Você está na página 1de 21

A SUBVERSÃO ATRAVÉS DA HERMENÊUTICA: desenvolvimento sobre uma abordagem

de aspectos político/ jurídicos do impeachment de Dilma Rousseff

PPGSD – TURMA 2020.1


PROFS.: DRES. JOAQUIM LEONEL DE REZENDE ALVIM E WILSON MADEIRA FILHO
MESTRANDO: LUIZ SÉRGIO CORDEIRO DA ROCHA

RESUMO
O presente artigo foi elaborado como trabalho de encerramento de curso na matéria Teoria do
Direito na turma 2020.1 do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito. Pretende,
tomando por base dois artigos dos professores que ministram o curso, Profs. Dres. Joaquim Leonel
de Rezende Alvim – “TEORIA CRÍTICA, CONSTITUCIONALISMO DEMOCRÁTICO E
ASPECTOS POLÍTICO/JURÍDICOS DO PROCESSO DE IMPEACHMENT: um diálogo com a
trajetória acadêmica-institucional de José Ribas Vieira”– e Wilson Madeira Filho – “O
HERMENEUTA E O DEMIURGO: presença da alquimia no histórico da interpretação jurídica” –
demonstrar como, em um complexo e histórico contexto com a participação do Parlamento e da
Imprensa, foi possível que, através do exercício da hermenêutica, ocorresse a subversão resultante
no impeachment da presidente Dilma Rousseff em 2016.
PALAVRAS CHAVE: Hermenêutica. Subversão. Impeachment.

ABSTRACT
This article will be submitted as the closing paper on Law’s Theory classes 2020.1 at the Programa
de Pós-Graduação em Sociologia e Direito (Post-Graduation Programo on Sociology and Law). It’s
purposes are to show through using two essays of the teaching Professors, Prof. D. Joaquim Leonel
de Rezende Alvim’s “TEORIA CRÍTICA, CONSTITUCIONALISMO DEMOCRÁTICO E
ASPECTOS POLÍTICO/JURÍDICOS DO PROCESSO DE IMPEACHMENT: um diálogo com a
trajetória acadêmica-institucional de José Ribas Vieira” and Prof. D. Wilson Madeira Filho “O
HERMENEUTA E O DEMIURGO: presença da alquimia no histórico da interpretação jurídica”,
how was it possible through hermeneutics to subvert the stablished order and the resulting
impeachment of President Dilma Rousseff back in 2016.
KEYWORDS: Hermeneutics. Subversion. Impeachment.
INTRODUÇÃO.
O presente artigo busca defender uma ideia singela: através do exercício da hermenêutica,
com todas as suas peculiaridades e características internas e subjetivas em sua prática (FILHO
2002) foi possível a subversão ampla no conceito de inquérito (ALVIM 2019) que resultou no
impeachment da Presidente Dilma Rousseff em 2016.
O trabalho está dividido em três capítulos interdependentes entre si. O primeiro e o
segundo consistem, respectivamente, em resenhas de excertos dos artigos que serviram de base ao
presente trabalho e o terceiro capítulo consiste no desenvolvimento da tese esposada, servindo a
conclusão como fecho do trabalho.
Não é desprezível ressaltar que, dada a natureza do presente – um caso específico para
obtenção de um “diagnóstico” – trata-se da construção de uma conclusão através da utilização de
vários fatores ou “indícios”, usando como “sintomas” primordiais os temas exsurgidos dos textos
dos mestres que ministraram o curso porque, parafraseando a Prof. Dra. Gislene Neder, “não é
possível que o aluno/ orientando não leia, converse ou construa conhecimento durante um curso de
pós-graduação com seus professores, e não há como construir conhecimento sem ler seus textos e
conhecer seus pensamentos”.
Com respeito ao artigo “TEORIA CRÍTICA, CONSTITUCIONALISMO
DEMOCRÁTICO E ASPECTOS POLÍTICO/JURÍDICOS DO PROCESSO DE IMPEACHMENT:
um diálogo com a trajetória acadêmica-institucional de José Ribas Vieira”, do Prof. Dr. Joaquim
Leonel de Rezende Alvim, o ponto fundamental abordado e desenvolvido pelo presente trabalho é o
tema da subversão do inquérito enquanto um procedimento que busca, a partir de uma dúvida,
subsídios que poderão (ou não) concluir pela existência de um ilícito. A subversão verificada no
artigo em comento se deu no momento em que o inquérito não se deu para encontrar a solução – a
solução já estava dada antes mesmo do início do procedimento, tornando-o um simulacro vazio –
mas para a realização de uma vontade política, transformando a busca pela “verdade” numa busca
pela “vontade”. Como resultado, a substituição da vontade dos eleitores pela vontade política do
parlamento.
Relativamente ao artigo “O HERMENEUTA E O DEMIURGO: presença da alquimia no
histórico da interpretação jurídica”, texto complexo do Prof. Dr. Wilson Madeira Filho, toma-se por
base o ponto fundamental nele verificado: a fina ironia com respeito ao cientificismo moderno e
modernizante, nascido da “Revolução Científica” e que trouxe novas “verdades” através de uma
nova categoria hierática: os “cientistas”, verdadeiros substitutos dos padres no imaginário ocidental
pós-Iluminação, onde a Verdade deixou de ser uma característica havida por força mágica – seja ela
religiosa ou mística – para uma nova Verdade baseada no método científico.
O desenvolvimento propriamente dito conecta entre os temas: o exercício da hermenêutica
por aqueles a quem a Constituição incumbiu para que protegessem a ordem constitucional e
democrática em si, num determinado momento histórico – in casu, o Brasil de 2016 – permitiu que
fosse realizada verdadeira metamorfose paradigmática. A construção da subversão através da
hermenêutica é, portanto, uma construção social e cuja abordagem o presente realiza principalmente
através de outros textos e livros porque, como é consabido, os livros muitas vezes falam de livros
assim como os textos falam muitas vezes de outros textos. Assim como também é possível perceber
muito do autor do texto ao se ler um texto. Dentro desse quadro, desenvolveu-se a construção da
teoria que se pretende defender pelo presente no que diz respeito à metamorfose acima citada.
Essa metamorfose aconteceu perante o público em verdadeiro espetáculo propiciado não
apenas pela grande imprensa (jornais e revistas impressas, rádio e televisão) como também pela
nova mídia utilizando-se de um discurso permanente com respeito à existência de “malfeitos”
pressupostos e que não precisariam ser demonstrados cabalmente por ser o julgamento por
parlamentares um juízo “político”.
A tudo isso soma-se a suposta necessidade de extirpação da corrupção que seria ínsita a um
determinado partido político e seus aliados, e que haveriam transformado o Brasil numa
“cleptocracia” ou “corruptocracia”, fato esse também corroborado pela veiculação por todas as
formas de comunicação social de massa possíveis de denúncias feitas por absolutamente todo tipo
de gente com respeito à corrupção que se haveria entranhado na administração da coisa pública.
Apresentados todos esses fundamentos, acrescentados a fatores políticos de instabilidade
(FALCÃO, ARGUELHES e PEREIRA 2017), apresentamos a conclusão: o impeachment de Dilma
Vana Rousseff constituiu um atentado à democracia instaurada na ordem constitucional de 1988,
apresentando diariamente para a população um simulacro (CHAUÍ 2008) de procedimento
inquisitorial onde o resultado já era, desde o começo, conhecido e esperado e onde os “expertos”
portadores do conhecimento científico e, portanto, “neutros”, avalizaram e permitiram através do
seu trabalho de transformar ouro em chumbo – o inverso do propósito alquímico – a cassação do
mandato de uma Presidente da República Federativa do Brasil regularmente eleita e a
materialização de um a alternância de poder fora das regras estabelecidas: um golpe de Estado.

1. A SUBVERSÃO CONCEITUAL EXTRAÍDA DO ENSAIO DE JOAQUIM LEONEL DE


REZENDE ALVIM.

O “ovo da serpente” para o presente artigo foi um ensaio da pena do Prof. Dr. Joaquim
Leonel de Rezende Alvim à moda Festschrifft endereçado ao Prof. Dr. José Ribas Vieira.

O mote primordial da homenagem foi o trabalho de José Ribas Vieira dialogando com a
Teoria Crítica do Direito – da qual o próprio autor é outro expoente.
Partindo do desenvolvimento dos trabalhos da Teoria Crítica do Direito no Brasil trabalho
de pioneiros como José Ribas Vieira, passa o autor a apontar agudamente o vício de origem em todo
o processo de impeachment de Dilma Rousseff: a existência de uma certeza prévia ao inquérito
quanto à prática de um crime de responsabilidade e pior, a condução de todo o procedimento como
o caminho de um condenado à forca ao cadafalso conduzido pelo verdugo inexoravelmente.

