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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

Cristiano Ferreira de Barros

Michel de Certeau, a teologia e a história

Niterói
2021
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
INSTITUTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

Cristiano Ferreira de Barros

Michel de Certeau, a teologia e a história

Tese apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em História da Uni-
versidade Federal Fluminense como
requisito parcial para a obtenção do
título de Doutor em História.

Orientadora: Renata Torres Schittino

Niterói
2021
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
INSTITUTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

Cristiano Ferreira de Barros

Michel de Certeau, a teologia e a história

Tese aprovada em 29/06/2021

Banca examinadora:

_____________________________________________________
Profa. Dra. Renata Torres Schittino - UFF
(Orientadora)

_____________________________________________________
Profa. Dra. Francine Iegelski - UFF

_____________________________________________________
Profa. Dra. Larissa Moreira Viana - UFF

_____________________________________________________
Prof. Dr. Eduardo Gusmão de Quadros - PUC Goiás/UEG

_____________________________________________________
Prof. Dr. João Rodolfo Munhoz Ohara – UFRJ
Dedico este trabalho a todas e todos
que se esforçam para fazer de suas
ausências a possibilidade de uma
existência ética.
Agradecimentos

Um dos primeiros incentivadores deste trabalho foi o professor e amigo José Manuel
Vieira Soares de Resende, hoje Catedrático do Departamento de Sociologia da Universidade
de Évora. Fui agraciado com sua orientação à época em que ele ainda atuava na Universidade
Nova de Lisboa, entre 2015 e 2016. Desse primeiro momento da investigação, resultaram as
linhas gerais do projeto apresentado à seleção do curso de Doutorado da Universidade Federal
Fluminense para a turma de 2017.
A realização desta tese contou com a contribuição ímpar da professora Renata Torres
Schittino, orientadora do trabalho. Foram traços de sua atividade a leitura atenta, rigorosa e
crítica dos materiais entregues; a abertura ao diálogo com perspectivas por mim trazidas,
mesmo quando não concordantes com as suas; e a generosidade de quem responde com
encorajamento lúcido aos devaneios, inseguranças e angústias que fui apresentando ao longo
do curso. Os efeitos dessas suas qualidades pedagógicas certamente ultrapassam a tese
propriamente dita.
Agradeço à professora Virgínia Albuquerque de Castro Buarque e ao professor
Eduardo Gusmão de Quadros, membros da banca de qualificação do curso de Doutorado. A
acuidade e a relevância de seus comentários permitiram o aprofundamento, a correção e a
reorientação de certos pontos sensíveis encontrados nos primeiros resultados escritos da
pesquisa.
Estendo minha gratidão aos examinadores titulares e suplentes da banca de defesa de
Tese: Daniel Wanderson Ferreira, Eduardo Gusmão de Quadros, Francine Iegelski, João
Rodolfo Munhoz Ohara, Larissa Moreira Viana e Marcelo de Mello Rangel. Sinto-me
honrado por terem se disposto a participar da avaliação deste trabalho e a dar suas preciosas
sugestões à versão final do texto.
Muitas outras figuras beneficiaram ou facilitaram de algum modo a feitura da pesquisa
que deu origem a este escrito: as pesquisadoras e pesquisadores com os quais compartilhei
discussões em congressos acadêmicos; Giselle Martins Venancio (UFF), Robert Wegner
(Fiocruz/PUC-Rio) e Andréa Daher (UFRJ), professores com quem cursei disciplinas no
Doutorado; os colegas estudantes de Pós-Graduação com os quais frequentei esses cursos; as
bibliotecárias e bibliotecários das instituições onde pesquisei (Universidade Nova de Lisboa,
Universidade de Lisboa, Universidade de Coimbra, Bibliothèque Nationale de France, Centre
Sèvres, Université Catholique de Paris e École de Hautes Études en Sciences Sociales); a sra.
Barbara Baudry e o sr. François Dubois, arquivistas dos fundos históricos da Companhia de
Jesus na França.
Às estimadas companheiras e companheiros do corpo técnico/docente do PPG em
Educação e da Coordenação do Curso de Pedagogia da FEUFF: muito obrigado pelo
companheirismo quando precisei, para cumprir responsabilidades do curso de Doutorado,
reorganizar meus horários ou ausentar-me temporariamente de minhas atividades como
técnico em assuntos educacionais.
Esta tese não poderia ter sido realizada sem o apoio incondicional de meus pais,
Amélia e Geraldo. Eles não pouparam esforços para garantir que eu pudesse seguir estudando
durante os primeiros anos de minha vida acadêmica, mesmo quando as dificuldades típicas de
uma família de classe trabalhadora poderiam tê-los levado, justificadamente, a adotar outra
postura.
Agradeço também às minhas irmãs, sobrinhos, amigos e à minha segunda família, os
Esser e os dos Santos. Seu estímulo quando me senti vacilante e sua paciência em inúmeras
ocasiões nas quais não pude estar presente tornaram a empreitada doutoral menos difícil do
que ela poderia ter sido.
Não poderia deixar de mencionar o meu querido amigo Wendell dos Reis Veloso,
Doutor em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, de quem sinto muito
orgulho. Companheiro de vida intelectual desde os anos de graduação, cursamos juntos o
mestrado e compartilhamos muitas experiências acadêmicas. Mesmo que tenhamos seguido
caminhos diferentes no Doutorado, saiba que as páginas desta tese de um algum modo são
fruto de nossas longas conversas e debates.
Por fim, faço honras ao papel seminal ocupado por minha companheira, Anna Beatriz
Esser dos Santos, na realização desta empresa. Lembro com afeição de nossas longas horas
em bibliotecas portuguesas e francesas, nossas idas aos arquivos da Companhia de Jesus em
Vanves, nossos garimpos em alfarrabistas, bouquinistes e marchés aux puces. Quantas vezes
ela interrompeu suas próprias atividades para ajudar-me a fotografar papéis, artigos, livros!
Tendo ela mesma a experiência do Doutorado, pôde propor melhorias nos capítulos da tese e
fazer sugestões às traduções do francês. Acima de tudo, seu encorajamento, ternura, leveza e
alegria foram fontes de ânimo às minhas fragilidades ao longo desse percurso.
Todo trabalho de investigação, por mais solitário que seja, é em alguma medida
coletivo. As virtudes desta tese foram favorecidas pelas pessoas e circunstâncias que
participaram direta ou indiretamente da trajetória de sua produção. Porém, tendo buscado
negociar com tudo que me chegava em frentes diversas, assumo quaisquer limitações
existentes neste material como sendo de minha inteira responsabilidade.
Resumo

A presente tese trata da relação entre a teologia e a história nos escritos do jesuíta e erudito
francês Michel de Certeau (1925-1986). O objetivo do trabalho é averiguar as aproximações e
tensões entre esses dois domínios ao longo de sua trajetória intelectual, por meio de materiais
de diferentes tipos – documentos arquivísticos, artigos e livros. Para realizar a tarefa, foi
proposta uma abordagem ancorada na interação entre a teoria da história e a história
intelectual. Nesse protocolo de leitura e interpretação teórica e histórica dos textos, destaca-se
o diálogo com o historiador Dominick LaCapra, com o filósofo Jacques Derrida e com o
próprio Michel de Certeau. A partir dessa abordagem, algumas noções foram reempregadas
ou apresentadas para dar conta das diferentes formas adotadas pela relação entre teologia e
história, bem como de sua constituição tanto dependente quanto irredutível à realidade
histórica: teologia da história, escritura certeauniana, tradição dilatada, tradição fraturada,
gesto teológico, desinstitucionalização do crer, herança espiritual, pensabilidade histórica,
gestualidade teológica e luto historiográfico da teologia. Quando combinadas e diferenciadas
entre si, essas concepções e circunstâncias históricas permitem falar em um momento
teológico da história, uma transição e um momento histórico da teologia na trajetória
intelectual de Michel de Certeau. Tal mudança significou a passagem epistêmica de um a
priori teológico da história a um a priori histórico da teologia, acontecimento desconstrutivo
marcado por uma ética da hospitalidade.

Palavras-chave: Michel de Certeau; teologia; história; teoria da história; história intelectual.


Abstract

This doctoral dissertation deals with the relationship between theology and history in the
writings of the French Jesuit and erudite Michel de Certeau (1925-1986). The objective of this
work is to study the approximations and tensions between these two domains in the course of
their intellectual trajectory, through materials of different types – archival documents, articles
and books. To carry out the task, was proposed an approach based on the interaction between
the theory of history and intellectual history. In this protocol of reading and theoretical and
historical interpretation of the texts, stands out the dialogue with the historian Dominick
LaCapra, with the philosopher Jacques Derrida and with Michel de Certeau himself. From
this approach, some notions have been reemployed or presented to cope for the different
forms adopted by the relationship between theology and history, as well as its constitution
both dependent and irreducible to historical reality: theology of history, certeaunian writing,
extended tradition, fractured tradition, theological gesture, deinstitutionalization of believing,
spiritual heritage, historical thinkability, theological gesturality and historiographical
mourning of theology. When combined and differentiated from each other, these conceptions
and historical circumstances allows to speak of a theological moment of history, a transition
and a historical moment of theology in Michel de Certeau’s intellectual trajectory. Such a
change meant the epistemic passage from a theological a priori of history to an a historical a
priori of theology, a deconstructive event marked by an ethics of hospitality.

Keywords: Michel de Certeau; theology; history; theory of history; intellectual history.


Résumé

Cette thèse traite du rapport entre la théologie et l’histoire dans les écrits du jésuite et érudit
Michel de Certeau (1925-1986). L’objectif de ce travail est d’examiner les approximations et
les tensions entre ces deux domaines au cours de leur trajectoire intellectuelle, en utilisant des
matériaux de différents types – documents d'archives, articles et livres. En vue d’accomplir
cette tâche, a été proposée une approche fondée sur l’interaction entre la théorie de l’histoire
et l’histoire intellectuelle. Dans ce protocole de lecture et d’interprétation théorique et
historique des textes, se détache le dialogue avec l’historien Dominick LaCapra, avec le
philosophe Jacques Derrida et avec Michel de Certeau lui-même. A partir de cette approche,
quelques notions ont été réemployées ou présentées pour rendre compte des différentes
formes adoptées par le rapport entre théologie et histoire, ainsi que de sa constitution à la fois
dépendante et irréductible à la réalité historique: théologie de l'histoire, écriture certalienne,
tradition dilatée, tradition fracturée, geste théologique, désinstitutionnalisation du croire,
héritage spirituel, pensabilité historique, gestualité théologique et deuil historiographique de
la théologie. Lorsque nous les combinons et les différencions, ces conceptions et
circonstances historiques permettent de parler d’un moment théologique de l’histoire, d’une
transition et d’un moment historique de la théologie dans la trajectoire intellectuelle de Michel
de Certeau. Un tel changement a signifié le passage épistémique d’un a priori théologique de
l’histoire à un a priori historique de la théologie, événement déconstructif marqué par une
éthique de l'hospitalité.

Mots-clés: Michel de Certeau; théologie; histoire; théorie de l'histoire; histoire intellectuelle.


Sumário

Introdução ................................................................................................................................. 12
Capítulo I – O momento teológico da história ......................................................................... 33
1.1 Um discípulo fiel à tradição ............................................................................................ 40
1.2 Fidelidade, tempo e história ............................................................................................ 49
1.3 Espiritualidade, duração e totalidade .............................................................................. 59
1.4 Companheiros espirituais: Favre e Surin ........................................................................ 75
Capítulo II – Modernidade teológica e escritura certeauniana ............................................... 102
2.1 Teologia e história: um breve histórico ........................................................................ 102
2.2 Teologia lubaciana escritura certeauniana .................................................................... 121
2.2.1 Teologia da história ................................................................................................ 132
2.2.2 Filosofia da história ................................................................................................ 144
Capítulo III – Um trabalho teológico em transição ................................................................ 155
3.1 O século XVII: renovação e fidelidade ......................................................................... 157
3.2 O passado que se abre como um cofre .......................................................................... 167
3.3 Da miragem das origens à heresia do presente ............................................................. 180
3.4 A docilidade e a audácia de santo Inácio ...................................................................... 192
Capítulo IV – A desinstitucionalização do crer ...................................................................... 207
4.1 A reorientação editorial da Christus ............................................................................. 208
4.2 A Études, a América Latina e o maio de 1968 ............................................................. 221
4.3 O avesso da fixierung cristã .......................................................................................... 234
4.4 Uma oração ao padre Lubac ......................................................................................... 248
Capítulo V - O momento histórico da teologia....................................................................... 273
5.1 O que Certeau fez da história ........................................................................................ 274
5.2 A pensabilidade histórica da teologia ........................................................................... 313
5.3 A gestualidade teológica certeauniana .......................................................................... 326
5.4 A mística ou luto historiográfico da teologia ................................................................ 342
Considerações finais ............................................................................................................... 357
Referências bibliográficas ...................................................................................................... 374
Anexo I – Artigos de Michel de Certeau republicados em livros .......................................... 406
Anexo II – Michel de Certeau traduzido em língua portuguesa ............................................. 409
12

Introdução

Michel de Certeau (1925-1986) legou para a posterioridade escritos de diferentes


naturezas disciplinares. Jesuíta formado em diversas instituições religiosas e laicas, deu
contribuições significativas à teologia, à história e à teoria cultural. Elas são em grande
medida fruto de sua enorme erudição somada à abertura crítica ao diálogo com as inovações
filosóficas, etnológicas, psicanalíticas e semióticas do cenário intelectual francês em
efervescência nos anos 1960 e 1970.
O interesse pela face teológica de Michel de Certeau tem crescido nas últimas duas
décadas, movimento possivelmente intensificado pelas declarações de Jorge Mario Bergoglio:
“Para mim, o maior teólogo para os dias de hoje”, teria respondido o pontífice romano quando
perguntado quem seria Michel de Certeau.1 Quanto à história, a quantidade de artigos, livros e
teses é ainda mais volumosa. Contudo, muito pouco foi dito sobre a imbricação desses dois
níveis, isto é, em que medida questões teológicas e historiadoras estão tensionadas em seus
textos.
Alguns autores tenderam a enfatizar as provocações e contribuições historiadoras de
Certeau à teologia.2 Outros defenderam a existência de uma teologia ou de uma característica
particularmente teológica nas reflexões históricas de Certeau.3 Em alguns deles aparece mais
nitidamente algo sobre a interferência mútua desses dois campos do saber, por exemplo
quando Joseph Moingt define a reflexão de Certeau como uma teologia no exílio ou quando
Frederick Bauerschimidt aponta nos escritos teológicos de Certeau algo “híbrido” entre a fé
do crente e o ceticismo do historiador.
Essas apreciações sobre a teologia e a história se baseiam majoritariamente em textos
publicados por Certeau a partir da segunda metade dos anos 1960. Neles, suas interpretações
sobre o caráter histórico da espiritualidade cristã traziam consequências teológicas cada vez

1
Mencionado na Revista IHU on-line. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/567886-quem-e-
michel-de-certeau-para-mim-o-maior-teologo-para-os-dias-de-hoje. Acesso em: 28 jun. 2020.
2
GEFFRÉ, Claude. “Le non-lieu de la théologie”. In: GEFFRÉ, Claude (Dir.). Michel de Certeau ou la
différence chrétienne. Paris: Les Éditions du Cerf, 1991. p. 157-180 ; QUIRICO, Monica. Michel de Certeau e la
teologia. In: La differenza della fede: singolarità e storicità della forma cristiana nella ricerca di Michel de
Certeau. Cantalupa: Effatà editrice, 2005. p. 225-233.
3
MOINGT, Joseph. Une théologie de l’exil. In: GEFFRÉ, Claude (Dir.). Michel de Certeau ou la différence
chrétienne. Paris: Les Éditions du Cerf, 1991. p. 131-156; WARD, Graham. The voice of the Other. New
Blackfriars, v. 77, n. 909, p. 518-528, 1996; BAUERSCHIMIDT, Frederick C. Michel de Certeau, theologian.
In: WARD, Graham (ed.). The Certeau Reader. Oxford: Blackwell Publishers, 2000. p. 209-213; GISEL, Pierre.
La pertinence théologique de la pensée de Michel de Certeau. L’indiscipline de l’interdisciplinarité. Teología y
Vida, v. 57, n. 2, p. 257-280, 2016. Disponível em: https://scielo.conicyt.cl/pdf/tv/v57n2/art05.pdf. Acesso em:
25 abr. 2020.
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mais afastadas do magistério oficial da Igreja, do sentido literal da tradição e da identidade


institucional dos jesuítas, sem por isso dissociar-se deles completamente.
Já outros autores pontuaram alguns desses aspectos como eles aparecem em escritos
publicados em um primeiro momento da trajetória de Certeau. Sua intimidade com o
cristianismo, sua formação teológica e seu vínculo com a Companhia de Jesus são mais
evidentes nesses textos.4 Tais fatores permitem perguntar sobre a existência de uma maior
identificação entre a atividade intelectual e a cultura religiosa em Michel de Certeau.
No que concerne ao nosso tema, Luce Giard nota a presença da temática da história já
em uma das primeiras publicações teológicas de Certeau;5 François Dosse fala da
proximidade de Certeau com um teólogo preocupado com a história como Henri de Lubac;6
Andrés Freijomil menciona a associação ideológica à Companhia de Jesus vista na história da
espiritualidade escrita por Certeau naquele momento;7 mais recentemente, Claude Langlois
afirmou ter a produção universitária de Certeau – o trabalho sobre o Mémorial de Pierre Favre
– se tornado escrito espiritual ao ser publicado em uma coleção homônima da Christus,
revista de espiritualidade inaciana;8 Guido Mongini remontou, a esse mesmo livro, a análise
espiritual da história da qual Certeau falaria anos depois.9
Meu objetivo é seguir o caminho aberto por esses autores que apontaram elos entre
inspiração espiritual e produção intelectual nos escritos de Certeau. Busco tratar o que nesses
comentadores aparece timidamente, quando muito como menção, ainda não tomado como
problema: É possível recorrer aos termos “teologia” e “história” para falar desses textos? Caso
positivo, quais sentidos podem ser atribuídos a esses termos e de que maneira seus referentes
estão entrelaçados? Como isso aparece em seus escritos mais associados, pelos estudiosos, a
seu trabalho como historiador e menos nitidamente atrelados à autoridade da Igreja, da

4
Cf. a nota de Luce Giard em GIARD, Luce (Dir.). Le voyage mystique: Michel de Certeau. Paris: RSR/Cerf,
1988. p. 51; DOSSE, François. (2002) Michel de Certeau: le marcheur blessé. Paris: La Découverte, 2007. p. 59-
89; BURKE, Peter. The art of re-interpretation: Michel de Certeau. A Journal of Social and Political Theory, n.
100, p. 27-37, dec. 2002, p. 29-30; QUADROS, Eduardo Gusmão de. A vivência religiosa como objeto da
História das Religiões: uma leitura de Michel de Certeau. Impulso, v. 15, n. 37, p. 101-109, 2004, p. 107;
FREIJOMIL, Andrés G. Premier Certeau. À la recherche du “premier” Michel de Certeau. Les enjeux de ses
premiers textes publiés pendant les années lyonnaises (1947-1950). Rivista di Storia e Letteratura Religiosa, v.
XLVIII, n. 1, p. 117-154, 2012. Disponível em: https://cutt.ly/oljJkpG. Acesso em: 25 abr. 2020.
5
GIARD, Luce (Dir.). Le voyage mystique: Michel de Certeau. Paris: RSR/Cerf, 1988. p. 51.
6
DOSSE, François. (2002) Michel de Certeau: le marcheur blessé. Paris: La Découverte, 2007. p. 51.
7
FREIJOMIL, Andrés G. La historiografía religiosa en el siglo XX: Michel de Certeau y los enjeux de la
historia espiritual. 2012. p. 3. Disponível em: http://historiayreligion.com/wp-content/uploads/2012/05/Michel-
de-Certeau-y-los-enjeux-de-la-historia-espiritual-A.-G.-Freijomil.pdf. Acesso em: 25 abr. 2020.
8
LANGLOIS, Claude. L’initiation aux « sciences religieuses »: Michel de Certeau au séminaire de Jean Orcibal
(1956-1965). Revue d'Histoire de l'Eglise de France, t. 104, p. 247-260, 2018, p. 248.
9
MONGINI, Guido. Les enjeux de « l’analyse spirituelle des origines »: Michel de Certeau historien de la
compagnie de jésus (XVIe siècle). Revue d'Histoire de l'Eglise de France, t. 104, p. 277-291, 2018.
14

Companhia e da tradição? Como é possível interpretar nosso assunto quando consideramos


esses textos em conjunto?
Essas questões serão tratadas a partir de diferentes tipos de textos: livros, artigos em
revistas religiosas e laicas, bem como papéis disponíveis nos arquivos da Companhia de
Jesus. Essa abordagem de conjunto do material não foi realizada por nenhum dos
comentadores que trataram algum aspecto relevante à nossa pesquisa.10
Parte dos documentos pessoais de Certeau estão sob a guarda da Companhia de Jesus,
consultáveis no fundo Michel de Certeau dos arquivos jesuítas em Vanves, na França. O
fundo é composto por cinco caixas contendo manuscritos, datilografados e mimeografados de
diferentes naturezas: correspondência, pregações, retiros espirituais, conferências, cursos,
além da participação em encontros, grupos e comitês, dentre outros.
O primeiro grupo recorrido consta na pasta 2 do fundo. Trata-se do material referente
à sua participação em retiros espirituais da Companhia de Jesus e à sua pregação em
celebrações religiosas. Dentre os documentos correspondentes aos retiros encontramos
tópicos, apontamentos, comentários e textos que abordam de temas inerentes à atividade
sacerdotal e à experiência cristã. São eles a vida e as parábolas de Jesus, a prática dos
apóstolos, mas também a ação do demônio, a tentação, o pecado, o discernimento espiritual e
a oração, para citar alguns exemplos.
Já seus esboços de sermões e homilias contemplam celebrações do calendário litúrgico
como o natal, o domingo de ramos, a páscoa, o pentecostes, etc. Encontramos também a
celebração de alguns matrimônios, além de outras situações específicas. É o caso da profissão
do quarto voto de obediência missionária ao papa feito por um companheiro de ordem
chamado Lesage. Outro exemplo é o sermão sobre o secours catholique, serviço da Igreja
católica francesa baseado na doutrina social da Igreja.
Desses documentos, são listados a seguir os utilizados, separados em dois grupos.
– Os documentos datados:

Pentecote [sic], texto datilografado, 24 de maio de 1953.

10
Com exceção da biografia escrita por François Dosse, embora ele tenha feito apenas menções pontuais à parte
do arquivo que contempla as celebrações religiosas, os retiros espirituais e outras situações relativas à atuação
institucional na Companhia. Além disso, a relação entre teologia e história não era o problema central de sua
leitura desses textos, ainda que isso apareça eventualmente. Até a presente data, somente um artigo se debruçou
sobre o material relativo à atividade pastoral. Manuela Águeda García-Garrido apresentou o lado “pregador” de
Certeau por meio de algumas cartas e sermões. A autora traduziu dois deles para o espanhol. Cf. GARCÍA-
GARRIDO, Manuela A. Michel de Certeau, predicador. El fondo de los archivos de la provincia jesuita de
Francia. La Torre del Virrey, v. 17, n. 1, p. 23-35, 2015. Disponível em: https://cutt.ly/mlVzUtl. Acesso em: 25
abr. 2020. Um breve comentário sobre os papeis correspondentes aos retiros encontra-se em: SALIN,
Dominique. Michel de Certeau et les exercices spirituels d’Ignace de Loyola. Revue d'Histoire de l'Eglise de
France, t. 104, p. 293-306, 2018, p. 297.
15

Début de retraite, texto manuscrito, 22 de set. de 1953.


“IIe préambule. Grâce à demander”, texto manuscrito, 23 de set. de 1953.
Discernement des esprits e θgie du laïcat, texto manuscrito, 11 de set. de 1954.
La messe, notre prière (homélie pendant une retraite sacerdotale), texto manuscrito,
20 de out. de 1958.
Mariage de Gabrielle Teyssier de Savy et de Jean de la Ferrière, texto
datilografado, 31 de mar. de 1959.
La prière de l’homme moderne, texto manuscrito, 15 de abr. de 1959.
“Qui n’est pas avec moi est contre moi”, texto manuscrito. O documento parece ter
sido inicialmente escrito para uma homilia no dia 20 de março de 1960. Contudo,
essa data foi riscada. Outra indicação foi feita por Certeau, mas está parcialmente
ilegível.
Jeudi st., texto manuscrito, 14 de abr. de 1960.
Pâques, texto manuscrito, 17 de abr. de 1960.
Secours catholique, texto datilografado, 20 de nov. de 1960.
Grands vœux de Lesage, texto datilografado, 02 de fev. de 1961.
Mysterium fidei. Fin de l’adoration perpétuelle, texto datilografado, 5 de mar. de
1961.
Mariage de Christian Foulla et Anne de la Rorie, texto datilografado, 25 de mar. de
1965.
S. Ignace, texto datilografado, 31 de jul. de 1965.
Saint Ignace de Loyola, texto datilografado, 31 de jul. de 1966.

– Os documentos não datados:

Verbum caro factum est, texto manuscrito.


Application des sens: le verbe incarné, la parole faite chair, texto manuscrito.
Fidélité et pauvreté. Naissance de Jésus, texto manuscrito.
Première rencontre, texto datilografado.
Discernement des esprits: l’onction de l’Esprit qui guide dans l’action, texto
manuscrito.
Jean 20: 11-18, texto manuscrito.
Entrer en retraite, texto datilografado.
Discernement de première semaine, texto manuscrito.
Règne, texto manuscrito.
Retraite – IIe semaine: le règne, texto datilografado.
Le règne, texto manuscrito.
La tentation de Jesus, texto manuscrito.
Paques [sic] II, texto manuscrito.
S. Joseph, le fidèle, texto datilografado.
Noël – matin, texto manuscrito.
8e dim. ap. Pentecôte, texto datilografado.
Dimanche de la Passion. Le “Credo”, texto datilografado.
La parole de Dieu: Dieu vous parle, texto manuscrito.
16

L’Evangile de la passion, texto manuscrito.


Retraite de fin d’études, texto datilografado.

Também foram trabalhados os seguintes materiais ligados à sua formação religiosa e à


sua atividade como membro da Companhia de Jesus:
– Conferências espirituais dadas por Certeau em 1956, disponíveis na caixa 2:

Perfection et charité, texto datilografado, 26-31 de dez. de 1956.


Conclusion – progrès spirituelle et theologie de l’ágape, texto datilografado, 26-31
de dez. de 1956. Há um conjunto de manuscritos relativos ao texto Perfection et
charité. Junto deles, está essa conclusão, datilografada, mais extensa que a que
compõe o material.

– Trabalho universitário sobre santo Agostinho; meditações sobre o fazer teológico;


apontamentos sobre o desenvolvimento dos dogmas cristãos; intervenção em um encontro
sobre a fé e o ateísmo, organizado pelo Centre Catholique Universitaire de Grenoble;
participação em reunião voltada às experiências e projetos sobre publicações religiosas na
França; propostas para a reforma da formação dos jesuítas apresentadas pelo comitê presidido
por Certeau; e sua exposição sobre experiências cristãs da relação com o estrangeiro. Todos
esses títulos estão disponíveis na caixa 5:

Doctrine trinitaire de saint Augustin dans la lettre à consentius, texto manuscrito,


sem data, caixa 5, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.
Situation du théologien (vie et travail du θgien), texto manuscrito, sem data.
Developement dogmatique, texto manuscrito, sem data, caixa 5, Arquivo da
Companhia de Jesus, Vanves.
La crise du langage religieux [Session de Currière: langages de l’athéisme et de la
foi, p. 41-54, juil. 1966], texto mimeografado.
Sem título, texto datilografado, 16 de mai. de 1966.
Propositions pour la réforme des études, texto datilografado, 24 de jun. de 1967.
Exposé du père M. de Certeau à la réunion du C.A.M.I, texto datilografado, 10 de
fev. de 1972.

– Relato sobre as intenções que mobilizaram a criação da coleção Bibliothèque des Sciences
Religieuses, fundada por Certeau em 1969, guardado na caixa 1:

Pour une Bibliothèque des Sciences Religieuses, texto datilografado, sem data.

No que se refere ao seu trabalho como historiador da espiritualidade dos séculos XVI e
XVII, foram manejados os papéis elencados a seguir:

– Componentes do dossiê concernente a seu estudo sobre Pierre Favre, guardado na caixa 3:

Présentation, texto datilografado, correções manuscritas, 1960. Apresentação à


defesa de tese de terceiro ciclo na Sorbonne.
17

Expérience et esprit chez Favre, texto datilografado, sem data. Estudo inédito sobre
o Mémorial de Favre.
Correspondência com arquivistas e editores.

– Material referente à tese de Estado sobre Jean-Joseph Surin na Sorbonne (não concluída),
contida na caixa 1:

Silence et expérience. Le Père Surin. texto datilografado, 01 de março de 1961.


Texto apresentado ao CNRS junto a um pedido de subvenção.
Silence et expérience. Le Père Surin (1600-1665). Note complémentaire:
recherches sur le milieu intellectuel et spirituel, texto datilografado, 13 de setembro
de 1961. Nota complementar enviada ao CNRS por sugestão de seu orientador de
tese.
Correspondência com Henri Gouhier, seu orientador de tese.

– Texto depositado na caixa 5, integrante do seminário ministrado por Certeau no Institut de


Science et de Théologie des Religions do Institut Catholique de Paris, em 1967/1968:

Langages de la foi: christianisme et histoire, texto datilografado, 1967-1968.

Outra fonte relevante de informações está albergada no fundo Henri de Lubac dos
arquivos da Companhia. Trata-se das cartas enviada por Certeau aquele teólogo. Além desses
documentos do arquivo jesuíta em Vanves, este estudo se valeu da autocrítica a um artigo
sobre a experiência religiosa publicado em 1956.11 Outro tipo de recurso usado foram os
anuários da seção de ciências religiosas da École Pratique des Hautes Études. Nessa
instituição, Certeau frequentou os seminários de Jean Orcibal sobre a história do catolicismo
moderno e contemporâneo, obtendo diplomação em 1959.12
Metodologicamente, o primeiro desafio no trabalho com material de arquivo foi
estabelecer padrões caligráficos – letras e suas variações, abreviações, símbolos, etc. – nos
textos manuscritos e nas marginalia dos textos datilografados.
Em segundo lugar, a cronologia, uma vez que dispunha de textos com e sem data.
Optei por tomar os documentos datados como ponto de partida para o trabalho. Uma primeira
leitura destacou certas diferenças em documentos dos anos 1966 e 1967. Essa primeira
impressão foi confirmada pelo exame dos artigos publicados em revistas religiosas como o
Bulletin du Séminaire Universitaire de Lyon, a Christus e a Concilium.13

11
Autocrítica divulgada postumamente por sua executora testamentária, Luce Giard, em: CERTEAU, Michel de.
Auto-critique! L’expérience religieuse. Notes (3 septembre 1956). In : GIARD, Luce (Dir.). Le voyage mystique:
Michel de Certeau. Paris: RSR/Cerf, 1988. p. 49-51.
12
Disponíveis em: https://www.persee.fr/collection/ephe. Acesso em: 22 fev. 2021.
13
Uma ferramenta se mostrou crucial para a incursão no vasto campo das publicações de Certeau. Trata-se da
listagem de sua bibliografia completa, composta por Luce Giard. Nesse trabalho, também constam informações
sobre as republicações, modificações e rearranjos dos textos em outros formatos ao longo da trajetória do jesuíta.
18

Somente após confirmada certa correspondência entre algumas características dos


documentos e publicações, tanto no que se refere a um primeiro momento quanto às
mudanças por volta de meados dos anos 1960, os documentos não datados passaram a ser
arguidos. Essa arguição teve por objetivo verificar os possíveis acordos e desacordos quanto
às informações e observações resultantes do trabalho com os documentos datados e com as
publicações.
O mesmo ocorreu com as publicações resultantes do estabelecimento de textos escritos
por jesuítas dos séculos XVI e XVII. Nesse caso, recorri a artigos na Christus e na Revue
d’Ascétique et de Mystique, assim como a introduções à edição do Mémorial de Pierre Favre,
do Guide Spirituel e da Correspondance de Jean-Joseph Surin. Essas introduções foram
publicadas respectivamente em 1960, 1963 e 1966.
Os documentos sem data e as publicações sobre a edição de manuscritos dos séculos
XVI/XVII fornecem dados concordantes com certa forma de articular teologia e história em
documentos datados e em artigos espirituais entre 1953-1966. Um outro modo de aproximar
esses domínios aparece em artigos e documentos em 1966-1967.
Esses primeiros resultados foram confirmados, nuançados e ampliados pelo trabalho
com publicações entre a segunda metade da década de 1960 e o início dos anos 1980. Foram
manuseados artigos em revistas religiosas de diferentes orientações como a Études, a Esprit, a
Recherches de Science Religieuse, etc.; livros contendo reflexões sobre a experiência cristã:
L'étranger ou l'union dans la différence (1969), Le christianisme éclaté (1974) com Jean-
Marie Domenach e La faiblesse de croire, coletânea editada postumamente por Luce Giard
(1987); obras que colocam em primeiro plano assuntos não religiosos, como La prise de
parole (1968, aumentada em 1994), sobre os eventos de maio daquele ano; L’absent de
l’histoire (1973) e L’écriture de l’histoire (1975), principalmente em suas reflexões teóricas
sobre a prática do historiador; e a coletânea póstuma Histoire et psychanalyse: entre science
et fiction (1987, aumentada em 2002), versão francesa parcial de outra reunião de textos

GIARD, Luce. Bibliographie complète de Michel de Certeau. In: GIARD, Luce (Dir.). Le voyage mystique:
Michel de Certeau. Paris: RSR/Cerf, 1988. p. 191-243. Recentemente, Andrés Freijomil propôs um
complemento ao trabalho seminal da executora testamentária de Certeau. O historiador argentino acrescentou 54
títulos até então desconhecidos ou ignorados. Além disso, ele reuniu algumas informações dispersas, como
dissertações de mestrado e teses de doutorado orientadas por Certeau, reedições e coletâneas póstumas de seus
textos, traduções de seus livros em diversos idiomas, dentre outros itens. Essa investigação bibliográfica foi
completada por uma lista volumosa de estudos dedicados a Michel de Certeau em diversas línguas. FREIJOMI,
Andrés G. Bibliographie. In: FREIJOMI, Andrés G. Arts de braconner. Une histoire matérielle de la lecture chez
Michel de Certeau. Paris: Classiques Garnier, 2020. p. 623-808. Disponível em: https://cutt.ly/DcAfJpI. Acesso
em: 06 abr. 2021. A bibliografia estabelecida por Giard, a atualização proposta por Freijomil e a biografia escrita
por François Dosse são importantes instrumentos de pesquisa para os interessados em aventurar-se no
pensamento de Michel de Certeau.
19

publicada em língua inglesa, Heterologies: discouse on the Other (1986); também me vali de
certos elementos de sua obra consagrada à mística moderna, La fable mystique (1982).14 A
lista completa de artigos e livros usados está disposta em ordem cronológica nas referências
bibliográficas.
O terceiro desafio foi estipular uma abordagem por meio da qual fosse possível
interpretar o conteúdo desse conjunto de textos, especialmente as diferenças que uma leitura
ainda demasiadamente descritiva ia cartografando. Muito do que estava dado no material e
minha própria maneira de compreender o trabalho com as ideias me impelia a não ceder a
uma abordagem estanque dos conteúdos internos aos textos e dos fatores externos que
marcavam sua feitura. Em outras palavras, parecia-me difícil optar entre um comentário
teórico e uma explicação histórica, entre uma teoria da história e uma história das ideias.
As propostas mais conhecidas em história das ideias não parecem satisfazer
suficientemente essa necessidade. São enormes as contribuições da Escola de Cambridge, da
tradição alemã de história dos conceitos ou da história dos intelectuais e da história cultural à
francesa, para mencionar apenas algumas perspectivas. Todavia, seus questionamentos são
geralmente direcionados ao tratamento desencarnado das ideias, cujo epônimo é Arthur
Lovejoy e sua history of ideas. Elas não colocam de maneira suficientemente explícita o
problema da interpretação unilateralmente amparada nos dados internos ou externos de um
texto, muito menos questionam como é possível relacionar criticamente esses diferentes
aspectos. Mesmo nos raros casos em que a coexistência não excludente desses fatores ganha
algum destaque, termina por prevalecer uma espécie de contextualismo interpretativo.15
Dominick LaCapra foi quem mais levou a sério essa questão na dimensão da história
intelectual – termo usado entre historiadores ora como sinônimo de história das ideias, ora
como meio para diferenciar-se dela. LaCapra colocou a provocação nos seguintes termos: “ao

14
Michel de Certeau tinha o costume de retomar e retrabalhar, em seus livros, textos publicados anteriormente
como artigos. Tendo isso em vista, para seleção das partes dos livros que seriam analisadas, adotei como
critérios elas serem inéditas e, no caso das republicações, elas trazerem alterações significativas no que diz
respeito ao nosso tema. Quanto às reimpressões sem alterações, optei por usar a versão em livro apenas nos
casos em que não tive acesso ao artigo original. As exceções foram, por comodidade, as republicações cuja
leitura já havia sido feita por meio do livro, como La prise de parole e L’écriture de l’histoire. Informações
sobre a materialidade dos escritos de Certeau podem ser consultadas em: GIARD, Luce. Bibliographie complète
de Michel de Certeau. In: GIARD, Luce (Dir.). Le voyage mystique: Michel de Certeau. Paris: RSR/Cerf, 1988.
p. 191-243.
15
Roger Chartier, por exemplo, recorre às expressões ricœurianas “mundo do texto” e “mundo do leitor” para
pensar a construção do sentido no exercício do ato de ler. Contudo, o historiador francês, em última instância,
explica as representações produzidas pelas retomadas de um texto como efeito de novos suportes tipográficos e
das práticas de leitura historicamente situadas. Dessa maneira, não obstante leve em conta a significação e os
aspectos literários das obras, os fatores externos permanecem sendo os recursos privilegiados para a
interpretação da produção de sentido. CHARTIER, Roger. (1989) O mundo como representação. Estudos
Avançados, v. 11, n. 15, p. 173-191, 1991, p. 177-180.
20

tratar a relação dos textos com os contextos, o que frequentemente é tomado como a solução
ao problema deveria ser reformulado e investigado ele mesmo como o problema real. Um
apelo ao contexto não responde eo ipso a todas as questões de leitura e interpretação”.16
A eleição do contexto como a base da compreensão histórica costuma estar associada
à propensão documentalista no tratamento dos textos complexos da tradição ocidental. O
modelo em questão põe relevo nos elementos históricos correntes passíveis de serem
extraídos dos materiais estudados. Esse tipo constatativo de pesquisa fundamenta a seleção
dos fatores pertinentes dos textos a partir de suas possibilidades fáticas. Ele domestica a
vivacidade de textos que interagem de maneira não exclusivamente referencial com a
realidade, ao interpretá-los predominantemente em seus componentes documentários. 17
Em decorrência dessa problematização do contextualismo, a delimitação transparente
entre o que está dentro e o que está fora de um artefato escrito é questionado, sem por isso
supor a inexistência dessa distinção. O texto é constituído por diferentes possibilidades
reciprocamente implicadas e mesmo contestatórias, no qual se processam, retrabalham e
textualizam os contextos de diversas maneiras. Ao pensar o texto como uso situado da
linguagem, a atenção volta-se à interação entre os processos de significação e o mundo
histórico.
Dessa forma, a tônica da história crítica como a pensa LaCapra se encontra na
interseção da reconstrução documentária e do diálogo com o passado. A história intelectual
como história dos textos toma como mote a encruzilhada entre a composição histórica e a
textualidade. Essa relação de uma reconstrução histórica constatativa e de uma interpretação
performativa do passado não pressupõe os contextos como marcos explicativos dados. Ela os
encara como restos textualizados variados e tensamente interligados cuja pertinência é preciso

16
“[...] in treating the relation of texts to contexts, what is often taken as a solution to the problem should be
reformulated and investigated as a real problem itself. An appeal to the context does not eo ipso answer all
questions in reading and interpretation”. LACAPRA, Dominick. Rethinking intellectual history: texts, contexts,
language. Ithaca: Cornell University Press, 1983. p. 35.
17
LaCapra acompanha a crítica ao enfoque estritamente documentário na narrativa historiográfica, feita por
Hayden White em Metahistory (1973) e em Tropics of discourse (1978). Todavia, mostra ressalva às tendências
“presentistas” e “construtivistas” assumidas pela obra de White em certos momentos. LACAPRA, Dominick.
Rethinking intellectual history: texts, contexts, language. Ithaca: Cornell University Press, 1983. p. 27, nota 1.
Essa ressalva o coloca em uma posição similar à de Michel de Certeau em escritos da primeira metade dos anos
1970, uma vez que ambos entendem como falsa a alternativa entre objetivismo e relativismo ou entre passado e
presente na investigação do historiador – essa postura de Certeau será tratada, dentre outros assuntos, na primeira
parte do quinto capítulo desta tese. Id. History & criticism. Ithaca: Cornell University Press, 1985. p. 21.
Segundo LaCapra, o próprio Hayden White teria nuançado o formalismo predominante em suas primeiras obras.
Ibid., p. 35, nota 36. O historiador afirma ainda que White não explorou as implicações da crítica à historiografia
no plano específico da história intelectual, cujos tipos de textos usualmente tomados como fonte de trabalho
tornam ainda mais questionáveis o enfoque puramente documentário. LaCapra levou essa tarefa adiante a partir
de seis tipos diferentes de contextos: intenções do autor, vida do autor, sociedade, cultura, corpus textual e
modos de discurso. LACAPRA, op. cit., p. 32, nota 6; p. 36-61.
21

demonstrar e cujas as internalizações, supressões e suplementações assume como tarefa


pensar.18
Apesar desse convite à aproximação crítica entre texto e contexto, mesmo a obra de
LaCapra não fornece, a rigor, um passo a passo para a realização dessa tarefa. Embora
defenda uma convivência entre a abordagem documentária e a abordagem dialógica, ele não
receita um modelo a ser seguido. Não é o caso da prescrição de procedimentos preconcebidos
que permitiriam realizar um projeto de história intelectual independente das especificidades
materiais e das circunstâncias existenciais de sua feitura. A própria experiência de LaCapra
com a desconstrução, em seu estudo sobre Sartre, buscou aproximar-se dessa forma derridiana
de leitura sem a emular.
Assim, a obra de LaCapra foi para mim um ponto de partida, não um meio. Ela
figurava a possibilidade de explorar a relação mutuamente alterante entre os fatores internos e
externos de um texto. Ela tornava crível vislumbrar uma leitura a um só tempo constatativa e
performativa dos textos em sua abertura ao mundo histórico. Seu insight estava em postular,
em história intelectual, a possibilidade de um trabalho rigoroso sem excluir o espaço para a
inventividade. Ou seja, LaCapra me proporcionou um princípio teórico que ainda precisaria
ser elaborado procedimentalmente.
Como não tomava as reflexões de LaCapra como modelo, era preciso recolocar em
meus próprios termos as diretrizes mais basilares do trabalho historiográfico com as ideias, já
considerando esse princípio de inteligibilidade que o historiador intelectual de Sartre
compartilhava comigo. Parecia-me inevitável propor um modo de analisar teórica e
historicamente o corpus textual certeauniano. Para tal, baseei o trabalho num protocolo triplo
de leitura e de interpretação. Essas três modalidades procedimentais são a interpretação

18
Essa proposta de leitura feita por LaCapra foi inicialmente articulada, em seu livro sobre Jean-Paul Sartre, à
desconstrução como pensada por Jacques Derrida. LACAPRA, Dominick. A preface to Sartre: a critical
introduction to Sartre’s literary and philosophical writings. Ithaca: Cornell University Press, 1978. Em
importante artigo na History and Theory, sua proposta de leitura dialógica acrescentou como marco o que Martin
Heidegger havia forjado em termos de “pensar o impensado” da tradição. Ela também remete à noção de
compreensão histórica enquanto conversação com o passado, mais como ela aparecia em Heidegger que em
Hans-Georg Gadamer, tendo em vista que para LaCapra a noção gadameriana de plena verdade consensual como
telos do diálogo estava mais próxima de Jürgen Habermas que do filósofo de Ser e tempo. Id. Rethinking
intellectual history and reading texts. History and Theory, v. 19, n. 3, p. 245-276, 1980, p. 248, nota 2; p. 249. O
artigo foi reimpresso com pequenas alterações, dentre elas essa distinção entre Heidegger e Gadamer, em: Id.
Rethinking intellectual history: texts, contexts, language. Ithaca: Cornell University Press, 1983. p. 23-71. Esse
modo dialógico de leitura como tarefa parcial da história crítica também foi pensado nas cercanias da retórica, no
primeiro capítulo de: Id. History & criticism. Ithaca: Cornell University Press, 1985. p. 15-44. Uma apresentação
sintética da proposta de LaCapra pode ser encontrada em sua resposta às críticas de Russel Jacoby ao seu
trabalho, bem como em outra ocasião na qual distingue mais abertamente alguns pontos de discordância entre a
leitura desconstrucionista e a forma dialógica que ele defendia. Id. Intellectual history and its ways. The
American Historical Review, v. 97, n. 2, p. 425-439, 1992; Id. History, language and reading: waiting for Crillon.
The Americal Historical Review, v. 100, n. 3, p. 799-828, 1995.
22

interna ou teórica, a interpretação externa ou histórica e a interpretação histórico-dialógica ou


performativa.
A interpretação interna parte da comparação de pressupostos, objetivos, noções,
argumentos, exemplos, imagens e outros recursos textuais que os materiais fornecem. As
semelhanças, afinidades e dessemelhanças resultantes desse procedimento são articuladas em
níveis segundo diferenças gradativas. Em seguida, produz-se encadeamentos, ou seja, a
ordenação dessas articulações, principalmente pela via indutiva. Por fim, é possível inferir
regularidades desse encadeamento, estabelecendo planos de significação alocados ou não em
recortes temporais distintos.
Ao falar em “plano de significação”, me refiro aos aspectos relativamente dispersos ou
unidos que podem ser agrupados em torno de um sentido comum. É legítimo usar o termo
como sinônimo de “concepção” se tivermos clareza que o sentido comum obtido por
comparações, articulações, encadeamentos e inferências temporalmente distribuídas não se
restringe às intenções do autor em um texto, em uma categoria textual ou em tipologias
textuais agregadas pela leitura.
Essa maneira de proceder pode ser chamada “teórica” não somente porque esses
planos de significação apresentam diferentes formas de pensar a história. Ela também é
teórica dado que a interpretação não se restringe a apresentar os elementos reunidos sob a
égide de uma concepção. Ela também se apropria de noções existentes para fazê-las falar de
acordo com traços encontrados a partir dessa leitura. Além do mais, foi preciso propor outras
noções para dar conta da singularidade dos planos de significação. Nesses casos, o aspecto
teórico está em organizar, desdobrar e nomear os elementos agrupados nesses planos. Eles são
estritamente ancoradas na materialidade dos textos de Certeau, mas não existem enquanto tal
independentes do protocolo proposto e das investidas realizadas para conferir-lhes coerência e
atualidade.
O segundo procedimento do protocolo adotado opera com o esquema básico da
história intelectual, isto é, com a elucidação diacrônica e sincrônica das ideias de um texto.
Por mais elementar que seja, tais operações não aparecem claramente definidas no interior das
abordagens que renovaram a história intelectual desde os anos 1960. Senti-me impelido a
explicitá-las do meu próprio modo, seguro de que esse tipo de exercício de rigor nada tem de
preciosismo. Categorias como essas dão transparência ao caminho pelo qual vai sendo
possível chegar às interpretações apresentadas e retrabalhadas no produto escrito da pesquisa.
Com elucidação diacrônica e sincrônica me refiro à identificação dos antecedentes e
dos contextos pertinentes à produção das ideias localizadas nos textos ou interpretadas a partir
23

de sua leitura. Por um lado, busca-se estipular semelhanças e diferenças em relação aos
autores, noções, ideias e correntes intelectuais em recortes históricos anteriores. Por outro,
atenta-se aos lugares de sociabilidade, códigos culturais, linguagens comuns, dispositivos
institucionais, princípios epistemológicos partilhados, dentre outros traços extratextuais
contemporâneos à determinada produção filosófica, teológica, literária, histórica, etc.
No entanto, não é o caso de conjurar um pensamento para tão logo sepultá-lo na
efetividade da realidade que o viu nascer. É preciso ainda prescrutar as formas pelas quais
uma criação no mundo pode ser também uma criação de mundo. Isso quer dizer farejar os
traços dos possíveis atos significantes que assimilam os contextos fazendo deles algo próprio.
Portanto, esse segundo tipo de procedimento está ligado a um terceiro cuja
particularidade preconiza a necessidade e o desejo de estabelecer meios para abordar os textos
de Certeau, seus planos de significação e suas constituições históricas para além de sua
faticidade. Tal procedimento atenta não apenas aos fatores integrados à constituição das ideias
de um texto, mas à maneira como este lhes responde, agencia, altera, excede e resiste.
Para realizar essa interação dialógica com os textos de Certeau, recorro a noções de
outros campos e a suas reverberações por meio do reemprego particularmente historiador,
tendo em vista ler os contextos textualizados e conferir-lhes significados. Estes estão tanto
amparados no que os textos fornecem quanto são dependentes das referências, escolhas,
filtros e formulações de quem os lê.
Em uma época de difusão desenfreada de notícias falsas e de negacionismos diversos
associados ao recrudescimento de latências autoritárias, mais do que nunca é necessário
defender a exigência de critérios rigorosos na produção do conhecimento. Contudo, isso não
significa dar espaço a forças reativas que apagariam o amadurecimento trazido pelas
conversações da história com teorias críticas nas últimas décadas. Nesse sentido, a recusa de
um objetivismo reducionista deve necessariamente passar pela responsabilidade epistêmica e
ética que qualquer poética historiadora precisa fazer sua ao abraçar a historicidade de seus
instrumentos, técnicas e teorias.
A filosofia de Jacques Derrida é a que mais ganha importância nessa aventura
dialógica.19 Noções derridianas como “différance”, “rastro”, “herança”, “desconstrução” e

19
Dominick LaCapra reivindicou o interesse da desconstrução para a história ainda em fins dos anos 1970.
Mesmo após sua aproximação com a desconstrução passar por um acentuamento crítico, recentemente o
historiador americano reafirmou a relevância de alguns aspectos da filosofia derridiana. LACAPRA, Dominick.
Understanding others: peoples, animals, pasts. Ithaca: Cornell University Press, 2018. p. 32. Outros
historiadores e historiadoras também demarcaram essa pertinência para os métodos e as teorias da história,
apontando direções possíveis para essa interação. O modo como recorro à filosofia de Jacques Derrida busca
refazer esse caminho pela via do intercâmbio mutuamente alterante entre a história e a filosofia, mas também em
24

“hospitalidade” auxiliam para efetuar essa empreitada.20 Ela não se confunde com o recurso à
Derrida enquanto componente integrante da produção intelectual de Certeau nos anos 1970,
principalmente em sua maneira de pensar a “escritura”.
Certas formulações teóricas do próprio Michel de Certeau têm lugar relevante em
algumas interpretações que proponho. É o caso de seu entendimento sobre o termo “pós-
estruturalismo”, apresentado em uma entrevista em 1969,21 e sua compreensão de leitura em
L’invention du quotidien (1980).
Intuições de outros autores/disciplinas também marcam presença, ainda que de
maneira pontual, como a interpretação da história à contrapelo em Walter Benjamin e a
definição de fixierung em Freud.
A abordagem esboçada até aqui permite retraçar linhas do pensamento histórico-
teológico de Certeau sem perder de vista as urgências existenciais que ele acompanha. O
contrário é igualmente procedente, pois viabiliza tratar das ressonâncias históricas em suas
ideias sem silenciar a irredutibilidade e a inventividade do pensamento.
A referida modalidade de leitura e interpretação se justifica inclusive na postura de
Michel de Certeau, quem riu, suou e sangrou com as demandas e desafios de seu tempo; quem
não se furtou a falar em nome de sua experiência como padre, viajante e intelectual; mas
quem também se recusou a reduzir a força de um pensamento, prática cultural ou experiência

função dos desafios encontrados na leitura dos materiais de Michel de Certeau. Para as aproximações entre
desconstrução e história, cf. KLEINBERG, Ethan. Haunting history: deconstruction and the spirit of revision.
History and Theory, v. 46, p. 113-143, Dec. 2007; Id. Haunting history: for a deconstructive approach to the
past. Stanford: Stanford University Press, 2017; PINTO, Aline Magalhães. História, tempo e linguagem: sobre as
possibilidades da desconstrução derridiana para o saber histórico. 2008. 180 f. Dissertação (Mestrado em
História) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2008. Disponível em: https://cutt.ly/flFHXzb.
Acesso em: 27 fev. 2021; QUADROS, Eduardo Gusmão de. Derrida revoluciona a história? Fênix, v. 6, n. 4, p.
1-19, 2009. Disponível em: https://cutt.ly/olFKfwo. Acesso em: 27 fev. 2021; BEVERNAGE, Berber. História,
memória e violência de Estado: tempo e justiça. Tradução de André Ramos e Guilherme Bianchi; revisão técnica
de Valdei Lopes de Araújo e Walderez Ramalho. Vitória: Milfontes/Mariana: SBTHH, 2018. Capítulos 7 e 8.
20
Por esse motivo, o leitor não deverá ficar surpreso por não encontrar, nos capítulos desta tese, a retomada dos
textos de Dominick LaCapra que poderia ser esperada por alguns. Como já dito, a problematização levantada por
LaCapra foi a condição de possibilidade do protocolo de leitura e interpretação aqui delimitado. Para mim,
honrar semelhante dívida nesta apresentação teórico-metodológica é uma responsabilidade ética inegociável.
Entretanto, se LaCapra foi o ponto de partida e a abordagem que desenvolvi foi o caminho, as noções derridianas
forneceram instrumentos para a elaboração de modos performativos de interpretar os textos, espécie de paradas
para o aprendizado da língua estrangeira da desconstrução que me esforcei para falar com sotaque de historiador.
21
É bastante curioso ver Certeau aludindo a esse termo que se popularizaria com outra acepção na próxima
década. Em seu caso, ele pouco se assemelha ao sentido usual que ele ganharia em certos departamentos
universitários dos Estados Unidos. Certeau o usava para definir um problema aberto pela experiência do maio de
1968, isto é, o questionamento sobre a capacidade dos métodos estruturalistas superarem sua dificuldade em
articular criatividade e sistema. Não se tratava de designar uma corrente intelectual coesa associada ao pós-
modernismo. Talvez a maior correspondência entre esses dois usos do termo seja a importância concedida a
Michel Foucault e a Jacques Derrida como filósofos que abordavam frontalmente as questões fundamentais
daquele momento, dois nomes geralmente tidos como grandes expoentes da “corrente” pós-estruturalista.
Certeau mencionou a expressão em uma entrevista publicada em: DAMIANI, J.-M; DESOUCHES, D. (Eds.)
Regards sur une révolte. Que faisaient-ils en avril? Paris : Desclée de Brouwer, 1969. p. 209, 210.
25

espiritual às acomodações estruturais dos sistemas sociais. Não foi Certeau quem definiu a
operação historiográfica como a conjunção de um lugar social, uma operação científica e uma
representação literária?
A seguir, indicarei resumidamente os principais resultados dessa abordagem das
relações entre teologia e história em Michel de Certeau.
Recorro ao termo “teologia” nas seguintes acepções: certo grau de elaboração teórica
que acompanha a vivência do sacerdócio; a prática acadêmica dotada de aspectos teóricos,
metodológicos e temáticos próprios; uma interpretação espiritual conjunta ao tratamento
historiador das ideias teológicas; uma inteligibilidade particularmente teológica não reduzida
ao olhar histórico em artigos sobre temas religiosos; por fim, a afirmação de uma teologia
possível mesmo quando ela é rejeitada sob sua forma tradicional de metafísica da presença, de
continuidade da tradição e de universalidade da Igreja.
Quanto ao termo “história”, os significados adotados são estes: o tema principal ou
contíguo encontrado no trabalho do teólogo, do filósofo e do historiador; as diferentes
perspectivas teórico-metodológicas e os resultados de pesquisa relativos a um tipo de
disciplina particular, em nosso caso dedicada a temas a princípio concebidos
teologicamente;22 determinado olhar característico dessa investigação histórica em textos de
natureza teológica ou a reflexão teórica sobre o modo do historiador proceder quando tem por
fonte esse tipo de material, nos dois casos importando os pontos usados para formular
provocações ou para estabelecer limites ao fazer da teologia no presente.
Essa polissemia já dá indícios de que as acepções mais gerais adotadas para um dos
termos implica um vínculo com algo designado pelo outro. As quatro definições do termo
“história”, por exemplo, colocam em evidência sua vizinhança com a teologia. Cabe precisar
as possíveis noções atribuíveis a essas relações.
Uma teologia elaborada em função das urgências humanas na prática sacerdotal e uma
semântica própria ao conceito moderno de história são marcantes em seus papéis nos anos
1950. A teologia espiritual localizada em seus artigos em revistas religiosas também pensa,

22
As duas primeiras definições guardam a ambiguidade do termo “história”, designando tanto o objeto estudado
pelo historiador quanto a ciência que estuda esse objeto. Por isso, o seu uso adjetivo também carregará essa
duplicidade. É assim que é possível falar em contexto, aspecto ou condição histórica de uma doutrina mística,
mas também em trabalho, abordagem ou interpretação histórica da mística. Já o termo “historicidade” será usado
para enfatizar a abertura de algo às circunstâncias, à mudança e à morte. Para “historiografia”, preferi manter seu
uso estrito de história escrita, fazendo referência aos textos resultantes da pesquisa histórica ou à reflexão sobre a
escrita enquanto componente do que o historiador faz. Exceções ocorrem quando minha interpretação estiver
baseada em textos de Certeau onde ele mesmo usa a noção como sinônimo para o trabalho do historiador –
operação historiográfica ou historiografia como prática contemporânea do luto, por exemplo.
26

enquanto história, a feição humana da relação com Deus, com a revelação e com a Igreja.
Uma teologia da história está em cena, tão próxima quanto distante da filosofia da história.
O trabalho de historiador aparece em documentos, em artigos e em edições críticas
entre 1958-1963. Em que sentido é possível falar em teologia nesse trabalho de erudição e de
história das ideias sobre as doutrinas místicas de Pierre Favre (século XVI) e de Jean-Joseph
Surin (século XVII)? Há uma interpretação teológica que excede a operatividade histórica da
análise, ou seja, um acento sobre a efetividade espiritual cuja negligencia impossibilitaria
entender a natureza religiosa daquelas experiências históricas; um postulado teológico
funcionando em seus resultados, segundo o qual as diferenças históricas das experiências
cristãs em um tempo – fosse o de Favre, Surin ou Certeau – não comprometiam a
continuidade com o magistério da Igreja e com a tradição cristã; e um valor pedagógico das
doutrinas desses companheiros do século XVI e XVII para a efetividade espiritual em
experiências cristãs do século XX.
Esse tipo relação se mantém em trabalhos seguintes sobre o século XVII (René
d’Argenson, jansenismo, Surin, etc.), agora dando relevo à dinâmica teológica da renovação e
da fidelidade. Ela também marca presença em artigos na Christus sobre dilemas enfrentados
nas vivências espirituais de sua época (missão, educação cristã, conflitos entre católicos, etc.),
por volta de 1963 e 1966.
Nesse segundo caso, Certeau leva mais longe a consequência da noção moderna de
história em suas reflexões sobre a experiência cristã: a distância entre o passado da fé cristã e
as urgências do homem moderno torna-se um problema central nesses escritos. Por outro lado,
ameniza o impacto dessa consequência ao reiterar a harmonia entre a singularidade do
presente e a tradição do cristão. Essa tensão mais evidente entre modernidade e tradição,
assim como a solução harmônica dada a ela é o que chamarei tradição dilatada: a crítica não
rompe com o que é recebido do passado cristão, mas o amplia nas situações específicas do
presente – essa concepção adere a ideia moderna de progresso, mas não se restringe a ela.
Certeau explora seu olhar historiador em artigos e documentos teológicos datados de
1966 e 1967. Esse olhar o leva a problematizar, em nome do trabalho histórico, a situação
presente do cristão, do jesuíta e do crente. A particularidade dessa maneira historiadora de ver
está em destacar as determinações culturais marcadas em realidades religiosas de outras
épocas, além de sublinhar a produção de rupturas com a tradição em decorrência dessa
abertura histórica. Esse modo de ver lhe permite defender a abertura à cultura de um tempo,
mesmo em seus aspectos discordantes com o universo de sua religião, como qualidade
constituinte da vida cristã, jesuítica e crente.
27

A questão teológica central passa a ser como estar com o presente secular e com o
passado cristão, algo já encontrado em textos anteriores, mas sem supor uma continuidade
garantida entre eles. Certeau não poupará tentativas de oferecer uma resposta ao desafio.
Denomino gesto teológico os efeitos práticos do esforço investido em estabelecer uma
modalidade particularmente cristã, jesuítica ou crente em consequência das provocações
historiadoras.
Isso significou mudanças quanto às concepções predominantes em materiais da década
anterior: a harmonia promotora de uma tradição dilatada cede espaço a uma ruptura produtora
de uma tradição fraturada; o postulado teológico da continuidade prevalente sob as
diferenças históricas da espiritualidade é substituído pelo postulado histórico da
descontinuidade como ponto de partida para qualquer prática que se pretenda cristã; e a
teologia da história é suplantada por uma teologia na história.
Por volta de 1967-1968, a constatação de princípios de natureza religiosa em sua
prática erudita foi tomada por Certeau como motivação para suas primeiras reflexões teóricas
sobre a atividade do historiador. Desse empreendimento decorreu uma teoria heterológica da
história que paga tributo à “expiação” das implicações teológicas em seu trabalho histórico.
Essa história heterológica deixa traços em certos gestos teológicos praticados ou pensados em
seus textos. Nesse último caso, Certeau enfrenta a questão de uma teologia possível em um
mundo que rejeita o tipo de inteligibilidade sob a qual está fundado esse tipo de
conhecimento.
Proporei uma interpretação sobre a concepção heterológica de história, mas sem
perder de visto o tema central da tese. A leitura de materiais dedicados mais propriamente à
epistemologia da história logo abrirão caminho àqueles cuja tônica está na prática ou na teoria
de uma teologia plausível – textos dedicados exclusivamente a esses assuntos saem de cena
concomitantemente à sua ida para a Universidade da Califórnia em 1978. Com base nesses
escritos, outra forma de relação será proposta sob o signo de uma pensabilidade histórica da
teologia. As realizações dessa teologia pensável, reunida como a gestualidade teológica
certeauniana.
Após ter posto sob suspeita o modo como havia tentado se aproximar dos cristãos do
século XVII, e ter feito diversas ponderações teóricas sobre a prática do historiador, ainda
haveria lugar para a teologia em sua interpretação histórica dos místicos modernos? Não há
mais um postulado teológico supondo uma continuidade garantidora de identidade entre os
diferentes tempos históricos, mas a prática historiadora não deixa de exercer uma função
espiritual em Certeau: a escrita da história dos místicos funciona como o trabalho do luto da
28

possibilidade de um discurso de presença do passado e de Deus, crença que tinha moldado seu
fazer histórico e teológico anterior às suas reflexões epistemológicas sobre a atividade do
historiador e do teólogo. O luto historiográfico da teologia em sua abordagem da fábula
mística nos séculos XVI e XVII é a última forma de relação a ser vista.
Tendo apontado essas noções, passo a sua breve esquematização no interior dos
capítulos nos quais aparecem. Esta parte final da introdução permitirá visualizar como as
interpretações decorrentes do procedimento teórico estarão distribuídas, bem como relacioná-
las aos resultados dos outros dois tipos de procedimento.23 Será também a ocasião para
apresentar as generalizações permitidas pela conjunção dessas interpretações, ou seja, para
enunciar minha tese propriamente dita.
No primeiro capítulo, tratarei da teologia da história; das relações das reflexões de
Certeau com uma tradição que remonta a santo Agostinho, santo Inácio, Pierre Favre e Jean-
Joseph Surin; e de seu trabalho erudito e de história das ideias do século XVI/XVII, passando
pelos fatores teológicos funcionando nesses textos.
No segundo capítulo, essa interpretação será retomada pela ótica das relações tensas
entre teologia e história que atravessam a intelectualidade católica francesa na primeira
metade do século XX, especialmente no contexto das renovações da chamada nouvelle
théologie por nomes ligados ao seminário de Lyon. Lá Certeau foi aluno de Henri de Lubac
na segunda metade dos anos 1940, com ele mantendo uma relação espiritual e intelectual
bastante próxima. É onde me aproximo de Derrida, dou um aceno a Benjamin, e interpreto os
rastros de uma escritura certeauniana quando sua teologia era em linhas gerais lubaciana.
Esses dois capítulos estarão ocupados com o momento teológico da história na
trajetória intelectual de Michel de Certeau. Há nessa primeira década de sua atividade
intelectual um interesse pastoral e espiritual em sua maneira de se aproximar da história. Essa
posição religiosa marca presença em sua prática de reedição de manuscritos antigos e de
historiador das doutrinas místicas do século XVI e XVII. A teologia e a história estavam a
serviço de sua atividade como padre e como membro de uma ordem religiosa.
O terceiro capítulo ainda se deterá sobre esse primeiro momento, agora pela via de
uma transição entre 1963-1966. Com esse termo me refiro à constatação de novos elementos
23
Evito tomar as abordagens interna, externa e performativa como meras justaposições de tipos separados de
procedimentos e de apresentação de resultados interpretativos. Certamente, essas etapas têm aplicabilidade
alternada e consequências próprias no curso da investigação. Contudo, o desafio é produzir interlocuções nos
quais essas demarcações bem divididas sejam complexificadas mutuamente. É assim que, em alguns casos, os
planos de significação são retomados segundo a interpretação histórica e performativa; noutros, o
estabelecimento de noções, por meio do diálogo com autores como Derrida, é a própria maneira pela qual
elaboro essa tensão entre a constituição histórica dos planos/ideias/textos e suas linhas de fuga. Há ainda casos
em que a formulação de planos de significação sucede e aprofunda os resultados desses procedimentos.
29

em um dado conjunto, mas sem romper com suas concepções e compromissos distintivos.
Essas modificações indicam alguns aspectos que serão predominantes em uma forma de
relacionar teologia e história divergente da anterior, cuja emergência em 1966-1967 também
será tratada no terceiro capítulo.
Falar em transição como algo que está entre dois recortes distinguíveis não significa
buscar origens de algo posterior já conhecido ou supor um telos ligando a sucessão
cronológica em uma direção necessária. A pertinência desse tipo de compreensão está no fato
dela tornar tratáveis as diferenças encontradas em um arranjo de concepções estabelecido pela
interpretação, além de favorecer não tomar as concepções e os arranjos dessemelhantes como
isolados entre si.
Para ser mais preciso, novos termos, questões e argumentos contrastam com a teologia
da história ainda postulada. Elas evidenciavam um forte relevo da reinvenção do passado
cristão, mas seus efeitos disruptivos eram apaziguados em sua defesa da tradição enquanto
dilatação e em sua legitimação na autoridade do magistério da Igreja.
Contudo, a partir de 1966, Certeau leva mais longe as consequências da renovação da
tradição. Ao invés de uma continuidade interior no seio da qual se processam as mudanças
históricas da experiência cristã, encontramos a descontinuidade, a ruptura e a diferença como
pedras de toque na produção de seu discurso teológico. Esse é o enquadramento no qual é
possível falar em tradição fraturada e gesto teológico.
Segundo Joseph Moingt, certas reflexões de 1966 já traziam inscritas a tomada de
posição de Certeau sobre a teologia nos anos seguintes. 24 Moingt também evidenciou a
importância do ano de 1967 para a mudança na trajetória de Certeau.25 Se considerarmos
essas indicações em conjunto com o exame atento dos artigos em revistas religiosas e
documentos de Certeau, é possível determinar 1966 como o ano de emergência do segundo
momento da relação entre teologia e história, e não 1968 como é feito de costume para a
mudança mais geral em sua trajetória.26

24
MOINGT, Joseph. L’ailleurs de la théologie. In: GIARD, Luce (Dir.). Le voyage mystique: Michel de Certeau.
Paris: RSR/Cerf, 1988. p. 149. Antonio Eduardo Alonso também vê questões que vão caracterizar a reflexão de
Certeau nos anos seguintes sendo colocadas em 1966. ALONSO, Antonio E. Listening for the cry: Certeau
beyond strategies and tactics. Modern Theology, n. 33, v. 3, p. 369-394, July 2017, p. 383, nota 57. Disponível
em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1111/moth.12333. Acesso em: 21 jul. 2020.
25
MOINGT, Joseph. « Respecter les zones d’ombre qui décidément résistent ». Recherches de Science
Religieuse, t. 91, n. 4, p. 577-587, 2003, p. 578.
26
Dosse, por exemplo, começa a parte “entrada na modernidade” de sua biografia com o capítulo sobre o maio
de 1968. DOSSE, François. (2002) Michel de Certeau: le marcheur blessé. Paris: La Découverte, 2007. p. 157-
171; já Giard fala de um “tempo da agitação” entre 1968 e 1974. GIARD, Luce. Introducir a una lectura de
Michel de Certeau. In: SOTELO, Carmen R. (Coor.) Relecturas de Michel de Certeau. Ciudad de México:
Universidad Iberoamericana, 2006. p. 21.
30

Essa transição e emergência de um outro modo de relação entre teologia e história


serão repensadas historicamente no quarto capítulo. O contexto do concílio Vaticano II (1962-
1965) e a reorientação editorial da revista Christus sob a direção de François Roustang e
Michel de Certeau naquele momento é intimamente ligado à tensão crescente entre renovação
e fidelidade em seus textos.
A abertura formal da Igreja à modernidade favoreceu o novo projeto da revista de
espiritualidade inaciana. Passou a haver uma receptividade sem antecedentes editoriais às
exigências sociais e às novas ciências humanas. Esse redesenho acarretou consequências que
alguns viam como perigosas à doutrina da Igreja. Tais inovações editoriais eram elas próprias
condizentes com os novos desafios ao catolicismo na sociedade francesa.
Essa reorientação editorial foi autorizada pelos superiores, mas conforme ela
apresentava resultados em que se faziam sentir uma posição mais flexível quanto à doutrina
da Igreja e à continuidade da tradição inaciana, iam surgindo reprovações das autoridades
eclesiais. Essa posição tênue entre mudança autorizada e consequências reprovadas ressoam
na posição ambivalente de Certeau no que se refere à continuidade com o passado cristão.
Contudo, não parece suficiente afirmar que essa tensão entre os editores da Christus e
a posição da Ordem tenha afetado a produção dos textos de Certeau. Essa relação não deve ser
pensada de maneira estritamente documental, pois o que encontramos nessas esferas textuais e
contextuais não são exatamente a mesma coisa, embora o paralelo seja insuspeito.
A proposta de uma transição e de uma tradição dilatada é justamente o que permite
pensar o vínculo em termos de uma apreensão particular daquela realidade histórica. Essas
noções contemplam a recorrência de signos contestadores da tradição e mecanismos de
distensão dessa crítica. Essa ambiguidade textualiza o drama de um padre aberto às urgências
modernas que põem em questão a cultura religiosa à qual ele identifica sua fé.
A emergência do segundo momento coincide com sua solicitação de saída da Christus
para a Études, revista mensal da Companhia dedicada a temas gerais. Ele será intensamente
alimentado por suas viagens à América Latina e ao Brasil, bem como pelas experiências do
maio de 1968. Após esses eventos varrerem Paris, os textos de Certeau conhecerão uma outra
mudança em sua avaliação sobre a tradição, a Igreja e a Ordem.
Todavia, procuro problematizar o papel desse contexto histórico para a produção
intelectual de Certeau. Para esse tipo de aproximação, o esforço não é tanto o de estipular se
maio de 1968 teria sido ou não o corte fundamental em sua trajetória intelectual. Essa
abordagem tampouco se restringe a verificar os elementos daquela atmosfera contestadora que
teriam sido internalizados e fornecido o conteúdo que determinaria a posição de Certeau em
31

relação à cultura religiosa desde então. Essa problematização não questiona propriamente
importância daqueles eventos, algo que a leitura dos textos do jesuíta facilmente
desautorizaria. Ela tem em vista perguntar sobre o significado que o maio de 1968 teve na
produção intelectual de Certeau, para além dos recursos que aqueles eventos oferecem ao
enfoque estritamente histórico da investigação.
O desafio é percorrer a complexa interação entre diferentes contextos, tendo em vista
que mudanças acentuadas já vinham aparecendo em seus textos pelo menos desde 1966. Esse
caminho favorece acompanhar as vicissitudes das reformulações intelectuais diante dessas
diferentes ocasiões. Esse procedimento permite interpretar a experiência do maio de 1968
como um acontecimento decisivo que permitiu a Certeau redescobrir, sob outra perspectiva,
coisas com as quais já vinha se debatendo em suas atividades como sacerdote e intelectual
católico. Os textos de Certeau respondem aos problemas colocados por aqueles
acontecimentos ressignificando a crise de linguagem religiosa em crise de autoridade
religiosa. Isso que os textos de Certeau fazem religiosamente do maio de 1968 pode ser
pensado sob o prisma da fixierung cristã.
Naquele contexto de uma generalizada desinstitucionalização do crer, essa mudança
não deixará de impactar sua relação com as instituições religiosas. Essa consequência será
interpretada por meio da postura desinstitucionalizante de Certeau em relação à Igreja e à
Companhia – o que na representação dos textos do jesuíta não é o mesmo que anti-
institucional.
Nesse bojo, dar-se-á uma diferença cada vez maior entre seu pensamento e o de Henri
de Lubac. Para ler e estipular um possível significado espiritual dessa divergência de postura
religiosa dos dois padres frente aos imperativos de sua época, proporei outra aproximação
com a filosofia de Jacques Derrida. Interagindo sua compreensão de leitura como herança e o
modo certeauniano de pensar o ato de ler como braconnage, defendo uma herança espiritual
lubaciana em uma teologia certeauniana.
No quinto e último capítulo, o esforço será retomar, precisar e aprofundar esse
momento histórico da teologia em cena desde 1966. Esse recorte é caracterizado por uma
fratura da tradição em decorrência de seu olhar historiador sobre o passado; por uma
identificação cada vez menos evidente entre seu pertencimento eclesial e sua produção
histórica; pela problematização da motivação religiosa que inspirou seus estudos sobre os
místicos modernos, questionamento ao qual estão ligados seu diálogo com o estruturalismo e
sua contribuição “pós-estrutural” por meio de uma teoria heterológica da história; pela crítica
contundente ao modo da teologia proceder – modo esse que também havia sido o seu em
32

outro momento de sua trajetória; pelo enfrentamento do problema de uma teologia pensável
em sua historicidade; pela produção de uma gestualidade teológica em resposta a esse desafio;
e por uma performatividade espiritual sob a forma de um luto historiográfico da teologia, em
sua escrita da história da fábula mística nos séculos XVI e XVII.
Em suma, é possível relacionar teologia e história de diferentes maneiras no conjunto
de escritos de Michel de Certeau, indo da teologia da história ao luto historiográfico da
teologia a interpretação que proponho desses modos. Essas concepções são tanto dependentes
quanto irredutíveis às suas condições religiosas e não religiosas de produção, como é o caso
da escritura certeauniana em sua adesão ao projeto teológico lubaciano – para citar apenas
uma dentre as linhas de raciocínio a serem percorridas. Além disso, tais concepções podem
ser agrupadas temporalmente em um momento teológico da história (até 1966), uma transição
(1963-1966) e um momento histórico da teologia (1966 em diante) na trajetória intelectual de
Certeau.
Essa passagem entre dois momentos é peregrinação sem destino prévio e sem
possibilidade de retorno, perambular epistêmico de um pensamento que parte do terreno
seguro de um a priori teológico da história e chega às terras incertas de um a priori histórico
da teologia, acontecimento desconstrutivo marcado por uma ética da hospitalidade. Essa
feição epistêmica, desconstrutiva e ética da viagem certeauniana do pensamento são os
desdobramentos conclusivos que esta tese proporá ao final de sua jornada.
A produção intelectual de Michel de Certeau é densa, multifacetada e criativa. Estudar
a materialidade, a historicidade e a inventividade de seus textos requer assumir a necessidade
e a dificuldade de uma intervenção mútua entre o ato de explicar e de interpretar. Eis o preço
que esta tese aceita pagar para poder ler Michel de Certeau, hoje. Que a leitora e o leitor
possam encontrar, nessa empreitada, algo proveitoso às suas próprias urgências e riscos.
33

