integrou-os de tal forma
à sociedade colonial que muitos se tornaram senhores de engenho, fazendei-
ros e até comerciantes de açúcar e de escravos. Em consonância com estes
projetos, havia senhores de engenho que se esforçavam para atraí-los como
genros, podendo, desta forma, usar a sua influência administrativa e judicial
para obter ganhos políticos (SCHWARTZ, 1979, p. 246-257).
Portanto, os desembargadores na Bahia oitocentista pertenciam a um
círculo burocrático com uma secular tradição colonial. Entre os senadores

136
Poder, instituições e elites

baianos existiam magistrados que eram filhos de outros desembargadores


da Relação, como José Carlos Pereira de Almeida Torres, o visconde de
Macaé. O entrelaçamento com famílias proprietárias do Recôncavo forne-
cia aos mesmos o poder econômico necessário para se impor regionalmen-
te como elite. O fato de 75% dos senadores baianos serem magistrados indi-
ca que seu status social e seu prestígio político permaneceram fortes ao lon-
go do século XIX. Além disso, 15 senadores eram formados em Coimbra.
José Murilo de Carvalho (2003) demonstrou a hegemonia dos políticos for-
mados em Coimbra na primeira metade do oitocentos; e isto ajuda a expli-
car por que a Bahia foi a província que forneceu mais ministros ao Império.
Como a Bahia foi a província que mais teve ministros de Estado e a segun-
da maior bancada no Senado, não é possível desconsiderar o papel de seus
líderes políticos na condução do processo de Independência e nas primei-
ras décadas do Império.18 Mas, além desta explicação fundada na herança
do prestígio colonial, é necessário considerar que, até 1873, somente a Bahia,
o Rio de Janeiro, o Pernambuco e o Maranhão possuíam tribunais de se-
gunda instância, ou seja, as outras províncias não tinham desembargado-
res, mas somente juízes de direito.19
No Rio Grande do Sul, por sua vez, os militares conseguiram uma
proeminência política notável. Assim como na Bahia, a explicação deste
fenômeno tem raízes coloniais. A província foi erigida sob quartéis e acam-
pamentos militares, convivendo constantemente com a ameaça espanhola,
concretizada na invasão da vila de Rio Grande, em 1763. Depois de anos
de combate, foi somente em 1776 que os luso-brasileiros reconquistaram o
território, expulsando os invasores. A partir deste episódio, outras guerras
marcaram a história da região até o início do século XX. Tratava-se de uma
sociedade de fronteira, e boa parte da sua população acostumou-se com

18
Conforme Mattoso, “os quinze senadores que estudaram em Coimbra pertenciam ao pessoal
administrativo e político do Antigo Regime. Haviam servido ao Estado português, sobretudo
como magistrados e, em seguida, a Dom Pedro I, que os brasileiros sempre consideraram
como um monarca português. Depois da Independência, a maior parte deles integrou o cír-
culo dos altos funcionários que assumiram responsabilidades ministeriais no novo Estado”
(MATTOSO, 1992, p. 281).
19
Em meados do século XIX, a Bahia também era a província com mais número de comarcas e,
portanto, possuía um número ligeiramente maior de juízes, o que também favorecia o seu
sucesso no mundo da política.

137
VARGAS, J. • “Um império de cruzes, togas e espadas”

esta endemia belicosa e que tinha nos estancieiros e militares os mais in-
fluentes nas localidades. Estes líderes sustentaram a guerra civil mais lon-
ga da história do Brasil (1835-1845) e usaram o seu prestígio militar tanto
para barganhar com o governo central quanto para exercer autoridade so-
bre a população provincial, mantendo a ordem social.
Na década de 1880, o Rio Grande do Sul concentrava 31,13% do con-
tingente total do Exército brasileiro. Para o comando e a administração das
forças armadas em nível nacional, os rio-grandenses também obtiveram cer-
to destaque. Durante todo o período imperial, a província teve 13 ministros
de Estado. Destes, sete ocuparam a pasta da Guerra, o que indica que os
membros da elite política da província eram mais lembrados e recrutados
para a Corte quando os assuntos eram desta competência. A pasta da Guerra
foi a única repartição do governo central em que o Rio Grande do Sul conse-
guiu impor alguma tradição com relação às outras províncias. Entre 1832 e
1889, 52 homens ocuparam o Ministério da Guerra, sendo 11 da Corte, sete
do Rio Grande do Sul, sete de Portugal e sete baianos, apenas para citar as
principais regiões representadas (o restante estava distribuído pelas outras
províncias). Este protagonismo no ministério se manteve na República, pois,
entre 1889 e 1930, os rio-grandenses tiveram sete dos 22 ministros.20
Portanto, no Rio Grande do Sul a política e a guerra sempre estive-
ram intimamente ligadas. A província teve o maior número de soldados na
campanha contra os paraguaios (1864-1870) e um número significativo de
lideranças militares e paisanas comandadas por oficiais rio-grandenses.21 O
papel dos mesmos nas batalhas foi reconhecido pela Coroa, que os consa-
grou com uma enxurrada de títulos de nobreza. Foi durante esta Guerra, por
exemplo, que o general Osório recebeu os títulos que o fizeram Marquês do
Herval. Osório era o chefe do Partido Liberal na Província, em 1877 ele-
geu-se senador e em 1878 foi escolhido ministro da Guerra. A sua popula-

20
Para maiores detalhes, ver Carvalho (2003, p. 203-205), Galvão (1894) e Lyra (1978).
21
O Rio Grande do Sul foi a província que mais contribuiu para o contingente militar na Guerra,
enviando cerca de 34 mil soldados para os campos de batalha, ou seja, 17% da população
masculina da província e 27,45% de todo o efetivo brasileiro. Apenas para se ter uma compa-
ração, a Corte, que mandou 11.461 homens, ou 8% da sua população masculina, e a Bahia,
que enviou 15 mil soldados (2% de sua população masculina), foram os únicos que chegaram
perto dos índices rio-grandenses (Vargas, 2010b).
22
Sobre sua trajetória ver Braga (2008) e Neto (2009).

138
Poder, instituições e elites

ridade entre os militares e milicianos que participaram da Guerra do Para-


guai não possuía rivais (VARGAS, 2010b). Mas, assim como ele, outros
oficiais também exerciam notável influência política e eleitoral na provín-
cia, como, por exemplo, o Conde de Porto Alegre, que foi chefe do Partido
Progressista na província, e o Barão de São Borja, que foi chefe do Partido
Conservador na década de 1870. Este capital político adquirido pelos milita-
res rio-grandenses permaneceu forte na República Velha, pois, além dos mi-
nistros da Guerra, o Rio Grande atingiu a presidência da República por meio
do marechal Hermes da Fonseca (1910-1914). Tendo em vista o conhecido
papel dos militares rio-grandenses, ligados a Getúlio Vargas, na Revolução
de 1930, e a própria presença de presidentes da República nascidos no Rio
Grande do Sul, durante os governos militares pós-1964, é possível considerar
que a relação dos militares gaúchos com a política, que marcou a geração do
velho general Osório, manteve-se forte, mesmo muitos anos depois.
Finalizando, é necessário tecer considerações sobre a importância po-
lítica dos padres no Ceará. Investigando a ocupação socioprofissional de to-
dos os deputados gerais do Império, verifiquei que o Ceará não apenas foi a
província que proporcionalmente teve mais padres senadores, como também
foi a que reuniu mais deputados gerais do clero. No entanto, uma análise
mais minuciosa revela que este era um traço mais regional do que provincial.
O Nordeste somou 52,3% de todos os padres deputados gerais, entre 1826 e
1889. Reunindo somente os dados relativos ao Ceará, Pernambuco, Alagoas,
Rio Grande do Norte e Paraíba, têm-se 40% do total dos padres deputados
gerais. Trata-se de uma concentração notável, visto que estas cinco provín-
cias tinham apenas 25% da população da época. Mas como explicar a proe-
minência política dos clérigos destas províncias? A explicação mais plausível
exige uma nova viagem até o período colonial. Estas cinco províncias estive-
ram fortemente vinculadas à Revolução Pernambucana de 1817, também
conhecida como a “Revolução dos Padres”, e, anos depois, o território foi o
foco central da Confederação do Equador (1824), movimento que teve a di-
reção intelectual e política de Joaquim do Amor Divino, o frei Caneca.
Conforme Gilberto Carvalho, para que o movimento de 1817 fosse
efetivado, foi necessária uma “longa e paciente doutrinação, que partia do
seminário de Olinda, refugiava-se nas Academias secretas e era levada aos
mais longínquos recantos do sertão pela cadeia viva de informação e cate-

139
VARGAS, J. • “Um império de cruzes, togas e espadas”

quização formada pelos vigários”. Neste processo, tanto os alunos quanto


os padres formados no Seminário e os próprios professores da instituição
tiveram um papel proeminente. O Seminário, fundado em 1800, formou
praticamente todo o clero do Nordeste e ficou conhecido por ser um espaço
de propagação das ideias liberais, anticolonialistas e consideradas subversi-
vas na época. O movimento de 1817 teve como protagonistas o padre João
Ribeiro e o padre Miguelinho, mas reuniu mais de 70 membros do clero em
suas fileiras. Dela também participaram o mencionado frei Caneca e o pa-
dre Souto Maior, sempre liderando com seus bem treinados guerrilheiros.
Outros membros do clero foram encarregados de levar a Revolução de Recife
para as províncias vizinhas, sendo o padre Damasceno dirigido para o Rio
Grande do Norte, o padre Roma para Alagoas, o padre Antônio Pereira para
a Paraíba e o padre Alencar para o Ceará. Em 1824, o frei Caneca teve a
companhia dos freis João de Santa Miquelina, Antônio Veras, Alexandre da
Purificação, além de outros 40 sacerdotes. No Ceará, a liderança, em 1824,
coube ao padre Mororó (CARVALHO, 1980, p. 32-35; 52-57; 63-67).
A família do padre Alencar, que participou de ambos os movimen-
tos, possuía sua base socioeconômica, no Crato e ele estava ligado por pa-
rentesco com outros membros do clero provincial. Na década de 1830, ocu-
pando uma posição mais moderada, Alencar presidiu o Ceará e, anos mais
tarde, elegeu-se deputado geral e senador pela província. Conforme Luís
Viana Filho (1979, p. 20-36), Alencar manteve estreita relação com deputa-
dos e senadores das províncias do Sudeste e constituiu-se no político mais
influente da região norte no período. Chefiou o Partido Liberal no Ceará, e
um de seus filhos foi o conhecido romancista José de Alencar.
É importante mencionar que a formação eclesiástica também foi uma
saída para famílias empobrecidas, e, portanto, é plausível que as origens
sociais de muitos padres cearenses fossem mais modestas que a dos bacha-
réis em Direito, aproximando-os mais da população. Este elemento ajuda a
entender por que a distribuição geográfica dos deputados provinciais cea-
renses era muito mais diversificada que a da Bahia, como demonstrei ante-
riormente. Padres de todas as paróquias cearenses conseguiam eleger-se,
tornando o perfil geográfico da sua elite política mais plural. Na maioria
das províncias do Nordeste, os padres tiveram uma maior propensão a atuar
na política e encontraram no eleitorado regional uma importante base de

140
Poder, instituições e elites

apoio que legitimava o seu papel no interior do sistema político. Ao olhar


para a República Velha, é possível verificar que esta tradição do clero entre
os políticos cearenses continuou viva. Um exemplo disto foi a ascensão
política do padre Cícero, que chegou a ser vice-governador do Ceará, e
estava fortemente ancorada na liderança religiosa que exerceu na região e
na capacidade em transformar as suas relações sociais locais em votos e
apoio político, como seus antepassados já haviam feito.22
Portanto, a análise comparativa das elites políticas do Rio Grande do
Sul, do Ceará e da Bahia durante o período monárquico revelou traços
sociopolíticos regionais distintos e possíveis de serem estudados numa di-
mensão temporal não exclusiva ao século XIX, pois, além de evidenciarem
traços herdados do período colonial, os indicadores apresentados mostram
que os mesmos permaneceram fortes no século XX. Se no interior das eli-
tes regionais havia regras de ascensão política singulares, na Corte outros
requisitos também eram necessários. Cada região possuía características
culturais, políticas e econômicas que ofereciam um potencial eleitoral a
determinados setores da sociedade em detrimento de outros. Geralmente,
famílias que possuíam um acesso mais qualificado a estes recursos materiais
e imateriais estavam mais propícias a formar estes políticos.
Ora, iniciei este texto argumentando exatamente que os “mediado-
res” acumulavam seu poder no interior do sistema político por possuírem
uma maior capacidade de conectar espaços de atuação política distintos,
jogando com diferentes códigos de comportamento. Estes traços revelavam
a existência de culturas políticas regionais distintas, mas que na Corte for-
mavam um “todo” que, se não era harmônico, oferecia importantes espa-
ços de negociação com as províncias e foi fundamental para a manutenção
da estabilidade do sistema político monárquico. Portanto, determinadas
regiões favoreciam uma melhor conversão de um certo tipo de capital rela-
cional para o capital político necessário para tornar-se senador. Ao serem
escolhidos na lista tríplice, eles revelavam que possuíam tanto o reconheci-
mento dos eleitores da província, que compunham o mundo da paróquia,
quanto do próprio imperador. O arranjo institucional garantia a autono-
mia regional e amarrava as elites provinciais, comprometendo-as com as
tarefas de construção do Estado, da manutenção da ordem e da permanên-
cia da estabilidade do sistema político.