É importante salientar que não necessariamente o procedimento do impeachment termina


com o afastamento, constituindo em verdade o inquérito em si onde será apurada ou não a eventual
prática dos crimes de responsabilidade. Nesse sentido, apenas a conclusão positiva – a comprovação
através do processo de que foram cometidas as tais irregularidades ou crimes de responsabilidade –
haverá fundamento político-jurídico para que seja afastado o investigado.

Importante também ressaltar que os ditos “crimes de responsabilidade”, de acordo com o


entendimento consolidado e mais recentemente adotado pelo Supremo Tribunal Federal (Pet. 3.240
AgR, relatoria do Min. Luís Roberto Barroso) não constituem “crimes” de natureza penal, mas
infrações de caráter político-administrativo submissas em que também podem incidir
responsabilidades de natureza civil.

Explica que o modelo subvertido é o clássico inquisitorial – onde, partindo-se da


pressuposição de existência de um determinado fato, investiga-se quanto à sua autoria através de
métodos de construção de uma verdade, verdade essa que precisa ser construída para que não seja
meramente a manifestação de uma vontade de punir – ou, no impeachment, cassar o mandato – por
parte daquele que realiza os atos do inquérito, seja ele parlamentar, policial, ou quem quer que
esteja o realizando.

Na exposição mais aguda, aduz:

“Nesses moldes, o procedimento de impeachment seria um mecanismo


sujeito a um controle substantivo por parte do Supremo Tribunal Federal.
Nesse sentido, o impeachment da Presidenta Dilma Roussef sinaliza não que
“as instituições estão funcionando” como se o funcionamento tivesse um
sentido em si, mas que elas estão funcionando de um jeito, de uma maneira,
de um modo que pode ser entendido como uma forma de subversão do
modelo político-jurídico do inquérito como descoberta da verdade no
mundo Ocidental”.

A subversão havida é por demais simplória: havendo os parlamentares decidido por cassar
o mandato popular outorgado à Presidente, houveram por bem, sob a batuta do Dep. Fed. Eduardo
Cunha (à época PMDB-RJ), realizar um “inquérito” televisionado diariamente onde todos os
argumentos enderençavam-se ao impedimento da mandatária, independentemente de haver ou não a
constatação de qualquer ato que consubstanciasse a previsão do art. 85 da Constituição Federal e
dentro das hipóteses preconizadas nos artigos 4º a 12 da lei 1079/1950.

Todo o procedimento foi amplamente mediatizado seja por emissoras estatais (TV Câmara,
TV Senado e TV Justiça), seja por emissoras privadas (todas as emissoras de TV aberta e os canais
televisivos por assinatura), assim como por emissoras de rádios (públicos e privados), portais
noticiosos de internet (UOL, BOL, G1, Terra, etc), mídias eletrônicas (Youtube, Vlogs, Blogs, etc)
e redes sociais eletrônicas.
A intensa publicização do processo, no entanto, não lhe serviu peia – ao contrário,
verificou-se intensa polarização entre a população mas uma incrível superficialidade nos círculos
com poder efetivamente decisório (parlamento e STF).

Conforme será explicado mais adiante no texto, existe um sistema de proteções ao suposto
juízo político a ser exercido pelos parlamentares, estando o sistema judicial inserido como aquele
que, imparcialmente, evitará o atropelamento das formas e o controle de legalidade substancial para
evitar subversões.

Precisamente nesse caso, o sistema não produziu o que dele se esperaria: o controle pelo
Judiciário da constitucionalidade de todo o processo de impeachment exatamente para que fosse
viável a apreciação não-técnica ou “política” dos fatos apurado.

A conclusão é aguda: o processo parlamentar não configurou verdadeiro inquérito, mas


uma manifestação de vontade por parte do Parlamento de cassar o voto popular e subverter
absolutamente da democracia liberal representativa, constituindo assim um verdadeiro golpe de
Estado com a decisiva participação do Poder Judiciário – tema do próximo capítulo.

2. A HERMENÊUTICA: TÃO “CIENTÍFICA” QUANTO A ALQUIMIA.

O segundo texto que serve como inspiração para o presente é complexo e, mais uma vez
para efeito de registro histórico, chamado informalmente por seu Autor de “Demiurgo” – “O
HERMENEUTA E O DEMIURGO: presença da alquimia no histórico da interpretação jurídica”.

Outro registro histórico é importante e foi importante para capturar o espírito por trás da
pena: o artigo foi escrito no dia de um fato significativo na história recente, o “ataque às Torres
Gêmeas”, o World Trade Center, evento com impacto importante no desenvolvimento geopolítico
posterior e cujas consequências até a data da elaboração do presente ainda se fazem sentir.

Dentro da miríade de informações polimáticas, citações e ilustrações trazidas à baila, salta


aos olhos a questão: por que um autor, no início do século XXI, dentro de um contexto mundial tão
significativo, desenvolveria verdadeira tese concisa em pouco mais de trinta páginas acoplando o
alquimista do medievo ao hermeneuta contemporâneo?

O hermeneuta pode ser entendido como aquele que extrai de um texto/ contexto seu
significado oculto ou que não se está oferecendo ao intérprete prima facie. Especificamente no que
tange ao hermeneuta jurídico, os hermeneutas podem ser aqueles que desempenham as mais
diferentes funções nos mais diferentes órgãos. Especificamente no caso presente, o hermeneuta
jurídico cujo comportamento no desempenho de seu mister se pretende abordar é especificamente o
magistrado, aquele que exerce a função no Direito brasileiro de jus dicere, ou “dizer o direito”,
conforme será mais pormenorizadamente analisado a seguir.

Retomando a questão é importante ao perceber a ironia ínsita ao texto. Afinal, o


hermeneuta considerado no texto é um profissional jurídico do início do séc. XXI (estávamos então
em setembro de 2001) devidamente graduado numa Faculdade de Direito (também ela
obrigatoriamente registrada conforme as necessidades estruturais para a validade do título
acadêmico), inserido na ideologia cientificista predominante desde a revolução científica que trouxe
a definitiva divisão entre a natureza, o homem e a divindade, rotulando “científico” a tudo aquilo
que pudesse ser “repetido em laboratório” – ou reproduzido desde que seguidas as diretrizes
estabelecidas por quem inicialmente realizou o experimento devidamente testemunhado por pessoas
idôneas e interessadas apenas em expor a verdade ou, como se pretendem, “falar pela natureza”.

A densidade do texto funciona, parafraseando Umberto Eco, como uma névoa “tão densa
que se poderia cortar com uma faca” (ECO 2011), onde é preciso atentar para, ao final, exsurgir
ácida crítica à hipocrisia extrema trazida pela revolução científica realizada onde supostamente
foram estabelecidos critérios objetivos e completamente desinteressados ideologicamente mas, em
verdade, aceitam-se quaisquer proposições quanto às condições superpostas (mesmo que
contraditórias) desde que prevaleça a lógica circular criada por ela mesma (LATOUR 1993).

O alquimista, por seu turno, pertence à concepção pré-moderna, pré-cientificista e


fragmentária, onde a compartimentação e a adoção do método científico cuja magnum opus é um
ensaio sobre a vida escrito por René Descartes ainda não constituía o paradigma da “verdade”
socialmente aceita e onde a percepção de “ciência” não preconizava ainda separação entre
medicina, astronomia, biologia, geometria, química, física e outras, motivo pelo qual floresciam
polímatas como Paracelso (ou Philippus Aureolus Teophrastus Bombastus von Hohenheim).

O hermeneuta é, portanto, alguém que exerce uma atividade intelectual, que se pretende
científica e que, em se tratando de magistrados, deve ser “imparcial”. Essa qualidade, contudo,
precisa ser construída com todo o arcabouço pessoal anterior, absolutamente isenta de pressões
externas e, naturalmente, de se trabalhar sempre com a hipótese de um desejo interno manifesto de
imparcialidade, o que também não pode ser absolutamente garantido em virtude de poder acontecer
de o intérprete, voluntariamente, adotar uma postura pendendo para um ou outro argumento. A
complexidade não se dá então apenas pelo exercício “científico” da atividade, onde diferentes
“correntes de pensamento”, também chamadas no “ramo” jurídico “doutrinas”, podem ou não ser
privilegiadas com sua encampação pelo Poder Judiciário, o Hermeneuta maiúsculo cujo exercício
de hermenêutica produzirá efeitos materiais efetivos criando a norma jurídica aplicável ao caso
concreto, seja ele qual for e direcionado a tantos interessados quanto os que se beneficiarem da
decisão – mesmo que sejam “todos” como as decisões judiciais emanadas pelo Supremo Tribunal
Federal em matéria constitucional erga omnes, mas sobretudo em virtude das risco sempre
permanente de que ceda o juiz à força do “outro lado” e aja parcialmente, fazendo jus o bruxo do
Cosme Velho Machado de Assis n’A Igreja do Diabo: “é a eterna contradição humana”.

