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20 NO 220

Carta de Hans Kelsen ao ministro Gilmar


Mendes
13 de junho de 2022, 9h01 Imprimir Enviar

Por Georges Abboud

 Ouvir: Georges Abboud: Carta de Hans Kelsen ao mi

Pós-graduação
em…
Aprenda com Daniel Gole…

Desde sempre admirei as cartas fictícias que Elio Gaspari produziu entre
personagens ao longo de suas colunas: a linguagem epistolar permitia uma
dimensão criativa que ampliava o universo do autor, mas também do leitor que
era agraciado. Obviamente, não tenho o talento do célebre jornalista, contudo,
LEIA TAMBÉM
considerei que emular sua ideia seria uma forma interessante de homenagear 20 NO 220
ministro Gilmar Mendes. Gilmar Mendes: duas décadas na
trincheira da legalidade
Escrever uma homenagem ao ministro
Gilmar é, por um lado, fácil, porque, 20 NO 220
ao longo de duas décadas, deixou um Opinião: Gilmar Mendes, o professor
legado de textos e decisões brilhantes de direitos e garantias
que seriam excelentes materiais de
encômio, ocorre que, por outro lado, é 20 NO 220

árdua a tarefa porque o ministro Igor Mauler: Gilmar Mendes, 20 anos


recebe (merecidas) homenagens dos de um tributarista no STF
maiores nomes do direito nacional. 20 NO 220
Alberto Toron: Gilmar Mendes, um
Por essa razão, em comemoração aos
juiz criminal no STF
20 anos de judicatura do ministro e
professor Gilmar Ferreira Mendes no Supremo Tribunal Federal, optei por 20 NO 220
homenageá-lo na forma de um exercício imaginativo: uma carta enviada por Ives Gandra: Gilmar Mendes, 20 anos
ninguém menos que Hans Kelsen, o grande teórico e artífice da jurisdição de STF
constitucional que, nessa importante efeméride, reconhece no ministro Gilmar
Mendes um jurista comprometido com a normatividade da Constituição.
Justamente em virtude do formato escolhido, optamos por não fazer nenhuma
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referência bibliográfica nas notas de rodapé. A imaginação será a síntese
criativa da obra.
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Berkeley, 13 de junho de 2022.

Ao Excelentíssimo senhor ministro Gilmar


Ferreira Mendes, do Supremo Tribunal Federal da
República Federativa do Brasil

O espaço e tempo que nos une é longo, as crenças


que partilhamos os tornam breves. Em um de meus
escritos sobre a temática da Democracia — ao que
me consta, inclusive, são pouco conhecidos em
vosso país — anotei que apenas a fé das massas
no poder e missão divinos de um ditador podem
tornar uma ditadura imune ao perene anseio de
liberdade. A observação pareceu-me
especialmente adequada para figurar no início de uma carta destinada a
parabenizá-lo pela sua intransigente defesa da Constituição e das instituições
brasileiras.

A condição de um observador privilegiado pela distância geográfica e imune


às paixões políticas mais imediatas de um povo em convulsão social permite-
me, com razoável segurança, anotar a firmeza com que o senhor vem, de há
muito, denunciando a escalada autoritária que está sendo protagonizada por
parcelas do Poder Judiciário e do Ministério Público.

Como bem sabe, Vossa Excelência, também eu tive de enfrentar uma escalada
autoritária em meu tempo. Vi minha cidade ser tomada por exércitos que
funcionavam como que braços burocráticos de um poder fundado na
instrumentalização puramente política do Direito. A mim também me foi
mostrada a pior face humana.