Capítulo I
O momento teológico da história
O termo “primeiro” é impreciso quando usado para definir um momento específico de
determinada trajetória intelectual. Ele denotaria “juventude”, termo que a filosofia por vezes
recorre para designar um período contraposto à maturidade das ideias de um autor? Ou
significaria um sistema abandonado em prol de outro?
Alguns exemplos são ilustrativos dessa imprecisão. Acerca de Platão, costuma-se falar
em “diálogos de juventude”, “de maturidade” e “de velhice”. No caso de Aristóteles, haveria
um primeiro momento, durante a juventude, de afastamento em relação a Platão, e outro de
aproximação, referente ao período maduro donde emergem os textos que compõem a
Metafísica. Outro caso bastante conhecido é a divisão entre o “primeiro” e o “segundo”
Wittgenstein. Em outras palavras, a distinção entre duas filosofias contrastantes, a do
Tractatus logico-philosophicus e a das Investigações filosóficas.1
Quando se trata do percurso intelectual de Michel de Certeau, o termo “primeiro”
costuma aludir a textos que vão de fins da década de 1940 até fins da década de 1960. Esses
escritos foram produzidos em consonância com o ambiente religioso da Companhia de Jesus,
instituição à qual Certeau se juntara em 1950. Colocado nesses termos, “primeiro” se
distinguiria de “clássico”, ou seja, do Certeau das obras mais conhecidas dos anos 1970 e
1980, produzidas com relativo afastamento do universo cultural da Companhia.2
Luce Giard pensa a questão de outra maneira. Segundo ela, há três momentos no
itinerário da produção certeauniana. O primeiro momento, “tempo dos alicerces”, é dedicado
à história da espiritualidade e da Companhia de Jesus. Um segundo momento emerge em duas
frentes: por meio de seu trabalho histórico, toma consciência da distância entre passado e
presente cristão; com os textos sobre os acontecimentos que invadem as ruas de Paris em
maio de 1968, ganha projeção pública para além do círculo de historiadores da religião. Esse

1
Sobre tais interpretações cronológicas acerca dos filósofos citados, ver respectivamente GOLDSCHMIDT,
Victor. Questions platoniciennes. Paris: Vrin, 1970; WIANS, William (org.). Aristotle’s philosophical
development: problems and prospects. Rowman & Littlefield publishers: Lanham, 1996; FANN, K. T.
Wittgenstein’s conception of Philofophy. Berkeley/Los Angeles: University of California Press, 1971.
2
Andrés Freijomil foi o primeiro a usar os termos “primeiro” e “clássico” para falar da trajetória intelectual de
Michel de Certeau. Para Freijomil, o “primeiro” Certeau corresponderia ao período de 1947 a 1970, enquanto
para Francisco Bellosillo a inflexão teria ocorrido em torno de 1968. Cf. FREIJOMIL, Andrés G. Les pratiques
de la lecture chez Michel de Certeau: la matérialité de l’œuvre. Les Cahiers du Centre de Recherches
Historiques, n. 44, p. 1-20, 2009. Disponível em: https://journals.openedition.org/ccrh/3533. Acesso em : 25 abr.
2020. Id. Premier Certeau. À la recherche du “premier” Michel de Certeau. Les enjeux de ses premiers textes
publiés pendant les années lyonnaises (1947-1950). Rivista di Storia e Letteratura Religiosa, v. XLVIII, n. 1, p.
117-154, 2012. Disponível em: http://www.culturahistorica.es/freijomil/recherche_certeau.pdf. Acesso em: 25
abr. 2020. BELLOSILLO, Francisco. El “primer” Certeau, entre continuidades y transformaciones. La Torre del
Virrey, v. 17, n. 1, p. 13-22, 2015. Disponível em: https://cutt.ly/LbAdkT8. Acesso em: 25 abr 2020.
34

“tempo da agitação” dá lugar ao “tempo da plenitude” a partir de 1975, época em que vêm ao
público A escrita da história, A invenção do cotidiano e A fábula mística, suas três grandes
obras.3
Termos como “primeiro”, “clássico”, “tempo dos alicerces”, “tempo da agitação” e
“tempo da plenitude” colocam em evidência o caráter heterogêneo dos escritos de Michel de
Certeau. Jeremy Ahearne já havia salientado essa característica no primeiro trabalho
monográfico dedicado ao jesuíta francês. Segundo Ahearne, não há nenhum edifício doutrinal
sistemático em Certeau, prevalecendo uma estratégia intelectual que consiste no “esforço de
discernir e construir um espaço estético e ético para formas particulares de interrupção”. 4
Ian Buchanan, noutra perspectiva, expressa a necessidade de pensar quais elementos
perpassam essas interrupções. Para ele, o fator usado por Ahearne para fragmentar a obra de
Certeau – a inexistência de um edifício sistemático – é na verdade a consequência do
empenho do jesuíta em não formar uma narrativa mestra, uma totalidade explicativa.
Contudo,
negar a existência de uma tese abrangente que perpasse a totalidade de uma
carreira, chegando ao extremo de ignorar a consistência do método e a
durabilidade do substrato epistemológico, é somente outra maneira de evitar
a questão da religiosidade de Certeau.5
Buchanan leva essas diferenças em consideração sem silenciar a permanência da
religiosidade em Certeau. O comentador interpretará as transformações no pensamento de
Certeau como depoimento da produção imanente – no sentido do plano de imanência
deleuziano – e não transcendental de seus conceitos. A exceção será o termo “Deus”, noção
transcendental que a religiosidade de Certeau lhe exigirá continuar postulando, mesmo a partir
dos textos da década de 1970.6

3
GIARD, Luce. Introducir a una lectura de Michel de Certeau. In: SOTELO, Carmen R. (Coor.) Relecturas de
Michel de Certeau. Ciudad de México: Universidad Iberoamericana, 2006. p. 21.
4
“Certeau has left us, in the words of Jean Louis Schefer, with ‘the image of an open work’. He was not
interested in producing a systematic doctrinal edifice, nor did he set himself up as the guardian of an erudite
preserve […] his intellectual strategy consisted precisely in an endeavor to discern and to make ethical and
aesthetic space for particular forms of interruption. His work was conceived as an ongoing response to a series
of appeals and solicitations addressed to him directly or indirectly by others”. AHEARNE, Jeremy. Michel de
Certeau: interpretation and its other. Stanford: Stanford University Press, 1995. p. 3. Todas as traduções são
nossas.
5
“[...] denying the existence of an overarching thesis spanning the entirety of a career, to the extreme even of
ignoring a consistency of method and a durability of epistemological substrate, is really just another way of
avoiding the issue of de Certeau’s religiosity”. BUCHANAN, Ian. Michel de Certeau: cultural theorist.
London/Thousand Oaks/New Delhi: SAGE Publications, 2000. p. 12.
6
Luce Giard também questiona esse tipo de separação onde não restariam vínculos significativos entre
momentos distinguíveis na obra, uma vez que ela defende haver unidade e coerência de pensamento nos
principais livros de Certeau, respondidos sucessivamente de um terreno ao outro por intermédio de diferentes
objetos, disciplinas e regimes de saber. A Invenção do cotidiano, por exemplo, escrito no “tempo da plenitude”, é
inspirado pela experiência social do maio de 1968 e pela reflexão aí aberta sobre o mundo contemporâneo,
35

Dessas considerações, é particularmente importante levar em conta a possível


distinção entre um momento mais e outro menos identificado com a Companhia de Jesus.
Além do mais, nos interessa a permanência da religiosidade como fator relevante na produção
de Certeau em tais momentos. Gostaria de dar sequência a essas afirmações pela via
específica da relação entre a teologia e a história. O próprio Certeau declarou a intimidade
entre esses domínios: “Não posso negar que invisto minha fé em minha análise da história,
nem ‘esquecer’ ficticiamente que sou teólogo”.7
Segundo Claude Geffré, o trabalho de Certeau não constitui uma teologia
propriamente dita. Porém, suas provocações ao discurso teológico são indispensáveis aos
teólogos, tendo em vista o esforço dispensado por Certeau em tornar o cristianismo pensável
numa sociedade que não é mais religiosa.8
Qual seria o repertório essencial ao teólogo, ausente em Michel de Certeau? Segundo
Pierre Gisel, o termo “teologia” pode fazer referência à determinada doutrina, ou seja, ao
exercício de inteligência que resulta em visões do mundo e do humano segundo sua relação
com Deus (doutrina cristológica, sacramentaria, eclesiológica, escatológica, etc). Certeau não
se propõe a trabalhar no plano doutrinal, seja de forma corretiva ou por produção própria,
afirma Gisel.9
“Teologia” também remente a um tipo de interrogação particular sobre o absoluto,
cambiante ao longo da história do ocidente e presente nas várias tarefas da reflexão cristã, seja

datadas do “tempo da agitação”. A existência desses elos também foi defendida em outros comentadores, dentre
eles Peter Burke, Andrés Freijomil e Francisco Bellosillo. Cf. GIARD, Luce. Introducir a una lectura de Michel
de Certeau. In: SOTELO, Carmen R. (Coor.) Relecturas de Michel de Certeau. Ciudad de México: Universidad
Iberoamericana, 2006. p. 21-22; BURKE, Peter. The art of re-interpretation: Michel de Certeau. A Journal of
Social and Political Theory, n. 100, Dec. 2002, p. 27-37. Disponível em: https://cutt.ly/8bAoJSb. Acesso em: 25
abr. 2020; Id. Michel de Certeau e a arte do reemprego. In: O historiador como colunista: ensaios para a Folha.
Tradução de Roberto Muggiati. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. p. 76-79; FREIJOMIL, Andrés G.
Les pratiques de la lecture chez Michel de Certeau: la matérialité de l’œuvre. Les Cahiers du Centre de
Recherches Historiques, n. 44, p. 1-20, 2009. Disponível em: https://journals.openedition.org/ccrh/3533. Acesso
em : 25 abr. 2020; Id. La práctica de la lectura en la obra de Michel de Certeau. Archivo, documento y lectura.
Historia y Grafía, n. 38, p. 209-23, 2012; Disponível em: http://www.scielo.org.mx/pdf/hg/n38/n38a7.pdf.
Acesso em: 25 abr. 2020; Id. Entre la rapsodia y el recueil. Aproximaciones teóricas sobre las prácticas de
reutilización textual en Michel de Certeau. Historia y Grafía, n. 40, p. 43-70, 2013. Disponível em:
http://www.scielo.org.mx/pdf/hg/n40/n40a3.pdf. Acesso em: 25 abr. 2020; BELLOSILLO, Francisco. El
“primer” Certeau, entre continuidades y transformaciones. La Torre del Virrey, v. 17, n. 1, p. 13-22, 2015.
Disponível em: https://cutt.ly/LbAdkT8 Acesso em: 25 abr 2020.
7
“Je ne saurais dénier que j’investis ma foi dans l’analyse que je fais de l’histoire, ni “oublier” fictivement que
je suis théologien”. CERTEAU, Michel de. Faire de l’histoire. Recherches de Science Religieuse, v. 58, n. 4, p.
481-520, 1970, p. 515. A passagem aparece na sessão final do artigo, intitulada Vers une pratique théologique:
la rupture instauratrice. p. 515-520. A sessão foi suprimida na republicação do artigo, em 1975, como primeiro
capítulo do livro L’écriture de l’histoire.
8
GEFFRÉ, Claude. “Le non-lieu de la théologie”. In: GEFFRÉ, Claude (Dir.). Michel de Certeau ou la
différence chrétienne. Paris: Les Éditions du Cerf, 1991. p. 157-180.
9
GISEL, Pierre. La pertinence théologique de la pensée de Michel de Certeau. L’indiscipline de
l’interdisciplinarité. Teología y Vida, v. 57, n. 2, p. 257-280, 2016, p. 260. Disponível em: https://cutt.ly/1j1xIlz.
Acesso em: 25 abr. 2020.
36

em sua vertente especulativa, dogmática, fundamental ou outra. Também essas tarefas


teológicas não seriam encontradas em Certeau, quem teria investido forças num terreno de
reflexão mais deslocado da tradição e de suas instituições.10
Todavia, chegaríamos a outra conclusão se levássemos em consideração a maior
intimidade de sua produção com o ambiente religioso da Companhia em um primeiro
momento de sua trajetória? A resposta é imperiosamente positiva ao estudarmos suas
primeiras publicações e seus papéis nos anos 1950 e início dos anos 1960. Vejamos em que
sentidos será possível falar em “teologia” nesses materiais.
A palavra “teologia” tem uma longa história que remonta à poesia e à filosofia gregas.
O termo era usado para fazer menção à narrativa sobre os deuses, sendo o título de teólogo
atribuído a Homero ou Hesíodo. Em Platão e Aristóteles a teologia (θεολογία) mantém o
significado de narrativa mítica, mas também ganha conotação filosófica. O Estagirita usou o
vocábulo “teológica” (θεολογική) como uma das muitas designações possíveis para o tipo
específico de ciência que ele buscava definir nos livros reunidos séculos depois sob o título de
Metafísica.11
O uso propriamente cristão do termo surge com os padres apologistas do segundo
século. Dali em diante, o seu significado irá oscilar entre o ensino cristão sobre Deus, a
discussão sobre a divindade de Cristo e o debate sobre a Trindade, além de ocasionalmente
referir-se à doutrina da Igreja. Apenas com o surgimento das universidades europeias e com
os escritos escolásticos o termo ganhará maior sistematização, definindo um campo específico
de estudo e distinguindo diferentes tipos de teologia. No mundo moderno, essa especialização
e distinção de ramos teológicos se acentuarão.12
Atualmente, as principais disciplinas teológicas são a teologia fundamental, a teologia
sistemática ou dogmática, a teologia bíblica, a história da Igreja, o direito canônico, a teologia
moral, a liturgia e a espiritualidade.13 Essa última, como veremos, ocupará um lugar destacado
nos escritos de Michel de Certeau.

10
GISEL, Pierre. La pertinence théologique de la pensée de Michel de Certeau. L’indiscipline de
l’interdisciplinarité. Teología y Vida, v. 57, n. 2, p. 257-280, 2016, p. 261.
11
FERGUSON, S; WRIGHT, D; PACKER, J. Novo dicionário de teologia. São Paulo: Agnos, 2009. p. 961;
PETERS, F. E. (1967) Termos filosóficos gregos: um léxico histórico. Tradução de Beatriz Rodrigues Barbosa.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1983. p. 228; CECILIO, Guilherme. Contribuições para a questão da
filosofia primeira na Metafísica de Aristóteles. Synesis, v. 7, n. 2, p. 32-41, jul./dez. 2015, p. 33. Disponível em:
https://cutt.ly/ybSHfk6. Acesso em: 11 maio 2021.
12
FERGUSON, op. cit., p. 961-962.
13
LIBÂNIO, João Batista; MURAD, Afonso. (1997) Introdução à teologia: perfil, enfoques, tarefas. São Paulo:
Loyola, 2007. p. 212-237.
37

Podemos ainda pensar a teologia pelo tipo de conhecimento que a caracteriza:


sabedoria, atividade racional, ciência humana, etc.; por seus métodos: a exegese alegórica e
gramatical dos padres gregos e latinos, a via negativa de Pseudo-Dionísio, o método analógico
em Tomás de Aquino, o método dedutivo na escolástica, etc.; pelo tipo de tarefa intelectual a
que se dedica: especulativa, positiva, prática, narrativa, etc.; pela perspectiva específica
adotada: teologia da libertação, teologia feminista, teologia negra, teologia decolonial, etc; ou
pelo nível de sua produção: teologia popular, teologia pastoral e teologia acadêmica.14 Esse
nível pastoral também fornecerá uma categoria importante para falar em teologia nos textos
de Michel de Certeau.
O nível pastoral da teologia está na reflexão dos padres e de outros agentes pastorais
com base em situações existências concretas na qual mulheres e homens vivem sua fé. Trata-
se da retomada, interpretação e aprofundamento da tradição em função da situação dos crentes
no mundo onde vivem. A teologia pastoral é o pensar minimamente sistematizado sobre a fé
no diálogo com pessoas reais em suas realidades sociais e urgências humanas. Ela se apropria
da teologia sistematiza para buscar compreender os desafios que se apresentam à
evangelização em seus diversos espaços eclesiais. A fidelidade à revelação, o recurso à
tradição e algum grau de elaboração teórica marcam essa face prática da teologia.15
Em nosso caso de estudo, recorro à categoria para designar uma teologia na pastoral,
isto é, a operacionalização teológica inerente à ação eclesial em documentos de Michel de
Certeau. Com ela, faço referência à inteleção de aspectos recebidos da tradição e de situações
particulares do homem moderno, encontrada em suas homilias, participações em retiros da
Companhia de Jesus, conferências espirituais e anotações sobre o exercício da teologia. Esse
aspecto teológico dos textos tem por finalidade a própria formação do sacerdote e a sua
atuação como padre em situações eclesiais – a celebração religiosa, o ministério de
sacramentos como o casamento, os retiros e os Exercícios espirituais, a formação de outros
padres, etc.
Outro aspecto relevante mencionado acima foi o da teologia espiritual. O termo
“espiritualidade” começou a ganhar popularidade em meados do século XX. Isso coincidiu
com o predomínio de um enfoque mais existencial, colocando em pauta a relação com o
14
Essa tripartição é cara à teologia da libertação, como podemos ver em: BOFF, Clodovis; BOFF, Leonardo.
(1985) Como fazer teologia da libertação. Petrópolis: Vozes, 2001. p. 25-40.
15
LIBÂNIO, João Batista; MURAD, Afonso. (1997) Introdução à teologia: perfil, enfoques, tarefas. São Paulo:
Loyola, 2007. p. 202-203. Segundo Libânio e Murad, o resultado desse tipo de trabalho é predominantemente
oral, embora sejam produzidos alguns textos breves e livretos de formação. Ibid., p. 203. A teologia pastoral é
também uma disciplina universitária que tem como um de seus objetivos tornar possível uma ação pastoral mais
reflexiva e melhor fundamentada. RAMOS, Julio A. Teología pastoral. Madrid: Biblioteca de Autores
Cristianos, 1995. p. 14.
38

absoluto e a busca pela perfeição a partir da vida humana em todos os seus aspectos
próprios.16
A teologia espiritual tem por objeto o relacionamento com Deus por intermédio dos
sentimentos, da consciência e das escolhas humanas, associando a vida interior à elevação
mística. Ela é o ramo “que estuda o desenvolvimento progressivo da vida humana, quer dizer,
da vida da graça animada pelo impulso dinâmico até alcançar a santidade perfeita, sob a ação
vivificadora do Espírito Santo”.17 Em outros termos, é “a parte da teologia que define a
natureza da vida sobrenatural, formula diretrizes para seu crescimento e desenvolvimento e
explica o processo pelo qual as almas avançam do início da vida espiritual à sua plena
perfeição”.18
A espiritualidade tem centralidade nos documentos e nos primeiros artigos em revistas
religiosas como o Bulletin du Séminaire Universitaire de Lyon e a Christus. Sua importância
nesses dois tipos de materiais mostra como ela é o tema central tanto em sua atividade
pastoral quanto em seu trabalho intelectual naqueles anos 1950. O lugar ocupado pelo tema é
reflexo da própria natureza de seu pertencimento à Companhia, cuja formação e atuação eram
estritamente ligadas ao conhecimento e à vivência da espiritualidade inaciana. Sua
participação na editoria da revista Christus também o colocava em intenso contato com esse
assunto, uma vez que a revista era consagrada ao tema.
A esta altura estamos em condições de chegar à nossa questão.
A relação da pastoral com os problemas reais da vida humana colocam o homem
moderno no cerne das preocupações teológicas de Certeau. É prescrutando a sensibilidade de
seu tempo que o campo semântico do conceito moderno de história adentra à linguagem
teológica em seus escritos. É compartilhando as angústias de sua época que a historicidade
encontra seu lugar no modo como ele expressa a realização humana da fé.
Pode-se dizer o mesmo da relevância da espiritualidade em seu trabalho enquanto
sacerdote e intelectual católico. Como ressaltou Jon Sobrino, a aproximação da teologia e da
espiritualidade favorece o encontro pessoal do homem com o mistério, mas também demanda
uma “teologia da história” que permita lidar com os tempos de crise nos quais as coesões

16
COSTA, Alfredo S. Teologia e espiritualidade: em busca de uma colaboração recíproca. Perspectiva
Teológica, v. 38, n. 106, p. 323-348, 2006, p. 330. Disponível em: https://cutt.ly/ZbDnk7h. Acesso em: 11 maio
2021.
17
B. DELLA TRINITÀ apud LIBÂNIO, João Batista; MURAD, Afonso. (1997) Introdução à teologia: perfil,
enfoques, tarefas. São Paulo: Loyola, 2007. p. 232.
18
“Spiritual theology is that part of theology that [...] defines the nature of the supernatural life, formulates
directives for its growth and development, and explains the process by which souls advance from the beginning
of the spiritual life to its full perfection”. AUMANN, Jordan. Spiritual theology. London: Sheed & Ward, 1984.
p. 22.
39

antes garantidas se desagregam: “a teologia da história deve oferecer e exigir ao homem o que
fazer com essa história, de modo que a práxis não seja apenas uma exigência ética, mas
teologal: fazer a história segundo Deus”.19
Naquele mundo onde a cultura religiosa já não possuíam nenhum vínculo orgânico
com a sociedade, um mundo ainda assombrado pela lembrança de uma guerra mundial
devastadora há pouco terminada, um mundo onde intelectuais católicos e ateus disputavam o
destino do homem, Certeau não deixaria de levar em conta a história em seu trabalho pastoral
e intelectual sobre as vivências humanas do fenômeno espiritual.
Entretanto, não há uma reflexão estritamente devotada ao tema da história em seus
documentos pastorais e em seus artigos sobre questões espirituais. É possível localizar
questões concernentes à compreensão moderna de história, a utilização de exemplos
históricos, menções à história humana, mas tudo isso de forma dispersa. A finalidade desses
escritos é o desenvolvimento prático e intelectual da vida cristã frente às intempéries
humanas. Sua interpretação é fundamentalmente teológica, inclusive no que diz respeito ao
conteúdo histórico contíguo ao objetivo desse material.
Portanto, a atuação teológica antecede seu interesse pela história. O membro de uma
sociedade religiosa e o teólogo de formação vem antes do historiador das ideias espirituais –
embora algum conhecimento do trabalho histórico obviamente estivesse suposto em sua
formação teológica. Mesmo sua imersão na pesquisa histórica sobre as origens espirituais da
Companhia é decorrente de sua obediência à demanda feita pela instituição após sua
ordenação. Padre e intelectual jesuíta, sacerdote designado para a equipe da revista de
espiritualidade inaciana Christus, historiador por “encomenda” da Companhia, em suma,
Michel de Certeau s.j. Eis apenas alguns dados históricos que já nos permitiriam falar de um
primeiro momento teológico em sua trajetória.
Contudo, o que nos autoriza falar mais precisamente de um momento teológico da
história encontra-se nos próprios textos estudados. Uma tradição que remonta a santo
Agostinho e santo Inácio recebe acolhida em sua maneira de ler a relação entre fidelidade,
graça e vontade. Esse modo de entender a fidelidade vai reaparecendo em suas pregações,
retiros e conferências espirituais, associando a prática espiritual a noções caras à semântica
moderna do conceito de história. Esses termos são manejados e interpretados em função da

19
“[...] la teología de la historia debe ofrecer y exigir al hombre qué hacer con esa historia, de modo que la
praxis no sea sólo una exigencia ética, sino teologal: hacer la historia según Dios”. SOBRINO, Jon. Liberación
con espíritu: apuntes para una nueva espiritualidad. Santander: Sal Terrae, 1985. p. 90.
40

revelação cristã, permitindo concluir a existência de uma teologia da história em seus


documentos pastorais.
Essa maneira teológica de pensar a fidelidade passa também pelo tema da experiência
humana, como pode ser visto em suas anotações e em seus textos publicados na segunda
metade dos anos 1950. Mais uma vez a tradição agostiniana e inaciana marcam presença,
agora em sua maneira de compreender as durações próprias da face humana da vivência
espiritual. Essas primeiras elucubrações publicadas sobre a experiência religiosa se mostram
em sintonia com as diretrizes teológicas de seu trabalho pastoral, implicando uma concepção
providencial, cristológica, escatológica e eclesiológica da história.
Por volta da mesma época, Certeau iniciava sua formação voltada à pesquisa histórica
sobre figuras jesuítas de relevo do século XVI e XVII. Sua historiografia no início dos anos
1960 será marcada por três características principais: erudição no trato com os documentos,
abordagem histórica das ideias e a incidência de uma elaboração teológica da história. Esta
remete a seu pertencimento à Companhia de Jesus e a seu apostolado, solo religioso no qual
emergem suas primeiras pesquisas históricas.

1.1 Um discípulo fiel à tradição

A tradição cristã encontra amparo nos traços que o tema da obediência e da fidelidade
adquire em algumas anotações de Certeau. A centralidade da meditação teológica sobre a
obediência já tinha lugar de destaque em seus manuscritos nos tempos de sua formação na
Companhia de Jesus, o que em nada surpreende, visto ser um dos assuntos tratados nos
Exercícios espirituais de Inácio de Loyola, obra central no processo vivido por quem deseja
tornar-se jesuíta.
Os Exercícios espirituais e as Constituições da Companhia de Jesus são as obras
mestras da espiritualidade Inaciana. Os critérios fundamentais dos Exercícios formam a
espinha dorsal das Constituições. O primeiro visa proporcionar meios para a renovação
espiritual do indivíduo; ao segundo cabe formalizar regras práticas para a ação dos membros
da companhia, fórmulas concretas que buscam dotá-los de meios adequados para desenvolver
a renovação espiritual que lhes é proposta.
Dessa maneira, elas são recursos complementares na formação dos jesuítas, junto da
autobiografia, do diário espiritual e do epistolário de Inácio de Loyola, além de outros textos
não assinados pelo seu fundador, como o Ratio Studiorum, cuja versão definitiva de 1559,
41

com suas quase seiscentas regras, forneceu um paradigma importante para a pedagogia
jesuítica até pelo menos o início do século XX.20
Michel de Certeau iniciou seus estudos universitários em 1943. Licenciou-se em letras
clássicas e filosofia na Universidade de Grenoble e em filosofia escolástica no Seminário
Saint-Sulpice em Issy-les-Moulineaux. Ele prosseguiu sua formação no Seminário teológico
de Lyon a partir de 1947, recebeu a tonsura em 194821 e foi ordenado subdiácono em 1949.
Após concluir seus estudos em teologia nas colinas lyonenses de Fourvière em meados de
1950, iniciou sua formação junto à Companhia de Jesus.22
A formação da Companhia de Jesus iniciava com uma primeira “prova” vivenciada
durante um mês, ocasião na qual os ingressantes no modo de vida inaciano seguiam um rígido
programa de discernimento e oração guiado pelos Exercícios espirituais.23
Outras três provas de igual período se seguiam: uma dedicada ao trabalho de caridade
em alguma instituição hospitalar; a seguinte, numa comunidade apostólica, geralmente em
áreas pobres; por último, uma peregrinação com poucos recursos, tendo por objetivo o
treinamento da fé na providência divina para satisfação das necessidades de alimentação e
abrigo.
Concluídas as provas, passava-se à rotina austera de atividades de oração, eucaristia,
estudos do latim, da Bíblia, da Prática da perfeição cristã de Afonso Rodriguez e dos textos
da espiritualidade inaciana.
Terminados esses dois primeiros anos correspondentes ao noviciado, mais dois anos
de juniorado eram percorridos. Essa etapa contemplava o estudo da língua e literaturas latina,
grega e francesa, cursados em um ano por Certeau em decorrência de sua formação prévia em
letras clássicas.
Após esses três primeiros anos de formação ocorridos no colégio jesuíta de Saint-
Michel de Laval, no fim de 195324 ele seguiu para Les Fontaines, castelo situado em

20
Cf. IPARRAGUIRRE, Ignácio. Introduccion: Constituciones y Ejercicios. In: DALMASES, Candido de. (Ed.)
Obras completas de San Ignacio de Loyola. Transcripción, introducciones y notas de Ignácio Iparraguirre.
Madrid: La Editorial Católica, 1963. p. 388-391; CASIMIRO, A. P. B. S. Elementos fundamentais da pedagogia
jesuítica. Educação em Questão, v. 20, n.6, p. 107-129, 2004, sobretudo as páginas 121 a 125. Disponível em:
https://periodicos.ufrn.br/educacaoemquestao/article/view/8467/6110. Acesso em: 10 ago. 2018.
21
Cerimonia por meio da qual aquele que opta pelo sacerdócio é oficialmente introduzido na vida clerical.
22
As informações biográficas apresentadas a seguir sobre a formação religiosa de Michel de Certeau tomam por
base DOSSE, François. (2002) Michel de Certeau: le marcheur blessé. Paris: La Découverte, 2007. p. 29-73.
23
Como notou Dominique Salin, não há indícios entre os documentos disponíveis nos Arquivos Jesuítas que
permitam afirmar que Certeau tenha vivenciado os Exercícios espirituais em sua forma canônica de trinta dias
ou em sua forma reduzida de oito dias. De todo modo, é inegável que Certeau adotou a interpretação dos
Exercícios que se impunha à época, a de uma “mística da liberdade”. SALIN, Dominique. Michel de Certeau et
les exercices spirituels d’Ignace de Loyola. Revue d'Histoire de l'Eglise de France, t. 104, p. 293-306, 2018, p.
297-298.
42

Chantilly, onde ocorria a formação filosófica da Companhia de Jesus por mais dois anos. Seus
estudos em filosofia foram igualmente encurtados, durando somente o ano letivo de 1953-
1954.
Como regia a tradição da Companhia, Certeau passou um ano envolvido com o
magistério. Ele foi enviado ao colégio Saint-François-Xavier em Vannes para atuar como
professor de filosofia no ano letivo de 1954-1955.
No ano seguinte, 1955-1956, foi para Lyon concluir sua formação teológica. Seus
estudos anteriores em Lyon permitiram-no finalizá-la em um ano. Desse modo, em 1956, após
seis anos desde que iniciara sua jornada junto à ordem, obtém licenciatura em teologia, é
ordenado e celebra sua primeira missa.
Contudo, sua formação como jesuíta ainda não estava oficialmente completada. Era
preciso uma última provação. Após o longo percurso de formação e mais três anos de atuação
apostólica, era necessário voltar aos pilares da vida inaciana, espécie de segundo noviciado.
Novamente dedicam-se 30 dias à prática dos Exercícios espirituais, seguidos por mais alguns
meses de estudo onde as bases da espiritualidade inaciana são revisitadas, em conjunto com a
meditação interior, reencontro com o próprio caminho percorrido, suas nuances, aquisições e
fragilidades. Certeau cumpre essa última etapa em Saint-Martin-d’Ablois, onde vive por um
ano entre 1959 e 1960.
Como é possível notar, os Exercícios funcionam como manual de orientação espiritual
na formação dos quadros da Companhia de Jesus. Ele orienta tanto o ingresso quanto o
encerramento desse processo, contendo indicações para o aprimoramento espiritual. Esse
objetivo é alcançado pela ordenação dos afetos e pela abertura da vida à vontade divina, como
é possível ver na definição inaciana conferida ao termo que dá nome à obra:
Por este nome, exercícios espirituais, entende-se todo o modo de examinar a
consciência, de meditar, de contemplar, de orar vocal e mentalmente, e de
outras operações espirituais, conforme adiante se dirá. Porque, assim como
passear, caminhar e correr são exercícios corporais, da mesma maneira todo
o modo de preparar e dispor a alma, para tirar de si todas as afeições
desordenadas e, depois de tiradas, buscar e achar a vontade divina na
disposição da sua vida para a salvação da alma, chamam-se exercícios
espirituais.25

24
Vale lembrar que o período letivo de estudos na França começa em setembro, não no início do ano como no
Brasil.
25
“[...] por este nombre, exercicios spirituales, se entiende todo modo de examinar la consciencia, de meditar,
de contemplar, de orar vocal y mental, y de otras spirituales operaciones, según que adelante se dirá. Porque
así como el pasear, caminar y correr son exercicios corporales, por la mesma manera todo modo de preparar y
disponer el ánima, para quitar de sí todas las affecciones desordenadas, y después de quitadas para buscar y
hallar la voluntad divina en la disposición de su vida para la salud del ánima, se llaman exercicios spirituales”.
LOYOLA, Ignacio de. Ejercicios espirituales. In: DALMASES, Candido de. (Ed.) Obras completas de San
43

Orientado por um diretor espiritual, praticando exercícios distribuídos por quatro


semanas, o exercitante experimenta a renovação espiritual treinando sua habilidade em
discernir, aceitar e viver concretamente a vontade de Deus em sua vida. Essa tomada de
consciência e resposta à eleição divina requer um ato de liberdade interior:
Ao que recebe os exercícios, muito aproveita entrar neles com grande ânimo
e liberalidade para com o seu Criador e Senhor, oferecendo-lhe todo o seu
querer e liberdade, para que sua divina majestade, assim de sua pessoa como
de tudo o que tem, se sirva conforme a sua santíssima vontade. 26
Desse modo, renunciar aos afetos desordenados significa ser livre para discernir,
aceitar e escolher o chamado divino. Significa prestar indiferença a todas as coisas criadas,
mesmo as não proibidas, oferecidas ao livre arbítrio, de tal maneira que não se queira “mais
saúde que doença, riqueza que pobreza, honra que desonra, vida longa que vida curta”, mas
somente desejar e escolher o que mais conduz à sua própria finalidade. 27 Desse jeito,
liberdade e obediência não são antônimos. Ser livre é ser livre para obedecer.
A transcrição e o comentário de um trecho dos Exercícios espirituais, datado de
setembro de 1953, escritos por Michel de Certeau quando ainda era aluno do juniorado, já
sinalizavam para a importância que a compreensão inaciana da obediência adquiriria em suas
reflexões. Em torno do parágrafo quarenta e oito dos Exercícios espirituais, sobre a
“consideração e contemplação do pecado”, ele transcreve o seguinte trecho:
1 - “pedir a Deus nosso Senhor o que quero e desejo”
2 - “o pedido deve ser conforme a matéria proposta”
(Exercícios § 48)28
Em seguida, comenta o seguinte:
Peço o que quero.
Peço o que se impõe.
E isso é, no pensamento de Santo Inácio, um mesmo objeto, a mesma graça.
A atitude da oração é a da obediência. 29

Ignacio de Loyola. Transcripción, introducciones y notas de Ignácio Iparraguirre. Madrid: La Editorial Católica,
1963. p. 196, § 1.
26
“Al que rescibe los exercicios, mucho aprovecha entrar en ellos con grande ánimo y liberalidad con su
Criador y Señor, ofreciéndole todo su querer y libertad, para que su divina majestad, así de su persona como de
todo lo que tiene, se sirva conforme a su sanctíssima voluntad”. LOYOLA, Ignacio de. Ejercicios espirituales.
In: DALMASES, Candido de. (Ed.) Obras completas de San Ignacio de Loyola. Transcripción, introducciones y
notas de Ignácio Iparraguirre. Madrid: La Editorial Católica, 1963. p. 197, § 5.
27
“Por lo qual es menester hacernos indiferentes an a todas las cosas criadas, en todo lo que es concedido a la
libertad de nuestro libre albedrío y no le está prohibido; en tal manera que no queramos de nuestra parte más
salud que enfermedad, riqueza que pobreza, honor que deshonor, vida larga que corta, y por consiguiente en
todo lo demás; solamente deseando y eligiendo lo que más nos conduce para el fin que somos criados”. Ibid., p.
204, § 23.
28
A citação é em latim: “1 – ‘petere a Deo Duo nostro id quod volo et desidero’”; “2 – ‘petitio debet esse iuxta
subiectam materiam’ (Exercices §48)”. CERTEAU, Michel de. “IIe preambule. Grâce à demander”, texto
manuscrito, 23 de set. de 1953, caixa 2, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves. Grifo do autor.
29
“Je demande ce que je veux. Je demande o que se impõe. Et c’est, dans la pensée de st. Ignace, um mème
objet, la mème grâce. L’attittude de la prière est celle mème de l’obeisance”. Ibid. Grifo nosso.
44

No comentário acima, Certeau relaciona vontade, obediência e graça. Como tradução


correlata do hebraico hen e do grego charis, graça significa favor imerecido da parte de
alguém superior a alguém inferior. No âmbito da teologia cristã, esse dom imerecido é
concedido por Deus que adia o castigo divino que deveria abater-se sobre a humanidade em
decorrência do pecado original. Na interpretação paulina, a graça aparece como ato salvífico
de Deus mediante Jesus Cristo, por meio de quem é possível libertar-se do pecado. Nesse
sentido, o poder da graça se confunde com a própria natureza do cristianismo, visto estar ela
no cerne da mensagem evangélica e da vida apostólica.30
Por conta própria, o homem não possui meios para realinhar-se à finalidade que deve
guiar suas ações. Mas ainda que marcado pelo pecado original e não merecedor da salvação,
um ato divino de bondade lhe permite encontrar no exílio onde se encontra um caminho de
volta para casa. Daí Certeau corresponder graça, vontade e obediência: somente em razão do
favor imerecido é possível querer o que se deve querer e agir como se deve agir, só a graça
constitui a vontade como potência anagógica. É nesse sentido que os Exercícios e a leitura
certeauniana da espiritualidade inaciana entendem esse retorno do exílio como um ato de
liberdade.
Duas principais perspectivas relacionaram graça e liberdade na história do pensamento
cristão. Uma exaltava a coincidência entre graça e livre-arbítrio e outra sua incompatibilidade.
Ambas encontraram lugar de destaque a partir da teologia agostiniana.
No diálogo De libero arbitrio, escrito entre 388 e 395, Agostinho argumenta a favor
da primeira.31 Nessa obra, o filósofo apresenta o livre arbítrio como causa do pecado, mas em
virtude do mau uso desse dom, concedido ao homem justamente para que seja possível a
escolha do bem. Caso contrário, se o pecado também estivesse contido na finalidade do livre-
arbítrio, o pecador estaria usando sua vontade para o fim que lhe foi dado. Portanto, seria
injusta sua punição, o que resultaria absurdo, pois na teologia cristã Deus é bom e justo.
Dessa forma, o livre arbítrio é a manifestação da graça que opera no mundo, e a escolha das
boas ações é fruto desse dom possibilitado pela ordem ontológica que rege o universo. 32
Por volta de 400, a reflexão sobre o assunto ganhou novos ares. O monge bretão
Pelágio chegou a Roma por volta dessa época e debateu com Agostinho acerca do livre-

30
Conferir o verbete “Graça” em FERGUSON, S; WRIGHT, D; PACKER, J. Novo dicionário de teologia. São
Paulo: Agnos, 2009. p. 468-460; ESSER, H. H. Graça, dons espirituais. In: COENEN, Lothar; BROWN, Colin.
(Orgs.) Dicionário Internacional de teologia do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2000. p. 907-915.
31
Cf. Sobretudo o Livro I e II. AGOSTINHO, Santo. O livre arbítrio. Tradução de Nair de Assis de Oliveira.
São Paulo: Paulus, 1995.
32
O parágrafo 50 do Livro II indica o livre-arbítrio como um bem e que todos os bens provêm de Deus. Ibid., p.
138-139.
45

arbítrio e da graça. Para a doutrina do pecado original defendida pelo bispo de Hipona, toda a
humanidade estava corrompida pela escolha de Adão, enquanto para Pelágio os homens não
estavam sob o efeito mortal do pecado do primeiro homem, permaneciam aptos a escolher
livremente seguir os maus exemplos como o de adão, ou viver de acordo com a Lei. Se o
homem não nasce marcado pelo pecado original e a salvação pode ser alcançada pela vontade
humana, então o papel da graça é diminuído. Ela é concedida no ato da criação, confunde-se
com a própria natureza humana.
Em oposição a essa confiança no poder e na independência do livre-arbítrio,
Agostinho enfatiza precedência absoluta da graça na experiência cristã e reprova
veementemente as teses pelagianas.33 Ele ressalta como sua compreensão do livre-arbítrio,
embora associada por muitos pelagianos à doutrina que defendiam, sempre esteve ancorada na
precedência da graça.34
Na esteira da refutação ao pelagianismo, Agostinho revê seu próprio modo de
compreender a relação entre o livre-arbítrio e a graça. A partir daí, a vontade humana perde
qualquer potencial de elevação. O livre-arbítrio para escolher entre o bem e o mal existia
antes da queda, mas o pecado original corrompe o homem de tal maneira que perde essa
possibilidade, não estando mais ao seu alcance escolher livremente não falhar. Somente por
intermédio da providência divina é possível escapar do pecado. Nesses termos, a graça é fonte
de liberdade divina, nunca de liberdade humana. Por ser completamente independente de
qualquer escolha racional do homem, a graça se torna sinônimo de predestinação, pois
ninguém traz consigo o poder de querer ou escolher nada que não seja determinado
previamente por Deus. É Ele que move o homem em suas escolhas boas, único responsável
pela adequação do homem ao bem. Ao homem resta o livre-arbítrio, isto é, a capacidade de
fazer escolhas. Mas não está em suas mãos a liberdade, ou seja, a capacidade de escolher o
bem. Só pela graça o homem pode ser livre.
De acordo com o exposto, encontram-se duas fases nitidamente distintas no
pensamento de Agostinho. A radicalidade dessa mudança é evidenciada pela passagem de
uma perspectiva do livre-arbítrio para outra, na qual predomina a onipotência de Deus, seus

33
Em 418, o concílio de Cartago se pronunciou contra as teses pelagianas e promulgou a doutrina do pecado e da
graça, inspirada em Agostinho. SESBOÜÉ, Bernard et al. (Dir.) História dos dogmas 2: o homem e sua salvação
(séculos V-XVII). Tradução de Orlando Soares Moreira. São Paulo: Edições Loyola, 2003. p. 142.
34
Esse argumento pode ser visto no capítulo 8 do livro I em AGOSTINHO, Santo. The retractations. Translated
by M. Inez Bogan. Washington, D.C.: The Catholic University of America Press, 1999. Conferir mormente o
parágrafo 3 em diante.
46

decretos incompreensíveis à razão humana e a graça predestinada frente ao qual o arbítrio é


mero escravo.35
Contudo, há quem ressalte o caráter relacional da segunda perspectiva agostiniana.
Segundo esse ponto de vista, o filósofo quis expor a cooperação entre a graça e a vontade
humana. A graça auxilia o livre-arbítrio ao invés de ser seu concorrente, da mesma forma que
a liberdade e o livre-arbítrio estão articulados. Escolha após escolha, o livre-arbítrio se orienta
a favor ou contra Deus, permitindo que a liberdade se aproxime do bem através do tempo. Ou
seja, quanto mais liberdade, menos sujeição às vicissitudes do livre-arbítrio.36
As diferentes interpretações sobre a concepção agostiniana do livre-arbítrio não são
invenções recentes. Elas estavam em voga à época do surgimento da Companhia de Jesus no
século XVI. A oposição entre graça e livre-arbítrio distinguiu a leitura feita pelos
reformadores protestantes37 da interpretação defendida pelos jesuítas.
Para Lutero, por exemplo, o homem é mau por natureza, não possui em si próprio as
ferramentas necessárias para praticar o bem, por isso necessita do auxílio da graça. Escravo
do pecado, o homem carece de livre arbítrio, não havendo esforço do qual possa provir o bem.
As boas ações não são resultado de sua própria vontade. Antes, tudo é resultado da
predestinação divina.38
Por sua vez, os jesuítas adotavam outra ideia de homem. Reconheciam a positividade
das aptidões humanas. Acreditavam na vontade, no uso adequado das disposições naturais
como fontes para o aperfeiçoamento espiritual, não obstante essa elevação pessoal seja
sempre obra da graça.39 Tal compreensão está imbuída não só de certa anuência ao
pensamento agostiniano – claramente optando por um olhar dialógico entre livre-arbítrio e
graça –, como também inscrita na tradição escolástica.

35
Essa interpretação é encontrada em BERNARDINO, A; FEDALTO, G; SIMONETTI, M (Orgs.). As doutrinas
da graça e do livre-arbítrio em Santo Agostinho. In: Dicionário de Literatura Patrística. Tradução de José
Joaquim Sobral. São Paulo: Editora Ave-Maria, 2010. p. 837–851. Disponível em: https://cutt.ly/JlVUKIs.
Acesso em: 10 set. 2018.
36
SESBOÜÉ, Bernard et al. (Dir.) História dos dogmas 2: o homem e sua salvação (séculos V-XVII). Tradução
de Orlando Soares Moreira. São Paulo: Edições Loyola, 2003. p. 257.
37
Essa leitura acerca da doutrina da predestinação apresentada pelos protestantes também pode ser encontrada
no ambiente católico, destacando-se nomes como Michael Baius e Cornelius Otto Jansen.
38
Cf. VELIQ, Fabrício. Graça e livre arbítrio: uma contraposição entre Agostinho e Lutero. Revisa Eletrônica
Espaço Teológico, v. 9, n. 16, p. 180-187, jul./dez. 2015. Disponível em: https://cutt.ly/slVIqag. Acesso em: 12
set. 2018. Cabe notar que o autor aborda Agostinho pela lente de Bernad Sesboüé, portanto vê na filosofia de
Agostinho a conciliação entre livre-arbítrio, graça e liberdade. Já Lutero, influenciado por Agostinho, teria
exacerbado o pensamento do bispo de Hipona ao destruir completamente o livre-arbítrio e torná-lo totalmente
cativo da vontade divina.
39
Cf. FREITAS, Ludmila G. A graça, a fé e as obras: notas sobre o livre-arbítrio e a salvação no pensamento
jesuítico. In: Anais do XXVII Simpósio Nacional de História da ANPUH, Natal, 2013, p. 1-12. Disponível em:
https://cutt.ly/vlVIc8L. Acesso em: 13 set. 2018.
47

O método da analogia, herança escolástica do pensamento jesuíta, permite afirmar um


grau de semelhança entre Deus e o homem. Nesse modo de proceder, as perfeições
encontradas nas criaturas são atribuídas a Deus, mas apenas por analogia, através de recursos
metafóricos e por certa conveniência de proporção, pois Deus sempre as possui de maneira
eminente e nele elas se realizam de modo diferente que nas criaturas, não havendo nunca
identidade formal entre ambos. Por exemplo, Deus teria vontade e entendimento, mas em grau
de excelência distinto, diferindo de como esses atributos estão presentes nos homens.40
É então por analogia que o homem participa do Ser, mesmo estando marcado pelo
pecado original. A contribuição do homem para sua própria salvação é “consequência do ato
extremo de amor divino, que, pela graça, funda no homem a participação em seu Ser, e,
assim, dota-o da capacidade de ir em busca do Bem (finalidade de toda criatura)”. 41 É como
se a graça penetrasse no livre-arbítrio e libertasse o querer, fornecendo a inspiração para
escolha poder ser direcionada ao bem. O entendimento do bem é a inteligência, e quanto mais
inteligência, mais liberdade. Assim, a graça possibilita ao homem o entendimento da verdade,
com a qual o homem colabora, estando em suas mãos a chance de alcançar sua salvação ou
perdição.42
No ambiente da contrarreforma, o Concílio de Trento confirmou a ideia de que o
pecado não corresponde à corrupção absoluta da natureza humana e que a graça deveria ser
universalizada como o critério definidor de toda ação humana legitima, inclusive dos códigos
legais formulados com vistas ao governo dos homens. Segundo Hansen, por exemplo, nas
missões jesuíticas do Brasil nos séculos XVI e XVII, a iniciativa de eleger a pregação oral
como “[...] instrumento privilegiado de divulgação da Palavra Divina pressupunha que a luz
natural da Graça inata ilumina a mente dos gentios, objeto da catequese, tornando-os
predispostos à conversão”.43 Da mesma forma, Trento considerou heréticas as doutrinas
baseadas na recusa do livre-arbítrio. Portanto, a graça e a vontade humana coparticipam no

40
Baseamo-nos na diferenciação feita por Gilles Deleuze entre o método da analogia na teologia positiva de
Tomás de Aquino, persistente no pensamento de Descartes, o método negativo da teologia mística e o método da
univocidade presente em Espinosa. GILLES, Deleuze. (1968) Espinosa e o problema da expressão. Tradução do
GT Deleuze – 12. São Paulo: Editora 34, 2017. p. 48-49; 55-57. Para o papel desempenhado pela semelhança na
cultura Ocidental até fins do século XVI e a entrada em cena da análise da linguagem como representação no
século XVII, cf. FOUCAULT, Michel de. (1966) As palavras e as coisas. Tradução de Selma Tannus Muchail.
10. ed. São Paulo: Martins fontes, 2016. Principalmente os capítulos A prosa do mundo e Representar.
41
FREITAS, Ludmila G. A graça, a fé e as obras: notas sobre o livre-arbítrio e a salvação no pensamento
jesuítico. In: Anais do XXVII Simpósio Nacional de História da ANPUH, Natal, 2013, p. 3-4. Disponível em:
https://cutt.ly/vlVIc8L. Acesso em: 13 set. 2018.
42
Ibid., p. 6.
43
HANSEN apud FARIA, Marcos. Os jesuítas e a contra-reforma: contribuições para a história da leitura no
Brasil-Colônia. In: Anais do 16º Congresso de Leitura do Brasil, Campinas, 2007. p. 3. Disponível em:
http://alb.com.br/arquivo-morto/edicoes_anteriores/anais16/sem07pdf/sm07ss02_05.pdf. Acesso em: 13 set.
2018.
48

trabalho de conversão das almas que, em última instância, corresponde à prática da salvação
de si próprio.
Tal orientação contrarreformista e jesuítica é aquela mesma expressa nos Exercícios
Espirituais e no comentário de Certeau sobre a espiritualidade inaciana. No parágrafo 87 dos
Exercícios, Loyola associa a graça e a vontade ao elencar como um dos objetivos dos
exercícios “buscar e achar alguma graça ou dom que a pessoa quer e deseja”.44 Essa tarefa não
é passiva, mas atuação ativa que mobiliza recursos práticos com fins à integração entre
transcendência e liberdade:
Também não devemos insistir tanto na graça, a ponto de produzir o veneno
para suprimir a liberdade. De maneira que da fé e da graça se pode falar
quanto seja possível mediante o auxílio divino, para maior louvor de sua
divina majestade, mas não de tal forma e por tais modos, sobretudo nos
nossos tempos tão perigosos, que as obras e o livre arbítrio sofram algum
prejuízo ou sejam tomados por nada.45
A graça e a obediência que ela demanda requerem uma atividade ao mesmo tempo
ativa e passiva, conjunção entre vontade e finalidade. Aos olhos de Certeau, o pensamento de
Santo Inácio entende a obediência a partir desse dinamismo necessário. A obediência é ativa,
uma vez que a meditação não se resume a ela mesma, devendo ter um efeito na ordem da
ação; voluntária, pois significa querer e desejar alguma coisa. Nesse entendimento, a vontade
é inerente à vida, pois Deus é o Deus dos vivos e onde não há vida não pode haver a graça; é
passiva, pois sua consequência é a adoção do objeto desejado sujeita à graça que vem pela
hierarquia, pelo livro dos Exercícios, pela pregação.46
Em outra reflexão, num sermão sobre o nascimento de Jesus, ao que tudo indica
correspondente à segunda semana de um retiro espiritual, Certeau associa fidelidade, graça e
vontade. Ele enfatiza a fidelidade de Cristo, incessante, a qual todos os anos a Igreja convida a
descobrir e, no fim dos seus apontamentos, define a oração como “pedir a graça de seguir e
imitar ao Senhor. Pedir a graça de desejar e querer o que ele quis”.47 Desse modo, obediência
e vontade são a um só tempo a descoberta e a experiência do tipo de fidelidade que já seria

44
“[...] buscar y hallar alguna gracia o don que la persona quiere y desea”. LOYOLA, Ignacio de. Ejercicios
espirituales. In: DALMASES, Candido de. (Ed.) Obras completas de San Ignacio de Loyola. Transcripción,
introducciones y notas de Ignácio Iparraguirre. Madrid: La Editorial Católica, 1963. p. 217, § 87.
45
“Assimismo no debemos hablar tan largo instando tanto en la gracia, que se engendre veneno, para quitar la
libertad. De manera que de la fe y gracia se puede hablar quanto sea possible mediante el auxilio divino, para
maior alabanza de la su divina majestad, mas no por tal suerte ni por tales modos, mayormente en nuestros
tiempos tan periculosos, que las obras y libero arbitrio resciban detrimento alguno o por nihilo se tengan”.
Ibid., p. 273, § 369.
46
CERTEAU, Michel de. IIe preambule. Grâce à demander, texto manuscrito, 23 de set. de 1953, caixa 2,
Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.
47
“Demander la grâce de suivre et imiter le Seigneur. Demander la grâce de désirer et vouloir ce qu’il a voulu”.
Id. Fidélité et pauvreté. Naissance de Jésus, texto manuscrito, sem data, caixa 2, Arquivo da Companhia de
Jesus, Vanves. Grifo nosso.
49

encontrada na figura do Cristo, quem, segundo Certeau, vem do alto até o mais profundo da
dor humana e morre para que os homens vivam, revelando o mais profundo amor de Deus.

1.2 Fidelidade, tempo e história

Na pregação de Certeau, os cristãos são chamados à consciência de ainda serem


indignos da caridade divina. Por isso, a Igreja demandaria a seus fiéis o desejo de participar
desse dom, “a necessidade de receber dele o que ainda [lhes] falta”.48 Uma vez que isso
requer um processo permanente de conversão, de abertura à mudança inerente à realização da
tarefa cristã, é possível afirmar que a noção de fidelidade comporta uma condição temporal e
traz consigo uma ideia de história.
Consideremos os primeiros apóstolos que teriam presenciado a ressurreição de seu
mestre. Jesus não se apresentaria a eles correspondendo ao que conheciam antes, mas como
uma existência nova, superior. Embora ainda fosse ele, não era mais o mesmo, doravante
pertencendo a outro mundo. Para Certeau, ainda o companheiro e amigo de ontem, agora
tornando a atividade divina perceptível ao mundo. E os apóstolos só poderiam compreender
aquela situação quando algo tivesse mudado em suas próprias vidas. À sua maneira, “eles são
os mesmos e, portanto, não são mais como antes”.49
Nesse sentido, a fidelidade demanda uma constante revisão. Querer e permanecer
obediente significa descobrir que isso não é possível sem que haja mudança. O signo da
descoberta característica da vida cristã é uma superação em relação a si própria, aventura onde
nenhum ponto de chegada se confunde com um fim em si mesmo:
Se o homem existe apenas no movimento, constantemente renovado, para
superar esses próprios atos e lançar-se diante do adquirido, o homem do
Espírito só se reconhece e “vive” nos sobressaltos sempre renovados para ir
“além” de suas próprias virtudes e de suas próprias garantias. Esse
movimento é a nossa própria existência. 50
Seja qual for a honestidade da vida de um cristão, ele não pode estacionar
espiritualmente em um momento, ceder a uma maneira de existir por meio da qual sua fé

48
“[...] le besoin d’y recevoir ce qui nous manque encore”. CERTEAU, Michel de. Jeudi st., texto manuscrito,
14 de abr. de 1960, caixa 2, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.
49
“[...] ils sont les mêmes et pourtant ils ne sont plus comme avant”. Id. Pâques, texto manuscrito, 17 de abr. de
1960, caixa 2, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.
50
“[...] si l’homme n’existe que dans le mouvement, constamment renouvelé, pour dépasser ces propres actes et
se jeter en avant de l’acquis, l’homme de l’Esprit ne se reconnait et ne ‘vit’ que dans les sursauts toujours
renouvelés pour aller ‘au-delà’ de ses propres vertus et de ses propres assurances. Ce mouvement est notre
existence même”. Id. Pentecote [sic], texto datilografado, 24 de maio de 1953, caixa 2, Arquivo da Companhia de
Jesus, Vanves.
50

corra o risco de tornar-se “somente um traço do passado, um hábito e o meio de não ter mais o
que procurar”.51 Aos olhos de Certeau, o próprio Cristo ensina o perigo dessa “enganosa
segurança”. A cada vez ele reafirmava sua decisão, ensinando a “repetir de uma maneira nova
e mais profunda”.52 Logo, ser batizado, ir à missa, praticar a religião, nada disso deve ser
suficiente para estacionar a vida cristã. Manter-se fiel é ponderar algo a mais a ser feito por
Deus, seja na vida ou na oração.53
De certa maneira, é legítimo dizer que Certeau pensa a existência de todo cristão
enquanto caracterizada por certo grau de “hipocrisia”. Não no sentido de falta de virtude,
típica daquele que se dedicaria a empreitadas próprias sob o bom disfarce da moral religiosa.
Mas de certa distância que separa a existência cristã de seu ideal, “a diferença entre o que
somos e o que dizemos”.54 A vida cristã não está à altura da verdade que professa, pois
somente Cristo corresponderia inteiramente a ela, somente “ele não diz nada que não faça e
que não seja”.55 Essa é a realidade que é preciso deparar-se, uma realidade que revela aquilo
que ainda precisa ser feito, que chama o homem para além de si mesmo, a pôr-se em marcha
em direção à verdade que professa. Ela convida a avançar, ir adiante, a continuar a rota, a
praticar uma fidelidade pela qual o crente é chamado a reconhecer que ainda é infiel.
Nem mesmo um bom conhecimento ou formação religiosa é ferramenta suficiente
para eximir o cristão dessa responsabilidade. Quanto a isso, Certeau é categórico:
O cristianismo não é um guia Michelin ou um manual de etiqueta que se
pode simplesmente comprar ou conhecer. É uma vida. Começa
incessantemente com novas escolhas. 56
A retórica eclesial empenhada por Certeau também recorre analogicamente à história
para desenvolver o elemento temporal implícito na fidelidade. Para ele, a Igreja não pode
crer-se acabada em sua forma. Semelhante ao ocorrido na guerra de 1940-1944, ela precisa
continuar lutando:
O desembarque da Normandia marcou o estágio decisivo e já significava a
vitória; mas ainda era necessário ocupar o terreno inimigo, lutar para

51
“[...] seulement une trace du passé, une habitude et le moyen de ne avoir plus à chercher”. CERTEAU, Michel
de. Paques [sic] II, texto manuscrito, sem data, caixa 2, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.
52
“[...] répéter d’une manière nouvelle et plus profonde”. Id. “Qui n’est pas avec moi est contre moi”, texto
manuscrito, sem data, caixa 2, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves. O manuscrito parece ter sido
inicialmente escrito para uma homilia no dia 20 de março de 1960. Contudo essa data foi riscada. Outra
indicação foi feita por Certeau, mas está parcialmente ilegível.
53
Id. Discernement de première semaine, texto manuscrito, sem data, caixa 2, Arquivo da Companhia de Jesus,
Vanves.
54
“c’est l’écart entre ce que nous sommes et ce que nous disons”. Id. Grands vœux de Lesage, texto
datilografado, 02 de fev. de 1961, caixa 2, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves, p. 1.
55
“[...] il ne dit pas rien qu’il ne fasse et qu’il ne soit”. Ibid.
56
“Le christianisme n’est pas un Guide Michelin ou un manuel de savoir-vivre que l’on puisse se contenter
d’acheter ou de savoir. C’est une vie. Elle se recommence sans cesse par de nouveaux choix”. Ibid., p. 4.
51

alcançar a vitória já certa. A Igreja, assegurada da vitória pela ressurreição


de Cristo, precisa ainda renovar constantemente sua fidelidade. 57
A Igreja vivenciou constantes retomadas, partidas e recomeços ao longo do tempo,
agitações suscitadas pelo Espírito. Ele é a rajada de vento soprando em moradas demasiado
fechadas.58 Incomodando imobilidades, estimulando novas travessias, insuflando novas
responsabilidades, enraíza-se no coração da história.59
Essa interseção entre os signos de Deus e a história humana pode ser exemplificada a
partir do sermão preparado para o Domingo de Ramos. Nessas linhas, o sacerdote tratou do
Credo, fórmula doutrinal cristã que contém “toda a verdade, em trinta linhas”. 60 Sobre essa
afirmação de abertura do texto, ele se pergunta: “é um título promissor de jornal?”. 61 Para
logo responder: “Não, é o que se pode legitimamente dizer do resumo onde a Igreja apresenta
tudo que sabe de Deus, de nossa história e da vida cristã”,62 onde a Igreja reuniu em minucias
“toda a história humana e toda a revelação de Deus”. 63
A primeira parte do Credo afirma Deus como “origem de toda vida, de todo
movimento”.64 A segunda trata do Cristo, Deus entre os homens, e a terceira do Espírito-
Santo, “presença divina em nossas vidas, em nossas cidades, neste mundo onde habita e
inspira a divina caridade do amor fraterno e a alegria da confiança filial”. 65 Certeau continua:
“essa coabitação com Deus se estende ao universo; ela nos renova e nos reúne apesar de
nossas faltas e de nossos limites: é a história da Igreja, pois a Igreja é a obra visível do
Espírito invisível”.66 Quem recita o credo, repassa toda essa história, incluindo aqueles que
Certeau considera os três grandes acontecimentos da história humana: a revelação no Sinai, a
ressurreição de Cristo e o Pentecostes.

57
“[...] Le débarquement de Normandie marquait l’étape décisive et signifiait déjà la victoire; mais il fallait
encore occuper le terrain ennemi, lutter pour acquérir [sic] la victoire déjà certaine. L’Église, assuré de la
victoire par la Résurrection [sic] du Christ, a encore [...] renouveler sans cesse sa fidélité [...]”. CERTEAU,
Michel de. “Qui n’est pas avec moi est contre moi”, texto manuscrito, sem data, caixa 2, Arquivo da Companhia
de Jesus, Vanves.
58
A metáfora é adaptada da que se encontra no próprio Certeau. Nele encontramos o seguinte: “coups de vents
dans nos demeures trop fermées”. Id. Pentecote [sic], texto datilografado, 24 de maio de 1953, caixa 2, Arquivo
da Companhia de Jesus, Vanves.
59
Id. Verbum caro factum est, texto manuscrito, sem data, caixa 2, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.
60
“Toute la vérité, em trente lignes”. Id. Dimanche de la Passion. Le “Credo”, texto datilografado, sem data,
caixa 2, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves, p. 1.
61
“[...] est-ce là un titre prometteur de journal?”. Ibid., p. 1.
62
“Non, c’est ce qu’on peut légitimement dire du résumé où l’Eglise vous propose tout ce qu’elle sait de Dieu,
de notre histoire et de la vie chrétienne”. Ibid., p. 1. Grifo nosso.
63
“[...] toute l’histoire humaine et toute la révélation de Dieu”. Ibid., p. 1. Grifo nosso.
64
“[...] l’origine de toute vie, de tout mouvement”. Ibid., p. 1.
65
“[...] présence divine dans nos vies, dans nos cités, dans ce monde où il habite et où il inspire la divine charité
de l’amour fraternel et la joie de la confiance filiale”. Ibid., p. 2.
66
“Cette cohabitation avec Dieu s’étend à l’univers; elle nous renouvelle et nous rassemble malgré nos fautes,
et nos limites: c’est l’histoire de l’Eglise [...]”. Ibid., p. 2.
52

Embora Deus se manifeste no mundo, os signos dessa fidelidade só são desenvolvidos


progressivamente. Uma dilatação67 ocorre por meio da história da resposta fiel dada pela
Igreja, da expansão promovida por novas descobertas, dos perpétuos sobressaltos inerentes à
humanidade em sua busca por corresponder ao amor ilimitado do qual são alvos, mas frente
ao qual estão sempre em atraso.
Nesse sentido, o cristão é uma espécie de perpétuo moribundo, pois sua existência é
marcada por uma morte necessária, seja a nível pessoal ou eclesial: “a cada época, vivemos a
Igreja morrendo”.68 De tempos em tempos, ela é fragilizada pela insuficiência dos homens e
por isso precisa renascer, sair do túmulo: “em cada tempo a miraculada de Deus”. 69
Ao longo do caminho a Igreja aprende a abrir mão disso que falece, a não se apegar
aos bens culturais, políticos, financeiros, institucionais ou qualquer outra coisa a que se via
ligada e que poderia ter confundido com sua própria natureza. Ao cristão cabe decidir se está
com o que morre ou com o que vive, com o que passa ou com o que permanece.
Os primeiros cristãos já possuíam a consciência desse movimento necessário da fé:
“‘nós caminhamos conforme o Espírito’, dizia São Paulo, e essa marcha milagrosa era a
experiência do Espírito Santo”.70 A pregação apostólica interpretava o ato do Espírito e a vida
da Igreja a desenvolvia.
A esse respeito, a figura de Jesus é exemplar. Ela falava a um público que qualquer
libertador jogaria contra a dominação romana; conversava com pessoas alimentadas pela
história da revolta dos macabeus que libertara os judeus do domínio selêucida, indivíduos
aflitos pela salvação de seu povo, comprometidos com a defesa de seu Deus e de suas
tradições:
Eles eram fiéis a Deus. Eles estavam prontos para uma grande tarefa, para
seguir um chefe militar e “marchar” numa sublevação nacional. Mas, daí em
diante, há uma superação a operar, uma tarefa mais elevada a ser
empreendida e cuja ideia só pode existir em Deus. 71

67
Certeau fala mais especificamente em dilatação da oração e dilatação do amor. Tais formulações aparecem,
respectivamente, em Id. La messe, notre prière (homélie pendant une retraite sacerdotale), texto manuscrito, 20
de out. de 1958, caixa 2, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves; CERTEAU, Michel de. Fidélité et pauvreté.
Naissance de Jésus, texto manuscrito, sem data, caixa 2, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.
68
“A chaque époque [sic], on vit l’Eglise mourante [...]”. Id. Pâques, texto manuscrito, 17 de abr. de 1960, caixa
2, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.
69
“[...] en chaque temps la miraculée de Dieu”. Ibid.
70
“‘Nous marchons selon l’Esprit’, disait saint Paul, et cette marche miraculeuse était l’expérience de l’Esprit
Saint”. Id. Pentecote [sic], texto datilografado, 24 de maio de 1953, caixa 2, Arquivo da Companhia de Jesus,
Vanves.
71
“Ils étaient fidèles à Dieu. Ils étaient prêts à une grande tâche pour suivre un chef de guerre et pour ‘marcher’
dans un soulèvement national. Mais désormais, il y a un dépassement à opérer, une tâche plus haute à
entreprendre et dont l’idée seule ne peut être que de Dieu”. Id. Retraite – IIe semaine: le règne, texto
datilografado, sem data, caixa 2, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.
53

O antigo testamento continha um primeiro engajamento que anunciava e preparava


outro, mais alto. Era preciso uma antiga aliança, uma antiga fidelidade, para que uma nova
pudesse ser realizada. Essa nova tarefa é aquela efetuada pelo vínculo entre o Deus de Israel e
o Filho feito carne, entre o antigo e o novo testamento. E nessa relação, é a própria natureza
da graça que é colocada em relevo, pois o que está em questão é o chamado constante à
renovação da fidelidade do homem com Deus, à conversão de seus engajamentos. 72
A ressurreição também é o paradigma do chamado cristão à mudança. Jesus
ressuscitado aproxima-se de seus discípulos, mas eles não o reconhecem. Ele está lá entre
eles, embora não seja mais o mesmo. Eis o mistério da ressurreição: mestre escondido em
uma aparência humana ainda desconhecida, ao mesmo tempo presente e outro, como coloca
Certeau.73
Não seria esse fundamento cristológico um indício “arqueológico”, espécie de “cena
primitiva” da relação entre o outro e o mesmo que a escrita certeauniana explorou de maneiras
tão diversas? Podemos ver essa articulação em textos e interpretações tão distantes como em
um manuscrito pastoral e um capítulo sobre a arqueologia da etnologia a partir dos relatos de
Jean de Léry.74
Digressões à parte, prossigamos com a reflexão espiritual de Certeau. Segundo ele,
Jesus recomeça toda a história da eleição divina, em todos os seus estágios espirituais e toda
sua lucidez.75 Ele é o signo que torna presente o gesto divino, reflete a vinda paternal que
deve mudar o mundo e distribuir a graça ao longo de toda a trajetória humana. Ele é o
episódio mestre da história. Com ele, uma nova aventura se inicia.76
Outra forma para essa asserção é dizer que a história da salvação é a verdadeira
história, uma vez que Deus é o Real, fundamento do mundo e da trajetória humana. Ele fez
Adão, logo é o começo de tudo; é o movimento do homem, pois se fez presente, ouvido, visto
e repetido na Igreja: verbum caro factum est (o verbo se fez carne).77

72
Essa questão aparece especialmente nos apontamentos contidos em CERTEAU, Michel de. Règne, texto
manuscrito, sem data, caixa 2, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves, p. 2-3.
73
Id. Jean 20: 11-18, texto manuscrito, sem data, caixa 2, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.
74
O capítulo L’oralité, ou l’espace de l’autre: Léry, consta em: Id. (1975) L’écriture de l’histoire. Paris:
Gallimard, 2011. p. 245-283.
75
CERTEAU, Michel de. La tentation de Jésus, texto manuscrito, sem data, caixa 2, Arquivo da Companhia de
Jesus, Vanves.
76
Id. Le règne, texto manuscrito, sem data, caixa 2, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.
77
Id. Verbum caro factum est, texto manuscrito, sem data, caixa 2, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves; Id.
Debut de retraite, texto manuscrito, 22 de set. de 1953, caixa 2, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.
54

A história da salvação78 é iniciada quando Deus exorta Abraão a deixar sua pátria,
aqueles que ama e a tudo que possui, e termina no reencontro com o Mestre. É um logo
caminho de fidelidade e dificuldades indissociáveis à vida e à história humana, por meio do
qual os homens são chamados constantemente a deixar o que já está sob posse, a ir além do
que Dele já foi conquistado. Como Abraão, é preciso escutar seu apelo, “incessantemente sair
para encontrar-lhe em outro lugar: Deus está sempre em outro lugar”.79
A vida inteira é produzida entre o que se tem e o que não se tem, entre o estado atual e
o devir. Um desejo enquanto nervo da vida espiritual:
Ao mesmo tempo a ação da graça pelo que nos foi dado e a esperança do que
deve ainda nos ser dado; o desejo de ser mais do que já o é e de receber mais
ainda do que já se recebeu. É preciso ir além do que nós recebemos e a
perfeição é justamente essa superação.80
Essa superação requer a lucidez sobre a condição do passado e a medida que dele pode
ser tirada sobre o que ainda é preciso ser feito.
Quanto a esse chamado à perfeição que vem pelo dom da graça, Cristo o continua e
renova. Quando sua morte se anunciava e era inevitável que deixasse os seus, estes se
entristeciam porque não mais o teriam. Entretanto, Jesus iria privá-los do que ele era para
fazê-los sair de si mesmos. Assim como a morte permite Jesus adentrar à casa do Pai, é
somente pela morte do Mestre que eles também poderão fazê-lo. A partida do Cristo os
introduz além deles mesmos, diz Certeau. Ao procurá-lo, cada nova conquista faz necessária
uma nova partida.81
Como visto até aqui, a pregação do padre Certeau abraça a vida espiritual e eclesial em
suas inevitáveis mudanças e superações. Suas palavras aos fiéis católicos, aos jovens
seminaristas e aos irmãos de ordem salientam vivamente a liberdade e a necessidade de
lançar-se em novas escolhas, descobertas, partidas e conquistas.
No entanto, essa vivência espiritual e religiosa nunca é outra coisa senão ela mesma.
Ela não é e é idêntica a si própria. Seus sobressaltos, desarranjos, desapegos e novidades têm
por função última corresponder mais perfeitamente ao passado de sua fé e ao que já foi
revelado. Essa figura quixotesca de sua prédica caminha para o futuro como um filho pródigo

78
Em outro lugar, Certeau fala em história divina, no sentido da trajetória, na história humana, da presença dos
signos de Deus. CERTEAU, Michel de. La messe, notre prière (homélie pendant une retraite sacerdotale), texto
manuscrito, 20 de out. de 1958, caixa 2, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.
79
“[...] sans cesse sortir pour Le trouver ailleurs: Dieu est toujours ailleurs”. Id. Perfection et charité, texto
datilografado, 26-31 de dez. de 1956, caixa 2, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves, p. 1. Esse texto
corresponde a uma série de conferências espirituais sobre o tema da perfeição e da caridade.
80
“[...] à la fois l'action de grâces pour ce qui nous a été donné, et l'espérance de ce qui doit encore nous être
donné; le désir d'être davantage ce que l'on est déjà et de recevoir plus encore [...] ce que l'on a déjà reçu. [...] il
faut aller au-delà de ce que nous avons reçu et la perfection est justement ce dépassement”. Ibid., 2.
81
Ibid., 6.
55

que retorna à casa com novos hábitos após anos de exílio. O cristão de Certeau é ao mesmo
tempo o homem moderno para quem a existência é o único lugar possível da vivência de Deus
e o fiel que não faz outra coisa senão repetir de maneira nova e mais profunda o credo. Não só
a contrapartida da liberdade é a obediência, como a da novidade é a tradição, exemplo do
estilo inaciano já impregnado da semântica moderna cara ao jesuíta em meados do século XX.
A revelação bíblica fornece os signos nos quais Certeau sustenta essa identificação
entre a mudança e repetição. Seu fundamento teológico é cristológico. Em primeiro lugar, por
meio da conversão do antigo em novo testamento, cuja realização fornece o modelo para uma
fidelidade sempre renovada e mais alta à Palavra. Em segundo lugar, pela ressurreição como
paradigma cristão desse chamado à mudança no progresso da vida espiritual. Jesus retornou
dos mortos sem fazer-se reconhecer de imediato por seus apóstolos, mistério de um mestre
presente e outro, portanto exigindo uma maior lucidez para acolher seus signos alhures. Por
fim, pela ascensão como parâmetro para a passagem dessa lógica da espiritualidade à lógica
da história. O corpo físico ausente dá lugar a uma presença espiritual encarnada na história
humana, constantemente convocando os homens a novas superações. Esse movimento de
apelos e respostas é o fazer em curso da história, a realização da humanidade em suas
venturas e desventuras cujo sentido a eleva à salvação.
O destino da história humana é cumprir o que foi revelado no passado e já está
germinando no presente. Como poderia, então, o padre não manter uma passividade do novo
ao antigo? Não só a vocação da história encaminha para que o futuro progrida em direção à
consumação do passado, como o fundamento crístico e salvífico moldam o significado
atribuído às novas adesões humanas em vista do cumprimento cristão da história.
Essa interpretação teológica joga com o campo semântico próprio ao conceito
moderno de história: novidade, mudança, morte, progresso e história como singular coletivo
são alguns de seus traços. Nesse sentido, ela mantém uma estreita proximidade com a parteira
dessa acepção como ela aparece no século XVIII, a filosofia da história. Creio ser essa uma
explicação plausível para a confusão comumente feita entre a teologia da história e a filosofia
da história.82
Lembrando o que Hannah Arendt disse sobre a filosofia da história, Hegel concebeu o
absoluto como imanente à própria história, substituiu a tradição pela continuidade histórica e

82
Essa confusão foi acertadamente notada pelos autores do verbete theology of history da New Catholic
Encyclopedia : HUG, P. L.; HILL, W. J. Theology of history. In: New Catholic Encyclopedia. 2nd ed.
Washington, D.C.: The Catholic University of America, 2003. v. 6. p. 886.
56

situou sua filosofia no exterior das crenças do passado. 83 É verdade que a modernidade contou
com seus filósofos devotos à providência divina enquanto razão da história. É o caso de Vico
em sua Ciência nova84 e Herder em sua Outra filosofia da história para a educação da
humanidade.85 Porém, o conceito moderno de história se generalizou enquanto processo feito
inteiramente pelos homens.86 No século XVIII emergiu um conceito de história em que a
dignidade está na própria sequência temporal, o protagonismo na humanidade e o acento na
imortalidade terrena do homem.87
A teologia da história, por sua vez, vê o sentido da história em última instância como
transcendente, pois a iniciativa é sempre de Deus e a presença é sempre da ordem do mistério,
isto é, do chamado, nunca totalmente conhecido, às superações a serem constantemente
refeitas. Ela também se mantém em continuidade com a tradição, ainda que suas repetições
sejam marcadas por novidades e por aprofundamentos. A teologia é sobretudo uma explicação
que tem por referência primeira e última a fé na revelação cristã, como já exploramos no
aspecto crístico e salvífico que planifica a história. A esse respeito, Hans Urs von Balthasar
afirmou que o olhar do teólogo se define pela obediência a Jesus Cristo, “cuja presença no
tempo e na história tem ele imediatamente de designar como centro e norma de toda a
história”.88
Portanto, a teologia da história se diferencia da filosofia da história por sua relação
irrevogável de dependência para com o modelo crístico, por sua conformidade com a tradição
e por seu acento na providência divina. Esses são os elementos marcantes da teologia da
história nos papéis de Certeau.
Essa interpretação teológica da história aparece em outras palavras quando Certeau
salienta a secularização de princípios do cristianismo no pensamento moderno. Nessa ocasião,

83
ARENDT, Hannah. (1954) Entre o passado e o futuro. Tradução de Mauro W. Barbosa. 8. ed. São Paulo:
Perspectiva, 2019. p. 55.
84
VICO, Giambattista. (1744) Ciencia nueva. Introducción, traducción y notas de Rocío de la Villa. Madrid:
Editorial Tecnos, 1995. O uso intercambiante da filosofia e da teologia para designar esse tipo de reflexão já
podia ser encontrado em Vico, quem designa sua ciência nova de “teologia civil racional da providência divina”.
Ibid., p. 46.
85
HERDER, Johann G. (1774) Filosofía de la historia para la educación de la humanidad. Traducción por Elsa
Taberning. Introducción de Eugenio Pucciarelli. Sevilla: Ediciones Espuela de Plata, 2007.
86
ARENDT, op. cit., p. 89.
87
Como mostra Hannah Arendt ao refutar a ideia de que a moderna consciência histórica consistiria na mera
secularização de categorias teológicas originalmente cristãs. Ibid., p. 97-101.
88
BALTHASAR, Hans Urs von. Teologia da História: um ensaio. Tradução de Maria Manuela da Conceição
Dias de Carvalho. Lisboa: Universidade Católica Editora, 2010. p. 21.
57

ele transparece sua opinião de que a filosofia da história é dependente de um regime espiritual
fundado na novidade cuja existência é antes de tudo cristã:89
Pensemos naqueles que participaram de um regime comunista: eles estão
conscientes de terem entrado em um novo mundo, um mundo puro; eles são,
em relação àqueles que não fazem parte deste sistema, adiantados sobre seus
contemporâneos, pertencem a uma coletividade futura. Mas essa consciência
comunista nasceu de uma transposição do cristianismo. Na origem desse
pensamento de Marx há a inversão, por Hegel, de um tipo de pensamento e
vida cristã. A consciência de que nós, como cristãos, pertencemos a um novo
regime, está, portanto, na origem de todo regime de liberdade, mesmo hoje. 90
O mais relevante dessa semântica compartilhada entre a teologia e a filosofia – em que
pese uma maior ou menor concordância com a defesa à tese da secularização – é a leitura
providencial que Certeau fará dessa ideia de novidade e sua relação com a totalidade da
história.
Para o jesuíta, a novidade supõe liberdade. Entendida enquanto possibilidade de diferir
de um estado anterior, a liberdade permite realizar a obediência ao que está por ser cumprido.
E o homem só é livre pela graça, fonte que produz novas afecções e sentimentos, “frutos do
Espírito” na termologia paulina.91 Ela conduz paulatinamente à perfeição a que o homem está
destinado, a uma progressiva transformação na caridade, modo de ser histórico do amor
atemporal.92 Assim, o ágape funda a história enquanto devir e unidade, cria, renova e unifica

89
Essa lógica encontrava paralelos fora do ambiente estritamente teológico. É o caso da conhecida tese da
secularização do pensamento escatológico judaico-cristão no conceito moderno de progresso, defendida por Karl
Löwith em 1949. LÖWITH, Karl. Meaning in history: the theological implications of the philosophy of history.
Chicago: University of Chicago Press, 1949. Uma discussão crítica sobre a suposta origem cristã da moderna
consciência histórica e sobre a tese da secularização das categorias originalmente teológicas aparece
pontualmente em Hannah Arendt nos 1950. ARENDT, Hannah. (1954) Entre o passado e o futuro. Tradução de
Mauro W. Barbosa. 8. ed. São Paulo: Perspectiva, 2019. p. 97-104. Nos anos 1960, Hans Blumenberg dedicou
uma importante crítica à tese da secularização de Löwith e buscou traçar a singularidade dos tempos modernos
frente à herança cristã. BLUMENBERG, Hans. (1966) The legitimacy of the modern age. Translate by Robert
M. Wallace. Cambridge: MIT Press, 1983. O debate mais recente sobre o pós-secular lançou novo fermento à
discussão, como indicou Dominick Lacapra. LACAPRA, Dominick. History, literature, critical theory. Ithaca:
Cornell University Press, 2013. p. 2-3.
90
“[...] pensons à ceux qui participent à un régime communiste: ils ont conscience d'être entrés dans un monde
nouveau, un monde pur; ils sont, vis-à-vis de ceux qui ne font pas partie de ce régime, en avance sur leurs
contemporains, ils appartiennent à une collectivité future. Mais cette conscience communiste est née d'une
transposition du christianisme. À l'origine de la pensée de Marx il y a le retournement, par Hegel, d'un type de
pensée et de vie chrétien. La conscience que nous avons, comme chrétiens, d’appartenir à un régime nouveau est
ainsi à l'origine de tout régime de liberté, même encore aujourd'hui”. CERTEAU, Michel de. Perfection et
charité, texto datilografado, 26-31 de dez. de 1956, caixa 2, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves, p. 57.
Essa defesa da ideia de secularização contrasta com o que encontramos em suas obras dos anos 1970. Como
Jean-Claude Monod mostrou, Certeau forjou noções complexas, não restritas ao conceito clássico e linear de
secularização, para dar conta de processos históricos complexos na história religiosa dos últimos séculos.
MONOD, Jean-Claude. Inversion du pensable et transits de croyance. La trajectoire de sécularisation et ses
écarts selon Michel de Certeau. Revue de Théologie et de Philosophie, v. 136, n. 4, p. 333-346, 2004.
91
A referência é do próprio Certeau. CERTEAU, op. cit., p. 57.
92
Certeau chama de “modo de ser histórico” o caráter temporal do mistério eterno que os cristãos fazem
experiência: Deus não se dispersa, não acrescenta nada a si próprio, permanece unido a si numa união perfeita,
mas doa gratuitamente isso que possui, concede algo de si ao outro, faz do imutável, plural. CERTEAU, Michel
58

a existência. Ele é multiplicidade atada à unidade, extensão a partir da plenitude, sentido de


toda a história.93
Nessa reflexão de Certeau sobre a perfeição e a caridade, fica bastante evidente a
relação íntima entre providência divina, espiritualidade e história. Certeau dá sequência
dizendo que Deus é perfeito, logo, não conhece sucessão, início, devir, história ou fim. Ele é
tudo que há para ser, é num só tempo, num só ato a abertura e o encerramento de tudo.
Embora o homem tenha sido criado à sua imagem e semelhança, o que Deus realiza em sua
eternidade e perfeição não está ao alcance:
Ele [o homem] deve retomar, recomeçar incessantemente este trabalho de
multiplicação e unificação no curso de uma história, cuja lentidão, fracassos
e retomadas manifestam perpetuamente que o homem é aquele que não é o
que tem que ser.94
Por essa insuficiência do homem, o ser que ainda não é, Deus vem em seu auxílio. Ele
suscita contínuas renovações, desloca-o e impulsiona a ultrapassar seus proselitismos, suas
resistências ao outro, para reconciliá-lo aos demais, à natureza, ao cosmos, para fazê-lo
conquistar sua Humanidade e adentrar na eternidade, o fim da história anunciado pela teologia
cristã.95 Toda “a história cristã está ocupada com o progresso dessa caridade que conduz a
humanidade à perfeição”.96
Por isso, em um texto manuscrito dedicado a precisar a intimidade entre o trabalho e a
vida do teólogo, Certeau dirá que todo o material espiritual acumulado ao longo da história
importa à teologia. O trabalho do teólogo recolhe uma tradição e apreende o que une esse
passado ao presente. Esse aspecto é paralelo a outro. Trata-se igualmente de preparar uma
missão e verificar em que medida o presente se orienta ao futuro. Dois lados de uma mesma
questão: a unidade entre a vida espiritual acumulada ao longo do tempo e a teologia; a ligação
entre a formação teológica e a preparação para uma vida apostólica.97

de. Conclusion – progrès spirituelle et théologie de l’agapè, texto datilografado, 26-31 de dez. de 1956, caixa 2,
Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves, p. 64. O trecho referente a essa reflexão não se encontra no texto
datilografado. Essa conclusão mais extensa, embora datilografada, consta junto da versão manuscrita, sendo um
de seus parágrafos a localização da questão remetida na presente nota.
93
Essa leitura da eternidade e do tempo é muito próxima do que escreve Agostinho sobre o assunto no livro XI
das Confissões.
94
“[...] elle doit reprendre, recommencer sans cesse cette œuvre de multiplication et d'unification au cours d'une
histoire dont les lenteurs, les échecs, les reprises manifestent perpétuellement que l’homme est celui qui n'est pas
ce qu'il a à être”. CERTEAU, Michel de. Perfection et charité, texto datilografado, 26-31 de dez. de 1956, caixa
2, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves, p. 27.
95
“L’éternité est la fin de l’histoire [...]”. Ibid., p. 33.
96
“[...] l’histoire chrétienne est occupée par le progrès de cette charité qui conduit l’humanité à la perfection
[...]”. Ibid., p. 37.
97
Id. Situation du théologien (vie et travail du θgien), texto manuscrito, sem data, caixa 5, Arquivo da
Companhia de Jesus, Vanves.
59

Nessas notas teológicas, Certeau elabora o que podia ser visto em sua própria
atividade como sacerdote em seus primeiros anos de atuação. Portanto, é legítimo desdobrar
esse duplo aspecto da teologia segundo nossas próprias definições usadas para este capítulo: a
elaboração teológica, a pastoral, a espiritualidade e a história são os elementos
idiossincráticos de uma mesma atividade à qual Certeau se dedicava nos anos 1950.
Para concluirmos, vejamos como Certeau lança luz sobre um dos aspectos de nossa
definição de teologia da história em sua singularidade frente à filosofia da história, ou seja, a
continuidade com a tradição. Para Certeau, a teologia é uma leitura da história com vistas à
ação de Deus. A experiência passada é examinada à luz das manifestações divinas mais
explícitas, à procura da verdade que a sustenta e que a linguagem objetiva da Igreja discerne e
exprime; da intimidade entre o mundo e o Espírito; e da harmonia entre a história e o dogma.
A unidade dessa experiência se manifesta na coerência da tradição e da investigação
teológica. Mas a teologia não consiste simplesmente num dado recebido, em dogmas ideias e
fatos aos quais é necessário aderir. Não se trata apenas de “ratificar o que se impõe, como
vindo de Deus, mas de reconhecer o significado ‘teológico’, isto é, de lá procurar e encontrar
Deus que vem”.98
Os antigos se pronunciaram sobre sua comunicação com a experiência do Cristo na
qual toda existência cristã passada e presente participa. Seus ditos foram reconhecidos como
verdadeiros e transmitidos como linguagem autêntica pela Igreja. Contudo, “entre a
verdadeira linguagem de uma experiência cristã passada e a experiência presente em busca de
uma verdade que a guia e nutre, não pode haver heterogeneidade”.99 No presente, essa
experiência fundada no Cristo permanece, mas ainda a ser aperfeiçoada.

