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RESUMO
O presente artigo foi elaborado como trabalho de encerramento de curso na matéria Teoria do
Direito na turma 2020.1 do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito. Pretende,
tomando por base dois artigos dos professores que ministram o curso, Profs. Dres. Joaquim Leonel
de Rezende Alvim – “TEORIA CRÍTICA, CONSTITUCIONALISMO DEMOCRÁTICO E
ASPECTOS POLÍTICO/JURÍDICOS DO PROCESSO DE IMPEACHMENT: um diálogo com a
trajetória acadêmica-institucional de José Ribas Vieira”– e Wilson Madeira Filho – “O
HERMENEUTA E O DEMIURGO: presença da alquimia no histórico da interpretação jurídica” –
demonstrar como, em um complexo e histórico contexto com a participação do Parlamento e da
Imprensa, foi possível que, através do exercício da hermenêutica, ocorresse a subversão resultante
no impeachment da presidente Dilma Rousseff em 2016.
PALAVRAS CHAVE: Hermenêutica. Subversão. Impeachment.
ABSTRACT
This article will be submitted as the closing paper on Law’s Theory classes 2020.1 at the Programa
de Pós-Graduação em Sociologia e Direito (Post-Graduation Programo on Sociology and Law). It’s
purposes are to show through using two essays of the teaching Professors, Prof. D. Joaquim Leonel
de Rezende Alvim’s “TEORIA CRÍTICA, CONSTITUCIONALISMO DEMOCRÁTICO E
ASPECTOS POLÍTICO/JURÍDICOS DO PROCESSO DE IMPEACHMENT: um diálogo com a
trajetória acadêmica-institucional de José Ribas Vieira” and Prof. D. Wilson Madeira Filho “O
HERMENEUTA E O DEMIURGO: presença da alquimia no histórico da interpretação jurídica”,
how was it possible through hermeneutics to subvert the stablished order and the resulting
impeachment of President Dilma Rousseff back in 2016.
KEYWORDS: Hermeneutics. Subversion. Impeachment.
INTRODUÇÃO.
O presente artigo busca defender uma ideia singela: através do exercício da hermenêutica,
com todas as suas peculiaridades e características internas e subjetivas em sua prática (FILHO
2002) foi possível a subversão ampla no conceito de inquérito (ALVIM 2019) que resultou no
impeachment da Presidente Dilma Rousseff em 2016.
O trabalho está dividido em três capítulos interdependentes entre si. O primeiro e o
segundo consistem, respectivamente, em resenhas de excertos dos artigos que serviram de base ao
presente trabalho e o terceiro capítulo consiste no desenvolvimento da tese esposada, servindo a
conclusão como fecho do trabalho.
Não é desprezível ressaltar que, dada a natureza do presente – um caso específico para
obtenção de um “diagnóstico” – trata-se da construção de uma conclusão através da utilização de
vários fatores ou “indícios”, usando como “sintomas” primordiais os temas exsurgidos dos textos
dos mestres que ministraram o curso porque, parafraseando a Prof. Dra. Gislene Neder, “não é
possível que o aluno/ orientando não leia, converse ou construa conhecimento durante um curso de
pós-graduação com seus professores, e não há como construir conhecimento sem ler seus textos e
conhecer seus pensamentos”.
Com respeito ao artigo “TEORIA CRÍTICA, CONSTITUCIONALISMO
DEMOCRÁTICO E ASPECTOS POLÍTICO/JURÍDICOS DO PROCESSO DE IMPEACHMENT:
um diálogo com a trajetória acadêmica-institucional de José Ribas Vieira”, do Prof. Dr. Joaquim
Leonel de Rezende Alvim, o ponto fundamental abordado e desenvolvido pelo presente trabalho é o
tema da subversão do inquérito enquanto um procedimento que busca, a partir de uma dúvida,
subsídios que poderão (ou não) concluir pela existência de um ilícito. A subversão verificada no
artigo em comento se deu no momento em que o inquérito não se deu para encontrar a solução – a
solução já estava dada antes mesmo do início do procedimento, tornando-o um simulacro vazio –
mas para a realização de uma vontade política, transformando a busca pela “verdade” numa busca
pela “vontade”. Como resultado, a substituição da vontade dos eleitores pela vontade política do
parlamento.