No começo da década de 1930, quando os ventos da política já prediziam a


onda de horror que tomaria conta da Europa nos próximos anos, defendi (Wer
soll der Hüter der Verfassung sein?) que a guarda da Constituição de um
Estado deveria ser responsabilidade de um Tribunal Constitucional. Se,
conforme afirmei à época, “garantir a Constituição” significa a segurança de
que os limites jurídicos por ela estabelecidos ao poder não sejam
ultrapassados, pareceu-me incongruente atribuir sua guarda às instâncias que
possuem o maior estímulo político para vulnerá-la, ou seja, aos próprios
elaboradores dos atos de Estado, cujo controle da constitucionalidade é
necessário. Aqui empresto toda minha solidariedade à democracia
constitucional brasileira que, em pleno século 21, voltou a conviver com
rompantes que ameaçam não cumprir decisões da Suprema Corte.

Caro Ministro, sei bem como é ser fustigado por parcela da opinião pública
para fazer a defesa da coisa certa; minha trajetória acadêmica é marcada por
esse ponto: associam meu positivismo à ascensão do nazismo, nada obstante
esse tema estar sendo cada vez mais esclarecido.

Do mesmo modo, compreendo como fazer a defesa das prerrogativas da


advocacia e as garantias constitucionais do jurisdicionado podem
proporcionar distorções na opinião pública. Em minha pesquisa, notei que no
Brasil essa ação conforme à Constituição é pejorativamente chamada de
"bandidolatria". Escrevo para lhe dizer que o transcurso da história esclarece
esses pontos e nos dá razão, assim, desde já renovo minha estima por V. Exa.
ter feito uso da jurisdição para aquilo que ela foi inventada: proteger — de
forma contramajoritária — os direitos fundamentais.

Não ignoro que o modelo constitucional do vosso país assumiu uma feição
bastante diversa daquela que, em meu modelo, via no legislador a figura
natural de interlocução com a jurisdição constitucional; a Constituição, nos
dias de hoje, ao que me parece, assume menos a feição de uma
regulamentação da criação de normas jurídicas gerais e mais de promoção
dos valores substanciais caros à manutenção de uma democracia, com os
quais vejo o senhor comprometido de forma séria.

Curiosamente, nenhum de meus esforços teóricos, contra os defensores do


totalitarismo, ou práticos — estes levados a cabo em minha atuação como Juiz
da Corte Constitucional da Áustria e em auxílio na elaboração da
Constituição Austríaca de 1920 —, impediram que a produção acadêmica
brasileira majoritária atribuísse-me notas de cariz autoritário, supondo,
ainda, que minha Teoria Pura teria servido de suporte legitimador às
atrocidades do nazifascismo. Nada mais insultante.

Alegra-me, contudo, ver que parcelas da academia já empenham notáveis


esforços em desfazer essa mentira. Guardo comigo a certeza de que os vossos
esforços, nas condições de jurista e Ministro, são como que a pedra de toque
da mais recente e séria produção acadêmica brasileira em direito
constitucional.

Em verdade, tenho também a certeza de que a densidade de vossos votos no


Tribunal Constitucional brasileiro e sua produção acadêmica seriam
seriamente apreciados em qualquer democracia verdadeiramente digna dessa
qualificação, em qualquer lugar do mundo.

O modelo de controle de constitucionalidade brasileiro, fortemente


influenciado pelos meus estudos, mas, também, pela experiência norte-
americana, certamente não teria se desenvolvido e logrado tamanha
efetividade sem as vossas contribuições; vejo, no atual cenário da jurisdição
brasileira, a utilização ampla de técnicas decisórias sofisticadas que o senhor
importou da experiência estrangeira —notadamente alemã — e adaptou à
realidade de seu país: destacaria a modulação de efeitos, a técnica do apelo
ao legislador e o uso da proporcionalidade.

É provável que o indivíduo comum do povo — e, infelizmente, até mesmo o


estudioso do direito constitucional em seu país — ainda não tenha se dado
conta da importância de uma preservação do Direito. Se o Estado é uma
personificação da ordem jurídica nacional relativamente centralizada, dito de
outro modo, ele “é” sua ordem jurídica, proteger o Direito não pode significar
outra coisa que não a proteção do próprio Estado e, por conseguinte, da
própria Democracia.