141
VARGAS, J. • “Um império de cruzes, togas e espadas”

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144
Poder, instituições e elites

Os founding fathers do Parquet – um ensaio


comparativo entre as elites do Ministério Público
de São Paulo e do Rio Grande do Sul
durante o Estado Novo

Marcelo Vianna

“A velha tradição não se explica sem os fundadores, uma


instituição não existe sem founding fathers.”
Plínio de Arruda Sampaio em entrevista concedida
a Rogério Bastos em 07.07.1995
(ARANTES, 2002, p. 19)

Foi durante o Estado Novo (1937-1945) que o Ministério Público


paulista (MPP) e o Ministério Público rio-grandense (MPRS) obtiveram
uma série de vantagens legais que se tornaram base para o crescimento
institucional que segue até os dias atuais. De “primos pobres” do campo
jurídico, o MPP e o MPRS se tornaram pioneiros em formar suas associa-
ções de classe e revistas jurídicas (tabela 1), sendo veículos importantes
para o discurso de autonomia, mobilização e afirmação nos meios jurídi-
cos. Em termos legislativos encontravam-se adiantados: os dois tinham re-
formado seus códigos legais (o chamado “Código do Ministério Público”),
que davam organicidade, definiam critérios e limites de atuação de seus
membros no meio jurisdicional. Nesse sentido, esses códigos ressaltavam o
emprego dos concursos públicos – ou seja, aplicavam o critério merito-
crático por meio de provas – e estabeleciam a carreira de promotor públi-
co criando critérios de remoção e promoção às comarcas. Assim, busca-
vam garantias à atuação do promotor público a salvo de interferências po-
líticas.

145
VIANNA, M. • Os founding fathers do Parquet – um ensaio comparativo entre as elites do Ministério Público...

Tabela 1 – Avanços no processo de institucionalização (1936-1945)

Instituição MPP MPRS


Organização base legal Decreto-lei n.º 10.000, de 24.02.1939 Decreto n.º 564, de 24.06.1942
Associação de classe 26/11/38 – “Associação Paulista do 08/10/41 – “Associação do MPRS”
MP” (APMP) (AMPRGS)
Revista de classe Junho de 1939 – Justitia Novembro de 1941 – Revista do MP
1.º concurso público 20/04/36 05/03/41

Fonte: Revista do MP; Revista Justitia.

Por sua vez, a memória institucional atual dessas instituições, per-


ceptível em depoimentos, publicações e lugares de memórias oficiais, ao
revisitar esses processos, evoca um grupo de indivíduos, “articulados” e
“reconhecidos” por seus pares, que atuaram durante (e “apesar”) do Esta-
do Novo. Um termo pode ser utilizado para designá-los: founding fathers,
expressão utilizada por Plínio de Arruda Sampaio, ao rememorar a atua-
ção de um grupo de agentes do MPP nos anos 1930 e 1940 – entre eles seu
pai, João Batista de Arruda Sampaio – que “começaram a adquirir o senso da
dignidade do que faziam, o senso de que não eram instrumentos do Governo, o senso
de que eram instrumentos da lei, e, portanto, foi se criando uma doutrina” 1 em
busca da consolidação da carreira de promotor público. De maneira seme-
lhante, há rememorações de membros do MPRS sobre seus antecessores
que estiveram à frente desse processo. Uma dessas evocações é referente a
Abdon de Mello, procurador-geral entre 1941 e 1947, visto como um “ho-
mem abnegado”, dotado de “um sentimento de urgência, a urgência de dotar o
Rio Grande de um órgão vitorioso, permanente, aguerrido e independente”.2 Não
há dúvida de que os reconhecimentos, sobretudo a partir dos anos 1980,
momento em que o MP experimentava grande fortalecimento no cenário

1
Plínio de Arruda Sampaio foi promotor público em São Paulo entre os anos de 1955 e 1959.
Foi eleito deputado federal pelo PDC em 1962, mas acabou cassado pelo AI-1 em 1964. No
processo de redemocratização, voltou a ser eleito deputado federal pelo PT e foi um dos
defensores das garantias institucionais ao MP na Constituinte de 1988. Entrevista de Plínio de
Arruda Sampaio ao Projeto Memória do MPRS em 07 de agosto de 2002, p. 4. Disponível em:
<http://www.mp.rs.gov.br/memorial/noticias/id12392.htm>. Acesso em: 20.01.2010.
2
Discurso de Ladislau Fernando Röhnelt, ex-procurador do MPRS e desembargador do TJRS.
Réplica, n. 16, ano VI, junho/julho 1987.

146
Poder, instituições e elites

nacional3, acabavam reforçando os mitos de origem das instituições e for-


mando seus panteões, modelos a serem seguidos pelos membros contem-
porâneos (GRIJÓ, 2008).
No entanto, o objetivo desse ensaio não é consagrar os “pais funda-
dores” e reforçar uma visão de vitória da “cidadania” contra o “autoritaris-
mo” ao gosto das memórias institucionais, mas propor um ensaio compa-
rativo através desses indivíduos rememorados que estavam envolvidos nas
iniciativas de autonomia do MP no Estado Novo. Nesse aspecto, a compa-
ração histórica4 pode trazer novos elementos para a discussão desses pro-
cessos de institucionalização, por permitir abordagens originais sobre um
objeto de pesquisa (COHEN, 2001) e proporcionar um eye opening-effect so-
bre as duas instituições e seus agentes, de maneira a superar uma visão
provinciana sobre esse processo (KOCKA, 2003).
Assim, para entender as ações e efeitos sobre os founding fathers do
MPP e MPRS, vale a pena procurar pelos capitais e recursos de que esses
dispunham para reconvertê-los5 para suas instituições frente aos contextos
da época. Nosso ensaio, assim, propõe apresentar as condições para essa
comparação, identificar os founding fathers das duas instituições e seus capi-
tais e recursos, e, por fim, apresentar César Salgado e Abdon de Mello,
indivíduos que ocupavam posições-chave nas instituições paulista e rio-gran-
dense respectivamente, de maneira a entender pontos de convergência e
divergência do processo de institucionalização que envolveu o MPP e o
MPRS.

3
Como grandes conquistas estão a Lei Orgânica do MP (Lei Federal Complementar nº 40/81)
em 1981, Lei de Ação Civil Pública (Lei Federal nº 7347/85) em 1985 e o Capítulo IV, Seção I
da Constituição de 1988 (artigos 127 a 130), que consolidaram o MP como responsável pela
fiscalização da lei e defesa da sociedade em seus direitos individuais indisponíveis e coletivos.
4
Conforme Marc Bloch: “Antes do mais, no nosso domínio, o que é comparar? Incontestavelmente
o seguinte: escolher, em um ou vários meios sociais diferentes, dois ou vários fenômenos que
parecem, à primeira vista, apresentar certas analogias entre si, descrever as curvas de sua
evolução, encontrar as semelhanças e as diferenças e, na medida do possível, explicar umas e
outras. São, portanto, necessárias duas condições para que haja, historicamente falando,
comparação: uma certa semelhança entre os fatos observados, ‘o que é evidente’, e uma certa
dessemelhança entre os meios onde tiveram lugar” (1998, p. 120-121).
5
“As reconversões são o conjunto de ações e reações permanentes através das quais cada grupo
social se esforça em manter ou mudar sua posição na estrutura social, e se traduzem em
deslocamentos no espaço social de atores ou de grupos de atores, provocados por grandes
transformações políticas [...], ou mais estruturais [...], com o abandono de posições estabelecidas
e o ingresso em novos setores” (SAINT MARTIN, 2008, p. 64).

147
VIANNA, M. • Os founding fathers do Parquet – um ensaio comparativo entre as elites do Ministério Público...

As condições da comparação
Os processos de institucionalização do MPP e MPRS se coadunam
com a profissionalização do campo jurídico paulista e rio-grandense em
curso nos anos 1930. Nesse processo, no qual magistrados e bacharéis rei-
vindicaram e constituíram um espaço próprio, de saber especializado e pro-
gressivamente refratário às interferências político-partidárias (BONELLI,
2002; ENGELMANN, 2001), há duas causas que merecem destaque: a
desvalorização do diploma e a redefinição do campo político e do próprio
campo de poder durante o Estado Novo. No tocante à primeira, o aumento
de diplomados em Direito leva a conflitos em diferentes perspectivas, como
a persistência do bacharelismo e a expertise jurídica, o rábula e o diploma-
do, e os cargos jurídicos em disputa por sua primazia no campo jurídico, o
que obriga os agentes do campo jurídico a controlar o ingresso de novos
bacharéis na profissão jurídica e obter maiores garantias/regalias pela rela-
ção com o Estado (MICELI, 2001; COELHO, 1999).
A outra está ligada à redução das possibilidades de articulação das
elites, grupos dirigentes, agentes políticos, para dentro das novas estruturas
estatais, estas marcadas pela eliminação dos partidos políticos, centraliza-
ção de poderes e modernização conservadora (SOUZA, 1990). Assim, como
mostraram os estudos de Adriano Codato para a elite política do Estado
Novo em São Paulo e Sandra Amaral para a elite gaúcha, houve uma re-
definição das possibilidades de inserção no Estado pelas vias políticas tradi-
cionais, com a própria redução das posições de poder, concentradas nos
cargos de interventor, secretário e membros do Departamento Administra-
tivo do Estado de São Paulo (DAESP) e do Rio Grande do Sul (CODATO,
2009b; AMARAL, 2006). A nosso ver, essa restrição da participação políti-
co-partidária coincidiu com a criação de novas instâncias de poder ou sua
remodelação, com os devidos insulamentos burocráticos e corporativismos
que marcariam o Estado Novo, de maneira a acomodar parte das elites
regionais e suas práticas clientelísticas (DINIZ, 1999; ABREU, 2007). Des-
se modo pensamos o MP: os agentes interessados no fortalecimento da
atividade de promotor público se mobilizariam frente ao contexto da época
para transformar o cargo na promotoria, visto então como um estágio para
uma carreira política ou jurídica, para uma carreira construída em torno de
uma instituição em crescimento no campo jurídico.

148
Poder, instituições e elites

Devemos recorrer aos contextos políticos regionais, sobretudo ao re-


memorar a posição de controle que o Executivo ainda tinha sobre o MP
nos anos 1930 e 1940, demonstrável pelo próprio cargo de procurador-ge-
ral do Estado (de livre nomeação do chefe do Poder Executivo). No caso de
São Paulo, desde a Revolução de 1930, há um conflito entre os integrantes
da “orgulhosa elite paulista” (CODATO, 2009b) e de seus integrantes com
o governo federal, onde as administrações estaduais – com a exceção de
Armando Salles – não lograram estabilidade política. No entanto, as ma-
nobras de Vargas para subverter a elite política paulista imersa na disputa
entre “armandistas” (Partido Constitucionalista – PC) e “perrepistas” (Par-
tido Republicano Paulista – PRP) resultou na escolha de Ademar de Barros
(um membro menor do PRR) para interventor federal, em abril de 1938
(LOVE, 1982; CODATO, 2009a). A boa relação dos membros da institui-
ção com o interventor se revelou frutífera, à medida que o interventor tam-
bém prestigiou membros que haviam militado no PC, incluindo os procu-
radores-gerais Vicente de Azevedo e Renato Paes de Barros.
Nessa lógica de apoio – Ademar de Barros buscando conquistar no-
vas bases e os promotores paulistas almejando maior autonomia – o MPP
tornou-se a instituição mais avançada em termos organizacionais e associati-
vos, buscando até mesmo influenciar na construção do novo Código Penal
de 1940. Em que pese à alternância de procuradores-gerais no cargo, apa-
rentemente o MPP pôde continuar seu processo de autonomia. Um exem-
plo foi em junho de 1942, quando os founding fathers do MPP organizaram
o I Congresso Nacional do MP – evento importante pela discussão e apro-
vação dos pontos a serem seguidos pelas demais instituições em busca da
autonomia dos MP no Brasil, em muito inspiradas nos avanços do MPP.6
O cenário rio-grandense era também de rivalidades, mas que foram
neutralizadas a partir do colapso do governo Flores da Cunha (1937), quando
o governo federal impôs seus interventores de fora da elite política rio-gran-

6
Destacaram-se a reivindicação de harmonia e independência entre Magistratura e órgãos do
MP no exercício das respectivas funções; a recomendação para que os Estados organizassem
códigos funcionais garantidores de um plano de carreira, obrigatoriedade de concurso para ingresso,
promoções mediante critério de merecimento e antiguidade, vencimentos nunca inferiores a dois
terços daqueles percebidos pelos juízes, proibição de remoções não solicitadas, direito a férias
remuneradas, etc.; e, finalmente, a recomendação para que a classe fundasse em todos os estados
associações como as de São Paulo e do Rio Grande do Sul” (AXT, 2003, p. 41).