3. A CONSTRUÇÃO DA SUBVERSÃO.

A subversão defendida no presente trabalho não se deu apenas graças ao trabalho dos
incumbidos da função da hermenêutica – ao contrário, a subversão trazida por aqueles a quem
incumbe precipuamente essa função coroaram uma narrativa e toda uma construção social de longa
data, permitindo que se houvesse não apenas um procedimento legislativo – o impeachment – como
o afastamento mesmo de uma presidente da República eleita com vícios absolutamente subversores
da ordem constitucional implantada em 1988. Apenas a construção social da legitimidade de todo o
processo, em seu sentido mais amplo, pode permitir que sucessivas subversões sucedessem e até
mesmo o resultado do sufrágio havido em 2014 fosse desconsiderado para a substituição da
mandatária. Também não é desprezível verificar que à subversão dos parlamentares e dos
hermeneutas listados no título do presente trabalho aconteceu a subversão do dever primordial da
imprensa: informar à sociedade de maneira minimamente objetiva, sem manifestos partidarismos
ou, em os havendo, manifestar-se de maneira a deixar clara e patente a opção por essa ou aquela
vertente política que permitissem ao público formular seu juízo com a devida clareza, não sendo
manifestamente ludibriado por uma suposta e não verificada imparcialidade ou objetividade na
formulação das pautas e transmissão das informações de maneira a submeter o público a percepções
enviesadas ou mesmo completamente falsas com respeito a fatos e direitos absolutamente
indispensáveis dentro da vida política e social.

3.1 A subversão na construção da verdade pelo inquérito.

Inobstante o impeachment no Brasil estar inserido no quadro geopolítico percebido por


Wanderley Guilherme dos Santos na obra citada, e uma vez que o presente artigo trabalha com a
ideia de uma “subversão” no processo de impeachment de Dilma Rousseff, pretende-se agora
especificar quais os pontos “subvertidos”.

A primeira subversão considerada no presente trabalho é a noção de “inquérito” como a


construção de uma “verdade” baseada numa sequencia de atos desempenhados com intuito de
efetivamente ser construída ou emersa. Retornando ao contexto analisado no artigo do prof. Leonel
Alvim, a base fundamental do grande argumento trazido por Michel Foucault diz respeito à
constituição da verdade. O inquérito teria origem em práticas que seriam, atualmente, consideradas
parte da atuação cotidiana do Estado moderno – políticas, administrativas e judiciais (FOUCAULT
2002). Essas práticas estavam, por seu turno, relacionadas com construção de uma verdade, uma
verdade socialmente construída e, sobretudo, um fator importante de sustentação de um discurso de
superioridade da construção científica – obtida através do respeito ao “método” objetivo que
absorveu o nome da obra cartesiana citada – em relação aos demais saberes.

Essa verdade construída está relacionada, noutro aspecto, ao exercício do poder, conforme
se pode extrair no trecho a seguir extraído do Governo dos Vivos (FOUCAULT 2009):

“(...) nenhum poder existe por si! Nenhum poder, qualquer que seja, é
evidente ou inevitável! Qualquer poder, consequentemente, não merece ser
aceito no jogo! Não existe legitimidade intrínseca do poder!”

É necessária à construção da verdade pelo inquérito uma atitude mental prévia por parte de
quem o desempenha seus atos: o inquisidor deve controlar seus ímpetos e não manifestamente
impingir sua versão aos eventos inquiridos, transformando o procedimento mera encenação ou
simulacro. Eventual ocorrência dessa deformidade obrigatoriamente configura subversão onde a
busca pela verdade se transforma num simulacro de busca pela verdade, verdadeiro engodo
praticado pelo inquisidor para fingir não estar fazendo o que quer, como quer, independentemente
de quaisquer outros fatores e/ ou circunstâncias externas a si.

A substituição da verdade honestamente construída pela verdade desonestamente


impingida é o âmago da subversão verificada no artigo do Prof. Leonel, apenas manifestado de
maneira mais amena. O simulacro de inquérito não teve o intuito de buscar a verdade, mas fingir
que buscava. Naturalmente não se trata de demonizar a atividade dos parlamentares vez que a
construção social da verdade não dependia apenas de seus atos, vez que a transmissão pelas mídias
lhes foi extremamente favorável.

3.2 A Subversão da confiança no sistema representativo.

O segundo aspecto a ser rapidamente abordado diz respeito à subversão do inquérito


praticada pelos legisladores: a substituição da vontade dos eleitores pela vontade de seus
representantes regularmente eleitos que, num julgamento “político”, houveram por bem afastar a
presidente recentemente reeleita sob o pálio de argumentos juridicamente frágeis.

Dada a exiguidade do presente não serão abordados de maneira aprofundada os


fundamentos apresentados nos pedidos de impeachment, mas o intenso debate (TEIXEIRA,
DWECK e CHERNAVSKY 2018) (SALES 2016) técnico-acadêmico quanto à possibilidade de
instauração do processo de cassação do mandato político com base nos fundamentos apresentados –
a chamada “contabilidade criativa” e as denominadas “pedaladas fiscais” – servem de per si para
comprovar a o ambiente nebuloso por onde se constituiriam os fundamentos para a decisão tomada
pelo parlamento de afastar a presidente. O comportamento manifesto do Presidente da Câmara,
Eduardo Cunha, conduzindo as chamadas “pautas-bomba”, sob os aplausos cotidianos do cabal
midiático que será abordado a seguir, e que teria mesmo atingido o paroxismo de aceitar os pedidos
de impeachment como forma de pressionar a Presidência da República a se curvar aos seus desejos
e de seus aliados – fato esse amplamente noticiado de maneira absolutamente superficial e
perfunctória e sem que fosse esclarecida a população com respeito ao desrespeito manifesto à
previsão do art. 2º da Constituição Federal que determina serem os Poderes da República
“independentes e harmônicos” entre si.

“Bombardear” o governo federal com a mais variada gama de requisições financeiras e


técnicas assim como restrições orçamentárias, desonerações e toda uma lista de atos e fatos com
intuito de inviabilizar o exercício político pela Presidência da República necessariamente
preconizava descompasso entre a finalidade exposta nos fundamentos para o desempenho dos atos
em si – ou seja, as “justificativas” presentes em todos os atos legislativos e/ ou administrativos
tomados pela Presidência da Câmara ou do Senado – e que constituiriam os fundamentos “de
direito” dos atos para com seus respectivos fundamentos de fato. Esse descompasso
necessariamente implicaria vício e desvio de finalidade por parte não apenas de todos os atos
desempenhados pelo presidente da Câmara e do Congresso como também à nulidade de todas as
suas respectivas consequências, entre eles o processo de impeachment em si. É ainda mais
importante acoplar aos vícios intrínsecos aos atos desempenhados pelo legislativo, principalmente
pelo presidente da Câmara, outro dado significativo: o PMDB (à época, atualmente MDB)
compunha a base eleitoral do governo federal eleito, sendo inclusive o partido ao qual era filiado o
vice-presidente da República.

A traição à confiança é desestruturante e subversiva no que tange ao sistema político


representativo vez que abriga em seu bojo profunda insegurança institucional e política.
Institucional porque os representantes eleitos o são exatamente para reproduzir a vontade do
eleitorado que o elegeu, não lhes sendo legítimo substituir a vontade dos eleitores (“estelionato
eleitoral”) sejam em quais circunstâncias for sob pena de deslegitimação de toda a democracia. No
caso presente, a subversão e a traição tornam-se ainda mais patentes em virtude das consequências
do afastamento da presidente: uma reorientação ampla realizada no exercício do governo por seu
substituto, seu companheiro de chapa e vice-presidente que assumiu a Presidência após seu
afastamento cumprindo a previsão legal e constitucional.

Ainda que se aponha aos presentes argumentos o fundamento apresentado pela grande
maioria da chamada Mainstream Media, qual seja, o “desejo popular” na substituição da presidente
eleita por seus “malfeitos” e pela “crise econômica”, é primordial ressaltar o compromisso havido
pelos legisladores com o próprio sistema político-jurídico-legislativo ao qual estão submetidos por
conta do risco de inserção num círculo vicioso de insegurança permanente, onde bastará que se
avolumem os movimentos políticos, sejam eles de que natureza for – manifestações populares,
manifestações virtuais, reportagens veiculadas apresentando supostas irregularidades, enfim, a
miríade de fatos possíveis dentro da vida em sociedade – para que sejam os parlamentares
outorgados com a possibilidade de um exercício de “voto de desconfiança” parlamentar no meio do
mandato do presidente (ou governador de estado, ou prefeito municipal), fato esse absolutamente
inexistente dentro do ordenamento jurídico nacional e que obrigatoriamente configura como
substituição forçada, injusta, subversiva da ordem constitucional e, naturalmente, um golpe.