Vejo uma mobilização imensa para distorcer e atribuir ao senhor


responsabilidades políticas inverídicas; a mim me parece, todavia, que poucos
atores da vida pública brasileira têm atuado de forma tão combativa na defesa
das instituições democráticas como o senhor.

Acredite quando digo a Vossa Excelência que esse sentimento de


“incompreensão” me é familiar. Por isso, reitero: apesar da distância,
seguimos breves.

Espero que Vossa Excelência continue a contribuir com a justiça


constitucional brasileira por muitos anos.

Com sincera admiração,

H. K.

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Georges Abboud é advogado sócio do Warde Advogados, consultor jurídico, livre-docente


pela PUC-SP e professor da PUC-SP e do IDP.

Revista Consultor Jurídico, 13 de junho de 2022, 9h01

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COMENTÁRIOS DE LEITORES
4 comentários

TEXTO INTELIGENTÍSSIMO DE UM PROFESSOR CULTO


Leandro Sartori Molino (Advogado Autônomo - Administrativa)
14 de junho de 2022, 16h50

Parabéns por mais um artigo de indiscutível inteligência e cultura, caríssimo


Professor! Aliás, de invulgar adequação para homenagear o dileto Professor Gilmar.
Uma das mais expressivas fortunas em meu processo educacional para as Ciências
Jurídicas foi a de participar do corpo discente do IDP-SP no programa de Mestrado
em "Direito, Justiça e Desenvolvimento" e de, assim, me submeter às riquíssimas
lições decorrentes dessa "dobradinha" entre o Ministro e o senhor, de invulnerável
escol!

HANS KELSEN
O ESCUDEIRO JURÍDICO (Cartorário)
14 de junho de 2022, 4h07

Hans Kelsen (Praga, 11 de outubro de 1881 — Berkeley, 19 de abril de 1973) foi um


jurista e filósofo austríaco (nasceu em Praga, que nesta época pertencia ao Império
Austro-Húngaro). No ocidente, especialmente nos países europeus e latino-
americanos, é considerado um dos mais importantes e influentes estudiosos do
Direito.
Por volta de 1940, a reputação de Kelsen já estava bem estabelecida nos Estados
Unidos, por sua defesa da democracia e pela Teoria Pura do Direito (Reine
Rechtslehre). A estatura acadêmica de Kelsen excedeu a teoria legal e alargou a
filosofia política e teoria social. Sua influência abrange os campos da Filosofia,
Direito, Sociologia, Teoria da Democracia e Relações Internacionais.
No final de sua carreira, enquanto na Universidade da Califórnia, em Berkeley,
Kelsen reescreveu a Teoria Pura do Direito em uma segunda versão. Ao longo de
sua carreira ativa, Kelsen também forneceu uma contribuição significativa para a
teoria do controle de constitucionalidade, a teoria hierárquica e dinâmica do direito
positivo, e da ciência do direito. Em filosofia política, ele era um defensor da teoria
da identidade do Estado de direito e um defensor do contraste explícito dos temas de
centralização e descentralização na teoria do governo. Kelsen também foi um
defensor da posição da separação dos conceitos de Estado e da sociedade em sua
relação com o estudo da ciência do direito.
A recepção e crítica do trabalho e as contribuições de Kelsen foram extensas, com
notáveis defensores e detratores. Suas contribuições para a teoria legal dos
julgamentos de Nuremberg foi apoiada e contestada por vários autores, incluindo
Dinstein, na Universidade Hebraica de Jerusalém
(https://pt.wikipedia.org/wiki/Hans_Kelsen).

MERECIDO APLAUSO AO TEXTO


Glaucio Manoel de Lima Barbosa (Advogado Assalariado - Empresarial)
13 de junho de 2022, 15h47

Excelente Texto de parabéns ao Professor e incentivador do direito a liberdade


democrática.

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