149
VIANNA, M. • Os founding fathers do Parquet – um ensaio comparativo entre as elites do Ministério Público...

dense (CORTÉS, 2007; ABREU, 2007). Porém, a repressão que se seguiu


aos partidários de Flores da Cunha manteve a instabilidade nos quadros do
MPRS e do próprio posto de procurador geral do Estado, que, entre 1934 e
1939, já havia trocado de mãos sete vezes. Duas depurações ocorreram no
MPRS, uma por ocasião da Revolução de 1932 (contra membros do Partido
Republicano Rio-Grandense – PRR e Partido Libertador – PL) e outra nos
primeiros anos do Estado Novo (contra membros floristas). Apenas com a
posse do ex-integralista Anor Butler Maciel em 1939 houve o início da esta-
bilização, com a reorganização administrativa e a realização do primeiro
concurso para promotor público em março de 1941. A partir daí, com a pos-
se de Abdon de Mello na chefia institucional em maio de 1941, haveria siner-
gia suficiente para seguir as iniciativas paulistas, incluindo a formação de um
grupo similar aos founding fathers do MPP.

Origens e trajetórias dos founding fathers do MPP e MPRS


Os founding fathers7 (tabela 2) eram os indivíduos que, além de com-
partilharem uma doutrina jurídica que garantisse aos promotores públicos
a estabilidade, independência de atuação e rendimentos “dignos” em co-
mum, encontravam-se em uma posição privilegiada dentro das duas insti-
tuições (MPP e MPRS), eram altamente especializados (pelo saber jurídi-
co) e detinham condições de propor (ou pelo menos intencionar propor)
uma série de mudanças para legitimar seu campo de atuação. Eles ocupa-
vam os postos-chave da instituição entre os anos de 1937 a 1945: o cargo de
procurador-geral do Estado e os cargos de subprocuradores. Dos demais, a
maior parte gravitava nos cargos diretivos na APMP e AMPRGS ou nos

7
Os dados sobre os founding fathers foram obtidos principalmente nas seguintes fontes: Banco de
Dados do MPRS, Revista do MP, Justitia, Martins (1978), DHBB (2001), Félix (2001) e Heinz
(2005). Para os membros do MPP, a revista Justitia preocupou-se, nas décadas de 1960 em
diante, em preservar a história da instituição e publicou biografias de seus membros,
contemplando os founding fathers do MPP. Também foram utilizados trabalhos diversos
disponíveis on-line, como artigos acadêmicos e sites institucionais, como o material elaborado
pela prefeitura municipal de São Paulo que fornece breves biografias sobre os “patonos [sic]”
de suas escolas municipais. Disponível em: <http://arqs.portaleducacao.prefeitura.sp.gov.br/
patonos/>. Acesso em: 10.09.2011.

150
Poder, instituições e elites

órgãos “culturais” que eram as revistas.8 Nesse sentido, para efeitos de com-
paração, formariam as respectivas elites institucionais – embora se reco-
nheça, no caso do MPRS, uma fragilidade desse grupo, por possuir uma
organização mais recente (1941) e singela, centrada apenas no procurador-
geral do Estado Abdon de Mello, o único da instituição investido de pode-
res de sanção e promoção sobre a classe.

Tabela 2 – Os founding fathers do MPP e MPRS

Founding Father MPPA Posição Founding Father MPRSA Posição


partir de 1938 partir de 1941
Vicente de Paula Vicente Procurador-geral do Estado Abdon de Mello Procurador-geral do Estado
de Azevedo (13.08.1934 a 13.12.1938) (27.05.1941-31.03.1947);
Vice-presidente APMP Membro fundador AMPRGS (1941);
Diretor Justitia Presidente de honra AMPRGS
Renato Paes de Barros Procurador-geral do Estado Álvaro de Moura e Silva Presidente AMPRGS
(21.12.1938 a 19.01.1940) Subprocurador-geral do Estado
Antônio da Costa Neves Júnior Procurador-geral do Estado Dámaso Vieira Rocha Diretor Revista do MP
(“Nevezinho”) (30.01.1940 a 20.06.1941)
Benedito Costa Neto Procurador-eral do Estado
(01.07.1941 a 29.05.1943) José Corrêa da Silva Presidente AMPRGS (1941; 1944)
Sebastião Nogueira de Lima Procurador-geral do Estado Octavio Alfredo Pitrez 2.º secretário AMPRGS
(29.05.1943 a 22.11.1943)
Synésio Rocha Procurador-geral do Estado José Clímaco de Mello Filho 2.º subprocurador-geral
(19.01.1944 a 26.10.1945)
José Augusto César Salgado Presidente APMP (1938-1945); Luiz Lopes Palmeiro Diretor Revista do MP
Diretor Justitia; Vice-presidente AMPRGS
Subprocurador
João de Deus Cardoso Melo Comissão editorial Justitia; Ney Muzzell Câmara Secretário MPRS;
Subprocurador-geral Secretário Revista do MP
Mário de Moura e Albuquerque Secretário Justitia Henrique Fonseca de Araújo 1.º secretário AMPRGS
“Churchill do MP”
Álvaro de Toledo Barros Subprocurador-geral Gabriel Mesquita da Cunha Secretário MPRS;
Tesoureiro AMPRGS
João Batista de Arruda Sampaio Secretário APMP Ernani Thé Coelho Membro fundador AMPRGS
Miguel de Campos Júnior 2.º Vice-presidente APMP; Júlio Marino de Carvalho Membro fundador AMPRGS
Redator Justitia
Antônio de Queiroz Filho Comissão editoral Justitia Paulo Pinto de Carvalho Membro fundador AMPRGS
(“Baby”)
Raphael de Oliveira Pirajá Redator Justitia Hélio Carlomagno Membro fundador AMPRGS
Nilton Silva Diretor Justitia Floriano Maia D’Ávila Membro fundador AMPRGS
Renato Petrocchi Tesoureiro/Diretor Justitia Pedro Soares Muñoz Membro fundador AMPRGS
José Antônio de Paula Santos Secretário APMP Favorino Bastos Mércio Membro fundador AMPRGS
Filho
Odilon da Costa Manso Tesoureiro APMP Mário Machado Rosa Membro fundador AMPRGS
Frederico José Marques Redator Justitia
Flávio Queiroz de Moraes Tesoureiro Justitia
João Paulino Pinto Nazário Vice-presidente APMP

Fonte: vide nota 7.

8
Essa opção aproxima-se do critério posicional proposto por Wright Mills para definição de elite
(1962).

151
VIANNA, M. • Os founding fathers do Parquet – um ensaio comparativo entre as elites do Ministério Público...

Como founding fathers do MPP foram identificados 21 indivíduos a


partir da fundação da APMP em 26.11.1938. Seis ocupariam o cargo de
procurador-geral do Estado: Vicente de Azevedo (PC), Renato Paes de Bar-
ros (PC), Antônio da Costa Neves Junior, Benedito Costa Neto (PRP), Se-
bastião Nogueira de Lima (PRP) e Synésio Rocha (PRP), com um manda-
to médio de 1,5 anos. Renato Paes de Barros, Benedito Costa Neto e Syné-
sio Rocha eram estranhos à carreira do MPSP; eram bacharéis nomeados
pelo interventor. Para o MPRS, 18 indivíduos foram identificados como
founding fathers, incluindo todos que participaram da Revista do MPRS e da
AMPRGS, como membros fundadores ou ocupantes de cargos a partir da
formação dessas instâncias em outubro de 1941. Eles eram liderados por
Abdon de Mello; além de chefe institucional, era presidente de honra da
AMPRGS (1944).
Deve-se observar também que os founding fathers se orientavam por
uma ação “desinteressada”, na qual o objetivo não visava meramente ao
econômico ou material (BOURDIEU, 2001). Assim, em seus artigos e dis-
cursos, apresentavam o MP como “defensor da sociedade”, “fiscal da lei”,
“uno e indivisível” frente a autoridades. Isso não era apenas um recurso
estratégico para se fortalecerem ou fortalecer a instituição, mas uma parti-
cipação sincera no jogo do campo jurídico, o que acabava reforçando e
reproduzindo os capitais simbólicos das instituições. Assim, os founding fa-
thers eram aqueles que melhor incorporaram (illusio) esses conceitos por
meio de discursos e ações, reuniam o ethos profissional desejável aos de-
mais promotores públicos e lograram construir um reconhecimento, tendo
em vista as evocações feitas por membros da classe posteriores.
As tabelas 3 e 4 a seguir dão conta de parte dos dois grupos e possibi-
litam exercitar as comparações. Christophe Charle e Monique Saint Mar-
tin observam que os integrantes das elites estatais desfrutam de origens fa-
miliares notáveis e formação superior em instituições tradicionais, que permi-
tem desenvolver capitais culturais (por exemplo, conhecimento jurídico) e
de relações (redes de amizades, contatos políticos), de maneira a fortalecer
suas capacidades de reconversão para carreiras na burocracia ou na política
(CHARLE, 2008; SAINT MARTIN, 2008). Isso não foi diferente no caso
dos founding fathers do MPP e MPRS. Ambos desfrutaram de formações
acadêmicas nos espaços de sociabilização das elites, como a Faculdade de

152
Poder, instituições e elites

Direito de São Paulo e Porto Alegre (ADORNO, 1988; GRIJÓ, 2005), sal-
vo exceções (como Abdon de Mello na Faculdade de Direito de Pelotas,
essa mais restrita à elite de Pelotas e seu entorno), e tiveram a possibilidade
de militar politicamente, em especial os paulistas.
No entanto, a comparação revela um maior acúmulo de capitais e
recursos por parte dos founding fathers do MPP, como as origens familiares,
militâncias políticas e incursões no campo literário/acadêmico, em compa-
ração com os membros do MPRS. Os founding fathers integravam famílias
notáveis (“quatrocentões”) com maiores relações com os meios políticos,
tinham, em boa parte, uma experiência de militância política, atuaram em
cargos além das promotorias (mas relacionáveis, em boa parte, com o Di-
reito Penal, como a Polícia), tinham maior produção literária e acadêmica
(incluindo aí dois futuros membros da Academia Paulista de Letras e do-
cências na Faculdade de Direito de São Paulo) e apresentavam trajetórias
mais dinâmicas no pós-Estado Novo, tanto no domínio dos cargos de che-
fia do MPP quanto na carreira político-partidária. Isso não significa que os
rio-grandenses não tivessem seus trunfos e não tivessem uma origem apre-
ciável e capacidade de reconverter seus capitais para o MP ou carreiras
políticas no RS, mas representavam uma elite regional “menor” frente à
paulista.
Se os rio-grandenses não apresentavam maior militância e acesso aos
cargos burocráticos antes do Estado Novo, também pesou o fato de serem
uma geração mais nova – em média 32,5 anos de idade comparada aos 40,5
anos dos founding fathers do MPP –, o que os impediu de participar e adqui-
rir maiores experiências no campo político tradicional. Isso foi o efeito da
crise do MPRS nos anos 1930; parte dos futuros founding fathers do MPRS
acabou substituindo os depurados. Embora não se negue que processo se-
melhante tenha ocorrido em São Paulo, não foi o suficiente para constran-
ger a participação dos futuros founding fathers do MPP no campo político e
na instituição ao ponto de conseguirem organizar concursos públicos a par-
tir de 1936 e organizar a APMP em 1938.
A supremacia dos founding fathers do MPP pode ser percebida nas
suas incursões no jornalismo e em atividades literárias. Essa experiência foi
válida para as revistas Justitia e Revista do MP, pois incorporaram indivíduos
que dominavam essas práticas em cargos de direção: o paulista Miguel de

153
VIANNA, M. • Os founding fathers do Parquet – um ensaio comparativo entre as elites do Ministério Público...

154
Poder, instituições e elites

155
VIANNA, M. • Os founding fathers do Parquet – um ensaio comparativo entre as elites do Ministério Público...

Campos Júnior, de Justitia, era visto como “jornalista experimentado, se-


nhor de larga cultura literária e jurídica”9, enquanto o gaúcho Dámaso Rocha
havia sido diretor de jornais (Correio da Noite, Jornal da Manhã e A Nação)
além de poeta modernista “aspirante” (VIANNA, 2011). Todavia, os foun-
ding fathers paulistas demonstraram um acúmulo de produções jurídicas e
literárias, como Sebastião Nogueira, Antônio de Queiroz Filho, Vicente de
Azevedo, César Salgado, Paes de Barros, entre outros, que lhes davam mai-
or expressividade no campo jurídico e até literário, visto que Vicente de
Azevedo e César Salgado alcançaram a Academia Paulista de Letras nos
anos 1960. Os founding fathers do MPRS concentravam-se em Dámaso Ro-
cha e Abdon de Mello, este com obras mais específicas ao MPRS. Henrique
Fonseca de Araújo teria participação na Associação Rio-Grandense de
Imprensa e seria, nos anos 1950, diretor do jornal libertador O Estado do
RS.
Outras distinções estão no pós-Estado Novo. Muitos founding fathers
reingressaram no campo político-partidário a partir do final do regime var-
guista em 1945: no caso do MPP, oito tiveram alguma incursão no campo
político, assumindo cargos no Poder Executivo e Legislativo; para o MPRS,
sete deles tiveram algum tipo de ingresso nesse campo. Mencione-se que o
próprio Estado Novo não significou o corte do envolvimento político: te-
mos Renato Paes Barros como membro do DAESP em 1941, Sebastião
Nogueira como secretário da Educação e secretário da Segurança Pública
de São Paulo a partir de 1943, e Dámaso Rocha como chefe de gabinete da
Secretaria de Interior no governo rio-grandense em 1944.
Novamente os founding fathers do MPP tiveram maior sucesso, incur-
sionando em cargos de destaque no Executivo ou elegendo-se para o Legis-
lativo, tanto em nível estadual quanto federal. Assim, Antônio de Queiroz
Filho, após militância nos movimentos católicos, tornou-se membro do PDC
em 1950, elegeu-se deputado federal em 1954 e integrou o secretariado dos
governos Jânio Quadros e Pinto Carvalho, além de ter alcançado a presi-
dência nacional do partido em 1961. No caso dos founding fathers do MPRS,
também tiveram seu sucesso em eleições ao Legislativo, mas com repercus-