A gravidade da questão também não foi abordada perante a opinião pública de maneira
adequada, terminando a questão a ser abordada e enfocada eminentemente com respeito a questões
técnicas incompreensíveis para a população em geral no que tange aos aspectos contábeis e
econômico-financeiros das supostas irregularidades, descurando-se mesmo de verificar que mesmo
que houvesse a indicação pelo Tribunal de Contas da União com respeito à rejeição das contas da
presidente eleita no ano fiscal de 2014, não estaria vinculado o Congresso ao parecer do TCU
possuindo ampla liberdade para a aprovação das contas caso assim o verificasse profícuo. Verifica-
se, então, outro aspecto da subversão: o “encantamento” da opinião pública e a consequente
“cegueira” com respeito a aspectos estruturais fundamentais do que se discutia no processo de
impeachment no Congresso nacional.

3.3 O não-informar: a subversão no papel de informação conferido à mídia.

Há verdadeira miríade de trabalhos publicados sobre o papel da mídia no impeachment da


presidente Dilma Rousseff e não se pretende aqui abordar com maior profundidade o tema, mas é
fundamental perceber que o discurso da corrupção permanente foi o que permitiu a construção do
clima social de inação mesmo quando a população se via confrontada com absurdos. Afinal, a lei e
a moral se pretendiam imbricadas e a busca dos inúmeros processos judiciais – e o impeachment foi
englobado no bojo, mesmo com sua condição sui generis de “juízo político” – era a retomada da
moralidade funcionando como salvação da sociedade brasileira.

A intensa midiatização dos processos judiciais não é recente. Conforme já percebido pela
academia (OLIVEIRA JR 2012), a mídia transmite o procedimento penal para a grande massa por
motivos de comunicação e divertimento mórbido similar ao verificado nos autos de fé promovido
pela Inquisição. Com o advento dos meios de comunicação de massa, é possível cada vez mais
atingir a um número cada vez maior de consumidores de noticias, independentemente do espectro
político a que esteja filiado o ser humano de carne e osso que busca informação.
Não obstante o fato ressaltado recentemente (PAIVA 2013) com respeito aos debates sobre
o jornalismo em si e a maneira mais adequada para o seu exercício, também existe substancial
material acadêmico com respeito ao papel da assim chamada grande imprensa dentro da conjuntura
política que teve como um dos seus efeitos materiais a derrubada, segundo crê o presente trabalho
de maneira absolutamente irregular, de uma presidente da República e a cassação dos votos a ela
atribuídos.

O viés representado pelo uníssono em torno de uma suposta necessidade da remoção do


governo regularmente eleito se havia incorporado ao discurso desde longa data – em verdade, desde
o início da cobertura pela imprensa da Ação Penal (originária no STF) nº 470, não à toa apelidada
“mensalão” pela própria grande mídia (GUAZINA 2011), em 2005. A midiatização do processo
levou, paralelamente, a um processo de destruição da imagem pública da política/ políticos
(partidários), constituindo-os perante o grande público como traidores dos seus respectivos
sufragantes e indignos do exercício do múnus republicano.

Uma vez que a maioria absoluta da população não acessa diretamente aos autos dos
processos – legislativos como o impeachment como judiciais como a ADPF nº 378 suso
mencionada – as informações obtidas com respeito aos seus fundamentos de fato e de direito se
deram por intermédio de terceiros noticiantes. Independentemente da existência de sites
especializados voltados para o público técnico-científico ao tema afeito, a imensa maioria da
população absorveu através do filtro praticado pelas pautas editoriais (GUAZINA, PRIOR e
ARAUJO 2017). Aliado à superficialidade e ausência de debate público com espaço minimamente
proporcional às opiniões e fundamentações contrastantes (MARTINS 2016), a deslegitimação
cotidiana não apenas da presidente em exercício como do partido a que era filiada fazia parte
também de verdadeira “cruzada moralista”, identificando as mazelas inúmeras da sociedade
nacional como advindas da falência generalizada da República em virtude da “cleptocracia”
instalada no poder central juntamente com o Partido dos Trabalhadores, cujos “tentáculos”
estender-se-iam às empresas estatais e mesmo aos estados da Federação.

Absurdos como o comportamento manifesto do então presidente da Câmara dos


Deputados, Eduardo Cunha (MDB – RJ) e que não compunha um funcionamento independente e
ordenado do Parlamento endereçada ao cumprimento típico de suas funções habituais, mas uma
manifestação de poder onde se adotavam “pautas bomba” e criavam desonerações com intuito de
inviabilizar manifestamente o exercício da presidência da República pela então presidente Dilma
Rousseff, configurando em verdade uma oposição intestina no próprio Estado e praticada por outro
poder, eram noticiadas com naturalidade dentro do clima generalizado de anormalidades e
teratologias cotidianas sem as devidas ressalvas vez que se tratava da retomada da moralidade e a
limpeza dos “cidadãos do mal” – os petistas e seus correligionários, fossem eles quais fossem –
pelos “cidadãos de bem”, justificando quaisquer medidas, por mais absurdas, nesse sentido.

Fator pitoresco na conjuntura que se analisa é exatamente a busca da moralidade através do


bombardeio do governo Dilma Rousseff por Eduardo Cunha, o que só não se tornou motivo de
profundo constrangimento institucional e social para o Legislativo e o Judiciário graças à cruzada
pela moralidade capitaneada pela mídia nesse momento histórico. Essa moralidade buscada está
preconizada no art. 37 caput da Constituição Federal e, ao ser repetida cotidianamente para a
população descontextualizada do que a doutrina jurídica chama moralidade administrativa.
A cruzada pela moralidade foi o mote de todo o movimento que se denominava “contra a
corrupção” – apesar de liderado in casu por Eduardo Cunha e, em se configurando o impedimento,
sendo o provável substituto o futuro presidente da República Michel Temer. Funcionou como
importante vetor da indignação popular que enxergava na suposta roubalheira praticada “pelo PT”
como a responsável pela gravíssima crise social brasileira, descurando de sua origem histórica e,
principalmente, por estar à época “em voga” graças ao esforço coordenado envidado por um
número substancial de veículos de comunicação social – jornais, revistas, emissoras de TV e rádio,
blogs e demais mídias eletrônicas – com a consequente cobrança de investimentos em hospitais,
escolas, infraestrutura e na sociedade como um todo. Com o discurso cotidiano vinculando o partido
a qual era filiada a presidente da República à corrupção e, consequentemente, à imoralidade,
construiu-se o ambiente social propício para a indiferença quanto ao cumprimento ou não dos
requisitos essenciais de um procedimento investigatório. Afinal, a miríade informativa lhes dava
conta diuturnamente e incessantemente e por todos os meios de comunicação disponíveis na
atualidade dos desmandos oriundos da venalidade e argentarismo dos quadros político-partidários
vinculados ao PT e seus aliados.

Essa miríade informativa ou verdadeiro cabal semiótico a que estavam sujeitas vastíssimas
parcelas da população acabou por construir uma “verdade” ou um consenso social: os agentes
públicos do tipo políticos, que exercem mandatos quatrienais, e que são eleitos pelo povo,
constituem uma categoria profissional absolutamente indigna da confiança por parte da própria
população que os elegeu em virtude de uma ampla gama de escândalos das mais variadas naturezas,
todos comprovados materialmente de maneira cabal e absoluta através dos mais variados veículos
de imprensa – jornais impressos e digitais/ eletrônicos, emissoras de TV aberta e por assinatura,
sites e blogs informativos, emissoras de rádio convencional ou pela internet: enfim, absolutamente
todos os meios de comunicação de massa desconstruíram a confiança da população na classe
política assim considerada a acima descrita.

Foi possível então a construção de um discurso por parte dos parlamentares que viabilizou
a deturpação absoluta dos fundamentos porque se deveria realizar um procedimento de apuração de
irregularidades. Instaurou-se um consenso com respeito à inevitabilidade do afastamento da
mandatária independentemente de se verificar ou não a prática dos atos previstos no art. 85 da
Constituição Federal em virtude de uma suposta ingovernabilidade. Também foi possível a
judicialização do tema, como será abordado a seguir, sem que os fundamentos apresentados por
ambas as partes fossem apresentados de maneira ao menos aproximadamente equilibrada no que diz
respeito à apresentação para o público, sendo possível a absoluta fuga do cerne do tema por parte do
Judiciário sem que se manifestasse a pressão social compatível graças ao amortecimento da
consciência social trazida pelo bombardeio semiótico trazido cotidianamente pelos meios de
comunicação de maior abrangência da massa informativa.