1.3 Espiritualidade, duração e totalidade

Certeau lê em perspectiva teológica o caráter temporal da experiência cristã (suas


diferentes paradas, recomeços, sucessões e extensões), bem como sua história (o conteúdo
humano acumulado por essa experiência ao longo do tempo). Deus é sua força motriz, seu
sentido, o que há neles de mais real e verdadeiro.

98
“[...] entériner ce qui s’impose, comme venant de Dieu, mais d’eu reconnaitre [sic] le sens ‘théologique’,
c’est-à-dire d’y chercher et d’y trouver Dieu qui vient”. CERTEAU, Michel de. Situation du théologien (vie et
travail du θgien), texto manuscrito, sem data, caixa 5, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves. Grifo do autor.
99
“Entre le langage vrai d’une expérience chrétienne passée, et l’expérience présente em quête d’une verité qui
la guide et la nourrisse, il ne saurait y avoir hétérogénéité”. Ibid.
60

Afirmar esse sentido teológico da história não quer dizer que em Certeau a existência
humana seja mero reino de “aparências da realidade, ilusões ou quimeras”, 100 ou que as
verdades cristãs estejam apenas “onde toda respiração humana é impossível”. 101 Como
veremos, para Certeau a fidelidade não é suspensão da vida cotidiana em nome de outra
responsabilidade mais elevada.
Ao contrário, ela é o desenvolvimento espiritual das experiências humanas. Há uma
estrita relação entre a busca por progressão em direção a Deus e a preocupação pastoral com a
realidade concreta das pessoas. Essa conexão indispensável entre a vida do espírito e
experiência humana é o que denomino “espiritualidade”.
Essa conexão pode ser abordada pela via de uma elaboração teológica na atividade
pastoral em seus papéis ou pela via propriamente dita de uma “teologia espiritual” em seus
artigos acadêmicos. Estou seguindo minha orientação inicial pela divisão analítica entre a
teologia pastoral como a coloquei e a teologia espiritual como uma das disciplinas acadêmicas
da teologia. Entretanto, isso não deve supor qualquer separação ingênua entre essas duas
esferas, como já o vimos na prática do padre (ela pensa a espiritualidade) e na definição do
trabalho teológico dada por ele (ele possui caráter apostólico).
No caso seus artigos publicados em revistas religiosas na segunda metade dos anos
1950, trataremos especialmente o papel da compreensão agostiniana do tempo na abordagem
da espiritualidade feita por Certeau. Por fim, veremos como as premissas providencial,
cristológica escatológica e eclesiológica também trazem implícitas aquela concepção
teológica da história desenvolvida com base em sua atuação pastoral.
Como vemos em seus papéis, Certeau exorta que o Espírito se manifesta no interior
dos gestos e comportamentos humanos, está refletido nas experiências mais concretas. As
vivências concretas e pessoais com as quais ocorre a relação com Deus, os meios humanos e
históricos pelos quais é possível compreender o Espírito, eis a experiência espiritual do cristão
ao compararmos alguns documentos pessoais Certeau.102 Para o jesuíta, a experiência

100
“[...] semblants de réalité, illusions et chimères”. CERTEAU, Michel de. Pentecote [sic], texto datilografado,
24 de maio de 1953, caixa 2, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.
101
“[...] où toute respiration humaine est impossible [...]”. Ibid.
102
Referências e apontamentos relativos à experiência espiritual podem ser encontrados em diversos
documentos, dentre eles: Id. Pentecote [sic], texto datilografado, 24 de maio de 1953, caixa 2, Arquivo da
Companhia de Jesus, Vanves. Id. Application des sens: le verbe incarné, la parole faite chair, texto manuscrito,
sem data, caixa 2, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves; Id. Première reencontre, texto datilografado, sem
data, caixa 2, Arquivo da Companhia de Jesus; Id. Entrer en retraite, texto datilografado, sem data, caixa 2,
Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves; Id. La messe, notre prière (homilie pendant une retraite sacerdotale),
texto manuscrito, 20 de out. de 1958, caixa 2, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves; Id. Perfection et charité,
texto datilografado, 26-31 de dez. de 1956, caixa 2, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves, sobretudo o
capítulo III.
61

espiritual é o lugar da descoberta dos desígnios divinos endereçados à existência humana, via
na qual Deus se desvela e se faz tangível, veículo por meio do qual os signos de sua presença
são reconhecíveis.
Mas embora presente e passível de ser conhecido, Deus se mantém igualmente
escondido, ainda desconhecido. Ele permanece “oculto e presente em todos os gestos
ordinários do dia”.103 E embora Certeau tenha confiança que um dia será possível melhor
mensurá-lo, hoje ele “está escondido em sua presença e permanência”.104
Essa presença escondida é o mistério da fidelidade que teria sido instituído por Cristo,
que mesmo deixando de estar lá em sua forma até então conhecida, permaneceria junto à
humanidade: “Ele quer permanecer ligado a nós, sob a forma do que é mais necessário e mais
cotidiano: o pão e o vinho. Ele está ali, oculto no alimento diário, presente em seu próprio
dom”.105 Cristo seria o mistério no fundo da história humana, a possibilidade de descobri-lo
no mundo ao mesmo passo que ele ainda se mantém encoberto, imprevisível.
Por isso o discernimento seria um atributo indispensável, não entendido como potência
autônoma, mas como poder natural garantido sobrenaturalmente pela graça, segundo a leitura
inaciana referendada por Certeau. Mesmo diante das fragilidades e limitações humanas, o
crente seguiria confiando que Deus “suprirá a tudo o que falta”.106
A conquista desse conhecimento dar-se-ia à medida que o cristão vai experimentando
as vicissitudes disso que se passa na vida espiritual, em todas as suas dificuldades, desafios e
superações. O acúmulo do que é adquirido na experiência espiritual seria consequência do
discernimento, signo do crescimento paulatino, do amadurecimento gradativo na vida do
espírito. Nesse sentido, a experiência espiritual é progressiva, é desenvolvimento contínuo a
ser conquistado.
Um bom exemplo dessa lógica temporal cumulativa, inerente ao discernimento
espiritual, pode ser localizada num sermão sobre o casamento. Por meio do sacramento do
matrimônio, as partes envolvidas testemunhariam uma fidelidade “cujas profundezas só se
descobrem pouco a pouco”.107 As dificuldades, dúvidas e surpresas inevitáveis à jornada

103
“[...] il est caché et présent dans chacun de tous les gestes ordinaires de la journée [...]”. CERTEAU, Michel
de. Mysterium fidei. Fin de l’adoration perpétuelle, texto datilografado, 5 de mar. de 1961, caixa 2, Arquivo da
Companhia de Jesus, Vanves, p. 1. Grifo do autor.
104
“Il est caché par sa présence et sa permanence même”. Ibid., p. 1.
105
“Il veut rester lié à nous, sous la forme de ce qu'il y a de plus nécessaire et de plus quotidien: le pain et le vin.
Il est là, caché dans la nourriture journalière, présent dans son propre don”. Ibid., p. 3.
106
“[...] suppleera [sic] tt [toute] ce qui manque”. Id. Discernement des esprits: l’onction de l’Esprit qui guide
dans l’action, texto manuscrito, sem data, caixa 2, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.
107
“[...] dont les profondeurs ne se découvrent que peu à peu”. Id. Mariage de Gabrielle Teyssier de Savy et de
Jean de la Ferrière, texto datilografado, 31 de mar. de 1959, caixa 2, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves, p.
2.
62

conjugal, como em todas as outras esferas da vida espiritual, poderiam ser vencidas pela
renovação constante da fidelidade: “casar-se é inaugurar algo de grandioso que requer
cotidianamente imaginação, invenção”.108 Para Certeau, a experiência conjugal reflete o amor
de Deus, pois permanece algo vivo e imprevisível.
Justamente por ser imprevisível, a presença costuma se anunciar discretamente, no
silêncio da noite. Como o “estrangeiro que se faz notar e ouvir”, 109 instala-se “no coração da
vida humana, tal qual é, laboriosa, medíocre, lenta”.110 Sua vinda nessas condições precárias,
inesperadas, no que há de mais cotidiano, testemunha sua generosidade incondicional: “ele se
fez pobre a fim de nos enriquecer”, diz a referência paulina que Certeau considera a mais bela
definição de Cristo.111
Então essa deve ser a atitude buscada no cerne da vida cristã. “Somos o que damos”,
afirma Certeau.112 Dar um pouco de bem, de tempo, de estima; descobrir a alegria de perder
algo para ver os outros felizes; conhecer a renovação constante dessa generosidade. Essas são
algumas atitudes necessárias para que seja possível imitar a caridade do Cristo e corresponder
a essa presença escondida na realidade cotidiana.
Essa renovação resulta dos aprendizados em torno da vida. A busca pela superação
contínua é a própria condição existencial da vida espiritual: “ela e uma perfeição real fundada
sobre essa riqueza da vida que nós aprendemos a conhecer. Doravante, ela se mede para nós
pelo que somos”.113 Assim, a perfeição é o problema “não do homem utópico que forja
antecipadamente a criança que quer crescer, mas do homem real que nós nos tornamos”. 114
Mas a realidade espiritual não é homogênea à realidade humana. Em si mesmo, o
mundo não pode dar a si próprio sua verdade e sua salvação. Ele é caracterizado pelo pecado,
algo nele resta necessariamente injusto e condenado. Só uma fidelidade caridosa, uma ajuda
efetiva, é capaz de arrastar o coração humano do egoísmo coletivo, viabiliza a liberdade para

108
“[...] inaugurer quelque chose de grand qui demande quotidiennement de l'imagination, de l'invention [...]”.
CERTEAU, Michel de. Mariage de Gabrielle Teyssier de Savy et de Jean de la Ferrière, texto datilografado, 31
de mar. de 1959, caixa 2, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves, p. 3.
109
“[...] l’étranger [...] qui se fait remarquer et entendre”. Ibid.
110
“[...] au cœur de la vie humaine, telle quelle est, laborieuse, médiocre, lente”. Id. Noël – matin, texto
manuscrito, se data, caixa 2, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves, p. 1.
111
“‘[...] il se fait pauvre afin de nous enrichir’”. Id. Secours catholique, texto datilografado, 20 de nov. de 1960,
caixa 2, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves, p. 3.
112
“Nous sommes ce que nous donnons”. Ibid., p. 2.
113
“Elle est une perfection réelle fondée sur cette richesse de vie que nous avons appris à connaître. Elle se
mesure désormais pour nous à ce que sommes [...]”. Id. Perfection et charité, texto datilografado, 26-31 de dez.
de 1956, caixa 2, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves, p. 2-3.
114
“[...] non pas de l’homme utopique que se forge à l’avance l’enfant qui veut grandir, mais de l’homme réel
que nous sommes devenus”. Ibid. p. 3.
63

dizer não à corrupção monumental inerente ao mundo. Portanto, a característica particular da


fé “se encontra sublinhada pela separação da Igreja e do mundo”.115
Esse mundo condenado é o mundo onde Deus está ausente. A voz humana é solitária
subsistindo em si mesma. O pensamento humano não pode elevar-se por conta própria. Deus
pouco a pouco penetra no mundo, associa-se à experiência humana, fala a sua linguagem
passada, presente e futura, paulatinamente domesticando-a para que ela possa dizer sua
verdade, a Verdade. Isto é, da voz de Deus nasce a verdade humana, o que há de mais real e
verdadeiro na existência do mundo.116
Nesse sentido, se progresso espiritual está às voltas com os problemas reais do
homem, ele presta contas principalmente ao problema de Deus, pois os cristãos são chamados
a sair de si mesmos rumo a algo que está além deles, são arrastados de sua situação atual para
que possa haver uma comunicação com algo de mais essencial. A perfeição de Deus é o que
permite ir alhures, em direção à sua própria perfeição. Como exortava Paulo, “sejam os
imitadores de Jesus Cristo”.117
Karl Rahner descreve bem a questão da separação da Igreja e do mundo, num trecho
sobre a vida espiritual laica traduzido por Certeau:
O mundo não é unicamente pecador, em revolta contra Deus em sua
oposição a Cristo, à graça e à Igreja; é também a criação de Deus, uma
realidade suscetível de redenção e feita para ser santificada; como tal, não é
idêntico à Igreja, mas a Igreja é antes o instrumento histórico, visível e
constituído na sociedade, pelo qual Cristo faz chegar o Reino de Deus no
mundo redimido e salvo.118
A esse respeito, Certeau afirma que a vida espiritual laica (aquela não ordenada,
sacerdotal) não pode ela mesma ser um critério de discernimento da verdade. A “autoridade
da Igreja e a obediência à hierarquia, a ligação aos sacramentos, etc.,” fazem parte dessa
vivência, são “a verdade dessa experiência”.119

115
“[...] se trouve souligné par la séparation de l’Eglise et du monde”. CERTEAU, Michel de. L’Evangile de la
passion, texto manuscrito, sem data, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves; Id. Retraite de fin d’études, texto
datilografado, sem data, caixa 2, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves, especialmente a parte “second stade”.
Grifo do autor.
116
Id. La parole de Dieu: Dieu vous parle, texto manuscrito, sem data, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.
117
“[...] Soyez les imitateurs de Jésus-Christ [...]”. Id. Perfection et charité, texto datilografado, 26-31 de dez. de
1956, caixa 2, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves, p. 3.
118
“[...] le monde n’est pas uniquement pécheur, en révolte contre Dieu dans son opposition au Christ, à la
grace et à l’Eglise; il est aussi la création de Dieu, une réalité susceptible te rédemption et faite pour être
sanctifiée [...]; à ce titre, il n’est pas identique à 1’Eglise, mais l’Eglise est plutôt l'instrument historique, visible
et constitué en société, par lequel le Christ fait arriver le Règne de Dieu dans le monde racheté et sauvé”.
RAHNER, Karl. L’apostolat du laïc [traduzido por Michel de Certeau], texto datilografado, sem data, caixa 2,
Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves, p. 4.
119
CERTEAU, Michel de. Discernement des esprits et θgie du laïcat, texto manuscrito, 11 de set. de 1954, caixa
2, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.
64

É também o que ocorre com as demais experiências humanas, embora sejam cada vez
mais comuns as práticas que prescindem da linguagem religiosa no mundo moderno: “a
oração se apresenta ela própria como um mundo estranho”,120 “os conventos se tornam tipos
de relicários onde se conserva misteriosamente a contemplação”.121 Quanto mais imerso no
mundo técnico, mais essa disparidade é sentida. Quanto mais frequente é a realidade de um
universo, mais distante parece estar do outro:
A experiência da vida, os engajamentos e responsabilidades, as dificuldades
objetivas as quais se deve encarar aumentam esse sentimento de
heterogeneidade do mundo onde vivemos e do Deus que cremos. Essa
opacidade do mundo coloca uma temível questão: onde encontrar Deus que
tudo nos esconde? A ausência de Deus, eis o que descobre progressivamente
aquele que entra mais no mundo objetivo do trabalho, da política, etc. 122
“O que fazer?”, pergunta o cristão diante da incerteza da presença de Deus nessa ou
naquela situação corrente. Para Certeau, essa questão é enfrentada por qualquer um que busca
os meios para realizar um objetivo, seja um pai ou uma mãe querendo satisfazer a necessidade
de seus filhos, um comerciante tendo em vista novos clientes, um professor ansioso por
inspirar seus alunos, um apaixonado desejando agradar e ser correspondido. É uma pergunta
natural e necessária aos desafios impostos pela vida, que é também a vida dos cristãos.
Portanto, em determinadas condições, frente às dificuldades características da vida crente, ele
deve perguntar-se: como ser fiel? Como responder às exigências da fé?
O problema não é resolvido apenas crendo que Deus está aqui ou ali. A fé não é
apenas um conjunto de palavras, de princípios ou ideias herdadas, mas uma “ciência cristã da
ação”.123 Operante e ativa, ela é sabedoria que inspira o agir. E qual é a modalidade dessa
ação? A caridade, responde Certeau.124
Desse modo, a resposta não é encontrada fora do próprio horizonte religioso cristão,
pois a caridade é o sentido indicado pela história de Jesus, testemunhado pelos apóstolos e
perseguido pela Igreja. Somente pela fidelidade à caridade de Cristo é possível aprofundar a
vida cristã inerente à realidade cotidiana:

120
“La prière se présente elle-même comme un monde étranger”. CERTEAU, Michel de. La prière de l’homme
moderne, texto manuscrito, 15 de abr. de 1959, caixa 2, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves, p. 2.
121
“[...] les couvents deviennent des sortes de reliquaires où se conserve mystérieusement la contemplation”.
Ibid., p. 2.
122
“L'expérience de la vie, les engagements et les responsabilités, les difficultés objectives auxquelles on doit
faire face accroissent ce sentiment de l'hétérogénéité du monde où nous vivons et du Dieu en qui nous croyons.
[...] Cette opacité du monde pose une redoutable question: [...] où trouver Dieu, que tout nous cache? L'absence
de Dieu, voilà ce que découvre progressivement celui qui entre davantage dans le monde objectif du travail, de
la politique, etc. [...]”. Ibid., p. 2.
123
“[...] science chrétienne de l’action”. Id. 8e dim. ap. Pentecôte, texto datilografado, sem data, caixa 2,
Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves, p. 2.
124
Ibid., p. 3.
65

Que realidade? A da comunidade - seja a paróquia, a família, a oficina, o


escritório ou o sindicato. Lá onde nos ajudamos mutuamente, onde nos
importamos uns com os outros, onde nos encontramos com alegria e onde
colaboramos a uma mesma obra, lá está a caridade. 125
Nenhum material fornecido pelo mundo deve ser menosprezado, mas cabe recorrer a
tudo com a inteligência da caridade. Dinheiro, talentos, posições, bens efêmeros, ele lança
mão para praticá-la. Seus recursos e capacidades são um meio para esse fim, a exemplo da
Igreja, que trabalhou “através de todos os séculos e países, pelo respeito e serviço mútuos, de
acordo com as exigências da justiça e da ingenuidade do amor”.126
Sejam quais forem as atividades cotidianas que o cristão compartilha socialmente, elas
são componentes necessários à experiência espiritual, à caridade e ao desvelamento da
verdade. Esse vínculo entre a experiência espiritual e as experiências humanas também estava
no centro da reflexão teológica em artigos publicados por Certeau nesse primeiro momento de
sua trajetória.
Ele contava com trinta e um anos de idade à época de sua ordenação em 1956, quando
foi designado pela Companhia para a equipe editorial da Christus, revista criada em 1954 com
objetivo de divulgar a espiritualidade inaciana e de pensá-la no conjunto das demandas do
mundo moderno. Certeau também atuou na coleção homônima dirigida pela revista, criada em
1959. Grande parte de sua produção intelectual sobre temas espirituais foi publicada nessa
revista. Além do mais, seus dois primeiros livros resultantes de sua pesquisa histórica saíram
na coleção que a integrava.
Certeau divulgou alguns pequenos textos no boletim do Seminário Universitário de
Lyon entre 1948 e 1953.127 Em 1954, apresentou uma tradução comentada de um extrato do
Mémorial de Pierre Favre, na Christus.128 No entanto, foi no boletim do Seminário
Universitário de Lyon onde o padre expressou mais claramente um possível campo de

125
“Quelle réalité? Celle de la communauté, - que ce soit la paroisse, la famille, l'atelier, le bureau ou le
syndicat. Là où l'on s'entr’aide, là où l'on a souci les uns des autres, là où l'on se retrouve avec joie et où l'on
collabore à une même œuvre, là est la charité”. CERTEAU, Michel de. Mysterium fidei. Fin de l’adoration
perpétuelle, texto datilografado, 5 de mar. de 1961, caixa 2, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves, p. 3.
126
“[...] à travers toutes les siècles et les pays, par le respect et le service mutuels, selon les exigences de la
justice et les ingéniosités de l'amour [...]”. Id. 8e dim. ap. Pentecôte, texto datilografado, sem data, caixa 2,
Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves, p. 3.
127
CERTEAU, Michel de. Le Canada français. Pax. Bulletin du Séminaire Universitaire, v. 12, n. 69, p. 16-18,
1948; Id.; MASNE, Henri le. Rencontre avec l’Islam. Pax. Bulletin du Séminaire Universitaire, v. 13, n. 71, p.
12-15, 1949; Id. Michel de Certeau s.j. vient interviewer le S.U. Pax. Bulletin du Séminaire Universitaire, v. 17,
n. 89, p. 34-36, 1953. Material consultado na Biblioteca Nacional da França.
Esses textos eram desconhecidos até 2009, quando foram localizados por Andrés G. Freijomil. Sobre essas
primeiras publicações de Certeau, ver FREIJOMIL, Andrés G. À la recherche du “premier” Michel de Certeau.
Les enjeux de ses premiers textes publiés pendant les années lyonnaises (1947-1950). Rivista di Storia e
Letteratura Religiosa, v. XLVIII, n. 1, p. 117-154, 2012. Disponível em: https://cutt.ly/nktKCIc. Acesso em: 25
abr. 2020.
128
FAVRE, Pierre. Le progrès de l’homme spirituel. Christus, t. 1, n. 4, p. 89-104, août 1954.
66

trabalho científico e de objeto teológico: a teologia espiritual e a experiência religiosa,


respectivamente.129 Seguiram-se alguns artigos na Christus em 1957 e 1959.130 Tomarei como
eixo essa abordagem da experiência no artigo do Boletim e a articularei com algumas
afirmações nos textos na revista inaciana, para mostrar como essa teologia espiritual ampara
uma interpretação teológica do tempo e da história.
Michel de Certeau inicia sua exposição sobre o problema da relação entre o homem e
Deus nos seguintes termos:
À medida que se aproximam d’Aquele que amam, os crentes sempre têm,
um dia ou outro, um sentimento de vazio: eles abraçam uma sombra! Eles
acreditavam encontrá-lo avançando em Sua direção, mas Ele não está mais
lá. Eles o procuram em algum lugar em si, examinam em si o local onde Ele
poderia estar, mas ele não está em lugar nenhum. Eles podem então dizer a si
mesmos: “Na verdade, eu não tenho experiência nem de Sua existência, nem
de Seu amor por mim, nem de minha transformação n’Ele. Eu acredito, isso
é tudo. Eu afirmo, sem mais; e na representação que fiz dele, o perdi, ou
perdi-me, não sei; e estou sozinho”. A existência parece “alienada” na fé. 131
O trecho supracitado coloca claramente o problema da negatividade de Deus. Para a
teologia negativa, a substância ou essência divina é mais conhecida pelo que não é do que
pelo que é. Tal negatividade reserva ao homem um silêncio absoluto por parte de Deus,
ausência na qual estaria fundada toda experiência espiritual. Esse problema, levantado muitos
séculos antes pela teologia negativa de um Pseudo-Dionísio, reapareceu na reflexão
contemporânea centrada sobre o tema da existência. A questão ganhou terreno na primeira
metade do século XIX a partir da pena de Soren Kierkegaard.
Os trabalhos de Kierkegaard foram difundidos na França a partir dos anos 1930 com a
publicação de Études kierkegaardiennes de Jean Wahl em 1938. O apogeu da recepção
francesa do filósofo dinamarquês ocorreu no pós-guerra, quando o existencialismo desfrutava

129
CERTEAU, Michel de. L’expérience religieuse: “connaissance vécue” dans l’Eglise. Pax. Bulletin du
Séminaire Universitaire, v. 19, n. 99, p. 1-19, mai 1956.
130
Id. Les pèlerins d’Emmaüs (méditation). Christus, t. 4, n. 13, p. 56-63, janv. 1957; Id. Aspects de la Prière.
Christus, t. 4, n. 13, p. 132-141, janv. 1957; Id. Les lendemains de la décision: la “confirmation” dans la vie
spirituelle. Christus, t. 4, n. 14, p. 187-205, avril 1957; Id. La prière des ouvriers. Christus, t. 4, n. 15, p. 413-
427, juil. 1957; Id. L’ascension. Christus, t. 6, n. 22, p. 211-220, avril 1959.
131
“En s'approchant de Celui qu'ils aiment, les croyants ont toujours, un jour ou l'autre, le sentiment du vide: ils
embrassent une ombre! Ils croyaient le trouver en s'avançant vers Lui, mais Il n'est plus là. Ils le cherchent
quelque part en eux, ils scrutent en eux l'endroit où Il pourrait être. Mais Il n'est nulle part. Ils peuvent alors se
dire: ‘De fait, je n'ai l'expérience ni de Son existence, ni de son Amour pour moi, ni de ma transformation en
Lui. Je crois, c'est tout. J'affirme, sans plus; et dans la représentation que je me suis faite de Lui, je l'ai perdu ou
je me suis perdu moi-même, je ne sais; et je suis seul’. L'existence semble ‘aliénée’ dans la foi”. Id. L’expérience
religieuse: “connaissance vécue” dans l’Eglise. Pax. Bulletin du Séminaire Universitaire, v. 19, n. 99, p. 1-19,
mai 1956. p. 1.
67

de ampla divulgação no cenário intelectual e cultural francês, angariando leitores no ambiente


cristão.132
Embora Certeau não especifique a orientação teórica da crítica relatada na passagem
citada acima, não seria sem fundamento associá-la a certa leitura existencialista, visto a
difusão desta perspectiva filosófica na França até pelo menos os anos 1960, quando perde
prestígio para o estruturalismo.
Para Kierkegaard, a vida religiosa impõe um risco necessário, uma incerteza objetiva
sobre Deus. É quando o homem dá o salto da fé e se lança no abismo em direção ao absurdo.
Mesmo o absurdo é pensado fora da ordem do intelecto, pois não significa incongruência,
inverossimilhança ou imprevisto, mas o princípio de que para Deus tudo é possível. É no
absurdo da fé que o homem se redime.133 Daí uma compreensão da experiência religiosa
segundo essa perspectiva parecer, como enunciado por Certeau, tomar a existência como uma
alienação na fé.
Certeau também faz alusão à tendência em identificar experiência e intuição,
entendida como apreensão imediata além da inteligibilidade e da linguagem, “visão” ou
“contato”, momento absoluto e vertical, espécie de tempo privilegiado e sagrado numa
história profana. Seria como algo autêntico avançando dentre o inautêntico, esculpindo um
templo no mundo para algo que não é mundano, lugar sagrado para um tesouro íntimo,
estranho a toda enunciação. Mais uma vez, negatividade: “toda a linguagem só alcança dela o
que não é. Ela é alguma coisa, mas outra coisa”.134
Essa postura é associada por Certeau ao pragmatismo.135 Ao isolar um momento e
dotá-lo do privilégio da autenticidade em relação aos outros, essa orientação
divide a vida em duas zonas, uma experiencial e outra intelectual, estranhas
uma à outra e destruindo-se mutuamente em sua própria solidão: a intuição
inenarrável se perde em sua própria confusão [...] e, por sua vez, o discurso
utilitarista “para os outros” desmorona em sua própria superficialidade e na
vaidade de seu dizer.136

132
A esse respeito, ver os comentários de François Dosse sob a relação entre a filosofia da existência sob a ótica
de Paul Ricoeur e autores cristãos como Kierkegaard, Gabriel Marcel e Karl Jaspers. DOSSE, François. Paul
Ricoeur: um filósofo em seu século. Tradução de Eduardo Lessa Peixoto de Azevedo. Rio de Janeiro: FGV
Editora, 2017. p. 28-44.
133
Cf. REGINA, Umberto. Kierkegaard. Tradução de Alessandra Siedschlag. São Paulo: Ideais e Letras, 2016.
134
“[...] tout langage n’atteint d’elle que ce qu’elle n’est pas [...] Elle est quelque chose, mais autre chose”.
CERTEAU, Michel de. L’expérience religieuse…op. cit., p. 2.
135
Denis Pelletier associa essa alusão de Certeau mais especificamente ao pragmatismo de William James. Cf.
PELLETIER, Denis. L’expérience religieuse: note sur quatre textes de Michel de Certeau. In: GIARD, Luce
(Dir.). Michel de Certeau: le voyage de l'oeuvre. Paris: Éditions Facultés jésuites de Paris, 2017. p. 34. Cf.
JAMES, William. (1902) Varieties of religious experience: a study in human nature. London: Routledge, 2002.
136
“[...] ce pragmatisme coupe la vie en deux zones, l’une expérientielle et l’autre intellectuelle, étrangères l’une
à l’autre et se détruisant l’une l’autre dans leur solitude même: l’intuition inénarrable se perd dans sa propre
68

Os “críticos clássicos” tratam a “experiência tal qual ela se apresenta e deve ser
descrita”.137 A frase “tal qual ela se apresenta” se assemelha a uma das definições possíveis
do termo “fenômeno”: “aquilo que aparece ou se manifesta em si mesmo”. 138 A experiência
religiosa como fenômeno a ser descrito está no epicentro da clássica abordagem
fenomenológica da religião.139 É bastante possível que ela estivesse no radar de Certeau
quando alude genericamente às “críticas clássicas” da experiência religiosa. Para ele “esse
projeto de observá-la tal qual ela é”140 já supõe um conhecimento do que ela seja. Ele já sabe
o que procura. O valor de suas hipóteses é provado por sua capacidade de encontrar na
realidade o que já era presumido sobre a descoberta. Nada dissimula seu objeto. 141
Mas o que é a experiência religiosa para Michel de Certeau?
Embora não negligencie os limites da representação em capturar a esfera
transcendente, ele ressalta a imprecisão da crítica que aprisiona a vida espiritual inteiramente
nas fronteiras da fé, como se a existência restasse nela alienada. Se os defensores dessa
posição “têm razão em criticar o que pensam de Deus em nome de sua experiência”, não é por
isso que essa crítica seja precisa: “a vida cristã não é essencialmente uma alienação e
certamente não é uma alienação em uma teoria, sequer uma teologia. É verdadeiramente uma
experiência, um ‘conhecimento vivido’”.142

confusion [...] et de son côté le discours utilitariste ‘pour autrui’ s’effrite dans sa propre superficialité et la
vanité de son dire”. CERTEAU, Michel de. L’expérience religieuse: “connaissance vécue” dans l’Eglise. Pax.
Bulletin du Séminaire Universitaire, v. 19, n. 99, p. 1-19, mai 1956, p. 3.
137
“Ces critiques classiques nous ramènent à l’expérience telle qu’elle se présente et qu’elle doit être décrite”.
Ibid., p. 3.
138
Segundo o verbete Fenômeno em: ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 5. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2007. p. 510-511.
139
Na relação entre fenomenologia e religião, dois nomes se destacam: Rudolf Otto e Gerardus van der Leeuw.
Cf. OTTO, Rudolf. (1917) O sagrado: os aspectos irracionais na noção do divino e sua relação com o racional.
Tradução de Walter O. Schlupp. Petrópolis: Vozes, 2007; LEEUW, Gerard van der. (1933) Religion in essence
and manifestation. Translated by J. E. Turner. Princeton: Princeton University Press, 1986.
Agradeço ao professor Sérgio Ricardo da Mata por atentar-me para a existência da obra de Rudolf Otto.
Para possíveis similaridades e diferenças entre a interpretação de Certeau e a fenomenologia da religião, cf.
QUADROS, Eduardo Gusmão de. A experiência viva: uma introdução a história religiosa de Michel de Certeau.
Comunicação apresentada no Simpósio Vivencias do Sagrado no Centro-Oeste, CEHILA, Goiás, nov. 2002; Id.
A vivência religiosa como objeto da História das Religiões: uma leitura de Michel de Certeau. Impulso, v. 15, n.
37, p. 101-109, 2004.
140
“[...] ce projet de l’observer tell qu’elle est [...]”. CERTEAU, op. cit., p. 3.
141
Essa imagem não nos parece corresponder à abordagem fenomenológica encontrada em Rudolf Otto, quem
enfatizou a existência de um elemento irracional sempre vivo na experiência religiosa. Segundo o alemão, os
aspectos racionais nunca esgotam a descrição da experiência do absoluto. Sua categoria de numinoso é a
expressão dessa hipótese. OTTO, op. cit., p. 33-39. Essa crítica, talvez, seja uma imagem mais justa à
fenomenologia praticada em Religion in essence and manifestation, de van der Leeuw.
142
“[...] Ils ont raison de critiquer ce qu'ils pensent de Dieu au nom de leur expérience, même si cette critique
n'est pas encore exacte. La vie chrétienne n'est pas essentiellement une aliénation et n'est certainement pas une
aliénation dans une théorie, fût-ce une théologie. Elle est vraiment une expérience, une “connaissance vécue”.
CERTEAU, op. cit., p. 1.
69

Caso a existência fosse alienada na fé, a experiência contida na declaração “o que


ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que temos contemplado e as nossas mãos
tocaram da Palavra da vida”, proferida na primeira epístola joanina, seria exclusiva àqueles
que cruzaram os caminhos de Jesus na Palestina ou às almas que encontraram Deus numa
união mística inalcançável aos demais, a quem restaria apenas, admirados, contentar-se com o
entendimento extraído do conteúdo de sua descrição. Não é o caso, afirma Certeau, pois “a
vida cristã comum (o ‘nós’ de São João, sem dúvida, traz o testemunho de toda a Igreja que
fala com Ele) tem sua verdade no encontro real com o Deus que vem a nós através de Jesus
Cristo”.143
Assim como o Espírito está encarnado em Jesus, por meio de quem comunica sua
verdade a todos, é na carne que Deus fala aos homens. Uma revelação, aparição gratuita e
imprevisível, é indissociável da experiência. Como ela não pode ser conhecida em si mesma,
fora desse encontro efetivo que lhe caracteriza, uma pura descrição não faz jus à sua natureza.
Essa experiência tampouco é intuição, momento isolado dotado de autenticidade,
inexpressável para quem a vive:
A experiência espiritual não é um momento, mas uma duração. Ela não é um
“isto” isolado, mas uma evolução que vai de um “antes” a um “depois”. É o
deslocamento deste que eu sou em direção a este que ainda não sou; mas
esse futuro revela, por sua vez, o que eu era, então o que eu sou; e ele
prepara em si uma nova superação para o futuro e um novo retorno ao
passado.144
Certeau faz uma leitura temporal da experiência. Sua compreensão do tempo é
bastante próxima a encontrada em santo Agostinho. No trecho supracitado, a tensão que o
futuro exerce na experiência anuncia a necessária emergência de um passado que dará lugar a
um novo presente. Em termos agostinianos, dir-se-ia “que o passado é impelido pelo futuro e
que todo o futuro está precedido dum passado”.145 Mas de que maneira isso que passou é
aportado na duração seguinte que a sucede? A pergunta poderia ser colocada por intermédio
de uma interpelação agostiniana: como é possível “medir os tempos passados que já não
existem ou os futuros que ainda não chegaram?”.146 Por meio da memória, dirá Certeau: “a

143
“La vie chrétienne commune (le ‘nous’ de saint Jean apporte sans doute le témoignage de toute l’Église qui
parle avec Lui) a sa vérité dans la rencontre effective avec le Dieu qui vient en nous par Jésus-Christ”.
CERTEAU, Michel de. L’expérience religieuse: “connaissance vécue” dans l’Eglise. Pax. Bulletin du Séminaire
Universitaire, v. 19, n. 99, p. 1-19, mai 1956. p. 1.
144
“L'expérience spirituelle n'est pas un moment mais une durée. Elle n'est pas un "ceci" isolé, mais une
évolution qui va d'un "avant" à un "après". Elle est le déplacement de ce que je suis vers ce que je ne suis pas
encore; mais cet avenir révèle à son tour ce que j'étais, donc ce que je suis; et il prépare en cela même un
nouveau dépassement vers le futur et un nouveau retour vers le passé”. Ibid., p. 3.
145
AGOSTINHO, Santo. Confissões. Porto: Livraria Apostolado da Imprensa, 1981. Livro XI, Cap. 11, § 13.
146
Ibid., Livro XI, Cap.16, § 21.
70

presença de Deus far-se-á somente em forma de ‘memória’”.147 Essa resposta ressoa mais
uma vez o pensamento do bispo de Hipona.
Voltemos à pergunta “quem pode medir o tempo”. Essa questão remete ao tratamento
dispensado por Agostinho à aporia cética do ser e do não ser do tempo.148 Segundo o
argumento cético, o passado não é mais, o presente não permanece e o futuro ainda não é.
Portanto, o tempo não tem ser. Não obstante, diz-se das coisas passadas que elas foram, das
presentes que são e das futuras que ainda serão. Isto é, o ser é a todo momento enunciado ao
falar do tempo. Eis a aporia do tempo, falar do ser de algo que não tem ser. Seria então
possível medir o tempo? “Só se alguém se atrever a dizer que pode medir o que não
existe!”.149
Mas se o tempo em si mesmo não possui ser, os fatos passados existiram, foram vistos
e por isso podem ser relatados veridicamente. Então onde tais coisas passadas e futuras
existem? Elas existem no presente, sendo três os tempos: “presente das coisas passadas,
presente das presentes, presente das futuras”.150 É na mente, e em nenhuma outra parte, que
esses três tempos têm lugar: “lembrança presente das coisas passadas, visão presente das
coisas presentes e esperança presente das coisas futuras”.151
Dessa maneira, Agostinho desdobra a aporia cética a ponto de encontrar uma acepção
possível para a palavra “tempo”. Para a filosofia agostiniana do tempo, futuro e passado só
existem no espírito. A expectativa do futuro vai, pela via da atenção presente, dando lugar ao
crescimento do passado até que ele (o futuro) se torna completamente pretérito. Ou como
Agostinho explica: “aquilo que o espírito espera passa através do domínio da atenção para o
domínio da memória”.152 A célebre definição agostiniana do tempo como distensão da alma
consiste justamente nessa relação entre expectação, atenção e memória.
A esta altura já está evidente a relevância da memória no interior da filosofia
agostiniana do tempo, como também o é para a teologia da experiência religiosa de Michel de
Certeau. É por meio da memória que as coisas passadas permanecem no espírito e podem ser
medidas: “Em ti, ó meu espírito, meço os tempos!”. 153 Mede-se o que das coisas passadas

147
“[…] la présence à Dieu ne se fera que sur mode de ‘mémoire’”. CERTEAU, Michel de. L’expérience
religieuse: “connaissance vécue” dans l’Eglise. Pax. Bulletin du Séminaire Universitaire, v. 19, n. 99, p. 1-19,
mai 1956. p. 5.
148
RICŒUR, Paul. (1983) Tempo e narrativa. Tradução de Constança Marcondes Cesar. Campinas: Papirus,
1994. v. 1. p. 22.
149
AGOSTINHO, Santo. Confissões. Porto: Livraria Apostolado da Imprensa, 1981. Livro XI, Cap. 16, § 21.
150
Ibid., Livro XI, Cap. 20, § 26.
151
Ibid., Livro XI, Cap. 20, § 26.
152
Ibid., Livro XI, Cap. 28, § 37.
153
Ibid., Livro XI, Cap. 27, § 36.
71

permanece registrado na memória, “impressão que permanece, ainda depois de elas terem
passado”.154
Contudo, a memória não é composta dos próprios acontecimentos passados, mas de
percepções que relatam uma imagem dos fatos, dos vestígios deixados no espírito por
intermédio dos sentidos. Certeau desdobra espiritualmente essa questão – que é agostiniana –
ao afirmar que a “memória é apenas uma imagem e uma imitação humana do que Ele é”. 155 A
verdade dos elementos psicológicos da experiência – cada ideia, sentimento ou gesto – é
revelada temporalmente, em cada momento seguinte onde eles ganham lugar. Lendo essa
questão fundamentalmente agostiniana em termos inacianos, Certeau dirá que um pensamento
ou ação não podem ser bons em si mesmos, seu valor só pode ser encontrado no movimento
onde estão integrados.156 Não se pode discernir Deus num instante, reconhecer num momento
a totalidade do que recebe de Deus. Isso só é possível na dispersão de seu próprio tempo, “por
um processo de ‘repetição’ e por um agrupamento de sua consciência que está sempre em
atraso em relação a Deus”.157
Essa abordagem de Certeau associa o aspecto teologal (uma fé) e o aspecto humano (o
tempo, a memória, os dados psicológicos) da experiência. O mistério da presença é o
pressuposto dessa leitura, o fundamento do atraso da experiência em relação ao seu objeto.
Uma imagem precisa dessa da situação presente e ausente de Deus encontra-se na
experiência vivida pelos discípulos de Emaús:
Um homem encontra em seu caminho os dois feridos a quem o bem de suas
almas foi roubado. Este bom samaritano que “tocado de compaixão”,
“aproxima-se” deles e “cuida de suas feridas” é “Jesus em pessoa”. É ele,
sempre, quem vem até nós: Deus se faz nosso próximo. Destas ovelhas sem
pastor, destes doentes sem um médico, desses homens despojados de suas
esperanças, mas ainda habitados por sua lembrança e o perseguindo ali
mesmo onde eles bem sabem que não o encontrarão mais [...], Jesus se
aproxima.158

154
AGOSTINHO, Santo. Confissões. Porto: Livraria Apostolado da Imprensa, 1981. Livro XI, Cap. 27, § 36.
155
“‘mémoire n’est qu’une image et une imitation humaine de ce qu’Il est”. CERTEAU, Michel de.
L’expérience religieuse: “connaissance vécue” dans l’Eglise. Pax. Bulletin du Séminaire Universitaire, v. 19, n.
99, p. 1-19, mai 1956. p. 5.
156
Certeau toma como referência o § 333 e 334 dos Exercícios espirituais de Inácio de Loyola. Ibid., p. 4.
157
“[…] par un processus de ‘répétition’ et par un rassemblement de sa conscience qui est toujours en retard
sur Dieu”. Ibid., p. 4.
158
“Un homme rejoint sur leur route les deux blessés auxquels on a volé le bien de leur âme. Ce bon Samaritain
qui, touché de compassion, « s’approche » d’eux et « panse leurs plaies », c’est « Jésus en personne ». C’est lui,
toujours, qui vient à nous : Dieu se fait notre prochain. De ces brebis sans pasteur, de ces malades sans
médecin, de ces hommes dépouillés de leurs espoirs mais encore habités par son souvenir et le poursuivant là
même où ils savent bien qu’ils ne le trouveront plus […], Jésus s’approche.”. CERTEAU, Michel de. Les
pèlerins d’Emmaüs (méditation). Christus, t. 4, n. 13, p. 56-63, janv. 1957, p. 57. Certeau também menciona a
passagem dos peregrinos de Emaús no artigo de 1956, na página 4.
72

Para todos “aqueles que o procuram, as mulheres que vão ao seu túmulo, os discípulos
de Emaús, os apóstolos privados dele, Jesus permanece ausente. Ele está lá, novamente,
presente, mas ausente desde então”.159 Jesus continua entre eles, embora irreconhecível, pois
já não significa mais o mesmo:
São Lucas enquadra sua frase nestas duas palavras que resumem a história,
toda a história. Ele está entre nós. Mas eles não o reconhecem. "Eles estão
impedidos de fazê-lo". Eles estão muito absorvidos pelo que perderam, para
ver o que lhes é dado.160
A vida cristã é essencialmente a experiência desse mistério do Cristo fisicamente
ausente e espiritualmente presente, motivo pelo qual a presença não pode ser reconhecida
totalmente em uma duração particular. Cada momento de uma experiência é virtualmente
metamorfose em duração passada a ser reconhecida noutro presente. Uma situação é
estrangeira em relação a si mesmo, pende em direção a outra na sucessão. Cada duração é
necessária para o reconhecimento do sentido sempre em atraso e tensionado entre algo que
não é mais e algo que é, entre algo que se perde e algo que se reconhece, entre uma
despossessão e uma possessão.161
Dessa maneira, a experiência espiritual necessariamente passa pela questão da
expressão. A linguagem não é estranha à experiência, um intruso que afasta e impede o dizer
daquilo que nela se dá ou o conhecimento que ela pretende. O indizível é a verdade da
linguagem, está nisso que ela diz. Algo do que está em silêncio se implica no dizer, sem se
identificar nele. Nenhuma fala pode capturá-lo plenamente, dizê-lo enquanto tal, mas múltipla
e sempre renovada, retoma o sentido indefinidamente repetido no discurso. Nesse sentido, a
linguagem não só participa da experiência, mas formula um saber, interpreta dizendo ao dar
sentido particular a isso que passa, e essa consciência amanhã será uma inconsciência, o saber
de hoje, um não saber.162
Essa linguagem é diálogo com os outros através do tempo. Porque a experiência fala,
ela conversa: “ela só sabe pelos outros, e só é para os outros”.163 Mesmo na solidão, o diálogo
íntimo já traz a presença de outrem. O desenvolvimento da experiência pessoal e a

159
“De ceux qui le cherchent, les femmes qui vont à son tombeau, les disciples d'Emmaüs, les apôtres privés de
lui, Jésus reste absent [...] Il est là, de nouveau, présent mais absent déjà”. CERTEAU, Michel de. Les pèlerins
d’Emmaüs (méditation). Christus, t. 4, n. 13, p. 56-63, janv. 1957, p. 62.
160
“saint-Luc encadre sa phrase dans ces deux mots qui résument l’histoire, tout histoire. Lui avec nous. Mais
ils ne le reconnaissent pas. « Ils en sont empêchés ». Ils sont trop absorbés par ce qu’ils ont perdu, pour voir ce
qui leur est donné.”. Ibid., p. 57.
161
Certeau explicita essa dinâmica como uma duração tensionada entre um “pas encore” e um “déjà plus”. Id.
L’expérience religieuse: “connaissance vécue” dans l’Eglise. Pax. Bulletin du Séminaire Universitaire, v. 19, n.
99, p. 1-19, mai 1956, p. 4.
162
Ibid. p. 5-8.
163
“[...] elle ne sait que par autrui, et n’est que pour autrui”. Ibid., p. 11. Grifo do autor.
73

consciência que ela tem de si mesma carregam a intervenção dos outros, as marcas da
tradição, das circunstâncias históricas, da sociedade. Então, no reconhecimento e união com
os outros, é possível encontrar Deus. A experiência é obediência à regra do diálogo respeitoso
com os outros. Somente esse diálogo torna possível a fidelidade a Deus.
A experiência compreende uma alteridade que não deixa de assimilar. Ele sempre é
nisso que não é: alteridade temporal, alteridade da linguagem, alteridade dos outros. Segue “a
passagem do tempo, a discursividade da linguagem, a multiplicidade dos outros, com a
segurança de encontrar em tudo Aquele que ama, mas também de não o fixar em coisa
alguma”.164
É o caso da experiência da oração. A presença inacessível do Verbo na linguagem se
impõe na multiplicidade indefinida das orações humanas, tempo uno e múltiplo da história
humana com Deus. A oração é sempre a mesma, “na multiplicidade de seus pronunciamentos
e de suas invenções”.165 Sua expressão varia “segundo os contextos psicológicos, sociais e
históricos”,166 por isso “a oração de São João não foi a de São Paulo; a dos primeiros cristãos
de Corinto não tinham a mesma linguagem que a dos católicos franceses do século XVII”. 167
Portanto, à experiência espiritual corresponde um “progressivo aprofundamento do
passado”168 onde os novos episódios adquirem sentido.
Se a experiência espiritual está sempre em vias de renovação, o que garante sua
efetividade? Se suas durações, sua consciência e sua expressão devem seguir múltiplas para
fazer jus ao mistério da presença, qual é sua garantia, sua evidência, sua veracidade? Certeau
garante a efetividade da experiência por intermédio de uma noção providencial, cristológica,
escatológica e eclesiológica de história.
Segundo Certeau, o mistério da presença “ultrapassa infinitamente o momento
presente”,169 reagrupa o tempo e efetua a unidade na multiplicidade. As coisas e
acontecimentos vêm de Deus, sofrem alterações a partir dele, mutação progressiva do

164
“[...] la longueur du temps, la discursivité du langage, la multiplicité des autres, avec l’assurance de trouver
en tout Celui qu’il aime, mais aussi de ne le fixer en aucune chose”. CERTEAU, Michel de. L’expérience
religieuse: “connaissance vécue” dans l’Eglise. Pax. Bulletin du Séminaire Universitaire, v. 19, n. 99, p. 1-19,
mai 1956, p. 16.
165
“[...] dans la multiplicité de ses prononciations et de ses inventions”. Id. Aspects de la Prière. Christus, t. 4, n.
13, p. 132-141, janv. 1957, p. 139-140.
166
“[...] selon les contextes psychologiques, sociaux et historiques”. Id. La prière des ouvriers. Christus, t. 4, n.
15, p. 413-427, juil. 1957, p. 427.
167
“La prière de saint Jean ne fut pas celle de saint Paul; celle des premiers chrétiens de Corinthe n’a pas le
même langage que celle des catholiques français du XVIIe siècle”. Ibid., p. 427.
168
“[...] progressif approfondissement du passé”. Id. Les lendemains de la décision: la “confirmation” dans la vie
spirituelle. Christus, t. 4, n. 14, p. 187-205, avril 1957, p. 199.
169
“[...] qui dépasse infiniment le moment présent”. Id. L’expérience religieuse: “connaissance vécue” dans
l’Eglise. Pax. Bulletin du Séminaire Universitaire, v. 19, n. 99, p. 1-19, mai 1956, p. 5.
74

universo sob a forma de signos múltiplos que a fé discerne no mundo.170 Então, somente em
Deus se reúnem verdadeiramente as múltiplas durações da história. Em cada um de seus
momentos, há a possibilidade de “capturar nela Aquele que a faz”.171
Contudo, a identificação entre presença e consciência é modelada pela ressureição e
realizada apenas no Cristo, “Naquele que na história é a história”,172 sua recapitulação e
duração total. Toda “a história é destinada à sua manifestação”, 173 mas como ela ocorre por
meio da linguagem do homem, está sempre presente e ausente nesse longo “período de labor
que prepara sua vinda e que trabalha o desejo de sua presença face a face”, 174 momento em
que a verdade encontra sua “Manifestação definitiva”.175
Se razão da história é providencial, se o seu modelo é crístico e se a sua finalidade é
salvífica, a Igreja é quem representa os atos desse espetáculo. Ou como expressa Certeau, ela
é quem constitui a “consciência total dessa história”.176 Portanto, história e eclesiologia são
inseparáveis na leitura da experiência feita por Certeau.
Cada conhecimento pessoal é relativizado na linguagem universal da Igreja, “é
verdadeiro na experiência total, no movimento total ou na consciência total dessa história”. 177
Ela é tanto o que o limita quanto o que o legitima: “o que eu afirmo encontra sua verdade na
afirmação eclesial”, diz Certeau. Penso ser essa inseparabilidade entre a linguagem particular
e linguagem da Igreja o critério que permite Certeau identificar experiência espiritual e
experiência religiosa – Certeau não trata isso explicitamente. A experiência pessoal nasce da
regra doutrinal da Igreja e sempre permanece submissa ao seu ensino, enquanto a linguagem
universal da Igreja unifica essas palavras e gestos sucessivos da experiência ao longo do
tempo. Entre as linguagens particulares da experiência e a linguagem universal da Igreja, a
prova que uma é reciprocamente a verdade da outra: o “majestoso desdobramento dos
dogmas”.178

170
CERTEAU, Michel de. Les lendemains de la décision: la “confirmation” dans la vie spirituelle. Christus, t. 4,
n. 14, p. 187-205, avril 1957, p. 196.
171
“[...] saisir en elle [na história] Celui que la fait”. Id. op. cit., p. 5. Grifo nosso.
172
“[...] en Celui qui dans l’histoire est l’histoire”. Ibid., p. 5.
173
“[...] l’histoire humaine est destine à sa manifestation”. Id. L’ascension. Christus, t. 6, n. 22, p. 211-220, avril
1959, p. 218.
174
“[...] période de labeur qui prépare sa venue et que travaille le désir de sa présence face à face”. Ibid., p.
219.
175
“[...] Manifestation définitive”. Id. op. cit., p. 5.
176
“[...] la conscience totale de cette histoire [...]”. Id. L’expérience religieuse: “connaissance vécue” dans
l’Eglise. Pax. Bulletin du Séminaire Universitaire, v. 19, n. 99, p. 1-19, mai 1956, p. 8.
177
“[...] Il est vrai dans l’expérience totale, dans le mouvement total, ou dans. Ibid., p. 8.
178
“[...] majestueux déploiement de ces dogmes [...]”. Ibid., p. 9.
75

1.4 Companheiros espirituais: Favre e Surin

Da associação entre a teologia e a história nos documentos pessoais e nos artigos sobre
temas espirituais de Michel de Certeau, passemos agora às formas assumidas por esse vínculo
em seu trabalho como historiador. Mesmo com sua entrada no domínio específico dos estudos
históricos e com sua formação nessa seara, a produção intelectual daí decorrente continuou
fortemente enraizada no solo religioso de seu pertencimento à Companhia de Jesus.
Embora esses seus trabalhos manejem as mais rígidas exigências da crítica textual e
pratiquem um tratamento histórico das ideias espirituais, eles continuam fazendo funcionar
critérios não históricos contíguos à sua interpretação histórica das experiências religiosas e
das doutrinas espirituais de Pierre Favre e de Jean Joseph-Surin. Esses critérios são uma
interpretação teológica, um postulado teológico e uma “pedagogia” espiritual. Esses aspectos
espirituais de sua obra de historiador acrescentam mais três argumentos à afirmação da
existência de um fundamento teológico determinante de um primeiro momento da abordagem
da história em Michel de Certeau.
Nos anos 1950, diversas ordens religiosas passavam a dirigir esforços ao estudo
histórico das origens de sua espiritualidade. A Companhia de Jesus tomou parte desse
investimento, incentivando o retorno às fontes e mobilizando intelectuais de diferentes
domínios e formações para a realização dessa empreitada, dentre eles Michel de Certeau. 179
Antes de juntar-se aos jesuítas, Certeau vinha estudando a teologia de santo
Agostinho. Após sua ordenação, ele retornou a preparar sua dissertação sobre o tema, mas
logo teve de interrompê-la em obediência ao chamado de seus superiores para estudar os
primórdios da ordem. Desde então voltou seus estudos a Pierre Favre e a Jean-Joseph Surin,
suas principais vias de acesso à espiritualidade dos séculos XVI e XVII.
Nesse domínio, expandiu o conhecimento prévio obtido com sua formação religiosa.
Dez anos antes havia frequentado o seminário de Jean Baruzi no Collège de France,180 mas foi
nos seminários de Jean Orcibal na 5ª seção (Sciences Religieuses) da École Pratique des
Hautes Études (EPHE), entre 1956 e 1965,181 onde encontrou o espaço de troca que o permitiu

179
LE BRUN, Jacques. Michel de Certeau historien de la spiritualité. Recherches de Science Religieuse, v. 91, n.
4, p. 535-552, 2003, p. 536-537.
180
Ibid., p. 539.
181
Dosse data a participação de Certeau entre 1957 e 1966. O recurso material para essa datação são os anuários
da EPHE. O primeiro anuário utilizado é o de 1957-1958. DOSSE, François. (2002) Michel de Certeau: le
marcheur blessé. Paris: La Découverte, 2007. p. 92. Claude Langlois o corrige: os relatórios dos seminários são
publicados no anuário do ano seguinte, assim, o anuário de 1957-1958 relata as atividades de 1956-1957. Dosse
teria sido enganado pelos títulos pouco legíveis do documento. LANGLOIS, Claude. L’initiation aux « sciences
religieuses »: Michel de Certeau au séminaire de Jean Orcibal (1956-1965). Revue d'Histoire de l'Eglise de
76

sintonizar suas referências às exigências específicas trazidas pela incumbência que lhe fora
confiada.
Autores como Baruzi e Orcibal estão entre aqueles que destacaram a filologia e a
história como ferramentas imprescindíveis para o estudo da espiritualidade. Baruzi o fez a
partir da análise dos documentos, do vocabulário e do pensamento em dada época para extrair
implicações filosóficas dessa linguagem particular – a mística dos séculos XVI e XVII.
Orcibal, por sua vez, tomou a crítica textual e a contextualização histórica como recursos
metódicos para estabelecer a origem, o significado e o percurso de doutrinas espirituais que
estudou – Angelus Silesius, Saint-Cyran e o jansenismo, San Juan de la Cruz e a mística
renano-flamenga, etc.182
O estabelecimento da falsificação de Constantino por Lorenzo Valla no século XV, o
desenvolvimento da diplomática por Jean Mabillon no século XVII e a pesquisa antiquária no
século no século XVIII representaram algumas cenas de destaque no desenvolvimento dos
métodos críticos. A erudição desses colecionadores significava uma intimidade com os
documentos escritos, vestígios arqueológicos e tradições orais; o uso de notas de referências
às fontes; a atenção dispensada ao detalhe; e pela depuração cada vez maior de seus métodos
(a paleografia, a numismática, a arqueologia, etc.). A erudição foi sendo absorvida por
domínios modelados segundo os padrões científicos do século XIX. Foi o caso da crítica
textual incorporada pela filologia e pela história.183
A crítica textual se define pelo estudo de textos escritos para a restituição de sua forma
original e para sua apresentação, ou seja, pelo trabalho de edição.184 A crítica textual é um dos
instrumentos da filologia, mas os principais manuais de metodologia da história também

France, t. 104, p. 247-260, 2018, p. 247, nota 2. Em todo caso, para quem acessa o anuário em seu formato
digital, a datação não se mostra enganosa, uma vez que os seminários estão organizados em lista intitulada
“Rapport sur l'exercice 1956-1957”. Cf. École Pratique des Hautes Études, Section des Sciences Religieuses,
Annuaire 1957-1958, t. 65, p. 80-83, 1957. Disponível em: https://cutt.ly/tj54pmW. Acesso em: 29 maio 2020.
182
LE BRUN, Jacques. Michel de Certeau historien de la spiritualité. Recherches de Science Religieuse, v. 91, n.
4, p. 535-552, 2003, p. 539; Id. Le secret d’un travail. In: GIARD, Luce (Dir.). Le voyage mystique: Michel de
Certeau. Paris: RSR/Cerf, 1988. p. 79; Id. De la critique textuelle à la lecture du texte. Le Débat, n. 49, p. 109-
116, mars-avril 1988, p. 109, 111; Id. Jean Orcibal (1913-1991). École Pratique des Hautes Études, Section des
Sciences Religieuses, Annuaire 1991-1992, t. 100, p. 19-21, 1991. Disponível em: https://cutt.ly/wj54xEK.
Acesso em: 29 maio 2020.
183
GINZBURG, Carlo. Lorenzo Valla e a doação de Constantino. In: GINZBURG, Carlo. (2000) Relações de
força: história, retórica e prova. Tradução de Jônatas Batista Neto. São Paulo: Companhia das Letas, 2002. p. 64-
79; DOSSE, François. O nascimento da diplomática. In: DOSSE, François. A história. Tradução de Roberto Leal
Ferreira. São Paulo: Editora Unesp, 2021. p. 25-29; MOMIGLIANO, Arnaldo. O surgimento da pesquisa
antiquária. In: MOMIGLIANO, Arnaldo. (1990) As raízes clássicas da historiografia moderna. Tradução de
Maria Beatriz Borba Florenzano. Bauru: EDUSC, 2004. p. 85-117; Id. (1950) História antiga e o antiquário.
Anos 90, v. 21, n. 39, p. 19-76, 2014. Disponível em: https://cutt.ly/QbKsCBW. Acesso em: 29 maio 2020.
184
Em língua portuguesa, a crítica textual costuma ser restrita ao estudo das alterações nos textos e à sua
correção, enquanto a ecdótica se refere à edição, quer dizer, à crítica textual e à apresentação de textos.
CAMBRAIA, César Nardelli. Introdução à crítica textual. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 13-14.
77

adotavam essa técnica como componente de um de seus procedimentos elementares. Ela


integrava a chamada “crítica externa”, “crítica erudita” ou “crítica da autenticidade”. Por isso,
a filologia figurava nesses manuais como uma das chamadas “ciências auxiliares” do
historiador.185
Em que diferiria o trabalho do filólogo e do historiador nesse quesito? Embora a
crítica de restituição seja um dos critérios previstos como componentes da erudição do
historiador, as edições críticas são uma tarefa mais propriamente filológica que histórica. A
crítica externa se presta a avaliar a qualidade dos documentos e restabelecê-los em condições
adequadas para a pesquisa, mas deve dar passagem à “crítica interna” ou “crítica de
credibilidade”. A função desta era arguir o valor objetivo do testemunho: o que o autor disse,
o que quis dizer, sua sinceridade e sua exatidão.
A edição crítica teve um lugar de destaque nos Seminários de Jean Orcibal, uma vez
que ele próprio era filólogo de formação e realizou diversas pesquisas nesse domínio (San
Juan de la Cruz, Saint-Cyran, Fénelon, Jansen, etc.). Michel de Certeau também mobilizou
seus esforços nessa direção, sendo seus feitos mais notáveis a edição do Mémorial de Pierre
Favre, o Guide spirituel e a Correspondence de Jean-Joseph Surin.
A atenção meticulosa à indissociabilidade dos textos de seu ambiente histórico foi
outra marca dos seminários de Orcibal. Esse zelo histórico pode ser apresentada a partir das
duas séries de operações, como descritas por Jacques Le Brun acerca do método que inspirou
as atividades no seminário de Orcibal. No plano da materialidade do texto, estabelece-se
paralelos entre palavras e imagens, fazendo surgir semelhanças, cadeias de significação e sua
posição específica frente aos conhecimentos anteriores sobre o assunto que trata. Outra série
de operações mobiliza esses elementos a partir do percurso de ideias, leituras e traduções em
situações precisas no tempo e no espaço.186
O que está em jogo nessa aproximação é uma alternativa à redução de significados
complexos a um suposto fundamento prévio que lhes daria sentido. O exame crítico de um

185
DROYSEN, Johann G. (1857-1883) Histórica: lecciones sobre la enciclopedia y metodología de la historia.
Versión castellana de Ernesto Garzón Valdés y Rafael Gutiérrez Girardot. Barcelona: Alfa, 1983; LANGLOIS,
Charles; SEIGNOBOS, Charles. (1897) Introducción a los estudios históricos. Estudio introductorio y notas de
Francisco Sevillano Caleho. San Vicente del Raspeig: Universidad de Alicante, 2003; BLOCH, Marc. (1949)
Apologia da história ou o oficio do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. RODRIGUES, José
Honório. (1949) Teoria da História do Brasil: introdução metodológica. 2 ed. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1958. 2 v. A crítica histórica é tratada no segundo volume; GLÉNISSON, Jean. (1961) Iniciação aos
estudos históricos. 2. ed. Rio de Janeiro: Difel, 1977.
186
LE BRUN, Jacques. De la critique textuelle à la lecture du texte. Le Débat, n. 49, p. 109-116, mars-avril
1988, p. 109-110. É possível associar essa segunda série de operações à profunidade histórica da filologia de
Orcibal, da qual fala Dosse. DOSSE, François. (2002) Michel de Certeau: le marcheur blessé. Paris: La
Découverte, 2007. p. 93.
78

vocabulário espiritual requer a reconstituição dos fatores históricos que lhe concernem para
assim evitar que a leitura permaneça em um simplismo que não dá conta dos encontros entre
referências recebidas do passado, decisões particulares de um autor e circunstâncias
existenciais precisas que incidem na constituição de um texto.
Portanto, nos seminários de Orcibal sobre a “história do catolicismo moderno e
contemporâneo”, Certeau encontrou um laboratório propício para a prática das regras da
crítica textual e da interpretação histórica dos documentos relativos à história das ideias
espirituais.
O jesuíta aparece como “aluno assíduo” no seminário de 1956-1957. Orcibal o
apresenta com as seguintes palavras: “o padre M. de Certeau, s.j., quem estuda Pierre Favre,
Lallemant e Surin, principalmente em suas relações com a mística renano-flamenga, deu
provas de uma vasta cultura em matéria de história da espiritualidade”.187
No ano letivo seguinte, ele está entre os alunos titulares e faz uma exposição sobre
Pierre Favre, “cujos escritos ele edita a partir de numerosos manuscritos”.188 Ele passa à
categoria de “aluno diplomado” da Seção de Ciências Religiosas durante o ano letivo de
1959-1960, após três anos trabalhando sob a direção de Orcibal na pesquisa sobre Favre.189
Com esse mesmo material, defende sua tese de doutorado de terceiro ciclo na Sorbonne em
junho de 1960.190
No material preparado para a defesa de tese, disponível no arquivo da Companhia de
Jesus, Certeau expressa sua dívida com Orcibal:

187
“Le Père M. de Certeau, S.J., qui étudie Pierre Favre, Lallemant et Surin, principalement dans leurs rapports
avec la mystique rhéno-flamande, a fait preuve d'une vaste culture en matière d'histoire de la spiritualité”. École
Pratique des Hautes Études, Section des Sciences Religieuses, Annuaire 1957-1958, t. 65, p. 80-83, 1957, p. 82.
Disponível em: https://cutt.ly/tj54pmW. Acesso em: 29 maio 2020.
188
“[…] dont il édite les écrits à partir de nombreux manuscrits”. École Pratique des Hautes Études, Section des
Sciences Religieuses, Annuaire 1958-1959, t. 66, p. 104-106, 1958, p. 105. Disponível em: https://cutt.ly/ij57fse.
Acesso em: 29 maio 2020.
189
École Pratique des Hautes Études, Section des Sciences Religieuses, Annuaire 1960-1961, t. 68, 1960, p. 61.
Disponível em: https://cutt.ly/Vj57z4F. Acesso em: 29 maio 2020. A EPHE emitia o prestigioso título de
diplomé de la section. O material usado na pesquisa para a obtenção desse título também podia ser aproveitado
para a obtenção do doutorado, mas essa diplomação era reservada às universidades. LANGLOIS, Claude.
L’initiation aux « sciences religieuses »: Michel de Certeau au séminaire de Jean Orcibal (1956-1965). Revue
d'Histoire de l'Eglise de France, t. 104, p. 247-260, 2018, p. 256.
190
École Pratique des Hautes Études, Section des Sciences Religieuses, Annuaire 1960-1961, t. 68, p. 125-126,
1960, p. 125. Disponível em: https://cutt.ly/Xj6qaBV. Acesso em: 29 maio 2020. Até então, eram necessárias
duas teses para a obtenção do diploma de doctorat ès lettres ou doctorat d’État como também era conhecido.
Com a nova categoria de doctorat de 3e cycle criada em 1958, quem obtivesse esse título poderia ser dispensado
da tese complementar para a obtenção do doctorat ès letres, restando apresentar a tese principal. Em 1967, o
doctorat ès letres foi oficialmente substituído pelo doctorat d’État e continuou aceitando a liberação da tese
complementar quando obtido o título facultativo de terceiro ciclo. PLACES, Édouard des. Cent cinquante ans du
doctorat ès lettres (1810-1960). Bulletin de l'Association Guillaume Budé, n. 2, p. 209-228, juin 1969, p. 209.
Disponível em: https://cutt.ly/Mj6emuV. Acesso em: 30 maio 2020. Em 1984, o terceiro ciclo passou a ser a
única formação nesse nível acadêmico e o doctorat d’État foi substituído pela habilitation à diriger des
recherches.
79

Lamento apenas que ele [o material apresentado como tese] não exprima
como gostaria tudo o que devo ao sr. Orcibal: já que essa experiência chega
ao fim após de três anos de conferências na École des Hautes Études, devo
pelo menos dizer-lhe, senhor, toda a minha profunda gratidão e o quanto
permaneço profundamente marcado por um ensino em que a mais exata
erudição está sempre a serviço de seus alunos e tecida com incansável
benevolência.191
A pesquisa de Certeau mobilizou as ferramentas disponíveis nos seminários de
Orcibal. O rigor da crítica textual ali ensinado encontra paralelos na predileção de Certeau
para o arquivo, no tratamento erudito dos documentos e na busca de exatidão histórica em sua
leitura, tradução e introdução ao diário espiritual de Favre.
A maneira como procede com os manuscritos aparece com bastante clareza no artigo
Le texte du Mémorial de Favre, na Revue d’Ascétique et de Mystique em 1960192 – revista
dirigida pelos jesuítas e cujo conselho editorial tinha Certeau entre seus membros.193
Certeau localiza as menções à existência do Mémorial nos séculos XVI-XVIII e as
primeiras edições do texto na segunda metade do século XIX e na primeira metade do XX.
Com base em tais informações, nos dados contidas nos Fabri Monumenta194 e nas indicações
de alguns responsáveis pelos arquivos com os quais se comunica, dispõe do necessário para a
reunião dos manuscritos e para o desenvolvimento da pesquisa.
Os manuscritos do Mémorial estavam em sua maioria em outros países (Bélgica,
Itália, Hungria, Alemanha, Espanha, Portugal e Estados Unidos). A correspondência
disponível no arquivo em Vanves mostra Certeau solicitando cópia em microfilme a alguns
desses arquivos e bibliotecas.195 Essa foi a maneira pela qual acessou-os,196 à exceção de um

191
“Je regrette seulement qu’il n’exprime pas comme je le souhaiterais tout ce que je dois à Monsieur Orcibal :
puisque cet essai vient au terme de trois années de conférences à l’École des Hautes Études, je dois du moins
vous dire, Monsieur, toute ma profonde reconnaissance et combien je reste profondément marqué par un
enseignement où l’érudition la plus exacte est toujours au service de vos élèves et comme tissée d’une inlassable
bienveillance”. CERTEAU, Michel de. Présentation, texto datilografado, correções manuscritas, 1960, caixa 3,
Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves. A mesma erudição e benevolência são saudadas nos agradecimentos
ao fim de sua introdução ao Memorial. Id. Introduction. In: FAVRE, Pierre. (1960) Mémorial. Traduit et
commenté par Michel de Certeau, s.j. Paris: Desclée de Brouwer, 2006. p. 95.
192
Id. Le texte du Mémorial de Favre. Revue d’Ascétique et de Mystique, année 36, n. 141, p. 89-101, janv./mars
1960.
193
DEMOUSTIER, Adrien. Histoire, institution et mystique: jésuites des XVIe et XVIIe siècles. In: GIARD,
Luce (Dir.). Le voyage mystique: Michel de Certeau. Paris: RSR/Cerf, 1988. p. 55.
194
Edição do Mémorial publicada na coleção Monumenta Historica Societatis Iesu (Milão, 1914). Disponível
em: https://digital.staatsbibliothek-berlin.de/werkansicht/?PPN=PPN680166025. Acesso em: 31 maio 2020.
195
Constam cartas recebidas em respostas às suas enviadas ao periódico Archivum Historicum Societatis Iesu, ao
Institutum Historicum Societatis Iesu, ao arquivo jesuíta da província de Turim, à Biblioteca Nacional e à
Biblioteca Real de Turim, à Biblioteca Nacional de Milão e à Biblioteca da Universidade de Salamanca.
Correspondência consultada na caixa 3 do fundo Michel de Certeau do Arquivo da Companhia de Jesus em
Vanves.
196
Certeau menciona os responsáveis pelos arquivos que lhe enviaram os microfilmes que possibilitaram a
edição do texto do memorial. Id. Le texte du Mémorial de Favre. Revue d’Ascétique et de Mystique, année 36, n.
141, p. 89-101, janv./mars 1960, p. 90, nota 16.
80

manuscrito disponível na Biblioteca Nacional da França, possivelmente consultado in loco.