Relativamente ao artigo “O HERMENEUTA E O DEMIURGO: presença da alquimia no
histórico da interpretação jurídica”, texto complexo do Prof. Dr. Wilson Madeira Filho, toma-se por
base o ponto fundamental nele verificado: a fina ironia com respeito ao cientificismo moderno e
modernizante, nascido da “Revolução Científica” e que trouxe novas “verdades” através de uma
nova categoria hierática: os “cientistas”, verdadeiros substitutos dos padres no imaginário ocidental
pós-Iluminação, onde a Verdade deixou de ser uma característica havida por força mágica – seja ela
religiosa ou mística – para uma nova Verdade baseada no método científico.
O desenvolvimento propriamente dito conecta entre os temas: o exercício da hermenêutica
por aqueles a quem a Constituição incumbiu para que protegessem a ordem constitucional e
democrática em si, num determinado momento histórico – in casu, o Brasil de 2016 – permitiu que
fosse realizada verdadeira metamorfose paradigmática. A construção da subversão através da
hermenêutica é, portanto, uma construção social e cuja abordagem o presente realiza principalmente
através de outros textos e livros porque, como é consabido, os livros muitas vezes falam de livros
assim como os textos falam muitas vezes de outros textos. Assim como também é possível perceber
muito do autor do texto ao se ler um texto. Dentro desse quadro, desenvolveu-se a construção da
teoria que se pretende defender pelo presente no que diz respeito à metamorfose acima citada.
Essa metamorfose aconteceu perante o público em verdadeiro espetáculo propiciado não
apenas pela grande imprensa (jornais e revistas impressas, rádio e televisão) como também pela
nova mídia utilizando-se de um discurso permanente com respeito à existência de “malfeitos”
pressupostos e que não precisariam ser demonstrados cabalmente por ser o julgamento por
parlamentares um juízo “político”.
A tudo isso soma-se a suposta necessidade de extirpação da corrupção que seria ínsita a um
determinado partido político e seus aliados, e que haveriam transformado o Brasil numa
“cleptocracia” ou “corruptocracia”, fato esse também corroborado pela veiculação por todas as
formas de comunicação social de massa possíveis de denúncias feitas por absolutamente todo tipo
de gente com respeito à corrupção que se haveria entranhado na administração da coisa pública.
Apresentados todos esses fundamentos, acrescentados a fatores políticos de instabilidade
(FALCÃO, ARGUELHES e PEREIRA 2017), apresentamos a conclusão: o impeachment de Dilma
Vana Rousseff constituiu um atentado à democracia instaurada na ordem constitucional de 1988,
apresentando diariamente para a população um simulacro (CHAUÍ 2008) de procedimento
inquisitorial onde o resultado já era, desde o começo, conhecido e esperado e onde os “expertos”
portadores do conhecimento científico e, portanto, “neutros”, avalizaram e permitiram através do
seu trabalho de transformar ouro em chumbo – o inverso do propósito alquímico – a cassação do
mandato de uma Presidente da República Federativa do Brasil regularmente eleita e a
materialização de um a alternância de poder fora das regras estabelecidas: um golpe de Estado.
O “ovo da serpente” para o presente artigo foi um ensaio da pena do Prof. Dr. Joaquim
Leonel de Rezende Alvim à moda Festschrifft endereçado ao Prof. Dr. José Ribas Vieira.
O mote primordial da homenagem foi o trabalho de José Ribas Vieira dialogando com a
Teoria Crítica do Direito – da qual o próprio autor é outro expoente.
Partindo do desenvolvimento dos trabalhos da Teoria Crítica do Direito no Brasil trabalho
de pioneiros como José Ribas Vieira, passa o autor a apontar agudamente o vício de origem em todo
o processo de impeachment de Dilma Rousseff: a existência de uma certeza prévia ao inquérito
quanto à prática de um crime de responsabilidade e pior, a condução de todo o procedimento como
o caminho de um condenado à forca ao cadafalso conduzido pelo verdugo inexoravelmente.
A subversão havida é por demais simplória: havendo os parlamentares decidido por cassar
o mandato popular outorgado à Presidente, houveram por bem, sob a batuta do Dep. Fed. Eduardo
Cunha (à época PMDB-RJ), realizar um “inquérito” televisionado diariamente onde todos os
argumentos enderençavam-se ao impedimento da mandatária, independentemente de haver ou não a
constatação de qualquer ato que consubstanciasse a previsão do art. 85 da Constituição Federal e
dentro das hipóteses preconizadas nos artigos 4º a 12 da lei 1079/1950.