Fator impressionante de coincidência história – não obstante os abordados nos trabalhos de


comunicação já citados onde foi identificado o caráter golpista e reacionário da Mainstream Media
brasileira ao averiguar seu papel nos golpes de 1964 e 2016 – é a vinculação da moralidade à lei por
parte dos violentadores da democracia nos eventos que levaram ao impeachment. A ideia de
vinculação da moralidade à lei não necessariamente conduz a um aperfeiçoamento da democracia
ou mesmo está de qualquer modo vinculado a uma ideia democrática de Estado em si. Otto
Kirchheimer percebeu (KIRCHHEIMER 1941) essa busca durante o governo do Partido Nacional-
Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP), conforme ressai no texto a seguir (tradução livre):
“Um dos principais argumentos sustentados pelos nacional-socialistas diz
respeito à haver conseguido unificar as ordens moral e legal, fato esse que é
encarado por eles como uma das principais falhas do período
socialdemocrata. Assim, ambas são apenas uma e a mesma.”

A monstruosidade do pensamento está presente na continuação do texto logo a seguir, onde


é desnudada a circunstância de fato onde é inserida essa ordem “legal-moral” supostamente
instaurada pelos nacional-socialistas:

“A ordem legal [e consequentemente moral] nacional-socialista substituiu a


igualdade pela homogeneidade racial, com o que abandona as concepções
de seres humanos possuidores de capacidades semelhantes e do mesmo
modo sujeitos de direitos e deveres.”

A hipocrisia dominante no papel da mídia ficou patente na diferença do tratamento


endereçado ao processo de impeachment de Dilma Rousseff e Michel Temer (RODRIGUES 2018),
onde o primeiro – e procedente – terminou com o afastamento da mandatária, mesmo que
apresentados os pedidos com argumentos mais frágeis que os do segundo – que permaneceu no
poder e conseguiu terminar seu mandato, e tornou invisível para uma substancial parcela da
população o último aspecto da subversão que será abordado nesse trabalho, e que lhe dá título: a
subversão da ordem constitucional por parte dos hermeneutas, assim entendidos como aqueles a
quem a própria Constituição Federal incumbe defende-la.

3.4 A subversão do dever constitucionalmente incumbido ao Judiciário.

Como expõe o título do presente, coube aos hermeneutas importante papel a desempenhar
no processo de impeachment de Dilma Rousseff, evento verdadeiramente crucial para a democracia.
A importância do desafio pode ser medida pelos 54.501.118 votos recebidos no segundo turno pela
então candidata à reeleição no pleito de 2014 – e que terminaram cassados no “julgamento político”
pelas duas casas do parlamento. Esse papel a ser desempenhado pelo Judiciário (via STF) quando
da instauração do processo de impeachment tem como principal objetivo a proteção da Constituição
respeitando a previsão do artigo 102 caput da própria Lex Legum. Dada sua necessária inércia, foi-
lhe oportunizado intervir quando do ajuizamento da Medida Cautelar na Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental de nº 378 sob relatoria do Min. Edson Fachin, em mais
uma ocasião em que ocorreu o que se convencionou chamar “judicialização da política” – não
descurando das profundas controvérsias com respeito à sua proficuidade. A manifestação pelo
Judiciário goza de substancial prestígio junto à população em geral por conta de dois fatores
importantes: a ausência de compromisso eleitoral por parte dos juízes – em quaisquer instâncias ou
tribunais – e o caráter técnico e imparcial inerente à atividade típica, a pacificação social através da
solução judicial soberana com seu aspecto de verdade social e política construída e constituída por
parte de um órgão legítimo e desinteressado quanto ao resultado, independentemente de qual
partido ou espectro no campo político aproveite o veredicto.

O ajuizamento da ADPF nº 378/ MC DF compunha um dos casos onde o STF foi


procurado com intuito de realizar o que se pode denominar a arbitragem de interesses em conflito
(TAYLOR e DAROS 2008). Mesmo em não se tratando no presente de analisar o mérito da
decisão, uma coisa é certa: a subversão, mesmo que patente, e ainda que judicializado o
procedimento, pôde prosseguir. Certo é que a decisão do feito limitou-se a ponderar com respeito à
continuidade dos trabalhos procedimentais legislativos pautando-se pelos argumentos presentes no
voto do Ministro Luís Roberto Barroso no sentido de verificar as condições de procedibilidade na
Câmara e no Senado sem, no entanto, abordar quaisquer aspectos com respeito à materialidade ou
não dos fatos à mandatária imputados, assim como evitando de toda ordem participar do processo
parametrizando com quaisquer posturas e/ ou condutas que poderiam direcionar ou possibilitar o
trabalho investigativo e limitando o Judiciário a estabelecer a ordem para apresentação da defesa ou
averiguar quanto ao cumprimento ou não de normas regimentais para o recebimento da denúncia e
posterior procedimento do julgamento político conforme explicou a decisão.

Essa prestidigitação foi permitida graças à complexidade dos fatos apresentados e à


miríade dos argumentos (o inteiro teor do Acórdão possui 403 páginas) que funcionam como a
fumaça do mágico desviando os olhos da plateia dos atos que interessam no desempenho de seu
mister. No caso presente, o mister do Judiciário, representado nesse caso pelo STF em seu papel
preconizado no artigo 102 caput da Constituição Federal (BRASIL 1988), seria adotar postura
conservadora no que tange à busca da proteção da ordem constitucional vigente e, sobretudo, do
sufrágio adotado pela população quando devidamente perquirida. Submetida a questão ao escrutínio
judicial, toda a matéria se lhe devolve, competindo ao julgador analisar não apenas os parâmetros
formais de desenvolvimento do processo como também a análise dos fundamentos porque acontecia
o procedimento.

Não escapou ao público técnico-jurídico (FALCÃO 2017) a conduta absolutamente


incompatível com o Estado Democrático de Direito – e absolutamente criminosa – do Presidente da
Câmara à época aquando da condução do processo de impeachment. O prof. Joaquim Falcão, no
artigo supra, lista série de questionamentos quanto à possibilidade de existir, minimamente, desvio
de finalidade no contexto do desempenho das atividades por Eduardo Cunha (à época PMDB-RJ)
em artigo não por acaso intitulado “MEDO LEVOU EDUARDO CUNHA A INICIAR
IMPEACHMENT CONTRA DILMA ROUSSEFF”:

“Como prerrogativas públicas, não podem ser apropriadas por interesses


privados. É como se um policial usasse a viatura pública, que tem finalidade
de garantir a segurança da coletividade, para ir à praia com a família. Ou o
delegado deixasse de registrar uma queixa porque é contra um parente seu.
Em suma: o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, estaria usando da
prerrogativa pública para a proteção privada do cidadão Eduardo Cunha.
São papéis com direitos e deveres distintos. Não se confundem. Não é por
menos que vários juristas consideram, e já começam a surgir, junto ao
Supremo, tentativas de caracterizar esta ilegalidade. Será prevaricação? Diz
o Código Penal, no artigo 319: “Retardar ou deixar de praticar,
indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei,
para satisfazer interesse ou sentimento pessoal”. Será desvio de finalidade?
Diz o artigo 2º, e, da Lei de Ação Popular: “o desvio de finalidade se
verifica quando o agente pratica o ato visando a fim diverso daquele
previsto, explícita ou implicitamente, na regra de competência”. Será coação
no curso do processo? Diz o artigo 344 do Código Penal: “Usar de violência
ou grave ameaça, com o fim de favorecer interesse próprio ou alheio, contra
autoridade, parte, ou qualquer outra pessoa que funciona ou é chamada a
intervir em processo judicial, policial ou administrativo, ou em juízo
arbitral”. Será ofensa ao princípio constitucional da separação de poderes?
Tentar impedir que os poderes funcionem livremente?”

Tendo sido submetida a questão ao Judiciário, como foi possível descurar de tamanho
absurdo? Como foi possível o prosseguimento de procedimento tão viciado, onde o resultado era
pressuposto ao inquérito, onde o início do inquérito se deu com manifesto desvio de finalidade,
enfim, onde vícios formais e materiais pululavam?

Essa a subversão havida através do trabalho do hermeneuta. Ao resolver, no bojo da


Medida Cautelar para Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 378/ DF, com
respeito a inúmeras questões de ordem procedimental – por exemplo, momento de recepção e
leitura da defesa pela investigada, efeitos da recepção da denúncia pelo presidente da Câmara – o
Supremo Tribunal Federal optou por fazer leitura restritiva do desempenho de suas funções no
sentido de não buscar não influenciar materialmente no que se debatia no processo em si. Optou por
respeitar o “juízo político” exercido através do procedimento de impeachment pelo Congresso
(Câmara e Senado), abstendo-se de tomar medidas “proativas” com intuito de averiguar a
regularidade no processamento do impeachment. O proceder conservador por parte do Judiciário,
especificamente nesse caso, acabou funcionando não como um fiador da separação adequada dos
Poderes da República conforme preconiza o art. 2º da CF, mas como um ingrediente a mais que
permitiu a continuidade da cassação do mandato da presidente eleita independentemente de se
procedimentar de maneira coerente com decisões anteriores pelo próprio Supremo. Participando
como avalista da subversão, tornou-se também subversor da ordem constitucional que lhe incumbia
proteger e seus membros – ou os que concordaram com a manutenção do teatro – traíram o
juramento de cumprir “bem e fielmente” para com os “deveres do cargo de Ministro do Supremo
Tribunal Federal”.