9
Justitia, v. 7, n. 16, p. 412, jan.-jun. 1944.

156
Poder, instituições e elites

são menor do que a de seus colegas paulistas: Dámaso Rocha foi o repre-
sentante da classe na Assembleia Nacional Constituinte de 1946, eleito pelo
Partido Social Democrático (PSD), no rastro da máquina eleitoral construída
pela interventoria. Henrique Fonseca de Araújo (PL) e Hélio Carlomagno
(PSD) tornaram-se deputados estaduais, sendo o último presidente do par-
lamento gaúcho em 1961.
Por fim, nas carreiras em suas instituições os founding fathers do MPP
foram mais efetivos. Embora apenas cinco se dedicassem exclusivamente à
carreira após o Estado Novo, eles e os demais founding fathers continuaram
a dominar os postos-chave da instituição, associação e revista, quando es-
tas duas últimas foram reorganizadas. Dos oito procuradores-gerais entre
1945 a 1965, quatro eram founding fathers e acumularam 13 anos de chefia
nesse período. Além de César Salgado, Mário de Moura e Albuquerque
foi escolhido para dois mandatos como procurador-geral (em 1956 e 1964),
sendo pela primeira vez escolhido pela classe de promotores em lista trí-
plice.
No caso do MPRS, a constituição de uma elite propriamente dita a
partir da organização do Conselho Superior do MPRS em 1948 incorpo-
rou parte dos founding fathers, mais exatamente oito membros. Dois alcan-
çariam o cargo de procurador-geral: Henrique Fonseca de Araújo em 1955
e Floriano Maia D’Ávila em 195910; três atuariam como procuradores-ge-
rais substitutos – Abdon de Mello (novamente), Álvaro de Moura e Silva e
Luiz Lopes Palmeiro alternaram-se em substituições ao procurador-geral
ao longo da década de 1950 e início de 1960, quando se aposentaram. A
AMPRGS se desarticulou e apenas seria retomada em fins dos anos 1950,
sem founding fathers no comando. Já na Revista do MP, que circulou até
1951, os founding fathers mantiveram a editoria com Gabriel Mesquita da
Cunha e Luiz Lopes Palmeiro. O último a permanecer no MPRS foi Júlio
Marino de Carvalho, que se aposentou em 1969.

10
O envolvimento de Floriano Maia D’Ávila como procurador-geral no governo Brizola (1959-
1962), atuando no processo de encampação da ITT (Companhia Telefônica Nacional) e na
Campanha da Legalidade (1961); contribuiu para que fosse cassado pelo AI-1 e aposentado
do serviço público em 08.10.1964.

157
VIANNA, M. • Os founding fathers do Parquet – um ensaio comparativo entre as elites do Ministério Público...

Tabela 5 – Origens, recursos, trajetórias founding fathers MPP e MPRS

Comparações Founding Fathers MPP (N=21) Founding Fathers MPRS (N=18)


Antes do MP
Origens (família) Família tradicional, cafeicultores (6) Família tradicional, mais diversificados
e/ou políticos (5), juristas (1), militar – estancieiros (3), comerciantes (2),
(1) (N=10*)*acumulam cargos profissionais liberais (médico, advogado),
promotor (2), tabelião (1), professor (1),
militar (1). Apenas 1 caso de destaque
político (N=12*)*acumulam cargos
Nascimento 3 São Paulo 5 Porto Alegre13 Interior RS
11 Interior SP
1 Rio de Janeiro (N=14)
MP pré-Estado Novo
Média de idade de ingresso 25 anos 25 anos
na instituição
Militância político-partidária 11 (61%) (N=18) 7 (39%)
identificada 4 PD/PC + 7 PRP 3 PRL (Partido Republicano Liberal)
(dissidência) +3 Frente Única Gaúcha
(2 PRR + 1 PL) + 1 Ação Integralista
Brasileira
Cargos burocráticos/políticos 9 (50%) (N=18) 3 (17%)
identificados
MP Estado Novo
Média de idade em posição 40,5 anos 32,5 anos
de destaque (founding fathers)
Média de idade ocupação 1,5 anos (6 casos entre os anos 6 anos aprox. (1 caso entre os anos
cargo de procurador-geral 1934-1945) 1941-1947)
Presidentes Associação 1 1 (+ 1 de honra)
Diretores revista de classe 3 2
Procuradores-gerais oriundos 3 1
da carreira
Outras experiências a partir de 1930
Incursões no campo 7 (39%) (N=18) 4 (22%)
literário/jornalístico
Docência (superior) 7 (39%) (N=18) 5 (28%)
Ingresso Tribunal de Justiça 3 (17%) (N=18) 2 (11%)
Atividade exclusiva na 5 (28%) (N=18) 9 (50%)
carreira (não inclui docência)
Procuradores-gerais 4 (13 anos) 2 (7 anos)
pós-Estado Novo
Identificação político- 7 (39%) (N=18) 7 (39%)
partidária pós-Estado Novo
Cargos políticos Estado 8 (44%) (N=18) 7 (39%)
Novo e pós-Estado Novo

Fonte: vide nota 7.

158
Poder, instituições e elites

Dois protagonistas do MP – César Salgado e Abdon de Mello


Nesse sentido, acreditamos que o pioneirismo do MPP frente as de-
mais congêneres está no fato dos founding fathers do MPP terem uma associa-
ção mais densa e de maior “qualidade” de capitais e recursos comparados
aos founding fathers que integravam o MPRS, além de um contexto inicial
mais favorável. Contudo, como os founding fathers podiam fazer as recon-
versões para suas instituições? Para isso, vamos comparar duas trajetórias:
César Salgado (MPP) e Abdon de Mello (MPRS). Ambos estiveram na
liderança dos processos de conquistas institucionais, embora tenham apre-
sentado estratégias diferenciadas para obter as vantagens requeridas pelo
MP. Ao mesmo tempo, suas atuações consignavam prestígio com os inte-
grantes da classe e do campo jurídico, uma estratégia de ascensão institucio-
nal. César Salgado trabalhou para chegar ao cargo de procurador-geral do
Estado, que ocuparia após o Estado Novo; Abdon de Mello, por sua vez,
faria um trabalho de manutenção desse cargo, passando por quatro gover-
nos até entregar o posto em março de 1947.

a) César Salgado, homem forte do Parquet paulista11


José Augusto César Salgado nasceu em 21.12.1894 no município de
Pindamonhangaba. Suas origens eram ilustres, compatíveis com as de seus
pares durante o Estado Novo – ele era filho do comendador Augusto Mar-
condes Salgado12, este sobrinho de Francisco de Paula Rodrigues Alves,
presidente da República entre 1902 e 1906 (EUGÊNIO, 2009, p. 38); César
Salgado também era sobrinho do general Júlio Marcondes Salgado, herói

11
Informações obtidas nas biografias disponíveis em Justitia, v. 10, jan.-mar. 1952; v. 51, 4º trim.
1965; v. 57, 2º trim. 1967; v. 105, 2º trim. 1979, entre outras. Serão indicadas as fontes quando
não referentes à Justitia.
12
Era tesoureiro do Santuário Episcopal de Aparecida, função herdada de seu sogro. Estima-se
que o ambiente familiar religioso estimulou a relação especial que César Salgado tinha com o
catolicismo, mas também revela o trânsito que seu pai tinha com o episcopado. Também foi
muito ativo na emancipação de Aparecida, o que demonstra o prestígio de seu cargo e sua
importância para um município voltado à adoração religiosa. O pai foi tesoureiro de 1900 até
1946, ano de seu falecimento. Em vida foi agraciado com a comenda da Ordem de São Silvestre
e era Cavaleiro de Capa e Espada (MOURA, 2002, p. 253).

159
VIANNA, M. • Os founding fathers do Parquet – um ensaio comparativo entre as elites do Ministério Público...

da Revolução de 1932.13 Sua formação se deu em uma escola jesuítica (Co-


légio São Luiz), e, posteriormente, tornou-se bacharel pela Faculdade de
Direito de São Paulo em 1917.
Após breve atuação como advogado, ingressou no MPP em 1918.
César Augusto atuou nas promotorias de Ataliba e Socorro, e, em 1925, se
tornou oficial de gabinete da Chefia de Polícia. Em 1927 foi convidado
pelo presidente do Estado para assumir como interino na promotoria de
São Paulo; em 1929, já era titular, permanecendo no cargo até 1940, quan-
do foi alçado a 2.º subprocurador-geral do Estado.
Embora atuasse no Conselho Superior do MPP, sua grande instância
de atuação era a APMP. Ele foi presidente da associação desde a sua funda-
ção em 26.11.1938 até sua desarticulação em fins de 1945. Desenvolveu
um grande poder mobilizador em prol das reformas do MPSP e se valeu da
publicação Justitia, pertencente à APMP, para fazer constar atas, manifes-
tos, discursos, pareceres e outras publicações de interesse aos membros.
Conforme recordou Plínio de Arruda Sampaio, sua qualidade estava em
ser “um homem muito hábil, com boas ligações políticas”.14 Não por aca-
so, sua atuação como promotor na capital permitiu expandir suas relações
com o meio político, e, após breve experiência na Revolução de 1932, quan-
do participou do batalhão de seu tio e chefiou um setor de defesa territorial
da capital paulista, foi eleito deputado estadual pelo PRP em 1935. Como
deputado de oposição, dentro do contexto de embates entre PRP e PC no
governo paulista, promoveu discursos favoráveis à autonomia do MPP.
Certamente, deter esse capital lhe possibilitou dialogar com o Poder
Executivo, tendo a habilidade em incorporar os procuradores-gerais às ideias
pregadas pela APMP. Isso aparentemente foi bem-sucedido, e as distinções
político-partidárias ficaram em um segundo plano em prol de um discurso
e prática de institucionalização do MP. Um indicador disso são as cerimô-
nias de posse ou despedida dos procuradores-gerais; embora essa ritualiza-

13
Sua importância residiu na reorganização da Força Pública para a guerra. Não morreria em
combate, mas em um acidente no campo de testes. Um canhão explodiu, soltando estilhaços e
atingindo-o mortalmente. Foi promovido post mortem, sendo alvo de espessas homenagens.
14
Entrevista de Plínio de Arruda Sampaio ao Projeto Memória do MPRS em 07 de agosto de
2002, p. 3. Disponível em: <http://www.mp.rs.gov.br/memorial/noticias/id12392.htm>.
Acesso em: 20.01.2010.

160
Poder, instituições e elites

ção possa trazer a falsa impressão de ausência de conflitos, há uma preocu-


pação em consolidar uma unidade desse grupo em prol de uma instituição
em formação15. As boas relações com Ademar de Barros, que prestigiou os
founding fathers com um almoço no Palácio dos Campos Elísios por ocasião
do Código do MPP de 1939, colaboraram para o feito. Nessa ocasião, Cé-
sar Salgado saudou sua amizade com Ademar de Barros como “compa-
nheiro de lides legislativas, a quem se sentia vinculado por laços de velha e
constante amizade”.16
Da mesma forma, César Salgado usou sua experiência política para
articular o I Congresso Nacional do MP em São Paulo no ano de 1942 e
tentou se contrapor a interferências políticas no MPP, como no Projeto de
Reforma Judiciária em 1942, sob análise do DAESP. Tal projeto previa a
prerrogativa do interventor federal de nomear promotores adjuntos na ca-
pital paulista, por livre escolha, sem concurso e sem respeito aos critérios
de ascensão na carreira, conforme o Código do MPP de 193917. Isso levou
César Salgado a protestar contra a mudança em ofícios dirigidos ao secre-
tário do Interior, ao interventor Fernando Costa e posteriormente ao mi-
nistro da Justiça Alexandre Marcondes Filho e ao presidente da República
Getúlio Vargas contra a mudança.18 A mobilização resultou em que Mar-
condes Filho desautorizasse o governo estadual a impor a medida.19
Posteriormente, no pós-Estado Novo, foi escolhido procurador-geral
e designou dois founding fathers para fazer lobby durante os trabalhos consti-
tuintes, garantindo os privilégios alcançados pela instituição. Ele seria es-
colhido em mais duas oportunidades procurador-geral do Estado (1951 e
1957) e se constituiria como o maior nome do MPP, alcançando o título de
“Promotor das Américas”, por sua atuação no II Congresso Interamerica-
no do MP em 1955. Vale observar que a APMP fomentou um espaço de

15
Um exemplo está nos discursos por ocasião da saída de Benedito Costa Neto (Justitia, v. 6, n.
14, p.430-435, maio-ago. 1943).
16
Justitia, v. 1, p. 179, set.-out. 1939.
17
Justitia, v. 4, p. 581-583, maio-set. 1942; Justitia, v. 6, n. 15, p. 767, set.-dez. 1943.
18
Justitia, v. 51, p. 28. Nesses ofícios previa-se a revisão do Código Judiciário de São Paulo
(Decreto n.º 11.058, de 26.04.1940) que criou o Conselho Superior do MP. Esse órgão, que
previa a participação do procurador-geral e de três subprocuradores, tinha poderes para propor
remoções e promoções, organizar concursos e fiscalizar a atuação dos promotores públicos.
19
Justitia, v. 51, p. 28.