Todo o procedimento foi amplamente mediatizado seja por emissoras estatais (TV Câmara,
TV Senado e TV Justiça), seja por emissoras privadas (todas as emissoras de TV aberta e os canais
televisivos por assinatura), assim como por emissoras de rádios (públicos e privados), portais
noticiosos de internet (UOL, BOL, G1, Terra, etc), mídias eletrônicas (Youtube, Vlogs, Blogs, etc)
e redes sociais eletrônicas.
A intensa publicização do processo, no entanto, não lhe serviu peia – ao contrário,
verificou-se intensa polarização entre a população mas uma incrível superficialidade nos círculos
com poder efetivamente decisório (parlamento e STF).
Conforme será explicado mais adiante no texto, existe um sistema de proteções ao suposto
juízo político a ser exercido pelos parlamentares, estando o sistema judicial inserido como aquele
que, imparcialmente, evitará o atropelamento das formas e o controle de legalidade substancial para
evitar subversões.
Precisamente nesse caso, o sistema não produziu o que dele se esperaria: o controle pelo
Judiciário da constitucionalidade de todo o processo de impeachment exatamente para que fosse
viável a apreciação não-técnica ou “política” dos fatos apurado.
O segundo texto que serve como inspiração para o presente é complexo e, mais uma vez
para efeito de registro histórico, chamado informalmente por seu Autor de “Demiurgo” – “O
HERMENEUTA E O DEMIURGO: presença da alquimia no histórico da interpretação jurídica”.
Outro registro histórico é importante e foi importante para capturar o espírito por trás da
pena: o artigo foi escrito no dia de um fato significativo na história recente, o “ataque às Torres
Gêmeas”, o World Trade Center, evento com impacto importante no desenvolvimento geopolítico
posterior e cujas consequências até a data da elaboração do presente ainda se fazem sentir.
O hermeneuta pode ser entendido como aquele que extrai de um texto/ contexto seu
significado oculto ou que não se está oferecendo ao intérprete prima facie. Especificamente no que
tange ao hermeneuta jurídico, os hermeneutas podem ser aqueles que desempenham as mais
diferentes funções nos mais diferentes órgãos. Especificamente no caso presente, o hermeneuta
jurídico cujo comportamento no desempenho de seu mister se pretende abordar é especificamente o
magistrado, aquele que exerce a função no Direito brasileiro de jus dicere, ou “dizer o direito”,
conforme será mais pormenorizadamente analisado a seguir.
A densidade do texto funciona, parafraseando Umberto Eco, como uma névoa “tão densa
que se poderia cortar com uma faca” (ECO 2011), onde é preciso atentar para, ao final, exsurgir
ácida crítica à hipocrisia extrema trazida pela revolução científica realizada onde supostamente
foram estabelecidos critérios objetivos e completamente desinteressados ideologicamente mas, em
verdade, aceitam-se quaisquer proposições quanto às condições superpostas (mesmo que
contraditórias) desde que prevaleça a lógica circular criada por ela mesma (LATOUR 1993).
O hermeneuta é, portanto, alguém que exerce uma atividade intelectual, que se pretende
científica e que, em se tratando de magistrados, deve ser “imparcial”. Essa qualidade, contudo,
precisa ser construída com todo o arcabouço pessoal anterior, absolutamente isenta de pressões
externas e, naturalmente, de se trabalhar sempre com a hipótese de um desejo interno manifesto de
imparcialidade, o que também não pode ser absolutamente garantido em virtude de poder acontecer
de o intérprete, voluntariamente, adotar uma postura pendendo para um ou outro argumento. A
complexidade não se dá então apenas pelo exercício “científico” da atividade, onde diferentes
“correntes de pensamento”, também chamadas no “ramo” jurídico “doutrinas”, podem ou não ser
privilegiadas com sua encampação pelo Poder Judiciário, o Hermeneuta maiúsculo cujo exercício
de hermenêutica produzirá efeitos materiais efetivos criando a norma jurídica aplicável ao caso
concreto, seja ele qual for e direcionado a tantos interessados quanto os que se beneficiarem da
decisão – mesmo que sejam “todos” como as decisões judiciais emanadas pelo Supremo Tribunal
Federal em matéria constitucional erga omnes, mas sobretudo em virtude das risco sempre
permanente de que ceda o juiz à força do “outro lado” e aja parcialmente, fazendo jus o bruxo do
Cosme Velho Machado de Assis n’A Igreja do Diabo: “é a eterna contradição humana”.