Conforme já exaustivamente comentado, a desqualificação social da classe denominada


política – ou os agentes públicos do tipo políticos que exerciam (e exercem) cargos eletivos ou por
indicação política – foi feita, por seu turno, com a sua respectiva substituição perante a opinião
pública por um novo “representante” que não era maculado pela política por ser, em tese, apolítico:
os agentes públicos do tipo políticos que não eram (nem são) eleitos, competindo à análise presente
unicamente abordar os magistrados. Estes vêm sendo, diferentemente dos demais agentes políticos,
tratados de maneira positiva pela grande mídia (KURZ 2011), o que por seu turno é reforçado é
pelo status profissional e pessoal disfrutado pelos juízes de direito mormente após o fortalecimento
da carreira trazido pela Constituição Federal de 1988. Os membros do Judiciário, conquanto façam
parte do exercício dos Poderes da República descritos no art. 2º da CF, não são por seu turno
manifestamente políticos em virtude da natureza da função que desempenham – devem ser
imparciais e agir sempre de acordo com a busca da “verdade” construída pelo jus dicere.

A abordagem do tema é por demais importante em virtude do discurso classista e tecnicista


por trás da desqualificação de um determinado tipo de agente público do tipo político (o eleito) com
a enlevação de outro agente público do tipo político (o não eleito). Essa estranha deformação salta
clara quando exposta frontalmente como no presente, mas normalmente é camuflada de maneira
extremamente sutil, disfarçada pelo discurso tecnocrático. Principalmente quando se consideram os
requisitos para o exercício da magistratura: devem ser bacharéis em direito, com experiência
profissional comprovada, submetem-se a concurso de provas e títulos concorridos e, sobretudo,
exercem diretamente o único Poder que pode ser provocado a decidir específica e
determinadamente de forma terminativa contra o próprio Estado (e contra si mesmo) de maneira
definitiva, aproveitando até mesmo a terceiros em situação semelhante, através do exercício
exatamente da hermenêutica por parte de um corpo que o compõe de técnicos.

A despeito de todas as reservas já efetuadas com respeito à pureza do sistema


hermenêutico como explicado de maneira simplificada e direta – ou straightforward mais
apropriadamente – a mera possibilidade de desqualificação/ diferenciação entre os agentes públicos
já configura, em si, outra subversão. Os agentes públicos (MEIRELLES 2014):

“São todas as pessoas físicas incumbidas, definitiva ou transitoriamente, do


exercício de alguma função estatal. Os agentes normalmente desempenham
funções de órgãos, distribuídas entre os cargos de que são titulares, mas
excepcionalmente podem exercer funções sem cargo.”

Dentre o gênero (agentes públicos) existem as espécies (políticos), seguindo ainda a


mesma obra (MEIRELLES 2014):

São os componentes do Governo nos seus primeiros escalões, investidos em


cargos, funções, mandatos ou comissões, por nomeação, eleição, designação
ou delegação para o exercício de atribuições constitucionais. Esses agentes
atuam com pela liberdade funcional, desempenhando suas atribuições com
prerrogativas e responsabilidade próprias, estabelecidas na Constituição e
em leis especiais. Têm normas específicas para sua escolha, investidura,
conduta e processo por crimes funcionais e de responsabilidade, que lhes
são privativos. Os agentes políticos exercem funções governamentais,
judiciais e quase-judiciais, elaborando as normas legais, conduzindo os
negócios públicos, decidindo e atuando com independência nos assuntos de
sua competência. São as autoridades públicas supremas do Governo e da
Administração na área de sua atuação, pois não estão hierarquizadas,
sujeitando-se apenas aos seus graus e limites constitucionais e legais de
jurisdição. (...) Nesta categoria encontram-se os Chefes do Executivo
(Presidente da República, Governadores e Prefeitos) e seus auxiliares
imediatos (Ministros e Secretários de Estado e de Município); os membros
das Corporações Legislativas (Senadores, Deputados e Vereadores); os
membros do Poder Judiciário (Magistrados em geral); os membros do
Ministério Público (Procuradores da República e da Justiça, Promotores e
Curadores Públicos); os membros dos Tribunais de Contas (Ministros e
Conselheiros); os representantes diplomáticos e demais autoridades que
atuem com independência funcional no desempenho de suas funções
governamentais, judiciais ou quase-judiciais, estranhas ao quadro do serviço
público).

A explicação direta contida na obra clássica do prof. Hely Lopes Meirelles configura
patentemente as características que se atribuem ao desempenho das atividades dos agentes públicos
do tipo político, verificando suas diferenças mas, sobretudo, sublinhando suas muitas semelhanças.
Nesse sentido, não é de somenos importância verificar que a desqualificação por um lado dos
agentes públicos do tipo políticos eleitos por um lado enquanto por outro se sublinha as
características positivas dos agentes públicos do tipo político não-eleitos está-se por fomentar o
desprezo nos eleitores com respeito à sua própria função de participante nesse processo que se pode
chamar poliárquico onde cada um exerce uma parcela proporcional ao seu voto dentro de um
universo decisório muito mais amplo e que se vai concentricamente restringindo à medida em que
se vai restringindo o círculo da representatividade que se elege, mas que de toda maneira está
intrinsecamente conectado ao exercício livre e consciente, mesmo que sofrendo das inúmeras
deformidades de julgamento e mesmo confecção dos critérios porque escolhe tal ou qual candidato,
pelo eleitor. Está-se por outro lado instaurando não apenas a desconfiança por um lado e instalando
a atribuição a um corpo de agentes políticos que funciona como uma burocracia diferenciada pelos
poderes que lhe são atribuídos e pelas garantias que de modo geral desfrutam. No entanto, e
sobretudo, para o caso presente é necessário abordar o grau do tecnicismo e proteção à tecnocracia
que são o objetivo de campanha de valorização em longo prazo onde os agentes públicos do tipo
político “técnicos” – ou seja, os que não exercem seus cargos oriundos do processo político ou
indicados por egressos deste – são os “puros” por não estarem maculados com o “vício” da política.

Como toda e qualquer abordagem simplista, a mera desqualificação de um determinado


tipo de agente político – como aliás de toda uma classe – acaba por tornar, por outro lado,
absolutamente aceitas socialmente deformidades comportamentais tais como analisadas
anteriormente quando da abordagem dos fundamentos porque o então presidente da Câmara dos
Deputados federal recebeu a denúncia pelo impeachment de Dilma Rousseff. Por outro lado,
permite que verdadeiras fugas ao âmago e mesmo ao desempenho de atos fundamentais para o
efetivo exercício das funções por parte de magistrados não sejam sequer percebidas pela população,
estando completamente inebriada e cegada pelo discurso diuturno que se por um lado desqualifica
parlamentares – ao tornar o comportamento de Eduardo Cunha como padrão para os parlamentares
brasileiros – por outro fazia vistas grossas a comportamentos verdadeiramente estapafúrdios
cometidos por agentes públicos do tipo políticos que não serão abordados no presente e, pior ainda,
justificavam comportamentos criminosos e desestabilizadores da ordem pública, como
absolutamente necessários para a obtenção do resultado final: a cruzada moralizante que não
poderia ter outro desfecho que a expulsão da presidente eleita e filiada ao Partido dos Trabalhadores
do poder e a sua substituição por seu vice-presidente, Michel Temer.

O presente artigo adota, para si, a visão defendida por Chaïm Perelman com respeito ao
direito na medida em que o compreende exatamente como sendo uma “técnica que visa a proteger
simultaneamente vários valores, alguns incompatíveis” (PERELMAN 1996). Esse conceito
perelmaniano pressupõe o respeito a um conjunto de pressupostos que são normativos e que
compõem per si um sistema que pode ou não ser compreendido como retro ou auto alimentado mas
que sobretudo está galgado em suas estruturas que lhe são próprias mas que, retornando ao exemplo
de Pierre Bourdieu, pode sofrer um maior ou menor grau de influências externas dependendo de sua
capacidade de “refração”, considerando-se a refração como a capacidade do agente que representa o
desempenho específico da função pelo respectivo poder em sofrer o estímulo externo (a pressão
exercida pelas mídias sociais eletrônicas por exemplo, ou mesmo as ameaças absolutamente
cotidianas sofridos pelos mais diversos agentes públicos, desde os agentes comunitários de saúde
que são intimidados nas comunidades no Rio de Janeiro aos ministros do STF que recebem ameaças
por telefone ou e-mail ou via familiares) assim como do próprio campo científico em absorver,
processar dentro do que se lhe poderia retroalimentar sem o tornar absolutamente desconexo com
seu princípio conformador e aí adaptar para que exista uma manutenção de uma determinada
sistemática pré-existente sem que houvesse ruptura.