161
VIANNA, M. • Os founding fathers do Parquet – um ensaio comparativo entre as elites do Ministério Público...

debate e pressão sobre as autoridades na condução de César Salgado e,


quando o mesmo conseguiu o cargo de procurador-geral, houve uma de-
sarticulação da APMP nos anos seguintes.20 Festejado pelos seus pares, César
Salgado participou de um grande número de eventos jurídicos no exterior e
atuou em diversos órgãos, como o Instituto Latino-Americano de Crimino-
logia e a Associação Interamericana do MP. Integrou o Instituto Histórico
e Geográfico Paulista, exerceu forte militância nos movimentos católicos
jesuíticos, além de colecionar homenagens e postos honoríficos. Em 1965,
se aposentaria do MPP e, um ano depois, se tornou membro da Academia
Paulista de Letras. Faleceu em 08.04.1979, com expressas homenagens dos
integrantes do campo jurídico paulista.

b) Abdon de Mello, o articulador do processo institucional do MPRS


Abdon de Mello nasceu em 18.06.1898 em Encruzilhada do Sul. Ele
era filho do paraibano Francisco Antônio de Siqueira Mello, oficial do Exér-
cito ali radicado no final do século XIX21. O pai esteve envolvido nas Revo-
luções de 1893 e 1923 respectivamente ao lado dos federalistas e chiman-
gos, mas não alcançou uma alta patente – aposentou-se major. Também era
membro da maçonaria, o que lhe dava, em tese, trânsito entre parte da elite
local. A mãe de Abdon de Mello, por sua vez, era filha de um diretor da
Mesa de Rendas de Santana do Livramento.
Ao contrário do irmão Nélson de Mello, que teria destaque no cam-
po político-militar, culminando no cargo de ministro da Guerra em 1962 e
articulação no Golpe Militar de 1964, Abdon de Mello teve uma trajetória
mais modesta até alcançar relativo reconhecimento no meio jurídico rio-
grandense. Aos 16 anos, tornou-se professor público em São Borja e, em

20
Apenas em 1950 é que a APMP voltaria a atuar, sob a presidência de João Batista de Arruda
Sampaio.
21
A família era originária de Mamanguape, Paraíba. “O avô deles [Manuel Antônio de Siqueira
Mello Filho] era um grande senhor de engenho. Quando morreu, dividiram as terras. Depois,
também morreu o pai deles, meu avô, e papai resolveu ingressar no Exército. Engenho é muito
bom quando está só com um. Papai, então, foi ser cadete, que era um posto herdado da
Monarquia” (Entrevista do Mal. Nélson de Mello ao CPDOC/FGV em 08.06.1978, p. 7).
Pela entrevista, traduz-se a estratégia de conversão do prestígio familiar de Francisco Mello
para se manter frente à decadência. A vinda para o Rio Grande do Sul cortou os laços familiares
com a Paraíba.

162
Poder, instituições e elites

1920, formou-se pela Faculdade de Direito de Pelotas e foi nomeado pro-


motor público da sua cidade natal. Fez sua carreira como promotor, embo-
ra como partidário do PRR fosse nomeado eventualmente para outras fun-
ções, como juiz distrital em Santiago em 1924; por dois anos também atuou
como subchefe de polícia da 5.ª região (Cachoeira do Sul, 1927-1928). Em
1929, passou a ocupar a 3.ª Promotoria de Porto Alegre. O ápice de sua
carreira política, ou melhor, incursão política, foi após a Revolução de 1930,
quando chegou a intendente em Bento Gonçalves e logo se indispôs com os
partidários do PL, deixando o cargo para voltar à promotoria da capital.
A partir dali manteve-se por quase oito anos, sem grandes sobressal-
tos em meio aos conflitos políticos dos anos 1930, até alcançar a promoção
para subprocurador em 1938. Ali começou a publicar trabalhos referentes
ao MP, como Promoções cíveis e criminais em 1931, o que lhe trouxe prestigio
no campo jurídico e na carreira institucional. Desde que havia assumido o
cargo de subprocurador até janeiro de 1939, atuou como procurador-geral,
cargo vago entre abril de 1938 a janeiro de 1939. Nessa qualidade, encami-
nhou o projeto de um novo regulamento para o Ministério Público para as
Faculdades de Direito de Porto Alegre e Pelotas, como forma de legitima-
ção, que resultou em comentários positivos da classe jurídica (ENGEL-
MANN, 2001, p. 66-67).22
Se, para Abdon de Mello, o projeto idealizava “um verdadeiro ma-
gistrado, obediente apenas aos imperativos da sua consciência jurídica”23,
sua própria atuação parecia destoar desse ideal, conforme as críticas de
alguns contemporâneos. Abdon de Mello era considerado “[...] um tipo
submisso, era, como se diz, fiel aos princípios da política local”. O alegado
comportamento subserviente talvez fosse estratégia para não se indispor
com o Executivo visto antigos embaraços, como o caso das 10 mil libras
esterlinas no início de 1938, que lhe custou a possível ascensão ao cargo de
procurador-geral no mesmo ano.24 Essa precaução devia-se ao passado de

22
Além do concurso público como recrutamento meritocrático e como garantia de estabilidade
ao promotor público, o projeto previa o ingresso de estagiários e acesso via concurso para
qualquer entrância. Justiça, 1938, p. 637-653.
23
Justiça, 1938, p. 637.
24
Em início de 1938, Abdon de Mello havia negado oferecer denúncia contra Flores da Cunha
no caso do desvio de 10.000 libras esterlinas, um dos vários procedimentos legais abertos pela
interventoria contra o ex-governador. Se isso rendeu prestígio ao ponto de publicar um livreto

163
VIANNA, M. • Os founding fathers do Parquet – um ensaio comparativo entre as elites do Ministério Público...

grande instabilidade nos primeiros quatro anos do Estado Novo, pontua-


dos por demissões, passagens efêmeras de procuradores ligados ao PRR
(Conrado Wagner e João Soares) e conflitos nos bastidores referentes à atua-
ção de Anor Butler Maciel25.
Entretanto, essa atuação subserviente através de pareceres favoráveis
ao governo foi o suficiente para conduzir o processo de institucionalização
do MPRS.26 Seu projeto lograria êxito em 1942, com algumas modifica-
ções, e resultaria no novo Código do MPRS, substituindo o de 1920. Fez
também um regulamento interno da instituição (1943), publicou um novo
livro de pareceres (1944) e uma obra referente à história institucional do
MPRS (1943), além de participar com grande número de trabalhos na Re-
vista do MP. Abdon de Mello foi escolhido para permanecer à frente do
MP no pós-Estado Novo e apenas deixou o cargo com a posse de Walter
Jobim como governador do Estado em 1947.
Seu prestígio começou a declinar a partir daí. Abdon de Mello se
manteve como 1.º procurador do Estado até o final da carreira, mas atuou
por longos períodos como procurador-geral substituto.27 Sua atuação não
foi inconteste, sofrendo resistências de membros do Conselho Superior do
MPRS (CSMP). As disputas entre Abdon de Mello e os colegas de CSMP
(alguns deles founding fathers) sobre promoções, punições e licenças de pro-
motores levaram a seu isolamento na instituição e posterior afastamento
do CSMP. Mesmo eleito para mais um mandato de conselheiro em 1954, o
que pelo menos revelava respaldo dos promotores do interior, Abdon de

pela Globo especialmente sobre o caso e declarações de solidariedade sobre a independência


da instituição, custou-lhe o cargo de procurador-geral (MELLO, 1938; Diário de Notícias,
03.02.1938; Correio do Povo, 05.02.1938).
25
O desembargador Solon Macedônia, que era amigo de Abdon de Mello, acusou Anor Butler
Maciel de numerosas irregularidades, o que levou este a rebater caso a caso, acusando Solon
Macedônia de ter pleiteado o cargo de procurador para si e não ter sido escolhido. Isso poderia
ser reflexo da ascensão católica e da resistência de positivistas no campo jurídico.
Correspondência expedida pelo procurador-geral do Estado Anor Butler Maciel ao secretário
de Interior Miguel Tostes em 20.05.1940 – Unidade de Arquivo do MPRS.
26
Um exemplo está na omissão na investigação dos abusos de autoridades (delegados de polícia)
contra os descendentes de alemães e italianos no RS.
27
Os procuradores-gerais que se seguiram, João Bonumá (1947-1951) e Ajadil de Lemos (1951-
1955), tiveram de se afastar temporariamente da chefia do MPRS – o primeiro por motivos de
saúde, o segundo por uma viagem de estudos aos EUA.

164
Poder, instituições e elites

Mello acabou se afastando por motivos de saúde. Aposentou-se em 1955 e


não teve mais nenhuma ligação conhecida com a instituição. Apenas por
ocasião de seu falecimento seu nome reapareceu, em 1969, em discretas
homenagens.28 A memória de Abdon de Mello começaria a ser recuperada
apenas nos anos 1970 (D’ÁVILA, 1974), mas de certo modo o ex-procura-
dor-geral manteve-se, salvo a lembrança do seu nome e de seu “legado”,
um indivíduo pouco conhecido pelas novas gerações do MPRS.

Considerações finais
Pode-se dizer que os founding fathers do MPP seguiam o caminho de
ingresso na elite política, mas foram colhidos pelas transformações dos anos
1930, culminando no Estado Novo e no constrangimento das vias tradicio-
nais de acesso político. Por outro lado, pelo fato de ser uma geração mais
nova, os founding fathers do MPRS tinham menos capitais e recursos neces-
sários para impor suas ideias e ficaram, desta forma, submetidos à lideran-
ça de Abdon de Mello. Mas isso pode ser visto como vantagem, pois, ao
manter um low profile, escaparam das depurações ou puderam ocupar o
lugar dos depurados diante da desorganização inicial do MPRS no início
do Estado Novo.
O caso de César Salgado ilustra um acúmulo de capital político con-
vertido para a defesa do novo campo institucional, tornando-se um articu-
lador dos demais founding fathers e incorporando os procuradores-gerais do
estado ao grupo para atender as demandas da classe. O uso da APMP como
órgão de mobilização e da revista Justitia como órgão de divulgação funcio-
nou e conseguiu garantir, ainda em fins dos anos 1930, as conquistas insti-
tucionais do MPP, possibilitou a manutenção mesmo em episódios com
divergências do DAESP e manteve os founding fathers ocupando cargos de
chefia até 1965.
O processo de institucionalização do MP contou com outra estraté-
gia. Com Abdon de Mello, ela se daria por baixo, através do desenvolvi-
mento de uma doutrina nos anos 1930 e certa subserviência ao Poder Exe-

28
Ata do CSMP nº 151, de 06.05.1969. Arquivo do MPRS.

165
VIANNA, M. • Os founding fathers do Parquet – um ensaio comparativo entre as elites do Ministério Público...

cutivo no Estado Novo. A desorganização da instituição diante dos conflitos


políticos e um baixo capital político colaboraram para isso. Os founding fa-
thers do MPRS detinham menos recursos, o que constrangia inclusive a atua-
ção da AMPRGS, que pouco se fez notar durante o Estado Novo. Isso não
significa que não houvesse mobilização dos founding fathers do MPRS, mas
houve um controle maior por parte de Abdon de Mello, que acabou por con-
centrar boa parte das iniciativas. Henrique Fonseca de Araújo, em que pese o
reconhecido domínio das lides jurídicas, apenas ascenderia ao cargo de pro-
curador-geral por participar do campo político tradicional através do PL.
Isso abre a última questão que merece maiores reflexões: a existência
de casos de founding fathers incursionando no campo político no pós-Estado
Novo. Mais do que trazer benefícios posteriores ao MP através de legislações
favoráveis, o fortalecimento da instituição serviu para situá-la como um cam-
po de “salvaguarda”29, uma reserva do indivíduo capacitado de recursos para
transitar em diferentes campos; em poucas palavras, quando encerrado um
mandato político e sem expectativa de nova oportunidade, o MP estaria dis-
ponível como campo independente, estável e de pleno reconhecimento por
parte dos demais campos. De fato, não só os founding fathers, mas também
numerosos membros do MPP e do MPRS alternavam cargos políticos com
retornos à carreira nas instituições, algo que ocorre até os dias atuais. A má-
xima dessas reconversões foi bem definida pelo procurador Ruy Rebello Pi-
nho, em discurso pela aposentadoria de César Salgado em 1965: “Ninguém
deixa o MP quando passa a servir noutros setores. Apenas leva a outros cam-
pos as virtudes que buscamos cultivar aqui.”30

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29
Na visão de Christophe Charle, uma “rede de proteção cômoda para realocar as vítimas dos
acasos do sufrágio universal” (2008, p. 21).
30
Justitia, v. 54, n. 158, p. 254, 1992.