3. A CONSTRUÇÃO DA SUBVERSÃO.
A subversão defendida no presente trabalho não se deu apenas graças ao trabalho dos
incumbidos da função da hermenêutica – ao contrário, a subversão trazida por aqueles a quem
incumbe precipuamente essa função coroaram uma narrativa e toda uma construção social de longa
data, permitindo que se houvesse não apenas um procedimento legislativo – o impeachment – como
o afastamento mesmo de uma presidente da República eleita com vícios absolutamente subversores
da ordem constitucional implantada em 1988. Apenas a construção social da legitimidade de todo o
processo, em seu sentido mais amplo, pode permitir que sucessivas subversões sucedessem e até
mesmo o resultado do sufrágio havido em 2014 fosse desconsiderado para a substituição da
mandatária. Também não é desprezível verificar que à subversão dos parlamentares e dos
hermeneutas listados no título do presente trabalho aconteceu a subversão do dever primordial da
imprensa: informar à sociedade de maneira minimamente objetiva, sem manifestos partidarismos
ou, em os havendo, manifestar-se de maneira a deixar clara e patente a opção por essa ou aquela
vertente política que permitissem ao público formular seu juízo com a devida clareza, não sendo
manifestamente ludibriado por uma suposta e não verificada imparcialidade ou objetividade na
formulação das pautas e transmissão das informações de maneira a submeter o público a percepções
enviesadas ou mesmo completamente falsas com respeito a fatos e direitos absolutamente
indispensáveis dentro da vida política e social.
Essa verdade construída está relacionada, noutro aspecto, ao exercício do poder, conforme
se pode extrair no trecho a seguir extraído do Governo dos Vivos (FOUCAULT 2009):
“(...) nenhum poder existe por si! Nenhum poder, qualquer que seja, é
evidente ou inevitável! Qualquer poder, consequentemente, não merece ser
aceito no jogo! Não existe legitimidade intrínseca do poder!”
É necessária à construção da verdade pelo inquérito uma atitude mental prévia por parte de
quem o desempenha seus atos: o inquisidor deve controlar seus ímpetos e não manifestamente
impingir sua versão aos eventos inquiridos, transformando o procedimento mera encenação ou
simulacro. Eventual ocorrência dessa deformidade obrigatoriamente configura subversão onde a
busca pela verdade se transforma num simulacro de busca pela verdade, verdadeiro engodo
praticado pelo inquisidor para fingir não estar fazendo o que quer, como quer, independentemente
de quaisquer outros fatores e/ ou circunstâncias externas a si.
Ainda que se aponha aos presentes argumentos o fundamento apresentado pela grande
maioria da chamada Mainstream Media, qual seja, o “desejo popular” na substituição da presidente
eleita por seus “malfeitos” e pela “crise econômica”, é primordial ressaltar o compromisso havido
pelos legisladores com o próprio sistema político-jurídico-legislativo ao qual estão submetidos por
conta do risco de inserção num círculo vicioso de insegurança permanente, onde bastará que se
avolumem os movimentos políticos, sejam eles de que natureza for – manifestações populares,
manifestações virtuais, reportagens veiculadas apresentando supostas irregularidades, enfim, a
miríade de fatos possíveis dentro da vida em sociedade – para que sejam os parlamentares
outorgados com a possibilidade de um exercício de “voto de desconfiança” parlamentar no meio do
mandato do presidente (ou governador de estado, ou prefeito municipal), fato esse absolutamente
inexistente dentro do ordenamento jurídico nacional e que obrigatoriamente configura como
substituição forçada, injusta, subversiva da ordem constitucional e, naturalmente, um golpe.
A gravidade da questão também não foi abordada perante a opinião pública de maneira
adequada, terminando a questão a ser abordada e enfocada eminentemente com respeito a questões
técnicas incompreensíveis para a população em geral no que tange aos aspectos contábeis e
econômico-financeiros das supostas irregularidades, descurando-se mesmo de verificar que mesmo
que houvesse a indicação pelo Tribunal de Contas da União com respeito à rejeição das contas da
presidente eleita no ano fiscal de 2014, não estaria vinculado o Congresso ao parecer do TCU
possuindo ampla liberdade para a aprovação das contas caso assim o verificasse profícuo. Verifica-
se, então, outro aspecto da subversão: o “encantamento” da opinião pública e a consequente
“cegueira” com respeito a aspectos estruturais fundamentais do que se discutia no processo de
impeachment no Congresso nacional.