Tal foi precisamente o que não aconteceu na hecatombe para a democracia brasileira
ocorrida com o impeachment de Dilma Rousseff. Sua mera substituição por seu vice-presidente
num processo conduzido por Eduardo Cunha dispensa, num universo de leitores compreendidos no
início da década de 20 do século XXI, maiores digressões. Nesse contexto está inserida a
judicialização do procedimento de impeachment e o papel de protetor por parte do STF da
Constituição e da ordem constitucional dela advinda

4. CONCLUSÃO

O presente artigo não pretende ser “a” página definitiva no ainda vivíssimo debate quanto
ao impeachment/ golpe de Estado sofrido por Dilma Vana Rousseff em 2016. Busca, sim,
assumindo seu posicionamento manifestamente contrário ao impedimento por inúmeros
fundamentos, estabelecer de maneira analítica alguns deles utilizando por base dois textos que,
direta e indiretamente, estão relacionados a aspectos do movimento político-jurídico-social que
terminou por consolidar o afastamento da mandatária.

Conforme abordado, se por um lado o afastamento se deu inteiramente ao sabor do “juízo


político” exercido por deputados e senadores conforme a lei 1079/50 e seus respectivos regimentos
internos, é indubitável e decisivo o papel exercido pela grande imprensa em efetuar a legitimação
do movimento perante amplos setores da sociedade. Considerado o quadro extremamente complexo
que diz respeito aos juízos pessoais exercidos pelos eleitores/ pessoas verdadeiras que estão
existindo e convivendo e trabalhando e fazendo essa realidade em que vivem inseridas, e
consequentemente suas respectivas concordâncias/ discordâncias de fatos sobre cuja existência são
informados e outros sobre cuja existência são manifestamente feitos ignorantes, não é pouco
sublinhar a participação de amplos setores da grande mídia no golpe de Estado. As informações
repetidas e editadas ao gosto do consumidor e espalhadas nas mais diversas redes de programação
possibilitando penetrar em amplos setores da sociedade, em diferentes camadas de renda e
pedêuticas, acabam transformando-se em verdade – construída através de um discurso enviesado,
onde não se dá espaço à oitiva da outra parte nem se permite o exercício do contraditório.

A questão volta, então, ao debate anteriormente constituído sobre a verdade socialmente


construída e que, conforme visto, legitima o poder e seu exercício. Reitera-se a pergunta: como
pôde um processo de tal forma publicizado comportar tamanha subversão, assim como também se
questiona como foi possível que o STF descurasse do vício aquando da judicialização, sem que
houvesse gigantesco assombro por parte dos destinatários do exercício do poder, ou seja, os
administrados/ cidadãos, principalmente os eleitores da impedida presidente? O exercício da
proteção da constituição atribuída aos membros do Supremo Tribunal Federal e a acuidade técnica
conferida ao Judiciário em virtude de seu caráter não-político passou desapercebido da própria
imprensa que tão implacavelmente perseguia os malfeitos da mandatária deposta e seus
correligionários?
Através da tática distrativa exercida por todas as formas de meios de comunicação à
disposição da população brasileira. Um gigantesco grupo humano indefeso como salienta Jessé
Souza por diversas oportunidades é submetido a um verdadeiro bombardeio semiótico atacando
suas estruturas psíquicas e funcionando como a cortina de fumaça dos mágicos nos truques que se
utilizam da prestidigitação – a mão mais rápida que os olhos. Não seria possível ao STF normalizar
socialmente o que já era desde antemão tido e mantido como juridicamente absurdo por substancial
parcela do público especializado caso não houvesse acontecido uma construção discursiva prévia, e
mesmo durante os fatos preparatórios para a deposição irregular, por parte dos meios de
comunicação de massa onde houve, conforme visto, uma ampla desqualificação da classe e das
práticas políticas em si (PRUDENCIO, RIZZOTTO e SAMPAIO 2018). Também é absolutamente
fundamental observar o papel exercido pelo Parlamento conforme explicado acima, onde foi
transfigurado um inquérito onde se deveria buscar uma verdade numa verdadeira farsa conquanto o
suposto julgamento político foi, em verdade, o caminhar para a cassação do mandato da presidente
eleita. As reiteradas manifestações e a cobertura midiática mostraram desde sempre o objetivo
manifestado pela Presidência da Câmara federal em executar “pautas bomba” com intuito de
desestabilizar a administração central enquanto bloqueava as votações dos projetos de lei de
interesse da Presidência da República e, numa terceira frente, tocou com inaudita velocidade o
processo de impeachment, comprovando a vinculação do agir de um Poder da República ao outro –
ferindo de morte a previsão do art. 2º da Constituição Federal que preconiza exatamente o respeito e
a cooperação entre os Poderes, não lhes competindo fazer um o papel de “oposição” ao outro.

Noutra roda, é importante verificar que, se por um lado os políticos partidários foram
manifestamente bombardeados por sucessivos escândalos, principalmente a partir da Ação Penal nº
470 do STF, o escândalo apelidado também pela imprensa “petrolão” foi igualmente importante ao
desenhar um quadro extremamente desqualificante perante a opinião pública do comportamento dos
agentes públicos do tipo políticos oriundos dos processos eleitorais. Aliada à campanha midiática de
longa duração solapando a legitimidade dessa categoria em virtude da vinculação da prática da
política partidária e da gestão da coisa pública à venalidade, a onipresença dos ideais burgueses
relativos ao mérito jungiram à guisa de heróis outra categoria de agentes públicos do tipo político:
os oriundos dos concursos públicos. Protegidos por suas respectivas corporações, e contando com o
beneplácito da grande mídia e de inúmeros outros interesses políticos e econômicos (como, por
exemplo, os grupos privados de ensino jurídico – tanto o voltado para concursos públicos para
bacharéis em direito quanto carreiras não jurídicas), esses agentes políticos não-eleitos não foram
devidamente analisados em seus comportamentos, preferências, ideias e posturas de modo idêntico
aos políticos eleitos. Pior ainda, uma vez que compõem elites corporativas incrustradas no Estado e
desempenhando funções estatais típicas de status constitucional, estando muitas vezes submetidos
unicamente aos seus pares (como os magistrados), foi-se possível conferir a esses novos
representantes dos desejos de moralidade administrativa condições sobre-humanas e equipará-los a
super-heróis, não se questionando os normais abusos e desvios e, pior ainda, admitindo-se de
maneira acrítica que desempenhassem suas funções públicas mesmo quando patentemente
desviantes dos critérios básicos para que esse mesmo desempenho não enfraqueça suas instituições
– é primordial verificar que a existência, por exemplo, de um juiz parcial, se por um lado agrada a
determinado campo político num certo momento, a certeza de sua existência desqualifica a todo o
sistema jurisdicional perante todos os campos quando não é exercido o respectivo freio por sua
categoria dos possíveis desatinos causados por tão grave deformidade.
A subversão assim se operou, e foi exatamente por isso extremamente grave à subversão
operada pelo Parlamento foi justaposta a subversão operada pelo STF, o guardião da constituição
conforme lhe obriga a Constituição Federal. E a função de “guarda” diz respeito, principalmente, à
proteção da normatização ou da ordem constitucional preconizada. Omitindo-se a evitar uma ofensa
gravíssima à democracia ao descurar o dever de proteção, operou por seu turno uma outra violação
à ordem constitucional, dessa vez por absoluta omissão, conforme lição de Hans Kelsen (VINX
2015):

“’O Guardião da Constituição’”: no seu sentido original, a expressão se


refere ao órgão cuja função é proteger a constituição contra violações.
Assim, pode-se dizer, e normalmente se diz, que é o garantidor da
constituição. Uma vez que a constituição é uma ordenamento e um
complexo de normas com uma certa orientação, violá-la é criar um fato
contrário a essa normatização, seja por uma ação ou por uma omissão. Essa
última, no entanto, apenas ocorrerá se a omissão constituir no
descumprimento de um dever, e não quando um órgão qualquer não
conseguir implementar um direito qualquer que lhe foi constitucionalmente
outorgado. A constituição, como qualquer outra norma, apenas poderá ser
violada por aqueles que possuem por dever cumpri-la.”