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Poder, instituições e elites

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168
Poder, instituições e elites

Ampliando os horizontes das pesquisas


em história da saúde:
a comparação em estudos sobre a
atuação da Fundação Rockefeller

Ana Paula Korndörfer

Marc Bloch escreveu, em 1928, o texto que é, ainda hoje, referência


fundamental nos debates e discussões sobre a história comparada. Em Para
uma história comparada das sociedades europeias (Pour une histoire comparée des
sociétés européennes), Bloch pretendeu demonstrar que o método comparati-
vo é “um instrumento técnico de uso corrente, maleável e susceptível de
resultados positivos” (BLOCH, 1998, p. 120). O autor buscou, assim, preci-
sar a natureza e as possibilidades de aplicação da “boa ferramenta” que é a
comparação e, por meio de exemplos, indicar o que possível esperar do
método, além de sugerir meios práticos para facilitar seu uso.
Logo de início, Bloch definiu o que é comparar em História:
[...] escolher, em um ou vários meios sociais diferentes, dois ou vários fenó-
menos que parecem, à primeira vista, apresentar certas analogias entre si,
descrever as curvas da sua evolução, encontrar as semelhanças e as diferen-
ças e, na medida do possível, explicar umas e outras. São portanto necessá-
rias duas condições para que haja, historicamente falando, comparação:
uma certa semelhança entre os factos observados – o que é evidente – e
uma certa dissemelhança entre os meios onde tiveram lugar (BLOCH,
1998, p. 120-121. Grifos meus).

O processo de comparação pode, ainda segundo Bloch, ter duas apli-


cações totalmente distintas em princípios e resultados. A primeira aplica-
ção é a comparação entre “[...] sociedades separadas no tempo e no espaço
por distâncias tais que as analogias observadas de um lado e do outro [...]
não possam, com toda a evidência, explicar-se por influências mútuas ou
por alguma comunidade de origens” (BLOCH, 1998, p. 121). Esta aplica-
ção da comparação, a analogia, possibilita o preenchimento de lacunas de

169
KORNDÖRFER, A. P. • Ampliando os horizontes das pesquisas em história da saúde

documentação, ajuda a explicar sobrevivências e pode sugerir novas dire-


ções para a investigação.
Para Bloch, porém, o método comparativo mais rico cientificamente
é o mais limitado em seu horizonte: “[...] estudar paralelamente sociedades
a um tempo vizinhas e contemporâneas, incessantemente influenciadas
umas pelas outras, cujo desenvolvimento está submetido [...] à acção das
mesmas grandes causas e que remontam, pelo menos em parte, a uma ori-
gem comum” (BLOCH, 1998, p. 122-123).1
Abordando o trabalho prático da comparação, o autor afirma que
esta “[...] só terá valor se se apoiar em estudos de facto, pormenorizados,
críticos e solidamente documentados” (BLOCH, 1998, p. 143).
Em outro texto, intitulado Comparação, de 1930, Bloch sintetizou quais
eram, a seu ver, os resultados possíveis do método comparativo: sugestão
de pesquisa; explicação das sobrevivências; interpolação das curvas; busca
de influências; filiação (revelação de parentescos insuspeitos) e semelhan-
ças e diferenças do processo (BLOCH, 1998, p. 111-118) .
Mas a história comparada teve, e ainda tem, um status minoritário nos
estudos históricos, como afirmou Jürgen Kocka em artigo publicado em 2003.2

1
Boris Fausto e Fernando Devoto, na Introdução de Brasil e Argentina: um ensaio de história compa-
rada (1850- 2002), afirmam que Marc Bloch foi o historiador que “mais influenciou a disciplina
quanto ao uso do método comparativo” (FAUSTO; DEVOTO, 2004, p. 13). Comentando as
dificuldades e as vantagens da segunda aplicação da comparação, considerada a mais rica cien-
tificamente por Bloch, os autores destacam, entre as dificuldades, “[...] distinguir os fenômenos
que poderiam ser explicados autonomamente dos que deviam ser entendidos em conjunto com
os da outra sociedade estudada; ou de dominar com a mesma profundidade os dois ou mais
campos pesquisados; ou, ainda, de traduzir os diferentes códigos e vocabulários empregados
pelos historiadores de cada lugar” (FAUSTO, DEVOTO, 2004, p. 14). Passando a discutir as
vantagens desta aplicação da comparação, Fausto e Devoto afirmam que “[...] eram muito
grandes, sempre que a pesquisa fosse realizada com o devido cuidado. Assim, seria possível
perceber influências mútuas e buscar explicações para os diversos problemas para além das
causas internas; identificar as falsas causas locais e diferenciar as verdadeiras das gerais; encon-
trar vínculos antigos e perduráveis entre as sociedades; fornecer sugestões e novas pistas para a
investigação. Para Bloch, a comparação não dizia respeito somente à busca de semelhanças,
mas também, e especialmente, à das diferenças. Desse modo, a história comparada servia tanto
para melhor formular as questões sobre cada caso quanto para explicá-lo” (FAUSTO, DEVO-
TO, 2004, p. 14).
2
Para uma breve discussão sobre as dificuldades suscitadas pelo binômio história comparada, ver
Heinz, Flavio; Korndörfer, Ana Paula. Comparações e comparatistas. In: HEINZ, Flavio (Org.).
Experiências nacionais, temas transversais: subsídios para uma história comparada da América
Latina. São Leopoldo: Oikos, 2009, p. 9-20.

170
Poder, instituições e elites

Em Comparison and Beyond, Kocka afirma que a comparação em estudos


históricos é “discutir sistematicamente dois ou mais fenômenos históri-
cos no que se refere às suas semelhanças e diferenças buscando certos
propósitos intelectuais” (KOCKA, 2003, p. 39).3 Apontando as principais
funções que abordagens comparativas cumprem em estudos históricos,
Kocka afirma que a comparação permite identificar questões e problemas
que poderiam passar despercebidos, ser negligenciados ou simplesmente
não elaborados de outra maneira (heurística); ajuda a esclarecer os perfis
individuais comparando-os com outros (descrição); é indispensável para
perguntar e responder questões causais (análise) e, finalmente, a aborda-
gem comparativa ajuda o historiador a se distanciar do caso que melhor
conhece, proporcionando uma “ampliação de horizontes”, um “novo
olhar” sobre a história que lhe é mais familiar (paradigma) (KOCKA,
2003, p. 40-41).
Destacadas estas questões sobre a história comparada, minha pro-
posta neste texto é apontar algumas possibilidades da comparação em estu-
dos sobre a atuação da Fundação Rockefeller na área da saúde em diferen-
tes países da América Latina e Caribe na primeira metade do século XX a
partir dos estudos de Armando Solorzano (1994) – The Rockefeller Founda-
tion in Revolutionary Mexico: Yellow Fever in Yucatan and Veracruz, e Steven
Palmer (2010) – Launching Global Health: The Caribbean Odyssey of the Rocke-
feller Foundation. Ao final, apontarei algumas possibilidades da compara-
ção para o estudo da atuação da Fundação Rockefeller no campo da saúde
no Brasil das primeiras décadas do século XX.
A Fundação Rockefeller, instituição filantrópica norte-americana4,
foi criada em 1913 e incorporou as instituições pertencentes à família
Rockefeller: Rockefeller Institute for Medical Research, General Education Board

3
“For the purposes of this comment I want to stress that comparing in history means to discuss
two or more historical phenomena systematically with respect to their similarities and differen-
ces in order to reach certain intellectual aims” (KOCKA, 2003, p. 39. A tradução é minha).
4
Maria Gabriela Marinho define da seguinte maneira a filantropia científica da Fundação Ro-
ckefeller: “De modo geral, o conceito de filantropia pode ser definido como a destinação de
recursos privados para atuação em atividades de interesse público. No caso específico da filan-
tropia científica, há destinação de recursos privados para a produção de conhecimento científi-
co” (MARINHO, 2001, p. 14).

171
KORNDÖRFER, A. P. • Ampliando os horizontes das pesquisas em história da saúde

e Sanitary Commission for the Eradication of Hookworm Disease.5 Os trabalhos


aqui destacados analisam atividades desenvolvidas pela divisão internacio-
nal de saúde da Fundação Rockefeller. Esta divisão de saúde chamou-se
International Health Commission (IHC) entre 1913 e 1916, International Health
Board (IHB) entre 1916 e 1927 e International Health Division entre 1927 e 1951
e, ao encerrar as suas atividades em 1951, havia estado presente em mais de 80
países do mundo, incluindo todos os países da América do Sul.6 Entre as ativi-
dades desenvolvidas pela divisão internacional de saúde da Fundação Rocke-
feller estavam campanhas de combate à ancilostomíase7, à febre amarela e à
malária, a fundação e o investimento em instituições de ensino e pesquisa na
área da saúde e a distribuição de bolsas de estudos para treinamento de profis-
sionais em saúde pública, medicina e enfermagem no exterior.8
É comum encontrarmos, nos estudos mais recentes sobre a presença
e a atuação da Fundação Rockefeller em diversos países, a afirmação, acer-

5
O Rockefeller Institute for Medical Research (1901) era um Instituto voltado para o desenvolvimen-
to da medicina experimental. O General Education Board (1903) tinha como objetivo o desenvol-
vimento de um amplo projeto educacional voltado principalmente para a região sul dos Esta-
dos Unidos. A Sanitary Commission for the Eradication of Hookworm Disease (1909) atuou no com-
bate à ancilostomíase nos estados do sul norte-americano num projeto de cinco anos (ETTLING,
1981; FARIA, 2007). Analisando a atuação da Fundação Rockefeller em termos globais de
maneira geral, Lina Faria firma que é possível identificar dois momentos distintos importantes.
Segundo Faria, “o primeiro, iniciado em 1913, dava ênfase à medicina e a ações em saúde
pública. Durante as décadas de 20 e 30, a Rockefeller direcionou suas atividades para pesquisa
e controle de doenças infecciosas como a ancilostomíase, a febre amarela e a malária. Um
segundo momento, que se consolidou em fins dos anos 40, mais precisamente com o fim da
Segunda Guerra Mundial, ligou-se ao desenvolvimento do ensino médico, das ciências físicas
e biológicas e da agricultura” (FARIA, 2007, p. 78-79).
6
Diversos países contaram com a cooperação da Fundação Rockefeller a partir de 1913, entre os
quais México, Brasil, Equador, Argentina, Colômbia, Chile, Paraguai, Peru, Uruguai, Vene-
zuela, Costa Rica, Cuba, Guatemala, Haiti, Nicarágua, Panamá, El Salvador, Jamaica, Trini-
dad e Tobago, Granada, Canadá, Ceilão, Índia, Malásia, Coréia, Tailândia, China, Japão,
Iraque, Turquia, Israel e Líbano. Alguns países africanos e europeus também receberam apoio
da Rockefeller. Entre os países europeus, podemos citar Inglaterra, França, Espanha, Portugal
e Albânia (FARIA, 2007, p. 59). Para informações sobre a presença e a atuação da Fundação
Rockefeller na área da saúde na América Latina, ver trabalho de Marcos Cueto: CUETO,
Marcos (Ed.). Missionaries of Science: The Rockefeller Foundation & Latin America. Blooming-
ton: Indiana University Press, 1994.
7
A ancilostomíase é uma verminose conhecida popularmente no Brasil como amarelão ou opi-
lação.
8
John Farley discute a história da divisão internacional de saúde da Fundação Rockefeller em:
FARLEY, John. To Cast Out Disease: A History of the International Health Division of the
Rockefeller Foundation (1913-1951). Nova York: Oxford University Press, 2004.

172
Poder, instituições e elites

tada, de que a Fundação precisou “adaptar-se” aos contextos encontrados.


Diego Armus (2005) destaca, em Legados y tendencias en la historiografía sobre
la enfermedad en América Latina moderna, texto cujo objetivo principal é apon-
tar as direções que estão tomando as pesquisas sobre a história da doença,
que a chegada da medicina europeia e norte-americana à América latina e
o papel de agências internacionais como a Fundação Rockefeller têm sido
um ponto importante de estudos e discussões e que estes são, em grande
medida, uma reação contra interpretações que assumiam uma postura de
recepção passiva – transplante e importação – de conhecimentos e práticas
articuladas no exterior. Em estudos e discussões mais recentes, segundo
Armus, a ênfase está no processo de seleção, reelaboração e adaptação des-
tes conhecimentos e práticas a contextos culturais, políticos e institucionais
específicos.9 Em outro texto, intitulado Disease in the Historiography of Mo-
dern Latin America (ARMUS, 2003), Armus afirma, sobre as missões da
Fundação norte-americana em países da América Latina, que
[the] missions’ technical-elitist approach had to be adapted to the local
population’s idiosyncrasies and perceptions of disease, something the foun-
dation representatives found as difficult, and did as badly, as most of the
native doctors. The relations between national and foreign medical groups
were complex, at times involving subordination, cooptation, alliance, prag-
matism, conflict or mutual adaptation. In both rural and urban areas the
mission officers faced the unavoidable problems of when to interfere in
people’s everyday routines and customs and when to leave them alone, and
when to use persuasion and when to resort to coercion in order to achieve
public health goals (ARMUS, 2003, p. 10).