A intensa midiatização dos processos judiciais não é recente. Conforme já percebido pela
academia (OLIVEIRA JR 2012), a mídia transmite o procedimento penal para a grande massa por
motivos de comunicação e divertimento mórbido similar ao verificado nos autos de fé promovido
pela Inquisição. Com o advento dos meios de comunicação de massa, é possível cada vez mais
atingir a um número cada vez maior de consumidores de noticias, independentemente do espectro
político a que esteja filiado o ser humano de carne e osso que busca informação.
Não obstante o fato ressaltado recentemente (PAIVA 2013) com respeito aos debates sobre
o jornalismo em si e a maneira mais adequada para o seu exercício, também existe substancial
material acadêmico com respeito ao papel da assim chamada grande imprensa dentro da conjuntura
política que teve como um dos seus efeitos materiais a derrubada, segundo crê o presente trabalho
de maneira absolutamente irregular, de uma presidente da República e a cassação dos votos a ela
atribuídos.
Uma vez que a maioria absoluta da população não acessa diretamente aos autos dos
processos – legislativos como o impeachment como judiciais como a ADPF nº 378 suso
mencionada – as informações obtidas com respeito aos seus fundamentos de fato e de direito se
deram por intermédio de terceiros noticiantes. Independentemente da existência de sites
especializados voltados para o público técnico-científico ao tema afeito, a imensa maioria da
população absorveu através do filtro praticado pelas pautas editoriais (GUAZINA, PRIOR e
ARAUJO 2017). Aliado à superficialidade e ausência de debate público com espaço minimamente
proporcional às opiniões e fundamentações contrastantes (MARTINS 2016), a deslegitimação
cotidiana não apenas da presidente em exercício como do partido a que era filiada fazia parte
também de verdadeira “cruzada moralista”, identificando as mazelas inúmeras da sociedade
nacional como advindas da falência generalizada da República em virtude da “cleptocracia”
instalada no poder central juntamente com o Partido dos Trabalhadores, cujos “tentáculos”
estender-se-iam às empresas estatais e mesmo aos estados da Federação.
Essa miríade informativa ou verdadeiro cabal semiótico a que estavam sujeitas vastíssimas
parcelas da população acabou por construir uma “verdade” ou um consenso social: os agentes
públicos do tipo políticos, que exercem mandatos quatrienais, e que são eleitos pelo povo,
constituem uma categoria profissional absolutamente indigna da confiança por parte da própria
população que os elegeu em virtude de uma ampla gama de escândalos das mais variadas naturezas,
todos comprovados materialmente de maneira cabal e absoluta através dos mais variados veículos
de imprensa – jornais impressos e digitais/ eletrônicos, emissoras de TV aberta e por assinatura,
sites e blogs informativos, emissoras de rádio convencional ou pela internet: enfim, absolutamente
todos os meios de comunicação de massa desconstruíram a confiança da população na classe
política assim considerada a acima descrita.
Foi possível então a construção de um discurso por parte dos parlamentares que viabilizou
a deturpação absoluta dos fundamentos porque se deveria realizar um procedimento de apuração de
irregularidades. Instaurou-se um consenso com respeito à inevitabilidade do afastamento da
mandatária independentemente de se verificar ou não a prática dos atos previstos no art. 85 da
Constituição Federal em virtude de uma suposta ingovernabilidade. Também foi possível a
judicialização do tema, como será abordado a seguir, sem que os fundamentos apresentados por
ambas as partes fossem apresentados de maneira ao menos aproximadamente equilibrada no que diz
respeito à apresentação para o público, sendo possível a absoluta fuga do cerne do tema por parte do
Judiciário sem que se manifestasse a pressão social compatível graças ao amortecimento da
consciência social trazida pelo bombardeio semiótico trazido cotidianamente pelos meios de
comunicação de maior abrangência da massa informativa.
Como expõe o título do presente, coube aos hermeneutas importante papel a desempenhar
no processo de impeachment de Dilma Rousseff, evento verdadeiramente crucial para a democracia.