O autógrafo de Favre não foi localizado. Existiam apenas cópias, dezesseis no total,
muitas desconsideradas em edições publicadas até aquele momento. Elas haviam dado
preferência às composições latinas em detrimento das espanholas, os dois principais idiomas
naqueles documentos. Certeau foi o primeiro a produzir uma edição crítica baseada em todos
os manuscritos conhecidos.
A crítica de restituição, a crítica da atribuição e a crítica da procedência são os
principais componentes da crítica textual. Eles permitem a preparação do texto, da
apresentação, do aparato crítico em notas e dos anexos biográfico, terminológico, onomástico
e bibliográfico da edição. Os componentes da crítica de restituição foram bastante explorados
por Certeau. Os principais critérios desse procedimento são estes: manejo de cópias
diferentes, erros materiais, erros de raciocínio, erros voluntários, anotações, indícios
paleográficos, notícias bibliográficas externas, a história dos manuscritos, suas interrelações,
erros e lacunas comuns, parentescos, famílias, tradições, árvore genealógica dos códices e a
restauração do original.197
Os recursos críticos usados para o estabelecimento do Mémorial podem ser agrupados
nas seguintes categorias:
a) No plano da escrita e da língua, considera os seus diferentes tipos, as mudanças
bruscas, as correções dos copistas nas margens do texto, o emprego equivocado de letras,
omissões de frases, interpretações errôneas de abreviações e confusões vocabulares – por
exemplo, termos espanhóis trocados por seus equivalentes portugueses no manuscrito
depositado nos Arquivos do Ministério dos Negócios Estrangeiros, em Lisboa.
b) No plano da composição do conjunto de parágrafos existentes nos textos, delimita a
repartição dos trechos em latim e espanhol, traça os registros comuns, as proximidades, as
particularidades, os acréscimos e a interdependência encontrada nos diferentes manuscritos.
Esses procedimentos permitem classificar o material em grupos, segundo critérios como
comprimento, língua, datação, variantes e tradições comuns.
c) No plano mais especificamente “histórico” da crítica estão abarcados os demais
elementos de determinado tempo e espaço que constam nos manuscritos e permitem o
escrutínio: é o caso da alusão ao “P. Ignat. Bonschab”, que o autoriza remeter o manuscrito da
Biblioteca Nacional Széchényi ao século XVIII; ou de elementos biográficos, da
correspondência e da linguagem favriana que atestam em favor da legitimidade dos trechos

197
BESSELAAR, José van den. Introdução aos estudos históricos (II). Revista de História, São Paulo, v. 10, n.
20-21, p. 407-493, 1955, p. 465-472. Disponível em: https://cutt.ly/dbKpoyj. Acesso em: 29 maio 2020.
81

em espanhol enquanto cópias do que já estava nesse idioma no autógrafo perdido, e não como
traduções do original em latim.
Com esse exame erudito do material de arquivo, Certeau pôde estipular o grau de
fidelidade ao autógrafo perdido. É assim que é possível ler Certeau comentando os
documentos com frases do tipo: “é sem dúvida o testemunho mais fiel do texto de Favre”; 198
ou ainda quando assevera: “é, alias, mais uma paráfrase que uma cópia”. 199 Como resultado
desse “texto solidamente estabelecido”,200 sua tradução do Mémorial foi publicada em
1960.201
Contudo, o rigor da pesquisa não se restringiu ao manejo desses dados como parte
integrante da crítica documental no estabelecimento do texto a ser traduzido. Junto da versão
francesa do jornal espiritual do companheiro de Inácio de Loyola, publicou uma introdução de
quase cem páginas contendo elementos que permitem considerá-los um típico trabalho de
história das ideias.
Certeau explorou “a ligação entre as origens da Companhia e o meio circundante”, 202
as “ressonâncias históricas” do jornal espiritual de Favre, “o contexto que explica a natureza
dos problemas com os quais sua meditação estava ocupada”.203 Esses fatores históricos podem
de ser agrupados em três categorias: o cenário religioso e intelectual de sua época, as
tradições espirituais às quais Favre era afeito e os desafios enfrentados pelos católicos no raiar
da modernidade.
Conterrâneo de Certeau, Pierre Favre nasceu na Savoie em 1506, em um vilarejo
profundamente enraizado em tradições religiosas. Da religião de sua terra natal, guardou as
devoções populares que vão das santas feridas do Senhor às relíquias, passando pelos anjos e
pelos santos do calendário. Esse universo campesino de suas primeiras experiências religiosas
lhe orientou ainda à devoção universal e simples, ensinou-lhe o gosto pela conversação íntima
198
“[...] c’est sans doute le témoin le plus fidèle du texte de Favre”. CERTEAU, Michel de. Le texte du
Mémorial de Favre. Revue d’Ascétique et de Mystique, année 36, n. 141, p. 89-101, janv./mars 1960, p. 92.
199
“[...] c’est d’ailleurs une paraphrase, plutôt qu’une copie”. Ibid., p. 95
200
“[...] texte solidement établit”. Ibid., p. 90.
201
FAVRE, Pierre. (1960) Mémorial. Traduit et commenté par Michel de Certeau, s.j. Paris: Desclée de
Brouwer, 2006. Dessa pesquisa, também resultou a publicação de um documento inédito de Favre. CERTEAU,
Michel de. Un texte inédit de Pierre Favre. Le Pro privata alicuius reformatione. Revue d’Ascétique et de
Mystique, année 36, n. 143, p. 343-349, jui./sep. 1960.
202
“[...] le lien entre les origines de la Compagnie et le milieu ambiant”. CERTEAU, Michel de. Présentation,
texto datilografado, correções manuscritas, 1960, caixa 3, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves. p. 1. A
mesma pesquisa resultou em sua tese de terceiro ciclo na Sorbonne e no livro publicado em 1960. Embora não
saibamos exatamente qual o conteúdo entregue como tese, essa apresentação à banca de defesa volta-se mais a
questões condizentes com o encontramos em sua introdução ao Mémorial que ao trabalho erudito de
estabelecimento e tradução do texto. De certo modo, essa Présentation está para a introdução ao Mémorial como
seu artigo na Revue d’Ascétique et de Mystique está para a tradução.
203
“[...] le contexte qui explique la nature des problèmes dont sa méditation solitaire était occupée”. CERTEAU,
Michel de. Introduction. In: FAVRE, op. cit., p. 11.
82

com as gentes humildes e forneceu-lhe o cenário para a profusão de termos rurais pincelados
no Mémorial.204
Ao ingrediente rural que compõe a receita histórica do jornal espiritual de Favre,
acrescentam-se novas ideias resultantes de uma formação “antes de tudo literária e
filosófica”,205 já que “seus estudos teológicos não tiveram nem a mesma seriedade nem a
mesma continuidade”.206 Certeau repassa o perfil dessa formação e o que dessa “bagagem
intelectual quase enciclopédica”207 resta no Mémorial: definições de Aristóteles e Boécio,
tendência a distinções e definições, demarcações técnicas em latim, “em suma, uma
linguagem mais que um pensamento”.208
Certeau destaca a simpatia de Favre pelo humanismo. Ele era o aluno que Juan de la
Peña consultava quando o grego se fazia necessário em certas passagens de Aristóteles. Além
do mais, era amigo de humanistas ilustres e frequentou o Collège Sainte-Barbe, onde
ensinavam alguns dos grandes letrados da época. Contudo, “nada certifica que ele os teve por
professores”209 assim como a citação de Virgílio e a máxima estoica, como aparecem no
Mémorial, “não provam um contato particular com a Antiguidade ou com os humanistas”, 210
leituras comuns à época.
A crítica histórica (crítica externa e crítica interna) tradicionalmente chama esse tipo
de perícia dos testemunhos de “crítica de exatidão”. Esse procedimento examina os enganos
na observação da testemunha sobre o recorte da realidade que ela trata, do qual o historiador
buscar extrair fatos históricos. Não creio ser possível atribuir essa crítica em sentido estrito à
pena de Certeau. Ele não se mostra interessado em apurar se Favre tinha competência para
dizer o que disse, se foi sincero e exato, para então extrair do texto um fato externo a ele.
O tipo de investigação em cena (a história das ideias) parece mais preocupado em
precisar os vínculos determinantes do pensamento teológico do Mémorial. Ele intenta
estabelecer, com exatidão, o que de externo ao texto está marcado no texto, como critério para
poder afirmar os fatores históricos de sua composição intelectual. A dúvida nesse tipo de
crítica histórica não toma as ideias do texto como meio para sua exterioridade, mas como a
própria finalidade cujo meio tem na facticidade um de seus recursos de rigor. Favre ter sido

204
CERTEAU, Michel de. Introduction. In: FAVRE, Pierre. (1960) Mémorial. Traduit et commenté par Michel
de Certeau, s.j. Paris: Desclée de Brouwer, 2006. p. 11-15.
205
“[...] avant tout littéraire et philosophique”. Ibid., p. 19.
206
“[...] ses études théologiques n’eurent ni le même sérieux ni la même continuité”. Ibid., p. 19.
207
“[...] bagage intellectuel quasi encyclopédique”. Ibid., p. 20.
208
“[...] en somme, un langage plus qu’une pensée”. Ibid., p. 20.
209
“[...] rien ne certifie qu’il les ait eus pour professeurs” Ibid., p. 21. Grifo nosso.
210
“[...] ne prouvent pas un contact particulier avec l’Antiquité ou avec les humanistes”. Ibid., p. 21. Grifo
nosso.
83

ou não aluno dos ilustres professores humanistas da Universidade de Paris é menos relevante
do que o fato de que isso comprovaria uma influência humanista que permitiria repensar, sob
a ótica da Renascença, a teologia de Favre.
Esse tipo de lógica inversa na qual a facticidade é um meio e não o fim não deixa de
ser marcada pelo pressuposto epistemológico da crença na possiblidade de reconstituição do
passado. A materialidade do texto não provar o contato com os humanistas nos fala menos das
experiências de Favre no século XVI e mais sobre as expectativas teóricas de Certeau no
século XX. A afirmação da impossibilidade de falar com exatidão sobre algo veiculado no
texto já mostra o princípio frustrado nessa constatação. Um desejo de presença do passado no
discurso do historiador circunscreve a busca pela exatidão histórica que acompanhava seu
trabalho de historiador das ideais.
Outro fator relevante é o modo como os fatos históricos não se restringem ao que ficou
conhecido pejorativamente como história “acontecimental” (événementielle). A crítica a esse
tipo de história se endereçava a uma certa visão sobre a escola metódica materializada na
Révue Historique desde sua criação em 1876. O comitê de redação da revista tinha entre seus
membros historiadores como Ernest Renan, Foustel de Coulanges e Gabriel Monod. Das
figuras associadas à escola metódica, Charles Seignobos foi escolhido o protótipo do modelo
de historiador a não ser seguido. A crítica partiu sobretudo da revista Annales d’histoire
économique et sociale, fundada por Marc Bloch e Lucien Febvre em 1929. O fetiche do
individual, dos fatos políticos, da narrativa e da ciência positiva deveria ser superada em favor
da realidade socioeconômica, das sínteses explicativas, da ciência social e da história-
problema.211
É difícil dizer em que medida Certeau acompanhava os debates promovidos pelos
Annales. Mais arriscado ainda seria estipular como esses debates poderiam ter funcionado na
economia de sua produção histórica. O certo é que Lucien Febre aparece na introdução ao
Mémorial. Certeau recorre a Le problème de l’incroyance du XVIe siècle e a Au cœur
religieux du XVIe siècle, principalmente quando está em pauta o universo cultural de uma

211
DOSSE, François. Renascimento do acontecimento. Tradução de Constança Morel. São Paulo: Editora
UNESP, 2013. p. 64-72. Antoine Prost questionou a justeza dessa imagem reinante pintada contra Seignobos
pelas polêmicas alimentadas pelos fundadores dos Annales nos anos 1930 e 1940. PROST, Antoine. Charles
Seignobos revisité. Vingtième Siècle, n. 43, p. 100-118, juil./sept. 1994. Disponível em: https://cutt.ly/BbLCHtw.
Acesso em: 29 maio 2020. Sergio Buarque de Holanda também já havia problematizado o suposto caráter
individualizante da história rankeana. HOLANDA, Sérgio Buarque de. O atual e o inatual na obra de Leopold
von Ranke. Revista de História, v. 50, n. 100, p. 431-482, 1974. Disponível em: https://cutt.ly/5bLV3VS. Acesso
em: 29 maio 2020.
84

época sensível ao prodígio e ao fantástico. 212 La Méditerranée de Fernand Braudel também é


mencionado para evocar as condições materiais da vida no século XVI, como o uso da mula
como transporte e as redes de comunicação.213
De todo modo, esse olhar mais profundo e amplo sobre os objetos históricos acabou se
impondo na França da época.214 Os seminários de Jean Orcibal não desconheceram essa
exigência de pensar as particularidades no solo das dinâmicas mais gerais da sociedade. Em
Certeau, por exemplo, ela aparecia em sintonia com as preocupações próprias do estudo
histórico das ideias. Podemos correspondê-la à atenção à apropriação de ideais segundo
sensibilidades e exigências concretas.
Tomemos como exemplo a relação incerta de Favre com os humanistas. Certeau
buscava mostrar como a afinidade dos primeiros jesuítas com a nova corrente humanista se
dava no plano religioso que lhes era próprio. Ela era movida pela preocupação com a reforma
interior frente aos defensores da reforma das instituições e do ensino. Desse modo, Favre
“converte o pensamento antigo em pensamento cristão”.215
No plano mais estritamente teológico, Favre compartilhava da crescente reserva
quanto à possibilidade do conhecimento absoluto sobre a realidade contingente. Sendo a livre
iniciativa de Deus capaz de transformar a realidade presente, e estando toda afirmação
rigorosa amparada nessa situação suscetível à mudança, então o conhecimento é ele próprio
propenso a mudar.216
Para Certeau, “esse universo menos feito de substâncias que de relações é
precisamente aquele do Mémorial”.217 A insistência de Favre sobre as relações pessoais
acentuava “o aspecto contingente do conhecimento religioso e aumentou a importância da
experiência, mais sensível e mais dada às intervenções divinas”. 218 Nesses termos, “teologia”
não quer dizer ciência rigorosa sobre assuntos da fé, mas um pensamento consciente de sua

212
CERTEAU, Michel de. Introduction. In: FAVRE, Pierre. (1960) Mémorial. Traduit et commenté par Michel
de Certeau, s.j. Paris: Desclée de Brouwer, 2006. p. 21, 43, 47, 50, 51, 52, 63.
213
Ibid., p. 41, 44.
214
Henri-Irénée Marrou já o notava na primeira metade da década de 1950. Para ele, apesar da importância
incontestável de Bloch e Febvre nessa inflexão, a crítica ao que ficou conhecido como história “historicizante”
não tinha sido tarefa exclusiva da equipe dos Annales. MARROU, Henri-Irénée. (1954) Do conhecimento
histórico. Tradução de Ruy Belo. Lisboa: Editorial Aster, 1976. p. 54.
215
“[...] convertit la pensée antique en pensée chrétienne”. CERTEAU, op. cit., p. 414, nota 3.
216
Esse “occamismo tingido de scotismo”, cuja vulgarização Certeau atribui a Juan de la Peña, era também a
tese de Gabriel Biel, bastante lido e comentado pelos primeiros jesuítas. Ibid., p. 21.
217
“Cet univers moins fait de substances que de relations est précisément celui du Mémorial”. Ibid., p. 23.
218
“[...] l’aspect contingent de la connaissance religieuse et majorait l’importance de l’expérience, plus sensible
et plus accordée aux interventions divines”. Ibid., p. 23.
85

incapacidade “de dar conta da relação com Deus tal qual é vivida”, 219 o “sentimento do
mistério que se dá na experiência”.220
Ainda faltava-lhe encontrar uma orientação estrita para a “sucessão de sentimentos
incontroláveis”221 que rebentavam na vida interior, cuja desafio respondeu com a “regra e o
método para elevar-se ao conhecimento da vontade divina”222 fornecidos pelos exercícios
espirituais de Inácio de Loyola, quem Favre conheceu no Collège Sainte-Barbe em Paris,
mesmo lugar onde surgiu a amizade com Francisco Xavier e com outros membros da primeira
comunidade jesuíta.
A regra inaciana fornece o exame de consciência que permite “passar da infância
espiritual à maturidade”,223 um novo procedimento que implicava “dois princípios
fundamentais”224: os movimentos não são isolados, são uma sequência de episódios ligados
entre si, cuja verdade de cada um depende do outro; e a indissociabilidade entre a vida interior
e a vida ativa, entre a oração e a ação, o apreço a tudo o que na realidade une o homem a
Deus.
Desse modo, “no Mémorial, cada nova experiência não será mais apreendida somente
como a relação isolada do momento com Deus”.225 Favre a concebe
segundo um esquema simbólico que situa o instante (ou ‘graça’) no
cruzamento de dois eixos, um de cima para baixo representando a descida de
Deus até o interior da existência, o outro da esquerda para a direita
representando a continuidade do tempo e a universalidade do próximo.226
A teologia atenta ao mistério e à condição interior da existência cristã apontam para o
segundo grupo de fatores históricos mencionado anteriormente. Segundo Certeau, Favre foi
moldado por diversas tradições espirituais, mesmo antes de conhecer Inácio – aquele iniciou
seus estudos em Paris em 1526, este só em 1529. O Mémorial não oferece detalhes ou
referências precisas sobre as leituras determinantes para sua composição – o que se explica
pelo próprio gênero desses escritos, coletânea de notas espirituais. Contudo, o texto e a

219
“[...] de rendre compte de la relation avec Dieu telle qu’elle est vécue”. CERTEAU, Michel de. Introduction.
In: FAVRE, Pierre. (1960) Mémorial. Traduit et commenté par Michel de Certeau, s.j. Paris: Desclée de
Brouwer, 2006. p. 24.
220
“[...] sentiment du mystère qui se donne dans l’expérience”. Ibid., p. 25. Certeau fala não só de uma formação
eclética, mais de uma teologia eclética ela mesma, que transita entre a inspiração agostiniana, escolástica e
mística.
221
“[...] succession de sentiments incontrôlables”. Ibid., p. 15.
222
“[...] règle et méthode pour s’élever à la connaissance de la volonté divine”. Ibid., p. 16.
223
“[...] passer de l’enfance spirituelle à la maturité”. Ibid., p. 16.
224
“[...] deux principes fondamentaux”. Ibid., p. 17.
225
“[...] dans le Mémorial, chaque expérience nouvelle ne sera-t-elle plus seulement saisie comme le rapport
isolé de l’instant à Dieu”. Ibid., p. 18.
226
“[...] selon un schéma symbolique qui situe l’instant (ou la ‘grâce’) au croisement de deux axes, l’un de haut
en bas figurant la descente de Dieu jusqu’au fond de l’existence, l’autre de gauche à droite représentant la
continuité du temps et l’universalité du prochain”. Ibid., p. 18.
86

correspondência de Favre contém reminiscências que a interpretação de Certeau afirma


convergirem em torno de quatro eixos de tradições: os franciscanos, os cartuxos, a devoção
moderna e a mística renana.
Os franciscanos se difundiam no fim do século XV. Seus conventos e igrejas
multiplicavam-se, suas festas entravam tanto na liturgia da Igreja quanto na devoção popular e
o pensamento de seus intelectuais mais ilustres, Duns Escoto e Guilherme de Occam,
propagava-se no ensino filosófico e teológico. Essa “atmosfera geral” (atmosphère générale)
incide no Mémorial, como atestam as menções a religiosos franciscanos, o lugar concedido a
seus santos e a reincidência das analogias espirituais que remontam à sua tradição. 227
Com os cartuxos as relações dão-se por muitas vias. Favre era familiar e amigo de
membros dessa ordem, aliás alguns deles o encorajam à vida espiritual e aos estudos. Já como
estudante em Paris, ele os primeiros companheiros nutrir-se-ão da espiritualidade da ordem de
São Bruno, por meio de suas visitas de domingo ao convento de Vauvert para a prática do
recolhimento, da oração e da leitura. Essa tradição lhe fornece certa inspiração para a relação
interior com Deus, aponta-lhe a via para o aprofundamento espiritual, principalmente no que
diz respeito ao vínculo estreito entre a devotio moderna e a mística renana.228
Favre se nutre da literatura devota de santa Gertrudes, santa Brígida, Ludolf von
Sachsen, Jean Mombaer, dentre outros. Essas leituras o ensinam “as práticas da piedade, as
festas litúrgicas, os impulsos do coração”229 e a “devoção ao rosário”.230 Como aprendeu com
os cartuxos, “essas devoções eram uma sábia introdução à vida mística”. 231 Em um primeiro
momento, é por meio delas e da doutrina dos herdeiros de São Bruno que acessa aspectos da
mística renana.
Num segundo momento, sua proximidade com ela é mais direta. Uma vez estando
naquela região, estabeleceu relações com seus advogados mais leais. Os cartuxos, por
exemplo, defenderão um retorno à mística renana como forma de promover uma renovação
espiritual que garantisse a unidade da Igreja católica – lembremos, era a época da “ameaça”
protestante. Favre tomará parte dessas leituras.
A mística renana surge no século XIV e desdobra-se na corrente flamenga do século
XV. Dentre os representantes dessa tradição renano-flamenga, o nome mais conhecido é
Mestre Eckhart. De sua parte, Certeau menciona Tauler, Ruusbroec e Harphius, cujas ideias

227
CERTEAU, Michel de. Introduction. In: FAVRE, Pierre. (1960) Mémorial. Traduit et commenté par Michel
de Certeau, s.j. Paris: Desclée de Brouwer, 2006. p. 27-28.
228
Ibid., p. 28-36.
229
“[...] les pratiques de la piété, les fêtes liturgiques, les élans du cœur”. Ibid., p. 36.
230
“[...] dévotion au rosaire”. Ibid., p. 36.
231
“[...] ces dévotions étaient une sage introduction à la vie mystique” Ibid., p. 36.
87

estão presentes em Favre:


ação, fruto e consequência do retorno ao coração; necessidade da pureza
interior, preparatória para a união com Deus; união operada no “centro do
coração”; imagem da Trindade no íntimo do ser; simbólico nupcial
temperado ou aprofundado por uma doutrina do “essencial”; etc. 232
Há inúmeras similaridades vocabulares entre o Directorium de Harphius e o Mémorial
de Favre. Entretanto, parte do vocabulário comum difere a nível de significação, assim como
os termos e imagens mais característicos do primeiro não estão no segundo. Por isso, Certeau
adverte: “as semelhanças não devem fazer esquecer as divergências fundamentais”. 233
Outra diferença é a ressalva de Favre às concepções dos místicos consideradas
perigosas. Afirmações como “tudo é permitido ao espiritual”,234 “tudo vem de Deus e, por
conseguinte, a ascese é vã”235 ou ainda “aquele que regressou a Deus não tem mais nada a
temer”236 exigiam o discernimento do que preservava ou não o verdadeiro sentido católico.
Favre, “homem ele mesmo místico”,237 tinha o “desejo de permanecer fiel à tradição católica
e de evitar os equívocos cuja linguagem dos renano-flamengos tinha se tornado a ocasião”.238
Os seus correligionários nos primórdios da Companhia de Jesus compartilhavam dessa
mesma prudência na utilização do léxico místico.
O terceiro grupo de aspectos históricos encontrados na introdução do Mémorial é
justamente a situação geral que impulsiona essas tentativas reformadoras em nome das quais
Favre e os jesuítas são combatentes aguerridos. Esse peregrino itinerante por uma Europa
moderna em vias de nascimento deparou-se com o abalo da cristandade. Viajando de Évora a
Colônia, testemunhou a divisão já em curso entre o mundo católico e uma “Alemanha”
protestante.239
É também uma rota missionária cheia de maravilhas e perigos que povoam o diário
espiritual do jesuíta, ao gosto da sensibilidade da época, transitando por um mundo onde
intervêm os santos e os anjos, em que dominam forças ocultas e seres misteriosos, palco para

232
“l’action, fruit et conséquence du retour au cœur; necessité de la pureté intérieure, préparatoire à l’union
avec Dieu ; cette union opérée dans le « centre du cœur »; l’image de la Trinité à l’intime del’être; [...]
symbolique nuptiale tempérée ou approfondie par une doctrine de l’« essentiel »; etc.”. CERTEAU, Michel de.
Introduction. In: FAVRE, Pierre. (1960) Mémorial. Traduit et commenté par Michel de Certeau, s.j. Paris:
Desclée de Brouwer, 2006. p. 37-38.
233
“Les ressemblances ne doivent pas faire oublier ces divergences fondamentales”. Ibid., p. 39. O trecho está
contido na continuação da nota 2 iniciada na página anterior.
234
“[...] tout est permis au spirituel”. Ibid., p. 39.
235
“[...] tout vient de Dieu et par conséquent l’ascèse est vaine”. Ibid., p. 39.
236
“[...] celui qui est revenue à Dieu n’a plus rien à caindre”. Ibid., p. 39.
237
“[...] homme lui-même mystique”. Ibid., p. 40.
238
“[...] désir de rester fidèle à la tradition catholique et d’éviter les équivoques dont le langagge des Rhéno-
flamands était devenu l’occasion”. Ibid., p. 40.
239
Ibid., p. 41-46; 63-72.
88

o florescimento da feitiçaria e do ocultismo, época propícia para o desenvolvimento da


angelologia e para a renovação da demonologia.240
Arrisco inferir que na pena de Certeau esses são os dois grandes dramas que a época
partilhou com o Mémorial. O embate cósmico no plano das crenças religiosas e a ruína da
cristandade para os católicos. No primeiro, batalha sobrenatural entre o bem e o mal, estava
garantida aos fiéis a proteção dos bons espíritos contra as influências maléficas. 241 Já o
segundo, combate teológico pela unidade da Igreja, será enfrentada por meio da luta pela
renovação espiritual.
Favre colaborou com essa tarefa comum a outros homens e mulheres das letras,242
estando ao lado daqueles que criam ser a reforma interna a fonte real e primeira de renovação
da Igreja. Sua maneira de proceder nasce de suas experiências religiosas, de suas leituras, de
sua proximidade com Inácio de Loyola e de sua atuação apostólica. A reforma da Igreja via
reforma pessoal, comum aos primeiros jesuítas e fundamentada nos exercícios espirituais, foi
o procedimento adotado por Favre, cujo aperfeiçoamento encontra-se em seu diário
espiritual.243
Esses parágrafos explicitam como Certeau articula os níveis individual e epocal da
trajetória de Favre. Essa abordagem histórica traz implícita a orientação teórica de sua leitura:
se uma existência é condicionada por circunstâncias específicas, se o campo de determinada
experiência é restrito aos limites e possibilidades de um tempo, se uma reflexão responde aos
problemas que emergem em um contexto particular, o pensamento expressa essas vivências
circunscritas historicamente,244 ou como Certeau coloca em sua defesa de tese, “a
originalidade de um espírito novo se mede por suas escolhas e pela seleção que opera no
mundo onde ele surge”.245
Naquele ambiente caracterizado pela “dissolução das estruturas intelectuais e
institucionais e por uma inflação do espiritual”,246 “mundo rompido e móvel onde a

240
CERTEAU, Michel de. Introduction. In: FAVRE, Pierre. (1960) Mémorial. Traduit et commenté par Michel
de Certeau, s.j. Paris: Desclée de Brouwer, 2006. p. 47-54.
241
Sobre essa proteção sobrenatural, cf. Ibid., p. 53.
242
Ibid., p. 54-63.
243
Ibid., p. 73-76.
244
Para alguns apontamentos, ainda que indiretos, sobre a relação entre o contexto, a experiência e o pensamento
de Favre, cf. CERTEAU, Michel de. Introduction. In: FAVRE, Pierre. (1960) Mémorial. Traduit et commenté
par Michel de Certeau, s.j. Paris: Desclée de Brouwer, 2006. p. 24, 26, 27, 50, 51, 52, 55, 72, 74, 82 (nota 1).
245
“[...] l’originalité d’un esprit nouveau se mesure à ses choix et au tri qu’il opère dans le monde où il
apparaît”. CERTEAU, Michel de. Présentation, texto datilografado, correções manuscritas, 1960, caixa 3,
Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves. p. 1.
246
“[...] effritement des structures intellectuelles et institutionnelles, et par une inflation du ‘spirituel’”. Ibid., p.
2. Grifo do autor.
89

Cristandade se despedaça”,247 Favre lançou mão da regra inaciana e de “tudo o que havia de
móvel e de ‘espiritual’ no universo mental de sua época”.248 Sua batalha espiritual visava
“reagrupar as forças dispersadas da Cristandade”, “reformar a identidade interior da teologia e
da vida religiosa”,249 e assim “restaurar, sobre um outro plano, o universalismo de sua fé”.250
Com a conclusão da pesquisa que resultou na publicação do Mémorial, Certeau
desloca suas investigações para um assunto que já lhe interessava nos anos anteriores. Suas
pesquisas históricas se concentrarão em Jean-Joseph Surin, o que o lhe demandará mergulhar
no século XVII daquele jesuíta cujo estudo o acompanhará por toda a vida.
Sua instrução como historiador contou com o seminário de seminário de Alphonse
Dupront em 1960251 e de Roland Mousnier entre 1959 e 1963 na Sorbonne. O exaustivo
levantamento documental sobre René d’Argenson para uma apresentação no seminário de
Mousnier foi usado pelo próprio professor em uma publicação.252
Naquela mesma Sorbonne de fins dos anos 1950, prepara sua tese de doctorat ès
lettres – ou tese de Estado como também era chamado – sob a direção de Henri Gouhier. A
cronologia e o perfil desse trabalho podem ser parcialmente traçados por meio da
correspondência disponível nos Arquivos Jesuítas em Vanves. Certeau segue esse
empreendimento até 1964. Quanto ao tipo de análise, permanece na mesma linha da erudição
e da história das ideias.
O interesse em Surin já era mencionado no seminário de Orcibal em 1956-1957.253
Certeau fez uma apresentação de sua pesquisa sobre esse tema no seminário de 1958-1959.254
A correspondência com Gouhier indica que a pesquisa sob os auspícios do professor da

247
“[...] monde cassé et mouvant, où la Chrétienté se brise”. CERTEAU, Michel de. Présentation, texto
datilografado, correções manuscritas, 1960, caixa 3, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves. p. 2.
248
“[...] tout ce qu’il y avait de mobile et de ‘spirituel’ dans l’univers mental de son époque”. Ibid., p. 2.
249
“[...] regrouper les forces dispersées de la Chrétienté, de reformer l’indentité intérieure de la théologie et de
la vie religieuse”. Ibid., p. 2.
250
“[...] devoir de restaurer, sur un autre plan, l’universalisme de sa foi”. Ibid., p. 2.
251
Sobre Certeau e Dupront, cf. DOSSE, François. (2002) Michel de Certeau: le marcheur blessé. Paris: La
Découverte, 2007. p. 105-111; além das intervenções de Dominique Julia disponíveis na seção Questions à
Hervé Martin em: GIARD, Luce; MARTIN, Hervé; REVEL, Jacques. Histoire, mystique et politique: Michel de
Certeau. Grenoble: Jérôme Millon, 1991. p. 99-103.
252
Sobre a participação de Certeau no Seminário de Mousnier, cf. DOSSE, op. cit., p. 102-103. O levantamento
e estudo de Certeau sobre René d’Argenson foi publicado em: CERTEAU, Michel de. Politique et mystique:
René d’Argenson (1596-1651). Revue d’Ascétique et de Mystique, année 39, n. 153, p. 45-82, janv./mars 1963. A
utilização dessa documentação por Mousnier e sua menção a Certeau como quem a reuniu é apontada por
Dominique Julia: Une histoire en actes. In: GIARD, Luce (Org.). Le voyage Mystique: Michel de Certeau. Paris:
RSR/Cerf, 1988. p. 103, nota 1.
253
École Pratique des Hautes Études, Section des Sciences Religieuses, Annuaire 1957-1958, t. 65, p. 80-83,
1957, p. 82. Disponível em: https://cutt.ly/tj54pmW. Acesso em: 29 maio 2020.
254
École Pratique des Hautes Études, Section des Sciences Religieuses, Annuaire 1959-1960, t. 67, p. 97-99,
1960, p. 98. https://cutt.ly/Lj6zufl. Acesso em: 29 maio 2020.
90

Sorbonne ocorria pelo menos desde meados de 1959.255 Sua primeira publicação sobre o
assunto estava no prelo no início de 1960.256
“Até agora, busquei sobretudo documentar-me e seguir o padre Surin aonde ele
vai”,257 reporta sobre o estado da pesquisa em julho de 1960. Certeau continua perseguindo os
rastros de Surin em arquivos e bibliotecas de Toulouse, Bordeaux, Poitiers e Loudun em
novembro e dezembro daquele ano. Além da vida de Surin, esse levantamento tinha como
objetivo “precisar as correntes intelectuais e espirituais da província da Aquitânia”, 258 pois
havia muitas alusões nos textos que não estavam claras e que julgava necessário determinar
para compreender as posições do jesuíta.
No início do ano seguinte, Certeau coloca Gouhier a par do resultado dessas
atividades.259 Esse relatório, que apresento a seguir, dá a medida da preocupação historiadora
de seu trabalho sobre a doutrina mística de Surin, em sintonia com as orientações que guiaram
seu estudo sobre Favre, com a diferença que a crítica documental não visa o estabelecimento e
a tradução do texto, mas um estudo de conjunto sobre sua doutrina espiritual.
Quanto aos documentos, descobriu um manuscrito do Cathecisme Spirituel datado de
1654 – até aquele momento não se conhecia nenhum referente àquela obra. Esse material
permitiria estabelecer correções doutrinais, deslocamentos e outros aspectos relativos à
história do texto durante os anos que separam sua redação e sua publicação definitiva entre
1661 e 1663.
Além disso, mapeou cópias manuscritas e impressões anônimas de cartas ainda
desconhecidas, bem como cópias manuscritas da Science expérimentale e do Triomphe de
l’amour. Na apreciação de Certeau, esses últimos não trazem variações relevantes em relação
aos documentos conhecidos.

255
Certeau afirma que a tese de Estado sob a direção de Gouhier iniciara em 1956, em um documento datado de
março de 1961 apresentado ao CNRS. Contudo, a correspondência disponível entre ambos iniciou em julho de
1959. Nesse momento, Certeau desejava discutir a orientação precisa a ser seguida na pesquisa, cujas diretivas
do professor estimava necessárias. Em janeiro de 1960 escreve ao diretor de tese demonstrando a mesma
preocupação, agora acrescentando ao pedido de conselhos o plano de tese e um “certain nombre de
perspectives”. CERTEAU, Michel de. Carta a Henri Gouhier, texto datilografado, 08 de julho de 1959, caixa 1,
Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves; Id. Carta a Henri Gouhier, texto manuscrito, 02 de janeiro de 1960,
caixa 1, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.
256
A correspondência com o editor do periódico londrino The Month registra que em março de 1960 o
manuscrito já estava em suas mãos e seguiria para impressão. CARAMAN, Philip. Carta a Michel de Certeau,
texto datilografado, 25 de março de 1960, caixa 3, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves. O texto foi
publicado em: CERTEAU, Michel de. Jean-Joseph Surin. The Month, v. 24, n. 6, p. 340-353, déc. 1960.
257
“[...] j’ai surtout cherché jusqu’ici à me documenter et à suivre le Père Surin là où il va”. Id. Carta a Henri
Gouhier, texto datilografado, 27 de julho de 1960, caixa 1, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.
258
“[...] préciser les courants intellectuels et spirituels de la province d’Aquitaine”. Id. Carta a Henri Gouhier,
texto datilografado, 12 de novembro de 1960, caixa 1, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.
259
Id. Carta a Henri Gouhier, texto datilografado, 19 de janeiro de 1961, caixa 1, Arquivo da Companhia de
Jesus, Vanves.
91

Acerca do meio intelectual e espiritual, descobriu uma quinzena de cursos manuscritos


sobre lógica, metafísica, cosmologia e teologia ministrados em faculdades de Bordeaux por
volta de 1650. Eles auxiliam a traçar o perfil do ensino oficial e a maneira como estavam
colocados os grandes problemas espirituais da época.
Certeau também selecionou testemunhos da literatura demonológica daquele
momento, fontes ricas de informação sobre problemas religiosos e antropológicos do contexto
de formação de Surin, além de outros temas ligados à vida ou à doutrina espiritual do jesuíta:
congregações secretas, personagens e episódios da história regional e discussões entre
teólogos e “espirituais”. Este último ponto prolongava o debate entre a tradição escolástica e a
mística carmelita ocorrido na Espanha cinquenta anos antes – Certeau esperava poder visitar o
país para precisar esse ponto.
Por fim, ele retornaria a Chantilly, cuja vasta biblioteca permitiria confrontar as
posições de Surin com as de seus contemporâneos e tomar conhecimento dos autores que ele
leu, cuja lista já havia estabelecido. Sobre esse ponto, tranquiliza seu diretor de tese: “não é
que eu procure desenvolver além da conta a análise de fontes – me parece que essa é sua
opinião –, mas esse trabalho me parece necessário para compreender o próprio Surin”. 260 Um
jovem pesquisador atenuando os receios de um orientador experiente ou um historiador
justificando seu trato das ideias ao filósofo que era seu professor?261
O intuito dessa análise histórica sobre Surin era obter recursos para “esclarecer
simultaneamente sua obra particular e certos problemas de seu tempo”,262 mas também “saber
de que maneira a ‘teologia mística’ de Surin os excede ou, o que é o mesmo, em que medida
essa doutrina se manifesta como verdadeira por sua capacidade de superar as oposições das
quais é parte”.263

260
“Ce n’est pas que je cherche à développer outre mesure l’analyse des sources – il me semble que c’est bien
votre avis –, mais ce travail me paraît nécessaire pour comprendre Surin lui-même”. CERTEAU, Michel de.
Carta a Henri Gouhier, texto datilografado, 19 de janeiro de 1961, caixa 1, Arquivo da Companhia de Jesus,
Vanves, p. 2.
261
Gouhier, historiador da filosofia moderna, estava cônscio que a realidade histórica fornece os problemas reais
que a filosofia de um tempo enfrenta, mas já havia se mostrado contrário à redução da história da filosofia à
tarefa de erudição. Cf. GOUHIER, Henri. La philosophie et son histoire. Paris: Vrin, 1944.
262
“[...] éclairer simultanément son ouvre propre et certeains problèmes de son temps”. CERTEAU, Michel de.
Silence et expérience. Le Père Surin. texto datilografado, 01 de março de 1961, caixa 1, Arquivo da Companhia
de Jesus, Vanves, p. 3. Esse texto foi apresentado ao CNRS junto a um pedido de subvenção.
263
“[...] savoir de quelle manière la ‘théologie mystique’ de Surin les dépasse ou, ce qui revient au même, dans
quelle mesure cette doctrine se manifeste comme vraie par sa capacité à surmonter les oppositions dont elle est
partie”. CERTEAU, Michel de. Silence et expérience. Le Père Surin (1600-1665). Note complémentaire:
recherches sur le milieu intellectuel et spirituel, texto datilografado, 13 de setembro de 1961, caixa 1, Arquivo da
Companhia de Jesus, Vanves, p. 3. Nota complementar enviada ao CNRS por sugestão de Gouhier, mencionada
em: Id. Carta a Henri Gouhier, texto datilografado, 14 de setembro de 1961, caixa 1, Arquivo da Companhia de
Jesus, Vanves.
92

Certeau pensava em começar a redigir a tese em setembro de 1961. 264 Parece tê-lo
conseguido, uma vez que notifica o orientador sobre o envio do primeiro capítulo finalizado,
ocasião em que reafirma seu interesse em concluir uma primeira versão do conjunto do
trabalho na primavera do ano seguinte.265
Mais de um ano e meio depois, escreverá se desculpando pelo silêncio de meses
absorvidos por suas tarefas na revista Christus – em 1962 passa a dirigi-la junto com François
Roustang. Ele demonstra interesse em conceder à tese “dois ou três meses” em que estará um
pouco menos atarefado, cuja feitura ele precisa compartilhar com outras obrigações. 266 Porém,
não tardará a se queixar da “multiplicidade excessiva” de suas tarefas, 267 dentre elas a
Christus e suas obrigações ministeriais,268 “trabalhos crescentes” que o “mantêm
extremamente longe de Surin”.269 Nessa última carta, constata a dificuldade com um certo
tom de resignação:
Da tese propriamente dita, existem algumas partes escritas e uma massa de
documentação. Ainda não perdi as esperanças de terminá-la, embora o
tempo que eu possa dedicar a ela esteja agora limitado à parte noturna de
dias já comprometidos.270
Certeau nunca veio a concluir a tese, mas a trajetória dessa pesquisa lhe rendeu frutos
significativos. Do material reunido, publicou o Guide Spirituel e a Correspondance de Surin,
além de alguns artigos, quase todos na Revue d’Ascétique et de Mystique.271 Esses recursos
também foram úteis para seu livro sobre o célebre episódio da possessão demoníaca de
Loudun, no qual Surin foi um dos personagens, interpretando a um só tempo o papel de
exorcista e possesso.272

264
CERTEAU, Michel de. Carta a Henri Gouhier, texto datilografado, 01 de agosto de 1961, caixa 1, Arquivo da
Companhia de Jesus, Vanves.
265
Id. Carta a Henri Gouhier, texto datilografado, 28 de novembro de 1961, caixa 1, Arquivo da Companhia de
Jesus, Vanves.
266
Id. Carta a Henri Gouhier, texto datilografado, 13 de junho de 1963, caixa 1, Arquivo da Companhia de Jesus,
Vanves.
267
Id. Carta a Henri Gouhier, texto datilografado, 19 de setembro de 1963, caixa 1, Arquivo da Companhia de
Jesus, Vanves.
268
Id. Carta a Henri Gouhier, texto datilografado, 08 de outubro de 1963, caixa 1, Arquivo da Companhia de
Jesus, Vanves.
269
“[...] travaux croissants et qui me tiennent fort éloigné de Surin”. Id. Carta a Henri Gouhier, texto
datilografado, 11 de março de 1964, caixa 1, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.
270
“De la thèse à proprement parler, il existe quelques morceaux redigés et une masse de documentation. Je ne
désespère pas encore de la terminer, bien que le temps que je puis lui consacrer soit maintenant cantonné dans
la part nocturne de journées déjà chargées”. Ibid.
271
Id. La vie aventureuse du Père Surin. Ecclesia, n. 181, p. 55-62, avril 1964; Id. Les œuvres de Jean-Joseph
Surin: histoire des textes I. Revue d’Ascétique et de Mystique, année 40, n. 160, p. 443-476, oct./déc. 1964; Id.
Les œuvres de Jean-Joseph Surin: histoire des textes II. Revue d’Ascétique et de Mystique, année 41, n. 161, p.
55-78, janv./mars 1965; Id. L’illettré éclaire dans l’histoire de la lettre de Surin sur le jeune homme du Coche
(1630). Revue d’Ascétique et de Mystique, t. 44, n. 176, p. 369-412, 1968; Id. Jean-Joseph Surin interprète de
saint Jean de la Croix. Revue d’Ascétique et de Mystique, t. 46, n. 181, p. 45-70, 1970.
272
Id. (1970) La possession de Loudun. Paris: Gallimard/Julliard, 2005.
93

Gostaria de voltar ao Mémorial de Favre e deter-me no Guide Spirituel de Surin para


articulá-los à terceira característica da pesquisa histórica de Certeau naquele início dos anos
1960, isto é, o aspecto teológico em sua abordagem das ideias. Esses escritos observem as
regras filológicas e históricas, mas também trazem algo que excede a operacionalidade
própria dessas disciplinas.
Certeau escreve a Henri de Lubac em 27 de agosto de 1962, dando indícios de
mudanças em sua situação na Companhia, aparentando estar consciente que isso teria
implicações no trabalho histórico que desenvolvia à época: “Gostaria de falar com você sobre
a ‘Christus’ e também sobre meu trabalho futuro, pois tenho a impressão de que o período de
trabalho científico terminou para mim”.273
No início do ano seguinte, Certeau converge esse tempo novo que se inicia a uma
premissa teológica dessa relação com o passado histórico:
Eu precisaria de um pouco de naftalina para Surin. É para mim um outro
tempo que começa. Decididamente, há uma continuidade e leis em nossa
história. Para mim seria mais fácil, aliás, fazer agora uma teologia da
história a partir da história dos historiadores de Surin.274
Se tomamos a teologia da história nesse sentido de interpretação da “continuidade” e
das “leis” que atravessam as particularidades históricas do cristianismo ao longo do tempo; se
lembramos que o trabalho sobre Favre acentuou a solução da reforma interior pautada na
continuidade com a tradição, no reestabelecimento da universalidade da Igreja e na relação
com o absoluto como saída espiritual para os problemas enfrentados pela Igreja no século
XVI; então podemos inferir a teologia da história como o próprio postulado que torna a
continuidade pensável nesse nível teológico da interpretação certeauniana sobre Favre.
Os documentos ministeriais e os artigos teológicos de Certeau interpretavam a história
com base na providência divina, na revelação do Cristo e da homogeneidade da tradição. Os
fundamentos dessa teologia da história retornam agora sob a forma de um postulado teológico
em sua produção de história das ideias. Com isso, designo a pressuposição de um princípio de
inteligibilidade não demonstrado pelo trabalho, aceito como verdadeiro e implícito em uma
interpretação teológica em sua historiografia.
O trabalho que opera nos limites do pensar histórico traz esse postulado teológico

273
“[...] j’aimerais bien vous parler de ‘Christus’, et aussi de mon travail à venir puisque j’ai l’impression que
la période du travail scientifique est pour moi close”. CERTEAU, Michel de. Carta a Henri de Lubac, texto
datilografado, 27 de agosto de 1962, caixa 34, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves. A correspondência está
disponível no Fundo Henri de Lubac.
274
“Il me faudrait un peu de naphtaline pour Surin. C’est pour moi un autre temps qui commence [...]. Il y a
décidément une continuité et des lois dans notre histoire. Il me serait d’ailleurs plus facile de faire maintenant
une théologie de l’histoire à partir de l’histoire des historiens de Surin”. Id. Carta a Henri de Lubac, texto
datilografado, 10 de janeiro de 1963, caixa 34, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves. Grifo nosso.
94

implícito como condição para que a dessemelhança entre tempos históricos possa ser levada
em conta sem excluir a expectativa de uma imutabilidade da espiritualidade. Como veremos,
essa identidade entre os séculos XVI/XVII e o século XX está no valor pedagógico das
doutrinas de Favre e Surin. Isso quer dizer que elas ensinam ao cristão um meio de progressão
em direção à presença. Por isso, o postulado dessa continuidade é teológico.
Certeau estava ligado institucionalmente à Companhia de Jesus e atuava em seus
quadros, a exemplo das “obrigações ministeriais” e da edição da Christus mencionadas na
correspondência. Fosse essa atuação pastoral ou editorial, ela carregava uma visão teológica
da experiência humana. Essa compreensão não se apaga quando ele expande o universo de
seu trabalho acadêmico.
A exposição do método de trabalho praticado em sua introdução ao Mémorial nos
auxilia a esclarecer nosso ponto. Esse método está amparado em dois procedimentos que
podem ser designados como interpretação histórica e interpretação teológica. A função do
segundo é dar conta daquilo que constitui o âmbito religioso e resiste às ferramentas do
historiador.
É possível afirmar que o estudo da vida religiosa segundo Favre reforçou o que já
estava implicado no que encontramos em suas pregações, participações em retiros espirituais
e artigos publicados até então. Com isso me refiro à consciência do laço entre a prática
espiritual e as características de uma época: “de fato esse estudo me confirmou na convicção
que, pelas tensões próprias que a definem, a experiência do espiritual é o espelho da época na
qual ela se situa”.275 Não à toa Certeau dedica grande esforço a interpretar historicamente o
diário espiritual de Favre.
Entretanto, assim como seus documentos pessoais e artigos buscavam desenrolar o
material humano da experiência a partir de uma lógica que ultrapassa a imanência do mundo
histórico, vemos ele afirmar uma limitação da interpretação histórica no que diz respeito à
especificidade das soluções espirituais dadas aos problemas de um tempo:
o historiador que não apreendesse a verdadeira natureza dessas tensões
internas naturalmente se tornaria incapaz de perceber como o espiritual lhes
fornece uma solução e como essa solução é religiosa, isto é, unificadora em
virtude de uma Presença que escapa a este mundo sem ser estranha a ele. 276

275
“Cette étude m’a en effet confirmé dans la conviction que, par les tensions même qui la définissent,
l’expérience du spirituel est le miroir de l’époque dans laquelle elle se situe”. CERTEAU, Michel de.
Présentation, texto datilografado, correções manuscritas, 1960, caixa 3, Arquivo da Companhia de Jesus,
Vanves. p. 5.
276
“[...] l’historien qui ne saisirait pas la vraie nature de ces tensions internes se rendrait naturellement
incapable de percevoir comment le spirituel y apporte sa solution et en quoi cette solution est religieuse, c’est-à-
dire unificatrice en raison d’une Présence qui échappe à ce monde sans lui être étrangère”. CERTEAU, Michel
95

A consequência disso para a leitura feita por Certeau é a convivência entre sua ênfase
na forte vinculação de Favre com os grandes movimentos de sua época e a “intuição interior”
da qual fala a respeito do confrade do século XVI. Certeau interpreta teologicamente essa
intuição como uma “mística da ação” na qual a “verdadeira reforma é fruto da união com
Deus”.277
Em seu material de defesa de tese, essa interlocução entre interpretação histórica e
teológica está dada na tensão que Certeau afirma haver entre “um homem que participa com
todo seu ser da diversidade de sua época e que, no entanto, não pode aceitá-la porque ele vive
do Único e busca testemunhá-lo com sua própria vida”.278
Desse modo, é a partir dessa primeira experiência historiadora que a tensão do
pertencimento a um tempo e da irredutibilidade da espiritualidade aparece claramente posta
por Certeau, algo que extrapola as fronteiras estritas do trabalho histórico e traz consigo um
problema teológico que pode ser resumido da seguinte maneira: como pode o cristão tomar
parte de sua época e manter-se fiel à verdade da Igreja católica cada vez mais questionada?
O padre estava interessado teologicamente em uma questão espiritual que lhe serve
para pensar a existência cristã tanto no século XVI de Favre quanto em seu próprio século
XX. Esse problema estava em alguma medida nas entrelinhas do tratamento da experiência
religiosa em seus artigos e em sua atuação pastoral na segunda metade dos anos 1950. Ele
agora é colocado no centro de sua atividade historiadora por volta de 1960.
Portanto, Certeau não se relaciona com seu objeto mediado exclusivamente pelos
critérios da erudição histórico-filológica.279 Em 1954 ele havia dado claros indícios do

de. Présentation, texto datilografado, correções manuscritas, 1960, caixa 3, Arquivo da Companhia de Jesus,
Vanves. p. 5.
277
“la vraie réforme est le fruit de l’union à Dieu”. Id. Introduction. In: FAVRE, Pierre. (1960) Mémorial.
Traduit et commenté par Michel de Certeau, s.j. Paris: Desclée de Brouwer, 2006. p. 76. Certeau apresenta essa
proposta espiritual em sua introdução (p. 76-95). Um resumo encontra-se na apresentação da defesa de tese na
Sorbonne. Ele também trata detalhadamente o assunto em um texto datilografado inédito, intitulado Expérience
et esprit chez Favre, disponível no fundo Michel de Certeau do Arquivo da Companhia de Jesus em Vanves,
caixa 3.
278
“[...] un homme qui participe par tout son être à la diversité de son époque, et qui pourtant ne peut pas
l’accepter parce qu’il vit de l’Unique et cherche à en témoigner par sa propre vie”. Id. Présentation...op. cit., p.
5.
279
Segundo Guido Mongini, especialista na história da Companhia de Jesus, a análise espiritual acarreta efeitos
historiográficos na introdução do Mémorial, como é o caso do véu que lança sobre o que seria o mais essencial
em Favre. Com isso, faz referência à identidade jesuíta enquanto dimensão propriamente histórica, isto é, à
posição religiosa e política da Companhia no contexto da crise religiosa do século XVI. MONGINI, Guido. Les
enjeux de « l’analyse spirituelle des origines »: Michel de Certeau historien de la compagnie de jésus (XVI e
siècle). Revue d'Histoire de l'Eglise de France, t. 104, p. 277-291, 2018, p. 286-291. Mongini parece postular a
historicidade como o fator necessário da espiritualidade favriana, enquanto em Certeau o postulado é a
irredutibilidade do espiritual à sua espessura histórica. A diferença de interpretação entre o historiador e o
“teólogo espiritual” está menos no maior ou menor acesso à “coisa” em si e mais em dois tipos de objeto
científico estabelecidos em função de setores diferentes do conhecimento. Portanto, alguém que partisse da
96

interesse espiritual que o motiva no estudo de Favre, quando defendeu que os textos do
jesuíta “nos permitem entrar no diálogo secreto de um homem que Deus elevou à uma
verdadeira vida mística”.280
Em outra ocasião elogia a meditação interior de Favre como um “dom que ele
transmite”,281 palavra vinda “de dentro, como a Palavra que quis seguir e da qual é somente
um novo eco”.282 Ao fazê-lo, permite deduzir que a figura histórica do século XVI é para ele o
companheiro espiritual com quem espera aprender algo para o presente.
Essa admiração espiritual consta em sua introdução ao Mémorial, onde Favre é
qualificado como “sensível e lúcido”,283 dotado de um “espírito demasiado acolhedor (seu
charme e sua tentação)”284 e de uma “humilde santidade”.285 Esse “homem feito para
compreender os outros e para reconhecer neles [a] Ação [divina]”,286 fez de sua vida “a
experiência cotidiana do Deus vivo, Uno e trino”.287
Isso não significa que Favre fosse um modelo prescritivo de regras estritas, uma vida
exemplar a ser seguida. O significado pedagógico desse objeto de estudo pode ser esclarecido
dando a palavra ao próprio Certeau: “meu trabalho me permitiu precisar questões que, para
mim, eram já antigas e entre as quais algumas excedem o caso particular de Favre”. 288
Quais questões seriam essas? Se Favre compartilhou com seu tempo a defesa da
unidade da Igreja católica frente os imperativos da modernidade do século XVI, a época de
Certeau viu-se impelida a defender a própria existência cristã no conjunto das exigências da
modernidade do século XX.289 Além disso, Favre, Surin e outros responderam aos desafios

teologia e pensasse a espiritualidade de Favre como objeto necessariamente “espiritual” poderia inverter o
argumento, afirmando a existência de efeitos espirituais na interpretação histórica, como o véu que lançaria sobre
a particularidade de uma relação com o absoluto sob a forma de uma reforma interior obstinada em defender a
continuidade da tradição e a unidade da Igreja.
280
“[...] nous permettent d’entrer dans le dialogue secret d’un homme que Dieu éleva à une vraie vie mystique”.
FAVRE, Pierre. Le progrès de l’homme spirituel. Christus, t. 1, n. 4, p. 89-104, août 1954, p. 89.
281
“[...] don qu’il transmet”. CERTEAU, Michel de. L’expérience du salut chez Pierre Favre. Christus, t. 5, n.
17, p. 75-92, janv. 1958, p. 92.
282
“[...] vient du dedans, telle la Parole qu’il a voulu suivre et dont il n’est qu’un nouvel écho”. Ibid., p. 92.
283
“Sensible et lucide”. Id. Introduction. In: FAVRE, Pierre. (1960) Mémorial. Traduit et commenté par Michel
de Certeau, s.j. Paris: Desclée de Brouwer, 2006. p. 10.
284
“[...] esprit trop accueillant (c’était à la fois son charme et sa tentation)”. Ibid., p. 26.
285
“[...] humble sainteté”. Ibid., p. 10.
286
“[...] homme était fait pour comprendre les autres et pour reconnaître en eux cette Action”. Ibid., p. 10.
287
“[...] l’expérience quotidienne du Dieu vivant, Un et trine”. Ibid., p. 95.
288
“mon travail me permit [...] de préciser des questions qui, pour moi, étaient déjà anciennes, et dont certaines
dépassent le cas de Favre lui-même”. Id. Présentation, texto datilografado, correções manuscritas, 1960, caixa 3,
Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves. p. 1.
289
A esse respeito, reporto-me parcialmente à intuição de François Dosse sobre a herança favriana de Certeau.
DOSSE, François. (2002) Michel de Certeau: le marcheur blessé. Paris: La Découverte, 2007. p. 102. Outros
autores também indicaram a conveniência entre esses momentos históricos distintos. Segundo Adrien
Demoustier, quando Certeau buscava esclarecer o espírito da Companhia para os jesuítas do século XVII, ele o
fazia para si mesmo e seu próprio tempo. Já Jacques Le Brun fala de uma “compreensão recíproca” dos séculos
97

modernos por meio da “teologia espiritual”, termo que poderia igualmente caracterizar os
problemas e as reflexões das primeiras publicações de Certeau. Por fim, Favre destacou a
sucessão temporal, a memória e o diálogo como aspectos fundamentais da experiência
espiritual, questões com as quais o próprio Certeau se debatia à época da pesquisa.290
Em resumo, essa pesquisa erudita e de história das ideias de Favre contém uma
interpretação teológica sendo praticada, um problema teológico nitidamente delineado, uma
inspiração espiritual ligando Certeau ao confrade do século XVI e um valor pedagógico
representado por sua doutrina para a relação do homem com Deus, com a Igreja e com a
tradição no século XX.
No caso de Surin, a introdução à edição do Guide Spirituel também mostra o desejo de
simetria pulsando na aproximação com uma figura recuada no tempo. Ela postula um
princípio teológico no trabalho histórico porque estabelece uma aliança entre o objeto
histórico, a interpretação não histórica e a atualidade do conteúdo interpretado. Ou seja, a
ligação entre o século XVII das vivências de Surin, a elucidação do que nelas há de
singularmente espiritual e a vocação pedagógica que a autoriza no século XX.
Certeau encontrou uma cópia do Guide Spirituel pour la perfection em Toulouse,
como menciona a seu diretor de tese em 12 de novembro de 1960. Certeau decifra e passa a
limpo as inúmeras notas marginais que o próprio autor deixou no manuscrito, cópia antiga
desse texto que Certeau considerava ainda mal conhecido, embora Surin o considerasse sua
obra mais importante, junto com o Catéchisme spirituel.291 A publicação do texto estabelecido
e apresentado por Certeau sai em 1963 na coleção homônima da Christus,292 evidenciando o
objetivo espiritual da edição da obra.
Sua introdução não se furta à crítica textual para o estabelecimento da versão da
edição,293 como então era característico do perfil erudito de sua aproximação com os textos do

XVI/ XVII e do século XX no trabalho de Michel de Certeau, perspectiva que nos parece mais condizente com
um segundo momento de sua trajetória teológica. DEMOUSTIER, Adrien. Histoire, institution et mystique:
jésuites des XVIe et XVIIe siècles. In: GIARD, Luce (Dir.). Le voyage mystique: Michel de Certeau. Paris:
RSR/Cerf, 1988. p. 53; LE BRUN, Jacques. Le secret d’un travail. In: GIARD, Luce (Dir.). Le voyage mystique:
Michel de Certeau. Paris: RSR/Cerf, 1988. p. 80.
290
Encontramos esses aspectos no Mémorial de Favre, como Certeau mostra na última parte de sua introdução
(p. 76-95).
291
CERTEAU, Michel de. Carta a Henri Gouhier, texto datilografado, 12 de novembro de 1960, caixa 1,
Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.
292
SURIN, Jean-Joseph. (1963) Guide spirituel. Texte établi et présenté par Michel de Certeau, s.j. Paris:
Desclée de Brouwer, 2008. O termo guide era feminino no francês do século XVII. No título do livro, Certeau
utiliza a forma corrente no francês contemporâneo. Sobre essa escolha, cf. CERTEAU, Michel de. Introduction.
In: Ibid., p. 7, nota 1.
293
A introdução corresponde às páginas 7-61. Nas páginas 7-12 constam algumas indicações sobre a história do
Guide, sobre sua relação com o conjunto da obra de Surin e sobre sua relevância segundo alguns comentadores
do século XIX e XX. Contudo, o principal dos comentários críticos sobre o estabelecimento do texto foi
98

passado. Já no plano da interpretação histórica, ele é mais econômico se comparado à história


das ideias encontrada na introdução ao Mémorial de Favre. Ele dedica mais atenção à
trajetória biográfica de Surin que às correntes intelectuais e espirituais do século XVII, algo
que certamente estava em seu radar – basta recordar o que ele menciona em sua
correspondência com seu diretor de tese. Certeau dá apenas algumas “rápidas indicações”
sobre “a dolorosa história de Surin”,294 de resto remetendo a duas obras em preparação: a
edição crítica de sua correspondência e Expérience et langage, la science mystique du père
Surin.295
Essa segunda corresponde à sua pesquisa de tese, cuja redação não veio a terminar
nem a publicar. Apesar disso, sua menção mostra que ele ainda acreditava ou ao menos
gostaria de acreditar na conclusão dessa pesquisa e em sua divulgação quando escreveu sua
introdução ao texto de Surin.
Nesse comentário redigido na primeira metade de 1963,296 Certeau passa pelos
principais momentos da trajetória de Surin (1600-1665).297 Fala de suas origens familiares, da
angústia que bem cedo o acomete, de sua educação escolar e religiosa em Bordeaux, sua
cidade natal, de sua formação junto aos jesuítas e de sua relação com a madre Isabelle des
Anges, por meio de quem se aproxima da mística de Teresa de Ávila. Traz também o
essencial do envolvimento de Surin no caso de possessão demoníaca das ursulinas em
Loudun, onde chegou em dezembro de 1634, encarregando-se do exorcismo da madre
superiora Jeanne des Anges. Em seguida, pontua o período de desequilíbrio mental em que
Surin mergulha nos longos anos que sucederam sua partida de Loudun (1637-1654). Por fim,
trata alguns aspectos do último decênio de sua vida, quando compõe os dois tomos do
Catéchisme em 1654/1663 e o Guide em 1660.
Entretanto, é a interpretação teológica que gostaria de explorar. É nesses termos que é
possível qualificar o modo como Certeau enxerga espiritualmente os dados biográficos de
Surin e como apresenta a doutrina espiritual do confrade insoluvelmente vinculada aos

reservado à quarta parte de sua introdução, intitulada Le texte de la « Guide spirituelle ». CERTEAU, Michel de.
Introduction. In: SURIN, Jean-Joseph. (1963) Guide spirituel. Texte établi et présenté par Michel de Certeau, s.j.
Paris: Desclée de Brouwer, 2008. p. 50-61.
294
“[...] la douloureuse histoire de Surin”. Ibid., p. 12.
295
Certeau menciona as duas obras na nota 4. Ibid., p. 12.
296
A redação dessa introdução ocorreu, provavelmente, antes de maio de 1963, uma vez que no dia treze daquele
mês ele mencionou que precisaria abandonar a tese em função da demanda da Companhia de que ele trabalhasse
em tempo integral na Christus. Outra evidência que reforça essa hipótese está no verso da folha de rosto da
edição do Guide spirituel. Nela consta o Imprimi potest, isto é, a aprovação oficial do superior da ordem à
publicação da obra, datada de dezesseis de maio de 1963, o que permite supor a entrega do material finalizado
para avaliação antes daquela data.
297
Essa apresentação histórica aparece na primeira parte da introdução, sob o título Les aventures du père Surin.
Ibid., p. 12-21.
99

dilemas humanos. Essas duas formas de relacionar a realidade histórica e a realidade não
histórica tem como pano de fundo a mesma questão que Certeau já enfrentara, quer dizer, a
necessidade de pensar a constituição da experiência cristã tanto como inerente quanto como
irredutível a um tempo.
Tomemos como referência o caso Loudun. Não pretendo deter-me nos acontecimentos
em torno das possessões e dos exorcismos das ursulinas, ou nas vicissitudes da participação
de Surin nesses eventos. O que nos interessa é mostrar como a pena de Certeau relaciona essa
circunstância histórica, a trajetória individual de Surin e sua interpretação espiritual.
Em primeiro lugar, merece menção o fato de que Certeau entende essa “doença
coletiva” (maladie colletive) que foram as possessões de Loudun como “signo de uma crise
profunda”.298 Ele não dá maiores explicações sobre o que tem em mente ao mencionar isso,
mas seus trabalhos históricos futuros retomarão o assunto.
Em segundo lugar, os acontecimentos dessa “lamentável história” (lamentable
histoire) têm consequências relevantes na vida de Surin, como as palavras de Certeau
autorizam depreender: “[esse] caso espetacular o tornará célebre por todo lado, provocará sua
desgraça e, no entanto, mais tarde, muito mais tarde, favorecerá a difusão de sua obra”. 299
Por fim, a marca subjetiva deixada pela passagem de Surin em Loudun. Surin deixa
esse “infernal paraíso” (infernal paradis) para logo entrar em estado de confusão mental.
Paralisia, mutismo, frases autísticas, sentimento de ser vítima de uma hostilidade universal,
convicção de estar condenado, são alguns sintomas descritos por Certeau. Todavia, esse
quadro está ligado à uma vitalidade secreta jamais extinta: “o desequilíbrio mental, sem nunca
lhe tirar a consciência de seu estado miserável, deixa-lhe apenas a linguagem desesperada e
solitária de um país que não pertence a nenhum país”.300
Esse ponto mostra-se bastante relevante, pois penso que essa metáfora espacial
utilizada por Certeau para dar a ver a o que significou a fragilidade de Surin serve também
como imagem da própria maneira certeauniana de estar entre a história e a teologia nesse
primeiro momento de sua atuação intelectual. Isso significa dizer que a linguagem da loucura
não é restringida por Certeau à sensibilidade da época – o século XVII se viu dividido entre
explicações sobrenaturais e médicas sobre os fenômenos como os de Loudun. Ainda que
Surin em momento nenhum duvide da realidade da possessão demoníaca e o próprio Certeau

298
“[...] signe d’une crise profonde”. CERTEAU, Michel de. Introduction. In: SURIN, Jean-Joseph. (1963)
Guide spirituel. Texte établi et présenté par Michel de Certeau, s.j. Paris: Desclée de Brouwer, 2008. p. 17.
299
“Mais une affaire spectaculaire va le rendre célèbre partout, provoquer son malheur et pourtant, plus tard,
beaucoup plus tard, servir la diffusion de son œuvre”. Ibid., p. 16.
300
“Le déséquilibre mental, sans jamais lui enlever la conscience de son misérable état [...] ne lui laisse que le
langage désespéré et solitaire d’un pays qui n’appartient à aucun pays”. Ibid., p. 19. Grifo nosso.
100

não se furte a confirmar a interpretação psiquiátrica vastamente difundida sobre sua desordem
mental, é espiritualmente que ele lê o estado patológico do confrade.
Se a espiritualidade é produzida num lugar, ou seja, é inerente ao solo que lhe fornece
matéria-prima, a metáfora utilizada por Certeau mostra como ela também presta contas à certa
suspensão num “não-lugar”. É o que vemos quando Certeau diz: “essa linguagem de regiões
desconhecidas se dirige a Deus”.301 É nessa ênfase sobre a feição “desterritorializada” da
espiritualidade onde encontramos mais um indício da interpretação teológica na abordagem
histórica de Certeau:
No fundo, ele não renuncia àquele de quem ele se crê separado para sempre.
Ele o inveja. Ele o interpela. Ele o teme. Ele jamais é indiferente, e é o Amor
que canta ainda o ‘condenado’.302
Portanto, o acento sobre o modo como Surin esteve mergulhado em sua situação
subjetiva sem perder de vista a possibilidade de remeter seus infortúnios ao absoluto
evidencia uma prática não restrita ao escrutínio erudito dos documentos e à interpretação
histórica da espiritualidade por parte de Certeau.
Certeau dedicará uma parte das páginas seguintes à doutrina espiritual do Guide
Spirituel.303 Nessa exposição, a vida cotidiana aparece como o lugar da inscrição dos signos
que serão discernidos como tendo sentido particularmente espiritual – o que antes era visto
em sua desordem mental agora passa pelo mundo dos fatos e da multiplicidade da realidade.
Nesse ponto é clara a analogia entre o que encontramos em sua introdução ao Mémorial de
Favre e em suas próprias reflexões teológicas nos anos anteriores às suas publicações sobre os
dois confrades jesuítas do século XVI e XVII. A esse respeito, Favre, Surin e Certeau estão
ligados pelo espírito inaciano do encontrar Deus em todas as coisas.
Como em sua introdução sobre o diário espiritual de Favre, encontramos aqui o tom
elogioso à “lucidez” de Surin, inteligência da experiência, discernimento que é instrumento
humano orientado à Deus e fruto desse absoluto que o suscita.304 Segundo Certeau, Surin não
vislumbra tomar o que propõe como meio para analisar a condição social ou psicológica do
cristão.305 Sua “‘ciência experimental’ da vida espiritual”306 pretende “marcar a lógica interna
e evidenciar, nos fenômenos sucessivamente experimentados, a maneira como se desenvolve

301
“[...] ce langage de régions inconnues s’adresse à Dieu”. CERTEAU, Michel de. Introduction. In: SURIN,
Jean-Joseph. (1963) Guide spirituel. Texte établi et présenté par Michel de Certeau, s.j. Paris: Desclée de
Brouwer, 2008. p. 19.
302
“Au fond, il ne renonce pas à celui dont il se croit séparé pour toujours. Il le jalouse. Il l’interpelle. Il le
redoute. Jamais il n’est indifférent, et c’est l’Amour que chante encore le « damné » ”. Ibid., p. 19.
303
Corresponde à segunda parte da introdução, nomeada “Doctrine spirituelle”. Ibid., p. 22-39.
304
Ibid., p. 22.
305
Ibid., p. 23.
306
“[...] « science expérimentale » de la vie spirituelle”. Ibid., p. 22.
101

uma vida nascida de Deus”.307 Esse desenvolvimento da vida espiritual passa por três etapas:
o “primeiro passo”, a “região do puro amor” e a “teologia mística”.308
Portanto, esse tratamento da espiritualidade não é uma análise da realidade ela mesma.
Surin “abraça todos os aspectos da existência, mas segundo uma ótica própria”. 309 Para
Certeau, isso quer dizer que sua formulação espiritual ajuda “o fiel a reconhecer, na situação
em que se encontra, a forma que doravante deve assumir a adesão a Deus”. 310 Dessa maneira,
Certeau encontra uma lição no texto de Surin: “ele ensina a seu leitor uma lucidez
verdadeiramente espiritual”.311
Essa “educação espiritual” (éducation spirituelle) abraça o mundo da experiência sem
ser explicada por ela, assim como uma experiência historicamente e psicologicamente
desenhada como a angústia de Surin carrega uma orientação em direção ao absoluto, aspectos
espirituais do companheiro do século XVII que Certeau não poderia ler em termos
exclusivamente históricos e que fornece algo a ser aprendido e vivido no século XX. Essas
são duas marcas teológicas da história, no duplo sentido do termo, na historiografia do
“primeiro” Michel de Certeau.

307
“[...] marquer la logique interne et dégager, dans les phénomènes successivement éprouvés, la façon dont se
développe une vie née de Dieu”. CERTEAU, Michel de. Introduction. In: SURIN, Jean-Joseph. (1963) Guide
spirituel. Texte établi et présenté par Michel de Certeau, s.j. Paris: Desclée de Brouwer, 2008. p. 22.
308
Ibid., p. 28-39.
309
“[...] embrasse tous les aspects de l’existence, mais selon une optique propre”. Ibid., p. 23.
310
“[...] le fidèle à reconnaître, dans la situation où il se trouve, la forme que doit prendre désormais l’adhésion
à Dieu”. Ibid., p. 23.
311
“[...] il enseigne à son lecteur une lucidité vraiment spirituelle”. Ibid., p. 26. Grifo nosso.
102

Capítulo II
Modernidade teológica e escritura certeauniana

A relação entre a teologia e a história tornou-se problema recorrente nos debates entre
intelectuais católicos a partir da segunda metade do século XIX. Três orientações se
destacaram no contexto francês da crise modernista no começo do século XX e nas décadas
seguintes: uma abordagem marcada pelo historicismo, o tomismo defendido pelo magistério
oficial da Igreja e uma “terceira via” encarnada por teólogos franceses da chamada “nova
teologia”. Nessa última estava o jesuíta Henri de Lubac, de quem Michel de Certeau foi aluno
no seminário de Lyon/Fourvière.
O seminário de Fourvière incorporou alguns dos pontos sensíveis do litígio que
invadiu a Igreja no início do século XX entre “modernistas” e tomistas. É o caso da utilização
da ciência histórica como aliada na renovação da interpretação da experiência e da teologia
cristãs, mas buscando não incorrer no questionamento dos dogmas da Igreja como o
“modernismo” do início do século tendeu a fazer. De todo modo, isso fez ressurgir acusações
na segunda metade dos anos 1940, contexto no qual apareceu a alcunha pejorativa “nova
teologia” atribuída aos seus praticantes.
Michel Certeau será formado nesse ambiente de renovação teológica onde é conferida
grande relevância à história e à filosofia moderna. Ele manterá relações estritas com Henri de
Lubac mesmo após terminar sua formação nas colinas lyonenses de Fourvière em 1950. Será
segundo o espírito da teologia lubaciana que ele desenhará suas primeiras reflexões teológicas
sobre a história.
Contudo, mesmo quando em linhas gerais sua leitura teológica sobre a história era
lubaciana, já é possível entrever uma escritura certeauniana. Isto é, mesmo quando ela ainda
não apresenta diferenças substanciais daquela produzida por seu mestre, já constam os rastros
de uma diferença por vir. Esses rastros estão contidos na maneira como recorre a Heidegger e
a Hegel.