Poucos são, porém, os estudos que analisam em perspectiva compa-


rada os diferentes contextos em que a Fundação atuou, o que nos permiti-
ria perceber mais claramente os processos de seleção, reelaboração e adap-
tação da agenda, das propostas e das ações da instituição norte-americana
em diferentes países, bem como compreender melhor os contextos históri-
cos, especialmente no que se refere à saúde, destes mesmos países. Os tex-
tos de Armando Solorzano (1994) e Steven Palmer (2010) são dois desses
estudos.

9
Sobre a atuação da Fundação Rockefeller no Brasil, por exemplo, Lina Faria afirma que “aqui
no país, para lograr êxito, a Rockefeller teve de adaptar seus objetivos e modelos de atuação às
condições históricas, culturais e sanitárias locais” (FARIA, 2007, p. 80).

173
KORNDÖRFER, A. P. • Ampliando os horizontes das pesquisas em história da saúde

Como veremos, Solorzano e Palmer apresentam propostas distintas


de análise comparativa não apenas pela escala adotada – Solorzano enfoca
duas regiões de um mesmo país, o México, enquanto Palmer discute seis
países da América Central e do Caribe – , mas também pelo enfoque, pois
enquanto Solorzano propõe uma análise mais política, Palmer apresenta
um estudo orientado pela história social e cultural da medicina.
Armando Solorzano propõe-se a analisar, em The Rockefeller Founda-
tion in Revolutionary Mexico: Yellow Fever in Yucatan and Veracruz, o papel
desempenhado pela Fundação Rockefeller nas campanhas contra a febre
amarela em Yucatán e Veracruz, duas províncias mexicanas.10
Segundo Solorzano, havia, quando o texto foi elaborado, a acertada
preocupação metodológica em analisar os programas da Fundação de acor-
do com as condições econômicas, políticas e sociais dos países em que esta
atuou. Contudo, segundo o autor, não havia a preocupação em analisar tais
condições em uma escala menor, o que parecia indicar a suposição de que
o desenvolvimento de uma nação seja uniforme e homogêneo (SOLOR-
ZANO, 1994, p. 52).
Justificando as escolhas de Yucatán e Veracruz para sua análise, So-
lorzano afirma que estas províncias são particularmente interessantes, pois
a intervenção da Fundação Rockefeller ocorreu durante um período de
agitação política – a Revolução Mexicana – e também porque estas regiões
refletiam uma propagação desigual do capitalismo norte-americano, expe-
riências revolucionárias distintas, bem como atitudes diferentes de parte
das elites médicas mexicanas com relação às campanhas da Fundação. O
estudo de Solorzano também leva em consideração, segundo o autor, os
esforços do México para melhorar a saúde da população no início do sécu-
lo XX e a emergência de um aparato nacional de saúde pública (SOLOR-
ZANO, 1994, p. 52).
Para Armando Solorzano, seu estudo dá respaldo à hipótese de que
os objetivos e técnicas da campanha contra a febre amarela da Fundação

10
As campanhas contra a febre amarela no México também foram analisadas mais recentemen-
te por Anne-Emanuelle Birn (BIRN, Anne-Emanuelle. Marriage of Convenience: Rockefeller
International Health and Revolutionary Mexico. Rochester: University of Rochester Press,
2006).

174
Poder, instituições e elites

Rockefeller eram determinados pelo nível de investimento econômico nor-


te-americano na região, bem como pelas condições políticas da Revolução
Mexicana. Além disso, a campanha da Fundação modificou, segundo o
autor, a revolução de maneira significativa, alterando o sentimento antia-
mericano da população de Veracruz, ao ajudar a estabilizar e legitimar o
Estado mexicano, e criando as bases para a influência no desenvolvimento
institucional da medicina e saúde pública no México pós-revolucionário
(SOLORZANO, 1994, p. 53).
Veracruz, primeira província analisada, era um dos mais importan-
tes enclaves econômicos norte-americanos na América Latina em 1910 (in-
vestimentos, produção para o mercado dos EUA, monopólio da indústria
petrolífera, aquisição de terras por concessão). A Revolução Mexicana foi
percebida pelos investidores norte-americanos como uma ameaça aos seus
interesses e, em 1914, Veracruz foi ocupada pelos U.S. Marines. Um inci-
dente envolvendo marinheiros norte-americanos intensificou um sentimento
antiamericano já existente. Com a retirada do exército dos EUA, o presi-
dente Venustiano Carranza tornou Veracruz uma importante base revolu-
cionária (SOLORZANO, 1994, p. 53).
O incidente em Veracruz foi, segundo Solorzano, um dos principais
motivos para a demora no início das operações da Fundação Rockefeller
no México. A Fundação tentou iniciar campanhas de saúde pública no país
entre 1911 e 1920, mas sem sucesso. Segundo o autor, eram três os fatores:
a forte oposição do presidente Carranza, o sentimento antiamericano gera-
do pela invasão de 1914 e a desconfiança dos governos mexicanos em rela-
ção às organizações norte-americanas (SOLORZANO, 1994, p. 53).
As condições políticas começaram a mudar no final da década de
1910 e início da década de 1920, quando os líderes revolucionários, após
anos de conflito, começaram a reconstruir o país, buscando estabilidade,
crescimento econômico e melhores relações com os Estados Unidos. Com
a chegada de Alvaro Obregón ao governo, na década de 1920, foi assinado
um acordo com a Fundação Rockefeller para a realização de campanha
contra a febre amarela. O programa concentrar-se-ia em Veracruz, região
que sofria com a doença desde o século XIX e era considerada um dos
maiores focos endêmicos da doença. Diferentemente dos esforços mexica-
nos anteriores no combate à doença, a Fundação buscava a sua erradica-

175
KORNDÖRFER, A. P. • Ampliando os horizontes das pesquisas em história da saúde

ção, não o seu controle. O antiamericanismo dificultou o início da campa-


nha em Veracruz, pois a Fundação estava associada, aos olhos da popula-
ção, aos interesses econômicos na região. A situação política na província –
oposição à Fundação e ao presidente Obregón, visto como apoiador dos
EUA – também dificultava a ação da Rockefeller, percebida como uma pre-
paração para uma futura invasão norte-americana. O pessoal da Fundação
alocado para trabalhar em Veracruz enfrentava condições muito difíceis de
trabalho, sem a colaboração da população, de políticos, comerciantes ou
mesmo dos médicos locais. As questões políticas e a relação de apoio da
Fundação ao presidente Obregón são destacadas por Solorzano (SOLOR-
ZANO, 1994, p. 53-57).
A campanha da Fundação Rockefeller contra a febre amarela iniciou
em 1921 e, de acordo com o autor, em dezembro de 1921, os casos da doen-
ça haviam sido reduzidos em 85%. Em 1923, a doença havia sido “erradi-
cada” (SOLORZANO, 1994, p. 58).
No final de 1922, segundo Solorzano, observou-se uma mudança de
atitude da população de Veracruz com relação ao pessoal da Fundação e
ao governo mexicano, motivada pelo trabalho desenvolvido pela Fundação
junto à população. Controlada a epidemia, a Rockefeller anunciou sua reti-
rada da região, e a população exigiu que o governo mexicano assumisse a
campanha e passou a demandar programas de saúde pública. Ficou suben-
tendido que o sucesso da campanha contra a febre amarela foi uma vitória
da administração mexicana: “as a result, the Mexican state gained legiti-
mation in the eyes of the Veracruz population. In addition, the RF benefi-
ted substantially, in that future work in public health was made easier” (SO-
LORZANO, 1994, p. 60). Para F. F. Russel, presidente do International
Health Board, os sentimentos da população de Veracruz haviam mudado,
inclinando-se ao pró-americanismo.
Destacadas estas questões sobre a atuação da Fundação Rockefeller
no combate à febre amarela em Veracruz, Solorzano afirma que, para apreciar-
mos a magnitude da mudança trazida pela Fundação à província, é preciso
compará-la com a campanha contra a febre amarela implementada pela Fun-
dação em Yucatán, outra província mexicana (SOLORZANO, 1994, p. 60).
Diferentemente do que ocorreu Veracruz, a população de Yucatán
permaneceu indiferente à revolta nacional, pois a província atravessava um

176
Poder, instituições e elites

bom momento econômico. Idéias de regionalismo e separatismo estiveram


presentes entre a população de Yucatán desde o período pré-revolucionário.
A distância da província com relação ao México central e a resistência da
população em fazer parte da Revolução influenciaram, segundo Solorzano,
o trabalho da Fundação Rockefeller na região (SOLORZANO, 1994, p. 61).
Chegando a Yucatán apenas em 1915, a Revolução, introduzida pelo
general Salvador Alvarado, adquiriu um outro perfil na província, constitu-
indo-se numa versão local do movimento socialista. O autor nos informa,
porém, que isto não significou um antiamericanismo. Nenhuma outra re-
gião do México apresentava, segundo Solorzano, um sentimento mais fa-
vorável aos Estados Unidos do que Yucatán, cuja população, em 1914, ex-
pressou sua vontade em fazer parte dos Estados Unidos (SOLORZANO,
1994, p. 61).
Apesar deste sentimento favorável aos Estados Unidos, importantes
investidores norte-americanos não confiavam em Alvarado ou em Carrillo
Puerto, associado do primeiro e governante de Yucatán, e exigiam a inter-
venção do governo dos Estados Unidos na região. A proteção aos negócios
norte-americanos oferecida pelo governo dos EUA foi a proteção contra a
febre amarela, uma ameaça ao país, que poderia ser atingido pela doença
através das exportações de Yucatán para os Estados Unidos. A Fundação
Rockefeller também estava interessada em erradicar a doença da região,
um dos mais antigos núcleos endêmicos no continente (SOLORZANO,
1994, p. 62).
Em 1920, a Fundação iniciou os trabalhos em Yucatán, a partir de
um acordo firmado com o governo mexicano. Como nenhum caso da do-
ença havia sido registrado na região desde o final de 1919 (o departamento
de saúde mexicano havia realizado campanhas anteriores para controlar a
doença), a Fundação decidiu concentrar-se em prevenir a reintrodução da
doença. A febre amarela afastava investimentos e também impedia a pre-
sença de grandes contingentes do exército federal na província, desejada
pelos norte-americanos (controle da influência bolchevique) e pelo presi-
dente Obregón (estender a influência do governo nacional e combater a
revolução socialista na região), mas ameaçada pela febre. As condições de
trabalho da Fundação em Yucatán eram muito favoráveis, diferentemente
de Veracruz (SOLORZANO, 1994, p. 62-64).

177
KORNDÖRFER, A. P. • Ampliando os horizontes das pesquisas em história da saúde

A campanha contra a febre amarela iniciou, efetivamente, em feve-


reiro de 1921 e concentrou-se na prevenção e na proteção dos não imunes.
As ações para proteger os soldados enviados pelo governo federal foram
bem-sucedidas, assim como as ações para proteger a população em geral.
Necessitando de pouco pessoal e contando com o apoio da população, dos
profissionais médicos e dos governantes, a campanha da Fundação Rocke-
feller em Yucatán alcançou, segundo Solorzano, grande êxito (SOLORZA-
NO, 1994, p. 64-66).
Em suas conclusões, Armando Solorzano afirma que a análise da
atuação da Fundação Rockefeller em Veracruz e em Yucatán permite tra-
çar algumas conexões entre as campanhas contra a febre amarela e a situa-
ção revolucionária no México. Segundo ele, a instabilidade social, política
e econômica, que ameaçava aos interesses norte-americanos no país, foi a
porta de entrada da Fundação no México e na Revolução. A Rockefeller foi
um importante componente na legitimação do Estado mexicano, como é
possível observar nas análises de Solorzano sobre as duas províncias, onde
a atuação da Fundação foi muito significativa para a consolidação da posi-
ção de Obregón e do governo mexicano como provedor de melhorias nas
condições de saúde da população. O papel da Fundação no financiamento
de programas de saúde pública e de saneamento básico de algumas áreas
também é destacado pelo autor. As campanhas também tiveram implica-
ções para a influência norte-americana no desenvolvimento posterior dos
serviços de saúde no México (SOLORZANO, 1994, p. 67-68).
A análise de Armando Solorzano sobre a atuação da Fundação Ro-
ckefeller na campanha contra a febre amarela em duas províncias mexica-
nas – Veracruz e Yucatán – aponta uma importante questão: é possível ana-
lisar a atuação da Fundação Rockefeller no México de forma ampla e em
linhas gerais, mas, numa proposta de análise que adota uma escala menor
do que a nação, Solorzano demonstra que esta atuação não ocorreu da
mesma forma nas diferentes regiões de um mesmo país.
O projeto de Steven Palmer é mais ambicioso em termos comparati-
vos. Em Launching Global Health: The Caribbean Odyssey of the Rockefeller Foun-
dation, a proposta do autor é analisar comparativamente a atuação da divi-
são internacional de saúde da Fundação Rockefeller no combate à ancilos-
tomíase em seis países da América Central e do Caribe: Nicarágua, Pana-

178
Poder, instituições e elites

má, Costa Rica, Guatemala, Trinidad e Guiana Britânica, com ênfase nos
quatro últimos, entre os anos de 1914 e o final da década de 1920.
Apesar das diferenças11, os “mundos” da América Central e do Cari-
be britânico eram convergentes em termos geopolíticos e econômicos. Du-
rante o curso do século XIX, os quatro territórios – Guatemala, Trinidad,
Guiana Britânica e Costa Rica – compartilharam a experiência de se inseri-
rem no sistema capitalista mundial através da exportação agrícola e, em
cada um dos casos, o boom exportador foi financiado principalmente pelo
capital britânico e a produção tinha o mercado europeu como destino. No
início do século XX, porém, os quatro territórios estavam na órbita de in-
fluência dos Estados Unidos.
Neste texto, é o próprio autor quem destaca a ausência de estudos
comparados sobre o tema, indicando que há pesquisas sobre as campanhas
contra a ancilostomíase realizadas em parceria com a Fundação Rockefeller
em países como Austrália, Brasil, Colômbia, México, sul dos Estados Uni-
dos, entre outros, mas, surpreendentemente, quase nenhum trabalho de
comparação foi realizado. Segundo Palmer, estes recentes estudos realiza-
dos sobre as campanhas em países individualmente analisados sublinha-
ram que a agenda e as propostas da Fundação poderiam ter aplicações dis-
tintas em cada um dos locais de atuação e sofrer importantes transforma-
ções como resposta a preocupações e condições locais, mas que não há
uma apreciação sobre o grau de diferenciação em questão. Assim, Palmer
afirma que a análise comparativa dos seis programas institucionalmente
iguais, desenvolvidos no mesmo tempo histórico e no mesmo espaço geo-
político, demonstra o quão diferentes podiam ser o desenvolvimento dos
programas e seus resultados (PALMER, 2010, p. 3).12
Orientado pela história social e cultural da medicina, mas valendo-se
também de estudos elaborados na área das ciências sociais e das aborda-
gens institucionais que têm analisado a saúde internacional, Palmer discu-

11
A Costa Rica e a Guatemala eram dois estados da América Central hispânica, Trinidad e a
Guiana Britânica eram duas colônias do Caribe britânico e a Nicarágua e o Panamá, dois
países sob a influência norte-americana.
12
“The following comparative worm’s-eye view of six institutionally identical programs, de-
ployed in the same historical time and geopolitical space demonstrates how distinct each
program’s development and outcome could be […]” (PALMER, 2010, p. 3).