A importância do desafio pode ser medida pelos 54.501.118 votos recebidos no segundo turno pela
então candidata à reeleição no pleito de 2014 – e que terminaram cassados no “julgamento político”
pelas duas casas do parlamento. Esse papel a ser desempenhado pelo Judiciário (via STF) quando
da instauração do processo de impeachment tem como principal objetivo a proteção da Constituição
respeitando a previsão do artigo 102 caput da própria Lex Legum. Dada sua necessária inércia, foi-
lhe oportunizado intervir quando do ajuizamento da Medida Cautelar na Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental de nº 378 sob relatoria do Min. Edson Fachin, em mais
uma ocasião em que ocorreu o que se convencionou chamar “judicialização da política” – não
descurando das profundas controvérsias com respeito à sua proficuidade. A manifestação pelo
Judiciário goza de substancial prestígio junto à população em geral por conta de dois fatores
importantes: a ausência de compromisso eleitoral por parte dos juízes – em quaisquer instâncias ou
tribunais – e o caráter técnico e imparcial inerente à atividade típica, a pacificação social através da
solução judicial soberana com seu aspecto de verdade social e política construída e constituída por
parte de um órgão legítimo e desinteressado quanto ao resultado, independentemente de qual
partido ou espectro no campo político aproveite o veredicto.
Tendo sido submetida a questão ao Judiciário, como foi possível descurar de tamanho
absurdo? Como foi possível o prosseguimento de procedimento tão viciado, onde o resultado era
pressuposto ao inquérito, onde o início do inquérito se deu com manifesto desvio de finalidade,
enfim, onde vícios formais e materiais pululavam?
A explicação direta contida na obra clássica do prof. Hely Lopes Meirelles configura
patentemente as características que se atribuem ao desempenho das atividades dos agentes públicos
do tipo político, verificando suas diferenças mas, sobretudo, sublinhando suas muitas semelhanças.
Nesse sentido, não é de somenos importância verificar que a desqualificação por um lado dos
agentes públicos do tipo políticos eleitos por um lado enquanto por outro se sublinha as
características positivas dos agentes públicos do tipo político não-eleitos está-se por fomentar o
desprezo nos eleitores com respeito à sua própria função de participante nesse processo que se pode
chamar poliárquico onde cada um exerce uma parcela proporcional ao seu voto dentro de um
universo decisório muito mais amplo e que se vai concentricamente restringindo à medida em que
se vai restringindo o círculo da representatividade que se elege, mas que de toda maneira está
intrinsecamente conectado ao exercício livre e consciente, mesmo que sofrendo das inúmeras
deformidades de julgamento e mesmo confecção dos critérios porque escolhe tal ou qual candidato,
pelo eleitor. Está-se por outro lado instaurando não apenas a desconfiança por um lado e instalando
a atribuição a um corpo de agentes políticos que funciona como uma burocracia diferenciada pelos
poderes que lhe são atribuídos e pelas garantias que de modo geral desfrutam. No entanto, e
sobretudo, para o caso presente é necessário abordar o grau do tecnicismo e proteção à tecnocracia
que são o objetivo de campanha de valorização em longo prazo onde os agentes públicos do tipo
político “técnicos” – ou seja, os que não exercem seus cargos oriundos do processo político ou
indicados por egressos deste – são os “puros” por não estarem maculados com o “vício” da política.
O presente artigo adota, para si, a visão defendida por Chaïm Perelman com respeito ao
direito na medida em que o compreende exatamente como sendo uma “técnica que visa a proteger
simultaneamente vários valores, alguns incompatíveis” (PERELMAN 1996). Esse conceito
perelmaniano pressupõe o respeito a um conjunto de pressupostos que são normativos e que
compõem per si um sistema que pode ou não ser compreendido como retro ou auto alimentado mas
que sobretudo está galgado em suas estruturas que lhe são próprias mas que, retornando ao exemplo
de Pierre Bourdieu, pode sofrer um maior ou menor grau de influências externas dependendo de sua
capacidade de “refração”, considerando-se a refração como a capacidade do agente que representa o
desempenho específico da função pelo respectivo poder em sofrer o estímulo externo (a pressão
exercida pelas mídias sociais eletrônicas por exemplo, ou mesmo as ameaças absolutamente
cotidianas sofridos pelos mais diversos agentes públicos, desde os agentes comunitários de saúde
que são intimidados nas comunidades no Rio de Janeiro aos ministros do STF que recebem ameaças
por telefone ou e-mail ou via familiares) assim como do próprio campo científico em absorver,
processar dentro do que se lhe poderia retroalimentar sem o tornar absolutamente desconexo com
seu princípio conformador e aí adaptar para que exista uma manutenção de uma determinada
sistemática pré-existente sem que houvesse ruptura.