2.1 Teologia e história: um breve histórico

A emergência de explicações historicamente orientadas sobre o cristianismo não é


invenção recente. Não é ainda no século XVII que Espinosa chamava atenção para o
indispensável exame histórico das Escrituras por intermédio de um método crítico adequado à
103

sua interpretação?1 Esse interesse pelo escrutínio histórico das verdades religiosas é
indissociável às crescentes indagações endereçadas à Igreja e ao pensamento teológico no
mundo moderno.2
A partir de fins do século XVIII, a modernidade passou a ser caracterizada por uma
experiência marcada pela conjugação do efêmero e do eterno, da mudança e do imutável. No
coração do pensamento moderno estava o paradoxo do desejo de transformação e de novidade
interagindo com o terror da desorientação e da desintegração. Esse entusiasmo com a
mudança e com a novidade colocou a ruptura com a tradição na ordem do dia. A Igreja foi
atingida em cheio por essa transformação.3
Durante a revolução francesa, a interferência de autoridades eclesiásticas em assuntos
temporais sofreu duras críticas, desencadeando um conjunto de medidas contrárias ao papel
que a Igreja católica ocupava na França. A antinomia em questão é dispersa e seria
imprudente traçar uma linha temporal que fizesse jus à complexidade do tema. 4 Contudo, é
possível afirmar que as tensões geradas pelas crescentes demandas contra a ingerência política
da Igreja reapareceram em diferentes circunstâncias.
O auge desse conflito foi o anticlericalismo5 durante a Terceira República francesa,
estabelecida a partir de 1870. Enquanto o monarquismo se ancorava na defesa da fé cristã e da

1
Consta em Da interpretação da Escritura, capítulo VII do Tratado teológico-político de 1670. ESPINOSA,
Baruch de. Tratado teológico-político. Introdução, tradução e notas de Diogo Pires Aurélio. São Paulo: Martins
Fontes, 2003.
2
Uso o termo “modernidade” num duplo sentido. Ele se refere às mudanças ocorridas na Europa a partir do
século XVI, ou seja, na Idade Moderna. Adoto essa acepção da palavra para aludir aos desafios enfrentados pelo
catolicismo nos séculos XVI/XVII, quando trato de textos de Certeau sobre esse recorte. Também faço
referência às mudanças culturais, filosóficas e científicas que emergiram na segunda metade do século XVIII,
tendo como marco simbólico a Revolução Francesa. Nesse caso, o termo coloca em evidência uma radicalização
do processo de dessacralização da sociedade e uma ruptura com a tradição católica. Nesse segundo uso, a
modernidade foi uma experiência correspondente ao período que usualmente chamamos História
Contemporânea. Recorro também ao termo “contemporaneidade” como sinônimo de modernidade, geralmente
para salientar as particularidades vividas à época de Certeau, sobretudo nas décadas de 1960 e 1970. A
duplicidade do termo “modernidade” já aparecia em Reinhart Koselleck, quem distinguia uma “primeira
modernidade” da “nossa modernidade”, sendo a segunda fruto de uma transição ocorrida entre meados do século
XVIII e meados do século XIX. Sobre a história do conceito de modernidade, ver: KOSELLECK, Reinhart.
Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Tradução de Wilma Patrícia Maas, Carlos
Almeida Pereira e revisão de César Benjamin. Rio de Janeiro: Contraponto/Editora PUC Rio, 2006. p. 267-303;
Id. Estratos do tempo: estudos sobre história. Tradução de Markus Hediger. Rio de Janeiro: Contraponto/Editora
PUC Rio, 2014. p. 209-222.
3
Para essa definição de modernidade, minhas referências são: BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido se
desmancha no ar: a aventura da modernidade. Tradução de Carlos F. Moisés e Ana Maria L. Ioriatti. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996. p. 13; HARVEY, David. A condição pós-moderna. Tradução de Adaiil Ubirajara
Sobral e Maria Stela Gonçalves. 22 ed. São Paulo: Edições Loyola, 2012. p. 21-22.
4
Um tratamento mais detalhado do assunto pode ser encontrado em LATREILLE, André; RÉMOND, René.
Histoire du catholicisme en France: la période Contemporaine. Paris: Spes, 1962; RÉMOND, René.
L’anticléricalisme en France de 1815 à nos jours. Bruxelles: Éditions Complexe, 1985.
5
O termo anticlericalismo designa a crítica à influência da hierarquia religiosa em assuntos externos à ordem
espiritual e eclesiástica. Nesse sentido, sua reprovação é ao clericalismo, isto é, à propensão da Igreja a interferir
sobre assuntos seculares, colocando a autoridade pública sob a égide de seus próprios interesses. A negação do
104

Igreja católica, o republicanismo se amparava no anticlericalismo. Os primeiros anos da


Terceira República, dominados pelos monarquistas, deram lugar à vitória eleitoral dos
republicanos em 1879, prevalecendo medidas anticlericais em direção à laicização do Estado.
Uma série de leis foi promulgada a partir de 1880, dentre elas a secularização das escolas, dos
hospitais, a expulsão de congregações, culminando na separação formal entre Igreja e Estado
em 1905.6
Nesse contexto em que a autoridade da Igreja era questionada, surgiam trabalhos que
buscavam tomar o cristianismo como objeto de estudo não tutelado por princípios
eclesiásticos. Abordarei essa transformação por intermédio da maneira como a difusão de
critérios científicos da disciplina histórica ressoou nos estudos históricos sobre a religião,
acarretando questionamentos à validade dos protocolos teológicos atemporais de interpretação
do cristianismo.
Ernest Renan traça um quadro dessa situação, em sua Vida de Jesus (1863). Ele cita
trabalhos de crítica bíblica dos anos 1860 que considera excelentes – Réville, Reuss e Nicolas
-,7 mostrando que a aplicação do método histórico à religião difundia-se. Dentre esses
estudos, faz referência à outra Vida de Jesus, aquela do alemão David Friedrich Strauss
(1835), entre outras obras do mesmo autor. Embora considere Strauss indispensável, e afirme
que sua crítica detalhada aos evangelhos deixa pouco a desejar, ele teria “o defeito de se fixar
demais no terreno teológico e muito pouco no terreno histórico”.8
A crítica a Strauss sintetiza a posição de Renan quanto à teologia. Ainda que a
reconstituição dos textos que servem de documento à pesquisa histórica seja contribuição
deixada pelos teólogos, há uma fronteira que a teologia não pode transgredir. Um teólogo
nunca será historiador:
A história é essencialmente desinteressada. O historiador só tem uma
preocupação, a arte e a verdade [...]. O teólogo tem um interesse, seu dogma.
[...] Os estudos críticos relativos às origens do cristianismo só dirão sua

clericalismo afirma a autonomia, liberdade e progresso necessários à vida republicana. Segundo René Rémond, é
por volta de 1852 que o termo anticlericalismo aparece na França, embora sua generalização ocorra somente a
partir de 1859. Já para Jaqueline Lalouette, o termo não teria sido usado antes de 1871. De qualquer modo, é
durante a Terceira República que as disputas em torno do binômio clericalismo/anticlericalismo terão seus
maiores desdobramentos. RÉMOND, op. cit.; Idem. L'anticléricalisme, une idéologie périmée? Études, t. 384, p.
347-356, juin 1996; ALOUETTE, Jacqueline. El anticlericalismo en Francia, 1877-1914. In: CRUZ, Rafael et.
al. (orgs.) El anticlericalismo. Madrid: Marcial Pons, 1997. p. 15-38.
6
DURAND, Jean-Dominique. L’Europe de la démocratie chrétienne. Bruxelles: Éditions Complexe, 1995. p.
61. Uma concisa descrição das medidas anticlericais na passagem do século XIX ao XX pode ser consultada em
ALOUETTE, op. cit.
7
RENAN, Ernest. (1863) Vie de Jésus. 24e éd. revue et augmentée. Paris: Calman Lévy, 1895. p. XXXVI-
XXXVII.
8
RENAN, Ernest. Vida de Jesus. Tradução de Elliana Maria de A. Martins. São Paulo: Martin Claret, 2004. p.
39. “[...] le tort de se tenir beaucoup trop sur le terrain théologique et trop peu sur le terrain historique”. Edição
francesa, p. XXXVIII-XXXIX.
105

última palavra quando forem cultivados num espírito puramente leigo e


profano, segundo o método dos helenistas, dos arabistas, dos sancristas,
pessoas estranhas a qualquer teologia, que não pensam em edificar nem em
escandalizar; em defender os dogmas nem derrubá-los.9
O historiador não pode comprometer-se com exigências doutrinais. Historiar é
incompatível com a teologia, pois requer autonomia frente aos dogmas e às instituições
religiosas. A teologia encontra na autoridade da tradição um limiar intransponível na crítica
das Escrituras e das origens do cristianismo. Para ela, os Evangelhos são inspirados, e por isso
contém verdades ao pé da letra, do começo ao fim.10 Ao contrário da teologia, a pesquisa
histórica submete-se à verdade, mesmo que esse compromisso leve a caminhos não
sintonizados com a tradição cristã. Para tanto, ao historiador importa a experiência, os fatos
comprováveis cientificamente por indução, estando fora de seu escopo o sobrenatural, o
milagre, a inspiração divina.11 É o caso da ressurreição de Cristo como descrita nos
Evangelhos, frente a qual Renan conclui: “A vida de Jesus, para o historiador, acaba com seu
último suspiro”.12
As posições de Renan foram recebidas com indignação pela Igreja católica. Com a
publicação de sua Vie de Jésus, foi suspenso da cadeira que ocupava no Collège de France,
retornando suas atividades naquela instituição somente com o advento da Terceira República.
Em seus cursos estará um dos principais nomes envolvidos com o que ficará conhecido duas

9
Edição brasileira, p. 17. “L'histoire est essentiellement désintéressée. L'historien n'a qu'un souci, l'art et la
vérité [...]. Le théologien a un intérêt, c'est son dogme. [...] Les études critiques relatives aux origines du
christianisme ne diront leur dernier mot que quand elles seront cultivées dans un esprit purement laïque et
profane, selon la méthode des hellénistes, des arabisants, des sanscritistes, gens étrangers à toute théologie, qui
ne songent ni à édifier ni à scandaliser, ni à défendre les dogmes ni à les renverser”. Edição francesa, p. IX-X.
10
A crítica aqui é endereçada aos teólogos ortodoxos, católicos ou protestantes. Já os teólogos protestantes da
escola liberal, segundo Renan, têm noção tão ampla do dogma que o racionalismo não lhes é excludente. Edição
brasileira, p. 13.
11
Mais do que interditar o milagre como objeto da ciência histórica, Renan nega sua existência: “Les miracles
sont de ces choses qui n'arrivent jamais; les gens crédules seuls croient en voir; on n'en peut citer un seul qui se
soit passé devant des témoins capables de le constater ; aucune intervention particulière de la Divinité ni dans
la confection d'un livre, ni dans quelque événement que ce soit, n'a été prouvée. Par cela seul qu'on admet le
surnaturel, on est en dehors de la science, on admet une explication qui n'a rien de scientifique, une explication
dont se passent l'astronome, le physicien, le chimiste, le géologue, le physiologiste, dont l'historien doit aussi se
passer. Nous repoussons le surnaturel par la même raison qui nous fait repousser l'existence des centaures et
des hippogriffes : cette raison, c'est qu'on n'en a jamais vu”. Edição francesa, p. VI.
“Os milagres são dessas coisas que nunca acontecem; somente as pessoas crédulas acreditam vê-los; não se pode
citar um único que se tenha passado diante de testemunhas capazes de constatá-los; nenhuma intervenção
particular da divindade na confecção de um livro ou em qualquer acontecimento que seja foi provada. Por isso,
se se admite o sobrenatural, está-se fora da ciência, admite-se uma explicação que não tem nada de científica,
uma explicação que dispensa o astrônomo, o físico, o químico, o geólogo, o fisiologista, e o historiador deve
também ser dispensado. Rejeitamos o sobrenatural pela mesma razão que rejeitamos a existência de centauros e
hipogrifos: é que nunca os vimos”. Edição brasileira, p. 14.
12
Edição brasileira, p. 375. “La vie de Jésus, pour l'historien, finit avec son dernier soupir”. Edição francesa, p.
449.
106

décadas depois como “modernismo”. É no seminário de Renan, entre 1882 e 1885, que o
carmelita Alfred Loisy foi iniciado na crítica textual do antigo testamento. 13
Loisy considerava Renan inimigo da Igreja14. Quando acompanhava seus cursos,
desejava vencê-lo com suas próprias armas15 e um dia lhe provar que a verdade científica era
compatível com uma compreensão sadia do catolicismo.16 Esse propósito harmonizava os
interesses científicos modernos e a tradição católica, numa síntese onde o ensinamento
católico pudesse ser atualizado.17
Loisy estava convencido da necessária insubordinação da objetividade científica frente
à religião, então aprendeu o método crítico da história como praticado no universo intelectual
laico e dotou o conhecimento histórico de autoridade enquanto intérprete do passado cristão,
estabelecendo a moderna crítica histórica como passo necessário para reforma da teologia
católica.18
A crítica histórica demonstra inconsistências nas Escrituras e variações na Igreja ao
longo do tempo. Isso de algum modo afeta a autoridade da Igreja, dado que o cristianismo em
que ela se amparava estava constituída sob algumas bases atemporais, avessas à mudança.
Somente reconhecendo a vocação histórica do cristianismo, seu caráter temporal e mutável
desde suas origens evangélicas, a história científica deixaria de ser uma ameaça à teologia.
Essa é a vocação cristã que Loisy reivindicou.
As mudanças não são prova da corrupção de uma mensagem original e primitiva,
completa em si mesma e perdida nas sombras da história da Igreja.19 Tampouco há um
conjunto de mudanças ilegítimas, passíveis de serem destacadas da religião essencial e
imutável, insensível ao movimento dos séculos. 20 Não é possível estabelecer uma essência do
cristianismo fora da história, como vemos Loisy defender em L’évangile et l’église, publicado
em 1902.
13
LOISY, Alfred. Mémoires pour servir à l’histoire religieuse de notre temps. t. 1: 1857-1900. Paris: Émile
Nourry, 1930. p. 117.
14
Id. Choses passées. Paris: Émile Nourry, 1913. p. 65.
15
Ibid., p. 66.
16
LOISY, op. cit., 1930, p.118.
17
HILL, Harvey. The politics of modernism: Alfred Loisy and the scientific study of religion. Washington, D.C.:
The Catholic University of America Press, 2002. p. 25.
18
Ibid., p. 37.
19
Quanto às modificações a que a Igreja romana submeteu o evangelho, Adolf Harnack diz: “It is a case, not of
distortion, but of total perversion”. Em sua resposta a Harnack, Loisy ironiza: “Combien d'autres lui reprochent
de ne pas changer assez!”. HARNACK, Adolf. (1900) What is Christianity? Translated by Thomas B. Saunders.
2nd. ed. New York/London: G.P. Putnam’s Sons/Williams and Norgate, 1902. p. 281; LOISY, Alfred.
L’évangile et l’église. Paris: Alphonse Picard et Fils, 1902. p. 89.
20
Nesse quesito, Loisy radicaliza a teoria do desenvolvimento da doutrina como vista em John Newman, pois a
mudança não é uma questão teológica a ser tratada à sombra do que ela testemunharia acerca da continuidade.
Ao contrário de Newman, Loisy reconduz a mudança ao seu próprio estatuto. Cf. NEWMAN, John H. (1845) An
essay on the development of christian doctrine. London: Basil Montagu Pickering, 1878.
107

O Cristianismo, no momento de sua constituição, baseou-se na caridade, na esperança


do reino vindouro, na força de expansão do apostolado, em sua promessa de sucesso no
sacrifício, na soberania de Deus e fé na divina missão de Jesus.21 Essa era a verdadeira
essência da religião cristã, mas tudo precisava germinar, florescer, dar seus frutos:
[O historiador] não pensará que essa essência tenha sido realizada
absolutamente e definitivamente em ponto qualquer dos séculos passados;
ele crerá que foi realizado mais ou menos perfeitamente desde o início, e que
continuará a ser realizado assim, cada vez mais, enquanto viver o
cristianismo.22
O que vincula Cristo à Igreja, o momento histórico do surgimento da mensagem cristã
às vicissitudes dos dogmas católicos, o passado e o presente, “não é o que nunca mudou, pois,
em certo sentido, tudo mudou e nunca deixou de mudar”.23 Nesse sentido, a essência do
cristianismo não contempla instituições, uma organização social dada ou qualquer coisa
parecida. É na história que a mensagem evangélica devém dogma. Jesus não anunciou a
constituição de uma Igreja “como um governo estabelecido na Terra e destinado a se
perpetuar por uma longa série de séculos”.24 Nesse espírito, o carmelita prossegue: “Jesus
anunciou o reino, e foi a Igreja que veio”.25
Em Loisy, a defesa do caráter histórico do cristianismo e da independência da ciência
histórica em relação à teologia é imbuída de ímpeto reformador; ela mira o futuro. A fé
precisará libertar-se de regulações externas que atribuem valor absoluto às reflexões,
mantendo como postulados necessários somente a existência de Deus, o fim moral do
universo e cristo entre esses dois.26 O catolicismo teórico deve adaptar-se aos fatos da
história, e o catolicismo prático à realidade da vida contemporânea. Somente sendo suscetível
às exigências de mudança que o mundo moderno lhe endereça, a Igreja se reafirmaria como
grande fonte moral da civilização e do progresso humano.27

21
LOISY, Alfred. L’évangile et l’église. Paris: Alphonse Picard et Fils, 1902. p. XXVIII.
22
“[L’historien] ne pensera pas que cette essence ait été réalisée absolument et définitivement à un point
quelconque des siècles passés; il croira qu'elle se réalise plus ou moins parfaitement depuis le commencement,
et qu'elle continuera de se réaliser ainsi, de plus en plus, tant que vivra le christianisme”. Ibid., p. XXIX.
23
“[...] n'est pas ce qui n'a jamais changé, car, en un sens, tout a changé et n'a jamais cessé de changer”. Ibid.,
p. 67-68.
24
“[...] comme celle d'un gouvernement établi sur la terre et destiné à s'y perpétuer pendant une longue série de
siècles”. Ibid., p. 111.
25
“Jésus annonçait le royaume, et c'est l’Église qui est venue”. Ibid., p. 111.
26
Id. Mémoires pour servir à l’histoire religieuse de notre temps. t. 1: 1857-1900. Paris: Émile Nourry, 1930. p.
214.
27
Texto de 1902, citado em Id. Choses passées. Paris: Émile Nourry, 1913. p. 242.
108

A “força da tradição”, para usar a expressão de Arno J. Mayer, mostra-se com


intensidade destacada quando consideramos a reação conservadora da Igreja à modernidade. 28
Desde o século XIX, a Igreja vinha contrapondo uma resposta antimoderna generalizada aos
questionamentos de sua autoridade. Os documentos do pontificado de Pio IX (1846-1878), do
concílio Vaticano I (1869-1970) e do papado de Leão XIII (1878-1903) recusaram
frontalmente todos os “vícios” causados pela liberdade usufruída contra a Igreja.29 A
afirmação da infalibilidade papal e a condenação intransigente da modernidade não deixou
nada de fora: liberalismo, socialismo, anarquismo, ateísmo, naturalismo, racionalismo,
cientificismo, etc. A postura da Igreja não seria diferente em relação ao uso da moderna
ciência histórica por parte religiosos no início do século XX.30
Os fundamentos intelectuais dessa recusa foram lançados pela encíclica Aeternis
Patris em 1879 por Leão XIII, cujo objetivo era restaurar a filosofia cristã de São Tomás de
Aquino. Com isso, a Igreja buscava submeter a razão à revelação cristã, reafirmando as bases
do que pode ser considerada uma leitura “anti-histórica” do passado. Ademais, Leão XIII
denunciou a crítica bíblica contemporânea.31 Dessa maneira, seu pontificado submeteu o
estudo do passado à teologia e manteve a posição resoluta da sé romana contra toda sorte de
questionamento que rivalizasse com a tradição católica.
A resposta sob o pontificado de Pio X (1903-1914) não foi menos intransigente que as
anteriores. A Igreja reagiu duramente à perspectiva histórica defendida por Loisy. Após ser
suspenso e ter seus livros colocados no Index, foi excomungado em 1908. As sanções
impostas a Loisy ecoam a contenda que invadiu o ambiente católico do início do século
passado, litígio entre intelectuais católicos partidários da adaptação da doutrina da Igreja às

28
MAYER, Arno J. A Força da Tradição: a persistência do Antigo Regime (1848-1914). Tradução de Denise
Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. Para a tensão entre o revisionismo e o dogmatismo na Igreja
católica, ver as páginas 239-246.
29
Refiro-me aos seguintes documentos: encíclica Quarta Cura (1864), encíclica Syllabus (1864), constituição
dogmática Dei Filius (1870), constituição dogmática Pastor Aeternus (1870), encíclica Aeternis Patris (1879),
encíclica Libertas (1888) e enciclica Rerum novarum (1891). Eles são consultáveis em:
http://www.montfort.org.br/bra/documentos/; http://www.vatican.va/content/leo-xiii/pt.html.
30
Vale notar que o enfoque na história e nos usos do método histórico já vinham recebendo acolhidas moderadas
em centros católicos ainda no XIX. Alguns professores da Escola Romana praticaram uma versão atenuada da
abordagem histórica, embora lá prevalecesse o acento na autoridade papal, na política ultramontana e no
tomismo. Dessas, a Escola Teológica de Tübingen era a que mais se mostrava aberta à noção moderna de
história. Para essas relações entre história e teologia no século XIX, ver: BUARQUE, Virgínia. A concepção de
história na teologia católica dos oitocentos. Estudos de Religião, v. 24, n. 39, p. 61-79, jul./dez. 2010. Disponível
em: https://cutt.ly/xb6XYFt. Acesso em: 25 jun. 2019.
31
MAYER, op. cit., p. 242.
109

novas exigências do mundo moderno e a hierarquia eclesiástica contrária a essa pretensão,


censurada por Pio X sob o rótulo “modernismo” na encíclica Pascendi de 1907.32
A resposta papal reservou posição de destaque à história e ao método crítico no
conjunto dos “desatinos”, “delírios” e “promíscuas significações” das “doutrinas ocas, fúteis,
incertas” do modernismo. A primeira parte da Pascendi dedica um de seus tópicos aos
procedimentos do “modernista historiador e crítico”, evidenciando a penetração da moderna
ciência histórica no interior dos quadros católicos no contexto da reação antimoderna.
O texto papal ironiza o “rasgo de finíssima astúcia” de historiadores modernistas que
buscam desvincular sua atividade de preceitos filosóficos para, assim, apresentar-se de todo
objetivos, quando na verdade “a sua história ou crítica não fala senão filosofia e as suas
deduções procedem por bom raciocínio dos seus princípios filosóficos”. Esses princípios são
o agnosticismo, a transfiguração das coisas pela fé e a desfiguração.
O trabalho do historiador implicaria um princípio agnóstico, para o qual a ciência é
restrita à esfera dos fenômenos e qualquer forma de intervenção divina é relegada ao universo
da fé. Em razão disso, ao tratar algo onde influem tanto o elemento humano quanto o divino,
como é o caso de Cristo, uma separação deve ser operada, confinando apenas o primeiro à
competência historiadora: “É este o motivo da distinção que soem fazer os modernistas entre
um Cristo da história e um Cristo da fé, e uma Igreja da história e uma Igreja da fé, entre
Sacramentos da história e Sacramentos da fé, e assim por diante”.
Já a transfiguração do fenômeno presume uma “espécie de elevação das suas próprias
condições, que o torna mais apto, qual matéria, para receber o divino”. 33 O elemento humano
“deve ser tido como elevado pela fé, por transfiguração, acima das condições históricas”.
Cabe ao historiador subtrair tudo que foi acrescido, “tudo o que excede as condições de
homem, seja natural, como a psicologia no-la apresenta, seja conforme as condições do lugar
e tempo em que viveu”, e restituir todos esses acréscimos à história da fé: “a pessoa histórica
de Jesus Cristo foi transfigurado [sic] pela fé; logo, convém despojá-la de tudo o que a eleva
acima das condições históricas”.
O princípio da transfiguração é seguido pelo terceiro cânone do historiador, o da
desfiguração. Ele prevê que a fé, “subtraído ao fenômeno os seus adjuntos de tempo e de
lugar, facilmente lhe atribui aquilo que em realidade não tem”. Em virtude desse princípio

32
PIO X. Pascendi Dominici Gregis: Sobre as doutrinas modernistas. 1907. Disponível em:
https://cutt.ly/QcqeZlA. Acesso em: 08 de jul. 2018. Todas as referências à encíclica Pascendi feitas em seguida
remetem a essa mesma nota, pois a versão online utilizada não apresenta paginação ou qualquer indicação
numérica que permita precisar a localização do trecho referido.
33
A esse respeito, ver na encíclica o tópico “O modernista filósofo”.
110

filosófico, o historiador criva também aquilo que permaneceu enraizado no domínio da


história e prescinde de tudo que não puder ser enquadrado na lógica dos fatos. Ele divide os
documentos em duas partes, passando para o lado da história tudo que tem existência real e da
fé o que não tem existência real: “Assim, querem que Cristo não tenha dito aquelas coisas que
parecem não estar ao alcance do vulgo”.
Para a encíclica de Pio X, o domínio da filosofia na história vai além dos três cânones
apresentados e dos quais o historiador deduz suas conclusões. Ele ainda atua filosoficamente
ao recorrer ao princípio de emanação vital: não havendo qualquer recurso explicativo à
transcendência, todo acontecimento é posterior a uma causa ou condição histórica necessária,
assim como a narração é posterior a um fato correlato. Cabe então catalogar as necessidades
que vão se apresentando à Igreja, a respeito do dogma, do culto ou o que quer que seja,
separando-as por épocas.
Há de considerar ainda a distinção entre o começo de um fato e seu desenrolar,
dividindo as repetições segundo as origens e o desenvolvimento de um fato, dispondo-os em
ordem cronológica:
Feito isto, reaparece o filósofo e obriga o historiador a conformar os seus
estudos com os preceitos e as leis da evolução. E o historiador,
conformando-se, torna a esquadrinhar os documentos; a procurar com
cuidado as circunstâncias em que se achou a Igreja, no correr dos tempos, as
necessidades internas e externas que a impeliram ao progresso, os obstáculos
que se levantaram, numa palavra, tudo o que puder servir para determinar o
modo pelo qual se realizaram as leis da evolução.
Por fim, escreve a narração e o trabalho está completo.
Exposto dessa forma, o método histórico empenhado pelos modernistas estaria
inteiramente assentado no apriorismo acusado de heresia pelo documento oficial da Igreja, e
não seria outra coisa senão uma filosofia fundada na negação de Deus. Como consequência, a
desagregação e disseminação dos documentos no tempo impediria a aceitação da autoria
tradicionalmente atribuída a eles; o Pentateuco e os evangélicos não passariam de acréscimos
e interpolações teológicas ou alegóricas em torno de uma breve narração primitiva; e a
evolução dos textos sagrados não corresponderia a nada além da evolução da história da fé.
Por isso, quem faz uso dessa crítica “agnóstica, imanentista, evolucionista”, pratica
os erros que se contém nela e se põe em oposição com a doutrina católica.
Por esta razão é muito de admirar que tal gênero de crítica possa hoje ter tão
grande aceitação entre católicos. [...] Entretanto, se melhor considerassem
as coisas, ficariam, ao contrário, horrorizados. Desta prepotente imposição
dos extraviados, deste incauto assentimento dos pusilânimes produz-se uma
111

certa corrupção de atmosfera, que penetra em toda a parte e difunde o


contágio.34
Tal exame da problemática histórica excede a avaliação realizada pelos predecessores
de Pio X sobre os desafios modernos lançados à tradição cristã. A contribuição da encíclica
Pascendi para o debate em questão está amparada no destaque dispensado à descrição do
método histórico-crítico e ao esforço em deduzir princípios filosóficos do trabalho historiador,
resposta institucional à emergência de uma história autônoma aos princípios tomistas entre
religiosos católicos.
A partir dos anos 1880, a França viu florescer a institucionalização da história das
religiões, em meio ao clima de tensão entre os adeptos da abordagem laica, produzida no
âmbito das recém-criadas cadeiras universitárias sobre o tema, e os praticantes da história
religiosa, circunscrita aos institutos católicos.35 Todavia, internamente ao corpo eclesiástico
católico, autores religiosos logo passaram a absorver em seus escritos os princípios da crítica
histórica não submetidos aos axiomas das categorias tomistas, como as reflexões de Alfred
Loisy, abordadas anteriormente, exemplificam. A reflexão de cunho meta-histórico e
apologético contida na encíclica assinada por Pio XI pode ser lida como uma resposta incisiva
em prol da perspectiva confessional da história.
A despeito dessa inovação em termos de crítica da crítica histórica, em se tratando da
proposta alternativa à “filosofia herética” do método histórico, não fez mais que referendar o
tomismo de seu antecessor, Leão XIII. É o que pode ser visto na terceira e última parte da
encíclica, onde estabelece o antídoto para a “torrente de gravíssimos erros” do modernismo.
Recorrendo à Aeterni Patris de 1879, determina que a filosofia escolástica seja adotada
irrestritamente como base dos estudos sacros, principalmente a filosofia de São Tomás de
Aquino. Nenhuma forma de estudo pode dar-se em prejuízo dos estudos sacros, e este, por sua
vez, deve tirar sua luz da verdadeira história, “[...] salvando o respeito devido à Tradição, aos
Santos Padres, ao magistério eclesiástico”. Qualquer necessidade de renovação deve ser
limitada pelas determinações dadas por Leão XIII, cujas orientações devem ser mantidas em

34
Grifo nosso. No que diz respeito a essa última afirmação da encíclica, embora o modernismo tenha encontrado
espaço na Alemanha, Inglaterra, Itália e França, é esse último país o seu solo mais fértil. Além de Alfred Loisy,
seu personagem epônimo, outros nomes de destaque são o precursor Louis Duschesne, os filósofos Marcel
Hébert e Édouard Le Roy, o teólogo Eudoxe Irénée Mignot, o editor e livreiro Émile Nourry e publicações como
a Revue d'histoire et de littérature religieuses, os Annales de philosophie chrétienne, a Revue du clergé français
e Justice sociale. POULAT, Emile. (1962) Histoire, dogme et critique dans la crise moderniste. 3e éd. Paris:
Albin Michel, 1992. p. 19.
35
LANNOY, Annelies. Le Jubilé Loisy de 1927: entre histoire des religions et histoire du christianisme. Revue
de l’histoire des religions, t. 229, v. 4, p. 503-526, 2012, p. 504. Disponível em: http://rhr.revues.org/7981.
Acesso: 25 jun. 2019.
112

pleno vigor.36 Em outras palavras, a onda antimodernista ratificou a submissão da história à


teologia.
Apesar disso, o pontificado de Pio X deu um passo decisivo ao solidificar mecanismos
para ofensiva contra o modernismo.37 A terceira parte da encíclica Pascendi determina a
expulsão de todos modernistas ocupantes de cargos eclesiásticos e postos de ensino, proíbe a
venda e a leitura de seus livros, interdita a participação em congressos dessa natureza e manda
expandir a censura já existente em algumas dioceses a todas as outras.
As diretivas papais são levadas a cabo pelo aparato repressivo que a Igreja passa a
dispor. À congregação do Index, ativa já há algumas décadas, cabia a listagem das
publicações proibidas, consideradas perigosas e alheias à verdadeira fé cristã, incumbência
repassada ao Santo-Ofício com a dissolução da Congregação em 1917. Em 1910 é
estabelecido o juramento antimodernista, imposto a todos os religiosos. No mesmo ano são
instaurados os conselhos de vigilância, passando a funcionar em diversas dioceses, como é o
caso de Paris. Em preparação desde 1904, 1917 é o ano da promulgação do Código de Direito
Canônico da Igreja latina, cujo cânone 1397 ressoa o contexto antimodernista ao denunciar
doutrinas tidas como nocivas à interpretação da fé cristã.
Em grande medida, essa máquina de controle doutrinal e intelectual é fruto do
pontificado de Pio X (1903-1914), período auge da resposta antimodernista. Ela desacelerou

36
Pio XI, na encíclica Studiorum ducem de 1923, reafirma a necessária proficiência na filosofia tomista para a
expressão correta da fé católica. Na constituição apostólica Deus scientiarum dominus de 1931, impõe no
mínimo dois anos de filosofia escolástica a todo clérigo em formação. Pio XII, na Humani generis de 1950,
prescreve o respeito ao método e à doutrina de Tomás de Aquino. Em grande medida, essa restauração tomista,
iniciada com a Aeterni patris de 1879, buscou viabilizar-se institucionalmente por meio da normatização da
formação religiosa nos institutos de ensino, universidades e seminários católicos e por uma bibliografia
composta por manuais tradicionais onde prevalecem o pensamento escolástico e o caráter especulativo de um
método avesso à contingência. E embora não seja tarefa fácil medir em que medida as pressões romanas foram
absorvidas localmente, é possível verificar o exclusivismo tomista sendo professado nos anos 1920 por um
filósofo francês como Jacques Maritain, quem não considerava a filosofia do Aquinate como fortaleza intelectual
com as portas trancadas para o que está além dos muros eclesiásticos, mas como filosofia universal e perdurável
que permite intervir nos debates do tempo. Ao tratar questões contemporâneas à luz do tomismo, buscava
mostrar a fecundidade do pensamento do “Doutor Angélico”. Sobre os pontos tratados nesta nota, ver
FOUILLOUX, Étienne. (1998) Une Église en quête de liberté: la pensée catholique française entre modernisme
et Vatican II (1914-1962). Paris: Desclée de Brouwer, 2006. p. 39-65.
37
Segundo Ivan A. Manoel, o catolicismo ultramontano passou por três momentos. Um primeiro de
consolidação da doutrina conservadora – pontificado de Pio VII (1800-1823) a Pio IX (1846-1878); um segundo
de avanço em direção a uma política de intervenção na realidade concreta e de menos restrições à ideia de
democracia, embora ainda permanecesse essencialmente antimoderno – pontificado de Leão XIII (1878-1903); e
o terceiro momento da “conversão da doutrina em política, do discurso em práxis”. Essa terceira fase
corresponde ao pontificado de Pio X (1903-1914) e vai até Pio XII (1939-1958) às vésperas do concílio Vaticano
II e da mudança de orientação que significou para o catolicismo. O autor acrescenta que entre Pio X e Pio XII,
“uma fase em que muito do Ultramontanismo clássico sobrevivia na doutrina e na prática da Igreja”, o
catolicismo viveu uma transição em que “outras práticas – a atuação do laicato e seu engajamento junto à
população e seus problemas, por exemplo – acabaram por forçar mudanças doutrinárias e teológicas”.
MANOEL, Ivan A. O Pêndulo da História: tempo e eternidade no pensamento católico (1800-1960). Maringá:
UEM, 2004. p. 12.
113

seu funcionamento durante a primeira grande guerra, quando o pontificado era ocupado por
Bento XV (1914-1922), sendo retomada após o fim do conflito mundial, principalmente na
primeira metade dos anos 1920 com a eleição de Pio XI (1922-1939).38
A partir da segunda metade dos anos 1920, as energias de Roma foram concentradas
sobre a condenação da Ação Francesa,39 aparentemente favorecendo um ambiente menos
hostil aos sobreviventes da reação antimodernista, pois compartilhavam com Roma a
denúncia da aliança maurrasiana entre tomismo e integralismo.
Contudo, sanções continuaram sendo desferidas ao longo dos anos 1930 e 1940.
Loisy, por exemplo, foi novamente alvo de reprovações nos anos 1930. Após publicar
Mémoires pour servir à l’histoire religieuse de notre temps e dar outra perspectiva sobre seus
problemas com as autoridades católicas, teve o título incluído no Index em 1932, junto com
suas outras obras até então não listadas, processo concluído dois anos antes de sua morte em
1940.
À medida que os últimos protagonistas dos grandes conflitos intelectuais da crise
modernista de inícios do século iam saindo de cena, menos frequentes iam tornando-se as
reações antimodernas. Não obstante, o modernismo era solicitado de tempos em tempos pelos
guardiões da ortodoxia quando dada renovação suscitava alguma ameaça.40
As renovações intelectuais ocorridas na segunda metade do século XIX e seu
enraizamento na intelectualidade católica no alvorecer do século XX não são referências
suficientes que justifiquem pensar o modernismo como corrente organizada, como fizeram os
documentos eclesiais e intelectuais católicos avessos à renovação. Ao contrário, o
“modernismo” congrega autores e doutrinas de diferentes naturezas, por vezes divergentes.
Esse termo acabou por reduzir diferentes experiências intelectuais à semelhança, igualando
autores com concepções de história tão distintas quanto às de Alfred Loisy e Maurice Blondel.

38
Cf. FOUILLOUX, Étienne. (1998) Une Église en quête de liberté: la pensée catholique française entre
modernisme et Vatican II (1914-1962). Paris: Desclée de Brouwer, 2006. p. 16-32.
39
Movimento político nacionalista surgido em 1899, ano da fundação da revista Action Française no contexto
do caso Dreyfus. Charles Maurras foi um de seus principais líderes e idealizadores. Os valores defendidos por
Maurras eram contrarrevolucionários (avessos à revolução francesa) e antidemocráticos (defendia a desigualdade
natural entre os homens e opunha-se ao “mito” da igualdade dos liberais e socialistas). Nacionalista, pregava a
reação à decadência francesa via monarquia tradicional, hereditária e antiparlamentar. Embora agnóstico e hostil
à moral cristã, prezava a organização hierárquica da Igreja católica, segundo ele indispensável à ordem social,
acabando por fazer do catolicismo um instrumento a serviço da política. Suas ideias tiveram acolhida por parte
de muitos católicos, atraídos por sua defesa dos direitos da Igreja em contraposição à França laica, o que acabou
por postergar a reprovação da Ação Francesa por parte do papado. A condenação do movimento maurrasiano
ocorre somente em 1926 sob os auspícios de Pio XI. Cf. MOURA, Maria L. B. A condenação da Action
Française por Pio XI: repercussões em Portugal. Revista de História das Ideias, v. 29, p. 545-582, 2008.
Especialmente as páginas 545 a 550.
40
Cf. FOUILLOUX, op. cit. 1º e 2º capítulos.
114

Embora Blondel não tenha chegado a sofrer censura por parte da Igreja,41 o filósofo e
professor da Universidade de Aix-en-Provence teve suas teses recebidas com desconfiança em
diversos círculos intelectuais católicos, sendo não poucas vezes reprovadas publicamente e
associadas ao modernismo.
De fato, em sua obra de juventude, especialmente Action (1893) e Lettre sur
l’apologétique (1896), compartilhou com o “espírito modernista” uma concepção filosófica
distinta da escolástica e esteve próximo do pensamento moderno. 42 Contudo, Blondel se
esforçou para superar as consequências racionalistas de sua filosofia e desfazer mal
entendidos que conduziram seu nome ao cerne da crise modernista.43
Como bem nota César Izquierdo, não é no domínio filosófico onde Blondel se
distancia mais nitidamente dos autores modernistas. É sua concepção de história que marca
claramente essa distância.44
Em Histoire et dogme (1904),45 Blondel trata das duas orientações predominantes no
catolicismo francês, duas “mentalidades católicas” consideradas por ele como completamente
incompatíveis. Uma prioriza o dogma e a autoridade das fórmulas doutrinais, outra a história
e o método crítico. Uma vê a história como dependente do dogma, a outra crê na
subordinação absoluta do dogma à história. Como então relacioná-las, pensá-las de maneira
não excludentes? Ou como Blondel coloca o problema:
Toda a questão é justamente buscar qual é a autoridade própria de cada um,
de qual fonte em particular o dogma extrai o que tem de original e soberano;
como, em uma palavra, a história e o dogma podem controlar-se e vivificar-
se incessantemente. 46
Na primeira orientação, nomeada extrinsecismo, os fatos não são considerados em si
mesmos, em sua condição própria, em sua relação com a cadeia histórica em que participam.
Aos fatos cristãos cabe apenas servir de signo a algo que lhes é extrínseco, provar o caráter
divino de algo anterior a eles, testemunhar a veracidade das crenças cristãs que lhes dão

41
FOUILLOUX, Étienne. (1998) Une Église en quête de liberté: la pensée catholique française entre
modernisme et Vatican II (1914-1962). Paris: Desclée de Brouwer, 2006. p. 30.
42
IZQUIERDO, César. Estudio Introductorio: la intervención de Blondel em la crisis modernista. In:
BLONDEL, Maurice. Historia e Dogma: sobre el valor histórico del dogma. Traducción de César Izquierdo y
Silvia Kot. Madrid: Ediciones Cristiandad, 2004. p. 13.
43
Sobre a recepção do pensamento de Maurice Blondel no contexto da crise modernista e a reelaboração
posterior de sua obra, Cf. ANTONELLI, Mario. Maurice Blondel. Tradução de Silva Debetto C. Reis. São
Paulo: Loyola, 2006. p. 39-60.
44
IZQUIERDO, op. cit., p. 13.
45
Utilizaremos a versão disponível na reedição dos primeiros escritos de Blondel, publicada em 1956:
BLONDEL, Maurice. (1904) Histoire et dogme: les lacunes philosophiques de l’exégèse moderne. In: Les
premiers écrits de Maurice Blondel. Paris: Presses Universitaires de France, 1956. p. 149-228.
46
“[...] toute la question est justement de chercher quelle est l’autorité propre de chacun, de quelle source en
particulier de dogme tire ce qu’il a d’original et de souverain; comment, en un mot, l’histoire et le dogme
peuvent se contrôler et se vivifier encore et toujours”. Ibid., p. 153.
115

sentido. Isto é, a história é submetida ao dogma e a seus princípios universais. Sua função é
reafirmar a autoridade bíblica em sua verdade eterna, recurso apologético contra ameaças às
certezas da fé católica.47 Nas palavras de Blondel,
os fatos, sem idade, sem cor local, por uma espécie de docetismo 48 perpétuo,
desvanecem em uma luz privada de sombra, encolhendo-se sob o peso do
absoluto pelo qual são oprimidos. A ‘história histórica’ não tinha, a
princípio, entrado em cena.49
Desse modo, mais importa constatar o caráter sobrenatural prévio à atuação divina nos
fatos que avaliar a relação intrínseca com os instrumentos humanos nos quais Deus atua. 50
Blondel adverte ser preciso desconfiar dessa maneira rudimentar de inferir dogmas dos fatos,
de formas abstratas e escolares de raciocínio quando se trata de justificar exigências religiosas
absolutas que afetam o homem em sua totalidade.51 Em seu absolutismo intransigente, pureza
abstrata e inflexível avessa à experimentação, a maneira extrincesista de relacionar história e
dogma não dispõe de regra hermenêutica que ponha limites a si mesma. Seu controle vem de
fora. O historicismo é seu antípoda.52
Já o historicismo53 segue a direção oposta do extrinsecismo. Seus adeptos se ocupam
dos fatos mesmos, bastando-lhes a história. Buscam fazer ciência livre de necessidades a
priori, não submetendo os fatos à fórmula abstrata do dogma. Ao contrário, dos fatos o dogma
extrai sua força, a experiência acumulada da humanidade fornece toda evidência necessária da
atuação divina no mundo. Se algo testemunha a existência do sobrenatural, é na história onde
irá encontrá-la, fonte de todos os recursos necessários ao apologista.54

47
BLONDEL, Maurice. (1904) Histoire et dogme: les lacunes philosophiques de l’exégèse moderne. In: Les
premiers écrits de Maurice Blondel. Paris: Presses Universitaires de France, 1956. p. 155-161.
48
Doutrina do segundo século considerada herética pela Igreja, o docetismo negava a existência do corpo
humano de Cristo.
49
“[...] les faits, sans âge, sans couleur locale, par une sorte de docétisme perpétuel, s'évanouissent dans une
lumière privée d’ombre, s'effacent sous le poids de l'absolu dont ils sont accablés. “L'histoire historique” n'était
pas, au début, entrée dans la place [...]”. BLONDEL, Maurice. (1904) Histoire et dogme: les lacunes
philosophiques de l’exégèse moderne. In: Les premiers écrits de Maurice Blondel. Paris: Presses Universitaires
de France, 1956. p. 159.
50
Ibid., p. 158.
51
Ibid., p. 157.
52
Ibid., p. 159.
53
O conceito de “historicismo” é polissêmico e difícil de precisar. Ele costuma ser frequentemente usado em
referência à escola histórica alemã (Ranke, Droysen, etc.) e à filosofia crítica da história (Dilthey, Rickert, etc.).
No contexto deste capítulo, recorro ao termo no sentido que ele recebeu nos debates intelectuais católicos do
início do século, como aparecia em Blondel. Ele designava a valorização do método histórico e do caráter
histórico do cristianismo, em oposição a visão teológica escolástica a-histórica que predominava no magistério
da Igreja e em centros acadêmicos católicos como o Colégio de Santo Tomás em Roma, defensor intransigente
do tomismo. Para conceito de historicismo, ver: FALCON, Francisco José Calazans. Historicismo: antigas e
novas questões. História Revista, v. 7, n. 1/2, p. 23-54, 2002. Disponível em: https://cutt.ly/Xb6XeHN. Acesso
em: 25 jun. 2019; REIS, José Carlos. Wilhelm Dilthey e a autonomia das ciências histórico-sociais. Londrina:
Eduel, 2003. p. 8-19.
54
BLONDEL, op. cit., p. 161-163.
116

Segundo Blondel, por certo o dogma não pode prescindir de suas condições históricas
prévias e, nesse aspecto, a história como ciência procede de forma consistente. Mas os fatos
tomados separadamente, isolados entre si, apesar de objetos legítimos do conhecimento
histórico, não esgotam a realidade. Atravessando-os, influenciando-os, há fatores
psicológicos, morais, metafísicos, etc.55
Frente a historiadores para os quais a ciência histórica não estava em contradição com
a defensa do catolicismo – Loisy é um exemplo –, Blondel se pergunta:
uma vez que os historiadores pretenderam fazer, simultaneamente e
indivisivelmente, ciência livre e apologia histórica, o que é então que sua
apologia acrescenta à sua história para avaliar o sentido obscuro dos fatos e
para extrair dos acontecimentos visíveis a fé no invisível sobrenatural? 56
Para dar conta da relação entre os acontecimentos, o historicismo necessita reconhecer
os limites de seu próprio território, à risco de converter-se em ontologia ao tomar os próprios
fatos históricos como realidade profunda. Desse modo, o historiador renuncia permanecer
exclusivamente em seu terreno e abre-se para outros horizontes. Posto que a síntese histórica
seja tributária de outros campos do saber, então a autonomia da ciência histórica é sempre
relativa.57
Como extrinsecismo e historicismo são soluções insuficientes, o filósofo propõe
encontrar um ponto intermediário entre história e dogma, entrelaçar as duas esferas sem
comprometer nem a independência relativa nem o vínculo entre ambas. O lugar fecundo desse
entrelaçamento, Blondel chama Tradição.
O termo faz referência a tudo acontecido ou dito no passado cristão, cujo sentido o
presente busca alcançar. Assim, não se reduz a sucessão de ensinos escritos a verdades
sagradas reveladas em sua totalidade, pois algo sempre está a ser acrescentado. A Tradição
vai expandindo continuamente os conteúdos herdados, incluído elementos em suas fórmulas e
escritos, poder ao mesmo tempo conservador e conquistador, instrutivo e iniciador. No
passado o seu essencial o essencial é buscado, mas só no futuro ele é conquistado, pois cada
nova descoberta é um reencontro, passagem do implicitamente vivido ao explicitamente
conhecido. Portanto, em nenhum ponto da tradição, nem mesmo no Evangelho, pode-se

55
BLONDEL, Maurice. (1904) Histoire et dogme: les lacunes philosophiques de l’exégèse moderne. In: Les
premiers écrits de Maurice Blondel. Paris: Presses Universitaires de France, 1956. p. 168.
56
“[...] puisque des historiens ont prétendu faire simultanément et indivisiblement de la science libre et de
l'apologie historique, qu’est-ce donc que leur apologie ajoute à leur histoire pour majorer le sens obscur des
faits et pour extraire des événements visibles la foi à l’invisible surnaturel?”. Ibid., p. 163.
57
Ibid., p. 168-172.
117

amparar plenamente o dogma. Para Blondel, embora essa ideia não condiga com a
compreensão corrente da Igreja, ela predominou em sua prática ao longo da história.58
Nessa concepção de Tradição, a história deixa de ter caráter extrínseco. Não cabe
atestar verdades já explícitas nos fatos cristãos e em suas mudanças ao longo do tempo, como
ocorre no extrinsecismo característico da concepção tomista. No tomismo como defendido
pela hierarquia eclesial, a mudança só tinha valor positivo enquanto antídoto para corrupção
moderna que ameaçava os dogmas, quando significava retorno ao passado cristão em sua
literalidade. Não é o caso de Blondel. Ele tampouco creditava à história e às mudanças
qualquer exclusividade ou autonomia plena, à maneira historicista de um Loisy.
Em Blondel, o lugar da história é legítimo porque a Tradição se produz lenta e
progressivamente, se adapta as diversas formas de cultura intelectual para dar à sua própria
doutrina a precisão necessária em dado momento, sem deixar isso suplantar sua fonte de
sabedoria. Nesse sentido, tudo de fundamental que compete à Igreja possui certa
incompletude, suas verdades comunicadas de forma oral e escrita, costumes, práticas antigas e
fatos cristãos ampliando-se constantemente. Ou seja, a Tradição não é poder limitador, mas
força de desenvolvimento e expansão; é conduzida por uma força vital que é um “comentário
incessantemente renovado e controlado” que conserva “os sentidos antigos, mas sempre para
extrair deles sua intenção espiritual”. Não é preciso temer a contradição entre o dogma e a
história, entre seus fatos, textos, fórmulas tradicionais e seu desenvolvimento no tempo, “pois
as grandes renovações intelectuais deixam intactos o espírito que a inspira”.59
Ciente da força de sua Tradição, pode abrir mão de alguns elementos que antes eram
necessários para a proteção ou crescimento de sua obra, mas são hoje prescindíveis. Isso não
quer dizer desmontar todo o sistema em que está ancorado, mas desfazer-se de alguns de seus
interstícios para desvelar suas proporções mais profundas. 60 Disso resulta uma consciência
mais completa dos fundamentos que compõem a tradição da Igreja, ao mesmo passo que
maior liberdade, encontrando em si mesma o apoio para sua autoridade soberana.61
Nem tomismo, nem historicismo, a filosofia blondeliana também dá um passo além do
desenvolvimento da doutrina como havia sido pensado por John Henry Newman no século
XIX.62 Ambos veem as mudanças na história do cristianismo como expansão do

58
BLONDEL, Maurice. (1904) Histoire et dogme: les lacunes philosophiques de l’exégèse moderne. In: Les
premiers écrits de Maurice Blondel. Paris: Presses Universitaires de France, 1956. p. 200-206.
59
Ibid., p. 219.
60
Ibid., p. 220.
61
Ibid., p. 221.
62
Cf. NEWMAN, John H. (1845) An essay on the development of christian doctrine. London: Basil Montagu
Pickering, 1878.
118

entendimento humano acerca da tradição cristã. Contudo, Newman favorece as diferenças que
incrementam a compreensão de dogmas anteriores, em detrimento das que ameaçam à
continuidade doutrinal. Não obstante Blondel ainda mantenha um fundamento dogmático na
condução dos movimentos da história, em seus termos a Tradição é menos restritiva à
existência de contradição entre passado e presente. Essa compreensão blondeliana de história
voltará à cena algumas décadas depois e encontrará recepção entre os jesuítas franceses no
contexto da “nova teologia” de Fourvière.
A residência jesuíta nas colinas lyonenses de Fourvière foi o lugar de formação dos
membros da Companhia de Jesus na França entre 1858 e 1974, com exceção dos períodos de
expulsões pontuais durante a terceira república. Após ter seu funcionamento interrompido em
1901, Lyon-Fourvière foi reinstalada em 1926, tornando-se um dos principais centros de
renovação da teologia católica.63 Em linhas gerais, a renovação encabeçada pelos jesuítas
franceses de Fourvière estava amparada no retorno às fontes essenciais do cristianismo e na
abertura ao mundo moderno.
Não faltaram ataques ao empreendimento. Autores, escritos e iniciativas editoriais
foram reprovados sob o rótulo “nova teologia”.64 Dominicanos, apoiados sob a égide do
tomismo, manifestaram sua aversão aos perigos representados por nomes como Jean
Daniélou, cujo artigo Les orientations presentes de la pensée religieuse (1946) foi recebido
como espécie de manifesto da nova teologia. Na mira também estavam volumes da coleção
Théologie, editada a partir de 1944 e dirigida pelo seminário teológico de Fourvière, 65 e
estudos introdutórios para as traduções de textos patrísticos publicados na coleção Sources
chrétiennes, surgida em 1942 por iniciativa de Daniélou e Henri de Lubac.66

63
Sobre os Jesuítas em Lyon e a teologia de Fourvière, ver a introdução de Bernard Hours e o capítulo de
Dominique Avon em FOUILLOUX, Étienne; HOURS, Bernard. Les jésuites à Lyon: XVIe-XXe siècle. Lyon: ENS
Éditions, 2005.
64
Rosino Gibellini descreve duas fases da controvérsia da nouvelle théologie: “a primeira, 1938-1946, é
provocada [...] pela publicação dos livros dos teólogos dominicanos Chenu (1937) e Charlier (1938), submetidos
à crítica sobretudo pelos teólogos romanos, dominicanos (como Gagnebet e Cordovani) e jesuítas (como Boyer e
Zapelana); a segunda, 1946-1948, em que se fala mais expressamente de ‘nouvelle théologie’, desenrola-se
sobretudo entre os teólogos dominicanos (como Labourdette e Garrigou-Langrage), na qualidade de críticos, e
teólogos jesuítas, que dirigiam a Escola de Lyon-Fourvière, como Danièlou, De Lubac, Bouillard, Fessard e Von
Balthasar”. GIBELLINI, Rosino. A teologia do século XX. Tradução de João Paixão Netto. São Paulo: Loyola,
2007. p. 169.
65
Volumes assinados por autores como Henri Bouillard, Henri de Lubac e Gaston Fessard, associados à
renovação teológica de Fourvière.
66
Outros alvos geralmente referidos são o filósofo Maurice Blondel e o paleontólogo jesuíta Pierre Teilhard de
Chardin. GIBELLINI, op. cit., p. 171.
119

Uma das críticas mais severas à nova teologia foi identificá-la aos princípios do
modernismo combatido pela Igreja desde o início do século, como pode ser observado na
admoestação do dominicano Garrigou-Lagrange.67
Já na arena jesuíta, o escrutínio buscava não deixar a criança ser jogada fora junto da
água do banho. Jean Daniélou não descarta o problema levantado pelo modernismo, mas
contesta seus resultados. O jesuíta acreditava ser necessário proteger a Igreja dos abusos de
exegese crítica, do agnosticismo e do esvaziamento teológico em que o modernismo acabou
incorrendo, excessos que mais atrapalharam que contribuíram para a renovação do
pensamento religioso. Ainda assim, o problema levantado pelo modernismo era imperativo. A
separação entre a teologia e a vida precisava ser encarada pela Igreja, e a reação neotomista ao
modernismo não ofereceu resposta à questão. Ao contrário, criou um clima de suspeita que
barrou uma autêntica renovação teológica.68
No cerne dessa querela entre dominicanos e jesuítas achava-se uma questão teológica
de natureza epistemológica.69 Se os dominicanos creditavam ao tomismo o verdadeiro
estatuto científico do pensamento cristão, os jesuítas não podiam tomar a filosofia escolástica
como o acabamento final do cristianismo. E nessa controvérsia epistemológica, a história
figura como peça-chave, pois os tomistas tendiam a atribuir à historicidade defendida pelos
jesuítas um dos condutores que levavam à relativização dos dogmas cristãos.
Garrigou-Lagrange, por exemplo, associa esse relativismo à filosofia da ação de
Blondel.70 Embora essa crítica seja mais associada ao subjetivismo creditado à sua filosofia da
ação, ela poderia ser, em última instância, aplicada à maneira blondeliana de compreender a
história. Primeiro, pois sua filosofia está implicada em sua concepção de história. 71 Segundo,
porque sua interpretação histórica, mesmo preservando o dogma e a continuidade da tradição,
mostra-se mais aberta a contrastes que possam requerer da Igreja abrir mão de algo antes tido
como essencial. Ainda assim, em se tratando de História e dogma, não é o modernismo o
elemento redentor escolhido pelo filósofo, como muitos de seus críticos fizeram crer com
relação a seus escritos filosóficos anteriores. Portanto, dificilmente a proximidade com

67
La nouvelle théologie où va-t-elle? de Garrigou-Lagrange foi publicada no volume 23 (1946) da revista
Angelicum. Utilizamos a versão presente na coleção Études Antimodernistes. Disponível em:
https://cutt.ly/Gx62E17. Acesso em: 20 jul. 2018.
68
DANIÉLOU, Jean. Les orientations présentes de la pensée religieuse. Études, t. 249, p. 6-21, avril-juin 1946,
p. 6.
69
GIBELLINI, op. cit., p. 172.
70
GARRIGOU-LAGRANGE, op. cit.
71
O próprio Blondel afirma que sua ideia de Tradição é obtida por intermédio de uma filosofia da ação.
BLONDEL, Maurice. (1904) Histoire et dogme: les lacunes philosophiques de l’exégèse moderne. In: Les
premiers écrits de Maurice Blondel. Paris: Presses Universitaires de France, 1956. p. 226.
120

Blondel esgotaria a teologia dos jesuítas nos limites do modernismo e do relativismo que lhe
cabe.
De qualquer modo, no conflito epistemológico entre dominicanos e jesuítas, estes
últimos atribuíram peso inconteste à história, visto defenderem uma teologia viva
necessariamente ancorada na experiência do tempo. A crítica de Daniélou é exemplar nesse
aspecto: embora a história fosse estranha ao tomismo, já embasava os grandes sistemas
patrísticos e seria uma das referências capitais à renovação do pensamento teológico. 72 A
mesma orientação estava presente em Henri Bouillard, para quem a teologia está ligada à
história e a seus riscos, perdendo sua validade ao não se atualizar.73
A renovação teológica defendida pelos jesuítas e a tensão crescente entre eles e os
dominicanos foi respondida por Roma. Em 1950, o papa Pio XII promulgou a encíclica
Humani generis, sobre as “opiniões falsas que ameaçam a doutrina católica”.74 A encíclica
condenou o evolucionismo, o materialismo dialético, o existencialismo e o historicismo, velho
conhecido das crises intelectuais cristãs na arena moderna. Diante tais “opiniões” e suas
consequências para a fé cristã, contra os “amigos de novidades” e os “acatólicos” que
consideram o magistério da Igreja empecilho à renovação da teologia, Pio XII reafirmou a
supremacia da filosofia escolástica, segundo os princípios de Tomás de Aquino.
Desse modo, na posição adotada por Roma, prevaleceu a perspectiva teológica
defendida pelos dominicanos. Seria preciso esperar mais uma década para a balança pender
para outro lado. Somente com o concílio Vaticano II as forças em conflito se reordenarão.
Segundo Hans von Balthasar,75 a encíclica Humani generis fragilizou o Seminário de Lyon.
Henri de Lubac, professor de teologia da faculdade católica de Lyon e do Seminário de
Fourvière, foi escolhido como principal bode expiatório nas reprovações endereçadas à “nova
teologia” – embora negasse a existência de uma nova escola teológica em Fourvière liderada
por ele.76 Exonerado de sua posição no ensino e deslocado constantemente de lugar, teve seus
escritos suprimidos das bibliotecas da Companhia e retirados do mercado. O curso dos
acontecimentos começa a soprar noutra direção somente com a nomeação de Lubac como
consultor da comissão teológica do concílio Vaticano II. A modernidade havia assediado a

72
DANIÉLOU, Jean. Les orientations présentes de la pensée religieuse. Études, t. 249, p. 6-21, avril-juin 1946.
73
BOUIILARD, Henri. Conversion et grâce chez S. Thomas d’Aquin: étude historique. Paris: Aubier, 1944. Cf.
especialmente a conclusão.
74
PIO XII. Humani generis: sobre as opiniões falsas que ameaçam a doutrina católica. 1950. Disponível em:
https://cutt.ly/2cqeMPg. Acesso em: 25 jul. 2018.
75
BALTHASAR apud GIBELLINI, Rosino. A teologia do século XX. Tradução de João Paixão Netto. São
Paulo: Loyola, 2007. p. 182-183.
76
FOUILLOUX, Étienne. (1998) Une Église en quête de liberté: la pensée catholique française entre
modernisme et Vatican II (1914-1962). Paris: Desclée de Brouwer, 2006. p. 173.
121

Igreja desde o século XIX, mas somente nos anos 60 do século seguinte foi possível assistir
Roma acenando de volta.

2.2 Teologia lubaciana escritura certeauniana

São essas as três principais orientações da relação entre teologia e história no contexto
da crise modernista da primeira metade do século XX: o historicismo, o tomismo e a “terceira
via” representada por Blondel e pela “nova teologia” de Fourvière. Essa última, sob o modo
como aparece representada no pensamento de Henri de Lubac, é a condição histórica da
teologia espiritual e da teologia da história nos textos do “primeiro” Certeau. É no interior de
uma linguagem teológica comum onde serão produzidos os rastros da escritura de uma
diferença.
O espírito de renovação teológica de Lyon nos anos 1940 chamou a atenção de um
jovem religioso às voltas com sua formação. No Seminário Saint-Sulpice em Issy-les-
Moulineaux, Certeau tomou conhecimento dos avanços teológicos em Fourvière, destino
escolhido para sua formação teológica, lá estudando entre 1947 e 1950.77
Certeau tornou-se muito próximo de Henri de Lubac em seus anos lyonenses. A
correspondência entre ambos dá a medida da filiação espiritual que ligava o jovem estudante
ao mestre: “Meu Reverendo Padre, este ano que começa me faz, a cada dia de silêncio neste
noviciado, um pouco mais seu filho”.78 Mais tarde esse reconhecimento foi reafirmado: “Você
está na origem da minha vocação”.79 E em alusão à sua ordenação em 1956, declarava sua
afeição por Lubac por meio das seguintes palavras: “Eu sentia mais que nunca, naquele dia,
tudo o que lhe devia e quão desprovido estava para expressar-lhe minha gratidão”.80
Essa filiação segue no plano intelectual. A correspondência entre eles mostra que
Certeau era leitor assíduo das obras de Lubac. O discípulo também lhe enviava seus textos,
solicitava conselhos e às vezes os recebia espontaneamente.81 Uma carta é particularmente
significativa ao indicar o interesse de vincular seu trabalho ao do seu antigo professor: “É com
77
Cf. DOSSE, François. (2002) Michel de Certeau: le marcheur blessé. Paris: La Découverte, 2007. p. 38-46.
78
“Mon Révérend Père, cette année qui s'ouvre me fait, à chaque jour de silence dans ce noviciat, un peu plus
votre fils”. CERTEAU, Michel de. Carta a Henri de Lubac, texto manuscrito, 14 de janeiro de 1951, caixa 34,
Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves. A correspondência está disponível no Fundo Henri de Lubac.
79
“Vous êtes à l'origine de ma vocation [...]”. Id. Carta a Henri de Lubac, texto manuscrito, 20 de setembro de
1954, caixa 34, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.
80
“Je sentais mieux que jamais, ce jour-là, tout ce que je vous devais et combien j’étais dépourvu pour vous en
dire ma reconnaissance”. Id. Carta a Henri de Lubac, texto datilografado, 22 de outubro de 1956, caixa 34,
Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.
81
Como bem o mostrou François Trémolières em: Michel de Certeau, Henri de Lubac: une correspondance.
Recherches des Science Religieuse, t. 106, n. 4, p. 591-609, 2018, p. 598-605.
122

você que eu gostaria de trabalhar a teologia espiritual”,82 escreve Certeau a Lubac em 29 de


outubro de 1957.
Certeau acabara há pouco sua formação junto aos jesuítas. O ano era 1956. Naquele
momento de transição entre a vida de estudante seminarista e a atuação nos quadros
intelectuais da Companhia, um artigo sobre a experiência religiosa apresenta aquela mesma
intenção que a carta a Lubac mencionará um ano depois: a teologia espiritual. O artigo do
jovem jesuíta explicita em tom programático:
Inevitável, necessária, essa relação entre teologia e psicologia não se
apresenta sob a forma de um “também”, – como se o teólogo devesse fazer
“também” psicologia ou o psicólogo fazer “também” teologia. Existe entre
eles uma unidade que constitui o objeto da “teologia espiritual” e que diz
respeito à natureza da experiência religiosa. É isso que essas notas gostariam
de esclarecer brevemente sobre alguns aspectos fundamentais da
experiência. 83
Certeau localiza a experiência religiosa na fronteira entre a realidade histórica e a
realidade teologal. Tal proposta compartilha do “espírito” da nova teologia, cujos principais
nomes desbravaram teologicamente o caminho da dinâmica imanência/transcendência aberto
pela filosofia blondeliana, com destaque para a contribuição lubaciana. O tratamento da
questão está presente na abordagem de Lubac sobre o tradicional problema da natureza
humana.
A teologia moderna pós-concílio de Trento (1545-1563) desenvolveu uma acentuada
distinção entre as ordens natural e sobrenatural que se tornou predominante na ortodoxia
católica até meados do século XX. Desde o século XVI ganhou espaço uma teoria da natureza
pura. Segundo ela, a natureza humana tem finalidade proporcional a si própria, isto é, destina-
se a um fim natural. Não comporta em sua própria condição qualquer desígnio sobrenatural.
Somente por pura gratuidade de Deus o homem é elevado desse estado de natureza a um fim
sobrenatural.
O trabalho de Lubac buscou mostrar que a doutrina da natureza pura se baseou numa
interpretação dos textos de Tomás de Aquino que não condizem com o contexto mais amplo

82
“C’est avec vous que j’aimerais travailler la théologie spirituelle”. CERTEAU, Michel de. Carta a Henri de
Lubac, texto datilografado, 29 de outubro de 1957, caixa 34, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.
83
“Inévitable, nécessaire, ce rapport de la théologie et de la de la psychologie ne se présente pas sous la forme
d’un ''aussi'',– comme si le théologien devait faire ''aussi'' de la psychologie ou le psychologue faire ''aussi'' de
la théologie. Il y a entre elles une unité qui constitue l'objet de la ''théologie spirituelle'' et qui tient à la nature
de l'expérience religieuse. C'est ce que voudraient rapidement préciser ces notes sur quelques aspects
fondamentaux de l’expérience”. CERTEAU, Michel de. L’expérience religieuse: “connaissance vécue” dans
l’Église. Pax. Bulletin du Séminaire Universitaire, v. 19, n. 99, p. 1-19, mai 1956, p. 2. Exemplar consultado na
Biblioteca Nacional da França. A edição do boletim é mimeografada, constando alguns erros de datilografia.
Acompanhei Luce Giard na correção de “le psychologie faire ‘aussi’” por “le psychologue faire ‘aussi’”. Cf. Id.
L’expérience religieuse: “connaissance vécue” dans l’Église. In : GIARD, Luce (Dir.). Le voyage mystique:
Michel de Certeau. Paris: RSR/Cerf, 1988. p. 28.
123

de seu pensamento e, por vezes, é contrária a suas ideias. Ela acaba produzindo uma distorção
em ideias da patrística, da primeira escolástica e do magistério da revelação como ensinado
pela Igreja. Historicamente, a fórmula da natureza pura é mais uma resposta teológico-
filosófica às transformações modernas que um desenvolvimento doutrinal do que já fazia
parte da tradição, cujo conjunto não comportava a dualidade sobrenatural/natural e a posição
extrínseca do primeiro em relação ao segundo.
Lubac de uma só vez concede validade histórica à doutrina da natureza pura e afirma
sua incompatibilidade com o magistério oficial da Igreja. É o que se vê quando ele caracteriza
essa ideia recorrente na teologia moderna como “sistemática, sem dúvida legítima e talvez
útil, mas recente, à qual os dogmas tradicionais não são necessariamente ligados”.84 Essa
interpretação histórica permite ao próprio tempo histórico de quem interpreta diferir disso que
até então vinha ganhando ares de ortodoxia, sem questionar teologicamente a autoridade do
magistério oficial da Igreja. Além do mais, a mudança representada por sua perspectiva em
relação à distinção entre natural e sobrenatural buscará sua justificação na própria tradição,
como pode ser visto na longa abordagem da história do termo “sobrenatural”.85
Se a mudança histórica põe em evidência uma contradição entre tempos distintos e sua
intepretação questiona algo que vinha sendo naturalizado na teologia, o que ela interroga é a
modificação não considerada um desenvolvimento concordante com os dogmas da Igreja,
embora uma resposta historicamente válida.
Nesse ponto, não obstante Lubac esteja próximo de Blondel, quem abriu espaço para
pensar as contradições históricas dos dogmas cristãos sem questionar sua verdade, é com a
teoria do desenvolvimento da doutrina proposta por Newman que há o maior enlace, pois este
buscou discernir as mudanças legítimas e ilegítimas, distinguindo as características sadias do
desenvolvimento das suas formas de corrupção.86 Ainda que Lubac não qualifique dessa
forma pejorativa a doutrina da natureza pura, a imagem que ele pinta dela não é a de um
autêntico desenvolvimento doutrinal, pois este não pode estar em contradição com o ensino da
Igreja.87
A ideia de “retorno às fontes” cara aos projetos editoriais de Fourvière aqui
provavelmente ganha sua expressão teológica particularmente lubaciana. Nutrido por essa
84
“[...] systématique, légitime sans doute et peut-être utile, mais récente, à laquelle [...] les dogmes traditionnels
[…] ne sont pas nécessairement liés“. LUBAC, Henri de. (1946) Surnaturel: études historiques. Édition préparée
et préfacée par Michel Sales, s.j. Paris: Lethielleux, 2010. p. 103.
85
Ibid., p. 325-428.
86
Como pode ser visto no capítulo V de NEWMAN, John H. (1845) An essay on the development of christian
doctrine. London: Basil Montagu Pickering, 1878. p. 169-206.
87
Seu entendimento do desenvolvimento do dogma, já implicada no Surnaturel, foi tratado em LUBAC, Henri
de. Le problème du développement du dogme. Recherches de science religieuse, t. 35, n. 1, p. 130-160, 1948.
124

outra maneira de pensar que já encontra no ensino anterior à época moderna, Lubac busca
superar teologicamente o que Blondel havia intentado transpor filosoficamente, isto é, o
extrinsecismo na relação entre transcendência e imanência. O vínculo entre natural e
sobrenatural existe porque a natureza criada por Deus é, antes de tudo, natureza espiritual, e
pelo ato da criação, a criatura espiritual está aberta ao dom de Deus. O homem, lugar da
expressão desse dom, carrega um desejo essencial, uma tendência natural à visão beatífica:
Esse desejo não me vem de alguma particularidade, talvez modificável, do
meu ser individual, ou de alguma contingência histórica com efeitos mais ou
menos transitórios. Está em mim devido ao meu pertencimento por natureza
à humanidade atual. Pois a minha finalidade, da qual esse desejo é a
expressão, vem da minha natureza. E eu não tenho outro fim real, isto é,
realmente atribuído à minha natureza, do que “ver Deus”. 88
Esse vínculo entre sobrenatural e natural é expresso no desejo enquanto paradoxo. 89 O
paradoxo do desejo é união e diferença do espírito e da carne, marca deixada por Deus na vida
humana em sua concretude histórica. Os homens tendem para Deus, são feitos à sua imagem,
ao mesmo tempo em que dele diferem. Está aberto ao universal, mas fechado em suas
circunstâncias particulares, livre para ir além de si mesmo, mas restrito nos limites da sua
humanidade, aberto ao acolhimento do dom de Deus e incapaz de realizá-lo por conta própria.
O espírito é sensível a uma verdade sem possuí-la completamente. Uma vez que revelada de
forma ainda insuficiente, algo que é recebido é também algo que escapa, dado gratuito e
imprevisível que preserva a liberdade e diferença de Deus, o homem se depara com o mistério
que o ultrapassa.
É justamente no horizonte dessa intercessão entre o sobrenatural e natural que Michel
de Certeau se situará nos anos 1950. Seu artigo “inaugural” de 1956 não cita as obras de
Lubac sobre o sobrenatural, mas o recém-ordenado jesuíta estava às voltas com elas à época.
Em missiva de 05 de maio de 1956, Certeau relatava a Lubac: “Terminado Le mystère du
surnaturel, não posso deixar de dizer-lhe imediatamente o quanto fui esclarecido e instruído. E
eu não tinha entendido, no Surnaturel e no artigo da RSR 1949, todo o alcance de sua tese”. 90

88
“[...] ce désir ne me vient pas de quelque particularité, peut-être modifiable, de mon être individuel, ou de
quelque contingence historique aux effets plus ou moins transitoires. Il est en moi du fait de mon appartenance
de nature à l'humanité actuelle. Car ma finalité, dont ce désir est l'expression, me vient de ma nature. Et je n'ai
pas d'autre fin réelle, c'est-à-dire réellement assignée à ma nature, que de « voir Dieu »”. LUBAC, Henri de. Le
mystère du surnaturel. Recherches de science religieuse, t. 36, n. 1, p. 80-121, 1949, p. 92.
89
LUBAC, Henri de. (1946) Surnaturel: études historiques. Édition préparée et préfacée par Michel Sales, s.j.
Paris: Lethielleux, 2010. p. 483. Sobre a questão do paradoxo, recorremos também a GOMES, Victor. O
paradoxo do desejo de Deus no pensamento de Henri de Lubac. Didaskalia, v. 32, n. 1, p. 99-138, 2002.
Disponível em: https://cutt.ly/Bx69wmN. Acesso em: 25 jul. 2019.
90
“En terminant à l’instant « le Mystère du Surnaturel », je ne puis m’empêcher de vous dire tout de suite
combien j’en ai été éclairé et nourri. [...] Et je n’avais pas compris dans Surnaturel et dans l’article de RSR
1949 toute la portée de votre thèse”. CERTEAU, Michel de. Carta a Henri de Lubac, texto manuscrito, 15 de
125

Dias antes, Certeau estava redigindo o artigo L’expérience religieuse: “connaissance vécue”
dans l’Église.91 A seguinte afirmação salta aos olhos:
Não seria possível, sem “heresia”, separar o espírito do Cristo de sua “carne”
que é a nossa, nem isolar nossa união com Deus disso que experimentamos.
Cristo é Deus somente em sua carne; da mesma forma, o cristão é divinizado
apenas em sua vida humana total: impossível separá-los!92
Nessas linhas, fica evidente a proximidade com Lubac. O recurso a esse modo de
relacionar sobrenatural e natural – que podemos chamar lubaciano, embora esteja também
presente diversamente em outros teólogos da época – está no cerne da alternativa proposta por
Certeau às formas clássicas de abordar a experiência religiosa. No jovem jesuíta, a tensão
entre as duas esferas não desenha a experiência humana como alienada na fé, estrangeira
perambulando em êxtase num território sagrado e inacessível, “tesouro íntimo e indizível,
estranho a quem o busca”,93 mas que é constatado e tomado por um “dado”, o que limitaria a
riqueza desse tesouro, conforme pensa Certeau. De sua parte, ele procura delimitar os
componentes humanos da experiência e ao mesmo tempo salvaguardar a transcendência e
liberdade própria do Espírito. À maneira de Lubac, recorre ao paradoxo para expressar essa
união entre sobrenatural e natural que é fundamento da experiência espiritual.
É o caso do binômio possessão/despossessão, paradoxo associado ao aspecto temporal
da experiência espiritual. Ao invés de intuição pontual num momento isolado, ela é duração,
deslocamento de um estado a outro, distinto daquele anterior. Nenhum desses momentos é
plenitude do sentido. Eles são habitados por uma presença ainda não toda reconhecida, ainda
ausente para quem a experimenta. Ora, se cada momento remete a outro, se testemunha “tanto

maio de 1956, caixa 34, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves. Como bem notado por François Trémolières
sobre essa carta, a referência a Le mystère du surnaturel não se trata do artigo na Recherches de Sciences
Religieuses em 1949 – Certeau o indica no texto, deixando claro que se trata de outro material – nem do livro
homônimo que aparece mais tarde em 1965. Trata-se de um livro inédito, em construção, que algumas
correspondências mencionam, mas que Trémolières não localizou na bibliografia nem nos arquivos de Henri de
Lubac. Uma pequena correção a ser feita: a carta é datada de 15 de maio de 1956, e não de 05 de maio de 1956,
como Trémolières informou em seu artigo. TRÉMOLIÈRES, François. Michel de Certeau, Henri de Lubac: une
correspondance. Recherches des Science Religieuse, t. 106, n. 4, p. 591-609, 2018, p. 600.
91
“Entre ce que je suis aujourd’hui, le 27 avril 1956, et ce que dit [...]”. CERTEAU, Michel de. L’expérience
religieuse: “connaissance vécue” dans l’Église. Pax. Bulletin du Séminaire Universitaire, v. 19, n. 99, p. 1-19,
mai 1956, p. 5.
92
“On ne saurait sans ''hérésie'' séparer l'esprit du Christ de sa ''chair'' qui est la nôtre, ni détacher notre union
à Dieu de ce que nous expérimentons. Le Christ n'est Dieu que dans sa chair; de même le chrétien n'est divinisé
que dans sa vie humaine totale: impossible d'en faire abstraction!”. Ibid., p. 1.
93
“[…] trésor intime et indicible, étranger à ce qui la cherche […]”. Ibid., p. 2.
126

o que ainda não é quanto o que é”,94 então a consciência está sempre numa posição de atraso
em relação a Deus e a “possessão da Verdade será também uma despossessão”. 95
É na duração dada entre esse par “ainda não” (pas encore) e “já mais” (déjà plus) que
Certeau situa a referência ao Gênesis (29:16) “eu não sabia que Deus estava lá”. O mesmo
vale para os peregrinos de Emaús, quando estes se deram conta de um passado que não é
mais, reconhecendo Jesus apenas quando este já não estava entre eles – como narrado no livro
de Lucas (24:31-32). A mesma tensão temporal informa as Confissões de santo Agostinho.
Escritas muito depois dos acontecimentos a que faz menção, a interpretação ali desenhada não
seria tendenciosa? Outro caminho seria ler as confissões nessa duração estendida entre
momentos diferentes:
O problema histórico das confissões comporta um aspecto teológico: é só
depois que santo Agostinho pode ler sua própria história e nela discernir o
sentido religioso autêntico.96
Segundo sua interpretação teológica do problema histórico das Confissões, é apenas
num segundo momento que as vivências de Agostinho podiam ser lidas espiritualmente. Em
outras palavras, aprofundando a questão segundo a ótica certeauniana, pode-se dizer que só
então a presença tornar-se-ia presente para Agostinho.
Em outro lugar, o jesuíta diz que a memória põe “o que ainda não é em auxílio do que
não é mais, encontrando uma história que não nos pertence mais e onde as intervenções
divinas passaram despercebidas”.97 A memória é o meio humano da presença disso que
passou e só em atraso pôde ser significado, da presença disso que nunca pode ser apreendido
completamente. Nesse sentido, a experiência espiritual é sempre dispersada, despossuída do
que busca, ultrapassada por seu objeto, frustrada por uma nova superação a ser percorrida.
É o que ocorre na experiência da oração. A oração que clama pela presença do Verbo
não obtém resposta. Embora no acúmulo das experiências passadas apareçam signos
autênticos da presença,98 as escrituras, as ações litúrgicas, a realidade da Igreja, tudo isso que
lhe é dado como resposta, “circunscrevem, com ruídos humanos, sua morada inacessível, sem