179
KORNDÖRFER, A. P. • Ampliando os horizontes das pesquisas em história da saúde

te a história da ancilostomíase em cada um dos países antes da chegada da


Fundação Rockefeller (a Costa Rica, por exemplo, já possuía programa de
combate à doença); analisa as relações entre os representantes da Funda-
ção, os governos e outros grupos locais, como os médicos; aborda a relação
das populações locais com a doença e com as práticas de cura e, consequen-
temente, com o método de combate à ancilostomíase proposto pela Funda-
ção, entre outros aspectos. Para exemplificar o trabalho comparativo reali-
zado por Palmer, comento rapidamente a análise do autor sobre a compo-
sição das equipes locais de trabalho que realizavam as atividades de campo
nas campanhas contra a ancilostomíase realizadas em parceria com a Fun-
dação norte-americana.13
Os diretores norte-americanos da divisão internacional de saúde da
Fundação Rockefeller trabalhavam com pessoal local, que deveria ser sele-
cionado, organizado e treinado de acordo as orientações da Fundação. Este
trabalho em conjunto com a população local teria como vantagem o fato de
estar inserido na vida e nas tradições da localidade. Para Palmer, não há
expressão mais ponderosa do quanto dinâmicas sociais e políticas preexis-
tentes definiram a natureza das missões de combate à ancilostomíase que
as marcadas diferenças no perfil e na composição das equipes de trabalho.14
Na Guiana Britânica e em Trinidad, o grupo de trabalho era com-
posto por sujeitos étnica e linguisticamente ecléticos que compunham as
classes trabalhadora e média coloniais. Na Guiana Britânica, muitos dos
sujeitos que compunham a equipe possuíam experiência na área da saúde
como técnicos sanitários. Em Trinidad, por sua vez, a equipe contava com
muitos professores e nenhum médico. Já na Guatemala, o grupo era com-
posto por muitos estudantes de medicina ou médicos criollos, membros de
famílias importantes do país. Na Costa Rica, homens de classe média e
de diversas origens raciais, muitos com diploma em farmácia, compu-
nham a equipe.

13
Capítulo 3 – Local Material: Social and Political Character of the Missions (PALMER, 2010,
p. 89-114).
14
“There is no more powerful expression of the degree to which preexisting social and political
dynamics defined the nature of hookworm missions than the stark differences in the character
and composition of the staff from one area of operation to the next” (PALMER, 2010, p. 90).

180
Poder, instituições e elites

As equipes de trabalho eram compostas, em geral, por grupos de 10 a


15 homens e, com frequência, contavam com um pequeno grupo de mulhe-
res. Os sujeitos que compunham as equipes eram hierarquizados e estratifi-
cados por distintas combinações raciais, étnicas e de nacionalidade, bem
como por casta, classe e gênero. Estas clivagens, segundo Palmer, tinham
importantes repercussões nas relações entre as equipes de trabalho e a po-
pulação, no grau de comprometimento dos sujeitos que compunham as
equipes e nas escolhas feitas pelo diretor norte-americano no desenvolvimento
do trabalho. As relações entre os sujeitos que compunham estas equipes po-
diam ser de conflito ou de colaboração, mas, de qualquer maneira, a dinâmi-
ca era crucial para o caráter/perfil das missões. O isolamento do diretor nor-
te-americano e a sua necessidade de improvisar soluções fizeram com que
este dependesse de aliados locais e de seu pessoal, com destaque para o “nú-
mero dois”. O segundo homem no comando podia variar, de acordo com a
análise comparativa de Palmer, em título, função e autoridade (PALMER,
2010, p. 91). Na Guiana Britânica, por exemplo, o segundo homem no co-
mando da missão era o microscopista chefe, enquanto na Guatemala e na
Costa Rica eram médicos locais. A análise comparativa realizada pelo autor
também demonstrou que as motivações dos sujeitos que trabalhavam nas
missões da Fundação Rockefeller podiam ser distintas. Em Trinidad, por
exemplo, o trabalho era visto como possibilidade de mobilidade social.
Longe de apenas seguirem um manual de instruções elaborado e re-
digido no escritório da Fundação Rockefeller em Nova York, as equipes de
trabalho constituídas por pessoal local tinham o poder de determinar o su-
cesso ou o fracasso das campanhas contra a ancilostomíase analisadas por
Palmer. Nas palavras do autor:
As we turn to look at the way the hookworm campaigns developed on the
ground, we must keep the mission staff in sight, not as an inert instrument
of the Rockefeller will but as a force of its own, often driven by rivalry, race,
and rank but also always in pursuit of political, social and cultural objectives
that may or may not have coincided with those of International Health (PAL-
MER, 2010, p. 114).

Ao comentar os trabalhos de Solorzano e Palmer, busquei apontar


dois exemplos do que é possível com o “método” comparativo nos estudos
sobre a atuação da Fundação Rockefeller na área da saúde em diferentes
países, em diferentes contextos.

181
KORNDÖRFER, A. P. • Ampliando os horizontes das pesquisas em história da saúde

Contudo, a presença e a atuação da Fundação Rockefeller na área da


saúde no Brasil no início do século XX também permanecem um tema
praticamente inexplorado em termos comparativos.
O Brasil foi o país do continente americano em que a Fundação Ro-
ckefeller investiu a maior soma de capitais. Segundo Lina Faria, “de cerca
de 13 milhões de dólares, aplicados em programas sanitários e de educação
em países deste continente, US$ 7 milhões foram direcionados para o de-
senvolvimento do ensino médico, de pesquisas científicas e campanhas sa-
nitárias no Brasil” (CASTRO SANTOS, FARIA, 2003, p. 67). A Fundação
Rockefeller realizou, através da sua divisão internacional de saúde, campa-
nhas contra a ancilostomíase, a febre amarela e a malária em parceria com
o governo federal e governos estaduais. Segundo levantamento realizado
por Marcos Cueto (CUETO, 1994, p. xi), o Brasil foi o país da América
Latina que mais recebeu bolsas de estudos entre 1917 e 1962, num total de
443 (o México, segundo colocado, recebeu 359 bolsas no mesmo período).
A Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo, o Instituto de Higiene,
o Instituto Oswaldo Cruz e a Escola de Enfermagem Ana Nery são exem-
plos de instituições brasileiras que contaram com auxílio financeiro e pro-
fissional da Fundação Rockefeller.
Estudos comparativos entre as atividades desenvolvidas pela Funda-
ção no Brasil e em outros países, como as campanhas contra a febre amare-
la realizadas no Brasil (1923-1940) e no México (1921-1924), por exemplo,
certamente trariam alguns dos benefícios da comparação apontados por
Marc Bloch e Jürgen Kocka, como a possibilidade de analisar as semelhan-
ças e diferenças nos processos e identificar questões e problemas que, de
outra maneira, poderiam passar despercebidos.
Luiz Antonio de Castro Santos, ao apresentar “uma primeira incur-
são” à sua proposta de análise comparativa da atuação das missões médi-
co-sanitárias e educacionais da Fundação Rockefeller no Brasil e na China,
e que teria entre seus objetivos “entender o modo pelo qual as diversas tra-
dições médicas teriam influenciado a forma de operação e os princípios
pedagógicos da Rockefeller e, inversamente, teriam sido por ela influencia-
das”, afirma que a comparação é “[...] um procedimento a um só tempo
analítico – ao clarificar as experiências nacionais contrastantes pelo ‘jogo
de espelhos [...] e metodológico – ao operar, pela análise dos casos contras-

182
Poder, instituições e elites

tantes, com o mecanismo lógico de prova ou refutação de hipóteses ou con-


clusões” (CASTRO SANTOS, FARIA, 2003, p. 188).15
Mas a atuação da Fundação Rockefeller na área da saúde no Brasil
não é área fértil para comparações apenas em termos nacionais. As campa-
nhas contra a ancilostomíase no Brasil, entre 1916 e 1923, foram realizadas
a partir de acordos de cooperação entre a Fundação e estados brasileiros.
Cabe lembrar aqui que, a partir da proclamação da República no Bra-
sil, em 1889, as questões relativas à saúde pública passaram a ser tratadas
de forma descentralizada, obedecendo a Constituição de 1891, que estabe-
lecia a autonomia dos estados. Encarregados dos serviços sanitários, os es-
tados respondiam pela saúde pública e repassavam aos municípios as ques-
tões relativas à higiene. Apenas o Distrito Federal e a vigilância dos portos
permaneceram sob responsabilidade do governo federal. Os problemas de
saúde eram considerados regionais, e intervenções federais não previstas
podiam ser interpretadas como questionamento do pacto federativo. A le-
gislação referente à saúde sofreu modificações durante o período da Pri-
meira República brasileira (1889-1930), mas é importante sublinhar que o
cuidado com a saúde da população coube aos poderes locais durante este
período (HOCHMAN, 1998).
Campanhas contra a ancilostomíase foram realizadas, a partir da
cooperação entre a Fundação Rockefeller e os governos estaduais, em di-
versos estados brasileiros: Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Minas Ge-
rais, Maranhão, Santa Catarina, Pernambuco, Rio Grande do Sul, Bahia,
Alagoas e Espírito Santo, além do Distrito Federal. Uma análise superficial
baseada nos raros estudos sobre a presença da Fundação Rockefeller em
estados brasileiros e as campanhas de combate à ancilostomíase realizadas
no país durante a República Velha indica aspectos interessantes para uma
análise comparada que ainda está por ser realizada, como, por exemplo, as

15
Luiz Antonio de Castro Santos e Lina Faria também são autores de CASTRO SANTOS, Luiz
Antonio de; FARIA, Lina Rodrigues de. Os primeiros centros de saúde nos Estados Unidos e
no Brasil: um estudo comparativo. Teoria e Pesquisa, n. 40 e 41, p. 137-181, jan./jul. 2002. Lina
Faria é coautora de outro estudo comparativo referente à Fundação Rockefeller: FARIA, Lina;
COSTA, Maria Conceição. Cooperação científica internacional: estilos de atuação da Funda-
ção Rockefeller e da Fundação Ford. Dados – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 49, n.
1, p. 159-191, 2006.

183
KORNDÖRFER, A. P. • Ampliando os horizontes das pesquisas em história da saúde

relações entre a Fundação Rockefeller e a Igreja Católica em Minas Gerais


(MARQUES, 2004), as elites do café em São Paulo (BRANNSTROM,
2010), e entre a Fundação e o governo estadual do Rio Grande do Sul, que,
orientado pelo positivismo, defendia a liberdade profissional, princípio que
se refletia diretamente sobre a saúde e o exercício da medicina.16
A análise comparativa destas campanhas, realizadas em estados que
possuíam diferenças políticas, econômicas, sociais e culturais, certamente
traria contribuições à discussão sobre o grau de transformação e adaptação
que a agenda e as propostas da Fundação Rockefeller poderiam sofrer como
resposta a preocupações e condições locais. A comparação também pode-
ria enriquecer a análise sobre como as propostas da Fundação foram selecio-
nadas, reelaboradas e adaptadas por agentes locais – governos e médicos,
por exemplo –, permitindo uma maior compreensão da organização e do
funcionamento da saúde em diversos estados brasileiros no período da Pri-
meira República.

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16
Desenvolvo, atualmente, projeto de pesquisa sobre as relações entre a Fundação Rockefeller e
o governo do estado do Rio Grande do Sul entre os anos de 1919 e 1923.

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Você também pode gostar