Tal foi precisamente o que não aconteceu na hecatombe para a democracia brasileira
ocorrida com o impeachment de Dilma Rousseff. Sua mera substituição por seu vice-presidente
num processo conduzido por Eduardo Cunha dispensa, num universo de leitores compreendidos no
início da década de 20 do século XXI, maiores digressões. Nesse contexto está inserida a
judicialização do procedimento de impeachment e o papel de protetor por parte do STF da
Constituição e da ordem constitucional dela advinda
4. CONCLUSÃO
O presente artigo não pretende ser “a” página definitiva no ainda vivíssimo debate quanto
ao impeachment/ golpe de Estado sofrido por Dilma Vana Rousseff em 2016. Busca, sim,
assumindo seu posicionamento manifestamente contrário ao impedimento por inúmeros
fundamentos, estabelecer de maneira analítica alguns deles utilizando por base dois textos que,
direta e indiretamente, estão relacionados a aspectos do movimento político-jurídico-social que
terminou por consolidar o afastamento da mandatária.
Noutra roda, é importante verificar que, se por um lado os políticos partidários foram
manifestamente bombardeados por sucessivos escândalos, principalmente a partir da Ação Penal nº
470 do STF, o escândalo apelidado também pela imprensa “petrolão” foi igualmente importante ao
desenhar um quadro extremamente desqualificante perante a opinião pública do comportamento dos
agentes públicos do tipo políticos oriundos dos processos eleitorais. Aliada à campanha midiática de
longa duração solapando a legitimidade dessa categoria em virtude da vinculação da prática da
política partidária e da gestão da coisa pública à venalidade, a onipresença dos ideais burgueses
relativos ao mérito jungiram à guisa de heróis outra categoria de agentes públicos do tipo político:
os oriundos dos concursos públicos. Protegidos por suas respectivas corporações, e contando com o
beneplácito da grande mídia e de inúmeros outros interesses políticos e econômicos (como, por
exemplo, os grupos privados de ensino jurídico – tanto o voltado para concursos públicos para
bacharéis em direito quanto carreiras não jurídicas), esses agentes políticos não-eleitos não foram
devidamente analisados em seus comportamentos, preferências, ideias e posturas de modo idêntico
aos políticos eleitos. Pior ainda, uma vez que compõem elites corporativas incrustradas no Estado e
desempenhando funções estatais típicas de status constitucional, estando muitas vezes submetidos
unicamente aos seus pares (como os magistrados), foi-se possível conferir a esses novos
representantes dos desejos de moralidade administrativa condições sobre-humanas e equipará-los a
super-heróis, não se questionando os normais abusos e desvios e, pior ainda, admitindo-se de
maneira acrítica que desempenhassem suas funções públicas mesmo quando patentemente
desviantes dos critérios básicos para que esse mesmo desempenho não enfraqueça suas instituições
– é primordial verificar que a existência, por exemplo, de um juiz parcial, se por um lado agrada a
determinado campo político num certo momento, a certeza de sua existência desqualifica a todo o
sistema jurisdicional perante todos os campos quando não é exercido o respectivo freio por sua
categoria dos possíveis desatinos causados por tão grave deformidade.
A subversão assim se operou, e foi exatamente por isso extremamente grave à subversão
operada pelo Parlamento foi justaposta a subversão operada pelo STF, o guardião da constituição
conforme lhe obriga a Constituição Federal. E a função de “guarda” diz respeito, principalmente, à
proteção da normatização ou da ordem constitucional preconizada. Omitindo-se a evitar uma ofensa
gravíssima à democracia ao descurar o dever de proteção, operou por seu turno uma outra violação
à ordem constitucional, dessa vez por absoluta omissão, conforme lição de Hans Kelsen (VINX
2015):
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Disponível em
https://monoskop.org/images/e/e4/Latour_Bruno_We_Have_Never_Been_Modern.pdf. Consultado
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OLIVEIRA JÚNIOR, Paulo Eduardo de. PROCESSO PENAL E MÍDIA: a cultura do medo e a
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PAIVA, Raquel. PREFÁCIO. In: Mídia, Poder e Contrapoder. Dênis de Moraes, Ignácio Ramonet e
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Disponível em: https://www.fetrhotel.com.br/wp-content/uploads/2018/11/Jesse%CC%81-Souza-
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