94
“[…] il est aussi bien ce qu’il n’est pas encore que ce qu’il est”. CERTEAU, Michel de. L’expérience
religieuse: “connaissance vécue” dans l’Église. Pax. Bulletin du Séminaire Universitaire, v. 19, n. 99, p. 1-19,
mai 1956, p. 4.
95
“[…] possession de la Vérité sera aussi bien une dépossession”. Ibid., p. 4.
96
“[...] le problème historique des confessions […] comporte un aspect théologique: ce n'est qu'après coup que
saint Augustin peut lire sa prope histoire et en discerner le sens religieux authentique”. Ibid., p. 18, nota 3. Grifo
do autor.
97
“ce qui n’est pas encore à l’aide de ce qui n’est plus, retrouvant […] une histoire qui ne nous appartient déjà
plus et où les interventions divines sont restées inaperçues”. Id. Aspects de la Prière. Christus, t. 4, n. 13, p. 132-
141, janv. 1957, p. 134.
98
Como Certeau afirma em outro texto. Cf. Les pèlerins d’Emmaüs (méditation). Christus, t. 4, n. 13, p. 56-63,
janv. 1957, p. 61.
127

nela jamais entrar”.99 Deus não é identificável às suas representações, permanece ausente,
sempre além (au-delà).
O vocabulário para expressar a questão é recolhido junto a seu mestre, Henri de
Lubac: “Ó, Tu, o além de tudo, – não é tudo que se pode cantar de Ti?”.100 Certeau colhe tais
palavras, intituladas Hino a Deus, em Sur les chemins de Dieu,101 jardim no qual reconhece
ensinamentos espirituais distintos. Em outubro de 1956, o jovem jesuíta o relia “pela quinta
ou sexta vez”, ocasião em que manifestava seu apreço espiritual e intelectual pelo padre: “É
um daqueles livros onde melhor aprendi a conhecer Deus, e o agradeço mais uma vez”.102
Tal é o “nada” da verdade humana diante de Deus: verdade dispersa no tempo,
inconsistente, não havendo nada sob sua posse, sejam palavras, ações ou objetos, que possa
apreender a presença. A essa altura, a filosofia heideggeriana adentra o cenário textual
certeauniano. Entrada tímida, diga-se de passagem, apenas em forma de menção:
Analisando essa situação com a ajuda da filosofia heideggeriana – espécie de
mística da negatividade nutrida pela mística renana e, em particular, por
Tauler –, o padre Lotz também observa quanto o “nada” do homem é
aparição de Deus que vem nisso que não ele não é. 103
Qual é então a razão em explicitar o que é apenas uma menção que não ocupa maior
relevância no texto? Ainda que a motivação da referência feita por Certeau possa ter sido
assinalar um ponto que considerava relevante no interior da contribuição que Lotz dava ao
tema em pauta, a aposta aqui é que essa referência guarda certa feição “imotivada”, oriunda
do caráter escriturário que embala a linguagem em geral e particularmente o processo de
feitura textual. O signo “Heidegger” permite ler uma diferença na semelhança partilhada com
a teologia de Lubac.
É constitutivo da escritura produzir fissuras de diferentes graus em dado conjunto de
relação de signos, seja ele oral ou escrito. A fabricação escriturária violenta a solidez que os

99
“[…] circonscrivent avec de bruits humains sa demeure inaccessible, sans y entrer jamais”. ”. CERTEAU,
Michel de. Aspects de la Prière. Christus, t. 4, n. 13, p. 132-141, janv. 1957, p. 133.
100
“O Toi l’au-delà de tout, — n'est-ce pas là tout ce qu'on peut chanter de Toi? ”. Ibid., p. 133.
101
LUBAC, Henri de. Sur les chemins de Dieu. Paris: Aubier, 1956. p. 235. Certeau também recorre a outros
nomes associados à “nova teologia” de Fourvière. Ele remete ao tratamento dado por Urs von Balthasar ao
“nom-moi” na oração e se vale de Jean Daniélou para referir-se a Gregório de Nissa acerca da consciência da
vaidade universal como origem de todo progresso da vida espiritual. Além dos jesuítas associados à “nova
teologia”, outros nomes ganham destaque, dentre eles Johanes B. Lotz e o rabino André Neher. CERTEAU, op.
cit., p. 133-134.
102
“c’est un de ces livres [...] où j’ai le mieux appris à connaître Dieu, et je vous en remercie encore”. Id. Carta
a Henri de Lubac, texto datilografado, 22 de outubro de 1956, caixa 34, Arquivo da Companhia de Jesus,
Vanves.
103
“[...] analysant cette situation à l’aide de la philosophie heideggérienne – cette sorte de mystique de la
négativité nourrie elle-même par la mystique rhénane et en particulier par Tauler –, le père Lotz note aussi
combien le « néant » de l’homme est l’apparition du Dieu qui vient en ce qui n’est pas lui”. CERTEAU, Aspects
de la Prière...op. cit., p. 135.
128

signos mantêm entre si e com seu exterior, introduzindo brechas nos pertencimentos
constituintes de determinada inscrição textual. No que diz respeito à composição histórica dos
textos, a escritura promove a abertura à suplementação, a acréscimos impressos sobre seus
enraizamentos. Nesses termos, a escritura é a condição da textualização dos diferentes níveis
contextuais inerentes à sua produção.
Essa maneira como compreendo a escritura já implica a différance derridiana.104 Nota-
se o neografismo em tal inscrição, uma vez que Derrida grafa com a o que originalmente é
escrito com e em francês (différence). Essa intervenção gráfica introduz uma marca muda,
inaudita quando falada (différance e différence são pronunciadas identicamente), reconhecida
apenas ao ser lida. O par semelhança fônica e dessemelhança gráfica, antes mesmo de um
efeito produzido como diferente, traduz um tipo de alteridade que não se confunde com a
diferença já constituída: a diferencialidade da diferença, isto é, o próprio ato de diferir, de
produzir diferença.
A différance difere! Difere os índices estáveis (ela está já e sempre nas formas, no
sentido, na presença, na imanência histórica) e difere das diferenças determinadas que ela
própria possibilitou. O que significa dizer que a différance caracteriza o movimento
“temporalizado” pelo qual o totalmente outro aparece como tal no que ele não é. Por ser
totalmente outro, apresentar-se “como tal” já significa borrar qualquer expectativa de doação
ou apreensão do próprio “como tal”.
A alteridade irredutível da différance não pode ser pensada sem o seu rastro, deixado
na rasura que efetua – o a da questão. Filosoficamente falando, o a rasura a linguagem, rastro
onde a diferença aparece enquanto tal (como différance). Se a différance permite um espaço
onde há captura e reserva do que não aparece, o rastro é onde incide a marca dessa relação
com o outro e, por isso, produz-se como ocultação de si. As palavras de Derrida expressam
esse movimento do rastro melhor do que poderíamos: “[...] o rastro não é nunca como tal, em
apresentação de si. Apaga-se apresentando-se, silencia-se ressoando, como o a escrevendo-se,
inscrevendo a sua pirâmide na diferença”.105
Desse modo, arrisco designar a différance como escritura dos rastros, sequência não
linear de inscrições violentas da alteridade no texto, na qual o rastro como rasura torna
parcialmente legível aquilo que apaga. Isto é, tratando-se dos processos de significação

104
Semelhante afirmação reporta particularmente às intervenções de Jacques Derrida em Gramatologia e
Margens da filosofia, sem entrar no debate sobre a tradução do termo “différance”. A esse respeito, ver:
OTTONI, Paulo. A tradução da différance: dupla tradução e double bind. Alfa, v. 44, p. 45-58, 2000. Disponível
em: https://periodicos.fclar.unesp.br/alfa/article/view/4278/3867. Acesso em: 08 mar. 2020.
105
DERRIDA, Jacques. (1972) Margens da filosofia. Tradução Joaquim Torres Costa e Antônio M. Magalhães.
Campinas: Papirus, 1991. p. 57.
129

contidos em uma mesma ordem compreensiva ou na filiação entre diferentes planos de


expressão – entre um texto oral ou escrito e suas condições históricas de produção, por
exemplo – a economia da différance pode ser entendida como economia da suplementaridade
e, portanto, como escritura.
Tomar a escritura dos rastros como inscrição da diferença auxilia a dialogar com a
feição “violenta” no caso da passagem em que Certeau menciona Heidegger. Em certo
sentido, essa referência possui um “motivo” propulsor, sua inclusão mostra-se “necessária” à
medida que é consequência da participação da filosofia heideggeriana na análise do padre
Lotz sobre a relação do homem com Deus, cuja contribuição Certeau apresentava
pontualmente. Por outro lado, uma vez considera mais amplamente, na rede de
compartilhamentos articulados historicamente pelo texto, ela deixa de ser dotada de qualquer
elo causal ou pertencimento que justifique sua necessidade. Ao argui-la à luz de seu
enraizamento no solo da “nova teologia” incorporada no pensamento lubaciano, a referência a
Heiddeger desloca-se, passa a não ter mais qualquer “motivo”, adentrando um não-lugar onde
torna-se desterritorializada, inscreve-se como rastro da diferença.
A deixa para o deslizamento da posição pontual da referência em direção ao nível
econômico do texto é dada pelo próprio Certeau, ainda que esse alerta possa ser observado
apenas quando se tem clareza da conveniência histórica entre reflexão espiritual de Certeau e
a noção lubaciana do paradoxo. O jovem jesuíta prossegue à exposição da contribuição do
padre Lotz expondo a impossível identificação de Deus com coisas, ideias, qualidades ou o
que quer que esteja em seu horizonte. A essa altura, retoma o paradoxo da
possessão/despossessão em toda sua sintonia com os nomes da nova teologia, particularmente
Lubac, já aludidos parágrafos antes no mesmo artigo na Christus:
Entre o “nada” da total despossessão e o “nada” da total possessão, entre
essa parte humana que sempre se aprofunda e esse enriquecimento divino
que sempre supera o que se descobre dele, opera-se então uma misteriosa
junção que é o nascimento da pessoa humana.106
Como é possível verificar, Certeau desenrola a questão heideggeriana do “nada” –
segundo a leitura teológica apresentada por Lotz – a partir do paradoxo espiritual, do mistério.
A esse respeito, mesmo à leitura historicamente orientada à proximidade teológica de Certeau
em relação a Lubac poderia passar despercebida a compatibilidade incompatível impressa

106
“Entre le « rien » de la totale dépossession et le « rien » de la totale possession, entre cette parte humaine qui
s’approfondit toujours et cet enrichissement divin qui surpasse toujours ce qu’on découvre de lui, s’opère alors
une mystérieuse jonction qui est la naissance de la personne humaine”. CERTEAU, Michel de. Aspects de la
Prière. Christus, t. 4, n. 13, p. 132-141, janv. 1957, p. 135. Grifo nosso.
130

nesse espaço comum onde teologicamente está englobada uma linguagem a um só tempo cara
a Heidegger e a Lubac.
Permitamos refluir a uma questão teológica pertinente ao esclarecimento da afirmação.
Certa vez, Bernard Sesboüé alertou que a ligação entre natural e sobrenatural, marcadamente
desenvolvida por Lubac, deveria ser completada pela categoria de existencial sobrenatural do
jesuíta alemão Karl Rahner. Já Lubac não via necessidade desse aporte. E eis o mais relevante
à argumentação do rastro escriturário: Lubac dizia estar em linhas gerais de acordo com
Rahner, “com exceção de uma mistura de vocabulário heideggeriano que não [lhe] parecia
necessário ou mesmo oportuno no estudo da tradição escolástica”.107
A inconsistência entre o “vocabulário heideggeriano” e o “estudo da tradição
escolástica” é ilustrativa à medida que Lubac encontrava na tradição a permissão para as
renovações que a linguagem das experiências presentes careciam. Nesse sentido, o que é
inoportuno ao “estudo da tradição escolástica” mostra-se igualmente impróprio à situação
teológica do presente. A legitimidade do presente é encontrada desenterrando o que,
autorizado pelo magistério da Igreja, torna-se o fundamento de seu próprio pensamento.
Nessa perspectiva, o recurso à tradição escolástica não deixa de ser uma “arqueologia” das
modificações não amparadas na tradição ou mesmo das leituras reducionistas do que ela já
previa. É o caso da distorção na relação entre natural e sobrenatural que a doutrina moderna
da natureza pura produziu e que Lubac questionou em sua abordagem histórica e teológica.
Dada a interdição do mestre jesuíta à entrada do pensamento heideggeriano na teologia
do sobrenatural, a “permissão” certeauniana ao filósofo da Floresta Negra consistiria numa
diferença constituída? Somente em sentido muito estrito que deve ainda ser precisado. Essa
inscrição brota nas cercanias da teologia lubaciana e é justamente por seu pertencimento
histórico a uma rede de referências interpretativas que a vivacidade da escritura abre o texto a
efeitos alheios à ordem relacional e abstrata a partir do qual se constitui.
É cabal notar que não há ainda uma teologia que possa ser designada propriamente
certeauniana. O que é dado a ver é uma teologia espiritual em linhas gerais devedoras dos
caminhos da “nova teologia” de Fourvière e particularizados sob a rubrica Michel de Certeau
– através de temas, referências à tradição e exemplos que compõem a feitura de seus textos.
Todavia, em nível escriturário, essa “comunidade” é assediada por uma alteridade que já está

107
“mis à part un mélange de vocabulaire heideggérien qui ne me paraissait pas nécessaire, ni même opportun
dans l’étude de la tradition scolastique”. LUBAC apud CHANTRAINE, Georges. Surnaturel et destinée
humaine dans la pensée occidentale selon Henri de Lubac. Revue des sciences philosophiques et théologiques, t.
85, n. 2, p. 209-312, 2001, p. 311. Disponível em: https://www.cairn.info/revue-des-sciences-philosophiques-et-
theologiques-2001-2-page-299.htm#re81no81. Acesso em: 05 jul. 2019.
131

lá mesmo antes que uma diferença teológica sui generis fosse constituída formalmente. O
signo “Heidegger” deixa entrever a escritura certeauniana quando sua teologia ainda era
historicamente lubaciana.
O que chamo escritura certeauniana não se confunde com a ilusão da origem, busca de
um fundamento já instituído do corpo teológico ainda vindouro. A expressão permite pensar o
que se insinua sobre as bases históricas do sentido e, assim, deixa ler o outro que fala a partir
disso que não é – essa escritura não é lubaciana, mas nem por isso é formalmente
certeauniana. Análoga ao a inaudito da différance, ela reenvia a algo legível nas “falhas” que
um texto tende a silenciar e que adquirem legibilidade apenas nas tensões geradas como
rastro. Nesses termos, é factível dizer que o rastro do autor de Ser e tempo produz a
compatibilidade incompatível mencionada acima: enxerto heideggeriano na linguagem
lubaciana, compatibiliza justo o que Lubac não parece autorizar. Mais que mero
complemento, essa rasura suplementa violentamente aquilo que parece subscrever.
O aporte filosófico em pauta é expresso sob a forma do mistério que é fundamento do
paradoxo da possessão/despossessão. Desse modo, o “nada” torna-se o veículo espiritual por
meio do qual o sobrenatural pode manifestar-se.
Aqui já está implícito o que Certeau tratara antes sobre o caráter temporal da
experiência. A duração distendida da experiência espiritual não assente favorecer um
momento em detrimento de outro. Fazendo honras a Inácio de Loyola (Exercícios espirituais
números 333 e 334), o jovem jesuíta notava que ações, pensamentos e sentimentos tem sua
verdade revelada somente na sequência em que são realizados, adquirem legitimidade apenas
“como um momento do movimento onde se integra, isto é, superando a si mesmo no
tempo”.108
Mas o que solidifica esses momentos em constante dispersão? Dada essa a
inconsistência da verdade humana diante de Deus, unicamente por intermédio do auxílio
divino a verdade da experiência ganha espessura. Só em Deus a dispersão da existência
humana é reunida: “da multiplicidade, ele é a unidade; do não ser, ele é o ser; da criatura, ele
é o criador”.109
Enunciando a experiência espiritual em tais termos, passa da temporalidade à história.
Mais precisamente à teologia da história, visto que afirma o reagrupamento da multiplicidade

108
“comme un moment du mouvement où elle s’intègre, c’est-à-dire en se dépassant elle-même dans le temps”.
CERTEAU, Michel de. L’expérience religieuse: “connaissance vécue” dans l’Église. Pax. Bulletin du Séminaire
Universitaire, v. 19, n. 99, p. 1-19, mai 1956, p. 4.
109
“De la multiplicité, il est l’unité; du non-être, il est l’être; de la créature, il est le créateur”. Id. Aspects de la
Prière. Christus, t. 4, n. 13, p. 132-141, janv. 1957, p. 135.
132

na unidade e a capacidade de recuperar em cada momento da história a história e apreender


nela o seu motor: Deus.
A formulação teológica da história deve ser melhor precisada em duas direções.
Primeiro, continuando a tarefa “sincrônica” desta parte do capítulo, relacionando a reflexão de
Certeau ao momento histórico da “nova teologia” francesa. Em seguida, avançando na
“escavação” dos rastros da escritura certeauniana interior a essa sincronicidade, tomando
como eixo a filosofia da história.

2.2.1 Teologia da história

Como já indicado em outro momento deste capítulo, uma característica distinta do que
ficou conhecido como nova teologia é o fato dos seus principais nomes terem levado a sério o
desafio moderno representado pela convicção na historicidade do objeto teológico. Seu
engajamento na reconciliação entre consciência histórica e fontes teológicas tradicionais ficou
evidenciado no debate em torno da teologia da história numa França transitando entre a
ocupação nazista, a resistência e a liberação. 110
O local de largada do debate é Le Saulchoir, importante centro de renovação teologia
na primeira metade do século XX. Casa de estudos da província dominicana da França situada
na Bélgica desde 1904, em decorrência da expulsão das ordens religiosas do território francês
em 1903, retorna à França em 1939. Lá ensinavam teólogos como Marie-Dominique Chenu,
autor incluído no Index em 1942, na esteira da controvérsia da nova teologia, por seu livro
Une école de théologie: le Saulchoir de 1937; seu discípulo Yves Congar, quem
compartilhava com o mentor o entusiasmo pelo projeto de reforma da teologia católica, tendo
sido futuramente designado perito da comissão teológica do concílio Vaticano II; e Henri-
Marie Féret, professor de história da Igreja, quem compartilhava com os outros dois colegas
um projeto teológico comum de estudar a fé cristã nos interstícios da história. Cada um, ao
seu modo, deu forma a esse interesse. Mas foi o último quem deu o subsídio mais diretamente
associado ao debate sobre a teologia da história, com a publicação de L’apocalypse de saint
Jean: vision chrétienne de l’histoire em 1943.

110
Para o debate sobre a teologia da história, a maior parte de nossa apresentação seguirá o caminho trilhado em
Time and eternity in the nouvelle théologie, segundo capítulo de FLIPPER, Joseph S. Between apocalypse and
eschaton: history and eternity in Henri de Lubac. Minneapolis: Fortress Press, 2015. p. 47-88. Em razão do
recurso referencial indireto à obra de Flipper, poupamos o leitor de repetidas referências de pé de página
remetendo ao mesmo texto ou a autores citados por ele. Quando não for o caso, as indicações bibliográficas
devidas serão feitas.
133

Féret defendia ser o Livro da Revelação de São João uma precisa leitura bíblica e
apocalíptica da história, da presença e providência de Deus nas formas assumidas pela vida
humana em dada circunstância temporal. Ele fornece detalhes concretos do plano
sobrenatural, sobretudo a respeito da Igreja, por meio de um modo concreto que lhe é
contemporâneo. Sua explanação da profecia, com vislumbres do futuro, é inseparável da
roupagem simbólica cara ao primeiro século da era cristã.
Féret divide em três os tempos da história da Igreja. O período passado de perseguição
pelo império romano findado com a queda de Roma e o triunfo da Igreja; o tempo do
presente, conformado pela luta constante entre o mal encontrado no mundo e o bem
testemunhado no Evangelho; por último, um tempo futuro, iniciado com Cristo, mas
completado apenas com o triunfo do Evangelho sobre a terra, quando o mundo for conforme
sua mensagem.
Produzida em plena ocupação nazista da França, a teologia da história de Féret
responde às intempéries vividas em seu tempo; resposta alternativa aos “messianismos”
erigidos pelo liberalismo, pelo hegelianismo e pelo marxismo. Não cabe ao cristão acolher
outro tipo de promessa de realização futura, pois a terceira etapa da história cristã já começou
com a morte e ressurreição de Cristo e só na comunhão da humanidade com sua promessa
para o futuro poderá haver qualquer evolução. Nesse sentido, Féret crê que São João forneceu
uma teologia da história à ação cristã que nenhuma forma enganosa de filosofia da história
poderia suplantar.
Reagindo às teses de Féret, o jesuíta Joseph Huby, professor em Lyon-Fourvière,
publica o artigo Apocalypse et histoire em 1944. Huby questiona o teor apocalíptico da
teologia da história apresentado por Féret. Para o crítico, as representações do fim da história
presentes no texto apocalíptico pintam o julgamento de Deus ocorrendo por meio de imagens
concretas da catástrofe que tem lugar num tempo histórico futuro, mas essas imagens
concretas não são circunscritas exclusivamente a um momento pontual vindouro. Elas
pontuam toda a história humana. A leitura de um futuro escatológico perde de vista a marca
cristológica implicada no livro do Apocalipse, ou seja, mais do que reino futuro, é o mistério
de Deus intervindo no presente, através de Cristo. Se por um lado a Igreja precisa
constantemente enfrentar as tentações do mal na terra, por outro lado seu sucesso já é
garantido, pois, como prometido por Cristo, o mal não triunfará sobre ela. Dessa maneira,
Cristo já é a realização do reino futuro e por isso a Igreja do futuro já está vigente na Igreja do
presente. A história é essa luta permanente entre o mundo terreno e o reino de Deus.
134

No artigo Apocalypse, histoire, et eschatologie chrétiennes (1945), Féret desenvolveu


suas ideias em resposta a Apocalypse et histoire. Para o dominicano, os símbolos e imagens
do texto escrito por João são condizentes com a realidade na qual foi produzido. Seu
significado é indissociável dessa materialidade histórica. Apesar dessa circunscrição
contextual, esses símbolos geralmente possuem tom profético, predizem algo sobre um futuro
histórico, ainda que a fisionomia desse tempo vindouro não seja delimitada concretamente. A
roupagem histórica da tessitura textual e os vislumbres do futuro indicados na profecia são
indissociáveis de seu sentido. Nesse ponto difere de Huby, pois não acredita que a feição
temporal impressa nos símbolos proféticos represente características permanentes que
poderiam ser localizadas ao longo de toda trajetória da Igreja. Evitando tomá-los como
verdades atemporais, a teologia da história de Féret vislumbra o compromisso com a
manutenção do sentido da vida cristã na atuação da Igreja no interior das relações humanas,
em suas lutas historicamente situadas, até o fim dos tempos.
A réplica veio no ano seguinte com o artigo Autour de l’Apocalypse, onde fica claro o
ponto discordante entre os dois: o status do profético, isto é, como é possível interpretar esse
futuro no Apocalipse. Huby concorda haver o anúncio de algo futuro naqueles símbolos. Mas
acredita ser necessário precisar a natureza disso que é anunciado. Nos símbolos proféticos
estão implicados tanto o contexto histórico do autor quanto uma realidade futura. Mas a
camada profética do texto não se confunde com essa realidade vindoura, com um futuro
histórico. Nessa perspectiva, o sentido profético não está em prever o que acontecerá no
futuro, mas no olhar supra-histórico por meio do qual algo ali contido far-se-ia presente em
todas as transformações históricas da Igreja até sua realização final. Essa teologia da história
toma a guerra travada pela Igreja contra o mal, em todos os seus momentos históricos, como a
representação escatológica máxima contida nos símbolos proféticos do Apocalipse.
Outra intervenção no debate veio do jesuíta Gaston Fessard, pioneiro no estudo da
filosofia hegeliana em território francês – ele frequentou assiduamente o seminário dirigido
por Alexandre Kojève na École Pratique des Hautes Études entre 1933 e 1939. Com o artigo
Théologie et histoire: à propos du temps de la conversion d’Israël, publicado em 1947, por
uma via terminológica mais “hegeliana”, ele seguiu na mesma direção que Huby havia
trilhado.
Para Fessard, a visão apocalíptica da história localiza a realização das promessas de
Deus no futuro. Ela implica que o cumprimento dos anúncios divinos sobre a paz, a conversão
e a reconciliação humana terão lugar no interior do tempo. Contudo, tanto os pais da Igreja
quanto Tomás de Aquino acreditavam que a conversão de Israel aconteceria quando o tempo
135

findasse. A partir da mudança hermenêutica em relação à interpretação tradicional das


Escrituras, a linguagem simbólica passou a ser interpretada como profecia de eventos
históricos futuros, quando na interpretação tradicional o que estava colocado era mais o
sentido espiritual do que as nuances contingentes da história; importava mais o que dava
fundamento religioso aos eventos históricos transitórios que seu sentido literal. A
interpretação apocalíptica da história limita o simbolismo das Escrituras a épocas específicas,
perdendo de vista esse sentido universalmente aplicável. Embora teólogos dessa vertente
busquem evitar reduzir as Escrituras a um conjunto de verdades atemporais, o resultado acaba
sendo reduzir as profecias a um momento particular, um tempo futuro da história em que o
homem terá alcançado plenamente sua vocação cristã.
Fessard acredita que essa visão histórica perde de vista o sentido escatológico já
contido no presente. O futuro escatológico é um ponto de chegada em direção ao qual o
cristão já está a caminho através de suas decisões em sua condição existencial concreta. Ainda
que não seja completada antes do fim dos tempos, a salvação já está implicada nas situações
vividas pelas pessoas em todos os tempos da história. Assim, todo o desenvolvimento e o
estado final da história estão simbolizados em situações históricas precisamente circunscritas.
Um exemplo disto é a leitura que Fessard faz do sentido espiritual da profecia paulina
da conversão dos gentios e judeus. Figuras antes de tudo históricas, gentios e judeus
representam também atitudes existenciais inerentes a todos os tempos da trajetória humana.
Neles está presente uma tensão fundamental à humanidade: a idolatria, adoração pagã ao
mundo, é causada pela necessidade de reconhecer a imanência de Deus, sua presença no
mundo e na história; a incredulidade, recusa dos judeus em identificar o ministério de Cristo
como palavra autêntica de Deus, é acarretada pelo necessário discernimento da transcendência
de Deus, impossibilidade de limitá-lo à linguagem humana disponível para descrevê-lo. E a
luta constante para conciliar essas exigências opostas, o “pagão” e o “judeu” interior a todo
cristão, só pode encontrar sua síntese em Cristo. Esse é o sentido da profecia da conversão
futura dos judeus e gentios. Ela simboliza a união da humanidade inteira em Cristo.
Outro jesuíta teve seu nome fortemente associado à teologia da história. Ele é Jean
Daniélou. Em Les orientations presentes de la pensée religieuse,111 Daniélou já atentara para
a necessidade de a teologia haver-se com as novas expressões fornecidas pela história no
tempo e no espaço. É uma exigência cristã legítima não tomar o tempo como mero reflexo da
eternidade, fazendo com que a sucessão e o progresso sejam valores positivos ao pensamento

111
DANIÉLOU, Jean. Les orientations présentes de la pensée religieuse. Études, t. 249, p. 6-21, avril-juin 1946.
136

religioso. Mas diferente de iniciativas historicistas que fizeram recair suspeitas sobre o
modernismo, dar crédito à história, considerá-la verdadeiramente, não é o mesmo que
negligenciar a busca por seu sentido religioso.
O tema do sentido religioso da história foi desenvolvido em 1947 com o artigo
Christianisme et histoire,112 por meio do qual intervém na controvérsia sobre a teologia da
história. Embora o progresso seja um elemento necessário ao pensamento religioso, o que
distingue a teologia de outras abordagens da história é ela dar conta de algo mais essencial,
inerente ao cristianismo, que é o próprio termo do progresso: uma escatologia. Para a teologia
cristã, a história possui um fim, um plano já definido. O cristianismo é ele próprio esse fim,
pois a segunda vinda de Cristo significa o fim dos diferentes tempos e sucessões – ela cumpre
a promessa desse mundo definitivo. E essa realidade final, onde não há nada além do
cristianismo, já chegou, está garantida desde a encarnação e ascensão de Cristo.
Nesse sentido, a história irradia o reino futuro ao mesmo tempo em que é uma
preparação para ele. A dispersão do conteúdo humano, em todas as suas vicissitudes e
nuances, é a trajetória do homem em direção à sua finalidade. Assim, a história profana é
parte do todo do qual faz parte, a história santa, preparação para um futuro a-histórico –
quando plenamente realizado, ele não poderá ser ultrapassado. Habitando nisso que é próprio
mistério da Igreja – um além da história já presente na história –, o cristão vive na
coexistência de dois mundos sucessivos entre os quais está dividido, experiência
essencialmente anacrônica, uma vez que “ele é ultrapassado radicalmente pelo mundo da
Igreja que é seu futuro já presente”.113
Esse mesmo horizonte de reflexão teológica sobre a história encontra-se em Henri de
Lubac, com quem Daniélou colaborou na fundação e edição da coleção Sources Chrétiennes.
Para Daniélou, Lubac forneceu uma das contribuições mais marcantes de sua época para o
reestabelecimento da visão histórica dos pais da Igreja. Cronologicamente falando, Lubac
contribuiu para o assunto antes mesmo da querela sobre a teologia da história surgir com as
publicações de Féret e Huby.114

112
DANIÉLOU, Jean. Christianisme et histoire. Études, t. 254, p. 166-184, juillet-sept. 1947. Recorremos
sobretudo às páginas 172 à 183.
113
“Il est dépassé radicalement par le monde de l'Église qui est son avenir déjà présent”. Ibid., p. 183.
114
Além de Lubac, Daniélou indica as contribuições do filósofo Jean Guitton em Temps et éternité selon Plotin
et saint Augustin (1933) e Progrès et religion, tradução do ensaio publicado pelo historiador Christopher
Dawson em 1929. Outra referência não restrita ao debate católico da teologia da história é à tradução francesa do
tratado publicado em 1946 pelo teólogo protestante Oscar Cullmann, Christ et le temps: temps et histoire dans le
christianisme primitif (1947). Cf. Id. DANIÉLOU, Jean. Les orientations présentes de la pensée religieuse.
Études, t. 249, p. 6-21, avril-juin 1946, p. 10; Id. Christianisme et histoire…op. cit., p. 166-167.
137

O lugar da história no cristianismo já havia sido tratado em Catholicisme: les aspects


sociaux du dogme, publicado em 1938. Em seu plano, o livro é dividido em três partes: o
caráter social, histórico e pessoal do dogma cristão. Segundo o teólogo, o catolicismo é
essencialmente social, pois a unidade sobrenatural do homem com Deus é também a unidade
dos homens entre si.115 Nesse sentido, o cristianismo traz ao mundo algo novo ao afirmar de
uma só vez um destino transcendente para o homem e um destino comum para a humanidade.
A preparação deste destino é a própria história do mundo, daí o caráter histórico do
dogma. Se a salvação é a salvação do gênero humano, e o gênero humano vive e se
desenvolve no tempo, então a salvação toma naturalmente a forma de uma história. 116
Seguindo o exemplo de Cristo, cada cristão deve aceitar sua condição de ser coletivamente e
no tempo, de maneira que sua relação com o eterno vem acompanhada de uma relação com
passado e com um futuro cuja extensão não é conhecida.117
Contudo, o caráter social e histórico do catolicismo não pode negligenciar a
transcendência nem a presença incessante do Eterno no agora e inscrita no coração do
homem, pois ela guia o desenvolvimento coletivo e temporal do dogma cristão. Somente
olhando para si, em busca de uma zona intacta e silenciosa, um segundo plano misterioso
onde a atualidade não o invade, onde uma centelha de eternidade respira acima do tempo e
escapa à sociedade temporal, o homem se orienta à transcendência que garante sua própria
imanência. Na figura da pessoa, terceiro caráter do dogma, Lubac vê depositado o brilho
eterno, um resquício do sobrenatural.118 Dessa maneira, a revelação divina, efetuada na
doutrina e na história, alcança o coração do homem, verdade não demonstrável por vias
exclusivamente intelectuais, nem por pura inspiração.
A revelação de Deus na figura humana de Jesus é o exemplo dessa dinâmica intrínseca
entre o que é humano e não humano, natural e sobrenatural. Tampouco a revelação bíblica
exclui as demandas humanas, historicamente situadas. Ao contrário, ela é ação de Deus na
história. É o caso da Igreja primitiva, onde não havia lugar para especulações sobre Deus
independente do tempo e da história. Predominava a contemplação da verticalidade da palavra
vinda de Deus em sua horizontalidade histórica. Porém, embora Deus revele a si mesmo como
salvador intervindo na história da humanidade, o objetivo final da salvação não é histórico,

115
LUBAC, Henri de. (1938) Catolicismo: aspectos sociales del dogma. Madrid: Ediciones Encuentro, 1988. p.
28.
116
Ibid., p. 99-100.
117
Ibid., p. 102.
118
Ibid., p. 252-254.
138

pois a história só adquire seu sentido último ultrapassando seu plano imanente restrito,
acompanhado por sua finalidade escatológica com vistas ao juízo final, o fim da história. 119
Diversos outros livros de Lubac relacionam teologia e história. Em Corpus Mysticum,
publicada em 1944, estudou a história da fórmula latina que dá título ao livro, mostrando
como seu conteúdo teológico muda durante a Idade Média. Em 1946, com Surnaturel,
investigou a relação entre as ordens natural e sobrenatural, ilustrando como os textos bíblicos,
patrísticos e escolásticos, particularmente os de Tomás de Aquino, não concebiam essas
esferas como ordens completas em si mesmas e separadas uma da outra. É a partir de
determinada leitura por parte da tradição tomista que o dualismo entre natureza e sobrenatural
passará a ser privilegiado. Já Histoire et esprit, texto vindo a público em 1950, lança mão do
método histórico com vistas a abordar o apanhado de escritos exegéticos compostos por
Orígenes, defendendo a interpretação espiritual das Escrituras como maior originalidade do
filósofo cristão de Alexandria. Dando continuidade a essa tarefa, anos depois, entre 1959 e
1964, divulga seus quatro volumes dedicados à história da exegese cristã durante a Idade
Média.120
Uma intervenção mais direta no ponto central em torno do qual girou a controvérsia da
teologia da história pode ser encontrada em Histoire et esprit.121 Como ensina Lubac, a
exegese desenvolvida por Orígenes não despreza a história nem a toma em seu estado bruto,
mas procura compreender sua verdade, transitando do material humano que a compõe àquilo
que a transcende, funda e dá seu sentido espiritual. Mesmo que os contornos próprios de uma
história não pareçam caros à sua meditação, diversos lampejos da verdade chegam ao cristão
sob a forma simbólica, logo, em cada história, interessando-lhe a História. Os fatos recontados
na bíblia, seu complexo histórico, de tudo o que passou, importa-lhe os signos ou mistérios
que fornece ao presente, pois o a história prepara para outra coisa, é escalada para um lugar
mais elevado, movimento constante de transcendência. A essa escalada corresponde uma
escatologia, pois a elevação da alma em direção ao espírito só pode ocorrer plenamente no
futuro. Essa verdade por vir é o Logos de Deus encarnado na história, isto é, a dependência
em relação a uma situação futura já supõe o mistério do Cristo, o ato redentor do calvário que

119
Cf. MCBRIAR, David J. Henri de Lubac: A account of his theology. 1973. Thesis (Doctor of Philosophy –
Religion) – School of Graduate Studies, McMaster University, Hamilton, Ontario, Canada. 1973. p. 40-52.
Disponível em: https://macsphere.mcmaster.ca/bitstream/11375/14169/1/fulltext.pdf. Acesso em: 08 mar. 2020.
120
LUBAC, Henri de. Corpus mysticum: l'eucharistie et l’Église au moyen âge. Paris: Aubier, 1944; Id. LUBAC,
Henri de. (1946) Surnaturel: études historiques. Édition préparée et préfacée par Michel Sales, s.j. Paris:
Lethielleux, 2010; Id. Histoire et esprit: l'intelligence de l'écriture d'après Origène. Paris: Aubier, 1950; Id.
Exégèse médiévale: les quatre sens de l'Écriture. 4 t. Paris: Aubier, 1959-1964.
121
Especialmente no capítulo VI, parte 4, intitulada De l’histoire à l’esprit. Id. Histoire et esprit…op. cit., p.
278-294.
139

permitiu a todos os homens passar da incredulidade à fé e que produz seus efeitos ao longo de
toda a história até sua plena manifestação quando da consumação dos séculos. Nesse último
ponto, a leitura de Lubac sobre Orígenes mostra-se próxima da abordagem de seus confrades
jesuítas naquilo que as diferenciam da interpretação profética da história.
Tal exegese encontrada em Lubac pode ser ela própria designada como uma forma de
teologia da história, termo com o qual Michel de Certeau caracteriza a relação entre realidade
histórica e realidade espiritual nos escritos de seu professor. Ele o faz tratando
especificamente dos dois primeiros volumes de Exégèse medievale: les quatre sens de
l’Écriture, publicados em 1959 na coleção Théologie. O comentário consta em Exégèse,
théologie et spiritualité,122 ocasião em que Certeau descreve a teologia da história lubaciana
como o cotejo do histórico e do espiritual, do tempo e da eternidade, do social e do individual.
Em Lubac, a teologia acompanha o ritmo de um pensamento total a partir de um centro
concreto no espaço e no tempo, a crucificação de Cristo. Sua realização dá-se por meio da
unificação entre exegese e teologia, isto é, pelo reconhecimento do sentido espiritual,
indissociável ao cristianismo, impresso nos fatos e em sua sucessão.
Esse modo como Certeau enxerga a teologia da história em Lubac pode ser utilizada
para caracterizar seus próprios escritos. Os manuscritos de suas pregações, anotações para
retiros da Companhia de Jesus, suas notas reflexivas sobre a natureza do trabalho teológico,
seus artigos teológicos e seus trabalhos históricos permitem localizar uma interpretação
teológica da história nos anos 1950 e início dos anos 1960. Tais escritos contém um traço
comum à noção compartilhada pelos adeptos da renovação teológica no que concerne ao
entendimento relativo à história nos anos 1940 e 1950. Essa partilha vem sobretudo via
Lubac, a quem Certeau era bastante afeiçoado espiritual e intelectualmente – além dos
recursos já utilizados para sustentar essa filiação, adicionemos a eles as muitas declarações
elogias que dispensa ao mestre em Exégèse, théologie et spiritualité.123
Para sustentar a presença de uma teologia da história cara à época no Certeau dos anos
1950, basta aqui rememorar o que tratamos anteriormente sobre a relação entre teologia e
história: Cristo como intervenção espiritual na história; o fundamento escatológico contido na
defesa da história da salvação como a verdadeira história; o enraizamento do Espírito na

122
CERTEAU, Michel de. Exégèse, théologie et spiritualité. Revue d’Ascétique et de Mystique, année 36, n. 143,
p. 357-371, juil./sept. 1960.
123
François Trémolières nos chamou atenção para as diversas fórmulas elogiosas existentes no artigo de Certeau.
TRÉMOLIÈRES, François. Michel de Certeau et Henri de Lubac: quelques jalons pour une étude. Revue
d'Histoire de l'Eglise de France, t. 104, p. 261-276, 2018, p. 262, nota 7.
140

história por meio das vicissitudes da Igreja no tempo; e a própria Igreja como elemento que
veicula uma história divina à história humana.
Para aprofundar a questão, retomemos os apontamentos de Certeau sobre a experiência
religiosa. Ela é duração, memória, linguagem como atraso da consciência em relação a Deus.
Em todos esses aspectos está em marcha um desenvolvimento temporal no qual pesa o
paradoxo da possessão/despossessão. Cada momento, em seus sentimentos, gestos,
pensamentos, pende a outro sem o qual a presença não pode tornar-se presente. Em cada
momento, esses elementos psicológicos dependerão de outro onde o que aparentemente está
em posse da memória e do discurso será despossuído. Somente no desenvolvimento temporal
como paradoxo, na dinâmica entre ganho e perda da presença, os dados da experiência podem
obter sentido espiritual. Apenas na temporalidade e na multiplicidade de situações históricas a
unidade se realiza: “a presença de Deus far-se-á somente por um reagrupamento do tempo que
efetua e encontra na multiplicidade a unidade”.124 O mesmo pode ser visto quando Certeau
declara: “Toda a história é necessária para reconhecer esta Presença, uma vez que aquela se
define por esta”.125
Fica evidente o modo como a teologia espiritual incorpora uma teologia da história. Se
a experiência espiritual é o modo humano de vivenciar e conhecer a presença de Deus e a
presença, por sua vez, dá-se a partir da história, então a experiência espiritual necessariamente
passa pelo reconhecimento da ação de Deus em momentos históricos precedentes.
A temporalidade é a exterioridade da experiência, o que a impossibilita de ser um
conhecimento definitivo. O saber de hoje será o não saber de amanhã, um “eu não sabia
ainda”.126 E o que despossui esse saber é justamente o que o legitima. O que a experiência
pode conhecer permanece relativizado pelo movimento no qual se situa. A experiência é
ultrapassada e integrada na consciência da totalidade dessa história, ou seja, na Igreja. O saber
da experiência preserva o magistério da Igreja, há continuidade entre eles. Toda afirmação é
verdadeira no interior da afirmação eclesial.
Quando Certeau caracteriza a Igreja como depositária da consciência do movimento
total ele está creditando à eclesiologia o epicentro do conhecimento teológico da história,
concedendo ao ensino eclesial e sua regra doutrinal a propriedade do conhecimento acerca da
unificação dos tempos históricos realizada pela presença, fazendo dele a linguagem formal da

124
“[...] la présence à Dieu ne se fera que […] par un regroupement du temps qui effectue et retrouve dans la
multiplicité l’unité”. CERTEAU, Michel de. L’expérience religieuse : “connaissance vécue” dans l’Église. Pax.
Bulletin du Séminaire Universitaire, v. 19, n. 99, p. 1-19, mai 1956, p. 5. Grifo nosso.
125
“Toute l’histoire est nécessaire pour reconnaître cette Présence puisque celle-là se définit par celle-ci”.
Ibid., p. 5.
126
“[...] je ne savais pas encore”. Ibid., p. 8.
141

unidade das palavras e gestos sucessivos, sentido que integra à unificação eclesial as múltiplas
experiências dispersas no tempo e no espaço.
Essa eclesiologia é inseparável de se fundamento crístico, pois Certeau pensa a
linguagem eclesial como esboço incessante da unidade original e da revelação final a cada
momento histórico:
Ela proclama sempre, mesmo por meandros e retomadas do discurso, o
Cristo já vindo e por vir, o Fim Unificador já presente em todo caminho, o
Filho único em quem toda a alteridade se recapitula. Ele introduz, desta
forma, sua morada na linguagem da Igreja.127
A experiência se dispersa e unifica. Ela precisa ser refeita a cada nova circunstância,
desenvolvimento alheio a um ponto final. Suas investidas em conhecer Deus, toda
identificação entre presença e memória, entre a história e o saber teológico, realiza-se
“somente Naquele que na história é a história e que é tanto a recapitulação total como a
duração total da história: Cristo”.128 Cristo é a verdade escondida da experiência espiritual e
do magistério da Igreja na qual ela se unifica.
A linguagem particular da experiência remonta à linguagem universal da Igreja porque
ambas são dependentes de uma experiência estruturante da vida cristã já teologicamente
anunciada no Evangelho, narração das iniciativas e do mistério do Cristo que inaugura o
ensino da Igreja.
Os evangelistas, testemunhas oculares, presenciaram os fatos contados no Evangelho.
Seus sentimentos reagiam aos atos e ensinamentos de Cristo. Sentiam as consequências dessa
presença. Participavam daquela história. A cada momento, vivenciavam-na, experiência após
experiência, até aparecer seu sentido, o mistério então já revelado de muitas maneiras.
Somente depois de findado o acontecimento (crucificação), seguido de outros (ressurreição,
experiências evangélicas quando já dissipada a historicidade do Cristo), seu sentido poderia
tornar-se signo teológico do discurso evangélico. Assim, a descrição literária dos apóstolos,
cujo cerne vincula a fé e o milagre, a ausência e a presença de Deus (Cristo está entre eles,
mesmo depois de sua morte), entrevia a estrutura teológica de toda experiência cristã:
Ela exprime simultaneamente isto que os discípulos e os primeiros cristãos
experimentaram das intervenções do Cristo, e a maneira que eles as viveram,

127
“[...] il proclame à chaque fois, par les méandres mêmes et les reprises du discours, le Christ déjà venu et a
venir, la Fin Unificatrice déjà présente en toute cheminement, le Fils unique en qui toute altérité se récapitule. Il
entre donc comme chez lui dans le langage de l’Eglise ”. CERTEAU, Michel de. L’expérience religieuse:
“connaissance vécue” dans l’Église. Pax. Bulletin du Séminaire Universitaire, v. 19, n. 99, p. 1-19, mai 1956, p.
9.
128
“[...] seulement en Celui qui dans l’histoire est l’histoire et qui est à la fois la récapitulation totale et la durée
totale de l’histoire : le Christ”. Ibid., p. 5.
142

isto é, a experiência que tiveram e, interior a essa experiência, o sentido que


lhe deram vivendo-a e anunciando-a.129
São inseparáveis o fato e sua expressão, o que ocorreu e a consciência do ocorrido, a
experiência do que passou e a enunciação expressiva dessa vivência, indissociabilidade que
alicerça não apenas o Evangelho, mas todo o passado e o presente cristãos, inclusive as
mutações pelos quais passaram os dogmas da Igreja.
A linguagem universal da Igreja é ela também o reencontro com a pessoa de Jesus, e
por isso não está alheia à experiência. Procede dela, toma parte de suas nuances, dilemas e
angústias. Ela tanto acolhe quanto enuncia a vida da Igreja. Daí essa guardiã da História
impregnada na história, da Verdade que acompanha as mobilidades do tempo, conhecer
também o desenvolvimento dos seus dogmas – aqui aparece vividamente a proximidade da
maneira como Certeau enxerga a relação entre mudança histórica e o magistério oficial da
Igreja e o modo como essa questão foi pensada por Newman e Lubac.130
A leitura entrelaçada entre experiência, tempo e história feita por Certeau acompanha
Lubac em vários níveis. Em Exégèse, théologie et spiritualité,131 o primeiro destacara como
contribuições do segundo certos elementos os quais seus próprios escritos dos anos 1950
seguiram de perto: a unidade entre teologia e história; aparição histórica do Cristo enquanto
manifestação do sentido transcendente à imanência e à história; Cristo como ruptura que
inclui, unifica; a continuidade entre esse acontecimento, a Igreja e seus sacramentos; e a
insistência sobre o termo “estrutura” notado por Certeau em Lubac, indicando a possibilidade
de encontrar na sucessão e no fato o sentido – no artigo de 1956 sobre a experiência religiosa,
Certeau fala em “anúncio teológico da estrutura própria a toda vida cristã”132 e define essa
estrutura como a relação entre a verdade revelada pelos evangelhos, a experiência que alguém
tem dela e sua expressão.

129
Gifos do próprio Certeau. “Elle exprime à la fois ce que les disciples e les premiers chrétiens ont éprouver
des interventions du Christ, et la façon dont ils les ont vécues, c’est-à-dire l’expérience qu’ils ont faite et,
intérieure à cette expérience, le sens qu’ils lui ont donné en la vivant et en l’annonçant”. CERTEAU, Michel de.
L’expérience religieuse : “connaissance vécue” dans l’Église. Pax. Bulletin du Séminaire Universitaire, v. 19, n.
99, p. 1-19, mai 1956, p. 10. Grifo do autor.
130
Certeau fala em “majestueux déploiement de ces dogmes” ao tratar a relação entre a linguagem particular da
experiência e a linguagem universal da Igreja. Ibid., p. 9. Notas manuscritas escritas por Certeau mostram que
ele estava atento à questão do desenvolvimento do dogma. Id. Développement dogmatique, texto manuscrito,
sem data, caixa 5, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.
131
Id. Exégèse, théologie et spiritualité. Revue d’Ascétique et de Mystique, année 36, n. 143, p. 357-371,
juil./sept. 1960.
132
“[...] l’annonce théologique de la structure propre à toute vie chrétienne […]”. Id. L’expérience religieuse:
“connaissance vécue” dans l’Église. Pax. Bulletin du Séminaire Universitaire, v. 19, n. 99, p. 1-19, mai 1956, p.
9. Grifo nosso.
143

Outro ponto a ser notado é a maneira como Certeau identifica a teologia da história
lubacina a “uma dialética do antes e do depois”. 133 Duas questões a serem consideradas a esse
respeito. Primeiro, a dinâmica temporal do “antes” e “depois”. Ela reaparece no comentário
de Certeau sobre a possessão da realidade espiritual na obra de seu mestre sob a forma
simultânea de “um ‘já’ e um ‘ainda não’”.134 É digno de nota como essa maneira de apresentar
as formulações lubacianas lança mão de termos aos quais o próprio discípulo recorreu quatro
anos antes ao elaborar o paradoxo da possessão/despossessão da experiência.135 Em segundo
lugar, o recurso explicativo à “dialética”. O termo faz referência ao movimento incessante
percorrido pela experiência. Certeau já o indicava ao falar de dialética espiritual.136
Definir a experiência como dialética também nos permite desdobrar essa segunda
questão em duas direções. Num sentido particular, isto quer dizer que ela é dependente de
uma temporalidade interna, produzida sempre na “tensão” entre um antes e um depois
inerente ao ganho e à perda da posse da realidade espiritual. Em outras palavras, o nível
dialético funciona como tecido existencial da experiência enquanto o mistério é o fundamento
teologal do paradoxo espiritual humano – a memória, a consciência e a linguagem o são já e
sempre “esquecimento”, inconsciência, o silêncio.
Em um sentido mais geral, a experiência depende de uma história mais ampla, a
Igreja. É o que está em jogo quando Certeau afirma que cada conhecimento pessoal é “interior
ao movimento que o ultrapassa e que só nele é efetivo”. O movimento em questão, embora
interior à experiência pessoal, está enraizado no movimento total representado pela linguagem
oficial da Igreja. Quando alguém “entra nessa linguagem, nessas palavras e ritos, entra numa
tradição e numa história que ultrapassa cada indivíduo”.137 Por exceder as circunstâncias
individuais, essa linguagem universal interdita tomar isto ou aquilo como definitivo,
figurando como outro polo dialético da experiência.
A relação entre essas duas direções dialéticas implícitas no artigo L’expérience
religieuse reaparecem de forma mais explícita nas notas críticas do autor sobre seu próprio

133
“[…] une dialectique […] de l’avant et de l’après”. CERTEAU, Michel de. Exégèse, théologie et spiritualité.
Revue d’Ascétique et de Mystique, année 36, n. 143, p. 357-371, juil./sept. 1960, p. 357.
134
“[…] un « déjà » et un « pas encore »”. Ibid., p. 365.
135
Certeau fala em pas encore e déjà plus na página quatro do artigo L’expérience religieuse: “connaissance
vécue” dans l’Église.
136
Em Id. L’expérience religieuse: “connaissance vécue” dans l’Église. Pax. Bulletin du Séminaire
Universitaire, v. 19, n. 99, p. 1-19, mai 1956, p. 3.
137
“[...] Quand on entre dans ce langage, dans ces mots et ces rites, on entre dans une tradition et dans une
histoire qui dépassent chaque individu […]”. Id. La prière des ouvriers. Christus, t. 4, n. 15, p. 413-427, juil.
1957, p. 420.
144

texto.138 Certeau atenta-se para a falta de precisão em certas noções utilizadas (memória,
tempo, presença e futuro, por exemplo). Ele indica também a necessidade de pensar a
“passagem de uma dialética da experiência a uma dialética da história”.139
Essa passagem da qual fala a autocrítica foi esboçada nas entrelinhas do artigo
correlato, algo que buscamos desdobrar acima no duplo movimento “interno” e “externo” da
dialética espiritual. De todo modo, essa passagem dialética da experiência à história não se
tornou um projeto maior na escrita certeauniana. Ela também não explanou o que entendia
exatamente por dialética da história e qual seria sua partilha com a teologia da história vista
em seus escritos da época, embora o termo “dialética” tenha reaparecido em outros textos e no
“segundo” Certeau com o significado de tensão entre opostos ou de trabalho negativo de um
elemento sobre o outro.

2.2.2 Filosofia da história

A meu ver, a ênfase de Certeau na dialética justifica Luce Giard ver “reminiscências
hegelianas” nesse texto de juventude.140 Todavia, é preciso averiguar a extensão dessa
presença hegeliana e o que ela pode significar se considerarmos o pertencimento histórico da
reflexão certeauniana ao ambiente intelectual da “nova teologia” e a teologia da história
encontrada operando em seus textos.
Em outra ocasião Giard diz seguinte: “A filosofia de Hegel desempenha um papel
analítico e arquitetônico para ele [Certeau], sem lhe impor uma forma dialética”.141 Segundo
ela, a filosofia hegeliana marcou toda a obra do jesuíta e ocupou em seus textos um papel
decisivo, ainda que de maneira velada e geralmente sem referências explícitas. Hegel não teria
sido o objeto de seu trabalho, mas teria lhe fornecido “a matriz de seu pensamento”. 142 Dentre
os jesuítas de sua geração, ele teria sido aquele que mais longe levou o projeto hegeliano.
Qual seria então, para Giard, a marca hegeliana em Michel de Certeau?

138
Notas críticas manuscritas e datilografas sobre o artigo, publicadas por Luce Giard em CERTEAU, Michel
de. Auto-critique! L’expérience religieuse. Notes (3 septembre 1956). In : GIARD, Luce (Dir.). Le voyage
mystique: Michel de Certeau. Paris: RSR/Cerf, 1988. p. 49-51.
139
“Cf. passage d’une dialectique de l’expérience à une dialectique de l’histoire”. Ibid., p. 49. Grifo nosso.
140
A observação consta em nota localizada ao fim da autocrítica. CERTEAU, Michel de. Auto-critique!
L’expérience religieuse. Notes (3 septembre 1956). In : GIARD, Luce (Dir.). Le voyage mystique: Michel de
Certeau. Paris: RSR/Cerf, 1988. p. 51.
141
“La philosophie de Hegel joue pour lui un rôle analytique et architectonique, sans lui imposer une forme
dialectique”. GIARD, Luce. Mystique et politique, ou l’institution comme objet second. In: GIARD, Luce;
MARTIN, Hervé; REVEL, Jacques. Histoire, mystique et politique: Michel de Certeau. Grenoble: Jérôme
Millon, 1991. p. 29. Grifo nosso. A autora dedica algumas páginas (27-36) a la matrice hégélienne de Certeau.
142
Ibid., p. 29.
145

A autora pontua o caráter fundador e determinante do encontro do jesuíta “com uma


filosofia que pretendeu dar conta de toda a história”.143 Hegel buscou pensar Deus no interior
da história humana,
no conjunto de sua variação, as sociedades na multiplicidade de suas
determinações e na extensão de seu devir, o pensamento na produção de suas
próprias condições de inteligibilidade. A tudo isso, Certeau permaneceu
surpreendentemente fiel. Em sua obra, o pensamento de Hegel tem uma
presença estruturante. Dele, ele toma emprestados conceitos, categorias de
interrogação e, sobretudo, um objetivo de conjunto.144
Esse papel da filosofia hegeliana poderia ser verificado na importância atribuída por
Certeau à distinção entre o universal e o particular, bem como na ênfase dada à alteridade, à
experiência e à relação, para citar alguns exemplos.
Mas o contrário também é verdadeiro. Algo constituinte desse pensamento é
justamente aquilo do que Certeau buscou mais vividamente afastar-se, tomando uma dupla
distância de Hegel:
Em primeiro lugar, para ele não existe uma posição absoluta a partir da qual
seria legítimo ler e pensar a história dos homens. Em segundo lugar,
corolário da proposição precedente, não há mais primazia do filosófico sobre
a história, porque o filósofo não tem, não mais que o Deus das Igrejas, a
função de dizer a verdade do sentido para todos. 145
A leitura de Giard sobre a posição de Certeau em relação ao absoluto ampara-se,
grosso modo, em escritos datados da segunda metade dos anos 1960 em diante. Parece-nos
bastante acertada e convincente no que diz respeito aos interesses, procedimentos e
interpretações certeaunianas daquele momento.
Todavia, ao considerarmos o “primeiro” Certeau, recorrermos a sua correspondência,
a seus textos não publicados, escritos em um contexto eclesial, fizermos o escrutínio com seus
materiais mais nitidamente teológicos publicados na segunda metade dos anos 1950, tudo isso
no horizonte de sua história intelectual, encontramos resultados que resistem a essa imagem
de um Certeau avesso ao absoluto e às determinações filosóficas e teológicas supra-históricas.

143
“[...] avec une philosophie qui avait voulu rendre compte de l'histoire tout entière”. GIARD, Luce. Mystique
et politique, ou l’institution comme objet second. In: GIARD, Luce; MARTIN, Hervé; REVEL, Jacques.
Histoire, mystique et politique: Michel de Certeau. Grenoble: Jérôme Millon, 1991. p. 27-28. Gifo nosso.
144
“[…] dans l'ensemble de sa variation, les sociétés dans la multiplicité de leurs déterminations et l'étendue de
leur devenir, la pensée dans la production de ses propres conditions d'intelligibilité. A tout cela, Certeau est
resté étonnamment fidèle. Dans son œuvre, la pensée de Hegel a une présence structurante. Il lui emprunte des
concepts, des catégories d'interrogation, et surtout une visée de ensemble”. Ibid., p. 29.
145
“D'une part, pour lui il n'y a pas de position absolue à partir de laquelle il serait légitime de lire et de penser
l'histoire des hommes. D'autre part, corollaire de la proposition précédente, il n'y a pas davantage de primat du
philosophique sur l'historique, parce que le philosophe n'a pas plus que le Dieu des Eglises la fonction de dire la
vérité du sens pour tous”. Ibid., p. 30.
146

As informações exploradas até aqui sobre a teologia espiritual e a teologia da história


oferecem recursos suficientes à imagem de um “outro” Michel de Certeau diferente daquela
imagem “clássica” pintada a partir de suas investigações mais conhecidas como historiador ou
teórico cultural. Alguns traços teológicos abordados confirmam uma maior afinidade com a
questão do absoluto do que seria de supor: presença, escatologia, cristologia, eclesiologia,
para mencionar alguns.
Um exemplo explícito pode ser verificado na interpretação de André Neher acerca da
relação profética entre Deus e a história, da qual Certeau mostra-se signatário: “É pelo
trabalho de profecia que o absoluto se abre em termos relativos. Pelo prisma da profecia, o
tempo de Deus se reflete em múltiplos tempos da história”.146 Certeau conclui esse mesmo
texto em que recorre a Neher e a outros teólogos fazendo uma declaração na qual pesa a
importância conferida à relação entre a presença e ausência, entre o absoluto e a história:
Ele [o crente] faz em sua experiência a experiência deste Deus sempre
“outro” e sempre o “mesmo”, ele que sempre responde à oração porque já
fala nela, e também porque lhe escapa. É uma história sem saciedade, que a
linguagem nunca expressa com verdade e que se diz em todas as nossas
linguagens.147
Outro ponto ao qual não podemos aderir senão parcialmente afastando-nos é o da
arquitetura hegeliana do pensamento certeauniano. Se há argumentos suficientes para a defesa
da importância da filosofia de Hegel no “primeiro” Certeau, é preciso estabelecer ainda em
que sentido é possível falar dessa vinculação. Em outras palavras, cabe averiguar de que
maneira a filosofia da história interage com a teologia da história que Certeau compartilhava
no contexto jesuíta.
É preciso interrogar essa absorção de Hegel a “contrapelo”, para reempregar a imagem
de Walter Benjamin em sua sétima tese sobre o conceito de história. 148 Em nosso caso, ler a
história contra sua identificação aos “vencedores” significa dizer que a filosofia da história
reinante no pós-guerra francês “conquista” o território de sua “vizinha” teológica sem por isso
determiná-lo.
Como veremos, há uma maneira não dialética de Certeau recorrer à dialética, realizada
segundo uma lógica mais lubaciana que propriamente hegeliana. Desse modo, a escritura
146
“C’est par le travail de la prophétie que l’absolu se livre en termes relatifs. Par le prisme de la prophétie, le
temps de Dieu se reflète en multiples temps de l’histoire”. NEHER apud CERTEAU, Michel de. Aspects de la
Prière. Christus, t. 4, n. 13, p. 132-141, janv. 1957, p. 134.
147
“Il fait dans son expérience l’expérience de ce Dieu toujours « autre » et toujours « même », lui qui répond
toujours à la prière parce qu’il y parle déjà, et aussi parce qu’il lui échappe. C’est une histoire sans
rassasiement, que le langage n’exprime jamais avec verité et qui se raconte pourtant dans tous nos langages”.
CERTEAU, Michel de. Aspects de la Prière. Christus, t. 4, n. 13, p. 132-141, janv. 1957, p. 141.
148
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da História. In: O anjo da história. Organização e tradução de João
Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2012. (Filô/Benjamin)
147

certeauniana deixa seu rastro alterante ao “marcar” Hegel em um plano teológico abertamente
contrário a essa “dialetização” da história, sem com isso produzir uma diferença constituída
que permitiria falar de uma matriz hegeliana prioritária à concretude teológica que dá o tom
aos textos do “primeiro” Certeau.
É possível constatar a familiaridade com termos hegelianos já em um trabalho escrito
por Certeau, provavelmente quando ainda era estudante seminarista. O manuscrito intitulado
Doctrine trinitaire de saint Augustin dans la lettre à Consentius dá a largada com a seguinte
afirmação: “No desenvolvimento do dogma como de toda a história, está a harmonia dos
contrários”.149 Mais à frente fala em “dupla antítese” e noutro lugar em “dialética”.
Além dos termos, a maneira como lê é marcadamente hegeliana. Em determinada
altura, após ter apresentado o método teológico e o vocabulário trinitário agostiniano
introduzido na resposta à carta de Consentius, Certeau defende a necessidade de uma
exposição “positiva e sintética” da doutrina trinitária de Santo Agostinho. Sintético pode aqui
significar duplamente a apresentação resumida da contribuição agostiniana ao tema em
questão e, mais especificamente, a combinação de uma tese e uma antítese, isto é, a
compreensão da ortodoxia cristã e do arianismo acerca da trindade.
À tese da consubstancialidade150 das três pessoas da Trindade (o Pai, o Filho e o
Espírito Santo) o arianismo contrapôs sua perspectiva, para a qual Deus e Cristo não
compartilham de uma mesma essência. A negação da negação ariana encontra-se em
Agostinho, o que pode ser visto quando Certeau afirma o seguinte sobre a unidade divina: Em
Agostinho, ela é “o ponto de partida e, deste modo, ele se opõe de imediato à heresia ariana; e
essa unidade é considerada como sendo baseada sobre a substância (ou essência) idêntica das
pessoas”.151
Essa negação da negação como síntese, no segundo sentido apontado acima, o da
dialética hegeliana como união dos opostos, pode ser inferida na maneira que Certeau lê a
relação entre unidade divina e diferença das pessoas em Agostinho. Negativamente,
argumenta, “Santo Agostinho não fecha a porta à diferenciação ainda que tenha por objetivo

149
“Il en est du développement du dogme comme de l’histoire tout court, c’est l’harmonie des contraires”.
CERTEAU, Michel de. Doctrine trinitaire de saint Augustin dans la lettre à consentius, texto manuscrito, sem
data, caixa 5, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves, p. 1. Grifo nosso.
150
O termo consubstancialidade aparece no concílio de Niceia, mas o que ele denota, grosso modo, remonta à
Igreja primitiva e à ortodoxia cristã sobre o tema à época que se seguiu. É à partilha da substância divina pelas
três pessoas que Ário opôs seu juízo sobre a Trindade.
151
“c’est le point de départ, et par là il s’oppose d’emblée à l’hérésie arienne; et cette unité est considérée en
tant qui elle se fonde sur la substance (ou essence) identique des personnes”. Ibid., p. 10 (verso da página).
148

principal a unidade de Deus-Trindade”.152 A negação presente ao dizer “‘a essência divina


não é outra coisa’ não se torna uma afirmação de identidade absoluta; permanece então certa
diferença entre a trindade e Deus, entre as três pessoas e Deus”.153 Positivamente, a “distinção
das pessoas é marcada pela repetição de seus nomes ‘Pater, Filius, Spiritus sanctus’: esses
são, então, ‘tres res’ que não se pode confundir e que têm sua consistência própria”.154
Certeau prossegue: “o Pai sozinho engendra o Filho, o Pai e o Filho são a fonte comum do
Espírito”.155 Eis o desenho final do argumento: “o Padre engendra, o Filho é engendrado, o
Santo Espírito é o Espírito do Pai e do Filho”.156
Essa terminologia hegeliana não é isolada. Hegel gozou de posição central na
formação filosófica dos jesuítas no pós-guerra. Sua introdução ocorria em grande medida a
partir do ensino de Joseph Gauvin e seu seminário sobre a Fenomenologia do Espírito, onde o
texto era lido no alemão. Dentre os seus alunos estava Michel de Certeau.157
Um nome de destaque quando se trata da filosofia hegeliana no contexto jesuíta da
filosofia da história é o já comentado Gaston Fessard, espectador assíduo dos seminários de
Kojève nos anos 1930. Embora marcado profundamente pela leitura de Kojève, o “advogado
mais convincente de um hegelianismo cristão”158 não poderia seguir sua orientação existencial
e ateia, pois ela desconsiderava que o hegelianismo tinha por alicerce certas verdades
fundamentais do cristianismo. E mesmo ele que, talvez, tenha sido o mais hegeliano dos
jesuítas, declarou certa vez ser “completamente anti-hegeliano”.159 Como ele seria
estritamente hegeliano se a razão de ser da interpretação cristã da história não pode ser outra
senão o magistério do Cristo como preservado pela Igreja?

152
“[...] saint Augustin ne ferme pas la porte à cette differenciation [sic], alors même qu’il a pour objet principal
l’unité de Dieu-Trinité”. CERTEAU, Michel de. Doctrine trinitaire de saint Augustin dans la lettre à consentius,
texto manuscrito, sem data, caixa 5, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves, p. 9 (verso da página). Grifo
nosso.
153
“[...] ‘l’essence divine n’est pas autre chose’ […] ne revient pas à une affirmation d’identité absolute ; il reste
donc une certaine différence [sic] entre la trinité et Dieu, […] entre les trois personnes et Dieu […]”. Ibid., p. 9
(verso da página).
154
“[...] distinction des personnes est marquée d’abord par la repetition [sic] de leur nom ‘Pater, Filius, Spiritus
Sanctus’ : ce sont donc ‘tres res’ qui on ne peut pas confondre, et qui ont leur consistance propre”. Ibid., p. 10.
155
“le Père seul engendre le Fils, le Père et le Fils sont la source commune […] de l’Esprit […]”. Ibid., p. 10.
156
“le Père engendre, le Fils est engendré, le Saint Esprit est l’Esprit du Père et du Fils […]”. Ibid., p. 10 (verso
da página).
157
GIARD, Luce. Mystique et politique, ou l’institution comme objet second. In: GIARD, Luce; MARTIN,
Hervé; REVEL, Jacques. Histoire, mystique et politique: Michel de Certeau. Grenoble: Jérôme Millon, 1991. p.
28; DOSSE, François. (2002) Michel de Certeau: le marcheur blessé. Paris: La Découverte, 2007. p. 66.
158
FOUILLOUX, Étienne. (1998) Une Église en quête de liberté: la pensée catholique française entre
modernisme et Vatican II (1914-1962). Paris: Desclée de Brouwer, 2006. p. 236.
159
“je suis tout à fait anti-hégélien”. FESSARD Apud SALES, Michel. Avertissement de l’éditeur. In:
FESSARD, Gaston. Hegel, le christianisme et l'histoire. Textes et documents inédits présentés par Michel Sales.
Paris: Presses universitaires de France, 1990. p. 14.
149

Embora haja uma teologia, no sentido filosófico do termo, contida na filosofia da


história hegeliana e recursos filosóficos auxiliem o fazer da teologia, à primeira não convém a
visão cristã tradicional de um Deus absoluto, eterno, existindo independente do mundo,
sendo o mundo apenas o meio de sua revelação.160 Tampouco prescreve qualquer arché ou
estrutura cristológica161 da qual dependa ou seja consequência a realização histórica do
espírito absoluto, diferença protocolar entre as abordagens filosófica e a teológica da história.
Para um teólogo da história como Jean Daniélou, a própria filosofia moderna remonta
a raízes cristãs. Em Les orientations presentes de la pensée religieuse,162 Daniélou chamou
atenção para o substrato histórico dos sistemas patrísticos e para a centralidade do tema da
história na linguagem filosófica moderna de Hegel a Bergson. A questão foi aprofundada em
Christianisme et histoire,163 onde o jesuíta defende que se a concepção do tempo como
duração criativa é uma aquisição moderna, é ao cristianismo que o pensamento moderno deve
a conquista. Daniélou recorre a Étienne Gilson, quem já mostrara a contribuição cristã à
inovação da concepção de tempo:
A primeira consequência do cristianismo é a substituição de uma nova noção
do sentido da duração àquela de ciclo, ou eterno retorno, a qual o
necessitarismo grego se acomodava tão bem... A ideia de mudança
progressiva foi formulada com uma força extrema por Santo Agostinho e
pelos pensadores que se inspiram nela.164
Algo muito próximo disso que vemos em Daniélou encontra-se presente em Michel de
Certeau. Nas conferências intituladas Perfection et charité, datadas da última semana de
dezembro de 1956, ele remonta a noção de progresso à tradição cristã, tomando como mote a
inversão operada por Hegel. 165
A defesa de um critério cristão como limite da aproximação com a filosofia está na
base da preferência que Henri de Lubac mostrou por Kierkegaard em detrimento de Hegel.
Lubac vê no Pós-escrito de Kierkegaard “uma das obras-primas da literatura filosófica e
religiosa de todos os tempos”.166 Com ela, Kierkegaard restabeleceu a fronteira entre a fé e a
especulação e reivindicou o caráter específico da fé cristã contra o intelectualismo hegeliano.