A determinação pela Constituição Federal de 1988 ao Supremo Tribunal Federal de


protetor da ordem constitucional vigente é, como explica Kelsen, relativa não apenas ao respeito ou
violação aos seus termos enquanto atitude ofensiva direta, mas também – talvez principalmente –
com respeito à normatização assim compreendido como o espírito normativo que norteou o
processo. Nesse sentido, quando há manifesto vício ou manifestas dúvidas quanto à proficuidade,
acuidade ou mesmo motivação – conforme determina a teoria dos motivos determinantes – é da
natureza de sua atividade a vigilância para que possa exercer seu mister. Ao apreciar a demanda que
se lhe havia submetido, omitiu-se em seu exercício típico – a hermenêutica – promovendo assim
nova subversão e realizando a positivação, a legitimação social através da verdade construída
através do direito e com sua linguagem peculiar, de uma sucessão de subversões e que culminou
com a ofensa total à ordem constitucional havido com o golpe de Estado ou impeachment onde foi
afastada a mandatária eleita.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVIM, Joaquim Leonel de Rezende. TEORIA CRÍTICA, CONSTITUCIONALISMO


DEMOCRÁTICO E ASPECTOS POLÍTICO/JURÍDICOS DO PROCESSO DE IMPEACHMENT:
um diálogo com a trajetória acadêmica-institucional de José Ribas Vieira. In: CAMARGO,
Margarida Lacombe e EMERIQUE, Lilian Balmant (org.) DIREITOS HUMANOS,
DEMOCRACIA, E DESENHOS INSTITUCIONAIS EM TEMPO DE CRISE. Rio de Janeiro, Ed.
Freitas Bastos, 2019, p. 9-22.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Atualizada até a EC 107 de 02


de jul. 2020. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.
Consultado em: 09 jul. 2020.
BRASIL. Lei nº 1079 de 10 de abril de 1950. Define os crimes de responsabilidade e regula o
respectivo processo de julgamento. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l1079.htm. Consultado em 10 jul.2020

Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Arguição de Descumprimento de Princípio


Fundamental nº 378/ DF. Requerente: PC do B. Interessados: Presidente da República e outros.
Relator: Min. Edson Fachin. Redação do acórdão: Min. Roberto Barroso. Brasília 17 dez. 2015.

CHAUÍ, Marilena. SIMULACRO E PODER: uma análise da mídia. São Paulo, Perseu Abramo,
2008, 2ª ed.

DEBORD, Guy. A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO. Paráfrase em português do Brasil de Raílton


Souza Guedes. Editoração, tradução do prefácio e versão pra eBook: eBooksBrasil.com, 2003.
Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/debord/1967/11/sociedade.pdf. Consultado em:
08 jul. 2020.

ECO, Umberto. BAUDOLINO. Milão, Tascabili Bompiani, 2011, 11ª ed.

FALCÃO, Joaquim. MEDO LEVOU EDUARDO CUNHA A INICIAR IMPEACHMENT DE


DILMA ROUSSEFF. In: IMPEACHMENT DE DILMA ROUSSEFF: entre o Congresso e o
Supremo, , Belo Horizonte (MG), Letramento, 2017, pg. 37-38.

FALCÃO, Joaquim; ARGUELHES, Diego Werneck; PEREIRA, Thomaz. UM ANO DE


IMPEACHMENT: mais perguntas que respostas. In: IMPEACHMENT DE DILMA ROUSSEFF:
entre o Congresso e o Supremo, Belo Horizonte (MG), Letramento, 2017, pg. 11-15.

FILHO, Wilson Madeira. O HERMENEUTA E O DEMIURGO: presença da alquimia no histórico


da interpretação jurídica. In: BOUCAULT, Carlos Eduardo de Abreu; RODRIGUEZ e José
Rodrigo (org.) HERMENÈUTICA PLURAL. Possibilidades jusfilosóficas em contextos
imperfeitos. São Paulo, Martins Fontes, 2002, pg. 45-102.

FOUCAULT, Michel. DO GOVERNO DOS VIVOS. Curso no Collège de France, 1979/1980


(aulas de 09 a 30 de janeiro de 1980). Tradução: Nildo Avelino. Edição para EBook do Centro de
Cultura Social, São Paulo, 2003.

GUAZINA, Liziane Soares. JORNALISMO EM BUSCA DE CREDIBILIDADE: A cobertura


adversária do Jornal Nacional no Escândalo Mensalão. Tese acadêmica (doutorado em
comunicação), Universidade de Brasília, 2011. Consultado em: 09 jul. 2020.

GUAZINA, Liziane Soares; PRIOR, Helder; ARAÚJO, Bruno. ENQUADRAMENTOS DE UMA


CRISE: o impeachment de Dilma Rousseff em editoriais nacionais e internacionais. Trabalho
apresentado no VII Congresso da Associação Brasileira de Pesquisadores em Comunicação e
Política (VII COMPOLITICA), Porto Alegre, 10 a 12 de maio de 2017. Disponível em:
https://www.researchgate.net/publication/317819850_ENQUADRAMENTOS_DE_UMA_CRISE_
o_impeachment_de_Dilma_Rousseff_em_editoriais_nacionais_e_internacionais/link/
594c80fe458515e70348b36b/download. Consultado em: 09 de jul. 2020.

KELSEN, Hans. WHO OUGHT TO BE THE GUARDIAN OF THE CONSTITUTION? Kelsen’s


reply to Schmitt. In: VINX, Lars (org). THE GUARDIAN OF THE CONSTITUTION: Hans
Kelsen and Carl Schmitt on the limites of the constitutional law. Cambridge (RU), Cambridge
University Press, 2015. Disponível em: cambridge.org/9781107092686. Consultado em 11 jul.
2020.
KIRCHHEIMER, Otto. THE LEGAL ORDER OF NACIONAL SOCIALISM. In: Zeitschrift für
Sozialforschung. Max Horkheimer (org.). Deutscher Taschenbuch Verlag, Munique (RFA), 1970,
pg 456-475.

KURTZ, Maria Sayonara Spreckelsen da Cunha. A TOGA PELA MÍDIA: representações da


credibilidade do judiciário em notícias online. Tese acadêmica (doutorado em letras), Universidade
Federal de Santa Maria, Santa Maria (RS), 2011. Disponível em:
https://repositorio.ufsm.br/handle/1/3968. Consultado em: 09 jul. 2020.

LATOUR, Bruno. WE HAVE NEVER BEEN MODERN. Tradução para o inglês norte-americano
por Catherine Porter. Cambridge, Massachussetts (EUA), Harvard University Press, 1993.
Disponível em
https://monoskop.org/images/e/e4/Latour_Bruno_We_Have_Never_Been_Modern.pdf. Consultado
em 09 jul. 2020.

MARTINS, Helena. NA SINTONIA DO GOLPE: o papel da mídia na crise brasileira. Publicação


eletrônica 01 set. 2016. INTERVOZES. Disponível em:
http://www.intervozes.org.br/direitoacomunicacao/?p=29739. Consultado em 10 jul. 2020.

MEIRELLES, Hely Lopes. DIREITO ADMINISTRATIVO BRASILEIRO. Atualizado por Délcio


Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho, São Paulo, Malheiros, 2015, 40ª ed.,

OLIVEIRA JÚNIOR, Paulo Eduardo de. PROCESSO PENAL E MÍDIA: a cultura do medo e a
espetacularização dos juízos criminais. Dissertação de mestrado defendida perante a Universidade
do Rio dos Sinos, Unisinos. Programa de Pós-Graduação em Direito. São Leopoldo (RS) 2012.

PAIVA, Raquel. PREFÁCIO. In: Mídia, Poder e Contrapoder. Dênis de Moraes, Ignácio Ramonet e
Pascual Serrano (orgs.), São Paulo, Boitempo , EBook Boitempo Editoral 2013.

PERELMAN, Chaïm. ÉTICA E DIREITO. Tradução Maria Ermantina Galvão. São Paulo, Martins
Fontes, 1999, 2ª tir.

PRUDENCIO, Kelly; RIZZOTTO, Carla; SAMPAIO, Rafael Cardoso. A NORMALIZAÇÃO DO


GOLPE: o esvaziamento da política na cobertura jornalística do “impeachment” de Dilma Rousseff.
Contracampo. Niterói, v. 37, nº 02, 208, pg. 08-36.

RODRIGUES, Theófilo Machado. O PAPEL DA MÍDIA NOS PROCESSOS DE


IMPEACHMENT DE DILMA ROUSSEFF (2016) E MICHEL TEMER (2017). Contracampo,
Niterói, v. 37, nº. 02, pg. 37-58, 2018.

SANTOS, Wanderley Guilherme dos. A DEMOCRACIA IMPEDIDA: o Brasil do séc. XXI. Rio de
Janeiro, FGV Editora, 2017.

SOUZA, Jessé. A CLASSE MÉDIA NO ESPELHO. Rio de Janeiro, Estação Brasil, 2018.
Disponível em: https://www.fetrhotel.com.br/wp-content/uploads/2018/11/Jesse%CC%81-Souza-
A-Classe-Me%CC%81dia-no-Espelho.pdf. Consultado em 12 jul. 2020.

TAYLOR, Matthew M.; Da Ros, Luciano. OS PARTIDOS DENTRO E FORA DO PODER: A


Judicialização como Resultado Contingente da Estratégia Política. DADOS – Revista de Ciências
Sociais, Vol. 51, nº 4, Rio de Janeiro, 2008, pg. 825 – 864.

Você também pode gostar