160
Visão que talvez não corresponda, por exemplo, com a “nova teologia” de um Lubac.
161
Para a presença de Cristo e do cristianismo na filosofia de Hegel, ver HYPPOLITE, Jean. (1968) Introduction
à la philosophie de l’histoire de Hegel. Paris: Éditions du Seuil, 1983. p. 59-64.
162
DANIÉLOU, Jean. Les orientations présentes de la pensée religieuse. Études, t. 249, p. 6-21, avril-juin 1946.
163
DANIÉLOU, Jean. Christianisme et histoire. Études, t. 254, p. 166-184, juillet-sept. 1947, p. 166.
164
“La première conséquence du christianisme, c'est la substitution d'une nouvelle notion du sens de la durée à
celle de cycle, ou dé retour éternel, dont le nécessitarisme grec s'accommodait si bien...L'idée de changement
progressif a été formulée avec une force extrême par saint Augustin et les penseurs qui s'en inspirent”. GILSON
apud Ibid., p. 166, nota 1.
165
CERTEAU, Michel de. Perfection et charité, texto datilografado, 26-31 de dez. de 1956, caixa 2, Arquivo da
Companhia de Jesus, Vanves, p. 57.
166
LUBAC, Henri de. (1944) O drama do humanismo ateu. Itapevi: Nebli, 2015. p. 101.
150

Sua luta contra o hegelianismo pretendia salvar o paradoxo inerente ao cristianismo, capital
ao pensamento de Kierkegaard.
A filosofia da fé contida no Pós-escrito quis “demonstrar em que condições o
indivíduo recebe em si o mistério (o paradoxo, na expressão de Kierkegaard), sem o despojar
do seu caráter precisamente misterioso”.167 O mistério não se dá sob a forma de um sistema
racional, mas como uma presença real de Deus no indivíduo, e a fé é a esfera onde ele sente o
paradoxo.
Logo, o crente não pode ser meramente alguém que especula, que tenta conhecer os
desígnios de Deus. Ele não busca ultrapassar a fé, mas penetrar mais fundo nela, realizá-la
melhor. Sabe “que o cristianismo não é um ‘segredo fortuito’, mas que é um ‘segredo
essencial’ e que ‘não quer, de forma nenhuma, ser compreendido’”.168
Embora Lubac mostre-se resistente ao que lhe parece ser a manutenção do cristão
“num estado de tensão paradoxal”169 que não vê indicado no Evangelho, é notável que a
questão do paradoxo tenha ganhado cada vez mais centralidade em sua obra. Para o jesuíta, o
paradoxo é orientado à plenitude, o que não quer dizer que no ponto em questão escolhe
Hegel a Kierkegaard, a não ser que por “escolher” entendamos uma familiaridade bem
humorada entre a síntese dialética e “seu irmão risonho”, o paradoxo. A dialética concilia os
opostos, exclui a diferença, realiza a síntese; o paradoxo, mais modesto, preserva as antíteses
em constante tensão e interação: “o paradoxo é precisamente busca e expectativa de
síntese”,170 a expressão, sempre incompleta, do mistério.
Parece ser exatamente essa a maneira certeauniana de reduzir a termo seu diálogo com
a filosofia hegeliana. A familiaridade da experiência espiritual nos escritos de Certeau com o
pensamento de Hegel incorpora mais “modestamente” a relação entre os contraditórios que
aquela configuração sintética observada na dialética hegeliana – e no trabalho manuscrito
sobre Agostinho. Essa modéstia está ancorada na necessidade teológica do paradoxo cristão
frente ao mistério e na fundamentação teológico-cristã disponível entre os jesuítas de sua
época e com os quais compartilha uma linguagem comum, sobretudo via orientação e
vocabulário lubacianos, como já abordado até aqui.
Os pares dialéticos que podemos encontrar em Certeau e de algum modo remeter a
Hegel – antes e depois, particular e universal, multiplicidade e unidade, indivíduo e sociedade,

167
LUBAC, Henri de. (1944) O drama do humanismo ateu. Itapevi: Nebli, 2015. p. 102.
168
Ibid., p. 105.
169
Ibid., p. 110.
170
LUBAC apud GIBELLINI, Rosino. A teologia do século XX. Tradução de João Paixão Netto. São Paulo:
Loyola, 2007. p. 190.
151

etc. – estão situados em sua leitura da espiritualidade e, por isso, remetem a certo absoluto
necessário. Se é possível ver Certeau falando em dialética espiritual, dialética da experiência,
dialética da história, igualmente vemos esse rumor dialético sendo circunscrito às
delimitações teológicas aprioristicamente cristãs presentes em suas afirmações sobre a
história. E como seria diferente considerando que para Certeau a “linguagem de Deus é
interior à linguagem do homem”171 e eles jamais são “capazes de alcançar o seu mistério”172?
Um indicativo fortemente hegeliano por ser constatado na autocrítica de Certeau ao
artigo de 1956 sobre a experiência religiosa, onde estão identificadas dialética e negatividade.
Ele o faz tratando particularmente da linguagem no contexto da experiência espiritual: “Há
momentos sem linguagem e sem duração que se apresentam justamente como indizíveis”.173
Em tais momentos está presente “a dialética da linguagem, sua negatividade”.174 Nas
experiências místicas têm-se “o momento absoluto dessa negatividade, e estes ‘toques’
divinos são ‘ditos’ como ‘não podendo ser ditos’”.175 Desse modo, ao ser “Deus
compreendido como incompreensível”176 desvela-se também a “essencial negatividade de
toda compreensão”.177 O silêncio revela tanto o que participa da linguagem quanto a própria
natureza da linguagem.
Dizer o indizível. Compreender o incompreensível. Pares nos quais já é possível
entrever como a dialética, isto é, a face negativa inexorável a cada aspeto da experiência, não
produz sínteses. Na relação de algo com seu contrário permanece uma dessemelhança
irreconciliável. Uma “tese” e uma “antítese” jamais teriam suas diferenças superadas sob a
forma de uma “síntese”, por mais temporária que fosse. Isso porque cada “duração” da
experiência humana é em função da expectativa de efetivação/conhecimento do sentido
espiritual relativo a uma presença imprevisível, gratuita e transcendente.
Para continuar pensando sobre o caso da linguagem, consideremos que as palavras
humanas trazem, escondida e revelada, a Palavra de Deus. Quanto a essa relação Certeau é
categórico sobre a impossibilidade de qualquer síntese, se a entendemos como etapa inferior

171
“[...] langage de Dieu est intérieur au langage de l’homme”. CERTEAU, Michel de. Aspects de la Prière.
Christus, t. 4, n. 13, p. 132-141, janv. 1957, p. 134.
172
“[...] capables de porter ton mystère”. Id. Les pèlerins d’Emmaüs. Christus, t. 4, n. 13, p. 56-63, janv. 1957,
p. 62.
173
“Il y a des moments sans langage et sans durée [...] qui se présentent justement comme indicibles”.
CERTEAU, Michel de. Auto-critique! L’expérience religieuse. Notes (3 septembre 1956). In : GIARD, Luce
(Dir.). Le voyage mystique: Michel de Certeau. Paris: RSR/Cerf, 1988. p. 50. Grifo do autor.
174
“[...] la dialectique du langage, sa négativité [...]”. Ibid., p. 50. Grifo nosso.
175
“[...] le moment absolu de cette négativité, et ces « touches » divines sont « dites » comme « ne pouvant être
dites ». Ibid., p. 50.
176
“Dieu compris comme incompréhensible [...]”. Ibid., p. 50.
177
“[...] l’essentielle négativité de toute compréhension”. Ibid., p. 50.
152

da consciência rumando a outras superiores, estado atual de um espírito absoluto em processo


de realização imanente à história: “Deus não é capturado na reciprocidade de uma discussão
humana. Ele escapa à interlocução e não dá ‘resposta’”.178
Tal constatação não significa dizer que “ele [Deus] não esteja lá!”. Mas sim “que ele
tem a iniciativa absoluta”.179 O paradoxo da palavra divina revelada e escondida anuncia a
linguagem humana como “eco e a duplicação de uma palavra que, na ‘discussão’ entre o
homem e Deus, é sempre misteriosamente a primeira e a única dita”.180
Em outro lugar Certeau desdobra a questão dizendo que “a verdade do cristão se
mostra em modo histórico”.181 Ela confirma-se progressivamente “no curso de um desenrolar
onde aparecem cada vez mais a gratuidade e a imprevisibilidade da fidelidade divina”. 182 E eis
que mais uma vez a experiência espiritual aparece comportando uma dialética não como
síntese, mas como paradoxo: “a segurança provém de um progresso não da possessão, mas da
dependência”.183 Saber pressentir e adotar seus os signos gratuitos, reconhecer o que está em
conformidade com ele e discernir o modo pelo qual age é a definição mesma do “sentido
espiritual da história”184.
Isso quer dizer que a história não se realiza dialeticamente como processo da razão
imanente do absoluto, mas é realizada por um absoluto ausente/transcendente, pela via da
graça de um dom presente. A negatividade de Deus está dialeticamente para a história humana
como sua pura positividade está para si mesma enquanto eternidade.
A lucidez cristã deve então corresponder à inteligência desse mistério, à atenção à
“paradoxal e ardente verdade”.185 A interpretação reconhece a intervenção divina para logo
em seguida discernir que ele está além dessa circunstância: “quem o encontrou, o perdeu de
novo”.186

178
“Dieu n’est pas pris dans la réciprocité d’une discussion humaine. Il échappe à l’interlocution et ne donne
pas de « réponse » […]”. Id. Aspects de la Prière. Christus, t. 4, n. 13, p. 132-141, janv. 1957, p. 137.
179
“Ce n’est pas qu’il ne soit là ! C’est, au contraire, qu’il a l’initiative absolue”. Ibid., p. 137.
180
“[…] l’écho et le redoublement d’une parole qui, dans la « discussion » entre l’homme et Dieu, est toujours
mystérieusement la première et la seule dite”. Ibid., p. 137.
181
“[…] la vérité du chrétien se montre-t-elle sous mode historique”. Id. Les lendemains de la décision: la
“confirmation” dans la vie spirituelle. Christus, t. 4, n. 14, p. 187-205, avril 1957, p. 203.
182
“[…] au cours d’une déroulement où apparaissent de plus en plus la gratuité et l’imprévisibilité de la fidélité
divine”. Ibid., p. 203.
183
“L’assurance provient d’un progrès non dans la possession, mais dans la dépendance”. Ibid., p. 203.
184
“Le sens spirituel de l’histoire [...]”. Ibid., p. 201.
185
“[…] paradoxale et brûlante vérité”. Id. Des enfants avisés. Christus, t. 10, n. 38, p. 165-177, avril 1963, p.
172. Grifo nosso.
186
“Qui l’a rencontré, le perd de nouveau”. Ibid., p 170.
153

Para Certeau, encontrar e perder, saber e surpresa, possessão e despossessão, longe de


serem setores opostos, “se identificam cada vez que há [para o cristão] um evento
verdadeiro”.187
Mas qual é a medida dessa “identificação”? Não é a da síntese: “Deus se comunica em
nós ‘roubando’”.188 Chegando “como um ladrão”, Deus arranca do cristão isto que crê possuir
e o faz abrir o coração ao “paradoxo da fé”:
A fé nos situa simultaneamente em Deus e diante dele: como suas criaturas e
seus interlocutores; estranhos ao Mestre e, ainda assim, nascidos dele;
capazes de responder-lhe e ouvi-lo, mas incapazes de entender tudo que nos
fala sobre ele. 189
É como se a sucessão da negação (antítese/esconder-se da presença) e da negação da
negação (síntese/presença feita presente) fossem unificadas em um só momento no qual a
negação da negação já é ferida pelo negativo que a despossui antes mesmo que uma nova
superação ocorra, condição paradoxal a ser repetida até que promessa se cumpra. Dito de
outro modo, ao invés da superação temporária da forma “um ou outro” (negação antitética)
pela forma “um e outro” (negação sintética), ter-se-ia a forma paradoxal “um e outro é um
outro”. Nesse sentido, a dialética torna-se a pura violência negativa que todo polo positivo de
uma relação já sofre virtualmente ou atualmente.
Nesse sentido, embora cada gesto cristão seja mais que mero gesto de partida, ele
nunca é a localização do absoluto. Ele expressa que “Deus está aí também”,190 “já
manifestado em sua glória”,191 e persevera na “humilde peregrinação”,192 como quem diz:
“não, Deus não está aí”193: um e outro é um outro.
Dessa maneira, espiritualmente falando, a experiência não pode dar-se senão numa
tensão paradoxal entre a positividade da religião (o saber no qual toda experiência se unifica,
representado pelo magistério de Cristo, pela Igreja, sua herdeira, pela tradição e pelas
experiências espirituais portadoras de autoridade ao longo da história) e a negatividade da
existência humana (um não saber equivalente ao mistério, teologicamente inerente ao tempo,
à memória, à linguagem e à história).
187
“[...] s’identifient chaque fois qu’il y a pour nous un véritable événement”. CERTEAU, Michel de. Christus, t.
12, n. 45, p. 25-41, janv. 1965, p. 39-40.
188
“Dieu se communique en nous « voulant » […]”. Ibid., p. 40.
189
“La foi nous situe simultanément en Dieu et devant lui: comme ses créatures et ses interlocuteurs; étrangers
au Maître et pourtant nés de lui; […] capables de lui répondre et de l’entendre, mais incapables de comprendre
tout ce qui nous parle de lui”. Id. Expérience chrétienne et langage de la foi. Christus, t. 12, n. 46, p. 147-163,
avril 1965, p. 158.
190
“[...] Dieu est là aussi”. Id. L’homme en prière, « cet arbre de gestes ». (1964). In: CERTEAU, Michel de.
(1987) La faiblesse de croire. Texte établi et présenté par Luce Giard. Paris: Éditions du Seuil, 2003. p. 36.
191
“[...] déjà manifesté dans sa gloire […]”. Ibid., p. 36.
192
“[...] humble pèlerinage”. Ibid., p. 36.
193
“[...] Dieu n’est pas là […]”. Ibid., p. 36.
154

Essa produção inscreve uma diferença hegeliana no plano expressivo comum à


teologia lubaciana, quando levada em conta a apologia cristã anti-Hegel feita por Lubac e as
resistências às consequências teológicas da filosofia da história da parte dos jesuítas, mesmo
os mais inclinados ao hegelianismo.
No entanto, o que há de mais hegeliano nesses textos do “primeiro” Certeau tem
função de expressar à feição humana de uma realidade que é a do mistério. A dialética, o
estar-sempre-despossuído-do-outro, adentra o campo teológico cristão à medida que a
negatividade é, em última instância, a ausência de Deus.
Em função de sua dependência ao modelo interpretativo revelado pelo mistério do
Cristo, historicamente ausente e espiritualmente presente, o movimento dialético adota a
forma paradoxal, não sintética. Os pares dialéticos aparecem, então, como os componentes do
paradoxo, convertendo o hegelianismo ao critério cristão que é condição da teologia da
história.
Isso quer dizer que a diferença constituída pela dialética é inscrita apenas como rastro
dessa alteridade ao apagá-la enquanto tal. Dessa maneira, expressa, em uma linguagem
hegeliana, uma teologia que é em linhas gerais lubaciana. E ao fazê-lo, o que singulariza
Hegel frente à teologia da história – sua independência da revelação cristã – perde-se ao ser
incluso e enraizado nesse plano teológico outro. Passa então a integrá-lo, a falar sua língua,
agora imbuído de uma semântica alheia àquela que lhe era familiar.
Mas o que a princípio parece sua redução testemunha justo o contrário. O apagamento
daquilo que é sua diferença remete à condição de possibilidade desse deslizamento, cuja
ausência não asseguraria ao diferente já constituído a diferencialidade que permite diferir e
devir semelhança (filosofia hegeliana teologia lubaciana).
A dessemelhança é acomodada, adequada, mimetizada porque difere. Logo, ao ser
iterada em um plano teológico que não lhe é propriamente familiar, essa marca hegeliana
impressa na teologia lubaciana é ela também marcada, pois ela apaga-se como tal, em sua
diferença, restando a ela apenas o rastro de sua anterioridade.
Desse modo, a remarca hegeliana (seu mimetismo) remonta à economia da diferença
(diférance) que a escritura certeauniana rascunha entre pertencimentos e regularidades
históricas, naqueles primeiros anos em que sua linguagem espiritual comungava das
renovações teológicas das duas décadas anteriores e sua atividade intelectual estava
intimamente identificada com a Companhia de Jesus.
155

Capítulo III
Um trabalho teológico em transição

A atuação de Certeau foi produzida no cruzamento de referências herdadas da tradição


cristã e jesuítica, forjada na participação na cultura religiosa de uma época e expressada por
meio de uma linguagem compartilhada em um tempo. Agostinho de Hipona, Inácio de
Loyola, Pierre Favre, Jean-Joseph Surin e Henri de Lubac, são diversas as frentes de filiação
espiritual por meio das quais Certeau vai incorporando recursos para sua atuação como padre
e intelectual da Companhia. Certamente, essa experiência religiosa foi determinante para a
existência de uma modalidade teológica de pensar a história em seus múltiplos empregos no
conjunto do material nos primeiros anos de sua atividade. Ela aparece a nível providencialista,
cristológico, escatológico, eclesiológico e pedagógico, para citar algumas linhas exploradas.
Em 1963, Certeau comentava com Lubac e com Gouhier sua dificuldade em retomar a
escrita de sua tese sobre a experiência e a linguagem na doutrina mística de Surin. No ano
anterior, ocorrera a mudança de sua posição na equipe editorial da Christus, quando passou a
diretor adjunto ao lado de François Roustang. A revista chegou a imprimir mais de dez mil
exemplares por edição, tamanho era sua expressividade uma década depois de sua criação. É
de se supor o aumento das demandas editoriais a dar conta naquele momento, acrescidas às
suas demais tarefas religiosas, em uma época em que ele reafirmava sua identificação com a
ordem. Em fevereiro de 1963, o jesuíta fez seus últimos votos, ocasião da incorporação
definitiva na Companhia. Ele cumpriu a solenidade na Igreja de santo Inácio, em Paris, doze
anos após ter iniciado sua jornada junto aos jesuítas.
Uma tensão entre renovação e fidelidade esteve vastamente presente nos debates
teológicos da segunda metade do século XIX e na primeira metade do século XX. Ela foi o
signo de uma época dividida entre a modernidade e a tradição católica, cujos efeitos se
fizeram sentir de diferentes modos em nomes como Newman, Loisy, Blondel, Lubac, dentre
outros. O projeto editorial da Christus tomou parte desse desafio desde sua inauguração nos
anos 1950, propondo o diálogo com as transformações culturais modernas pela via do retorno
às fontes da espiritualidade inaciana e da fidelidade ao magistério da Igreja.
O “primeiro” Certeau não saiu ileso desse debate envolvendo toda uma época. Após
alguns anos em que suas pesquisas e publicações foram majoritariamente no domínio da
história (1958-1962), a questão começava a ganhar centralidade em seus textos sobre o século
XVII e sobre a vida espiritual no presente, a partir de 1963.
156

No século XVII, Certeau deparou-se com um conjunto de renovações espirituais


marcadas por uma ruptura com a tradição, ao mesmo tempo em que nela ancoradas. Vai
crescendo a consciência de que abraçar o mundo significa em alguma medida uma
modificação do que recebe do passado cristão, ainda que isso seja em nome de uma mais alta
fidelidade a ele.
A inseparabilidade entre renovação e fidelidade é a pertinência teológica do século
XVII para o século XX. Uma coexistência necessária entre passado cristão e presente
descristianizado ganhou nitidez nos escritos de Certeau sobre a espiritualidade
contemporânea. O jesuíta também dava sinais de interesse em uma noção crítica de tradição
que seria fruto da renovação espiritual do século XVII. Além disso, a universalidade do
magistério da Igreja era uma preocupação teológica encontrada naqueles estudos históricos e
em seus demais textos.
Simultaneamente, em seus artigos sobre a prática cristã na atualidade, na Christus,
aparece a afirmação de uma necessária crítica à tradição cristã. Esses textos estão, inclusive,
mais explicitamente afiliados à noção moderna de história. Contudo, essa crítica e essa
historicidade são absorvidas na defesa da tradição como dilatação do passado – termo
atribuído à doutrina espiritual de Surin, em sua introdução ao Guide Spirituel. Não há
contradição entre o saber da Igreja e a renovação da experiência cristã em sua abertura às
demandas modernas. Portanto, essa crítica postula teologicamente uma continuidade como
condição de uma universalidade do cristianismo.
Certeau já dá maior destaque à afirmação da renovação, defende uma relação crítica
com a tradição, apreende certas limitações impostas ao cristianismo no século XX, pensa mais
deliberadamente segundo a compreensão moderna de história e atribui uma funcionalidade
crítica ao trabalho do historiador em relação à reflexão teológica. No entanto, determinados
signos forjam a imagem de uma tradição dilatada, significando o esforço do padre em
preservar sua identidade jesuítica e a universalidade da Igreja. O alcance das urgências,
considerações críticas e mutações vistas nesses escritos encontram seus limites nas fundações
teológicas que o constituíram intelectualmente.
Essa tênue conciliação entre abertura ao presente e catolicidade cedeu lugar a outra
forma de pensar a continuidade, em meados de 1966. Não há mais garantias de uma fidelidade
sem contradições com o saber da Igreja nas reinterpretações cristãs modernas. Extingue-se o
postulado teológico da história que identificava seus textos ao ambiente intelectual dos
jesuítas no pós-guerra e ao pensamento teológico de Henri de Lubac. Transição entre dois
momentos distintos, a mobilidade em seus textos foi preparando o terreno para essa
157

transformação. Essa mudança foi efetivada pela crítica histórica da tradição e pela emergência
de outro modo de recorrer à descontinuidade histórica na prática teológica.
Tratarei as consequências dessa mudança a partir de uma concepção da relação entre
passado e presente que chamarei de tradição fraturada. Essa forma de pensar a tradição passa
pela substituição de um postulado teológico da continuidade por um postulado histórico da
descontinuidade. O esforço em pensar a especificidade cristã de determinada experiência
imersa na imanência histórica ganha espessura no gesto teológico certeauniano da dupla
diferença. Veremos como o “e” do estar entre passado e presente é levado mais longe que nos
anos anteriores. O personagem que entra em cena é a “dupla ruptura” com a tradição e com
dada circunstância histórica. Para estar com o presente passa a ser preciso romper com o
passado e para estar com o passado torna-se necessário romper com o presente.
Por volta de 1966 e 1967, esse deslocamento também aparece nos documentos
disponíveis nos arquivos jesuítas. Essa transformação será vista por intermédio do par
docilidade/audácia, lógica própria da espiritualidade inaciana segundo Certeau. A docilidade e
a audácia de Inácio-Certeau e o gesto teológico que delas se alimenta serão estudados na
fórmula “união na diferença”, nas urgências editoriais religiosas e na reformulação da
formação dos jesuítas como pensadas por Certeau.
Se comparamos a maneira de relacionar realidade histórica e discurso teológico nesses
materiais pastorais com aqueles estudados no primeiro e no segundo capítulos, podemos
estabelecer duas mudanças importantes. Em primeiro lugar, o modo como ele relaciona
fidelidade, conversão e caridade não passa por uma progressão interior/histórico-salvífica.
Trata-se de acolher a alteridade do presente e abraçar corajosamente o risco representado pela
exigência de ser “outramente” cristão. Em segundo lugar, a teologia da história desaparece em
prol de uma teologia na história produzida por seu gesto teológico.

3.1 O século XVII: renovação e fidelidade

Michel de Certeau retomará diversas vezes um ponto apenas mencionado em sua


introdução ao Guide Spirituel de Surin: a crise que assolou o cristianismo no século XVII.
Adrien Demoustier acentuou a importância do contexto de ruptura do século XVII para a
abordagem histórica de Michel de Certeau.1 Jacques Le Brun o relacionou com “uma das
grandes intuições históricas de Michel de Certeau” já encontrada na edição do Mémorial de

1
DEMOUSTIER, Adrien. Histoire, institution et mystique: jésuites des XVI e et XVIIe siècles. In: GIARD, Luce
(Dir.). Le voyage mystique: Michel de Certeau. Paris: RSR/Cerf, 1988. p. 56.
158

Favre: os séculos XVI e XVII como “momento de ruptura, passagem de uma cosmologia e de
uma teologia ao mundo da experiência subjetiva, o progresso espiritual não sendo mais da
ordem do cosmos, mas o ‘itinerário do sujeito em direção ao seu centro’”.2
Se a ruptura é uma constante desde os estudos sobre o século XVI de Favre, cabe
precisar as diferentes expressões sobre ela. Deve-se averiguar as nuances desse processo
histórico e questionar como os seus desafios são respondidos espiritualmente de maneiras
distintas nas experiências estudadas por Certeau. Esse tipo de arguição permite verificar um
redirecionamento do significado da ruptura simultaneamente ao aparecimento de novas
leituras espirituais entre os místicos que Certeau estuda. A isso corresponde certa mudança
teológica gestada na historiografia de Certeau entre 1963 e 1966.
No que diz respeito ao século XVI, o desafio ao qual os católicos se veem impelidos a
enfrentar é a dissolução da autoridade universal da Igreja, cujo eco retumbante é a reforma
protestante. Nesse início da modernidade, o discurso reformista ganhou força entre os
católicos, seja via reforma institucional ou via reforma interior no caso dos jesuítas e de Pierre
Favre. Ao ambiente histórico de ruptura equivale a reforma espiritual como defesa da
universalidade da Igreja. A espiritualidade favriana faz um forte apelo à continuidade com a
tradição católica, como Certeau acentuou em seus comentários sobre o Mémorial. Essa
universalidade da Igreja em circunstâncias históricas particulares está em sintonia com a
teologia da história contida no entendimento de Certeau sobre a experiência religiosa nos anos
1950.
Um problema da fragmentação da cristandade foi seguido por um problema da
descristianização (ou secularização) da cultura no século XVII. Não é mais a questão de uma
Europa que não se percebe universalmente como católica, mas de uma sociedade que não se
pensa unicamente enquanto religiosa. A resposta espiritual a essa sociedade dividida entre a
linguagem religiosa e não religiosa será um conjunto de renovações espirituais cujo acento
estará na ruptura com a tradição como ela se encontrava preservada e ensinada pela Igreja.
Essas renovações se processarão sempre em nome de uma mais alta fidelidade à tradição,
estando em jogo o conflito entre diferentes ideias do que seria essa “santa” antiguidade à qual
se prestava adoração.
Alguns aspectos se destacam nesses estudos de Certeau. A espiritualidade
praticamente se confunde com a dinâmica da renovação e da fidelidade. Uma relação
produtiva entre o passado cristão e o presente moderno desposta em suas interpretações sobre

2
LE BRUN, Jacques. Le secret d’un travail. In: GIARD, Luce (Dir.). Le voyage mystique: Michel de Certeau.
Paris: RSR/Cerf, 1988. p. 86.
159

as experiências místicas – o problema teológico da situação do cristão no mundo parece ser


precisada em função da particularidade histórica da espiritualidade no século XVII. Uma
noção menos simplista de tradição será saldada por Certeau como contribuição daquele
século. Uma inovação no trabalho do historiador acompanha esses deslocamentos: ele adquire
uma pertinência crítica para a reflexão teológica no presente. Contudo, isso não exclui a
pressuposição de uma continuidade como postulada em seus textos anteriores. Ao contrário,
Certeau mostra claramente o desejo de pensar uma renovação da fidelidade que não ponha em
questão a universalidade da Igreja.
Tomemos como ponto de partida seu Politique et Mystique: René d’Argenson (1596-
1651), na Revue d’Ascétique et de Mystique, publicado no início de 1963.3 Esse artigo foi
escrito a partir do levantamento documental feito para uma apresentação no seminário de
Roland Mousnier na Sorbonne. De sua extensa análise, interessa-nos a definição do contexto
de ruptura do século XVII e o modo como ele estava atrelado à formulação política e mística
de René d’Argenson.
René de Voyer, senhorio de Argenson, foi advogado, conselheiro do rei e intendente
sob o reinado de Luís XIII, quem governou entre 1610 e 1643. René d’Argenson também
ocupou o cargo de intendente durante o período de regência que antecede o reinado de Luís
XIV, sendo nomeado embaixador em Veneza no fim de sua vida. Essa exitosa carreira
política foi acompanhada de uma fervorosa devoção religiosa. Ele foi ativo na Companhia do
Santo Sacramento,4 escreveu obras religiosas e foi ordenado padre no ano de sua morte.
Seus escritos estão entre duas épocas da literatura religiosa,5 sua experiência situada
em uma “sociedade dividida” (societé divisée): “ele possui duas linguagens porque o religioso
e o profano já representam, em sua própria experiência, dois mundos separados”. 6 O século
XVII realiza o corte entre o mundo que fala a linguagem religiosa do passado e a linguagem
não religiosa do presente. Essa situação se inscreve na coexistência da doutrina espiritual e da
atividade política de René d’Argenson, em uma época na qual esta já não podia ser deduzida
daquela.
Tanto na esfera religiosa quanto na esfera política, estão em jogo atitudes essenciais
expressadas por dois vocabulários distintos segundo a razão de uma época. Enquanto o fiel
3
CERTEAU, Michel de. Politique et mystique: René d’Argenson (1596-1651). Revue d’Ascétique et de
Mystique, année 39, n. 153, p. 45-82, janv./mars 1963.
4
criada no contexto de reforma católica do século XVI, a Companhia do Santo Sacramento era consagrada à
devoção eucarística, a atividade missionária e a limitação da difusão do protestantismo. São conhecidos os seus
ataques ao Tartufo de Molière. A sociedade religiosa foi suprimida por Luís XIV em 1666.
5
CERTEAU, op. cit., p. 47.
6
“Il a deux langages parce que le religieux et le profane représentent déjà, dans son expérience même, deux
mondes séparés”. Ibid., p. 81.
160

deposita sua fidelidade na relação imediata com a vontade de Deus, o intendente é guiado
diretamente pelas determinações do rei.
Essa mercê à vontade soberana em ambas as ordens envolve certa desvalorização das
instâncias intermediárias. No plano da vida espiritual, isso parecia significar a pouca
relevância das instituições hierárquicas da Igreja. Elas são respeitadas, sem por isso exercer
papel central em sua doutrina.7
Esse exame de Certeau sobre o paralelismo da política e da espiritualidade tem um
resultado distinto do que encontramos em sua explanação sobre Favre. No jesuíta do século
XVI, a intuição interior equivalia a uma fidelidade mais elevada à tradição e à Igreja, o que
não poderia ser dito de René d’Argenson: “[é sua] característica a ausência quase total dos
sacramentos, da hierarquia ou do Antigo Testamento, isto é, da realidade social e cósmica da
religião”.8
Não é por acaso que nesse texto Certeau associa sua reflexão sobre o político e místico
francês à ideia de “renovação” cristã que será doravante a sua. Certeau conclui o artigo
denotando uma preocupação espiritual a partir de então recorrente em seus textos sobre o
século XVII e sobre o século XX: “sem dúvida seria necessário examinar se tal cisão não é a
‘estrutura’ da sociedade na qual os cristãos, por um esforço sempre renovado, procuram então
viver e pensar com verdade”.9
Certeau toma a autonomização dos domínios religioso e profano como um dado
fundamental que se imporá aos indivíduos do século XVII. A questão reaparece em seu De
saint-Cyran au jansénisme: conversion et réforme, artigo na Christus em julho de 1963.
Certeau expõe alguns aspectos históricos do jansenismo considerados espiritualmente
pertinentes, explorando mais de perto a observação feita em sua conclusão no texto sobre
René d’Argenson.
Certeau tinha consciência da diferença histórica entre os séculos XVI/XVII e o século
XX, mas admitia a possibilidade de um tempo fornecer espiritualmente algum conteúdo
preciso ao outro. O trabalho com a história das doutrinas místicas era motivada por esse
desejo de atualidade espiritual. Era o caso da convivência não excludente entre a participação
em circunstâncias históricas particulares e a fidelidade à Igreja, como vista em sua atuação
como padre, em seus artigos teológicos e em sua aproximação teológica ao Mémorial de

7
CERTEAU, Michel de. Politique et mystique: René d’Argenson (1596-1651). Revue d’Ascétique et de
Mystique, année 39, n. 153, p. 45-82, janv./mars 1963, p. 80.
8
“[…] comme caractéristique l’absence quasi-totale des sacrements, de la hiérarchie ou de l’Ancien Testament,
c’est-à-dire de la réalité sociale et cosmique de la religion”. Ibid., p. 80.
9
“Et sans doute faudrait-il examiner si une telle scission n’est pas la « structure » de la société dans laquelle les
chrétiens, par un effort toujours renouvelé, cherchent alors à vivre et à penser en vérité”. Ibid., p. 82.
161

Favre.
A esse aspecto teológico “positivo” acrescentar-se-á um uso “negativo” do
conhecimento histórico. Para Certeau, o tema do jansenismo no século XVII envolve disputas
que continuam causando separações no presente, querelas ainda em funcionamento porque
tocam em “orientações espirituais fundamentais”.10 Desse modo, quando o trabalho dos
historiadores informa algo sobre esse passado cristão, ele acarreta consequências à prática
espiritual do presente. É essa consequência que denomino uso negativo do conhecimento
histórico: a retomada de uma afirmação do historiador como negação e superação de algo
persistente na prática e na reflexão espiritual:
Os historiadores nos obrigam a deixar essas posições de combate tornadas
pouco a pouco em reflexos. Reconstruindo a história antiga, eles nos fazem
compreender alguns dos problemas religiosos colocados desde o XVII pelo
início da descristianização. Reconduzindo à objetividade as querelas antigas,
eles nos libertam de nossas reações superficiais. Eles “desmitologizam” esse
passado reconstruído por necessidades imediatas. 11
O aparecimento desse valor teórico da história não excluiu o princípio teológico da
continuidade, ou seja, a pressuposição de uma realidade no interior da qual se processam as
mudanças na história cristã. A reincidência da ideia de “renovação”, agora em torno do termo
“reforma”, veicula uma ruptura em relação à Igreja, algo não visto em seus estudos sobre o
Mémorial de Favre ou mesmo em sua introdução ao Guide Spirituel de Surin. Todavia, o
impacto espiritual desse acréscimo, provocado por sua imersão na história do século XVII,
será absorvido na continuidade da universalidade do magistério da Igreja como alicerce de sua
leitura teológica nos textos históricos desses anos.
O abade de Saint-Cyran (1581-1643) foi a primeira figura de destaque do jansenismo,
movimento religioso dos séculos XVII e XVIII que remonta a Cornelius Otto Jansen e sua
defesa da tese agostiniana da predestinação. Saint-Cyran criticou duramente a corrupção da
Igreja católica e advogou a reforma de suas instituições via reforma interior. Da leitura
historiadora desse tema, Certeau extrairá o lugar de destaque tanto da situação partida do
século XVII quanto da centralidade do caráter reformador desse movimento espiritual.
De acordo com Certeau, a experiência de saint-Cyran é tanto estranha quando aberta à
vida social da Igreja. Semelhante ambiguidade é entendida adequadamente apenas quando

10
“[…] orientations spirituelles fondamentales”. CERTEAU, Michel de. De saint-Cyran au jansénisme:
conversion et réforme. Christus, t. 10, n. 38, p. 399-417, juil. 1963, p. 400.
11
“Les historiens nous obligent à quitter ces positions de combat devenues peu à peu des réflexes. En
reconstituant l’histoire ancienne […] ils nous font comprendre quelques-uns des problèmes religieux posés dès
le XVIIe par le début de la déchristianisation. En ramenant à l’objectivité les querelles anciennes, ils nous
libèrent de nos réactions superficielles. Ils « démythologisent » ce passé reconstruit pour des besoins
immédiats”. Ibid., p. 400-401.
162

considerada no contexto de uma época de crise religiosa. Ela faz parte de um tempo em que
“as instituições permanecendo cristãs, o espírito deixa progressivamente de sê-lo”,12 em que
“a linguagem cristã, as estruturas objetivas da Igreja e a prática dos sacramentos se tornam um
hábito mental e um dado cultural”.13
Nesse contexto de uma sociedade que é oficialmente cristã, mas não se pensa
univocamente enquanto tal, “espirituais” como saint-Cyran buscam fomentar uma renovação
que garanta a efetividade da prática cristã. Nesse sentido, o “novo mundo” representado pela
vida mística vivencia uma ruptura com a realidade exterior (a religiosidade objetiva da
Igreja), mas também produz uma coesão entre o “espiritual” e o “temporal”.14
Na espiritualidade de saint-Cyran, a “renovação” (revouvellement) interior significa a
saída temporária da comunidade cristã e o afastamento da prática dos sacramentos. Essa
distância tem como função a manutenção em estado de contínua conversão e a adesão ao
movimento dos segredos interiores.
A renovação da vida interior e a ruptura com a realidade da Igreja são antídotos para a
degradação que aos poucos tornou a comunidade de fieis inapta a expressar adequadamente a
verdade cristã das origens. Portanto, a distância entre interior e exterior (a visão de então
sobre o ensino recebido) está legitimada na própria fidelidade ao passado:
O culto dos “primeiros séculos” justifica a condenação deste século. A
disciplina antiga prova a necessidade de uma ruptura com a realidade
presente. E como os movimentos vindos de dentro penetram e mudam pouco
a pouco a vida do cristão, do mesmo modo a “pureza” primitiva, por seu
ressurgimento em alguns lugares santos, deve modificar gradualmente o
mapa do cristianismo decadente. 15
Para Certeau, a espiritualidade de saint-Cyran não deixa de ser um tipo de
reestabelecimento do sentido interior da Igreja e, por isso, é uma expressão exacerbada da
contrarreforma.16 Junto com jansenismo mais “teológico” da segunda metade do século XVII,
outra expressão da “restauração católica”, temos os “dois tipos reformistas” que Certeau
distingue no catolicismo. Esse segundo é caracterizado por um reformismo intelectual zeloso
das antigas tradições contra novidades incorretas, ao mesmo passo em que já está embebido

12
“[…] les institutions demeurant chrétiennes, l’esprit cesse progressivement de l’être”. Ibid., p. 403.
13
“Le langage chrétien, les structures objectives de l’Église, la pratique des sacrements deviennent une habitude
mentale et une donnée culturelle”. CERTEAU, Michel de. De saint-Cyran au jansénisme: conversion et réforme.
Christus, t. 10, n. 38, p. 399-417, juil. 1963, p. 403.
14
Ibid., p. 403-404.
15
“Le culte des « premiers siècles » justifie la condamnation de ce siècle. La discipline ancienne prouve la
nécessité d’une rupture avec la réalité présente. […] Et comme les mouvements venus de l’intérieur percent et
changent peu à peu la vie du chrétien, de même la « pureté » primitive, par sa résurgence en quelques lieux
saints, doit modifier progressivement la carte du christianisme décadent”. Ibid., p. 407.
16
Ibid., p. 408
163

de uma atitude moderna frente às fontes antigas. Um exemplo disso é a fidelidade à teologia
agostiniana em detrimento da escolástica da época, formulada segundo o espírito cartesiano.17
Essas duas opções reformistas buscam lidar com o mal-estar de um tempo marcado pelo
“corte profundo entre o cristianismo e a sociedade”.18
Nesse ponto, é possível ver o funcionamento negativo da contribuição do historiador,
uma vez que esse conhecimento do substrato histórico contíguo à espiritualidade despossui o
cristão do automatismo que o levaria a condenar a postura reformadora: “antes de julgar, é
preciso compreender”, proclama Certeau.19
Padre estreitamente identificado à Companhia e à Igreja, Certeau não se exime da
responsabilidade de considerar o risco na postura reformista contida na espiritualidade de
saint-Cyran e dos jansenistas: “temas perigosos, certamente, se a ruptura não for seguida de
uma reconciliação mais radical”.20
A postura de Certeau é a de ter em conta os excessos das vogas reformistas, sem
negligenciar a espessura histórica de seus problemas, nem desatentar para o que disso pode
ser extraído teologicamente. Isso pode ser visto quando ele defende a necessidade de
“reconhecer a lição e a questão que através dos historiadores ainda podemos lá encontrar”.21
A lição extraída por meio do trabalho dos historiadores auxilia a entender as
exigências da época às quais os reformismos buscavam responder e, por conseguinte, permite
adotar uma postura menos reativa a eles. Todavia, o trabalho do historiador e o juízo teológico
não se confundem, mesmo estando imbricados nesse momento da trajetória certeauniana: “No
entanto, é característico que no momento em que eles nos fornecem os elementos necessários
à inteligência dessa história, os historiadores pareçam, por sua própria conta, negar sua
coerência secreta”.22
É válido dizer que na perspectiva de Certeau a situação deslocada da linguagem cristã
em uma sociedade que vai deixando de pensar-se enquanto tal, como historicamente
apreensível, possibilita entrever essa “coerência secreta” da qual ele fala. Ela coincide com a
questão teológica passível de ser encontrada formulada nesse texto – e já funcionando direta

17
CERTEAU, Michel de. De saint-Cyran au jansénisme: conversion et réforme. Christus, t. 10, n. 38, p. 399-
417, juil. 1963, p. 410-413.
18
“[…] coupure profonde entre le christianisme et la société”. Ibid., p. 414.
19
“Avant de juger, il faut comprendre”. Ibid., p. 403.
20
“[...] des thèmes dangereux, certes, si la rupture n’est pas suivie d’une réconciliation plus radicale, grâce à
laquelle la fidélité à l’Esprit restaure”. Ibid., p. 404. Também fala dos “perigos” na página 414.
21
“[...] reconnaître la leçon et la question qu’à travers les historiens nous pouvons encore y trouver”. Ibid., p.
415. Grifo nosso.
22
“Il est pourtant caractéristique qu’au moment où ils nous fournissent les éléments nécessaires à l’intelligence
de cette histoire, les historiens semblent, pour leur propre compte, nier as cohérence secrète”. Ibid., p. 415.
Certeau menciona alguns nomes como Henri Bremond, Jean Orcibal e Lucien Goldmann.
164

ou indiretamente em suas reflexões anteriores sobre Favre, Surin e René d’Argenson: “qual é,
qual deve ser, a situação do cristianismo no mundo?”.23 A essa pergunta, ele responde
segundo a índole reformista do jansenismo: “[a fidelidade] realiza e torna evidente uma
ruptura profunda entre o cristianismo e a sociedade ambiente”.24
Certeau retoma essa questão e essa resposta encontrada no jansenismo segundo
preocupações que considera também as de seu tempo. Ele se questiona em que medida as
instituições e o pensamento católico podem manter a exigência da renovação sem fechar-se
nos limites que lhe são impostos por uma sociedade descristianizada. Suas próprias palavras
mostram bem sua posição desejosa de uma fidelidade renovada, mas inofensiva à
catolicidade:
Como a Igreja manifestará que ela traz a salvação a todos; que nada do que é
justo ou bom pode ser-lhe estranho; que ela está presente sem ser idêntica às
realidades humanas; enfim, que ela é católica? Como, por sua vez, o cristão
será conduzido, pela graça de uma conversão verdadeira, a servir e a
significar essa “catolicidade” em todo campo de sua experiência? Como a
verdade que não é do mundo aparecerá como a verdade desse próprio
mundo? Graves no tempo do jansenismo, essas questões o são ainda mais
hoje.25
Esse vínculo íntimo entre o contexto de descristianização, as iniciativas de renovação
espiritual e a defesa da continuidade com o magistério da Igreja torna-se recorrente na escrita
certeauniana naqueles anos. Ela reaparece em um texto em homenagem a Henri de Lubac
publicada em 1964, onde ele trata a história do termo mystique a partir da “frutuosa tensão da
fidelidade e da novidade” no pensamento teológico do século XVII.26
A mesma dinâmica encontra-se no ano seguinte, no artigo Crise sociale et réformisme
spirituel au début du XVIIe siècle: une «nouvelle spiritualité» chez les jésuites français. Nessa
reflexão, certos jesuítas aparecem conscientes da distância que os separa dos antigos

23
“[…] quelle est, quelle doit être, la situation du christianisme dans le monde?”. CERTEAU, Michel de. De
saint-Cyran au jansénisme: conversion et réforme. Christus, t. 10, n. 38, p. 399-417, juil. 1963, p. 417.
24
“[a fidelidade] achève et rend évidente une rupture profonde entre le christianisme et la société ambiante”.
Ibid., p. 417.
25
“Comment l’Église manifestera-t-elle [...] qu’elle porte le salut à tous; [...] que rien de ce qui est juste et bon
ne peut lui être étranger; qu’elle est présente sans être identique aux réalités humaines; enfin qu’elle est
catholique? Comment, pour sa part, le chrétien sera-t-il conduit, par la grâce d’une conversion véritable, à
servir et a signifier cette « catholicité » dans tout le champ de son expérience? Comment la vérité qui n’est pas
du monde apparaîtra-t-elle comme la vérité de ce monde même ? Graves au temps du jansénisme, ces questions
le sont davantage encore aujourd’hui”. Ibid., p. 417. Essa imagem difere daquela avessa a pensar as rupturas do
século XVI-XVII e as do século XX como expressões diferentes de uma referência comum a uma verdade
velada a ser restaurada, como pintada por Jacques Le Brun. LE BRUN, Jacques. Le secret d’un travail. In:
GIARD, Luce (Dir.). Le voyage mystique: Michel de Certeau. Paris: RSR/Cerf, 1988. p. 87. Nessa primeira
metade dos anos 1960, Certeau está mais atrelado à continuidade entre o passado e o presente que uma
interpretação fincada sobre seus textos da segunda metade dos anos 1960 permitiriam supor.
26
“[...] fructueuse tension de la fidélité et de la nouveauté”. CERTEAU, Michel de. « mystique » au XVIIe
siècle: le problème du langage « mystique ». In: L’Homme devant Dieu: Mélanges offerts au père Henri de
Lubac. Paris: Aubier, 1964. v. 1. p. 268.
165

simultaneamente à recusa do mundo novo do qual fazem parte. Eles relativizam uma noção
simplista de tradição e mostram como “uma continuidade espiritual pode emergir através da
descontinuidade cultural”.27
Esse perfil interpretativo histórico-teológico alcança seu traçado limite na introdução à
correspondência de Jean Joseph-Surin. Consequência de aproximadamente dez anos de
trabalho erudito, o material estava sendo preparado em 1964,28 provavelmente sairia em
1965,29 mas foi publicado no ano seguinte com apoio do Centre National de la Recherche
Scientifique.30
O texto está dividido em duas partes, uma consagrada a Surin e seu tempo e outra à
história do texto editado. Como em seus estudos históricos anteriores, encontramos em sua
introdução uma forte ancoragem na crítica documental e na história das ideias. Ele também
narra a trajetória individual de Surin, expõe sua experiência mística e trata da feição espiritual
de sua correspondência, pensada à luz do desenvolvimento da experiência pessoal do jesuíta,
do gênero literário epistolar do século XVII e do público de destino das cartas.
Estar entre o passado e o presente se tornou uma tópica na interpretação certeauniana
sobre a espiritualidade do século XVII. Isso foi visto em sua leitura sobre o jansenismo, mas
era também o caso de seus textos sobre a linguagem mística e sobre a renovação espiritual dos
jesuítas.31 Essa tópica foi uma lição espiritual para o presente, extraída de suas investigações
históricas sobre as experiências místicas do século XVII.
Ela encontra-se em sua introdução à Correspondance de Surin, onde a própria reflexão
de Certeau aparece no cruzamento entre o presente e o passado. Sem desconsiderar a distância
histórica que o separa de Surin, destaca, positiva e, portanto, valida algo desses tempos idos:
Que suas ilusões, seus preconceitos ou as “evidências” de seu tempo não são

27
“[…] une continuité spirituelle peut émerger à travers la discontinuité culturelle”. CERTEAU, Michel de.
Crise sociale et réformisme spirituel au début du XVIIe siècle: une « nouvelle spiritualité » chez les jésuites
français. Revue d’Ascétique et de Mystique, année 41, n. 163, p. 339-386, juil./sept. 1965, p. 341.
28
Em março de 1964, Certeau menciona que a redação da introdução e dos apêndices da edição estavam em
andamento. Alguns meses depois ele indica o dia 31 de julho como data limite para entrega do manuscrito. É
possível que ele tenha alterado ou incluído algo após isso, mas a base do texto já estava constituída por volta
dessa época. CERTEAU, Michel de. Carta a Henri Gouhier, texto datilografado, 11 de março de 1964, caixa 1,
Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves; Id. Carta a Henri de Lubac, texto datilografado, 08 de julho de 1964,
caixa 34, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.
29
Certeau faz referência a sua edição da correspondência, indicando como ano de publicação 1965. A menção
aparece em: CERTEAU, Michel de. Crise sociale et réformisme spirituel au début du XVIIe siècle: une «
nouvelle spiritualité » chez les jésuites français. Revue d’Ascétique et de Mystique, année 41, n. 163, p. 339-386,
juil./sept. 1965, p. 358, nota 77.
30
Id. Introduction. In: SURIN, Jean-Joseph. Correspondance. Texte établi, présenté et annoté par Michel de
Certeau. Paris: Desclée de Brouwer, 1966. p. 27-89.
31
Id. « mystique » au XVIIe siècle: le problème du langage « mystique ». In: L’Homme devant Dieu: Mélanges
offerts au père Henri de Lubac. Paris: Aubier, 1964. v. 1. p. 284; Id. Crise sociale et réformisme spirituel au
début du XVIIe siècle... op. cit., p. 340.
166

as nossas, que seu heroísmo ou suas fragilidades possam igualmente nos


confundir, pouco importa. Conta apenas, nessa região do passado, a
caminhada que, pela desagregação de seus sonhos, pela crítica das
aparências, pela mais radical contestação e pelo desespero de existir, o
conduziu à liberdade espiritual, àquela paz unificadora onde a comunhão
com Deus dá sua plenitude ao humilde companheirismo com os irmãos.32

Não obstante a qualidade pedagógica atribuída a Surin não esteja completamente


ausente, uma diferença já pode ser encontrada pulsando em algumas linhas. Certeau demarca
um limite a algo visto funcionando na validação do passado como encontrado nesse mesmo
estudo sobre a correspondência de Surin: “Não se trata aqui de intentar um processo de
reabilitação, mas apresentar um dossiê”.33
O próprio Certeau começa a ensaiar uma explicação que avança sobre esse território
proibido, mas termina dela abdicando:
Para discernir o sentido espiritual de uma experiência, é preciso aceitar sua
totalidade vivida e reconhecer a distância que sua consistência histórica
coloca entre ela e nós. Então se torna perceptível, em um passado, a
confusão operada pela passagem de Deus... Mas o editor deve parar por aqui,
pois é ao leitor que cabe descobrir, nesses textos, mais do que uma poema
escrito em uma língua estrangeira. 34
Não é essa poesia teológica escrita em prosa histórica que vemos transbordando nas
páginas intituladas Surin par lui-même: le secret d’um enfant,35 nas quais Certeau retoma e
aprofunda a interpretação espiritual da experiência mística inerente à confusão mental do
jesuíta? Ou ainda no tratamento da correspondência como manifestação do Espírito, vista em
Les « communications spirituelles »?36
Sua notável erudição e competência histórica estão pontualmente atravessadas pela
não menos criteriosa atenção teológica ao sentido espiritual. Tendo isso em vista, a variação
indicada por sua intenção de não reabilitar Surin e de deixar ao leitor a incumbência desse
encontro espiritual parece uma espécie de excedente cujo aparecimento foi permitido pela

32
“Que ses illusions, ses préjugés ou les « évidences » de son temps ne soient plus les nôtres, que son héroïsme
ou ses faiblesses puissent également nous dérouter, peu importe. Seul compte, en cette région du passé, le
cheminement qui, par la désagrégation de ses rêves, par la critique des apparences, par la contestation la plus
radicale et le désespoir d'exister, l’a conduit jusqu’à la liberté spirituelle, jusqu’à cette paix unificatrice où la
communion avec Dieu donne sa plénitude à l’humble compagnonnage avec des frères”. CERTEAU, Michel de.
Introduction. In: SURIN, Jean-Joseph. Correspondance. Texte établi, présenté et annoté par Michel de Certeau.
Paris: Desclée de Brouwer, 1966. p. 28.
33
“Il ne s’agit pas ici d’intenter un procès de réhabilitation, mais présenter un dossier”. Ibid., p. 28.
34
“Pour discerner le sens spirituel d’une expérience, il faut en accepter la totalité vécue et reconnaître la
distance que met entre elle et nous sa consistance historique. Alors devient perceptible, dans un passé, le
bouleversement opéré par le passage de Dieu... Mais l’éditeur doit s'arrêter ici, car c’est au lecteur qu’il
appartient de découvrir, dans ces textes, davantage qu’un poème écrit dans une langue étrangère”. Ibid. p. 29.
Grifo do autor.
35
Ibid., p. 42-51.
36
Ibid., p. 51-56.
167

culminância de sua experiência historiadora nessa chave erudita. Ela parece ser um rastro da
intensificação do caráter negativo da história para a reflexão sobre a espiritualidade, prestes a
ser operada em textos vindouros.

3.2 O passado que se abre como um cofre

Como em seus textos sobre a espiritualidade do século XVII, a relação entre


renovação e fidelidade vai aparecendo em publicações dedicadas à situação do cristianismo
contemporâneo. O desafio enfrentado por Certeau nesses textos é harmonizar a fidelidade ao
que recebe do passado e sua renovação na alteridade do presente. Isso passa pelo
aparecimento paulatino de uma relação crítica com a tradição cristã.
Certeau não pensava a tradição como um conjunto de fórmulas a serem seguidas.
Havia a consciência da novidade histórica na qual o passado cristão devia ser feito presente,
desde seus textos dos anos 1950. Contudo, essa mudança era ligada à historicidade humana
em seu marchar teologal rumo ao juízo final. Embora diferentes adesões humanas fossem o
rosto das durações particulares da experiência religiosa, elas nunca poderiam ser heterogêneas
à tradição. As durações eram unificadas na linguagem universal da Igreja em função do plano
salvífico da história.
A relação com a tradição se apresentava a Certeau de outro modo com seus estudos
sobre autores espirituais do século XVII. O corte aos poucos surgido entre a cultura e a
religião foi a ocasião do aparecimento de uma ruptura com a tradição em nome de fidelidade
mais alta com a santa antiguidade perdida. Não era mais uma questão de reforma interior
plenamente congruente com a continuidade com a Igreja como em Favre, mas de
desconfiança quanto à cultura católica como ela se apresentava preservada à época.
O conflito aparece ainda mais agravado em seus textos sobre a experiência cristã no
século XX. O cristianismo e o mundo moderno parecem dois países distantes, como se não
houvesse mais espaço para a tradição cristã que o padre representava. Certeau devotará sua
inteligência às consequências dessa mudança no plano do apostolado e da espiritualidade,
detendo-se em temas como a missão, a educação cristã e os conflitos entre experiências,
linguagens e perspectivas crentes discordantes.
Algo parece mudar no decorrer dessa viagem na companhia dos cristãos do século
XVII e XX. A novidade nesses textos é o deslocamento de ênfase da mudança humana para a
renovação da tradição. Essa alteração seguiu a via da afirmação de uma relação
necessariamente crítica do cristão com a tradição. A crítica supõe algum grau de
168

questionamento da tradição por meio da diferença histórica do presente. Os efeitos desse


questionamento são contrapostos por signos textuais que indicam a tentativa de harmonizar os
efeitos disruptivos que poderiam daí decorrer. Desse modo, essa relação crítica com o passado
cristão não é concebida como uma ruptura com a tradição.
O termo “crítica” é utilizado pelo próprio Certeau. O aparecimento dessa ênfase crítica
permanece associado à preocupação com o mistério e com a espiritualidade. Se Deus é tanto
presença quanto indeterminação, se encontrá-lo significa perdê-lo novamente, então é
necessário distinguir na verdade possuída a verdade manifestada e discernir o progresso
espiritual ao qual é chamado. Essa lucidez exige ao cristão saber criticar:
Não que, como o maníaco pirômano, ele queira atear fogo à casa, ou que se
instale, como espectador, diante da vaidade das coisas. Mas ele examina o
que vê, contesta suas possessões e discrimina suas opiniões porque sabe
estar ali, muito próximo, aquele que excede sempre os sinais de sua
presença. Para dizer a verdade, a crítica é apenas o avesso do desejo. Nasce
de uma ânsia que só o Vivente satisfaz e excita incessantemente. É ele que se
mostra escondido e busca nossas mãos, tateando, entre todas aquelas coisas
que à primeira vista tomamos por ele.37
Certeau associa essa crítica à lucidez de Jesus. No retrato esboçado pelo jesuíta, Cristo
se submete à lei, mas revela seu formalismo; acolhe a homenagem da multidão, mas não se
ilude sobre a inconstância daqueles a quem se dedica; discerne a falta de inteligência, as
ambições tacanhas de seus próximos e a confiança vã que o sucesso ou o templo lhes
suscita.38
Para efetivar essa lucidez, o cristão não deve fixar-se obstinadamente sobre a tradição,
nem fazer absoluta a cultura atual. É necessário acolher os signos do passado e esclarecer as
exigências do presente para melhor aderir à presença que sempre lhe escapa: “porque ele
possui essa ciência de um passado que se abre como um cofre, ele confia também no presente.
É uma loucura, mas ela nasce da fé”.39
Nesse aspecto, sua exposição sobre a experiência missionária é ilustrativa. 40 O
missionário lança mão de uma tradição onde determinada linguagem é longamente elaborada.
A verdade universal dessa tradição e de sua linguagem deve ser transmitida através de uma

37
“Non que, tel le maniaque pyromane, il veuille mettre le feu à la maison, ou qu’il s'installe, en spectateur,
devant la vanité des choses [...]. Mais il scrute ce qu’il voit, [...] il conteste ses possessions et discrimine ses
opinions parce qu’il sait là, tout proche, celui qui dépasse toujours les signes de sa présence. À vrai dire, la
critique n’est que l'envers du désir. Elle nait d’une faim que, seul, le Vivant satisfait et qu’il excite sans cesse.
C'est lui qui se montre caché et que cherchent nos mains, en tâtonnant, parmi toutes ces choses que nous
prenions d’abord pour lui”. CERTEAU, Michel de. Des enfants avisés. Christus, t. 10, n. 38, p. 165-177, avril
1963, p 170. Grifo nosso.
38
Ibid., p. 171.
39
“Parce qu’il a cette science d’un passé qui s’ouvre comme un écrin, il fait confiance au présent. C’est une
folie, mais elle naît de la foi”. Ibid., 174.
40
Id. La conversion du missionnaire. Christus, t. 10, n. 40, p. 514-533, oct. 1963.
169

experiência particular que ele tem dela e que o torna um estrangeiro no país em que se
encontra.
Uma relação crítica é exigida se considerarmos que para Certeau a realização do
objetivo missionário exigirá questionar sua experiência, revisar seus métodos e até renunciar
certos hábitos. Essa é sua prova no deserto, exigindo uma nova “conversão”. Estrangeiro entre
estrangeiros, “o encontro com os outros, irmãos enigmáticos, é para ele a experiência do
Mistério: Deus se mostra maior”.41
Como, então, poderia o missionário impor seus conhecimentos, sua história, sua
tradição? E se preocupado em não transigir com o erro e com o sincretismo, desatenta para as
disputas ao longo da história, frente aos quais a fé cristã precisou tornar-se mais explícita,
reformular-se para tornar mais claras as novas necessidades do presente? E se ele suprimir as
diferenças como simples adaptação? Conforme pensa Certeau, nada disso seria um encontro
autêntico.
O missionário está diante de toda uma história, uma civilização: língua, costumes,
instituições e uma realidade sociocultural onde estão articulados diferentes papeis. À maneira
do etnógrafo, ele conscientiza-se das profundas diferenças quanto à sua própria mentalidade,
das rupturas que separam esses mundos, da existência da pluralidade de universos mentais.
Intentava fundar uma certeza, uma palavra universal para todos os homens, mas
encontra uma descoberta: sua Igreja está enraizada numa dessas culturas, é idiossincrática
desse mundo que deixou. Situado entre a sociedade da qual veio e a em que esta, vê-se
invadido pela situação efetiva que ocupa a Igreja, ou seja, essencialmente católica, mas
convivendo com outras culturas.
Mas diferente do etnógrafo, não pode permanecer nos dados objetivos que a
investigação lhe forneceu. Vasculha a manifestação de uma exigência mais essencial em
signos que não pertencem à sua linguagem. Ele os significa a partir de sua fé, abrindo-se à
presença que vem bem ali onde parece ausente:
“Deus, sempre novo, deve aparecer aqui. Quando? Como? Impossível dizê-
lo. Este futuro que é igualmente, ainda que sob formas diferentes, o do
cristianismo e o desse povo, está escondido no coração da realidade como
sua verdade mais interior”. 42

41
“La rencontre des autres, frères insaisissables, est pour lui l’expérience du Mystère: Dieu se montre plus
grand”. CERTEAU, Michel de. La conversion du missionnaire. Christus, t. 10, n. 40, p. 514-533, oct. 1963, p.
515.
42
“[...] Dieu, toujours nouveau, doit paraître ici. Quand? Comment? Impossible de le dire. Cet avenir qui est
également, quoique sous des formes différentes, celui du christianisme et celui de ce peuple, est caché au cœur
de la réalité comme as vérité la plus intérieure”. Ibid., p. 522.
170

O missionário estabelece com esses irmãos estrangeiros uma relação recíproca. A


partir de um diálogo construído no reconhecimento do outro e no respeito às diferenças, eles
se enriquecem mutuamente. O missionário descobre algo de si nessa troca, experimenta algo
que vem dela. Ao aprender a língua do outro, reaprende seu próprio idioma: “a voz de outras
pessoas lhe explica internamente algumas das palavras santas que ele repetia sem
inteligência”.43
Segundo Certeau, a fé cristã foi caracterizada em diversas ocasiões, “por uma
valorização nova de tudo o que, no presente, refere-se ao passado”.44 Para seguir realizando
essa tarefa de renovação da história cristã, é preciso penetrar nesse passado, esclarecer em sua
fé as regiões de sua memória e continuar o trabalho de invenção, isto é, recapitular suas
riquezas como ato presente da fé, a exemplo do que já se encontra na própria tradição cristã.
Nela é perceptível “como a Igreja praticou uma via difícil entre a adesão ao Evangelho
e a fidelidade à história paleotestamentária”,45 como ao mesmo tempo extraiu fermento de
antigos ingredientes ancestrais e de novas riquezas indissociáveis da cultural local. Encontra
nessa longa experiência aquilo que pode esclarecer a tarefa que o missionário tem em suas
mãos, dar-lhe as ferramentas necessárias para que adquira uma “inteligência espiritual da
história”.46
Essa tarefa exige constante meditação sobre a história da Igreja, sobre a experiência
passada. Para Certeau, isso não deve ser feito para repeti-la, mas “para encontrar o sentido,
para reconhecer ali a intuição criadora e para esclarecer, assim, a necessidade ou a invenção
de hoje”.47 Para tal, “ele deve se relacionar mais estreitamente ao ensino tradicional, encontrar
nas decisões da hierarquia e no corpus doutrinário o que ele pensava poder negligenciar”.48
Como foi visto, pares como verdade universal/experiência particular e signos do
passado/exigências do presente permanecem indissoluvelmente necessários nas leituras de
Certeau. Termos como “renovação”, “invenção” e “criação” convivem com a ideia de
compreender coisas antes repetidas sem entender. Mesmo a afirmação da não repetição do

43
“[...] la voix des autres lui explique intérieurement quelques-unes des paroles saintes qu’il répétait sans
intelligence”. CERTEAU, Michel de. La conversion du missionnaire. Christus, t. 10, n. 40, p. 514-533, oct.
1963, p. 526.
44
“[...] par une valorisation nouvelle de tout de qui, dans le présent, se réfère au passé [...]”. Ibid., p. 528.
45
“[...] comment l’Église s’est frayé une voie difficile entre l’adhésion à l’Evangile et la fidélité à l’histoire
paleotestamentaire”. Ibid., p. 529.
46
“[...] l’intelligence spirituelle de l’histoire”. Ibid., p. 529.
47
“[...] Mais pour en retrouver le sens, pour y reconnaître l’intuition créatrice et pour éclairer ainsi le besoin ou
l’invention d’aujourd’hui”. Ibid., p. 529.
48
“Il doit se rattacher plus étroitement […] à l'enseignement traditionnel, retrouver dans les décisions de la
hiérarchie et dans le corpus doctrinal ce qu'il pensait pouvoir négliger”. Ibid., p. 530.
171

passado coexiste ao dever obediente de colher tesouros nesse cofre que se abre para o
presente.
A essa tensa convivência vocabular e semântica subjaz o esforço empreendido por
Certeau em harmonizar sua identidade cristã às urgências impostas por uma sociedade que
não pensa a si própria em termos religiosos, como aparecia em seus textos históricos sobre o
XVII. Esse investimento está na base de sua crença na possibilidade de enxergar a “revisão de
seu passado” como “uma fidelidade mais exigente a seu próprio cristianismo”. 49
Como veremos a seguir, essa “renovação” não acresce conteúdos a sua verdade. O que
está em pauta é a defesa de novas maneiras de sabê-la. Ou nos termos com os quais havia
explicado a questão em seu artigo sobre a vivência missionária, as renovações ao longo da
história cristã trataram de dar à fé maior explicitação diante das limitações da experiência
humana, do esclarecimento das novas urgências da história e dos constantes chamados à
conversão pela presença escondida de Deus.
Portanto, a crítica não é o questionamento da autoridade do ensino oficial e da
tradição, mas a renúncia de alguns de seus signos, a defesa da criatividade como sua lógica e a
discordância indireta de certa perspectiva dogmática da tradição. Essa revisão em função do
incremento de novos entendimentos é o sentido da crítica nesse momento. Embora uma
diferença já estivesse suposta nessa “renovação”, não há o questionamento efetivo de
conteúdos objetivos de sua fé, assim como inexiste a ênfase na ruptura com alguma regra
doutrinal.
Essa crítica assume a forma de uma tradição dilatada pelo acréscimo de significados
conquistados em circunstâncias culturais particulares. Tal imagem é a forma propriamente
textual assumida pelo enfrentamento aos dilemas religiosos modernos do qual Certeau toma
parte à sua maneira. Ele buscou abrir uma religião que vem do passado à diferença do
presente, e intentou associar o mistério cristão à alteridade cultural, sem pôr em questão a
catolicidade, a validade da tradição e a autoridade da Igreja.
Tomemos como referência o caso da experiência do ensinar e do aprender sob a
perspectiva de Certeau. Ela auxilia a entender o laço estreito dessa tradição dilatada com a
novidade do presente. Sua reflexão sobre o lugar da tradição em um tempo de acentuada
desvalorização do passado aponta inclusive outros caminhos de sua aproximação com o
conceito moderno de história se comparado a seus primeiros artigos teológicos.

49
“[...] révision de leur passé” ; “[...] une fidélité plus exigeante à son propre christianisme”. CERTEAU,
Michel de. La conversion du missionnaire. Christus, t. 10, n. 40, p. 514-533, oct. 1963, p. 530.
172

Uma palavra dada verdadeiramente a alguém, seja na esfera da educação familiar,


escolar ou religiosa, se desvincula da terra natal de onde partiu. Ao chegar ao seu destino,
encontra alguém que a recebe por conta própria. Quando retorna desse país onde floresceu,
ela já não é reconhecida nesse poema de sentido oculto.50 Quem deu a palavra enxerga algo de
irreconhecível no rosto que acreditava formar à sua imagem. Discerne nele um nascimento.
Isso assume gravidade singular quando coincide com o surgimento de um mundo novo
onde mutações culturais desacreditam a tradição na qual se baseiam os educadores, quando a
autoridade dos adultos está fragilizada pela desatualização de seus conhecimentos e por sua
imperícia ao lidar com as novas demandas da juventude.
Frequentemente inadaptado e incapaz de dar uma resposta às novas exigências, o
educador tem a necessidade de ser educado, como dizia Marx.51 Assim como o missionário, o
educador só pode aprender se aceitar o diálogo com esses “estrangeiros” que irrompem e
resistem ao passado considerado como peso inútil.
Portanto, a relação entre passado e presente na vivência educativa é uma experiência
do conflito. Ao invés de passividade e identidade, o jovem resiste e difere. Diante disso, o
educador mantém sua missão, aberto ao encontro e à confrontação, promotor e vítima de
renovações. Ele serve à causa da tradição que ensina e da revolução daqueles que forma.
Encarrega-se de iniciá-los no significado da comunidade e de ensinar-lhes uma linguagem que
possa ser verdadeira para ambos.
O intercâmbio entre o educador e educando opera “lentamente a transformação da
cultura e a evolução da linguagem”,52 mescla de tradição e renovação. Nas palavras que
entrega e recebe, aparentemente as mesmas, o educador encontra algo mais profundo:
“reinterpreta a tradição em função de seus interlocutores; permite-lhes compreender graças ao
que recebeu”.53
Dessa maneira, o professor não se contenta em apontar os restos da história humana
aos seus alunos. Ele repassa sua lição à luz dos problemas e conhecimentos deles próprios,
descobre “coisas antigas e novas”.54 Isso não quer dizer “que ele aprenda, assim, algo a

50
A bela metáfora é do próprio Certeau. CERTEAU, Michel de. Donner la parole. Christus, t. 11, n. 44, p. 438-
456, oct. 1964, p. 438.
51
Certeau se refere à Terceira tese sobre Feuerbach. Ibid., p. 441.
52
“[...] lentement la mutation de la culture et l’évolution du langage”. Ibid., p. 445.
53
“il réinterprète la tradition en fonction de ses interlocuteurs; il leur permet de se comprendre grâce à ce qu’il
a reçu”. Ibid., p. 447.
54
“[...] choses anciennes et nouvelles [...]”. Ibid., 448. Grifo nosso.
173

mais”.55 Ao contrário, ele esclarece o que que já sabia, mas que agora “o sabe de outra
maneira”.56
A escola, laboratório vivo, é lugar do diálogo como conversão recíproca, “ajustamento
do passado ao futuro e de mutação de uma cultura por sua assimilação”.57 Os mestres,
“chamados por seus alunos a fazer-se exegetas da tradição e dos conhecimentos recebidos”,58
mobilizam os dados e os reúnem num sentido atual, proporcionando o terreno necessário para
a renovação do passado e para “criações ainda imprevisíveis”.59 O professor mostra ao aluno
“o sentido de sua existência, ensinando-lhe a experimentar a própria mobilidade como a lei
misteriosa do devir”.60 Apresenta um período mais amplo que o instante, “sondando começos
reais para abrir um futuro incognoscível”,61 ensinando a partir “da história que o fez, a história
que ele deve fazer”.62
A esta altura é preciso retomar o conceito moderno de história e sua relação com a
explicação teológica. Certeau pensava e se expressava segundo a modernidade, mas essa
compreensão e linguagem moderna era retomada em uma interpretação teológica. Uma
teologia da história era o modo pelo qual é possível entender aqueles traços quando lidos em
conjunto. Esse tipo de interpretação segundo o modo como o defini em contraste com a
filosofia da história está fundamentada na providência divina, na revelação cristã e na
continuidade com a tradição. Seus principais argumentos afirmam o sentido provincial,
crístico, salvífico e eclesiológico da história. Além disso, o passado e o futuro se unem na
realização do sentido da história conforme pensa esse tipo de interpretação.
A aproximação de Certeau com a modernidade se agravava à medida que a metade da
década de 1960 se aproximava – os motivos históricos disso serão tratados no próximo
capítulo. Ele conjugava perspectivas que não eram organicamente ligadas ou necessariamente
harmônicas. Por isso, a tentação em enquadrar essas linhas de raciocínio em um conceito ou
tipo de explicação já consagrada poderia atrapalhar mais que ajudar a compreensão do que

55
“Ce n’est pas qu’il apprenne ainsi quelque chose de plus […]”. CERTEAU, Michel de. Donner la parole.
Christus, t. 11, n. 44, p. 438-456, oct. 1964, p. 449. Grifo nosso.
56
“[...] il le sait autrement”. Ibid., 448. Grifo nosso.
57
“[...] ajustement du passé à l’avenir et de mutation d’une culture par son assimilation”. Id. Ouverture sociale
et renouveau missionnaire de l’école chrétienne. École chrétienne et mission. Christus, t. 12, n. 48, p. 554-571,
oct. 1965, p. 569.
58
“[...] Les maîtres son appelés par leurs élèves à se faire les exégètes de la tradition et des connaissances
reçus”. Ibid., p 569.
59
“[...] créations encore imprévisibles”. Ibid., p. 569.
60
“[...] le sens de son existence en lui apprenant à experimenter lui-même la mobilité comme la loi mystérieuse
du devenir [...]”. Id. Donner la parole. Christus, t. 11, n. 44, p. 438-456, oct. 1964, p. 450.
61
“[...] commencements réels pour en ouvrir un futur inconnaissable”. Ibid, p. 450.
62
“[...] de l’histoire qui l’a fait, l’histoire qu’il doit faire”. Ibid, p. 450.
174

estava em jogo. De todo modo, algumas considerações são cruciais para que possamos
avançar sobre o que acontecia naquele momento em seu trabalho intelectual.
Em primeiro lugar, essa relação entre passado e futuro em sua teologia da história teria
conhecido o velho topos da história mestra da vida? Se consideramos que autores prestigiados
afirmam a acomodação da máxima ciceroniana no pensamento cristão, a princípio parece
plausível.63 A abordagem de Certeau, por exemplo, subscreve a tensão entre o “já” dado pelo
passado (a salvação já está garantida) e o “ainda não” que aponta para o futuro (essa história
ainda não está acabada). De fato, esse modelo explicativo da salvação testemunha um futuro
concebido pelo passado. Essa lógica do futuro passado (prognóstico político, previdências
escatológicas, teologia “salvífica” da história) é em si uma marca distintiva e suficiente da
história mestra da vida? Caso positivo, estaria justificado sustentar uma combinação entre
experiência cristã e historia magistra vitae no caso de Certeau. Caso a exemplaridade e a
repetibilidade do passado sejam as marcas maiores daquele conceito de história, a categoria
não poderia ser facilmente atribuída ao padre. A rigor, a ideia de reino presente e futuro não
fornece ela mesma uma cartilha de exemplos para a instrução das condutas humanas das
gerações futuras.64
Poderíamos levar em conta também o fato de que Jesus seja o modelo imperativo de
conduta para os cristãos. Isso aparece em Certeau, como era de se esperar. Outro aspecto
nessa direção é a função pedagógica em alguns de seus estudos, como nos casos de Favre e
Surin. Mas nesses dois, o passado não fornece condutas para ação do cristão do século XX, e
sim recursos espirituais, seja o auxílio para especificar um problema teológico do presente,
seja a possibilidade de suas doutrinas favorecerem a relação com Deus. Por fim, a

63
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Tradução de Wilma
Patrícia Maas, Carlos Almeida Pereira e revisão de César Benjamin. Rio de Janeiro: Contraponto/Editora PUC
Rio, 2006. p. 44; HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo
Horizonte: Autêntica, 2015. p. 139.
64
Hartog aventa esse tipo de aproximação entre a experiência cristã e a historia magistra vitae. Seu argumento
para a aproximação são as ocasiões nas quais um “já” alimentado na tradição teve mais peso que o “ainda não”
messiânico. São os casos em que se olha mais para o passado que para o futuro e se forma uma cadeia de
autoridades, como no caso da História eclesiástica de Eusébio de Cesareia. Ibid., p. 90-92. Ele também parece
sustentar essa combinação da experiência cristã e da historia magistra vitae quando fala do “já” como um
“passado continuamente reativado pelo ritual”. Ibid., p. 92. Nesse último caso, a relação entre a experiência
cristã e o topos ciceroniano mereceria ser melhor explicado. Embora os ritos católicos seja inseparáveis da graça
salvífica alcançando a humanidade, seria preciso considerar mais precisamente a singularidade teológica dos
conceitos de salvação e de liturgia. Talvez fosse o caso de verificar de que maneira seus referentes foram
relacionados em ocasiões históricas precisas. Em outras palavras, em que medida o passado era visto como
repetido nos sacramentos e como essa repetição estava formulada enquanto evento presente da salvação. A
referência de Hartog para a tensão entre o “já” e o “ainda não” é a teologia da história da salvação de Oscar
Cullmann. CULLMANN, Oscar. Le salut dans l’histoire: l’existence chrétienne selon le Nouveau Testament.
Neuchâtel: Delachaux et Niestlé, 1966. Esse livro retoma as teses de seu clássico Christ et le temps, traduzido
para o português em: CULLMANN, Oscar. (1947) Cristo e o tempo. São Paulo: Custom, 2003.
175

repetibilidade da história humana parece ausente em Certeau. Quando a ideia de repetição


marca presença, é no sentido de fidelidade com a tradição. Ele entende a história como
novidade e as diferentes circunstâncias históricas como particularidades, mesmo que as
interprete teologicamente em função de um saber recebido do passado. Portanto, ele não era
estranho ao futuro passado, ao exemplo e à repetição, mas nem por isso subscreveu a
exemplaridade, a repetibilidade e o julgamento do presente segundo os grandes homens do
passado. Sua familiaridade a certa feição da historia magistra vitae herdado pela via cristã
não deve levar a exagerar sua relevância na pregação e na reflexão teológica de Certeau.
Em segundo lugar, há um deslocamento da relação entre passado e futuro. Os
argumentos providencialistas, escatológicos e eclesiológicas não ocupam mais papel relevante
para interpretar o sentido da história. Quando fala em termos de presença, é no sentido de
entender as novidades históricas como chamado de Deus ao progresso espiritual ou de
justificar uma interpretação mais flexível da tradição com base na figura do Cristo. Nesses
casos, não há mais a ênfase em um Verbo incarnado determinando os rumos da história da
humanidade em seu plano salvífico. Desse modo, Certeau não mais aquiesce à visão teológica
da história na qual o futuro é explicado pelo passado. Ele pensa o futuro como desconhecido
como comum na modernidade desde o final do XVIII – como o artigo Donner la parole,
comentado acima, mostra. Ao invés de “futuro passado”,65 vemos em Certeau um “futuro
presente”66 para o qual o progresso porvir já está germinando nas demandas existenciais da
duração atual. Tomar parte das tarefas contemporâneas é responsabilizar-se por essa história
em marcha, progressão sucessiva rumo a uma situação superior a atual.
Em terceiro lugar, é preciso perguntar sobre o quão moderno é esse progresso
embrionário no presente. No conceito moderno de progresso, o presente se distancia do
passado para dar lugar ao futuro.67 Essa melhora crescente não está na ligação necessária entre

65
Sobre o futuro passado e sua relação com o pensamento cristão, ver KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado:
contribuição à semântica dos tempos históricos. Tradução de Wilma Patrícia Maas, Carlos Almeida Pereira e
revisão de César Benjamin. Rio de Janeiro: Contraponto/Editora PUC Rio, 2006. p. 21-39; 315.
66
Daniel Poitras afirma a existência de duas experiências do tempo “futuristas” entre os anos 1950 e 1970. Por
meio de uma história cruzada e comparada das experiências do tempo em Michel de Certeau, Fernand Dumont e
François Furet, e de categorias como “experiência bruta do tempo”, “figuração espacial” e “metáforas espaciais”,
Poitras defende que os três autores articulam coordenadas do “futurismo” e do “presentismo”, os dois regimes de
historicidade do século XX – segundo François Hartog, orientador de sua tese. Em um primeiro momento, vigora
um “futurismo” do tipo “futuro presente”: história contínua, História em marcha, experiência prometeica do
tempo. Entre 1966 e 1967, uma reviravolta substitui a experiência anterior pela de um presente e futuro em sua
forma bruta: futuro obscurecido, incerto e inédito, sentimento de deriva na história. POITRAS, Daniel. Régime
d’historicité et historiographie en France et au Québec, 1956-1975. Michel de Certeau, Fernand Dumont et
François Furet. Tese (Doutorado em História) – Département d’Histoire, Faculté des Arts et des Sciences,
Université de Montréal, Montréal; École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, 2013. 403 f.
67
Como mostra o tratamento dado por Koselleck aos conceitos de espaço de experiência e de horizonte de
expectativa em relação ao conceito moderno de progresso. KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado:
176

passado, presente e futuro, mas no corte entre o primeiro e o segundo e na dependência entre
o segundo e o terceiro. Embora Certeau aderisse à ideia de progresso, ele já mostrava
desconfiança em relação ao passado irremediavelmente interrompido, compreensão que
Berber Bevernage denominou o “tempo irreversível” do discurso histórico moderno.68 No
artigo Donner la parole, Certeau o diz com todas as palavras ao afirmar que
a novidade, sempre relativa a um estado mais antigo, supõe um processo de
“reemprego”, que a experiência anterior proporciona as condições
necessárias à experiência seguinte; que as estruturas precedentes subsistem
nas reações e inclusive nas refutações ulteriores; que as rupturas obedecem,
todavia, a uma continuidade implícita e que o passado sobrevive tacitamente
no presente. 69
Essa afirmação mostra sua discordância com esse aspecto tanto do conceito de
progresso quanto do discurso histórico moderno que ele subscreve. O surgimento desse tipo
de problematização poderia ser explicada por sua aproximação com as ciências humanas de
então, conforme ele mesmo sugere.70 Já em 1956, no artigo sobre a experiência religiosa,
Certeau realçava a importância científica da história e da psicologia para o trabalho do
teólogo. Ao longo desses anos, acumulou experiência com a pesquisa histórica sobre a
espiritualidade nos séculos XVI e XVII. Em junho 1964, ele estava entre os fundadores École
Freudienne de Paris, encabeçada por Jacques Lacan, cujos seminários seguiu assiduamente até
a dissolução da instituição em 1980. No ano seguinte, dedica uma reflexão comparada entre
as abordagens psicológica e espiritual da experiência religiosa.71 Certeau também estava
atento ao trabalho de Lévi-Strauss, como referências em La conversion du missionnaire
mostram.72
Além disso, Certeau obteve formação em filosofia, campo do qual nunca se afastou
totalmente, mesmo que não tenha canalizado seus esforços intelectuais em desenvolvê-lo. Já
víamos nomes como Rousseau, Marx, Bachelard, Heidegger e Ricœur aparecendo

contribuição à semântica dos tempos históricos. Tradução de Wilma Patrícia Maas, Carlos Almeida Pereira e
revisão de César Benjamin. Rio de Janeiro: Contraponto/Editora PUC Rio, 2006. p. 314, 318, 326.
68
BEVERNAGE, Berber. História, memória e violência de Estado: tempo e justiça. Tradução de André Ramos
e Guilherme Bianchi; revisão técnica de Valdei Lopes de Araújo e Walderez Ramalho. Vitória:
Milfontes/Mariana: SBTHH, 2018. p. 30.
69
“[...] la nouveauté, toujours relative à un statut plus ancien, suppose un processus de ‘réemploi’, que
l’expérience antérieure fournit les conditions nécessaires à l’expérience suivante; que les structures précédents
subsistent dans la réactions ultérieures; que les ruptures obéissent encore à une continuité implicite et que le
passé survit tacitement dans le présent”. CERTEAU, Michel de. Donner la parole. Christus, t. 11, n. 44, p. 438-
456, oct. 1964, p. 450.
70
Ibid., p. 450.
71
Publicação da intervenção de Michel de Certeau, Louis Beirnaert e Jean Clavreul em um debate intitulado
Psychologie ou spiritualité. A intervenção de Certeau corresponde às páginas 172 a 184: Recherches et Débats,
n. 53, p. 172-184, déc. 1965.
72
Certeau refere-se ao artigo Diogène couché e ao livro Race et histoire: LÉVI-STRAUSS, Claude. Diogène
couché. Les temps modernes, n. 110, p. 1186-1220, 1955; Id. Race et histoire. Paris: Unesco, 1952.
177

pontualmente em um ou outro texto. Em Donner la parole, uma referência importante que


surge é Hannah Arendt, sobretudo o relevo que a filósofa deu à centralidade da noção de
processo e de história no pensamento moderno.73
Por outro lado, sua discordância em relação ao tempo irreversível concerne sobretudo
ao seu esforço em superar a incompatibilidade do passado cristão e do presente não religioso.
Essa constatação nos leva ao nosso quarto e último ponto: qual é a diferença entre progresso e
tradição dilatada? A abertura moderna em direção ao futuro comumente estava associada a
uma ruptura com a tradição. O passado presente deve recuar para dar lugar a algo novo que
será o embrião da melhoria vindoura. Já no caso da tradição dilatada, não há contradição entre
tradição e progresso. Além disso, ainda que o progresso não enfatize em demasia a ruptura,
ele supõe uma insubordinação do presente em relação ao passado. Na tradição dilatada, por
outro lado, a história humana, em gestação no presente, deve estar em conformidade com o
passado cristão. Certeau postula uma continuidade que torna pensável a identidade de uma
tradição na multiplicidade de suas expressões, a autoridade do magistério da Igreja como
fonte para o esclarecimento das inovações de hoje e o passado enquanto um cofre que se abre
ao presente. Com esse tipo de continuidade, é possível amenizar os efeitos disruptivos da
renovação da tradição.
Certeau também percorreu a tensão entre a tradição e a novidade histórica ao criticar o
exclusivismo do passado e do presente. Segundo ele, as novidades costumam suscitar o
sentimento de dever em resguardar a continuidade da fé. Muitos cristãos se mantêm
enraizados no passado, enrijecidos no imobilismo de uma noção de verdade que nega o
avanço e que restringe o conhecimento a algo que já está em posse. Certeau não está de
acordo com essa postura que preserva o passado sob a forma do que ele chama “depósito
morto”. Mas nem por isso defende a “tirania do atual” de um presente que se pretende
absoluto. Para ele, esse tipo de fascínio pelos acontecimentos e pelas mudanças arriscaria
perder o significado cristão da tradição.74
Aí está o ponto nevrálgico da participação no presente e da valorização cristã do
passado como vislumbrada por Certeau naquele momento. Ele reconhece as vias abertas em
uma sociedade “como a interpelação que vem do Pai”,75 sem com isso interpretar

73
A referência é à versão francesa de A condição humana: ARENDT, Hannah. La condition de l’homme
moderne. Paris: Calmann-Lévy, 1961.
74
As expressões “dépôt mort” e “tyrannie de l’actuel” são do próprio Certeau. CERTEAU, Michel de. Donner la
parole. Christus, t. 11, n. 44, p. 438-456, oct. 1964, p. 449; Id. Comme un voleur. Christus, t. 12, n. 45, p. 25-41,
janv. 1965, p. 25.
75
“[...] comme l’interpellation qui vient du Père [...]”. Id. Expérience chrétienne et langage de la foi, Christus, t.
12, n. 46, p. 147-163, avril 1965, p. 161.
178

providencialmente as novidades históricas. Qual seria então o critério teológico nesses textos
de Certeau se ele não está recorrendo à revelação e a conceitos de sua tradição para explicar
teologicamente o destino da história? Para Certeau, a questão está na consciência “do
fermento revolucionário que pode ser hoje não a letra, mas o espírito de uma tradição”. 76
O modelo para esse sentido espiritual de tradição será Cristo. Para o jesuíta, a abertura
aos signos do tempo não compromete a verdade da tradição. Ao contrário, isso já está no
âmago do cristianismo:
A questão já está no coração do Evangelho. O Evento por excelência rasga o
povo entre o seu passado e o presente: Jesus confirma a Aliança pelo próprio
ato que a modifica e renova. Ele assume a herança dos Pais, mas transforma
o Antigo em Novo Testamento. É por sua irrupção que revela o sentido da
tradição que retoma.77
Esse evento fundador, “exegese definitiva”, “instante crítico de toda a história”, define
“a forma de toda a experiência cristã, ontem, hoje e amanhã”. 78 Ele deixa ver como o
imprevisível, deslocando valores e renovando a relação com a tradição, pode permanecer fiel
ao passado, convertendo-o sem torná-lo estranho.79 Não fazer desse passado estranho ao
renová-lo significa dizer que é “na continuidade de uma história” que “aparece uma
descontinuidade interior”,80 pois a verdade do passado “só se manifesta pelo vocabulário e no
sistema de uma sociedade”.81
Em última instância, Certeau ainda pensa a relação entre passado e presente amparado
no postulado teológico da história, como visto desde seus primeiros escritos históricos sobre
Favre e Surin. Seus textos teológicos trazem subjacentes esse pressuposto segundo o qual uma
continuidade antecede as modificações na história cristã. Isso ocorre mesmo em ocasiões em
que uma posição favorável começa a aparecer associada ao termo “descontinuidade”, como
visto no trecho acima e em outro artigo naquele mesmo ano.82
De acordo com Certeau, Jesus não se separou da história quando deixou os limites
fixos de um corpo humano. A ruptura criada por sua desaparição revela sua divindade e abre o

76
“[...] fermente révolutionnaire que peut être aujourd’hui non la lettre mais l’esprit d’une tradition”.
CERTEAU, Michel de. Donner la parole. Christus, t. 11, n. 44, p. 438-456, oct. 1964, p. 450.
77
“La question est déjà au cœur de l’Evangile. L’Evénement par excellence déchire le peuple entre son passé et
le présent: Jésus confirme l’Alliance par l’acte même qui modifie et la renouvelle. Il assume l’héritage des
Pères, mais il change l’Ancien en Nouveau Testament. C’est par son irruption qu’il révèle le sens de la tradition
qu’il reprend”. Id. Comme un voleur. Christus, t. 12, n. 45, p. 25-41, janv. 1965, p. 25.
78
“[...] définit par conséquent la forme de toute expérience chrétienne, hier, aujourd’hui et demain”. Id.
Expérience chrétienne et langage de la foi, Christus, t. 12, n. 46, p. 147-163, avril 1965, p. 160.
79
Em Certeau lê-se : “il le convertit [o passado] sans lui devenir étranger”. Ibid., p. 160.
80
“Dans la continuité d’une histoire, apparaît une discontinuité intérieure”. Ibid., p. 160.
81
“[...] ne se manifeste que par le vocabulaire et dans le système d’une société”. Ibid., p. 160.
82
Id. Crise sociale et réformisme spirituel au début du XVIIe siècle: une « nouvelle spiritualité » chez les
jésuites français. Revue d’Ascétique et de Mystique, année 41, n. 163, p. 339-386, juil./sept. 1965, p. 341. Aqui
Certeau fala em continuidade espiritual na descontinuidade cultural.
179

horizonte desses homens da Galileia e da Judeia à sua presença espiritual, “renova o que já
sabem de sua palavra e seus gestos passados”.83
Essa “dilatação da fé é real porque é uma dilatação da comunidade; ela continua pela
multiplicação dos crentes que aprendem a encontrá-lo em situações diferentes”.84 Assim,
recebendo dos antigos a tradição, falando do Espírito em línguas estrangeiras, sacudindo a
homogeneidade criada entre os primeiros cristãos, e mostram que o Verbo não pode ser
restringido ao lugar real de sua encarnação.
Quando o cristão se depara com situações históricas particulares e se compromete
verdadeiramente com elas, outras responsabilidades e posicionamentos são exigidos. Essa
tomada de posição reflete uma renovação e uma leitura do mistério nos acontecimentos, uma
conversão e uma interpretação, uma abertura ao real e uma alteração no estado atual das
coisas. Dessa maneira, “quebra a tranquilidade enganosa das aparências, busca sob os
equívocos a verdade das palavras, sacode a ordem estabelecida em nome do que pretende
assegurar (o bem comum, a igualdade dos cidadãos, a vida do espírito)”.85 Essa tensão está no
cerne do dinamismo temporal da fé cristã.
A presença do Verbo é, assim, descoberta pouco a pouco nas tensões internas da ação,
na revisão da vida, no progresso e no aprofundamento. Essa estrutura histórica da revelação
está amparada no paradoxo da adaptação, conversão da revelação aos signos do presente. Essa
reconciliação é a própria história da experiência religiosa, “reinterpretação espiritual da
tradição em função de uma fidelidade aos apelos atuais de Deus”.86
A atualização dos elementos do passado passa pelos desafios oferecidos por situações
presentes que não garantem uma linguagem comum às experiências cristãs conflitantes. Então
uma unificação ocorre na diferenciação, no reconhecimento mútuo da brecha aberta nos
exclusivismos coletivos. É “quando o ensinamento religioso que recebe lhe permite discernir
em sua situação os signos de uma vocação, e quando seus compromissos concretos lhe

83
“[...] renouvelle ce qu’ils savent déjà de ses paroles et de ses gestes passés”. CERTEAU, Michel de. Unité et
divisions des catholiques. Christus, t. 12, n. 47, t. 12, p. 365-383, juil.1965, p. 380. Grifo nosso.
84
“[...] dilatation de la foi est réelle parce que c’est une dilatation de la communauté; elle se poursuit par la
multiplication des croyants qui apprennent a le trouver dans des situations différentes”. Ibid., p. 380. Grifo
nosso.
85
“[...] Elle brise la tranquillité trompeuse des apparences, elle cherche sous les équivoques la vérité des mots,
elle secoue l’ordre établi au nom même de ce qu’il prétend assurer (le bien commun, l’égalité des citoyens, la
vie de l’esprit)”. Ibid., p. 372.
86
“[...] Mais la réconciliation est l’histoire même de l’expérience religieuse; elle sera une réinterprétation
spirituelle de la tradition en fonction d’une fidélité aux appels actuels de Dieu”. Id. La rénovation de la vie
religieuse. Christus, t. 13, n. 49, p. 101-119, janv. 1966, p. 104.
180

ensinam a realizar o que lhe comunicam os signos da Igreja”.87 Desse modo, é possível ao
cristão renovar os signos de sua tradição e buscar um sentido espiritual nos acontecimentos
imprevistos do presente.

3.3 Da miragem das origens à heresia do presente

A tradição dilatada e a concepção moderna de história são dois polos inexoráveis de


uma mesma questão. Essa correspondência demarca os limites do problema da fidelidade e da
renovação em seus textos, seja sobre o século XVII ou XX. Essa questão assume diferentes
formas à medida que suas reflexões vão se sucedendo: uma crítica que não derrube o edifício
inteiro e que não seja apagada pela insegurança frente ao mundo moderno; o conflito da
cultura religiosa e do mundo descristianizado, da catolicidade e da diferença cultural, da
tradição e da juventude; a rejeição do exclusivismo do passado e do presente; a adoção de
uma busca pelo sentido espiritual da tradição e pelos apelos de Deus na existência humana.
Todas essas preocupações são da ordem da comunicação entre a tradição e a história.
O padre católico e o historiador cético caminham em tensão e comunhão. Essa aliança
assumirá um tom novo em textos publicados em 1966. Certeau mobilizará o conteúdo
histórico do passado da Companhia, submeterá o “retorno às fontes” ao escrutínio da crítica
histórica e conferirá lugar ímpar ao resultado das perspectivas historiadoras sobre o passado
em escritos sobre a espiritualidade. A história afirma-se como ferramenta crítica à
interpretação teológica, mas agora indo além, tanto desautorizando o impulso de fazer da
verdade cristã um passado aplicado a circunstâncias que não são suas, quanto impugnando a
tentação de remontar ao passado cristão as certezas que são filhas do presente.
Desse uso “negativo” da interpretação histórica, duas consequências se destacam. Em
primeiro lugar, é possível localizar uma mudança no significado da relação crítica com a
tradição cristã. Em segundo, surge o rastro de um drama latente em sua percepção sobre um
conteúdo doutrinal dessa tradição, o mistério da presença.
Deixa de estar no centro da preocupação crítica de Certeau a tradição como dilatação
das verdades do passado que os textos anteriores apresentam. O grande esforço de não
questionar a autoridade da tradição ao abraçar a linguagem cultural e as urgências sociais de
seu tempo parece ceder depois de uma década trabalhando como historiador e alguns anos

87
“[...] lorsque l’enseignement religieux qu’il reçoit lui permit de discerner dans sa situation les signes d’une
vocation, et lorsque ses engagements concrets lui apprennent à réaliser ce que lui communiquent les signes de
l’Église”. CERTEAU, Michel de. Unité et divisions des catholiques. Christus, t. 12, n. 47, t. 12, p. 365-383,
juil.1965, p. 379.
181

refletindo sobre o cristianismo na contemporaneidade. Uma apreciação da ilusão das origens e


a afirmação de uma heresia do presente são caminhos a serem percorridos para apresentar a
emergência do que chamarei de tradição fraturada. Será também o caso de tratar do
aparecimento de um postulado histórico da teologia e de um gesto teológico contíguo e
irredutível à perspectiva do historiador que se afirma convictamente naquelas páginas.
Paralelo a essa mudança, desponta o rastro de uma impossibilidade nas fissuras de um
discurso desejoso do acolhimento da manifestação de Deus na realidade. Uma certa hesitação
parece ser o sintoma de uma ferida da ausência afligindo bem ali onde ele aparentava
acreditar na possibilidade de um cintilar da face divina oculta nas aventuras humanas.
A dessemelhança histórica entre os universos culturais do século XVI e do século XX
tem papel relevante nessa mudança interpretativa. Certeau abordou essa diferença em um
artigo sobre a espiritualidade de santo Inácio, publicado na Christus em abril de 1966.
Segundo ele, no século XVI, o saber vinha pela tradição, era recebido e em seguida
interiorizado pelo indivíduo que o preservava e nele se localizava. Aquele era um mundo de
“substâncias”, evidência cósmica e social de uma ordem religiosa. As instituições e a política
permaneciam associadas às estruturas da religião, e a produção literária assimilava a tradição
patrística e cristã, mesmo nos audaciosos humanistas. A experiência religiosa de então extraía
desse universo cultural sua linguagem. Enquanto hoje, diz Certeau, “a vida cristã só
representa socialmente um setor particular no mundo ‘profano’”.88 Diante disso, profere: “não
é que Deus seja hoje menor ou menos ativo! Mas para reconhecê-lo e cooperar com sua obra
universal, precisamos, por uma audácia fiel àquela de santo Inácio, aprofundar
suficientemente toda a experiência humana”.89
A fórmula Inaciana “encontrar Deus em todas as coisas” dá a medida para a
compreensão certeauniana da vida espiritual. Para Certeau, essa máxima significa movimento,
ensina a buscar a presença a partir de acontecimentos e encontros no presente. O exame da
vida e sua situação no mundo é a condição para encontrar Deus no centro da existência real. O
trabalho apostólico é conduzido tanto por motivos interiores quanto por circunstâncias
objetivas. A dinâmica da vida espiritual é formada pela incessante confrontação ente o
impulso que vem de dentro e o impulso que vem dos outros. A ação é tornada mais universal
à medida que ocorre sua inserção mais total no interior das comunicações humanas.

88
“[...] la vie chrétienne ne représente socialement qu’un secteur particulier dans un monde ‘profane’”.
CERTEAU, Michel de. L’universalisme ignatien: mystique et mission. Christus, t. 13, n. 50, p. 173-183, avril
1966, p. 182.
89
“Ce n’est pas que Dieu soit aujourd’hui moins grand ou moins actif! Mais que pour le reconnaître et coopérer
à son œuvre universel, il nous faut, par une audace fidèle à celle de saint Ignace, approfondir suffisamment toute
l’expérience humaine”. Ibid., p. 183. Grifo do autor.
182

Certeau avança sobre esse campo minado da diferença histórica entre o passado e o
presente da espiritualidade inaciana em L’épreuve du temps, na edição da Christus de julho
daquele mesmo ano. Segundo ele, ser jesuíta não significa fazer sobreviver os resquícios de
uma instituição agora reduzida a livros de história e museus. Tampouco denota o completo
enraizamento no presente, ao ponto de a alcunha não ser mais que uma ficção, uma referência
vazia, carente de conteúdo e que oculta uma realidade completamente distinta daquela que era
a sua. Ser jesuíta é estar com o passado para distinguir qual espírito sua ação deve possuir
hoje, e estar com seus contemporâneos para julgar essas origens e decidir seus compromissos
atuais. O tempo de retorno às fontes é o mesmo da conversão ao mundo.90
Até aqui, nada do que nos anos anteriores já não viesse sendo desenvolvido.
Entretanto, as coisas começam a assumir outro tom em determinada altura do artigo
L’épreuve du temps. Certeau alerta que as iniciativas de retorno às origens comumente se
pretendem a descoberta de um segredo para o presente, tesouro sagrado genuíno, autêntico,
intocado pelas transformações históricas e pela linguagem do tempo, a exemplo do verdadeiro
espírito de santo Inácio que cada geração pretendeu desenterrar. Todavia., a “crítica histórica”
(critique historique) mostra que a busca desse “espírito” original (o sentido próprio dessa
espiritualidade) já estava na própria origem da Companhia, nas divergências entre os
primeiros companheiros acerca do espírito inaciano, e mesmo em Inácio já é constatável uma
mobilidade de posições.
Essa constatação permite estabelecer uma mudança importante no empenho de
Certeau em localizar no magistério da Igreja o esclarecimento para as renovações atuais. Não
se trata mais de encontrar na tradição o que teria sido negligenciado e permitiria precisar o
sentido e o tipo de inovação adequada à sua fé. O retorno às fontes como forma de identificar
o segredo para as invenções de hoje está fadado ao insucesso porque essa “origem” remete
sempre a outro lugar diferente daquele onde acreditavam poder encontrá-lo: “a análise parece
alcançar somente um vazio lá onde esperávamos a verdade”.91 O “espírito”, a “verdade” e o
“sentido” espiritual se dissipam diante das investidas de quem busca apreender seu segredo:
“Tais ‘fontes’ não cessam de nos escapar, pois elas são apenas uma miragem”. 92
Essa impossibilidade também é decorrente de outra constatação feita por Certeau.
Segundo ele, em toda busca movida pelo desejo de “eliminar de nosso ‘tesouro’ as moedas

90
Id. L’épreuve du temps. Christus, t. 13, n. 51, p. 311-331, juil. 1966, p. 311-312.
91
“[...] l’analyse semble n’atteindre qu’un vide là où nous attendions la vérité”. Ibid., p. 316.
92
“De telles « sources » ne cessent de nous fuir, car elles ne sont qu’un mirage”. Ibid., p. 317.
183

desvalorizadas e já retiradas do comércio”, 93 aquilo que é localizado, avaliado e validado é


sempre em função do presente:
Em realidade, se trata aqui, necessariamente, de uma escolha, e somos nós
que julgamos as ideias e sentimentos que convertemos em nossa moeda. O
sentido que temos das novas urgências organiza o passado; transforma suas
proporções e o ordena no sistema mental de nossas trocas. 94
As doutrinas espirituais não são mais os instrumentos pedagógicos de uma melhor
lucidez para a inteligência da presença na experiência humana. O passado não fornece
modelos, programas, instrumentos ou intuições particulares à inteligência espiritual do
presente. Para Certeau, ao invés de “objeto sagrado” (objet sacré), as origens obrigam a
decifrar um sistema de relações humanas e, nesse sentido, não são de natureza diversa do
presente.95
Tampouco as reformulações da tradição são apreciadas como ocasiões nas quais foram
tornadas mais explícitas e claras as formulações da fé. Certeau põe em questão a “ideologia já
antiga” do progresso contínuo.96 No início do ano seguinte, ele fará da superação dessa lógica
um aspecto crucial da epistemologia contemporânea.97 Isso ressoava em sua própria
aproximação crítica com a tradição – como vimos, embora diferentes, a noção de história,
progresso e tradição andavam juntas. Para ele, a única coisa localizável nas “origens” são
testemunhos múltiplos e divergentes que remetem uns aos outros.98
Certeau prossegue com a problematização da noção de tradição, levando mais longe a
crítica aos poucos pautada em seus textos nos anos anteriores. A maneira como ele a pensa
neste momento permite designá-la como fraturada. Isso quer dizer que ela só existe no plural,
que a ruptura é sua constante e que embora seja imperativo buscar formas de superação dessa
distância, isso não significa o reestabelecimento de uma homogeneidade pré-existente, latente
ou projetada.
Essa mudança tem uma consequência extremamente relevante para nossa análise. Os
argumentos reunidos sob a forma dessa concepção de tradição fraturada não postulam uma
continuidade antecedendo os múltiplos tempos históricos. Ao contrário, ela supõe uma

93
“[...] d’éliminer de notre “trésor” les pièces dévaluées et déjà retirées du commerce”. CERTEAU, Michel de.
L’épreuve du temps. Christus, t. 13, n. 51, p. 311-331, juil. 1966, p. 313.
94
“En réalité, il s’agit là, nécessairement, d’un choix, et c’est nous qui jugeons des idées et des sentiments dont
nous faisons notre monnaie. Le sens que nous avons d’urgence nouvelles organise le passé; il en transforme les
proportions et il l’ordonne au système mental de nos échanges”. Ibid., 313.
95
Ibid., p. 316.
96
Ibid., p. 314.
97
Id. Les sciences humaines et la mort de l’homme. Études, t. 326, p. 344-360, mars 1967, p. 350.
98
Id. op. cit., p. 316.
184

descontinuidade histórica como sua condição, uma vez que toda vinculação com a tradição se
dá por meio da linguagem cultural de um tempo que é outro em relação às origens.
Essa descontinuidade histórica como condição da ruptura com a tradição não exclui a
possibilidade de continuidade. Contudo, a superação da distância não se dá pelo retorno às
origens, por um discurso do sentido (como presença) ou pela atribuição projetiva de um valor
próprio do presente à catolicidade. Ao invés de formas heterônomas de reestabelecimento da
fidelidade, o passado resumido às normas do presente e vice-versa, a continuidade é efeito a
posteriori. O elo que supera as diferenças e garante uma “continuidade” precisa ser inventado
na tensão não excludente entre passado e presente. Essa invenção é a tarefa da reflexão sobre
a espiritualidade nos textos de Certeau a partir de então.
Essa tarefa vinha sendo preparada entre 1963-1966. Isso podia ser visto na tensão
crescente entre renovação e fidelidade; na crítica ao dogmatismo do depósito morto e ao
presentismo da tirania do atual; e na defesa da novidade histórica como chamado e da tradição
em seu espírito mais que em sua letra. Contudo, essas frentes eram acompanhadas pela
manutenção tênue de uma catolicidade (autoridade da tradição e universalidade da Igreja),
portanto postulando uma continuidade que as assemelhavam à interpretação teológica da
história nos escritos até 1963.
O desaparecimento dessa catolicidade foi a ocasião de uma inversão na qual a
descontinuidade histórica torna-se o postulado e a continuidade espiritual um ato a ser
produzido. Chamo de gesto teológico a maneira como ele irá responder aos desafios da voz
historiadora e da cultura não religiosa em seus textos sobre a prática cristã. É a produção de
um discurso particularmente cristão nas cercanias das ciências humanas. É como Certeau faz
funcionar um resíduo de inteligibilidade cristã em dado plano epistemológico não fundado
sob postulados cristãos. Esse gesto teológico feito por um corpo não teológico será
caracterizado por uma dupla diferença em relação ao passado cristão e ao presente histórico, o
qual Michel de Certeau irá explorar, nuançar, radicalizar, enfim, “gestualizar” de diversas
maneiras.
A pluralidade da tradição jesuítica (sua multiplicidade e divergência) já aparecia nos
parágrafos acima, nos quais eu comentava a crítica histórica de Certeau ao retorno às origens
em L’épreuve du temps. No mesmo artigo, Certeau não hesita em questionar “a tradição” (o
grifo é do próprio Certeau), no sentido unitário que até pouco tempo ele mesmo lutava para
manter em meio a crescente constatação de suas “renovações”:
185

Mas o que assim chamamos não é o que ontem ou anteontem era colocado
sob o mesmo nome. O passado em relação ao qual nós temos hoje que nos
situar se difrata em mil ‘passados’ diferentes.99
Uma vez consideras essas “multitudes de momentos” (multitude de moments)
definidas “pela decisão que criava um passado ao mesmo tempo que um presente”, 100 Certeau
logo enceta a ruptura como elemento constituinte de toda relação com a tradição: “E cada vez,
no ensino ‘recebido’, algumas ausências ou pelo menos distorções atraiçoam uma ruptura
(muitas vezes inconsciente) e um movimento de subsolo, uma renovação da tradição”.101
A afirmação da pluralidade e da ruptura não poderiam ter sido tratados de forma a não
fraturar completamente a tradição, ou seja, garantindo a manutenção de uma catolicidade?
Esse caminho talvez poderia ter sido trilhado se fosse a voz do teólogo de formação, do
jesuíta identificado com a Companhia ou do padre fiel à autoridade da Igreja que falasse.
Obviamente, sua formação, sua vinculação institucional e seu trabalho como padre não
evaporam. Mas é a “paixão do historiador” (passion de l’historien) reclamada por ele que
irrompe nessas páginas. Essa voz historiadora associa uma problematização que fornece
indícios para uma resposta à pergunta do início deste parágrafo:
Conseguirá ela [a história] descobrir os cristãos e os jesuítas de ontem tal
qual foram, sem transformá-los em bibelôs e argumentos, sem os converter
nestes “entes queridos”102 maquiados segundo as exigências de uma teologia
ou de uma apologética e destinados a satisfazer nossas avidezes, nossos
medos ou nossas polêmicas? 103
A limitação do trabalho histórico em ressuscitar os mortos será tratado por Certeau
como uma forma de resistência do passado. Essa dificuldade encontrada em sua prática
histórica sobre os séculos XVI e XVII será o ponto de partida de suas reflexões
epistemológicas sobre a ciência histórica entre 1967-1968. Essa dificuldade é acompanhada
por outra, a produção do passado segundo pretensões do presente. Ela será atribuída ao seu
desejo de identidade, ou como aparece nesse artigo seminal para cartografar a reorientação em
suas pesquisas, à “teologia” e à “apologética” (disciplina ou postura teológica responsável

99
“Mais ce qui nous appelons ainsi n’est pas ce qui, hier ou avant-hier, était mis sous le même nom. Le passé
par rapport auquel nous avons aujourd’hui à nous situer se diffracte en milles « passés » différents”.
CERTEAU, Michel de. L’épreuve du temps. Christus, t. 13, n. 51, p. 311-331, juil. 1966, p. 322.
100
“[...] par la décision qui créait un passé un même temps qu’un présent”. Ibid., p. 322.
101
“Et chaque fois, dans l’enseignement « reçu », quelques absences ou tout au moins des distorsions trahissent
une rupture (souvent inconsciente) et un mouvement du sous-sol, un renouveau de la tradition”. Ibid., p. 322.
102
Referência ao livro The loved one de Evelyn Waugh, traduzido em francês como Le cher disparu e em
português como O entre querido. Certeau fará referência ao autor do livro em: CERTEAU, Michel de. L’absent
de l’histoire. Paris: Repères/Mame, 1973. p. 175.
103
“Parviendra-t-elle [a história] à découvrir tels qu'ils furent les chrétiens et les jésuites d'hier, à ne pas les
transformer en bibelots et en arguments, à ne pas les changer en ces « chers disparus » maquillés selon les
exigences d'une théologie ou d'une apologétique et destinés à satisfaire nos avidités, nos peurs ou nos
polémiques ?”. CERTEAU, op. cit., p. 317-318.
186

pela defesa da fé cristã). Levando em conta que Certeau passa a combinar renovação e
ruptura, bem como a questionar o desejo – o seu próprio para ser mais exato – de encontrar na
tradição os tesouros para o seu presente, parecia inevitável uma fratura da tradição e a
dissolução da catolicidade.
Uma vez que não há mais continuidade pressuposta, serão a descontinuidade histórica
e a decorrente ruptura com a tradição o ponto de partida para qualquer tentativa de superação
dessa distância. O que ocorre é um deslocamento de um postulado teológico da continuidade
para um postulado histórico da descontinuidade. O primeiro era suposto ou afirmado como
garantia de identidade cristã em tempos históricos distintos. O segundo assume um risco
próprio da existência no presente, princípio de inteligibilidade descristianizada para o qual ler
não pode ser senão em função de um corte epistemológico com um princípio teológico
tradicional.104
Essa mudança pode ser verificada no modo como Certeau se aproxima de santo Inácio
nesse mesmo texto. Para Certeau, onde hoje poderia ser discernido um desajuste no passado,
os cristãos antigos veriam continuidade. Santo Inácio, por exemplo, repetia a grande voz da
tradição, não tinha o sentimento de inovar. Ele predicava uma vida nos moldes da ortodoxia
estabelecida e uma educação submetida à tradição recebida. Ele, como outros, encarava como
acusação qualquer indicação de inovação apontada em sua doutrina. Sua pretensão era
reproduzir o passado. Onde pensava preservar, inovava.
Eis a interpretação de Certeau ao comparar a situação dos primeiros jesuítas com a de
seu tempo:
De ambos os lados, continuidade e descontinuidade são igualmente certas,
mas desigualmente conscientes: é a partir de um distanciamento que
devemos encontrar o sentido da nossa história. O que era para eles
participação em uma vida recebida, nós o formulamos como uma ruptura. A

104
Claude Geffré fala de um modelo epistemológico “dogmatista” baseado unicamente na autoridade do
magistério ou da Bíblia. Ele associa esse modelo à escolástica católica que predominou até o Vaticano II.
Certeamente, Certeau já se mostrava ligado a uma abordagem bem mais plural no primeiro momento de sua
trajetória, naquele ambiente de uma nouvelle théologie tão relevante nessa abertura da teologia à modernidade.
Por “princípio teológico tradicional” entendo o esforço desejoso de preservar a autoridade do magistério cristão,
mesmo em uma teologia não dogmatista. Os textos de Certeau a partir de 1966 desenvolverão uma visão ainda
mais radicalmente plural da pluralidade se comparado com seus textos anteriores e mesmo com o modelo
hermenêutico descrito por Geffré. A verdade cristã em Certeau será disseminada ao ponto da impossibilidade de
falar em uma identidade da experiência crente. Pensar o cristianismo diante dessa impossibilidade foi
provavelmente a principal tarefa de sua reflexão histórico-teológica a partir da inversão ocorrida em seus textos
na segunda metade dos anos 1960. A diferença entre o paradigma dogmático e o hermenêutico foi tratada por
Geffré em: GEFFRÉ, Claude. (1983) Como fazer teologia hoje? Hermenêutica teológica. São Paulo: Paulus,
1989. p. 63-88.
187

decisão de viver hoje implica para nós, vis-à-vis o passado, uma heresia do
presente.105
Essa constatação da diferença entre duas épocas históricas testemunha a passagem
entre dois momentos do próprio Certeau. A distinção feita por ele entre a produção de uma
diferenciação histórica no interior da tradição na época de santo Inácio e de uma fidelidade
espiritual na exterioridade histórica de seu tempo poderiam representar as duas maneiras dele
mesmo relacionar passado e presente antes e após esses textos de 1966.
Seguramente, há uma diferença na relação entre continuidade e descontinuidade no
século XVI e no “primeiro” Certeau, pois este fala uma linguagem cara à modernidade
teológica do século XX. No entanto, o impacto que a “crítica” à tradição tinha no discurso
histórico da modernidade era absorvido por seu esforço em não questionar a autoridade da
tradição cristã. É a coexistência inversa entre continuidade e descontinuidade que permite
emergir a contradição entre o presente e o passado cristão. À crítica histórica da tradição
corresponde a uma ruptura, “coragem de existir” (courage d’exister) como a define o nosso
jesuíta.106
Por outro lado, persiste uma operação de leitura tanto dependente quanto particular
frente ao conhecimento histórico, articulação entre essa “paixão do historiador” e o
discernimento de uma inteligência espiritual que faça jus à manutenção da especificidade do
substantivo que nomeia sua fé. Para poder dizer “sou jesuíta”, é preciso manter uma posição
relativamente suspensa em relação a cultura de um tempo. Esse gesto teológico fornece uma
expressão espiritual não redutível à linguagem de um contexto histórico, embora dela
inseparável. Ele faz funcionar uma modalidade de relações tensas e mutuamente interferentes
entre o passado e o presente.
Nesse sentido, origem não é totalmente alheia, pois possui um significado para o
presente, nem totalmente atual, pois é produto de outra época. Admitir isso é permitir um
“reconhecimento mútuo” (reconnaissance mutuelle), isto é, dar “a esse passado o direito de
nos resistir, (porque ele é outro e dependemos dele)” e aceitar “que temos a força de resistir-
lhe (porque somos ainda capazes de criar)”.107

105
“De part et d’autre, continuité et discontinuité sont également certaines, mais inégalement conscientes : c’est
à partir d’une distanciation que nous avons à trouver le sens de notre histoire. Ce qui était pour eux
participation à une vie reçue, nous le formulons comme une rupture. La décision de vivre aujourd’hui implique
pour nous, vis-à-vis du passé, une hérésie du présent ”. CERTEAU, Michel de. L’épreuve du temps. Christus, t.
13, n. 51, p. 311-331, juil. 1966, p. 328. Grifo nosso.
106
Ibid., p. 327.
107
“[...] a ce passé le droit de nous résister (parce qu’il est autre et que nous en dépendons) [...] nous avons la
force de lui résister (parce que nous sommes encore capables de créer)”. Ibid., p. 317. Grifo nosso.
188

Mais uma vez, a interpretação espiritual recorre ao conhecimento histórico para jogar
fermento crítico na relação com o passado: “Estamos com nosso passado para julgar o que
veem nele os historiadores atuais, e com esses historiadores para selecionar e compreender
esse passado nos distinguindo dele”.108
Um uso “negativo” da história agora permite não apenas renunciar certos
automatismos como havia sido o caso em outro momento, mas tem por efeito a produção de
uma ruptura em relação a esse passado. A análise historiadora torna perceptível o laço do
passado religioso com a época em que se inscrevia. Ela deixa ver como as realizações
espirituais originais correspondiam ao tempo que as viu nascer. Dessa maneira, o cristão pode
ver suas instituições e concepções como sobrevivências, tirando disso uma lição de abertura
para o seu próprio tempo.
Em contrapartida, certa distância é estabelecida entre o exame histórico e o teológico.
Certeau defende a necessidade de não resumir a inteligência de um movimento espiritual ao
universo cultural de uma época. Com isso ele se refere não às “‘coisas’ do espírito” (« choses
» de l’esprit), mas a um “ato espiritual” (acte spirituel), uma “meta religiosa” (visée
religieuse) ou um “sentido de Deus” (sens de Dieu).
Portanto, há tanto uma solidariedade quanto uma liberdade em relação ao passado. A
esse respeito, à experiência historiadora de Certeau acrescenta-se seu crescente interesse pela
psicanálise. Relida sempre com os outros e frente eles, “a história se torna uma psicanálise do
presente: ‘cenas primitivas’ ressurgem no curso deste diálogo atual, e este as muda na medida
em que nele descobrimos o condicionamento de um risco novo”.109
A participação na cultura de um tempo produz uma ruptura com a tradição (o cristão
de hoje é diferente dela) e determinado elemento da tradição sobrevive já modificado por essa
nova linguagem cultural (o cristão renova a tradição e com essa renovação difere da cultura de
um tempo). A continuidade da tradição no presente é possível apenas como sobrevivência em
um mundo que não é seu. E a sua forma alterada pelo seu diálogo com o mundo atual está em
continuidade com o passado (sua fidelidade), mas como sinônimo de semelhança, analogia,
equivalência, proximidade, solidariedade, união ou comunhão.
Nesse sentido, o desafio não é encontrar algo do passado que deva permanecer
intocado no presente ou vice-versa – esse tipo de garantia parece já ter sido abdicada por

108
“[...] nous sommes avec notre passé pour juger ce qu’y voient les historiens actuels, et avec ces historiens
pour trier e comprendre ce passé en nous en distinguant”. CERTEAU, Michel de. L’épreuve du temps. Christus,
t. 13, n. 51, p. 311-331, juil. 1966, p. 320.
109
“[...] l’histoire devient une psychanalyse du présent: des ‘scènes primitives’ resurgissent au cours de ce
dialogue actuel, et celui-ci les changes dans la mesure où nous y découvrons le conditionnement d’un risque
nouveau”. Ibid., p. 321-322.
189

Certeau. Para o jesuíta, o dever é “distinguir, no presente, a heresia necessária e a heresia


condenável”.110 Para isso, é preciso empenhar-se em uma “verificação negativa” (vérification
négative) por meio do estudo da tradição. Isso significa identificar aquilo que o presente não
é, reconhecendo um ato espiritualmente expressado em seu passado e de algum modo comum
ao acolhimento do mundo e das tarefas de hoje. Nesse texto de Certeau, esse “comum”
espiritual a posteriori, o signo dessa vocação cristã, é a reciprocidade entre as gerações e entre
os membros de uma comunidade como ele já tinha constatado nas origens da Companhia de
Jesus.111
Dessa maneira, uma dupla confrontação é vista como pertinente: um diálogo com os
contemporâneos e um diálogo com a tradição, caminho de reconhecimento mútuo. Como
Inácio de Loyola, é preciso experimentar os recursos disponíveis em seu tempo, romper com
seu passado para encontrar Deus junto a seus contemporâneos, e discernir os critérios de uma
“docilidade inaudita”.112 Ser fiel à tradição significa então firmar compromissos inéditos,
pagar o preço por experimentar a participação no presente: “uma nova audácia segue sendo o
momento decisivo da fidelidade”.113 Portanto, a ruptura tem dupla expressão na pena de
Certeau: ruptura com o passado e ruptura com uma mesma época. Essa dupla ruptura é a
expressão do gesto teológico nessa reflexão de Certeau.
Ele avança sua articulação entre crítica histórica e gesto teológico ao fazer um exame
da espiritualidade no artigo Cultures et spiritualités, impresso na seção temática spiritualité
da Concilium, revista internacional de teologia criada no contexto do Concílio Vaticano II.
Nesse artigo publicado em novembro de 1966, Certeau reafirma o estreito vínculo entre a
transformação do vocabulário espiritual e a cultura de um tempo, o compromisso da
experiência espiritual com os movimentos da história. Por outro lado, no interior de uma
cultura, de um sistema coletivo, a ruptura é o caráter particular da espiritualidade. Essa
ruptura é caracterizada por uma surpresa crescente, sustentada na fé que Deus se comunica e
desconcerta através das circunstâncias humanas. Sua ousadia “consiste em querer ir até o
extremo das tensões e ambições próprias de um tempo. Em levar a sério uma rede de
intercâmbios para alcançar e reconhecer nela o advento de Deus”.114

110
“[...] distinguer dans le présent l’hérésie nécessaire et l’hérésie condamnable”. CERTEAU, Michel de.
L’épreuve du temps. Christus, t. 13, n. 51, p. 311-331, juil. 1966, p. 330.
111
“C’est cette réciprocité qui triomphera des différences en les conjuguant et qui forme elle-même le langage
d’un esprit jamais localisable quelque part”. Ibid., p. 330.
112
Ibid., p. 331.
113
“Une audace nouvelle reste le moment décisif de la fidélité”. p. 331.
114
“Consiste à vouloir aller jusqu'au bout des tensions et des ambitions propres à un temps; à prendre à sérieux
un réseau d’échanges pour attendre et y reconnaître l’avènement de Dieu”. Id. Cultures et spiritualités.
Concilium, n. 19, p. 7-25, nov. 1966, p. 17.
190

A primeira forma de ruptura, a distância do cristão frente sua própria tradição, é


consequência de uma solidariedade com uma linguagem não evangelizada. Nessa dinâmica
entre uma tradição e um enraizamento em uma comunidade humana, “um pertencimento
humano se prova apto para tornar-se a linguagem nova de uma experiência espiritual”.115
Uma insuficiência dos signos religiosos e um atrevimento da fé dimensionam a adesão a uma
nova cultura como universo possível da experiência espiritual.
Contudo, nessa linguagem humana onde deveria encontrar o que buscava percebe uma
novamente uma falta. A comunicação humana fornece recursos a partir dos quais o cristão
renova seus questionamentos, sem dar-lhe as respostas que procura. Como na primeira forma
de ruptura, o insucesso chama a outra inovação: “a fé é essa descoberta que reconhece, na
linguagem cotidiana, a palavra de Alguém a quem responder”.116
Essa linha argumentativa trazida por Certeau permite recolocar em pauta sua relação
com o mistério. A ideia de uma ausência física e uma presença espiritual do Cristo parece
manter sua influência sobre o pensamento teológico do jesuíta. Algumas formulações o
comprovam: “toda linguagem humana possui um sentido divino”;117 “manifestação do
Verdadeiro”;118 “uma Presença que as ausências e as ultrapassagens jamais deixaram de
soletrar”.119
No entanto, essa fé na presença espiritual na dimensão humana já parece conflitar com
a consciência da perda irremediável que os próximos anos aos poucos incutirão como
sustentáculo teológico em seus textos. Se Certeau fala de “uma Presença que é ao mesmo
tempo sentido e futuro”,120 tudo leva a crer que o progresso rumo à apreensão dessa verdade,
como o paradoxo da possessão previa, esvai-se na medida em que uma falta se torna o signo
das provocações do Espírito: “Todas as obras da comunicação humana são para ele signos que
renovam sua questão sem responder-lhe: ‘Onde você está oculto?’ Elas nunca formulam mais
que seu desejo”.121
Certeau esclarece que a certeza desse sentido divino da linguagem humana só pode ser
lúcida se ela comporta um caráter negativo. Ela toma por referência uma presença cuja

115
“Une appartenance humaine s’avère apte à devenir le langage nouveau d’une expérience spirituelle”.
CERTEAU, Michel de. Cultures et spiritualités. Concilium, n. 19, p. 7-25, nov. 1966, p. 19.
116
“La foi est cette découverte qui reconnaît dans le langage quotidien la parole de Quelqu’un à qui répondre”.
Ibid., p. 19.
117
“[...] tout parler humain a un sens divin”. Ibid., p. 19
118
“[...] manifestation du Véritable”. Ibid., p. 21.
119
“[...] une Présence que les absences et les dépassements n’ont jamais fini d’épeler”. Ibid., p. 21.
120
“[...] une Présence qui est tout à la foi sens et avenir”. Ibid., p. 20.
121
“Toutes les œuvres de la communication humaine lui sont des signes qui renouvellent sa question sans y
répondre: « Où donc es-tu caché? » Elles ne formulent jamais que son désir ”. Ibid., p. 19.
191

manifestação impugna certezas, abre na existência uma necessidade do outro e desvela-se


como aquilo sem o qual não é possível viver. Pelo que parece, a ferida da ausência já
assombra Certeau mais do que ele se atreve admitir, uma vez que o que se doa escapa nesse
próprio dom, presença que não é possível recusar tampouco capturar. Alguns anos depois, ele
não se intimidará em formular explicitamente o problema com auxílio de Heidegger: mais que
um “avanço do ser” é um “avanço da ausência”.122
A esse respeito, Certeau retoma a argumentação desenvolvida em seu artigo sobre as
origens espirituais da Companhia. O contraponto para essa falha na apreensão da presença em
momentos particulares parece ser a “dupla ruptura” (double rupture), na qual a espiritualidade
é entendida como um movimento não identificado com qualquer uma de suas partes. Certeau
entende esse movimento da dupla ruptura como uma dialética cuja confrontação das
diferenças é realizada pelo reconhecimento e pela crítica mútua de seus componentes. A
reciprocidade e o deterioramento dos dados sucessivos nos quais os cristãos pensavam poder
depositar a presença remete à sua verdade: “o sentido do outro” (le sens de l’autre).123
Ao anunciamos um “sentido do outro” não arriscaríamos transformá-lo em “mesmo”?
Quiçá por esse motivo Certeau tenha elegido a “presença do outro” como o “princípio de um
movimento espiritual na cultura moderna”. 124 Assim, um drama espiritual parece começar a
deixar seus rastros nessas páginas. O mesmo padre que não abdica à “graça de buscar Deus na
linguagem de seu tempo”125 faz da “‘decepção’” (« déception ») o signo dessa espiritualidade:
“a ‘ruptura’ é a forma assumida por uma dependência recíproca; é o avesso, talvez o único
exprimível, da caminhada em direção a Deus”.126
Diante do exposto, fica evidente a impossibilidade de depositar Deus em determinada
relação com a tradição da Igreja ou em um vínculo compartilhado com o mundo. A
experiência espiritual encontra sua ancoragem na reciprocidade, no encontro da linguagem
122
CERTEAU, Michel de. Autorités chrétiennes. Études, t. 332, p. 268-286, févr. 1970, p. 272. Certeau remete
ao tratamento de Heidegger sobre a expressão es gibt em: HEIDEGGER, Martin. Temps et être. In: L’endurance
de la pensée. Pour saluer Jean Beaufret. Paris: Plon, 1968. p. 54-55. Em outro artigo da mesma época, ao tratar
da experiência espiritual, isso aparecerá nos termos que recolhe na tradição muçulmana: “Deus é maior”.
Pseudo-Dionísio, Jean-Joseph Surin e Heidegger são outras referências recorridas para expressar a questão. Id.
L’expérience spirituelle. Christus, t. 17, n. 68, p. 488-498, oct. 1970. Essa feição mística da experiência, em
alguma medida, autoriza caracterizar o tratamento de Certeau sobre a espiritualidade como uma espécie de
teologia negativa. Sobre a proximidade de Certeau com a teologia negativa, ver: BERTRAND, Dominique. La
théologie négative de Michel de Certeau. In: GEFFRÉ, Claude (Dir.). Michel de Certeau ou la différence
chrétienne. Paris: Les Éditions du Cerf, 1991. p. 101-127; QUIRICO, Monica. Michel de Certeau e la teologia.
In: La differenza della fede: singolarità e storicità della forma cristiana nella ricerca di Michel de Certeau.
Cantalupa: Effatà editrice, 2005. p. 225-233.
123
CERTEAU, Michel de. Cultures et spiritualités. Concilium, n. 19, p. 7-25, nov. 1966, p. 20. Grifo do autor.
124
“[...] une présence de l’autre, principe d’un mouvement spirituel dans la culture moderne”. Ibid., p. 24.
125
“[...] grâce de chercher Dieu dans le langage de son temps”. Ibid., p. 25. Grifo nosso.
126
“La « rupture » est la forme que prend une dépendance réciproque; c’est l’envers, peut-être seul exprimable,
du cheminement vers Dieu”. Ibid., p. 20. Grifo nosso.
192

religiosa com a linguagem não religiosa, movimento onde as rupturas se processam, diálogo
que evolui deslocando valores e interesses, fidelidade “herética” incessante do movimento da
fé. Essa modalidade de relações entre passado e presente em sua dupla ruptura é o “sentido”
espiritual nesses textos teológicos que o historiador Michel de Certeau publica em 1966.

3.4 A docilidade e a audácia de santo Inácio

Essa mudança também se encontra na atuação pastoral e institucional de Certeau na


Companhia de Jesus. Para mostrá-lo, tratarei como a fidelidade e a ruptura passam a andar de
mãos dadas em seus sermões e demais formas de atuação na ordem, como encontrado em seus
documentos disponíveis nos arquivos jesuítas. Certeau pensa uma via de adesão ao
cristianismo fincada na docilidade e na audácia.
Em um dos sermões de Certeau, a ênfase na docilidade e na audácia de santo Inácio
não será isolada da interpretação sobre o soldado de Cristo no artigo L’épreuve du temps. A
imagem do companheiro que corria os riscos da novidade de sua época é análogo ao olhar
histórico sobre o jesuíta que inovava mesmo onde acreditava preservar.
Certo lirismo e piedade também marcam esse elogio. A docilidade e a audácia “de
santo Inácio” são também as do padre Certeau. Se o par representa a espiritualidade de santo
Inácio, então Certeau terá sido profundamente inaciano mesmo em seus textos mais
provocativos. A docilidade inaudita à tradição e a audácia de existir hoje são os traços
inacianos que podemos encontrar pulsando em cada um de seus gestos teológicos, como a
“união na diferença” que logo trataremos.
Em outro momento, seria possível testemunhar Certeau reivindicando em favor da
vida espiritual apesar da diferença das experiências humanas frente à orientação cristã. Ele
alertava para o peso da realidade diária e como ela podia reter os pés exclusivamente no
mundo, distração consequente não apenas da covardia ou do pecado, mas reflexo do peso das
obrigações correntes. Por causa delas, o homem não seria livre. O “trabalho, a família, as
relações sociais já ocupam o espírito e o tempo”.127 A vida é um espaço ocupado, absorto em
tarefas que lhe fazem prisioneiro. Então, “onde encontrar ainda um lugar para essa linguagem

127
“[...] métier, la famille, les relations sociales occupent déjà l'esprit et le temps”. CERTEAU, Michel de. La
prière de l’homme moderne, texto manuscrito, 15 de abr. de 1959, caixa 2, Arquivo da Companhia de Jesus,
Vanves, p. 4.
193

misteriosa endereçada a Deus [a oração], para uma ocupação a mais”? 128 E embora Certeau
em momento algum dessa reflexão defenda uma vida religiosa apartada das responsabilidades
do mundo moderno, é notável como a vida cotidiana, em sua própria dinâmica, podia ser vista
como empecilho à vida do espírito e à tradição cristã cada vez mais estranha à realidade do
presente. O mesmo não pode ser dito acerca das palavras que profere sobre Inácio de Loyola.
Em um sermão ministrado no dia 31 de julho de 1965, dia de santo Inácio no
calendário cristão, Certeau ensinava sobre a profunda aderência do religioso do século XVI às
demandas cotidianas da existência humana. Segundo ele, o esforço de santo Inácio consistia
em distinguir o que é mais importante nas coisas que se oferecem aos homens, ou seja, em
aprender a “discernir a vontade do Deus que ‘trabalha’ no mundo, fazer uma escolha
espiritual no vasto campo de circunstâncias, desejos e obstáculos de todos os tipos”. 129 Para
Certeau, santo Inácio, embora dotado de alma conquistadora, soube permanecer dócil a terra,
submisso ao real e ao apelo dos acontecimentos e dos encontros, para nelas descobrir o que há
de mais verdadeiro: “incontestável como o sol cujo calor e luz recaem sobre a colheita, Deus é
o Real”.130
Como Inácio, é necessário estar atento a isso que cresce na vida humana, defender o
que surge nela, ser dócil a sua realidade, “tarefa dilatadora, pois consiste em descobrir a vida
do Espírito em todas as encruzilhadas”.131 Como o pioneiro jesuíta, é preciso manter-se atento
e dócil “às grandes coisas que suscita, no coração da vida cotidiana, essa boa semente que é o
Cristo”;132 livres, audaciosos e realistas ao que de divino e imprevisível brota no homem; e
humildades, uma vez que essa atividade depende de pessoas e situações que testemunham
uma realidade oculta, ainda desconhecida.
Naquele mesmo ano, a leitura que Certeau faz do “mistério da verdade”, vivido
cotidianamente nas relações conjugais, exprime a questão ainda mais claramente. Verdade
não enquanto ideias ou princípios que determinam um objeto, mas como algo interior à
experiência, alcançada apenas progressivamente e em conjunto, nas alegrias, exigências e
responsabilidades dos engajamentos recíprocos: “‘fazer a verdade’ é inventar-vos um ao

128
“Où trouver encore [...] une place pour ce langage mystérieux adressé à Dieu, pour une occupation de plus
[...]”. CERTEAU, Michel de. La prière de l’homme moderne, texto manuscrito, 15 de abr. de 1959, caixa 2,
Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves, p. 4.
129
“[...] discerner la volonté du Dieu qui ‘travaille’ dans le monde, faire un choix spirituel dans le vaste champ
des circonstances, de désirs et des obstacles de toute sorte”. Id. S. Ignace, texto datilografado, 31 de jul. de
1965, caixa 2, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves, p. 1.
130
“Incontestable comme le soleil dont la chaleur et la lumière tombent sur les moissons, Dieu est le Réel”. Ibid.,
p.1.
131
“Tâche dilatante, car elle consiste à découvrir la vie de l’Esprit à tous les carrefours”. Ibid., p. 2.
132
“[...] aux grandes choses que suscite, au cœur de la vie quotidienne, cette bonne semence qu'est le Christ”.
Ibid., p. 2.
194

outro”, declara o sacerdote aos noivos.133 E diferente do que poderia parecer, em nada isso se
assemelha a um conto de fadas, porque essas descobertas marcam uma fidelidade, e a
fidelidade nada tem de onírico, de utopia. Ao contrário, ela adere ao real, é “dócil ao apelo
dos eventos e sabe respondê-lo com audácia”,134 faz da realidade cotidiana sua obra e seu
êxito.
No dia de santo Inácio, agora no calendário litúrgico de 1966, Certeau ministrará outro
sermão sobre o fundador da ordem dos soldados de cristo, levando sua defesa da necessária
adesão à vida cotidiana ainda mais longe. É bastante curioso ver seu pertencimento à ordem
sendo performado no entusiasmo com o qual narra os feitos de Loyola, quando consideramos
que sua pregação do “espírito” jesuíta naquela comemoração religiosa presta contas às
conclusões as quais chegou como historiador, como pôde ser visto em seus artigos naquele
mesmo ano. É a “audácia” de santo Inácio o alvo do elogio de Certeau. O que ele mais admira
no principal nome da ordem é justo o que lhe autoriza diferir dela, exemplo prático da
fronteira entre docilidade e audácia que não cessará de ser a forma da fidelidade em Certeau a
partir de então.
Santo Inácio, em sua juventude, era ambicioso, seduzido por gestos notáveis, apegado
a coisas grandiosas. Ele “estimava ser amado, e havia nele um lado Dom Quixote que se
encontra até depois de sua conversão, quando ele sonha em ser um herói de Deus”.135 Esse
ímpeto heroico era inspirado nos grandes santos cujos atos lendários ele ansiava repetir: “‘O
que fez Francisco de Assis, o que fez Domingos, também o farei’”. 136 Sonhador, “ele prefere
o passado ao presente, cede ao prestígio do excepcional e ainda não discerne Jesus de Nazaré
nas tarefas e urgências atuais”.137
Mas Inácio logo percebe que a perfeição não está no extraordinário, em sonhos
fascinantes que são igualmente “medo de ser nós mesmos, de sermos apenas homens, hoje,
modestamente”.138 Depois de tantas aventuras, de ter vagado pelo Mediterrâneo e reunido
discípulos ao seu redor, já em idade avançada e abastado de experiências, decidiu ir à escola.
Indo para a Universidade de Paris, longe de casa, recomeça sua vida.

133
“‘Faire la vérité’, c'est vous inventer l’un l’autre [...]”. CERTEAU, Michel de. Mariage de Christian Foulla et
Anne de la Rorie, texto datilografado, 25 de mar. de 1965, caixa 2, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.
134
“[...] docile à l'appel des évènements et elle sait y répondre avec audace”. Ibid.
135
“Il aimait être aimé, et il y avait chez lui un côté don Quichotte qui se retrouve jusqu'après sa conversion,
lorsque [...] il rêve d'être un héros de Dieu [...]. Id. Saint Ignace de Loyola, texto datilografado, 31 de jul. de
1966, caixa 2, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.
136
“‘Ce qu'a fait François d'Assise, ce qu'a fait Dominique, je le ferai aussi’". Ibid.
137
“Il préfère le passé au présent; il cède au prestige de l'exceptionnel et ne discerne pas encore Jésus de
Nazareth dans la modestie des tâches et des urgences actuelles”. Ibid.
138
“[...] peur d'être nous-mêmes, de n'être que des hommes, [...] aujourd'hui, modestement”. Ibid.
195

Inácio adentra efetivamente em um novo tempo, experimenta os utensílios de sua


época, corre o risco que a novidade do presente impõe. Esse risco, penso ser justo a “heresia”
do presente do qual ele falava em outro lugar, embora agora no tom e expressão adequados à
situação comunicativa da pregação: ele “rompe com seu passado para encontrar Deus onde
seus contemporâneos trabalham”.139 Colaborando com a audácia de seu tempo, “ele participa
de uma nova tarefa, sabendo que o labor e as criações dos homens são seu encontro com
Deus”.140
A esta altura do trabalho pastoral de Certeau, dois elementos anteriormente presentes
aparecem de mãos dadas. São eles a obediência e a conversão contínua. Se a fidelidade já
congregava esse par em suas pregações e intervenções em retiros espirituais, agora ganha uma
expressão particular. Ele não é superação do pecado, progressão espiritual que efetiva a
obediência à tradição e realiza o sentido cristão da história. Ele ganha espessura imanente, é
conversão efetuada por meio do pertencimento às características históricas de um tempo que
não é o mesmo de antes, imersão nas exigências, imposições e desafios próprios de uma época
que é a sua.
Como admoesta o sacerdote, a “fidelidade a Deus só pode se expressar por meio de
um recomeço corajoso, através da tarefa humana. A docilidade e audácia andam de mãos
dadas”.141 A adesão às responsabilidades humanas “deve tornar-se a linguagem e a invenção
da caridade”. Para tanto, é preciso voltar à escola:
Qual escola? A dos outros, a dos nossos filhos, a das novas técnicas, a do
progresso, dos acontecimentos e dos imprevistos... Precisamos desaprender
nossos sonhos e perder as seguranças que nós temos do passado para seguir
em frente. Essa será, modestamente, a nossa maneira de pagar o preço de
uma participação na tarefa presente.142
Na escuta do outro de hoje e na renúncia ao privilégio de ontem faz-se possível
encontrar a modéstia e a audácia necessárias à caridade. E agora esse termo é a rubrica de
algo distinto do que designava antes: ser caridoso é estar a serviço do presente, é “ir à escola

139
“Il brise avec son passé pour trouver Dieu là où travaillent ses contemporains”. CERTEAU, Michel de. Saint
Ignace de Loyola, texto datilografado, 31 de jul. de 1966, caixa 2, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.
140
“[...] il participe à une tâche nouvelle, sachant que le labeur et les créations des hommes sont leur rendez-
vous avec Dieu”. Ibid.
141
“[...] fidélité à Dieu ne peut s'exprimer qu'à travers un recommencement courageux, à travers une tâche
d'homme. Docilité et audace vont de pair”. Ibid. Grifo nosso.
142
“Quelle école? Celle des autres, celle de nos enfants, celles des techniques nouvelles, celle des progrès, des
événements et des imprévus... Il nous faut désapprendre nos rêves et perdre les sécurités que nous tenons du
passé, pour aller de l'avant. Ce sera, modestement, notre manière de payer le prix d'une participation à la tâche
présente [...]. Ibid.
196

para tornar-se aluno e abri-lo para Deus”.143 Quem vai à escola aprende e adere à novidade
nos desafios dessa participação. Caridade é audácia, é risco, é ruptura.
Como foi possível ver, a caridade torna-se o acolhimento do presente que permite a
reconversão exigida pela fidelidade. É factível dizer que essa pregação está ancorada na
convicção de que o presente é outro em relação ao passado cristão, é povoado por vozes
dissonantes que expressam uma realidade não raro contrária à verdade de sua fé, mas sem a
qual já não pode existir.
Então, tomar parte nas tarefas humanas atuais significaria atrever-se a colaborar com
essa distância. Se o cristão precisa voltar à escola, como Certeau salienta na analogia com
santo Inácio, as lições que ele precisaria aprender seriam a diferença do presente e a expressão
espiritual por meio de signos estranhos à sua fé. Dessa maneira, a alteridade do presente
coloca o problema da descontinuidade histórica e da ruptura com a tradição no coração da
linguagem da Igreja.
Como já pode ser visto no sermão sobre santo Inácio, é a linguagem de um tempo
histórico preciso que possibilita o que é recebido do passado cristão ser expressado
espiritualmente no presente. Ainda em julho de 1966, Certeau explorou a questão mais
extensamente em sua intervenção intitulada La crise du langage religieux, no encontro sobre
a fé e o ateísmo organizado pelo Centre Catholique Universitaire de Grenoble. Nesse material
composto pela transcrição da exposição de Certeau, o exemplo de Jesus é explorado como o
testemunho da docilidade e a audácia necessárias à adoção do presente. Nessa apresentação, o
elo entre descontinuidade histórica e continuidade espiritual aparece mais claramente
elaborado sob a modalidade da “união na diferença”.
De acordo com Certeau, a fala de Jesus existe no interior de numa linguagem comum.
Trata-se de palavras, pensamentos e hábitos que irrompem a partir do que é socialmente
compartilhado, jamais desterrados do solo “de um país, de um tempo, de uma cultura” 144 (a
dos judeus). Elas não se definem pelo que foi proferido, pensado ou feito em tempos idos,
“repetição do que se diz no passado, do que se recebe simplesmente por tradição”. 145 Sua
palavra é mais perigosa, perturbadora. É um ato que opera uma renovação.

143
“[...] aller à l'école pour devenir l'écolier et l'ouvrir de Dieu”. CERTEAU, Michel de. Saint Ignace de
Loyola, texto datilografado, 31 de jul. de 1966, caixa 2, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves. Grifo do
autor.
144
“[...] d'un pays, d'um temps, d'une de culture”. Id. La crise du langage religieux [Session de Currière:
langages de l’athéisme et de la foi, p. 41-54, juil. 1966], texto mimeografado, caixa 5, Arquivo da Companhia de
Jesus, Vanves, p. 42. O texto corresponde a intervenção de Certeau num curso sobre a relação entre o ateísmo e a
fé.
145
“[...] répétition de ce qui s’est dit dans le passé, de ce qui vous avez reçu simplement par tradition”. Ibid., p.
42.
197

No entanto, o cristianismo “parece ter se tornado a religião do livro, a religião de uma


tradição escrita”.146 A fé e seu ensino geralmente estão ancorados em formulações do tipo “os
pais disseram”. Isso ocorre inclusive nos ensinamentos sobre Cristo, quem “se opunha
justamente a esse gênero de referência”.147 Um risco dessa postura é tomar as mudanças
constatadas ao longo da tradição por meras diferenças de conteúdo, como suplemento de
temas e ideias sobre o que antes já era conhecido, quando a diferença entre o passado e o
presente cristão é fundamentalmente uma diferença de modalidade de comunicação, de estilo
de linguagem.
Problema semelhante é encontrado ao meditar sobre o Evangelho. A linguagem
evangélica não pode deixar de ser solidária a culturas historicamente situadas. Ela supõe outro
universo cultural. Por isso, torna-se cada vez mais desafiador fazer participar da atualidade
uma palavra que é de ontem. E se a linguagem cristã não diz nada aos outros, corre o risco de
separar o homem de si mesmo, pois ele existe nesse mundo, é constituído nas exigências e
preocupações de sua época. Tal é o paradoxo descrito por Certeau:
Somos obrigados a estar com ela [com a linguagem cristã] por causa do que
ela anteriormente nos fez pressentir da fé; por outro lado, não podemos
reconhecê-lo como totalmente nossa, já que hoje, nesta etapa da fé, de
acordo com uma série de problemas que nos são colocados, nós não
chegamos a reconhecer nesta linguagem cristã um instrumento de análise e
discernimento em relação às questões que temos o direito de lhe colocar. 148
Há uma linguagem cristã carregada de passado, obstáculo ao presente, sem vivacidade.
Suas afirmações teológicas e morais são dissonantes das urgências sociais e políticas de hoje.
Suas “verdades” estão dissociadas dos imperativos da consciência. Sua bagagem intelectual
pouco interessa ao outros. Desse modo, a palavra evangélica que era fundamentalmente
interlocução torna-se empecilho à comunicação com o diferente.
Rejeitar esse questionamento seria a pior maneira de defender uma tradição, pois a
teologia esclarece a prática cristã, seus problemas são circunscritos pela experiência, e a
dificuldade em comunicar-se é percebida justamente fazendo essa experiência:
A teologia é discurso, razão que é comunhão da fé na coerência de uma
mesma linguagem, logos da caridade, isto é, comunicação. Se a teologia tem

146
“[...] semble titre devenu la religion du livre, la religion d'une tradition écrite”. CERTEAU, Michel de. La
crise du langage religieux [Session de Currière: langages de l’athéisme et de la foi, p. 41-54, juil. 1966], texto
mimeografado, caixa 5, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves, p. 41.
147
“[...] s'opposait justement à ce genre de référence”. Ibid., p. 41.
148
“[...] nous sommes obligés d'être avec lui à cause de ce que jadis il nous a fait pressentir de le foi; d'un autre
côté, nous ne pouvons pas non plus le reconnaître comme entièrement nôtre, étant donné qu'aujourd'hui, à cette
étape de la foi, en fonction d'un certain nombre de problèmes qui nous sont posés, nous n'arrivons pas à
reconnaître dans ce langage chrétien un instrument d'analyse et de discernement par rapport aux questions que
nous sommes on droit do lui poser”. Ibid., p. 43.
198

um sentido hoje, é indicando o significado da experiência que acabei de


descrever [a do empecilho à comunicação]. 149
O mau ajustamento entre os signos de uma verdade religiosa e a realidade pode então
revelar-se fonte de renovação, já que “a posse tranquila de um conhecimento é tirada de nós, a
posse tranquila de um público é tirada de nós”.150 O aprendizado dessa pobreza acerca do
saber pode levar a reconhecer o ponto fundamental da fé, pois alerta contra ilusões, a não
“confundir a fé com uma ou outra de suas expressões históricas”.151
É assim que é possível ver o cristão falando a linguagem do ateísmo, estranha à sua
tradição. Isso porque a realidade não pode ser observada prescindindo de referências e
entendimentos não teológicos que auxiliam a explicá-la. Não é possível considerar a vida
religiosa fora do marco das mutações culturais às quais a vida em sociedade está sujeita.
Nesse sentido, há uma estrita ligação entre crise religiosa e crise cultural. Os temas antes no
centro de sua atenção sacerdotal são reempregados, dando lugar a temas caros à
contemporaneidade, como justiça, solidariedade, liberdade, etc.
Mas isso não significa reduzir o passado aos códigos do presente. Não é incomum a
adaptação ao presente submeter a linguagem cristã às dinâmicas e urgências da modernidade.
Muitas vezes o Evangelho é interpretado à luz da sociedade na qual participa o interprete, em
função da mentalidade que é a sua. Nesses casos, os textos são triados de acordo com as
concepções e necessidades de uma realidade que é do presente. Enfatizando as páginas
doutrinais, evitando os textos históricos mais embaraçosos, crê que a Igreja enfim está em
posse das verdades evangélicas, enquadrando-a sob a forma de uma orientação política
específica.
Embora descrito como um “retorno ao Evangelho”, isso não seria apenas a repetição
de uma linguagem presente? É possível então questionar “se a referência ao evangelho não
cobre, simplesmente, uma linguagem hoje comum a todas as sociedades e a toda a
consciência humana”.152 Seria o que comumente é dito sobre o presente acrescido de

149
“[...] la théologie est discours, raison qui est communion de la foi dans la cohérence d'un même langage,
logos de la charité, c'est à dire communication. Si la théologie a un sens c'est aujourd'hui en indiquant le sens
de l'expérience que je viens d'esquisser”. CERTEAU, Michel de. La crise du langage religieux [Session de
Currière: langages de l’athéisme et de la foi, p. 41-54, juil. 1966], texto mimeografado, caixa 5, Arquivo da
Companhia de Jesus, Vanves, p. 43.
150
“[...] la possession tranquille d'un savoir nous est enlevée, la possession tranquille d'un public [...] nous est
enlevée”. Ibid., p. 45.
151
“[...] confondre la foi avec telle ou telle de ses expressions historiques”. Ibid., p. 46.
152
“[...] si la référence à l'Evangile ne couvre pas, tout bonnement, un langage aujourd’hui commun à toutes les
sociétés et à la conscience humaine toute entière”. Ibid., p. 47. Grifo do autor.
199

“referências históricas mais ou menos estranhas à linguagem contemporânea, mas necessárias


à ilusão de fidelidade à tradição cristã?”.153
A inconsistência que é crer falar a linguagem do Evangelho ao falar a linguagem do
presente é a tão ilusória quanto à ortodoxia que pretende garantir a permanência de algo
fundamental à revelia das exigências atuais. Isso porque ali onde alguém pensa preservar uma
verdade cristã, está despossuído. Onde crê ter apreendido o outro, ele escapa. Esse é o próprio
desafio espiritual. Quando se está despossuído, quando os outros estão ausentes, é quando a
estrada rumo à verdade está sendo percorrida.
Não é possível concluir Deus aqui ou li, em nenhuma das experiências cristãs, passada
e presente. Essa privação está no centro da linguagem religiosa. Tal despossessão obriga a
reconhecer Deus maior do que qualquer conhecimento supostamente alcançado sobre ele,
“distingui-lo de nossas pretensões sobre os outros, ou nossas ideias sobre o Evangelho”, 154
pois “os outros nos resistem”.155 Essa “é a via pela qual reaprendemos que Deus se revela
como o Outro, por uma Aliança que é união na diferença”.156
O diálogo de Jesus com a samaritana, como Certeau o narra, esclarece melhor a
questão. O quarto capítulo do livro de João narra a passagem de Jesus por Sicar, cidade
situada na região da Samaria. Lá encontra uma mulher a quem pede água. Diante do pedido,
ela questiona como poderia um judeu pedir água a uma samaritana (como se sabe pelos
Evangelhos, os judeus não se dão bem com os habitantes de Samaria).
A mulher “situa” Jesus como judeu. Tenta identificá-lo a algo já esperado dele. Mas
Jesus desconcerta esse enquadramento. Ele é diferente da ideia que um samaritano possuía
sobre ser judeu, não está exatamente na condição que ela crê. Segundo Certeau, o mesmo
poderia ser dito quanto a um historiador, filósofo ou psicanalista que avaliassem a relação de
Jesus com um “lugar”. Embora ele tenha nascido judeu, com estes compartilhe uma cultura e
leis, não se identifica completamente com elas, com uma posição na qual é esperado poder
situá-lo. Ele opera um deslocamento interior a essa situação, excede essa localização. E a
samaritana percebe nele algo de diferente.157

153
“[...] références historiques plus ou moins étrangères au langage contemporain, mais nécessaires à l'illusion
d’une fidélité à la tradition chrétienne?”. CERTEAU, Michel de. La crise du langage religieux [Session de
Currière: langages de l’athéisme et de la foi, p. 41-54, juil. 1966], texto mimeografado, caixa 5, Arquivo da
Companhia de Jesus, Vanves, p. 47.
154
“[...] le distinguer de nos prétentions sur les autres, ou de nos idées sur l’Evangile”. Ibid., p. 48.
155
“[...] les autres nous résistent”. Ibid., p. 48.
156
“[...] c'est la voie par laquelle nous réapprenons que Dieu se révèle comme l'Autre, par une Alliance qui est
union dans la différence”. Ibid., p. 48.
157
Ibid., p. 50.
200

Jesus lhe oferece a água viva, fonte de saciedade eterna. A mulher aceita a oferta,
desejando não ter que voltar a tirar água do poço outra vez. Jesus solicita que ela chame seu
marido e volte. Mas ela lhe responde dizendo não ser casada. Então, Jesus descreve a situação
em que ela se encontrava: de fato não tinha marido; casada cinco vezes, agora vivia na
companhia de um homem com quem não havia contraído matrimônio.
Dessa maneira, Jesus remete a samaritana a si própria, não para lhe propor um modelo
ou um programa externo, mas para lhe endereçar uma questão que é própria a ela mesma,
interna à sua vida, à sua relação com os outros; para lhe ensinar a tomar sua própria
linguagem como uma questão fundamental, como o lugar objetivo a partir do qual pode ser
dada uma resposta. Se a mulher constata essa questão como o problema crucial de sua vida, “é
graças a um reencontro, pela questão que lhe põe um homem diferente; se não fosse essa
diferença e uma ruptura entre eles, nunca haveria nela a possibilidade de uma superação
interna”.158
A tensão dessa relação é o movimento da verdade. É assim que cada um está ligado e
separado dos outros. Esse é o significado da caridade no Evangelho. É o amor que não
suprime a diferença. Daí “a importância espiritual de uma dialética da união na diferença, via
que abre e permite o nascimento da fala interior de uma linguagem da comunicação”. 159
Portanto, é necessário criticar qualquer forma de localização da verdade. A verdade
nunca é dada por um dos interlocutores, como se ela devesse tornar-se a verdade do outro.
Não é possível identificar Deus com certa posição, ideia ou programa em posse de alguém.
Esse tipo de identificação é uma forma de alienação, pois reduz a existência a um saber que
vem de fora, determinada por algo a ser imitado.
A verdade só é acessada por intermédio do diálogo, “graças à resistência de outro que
me envia de volta a mim mesmo”, o que revela “uma questão já presente na minha própria
linguagem”.160 A verdade nasce como resposta a uma demanda que alguém me endereça,
como sentido nascido na linguagem que muda em seu movimento de união e diferenciação.
A partir de fontes sociais, contextos culturais e tipos de linguagem diferentes, cada
geração cristã deve dar nova vida a esse empreendimento. Para tanto, da mesma forma que
não é suficiente o apego ao Evangelho, à tradição e ao passado cristão, não basta a
158
“c'est grâce à une rencontre, par la question que lui pose un homme différent; s'il n'y avait eu pas cette
différence et une rupture entre eux, jamais il y aurait eu en elle la possibilité d’un dépassement interne”.
CERTEAU, Michel de. La crise du langage religieux [Session de Currière: langages de l’athéisme et de la foi, p.
41-54, juil. 1966], texto mimeografado, caixa 5, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves, p. 50.
159
“[...] importance spirituelle d'une dialectique de l'union dans la différence voie qui ouvre et permet la
naissance de la parole à l'intérieur 'un langage de la communication”. Ibid., p. 50.
160
“[...] grâce à la résistance d'un autre qui me renvoie à moi-même”; “[...] une question déjà présente à mon
propre langage”. Ibid., p. 51.
201

solidariedade com os as grandes questões do presente, suas ambições e desafios. Segundo


Certeau, a inserção lúcida na realidade do presente requer a distinção entre dois aspectos.
No nível da linguagem, há uma reinterpretação da realidade religiosa. Leituras
sociológicas, políticas, psicológicas, dentre outras, são legítimas e necessárias para que não
ocorra a suspensão da Igreja da realidade. Sem essas linguagens técnicas, as questões da fé
poderiam proporcionar somente uma linguagem irreal, o que “seria classificar o cristianismo
no a priori e na ficção que nega, ademais, o que afirma de si mesmo”.161 É preciso recorrer à
linguagem técnica e colocar os problemas da fé a partir dela, pois a experiência espiritual não
pode ser hoje “de um tipo diferente que aquele da linguagem falada e inventada pelos
homens”.162
O segundo aspecto remete à natureza da linguagem falada pelo cristão. A participação
na linguagem comum, no processo sociológico, político, psicológico e científico de seu tempo
deve ser constantemente o lugar de uma conversão. O sistema mental precisa ser um domínio
que permita novos tipos de diálogo, reencontro permanente que coloque em causa as
sucessivas identificações da verdade com suas expressões particulares. A tarefa da elaboração
teológica e da vida cristã é fazer dessa linguagem um espaço para a resposta às demandas
existenciais, para o diálogo e para sua intepretação espiritual.
Ao considerar esses materiais de 1966, fica claro o papel que a descontinuidade
histórica assume no interior da reflexão teológica certeauniana. Acredito ser crível dizer que
apenas recusando ao passado o direito de fornecer a direção do presente Certeau pôde
considerar a particularidade dos problemas existenciais de uma época enquanto horizonte
concreto da teologia.
Contudo, isso não significou tornar o presente o referente para o que o cristão herda do
passado, restringindo a reflexão espiritual a uma espécie de história das ideias ou de
sociologia religiosa. A descontinuidade histórica e a continuidade espiritual estão em íntimo
diálogo. Na ótica certeauniana, o “sentido” da teologia deve ser a tensão entre duas
linguagens diferentes, produzida tanto na união quanto na diferença em relação a situação
histórica que a difere das outras formas de expressão teológica anteriores.
Tal é o gesto teológico certeauniano: postura dialógica de união e diferença em
circunstâncias históricas determinadas. Esse gesto incorpora os problemas caros a um tempo e
arrisca respostas singulares a esses desafios dos quais a linguagem cristã, constantemente

161
“[...] serait classer le christianisme dans l'apriori et la fiction en niant d'ailleurs ce qu'il affirme de lui-
même”. CERTEAU, Michel de. La crise du langage religieux [Session de Currière: langages de l’athéisme et de
la foi, p. 41-54, juil. 1966], texto mimeografado, caixa 5, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves, p. 53.
162
“d'un autre type que celui du langage parlé et inventé par les hommes”. Ibid., p. 54.
202

alterada, torna-se parte, e não mais o pressuposto. O sentido teológico da história é


substituído por um sentido teológico na história.
Esse gesto teológico já aparecia na ocasião em que Certeau falou durante uma reunião
voltada às experiências e projetos sobre publicações religiosas na França em maio de 1966. 163
Em 1969 fundou a coleção Bibliothèque des Sciences Religieuses, cujo objetivo fundamental
era “articular, sobre as diferentes disciplinas da ciência ‘humana’, uma reflexão teológica”. 164
Uma orientação nessa direção já constava no documento referente à reunião em que Certeau
participara em 1966.
Naquela fala, Certeau reclamava a necessidade de reconhecer que o tema da relação
entre a experiência espiritual e a vida cotidiana não envelhece e cada vez mais se impõe à
consciência. Os cristãos estão atentos a orientações técnicas, científicas e culturais,
trabalhando segundo elas, participando de tudo o que elas trazem de novidade. Questões antes
discutidas por especialistas são agora debatidas por um público mais amplo. A situação é
intensificada com a evolução da consciência e pelo encontro entre crentes e não crentes no
âmbito dos problemas comuns ao seu tempo.
Nesse contexto, são necessárias obras que expliquem e avancem esse trabalho; livros
que interpretam os acontecimentos culturais, que permitam aos cristãos renovar seu
pensamento e sua ação em função dessas transformações, sobretudo no que se refere aos
principais problemas postos à fé cristã:
Jesus e seu Evangelho, o sentido dos sacramentos e do simbolismo cristão,
as rupturas e recomeços da tradição, o significado da fé, o significado de
cada uma das afirmações do credo, etc. É preciso também livros que
decodificam honestamente as implicações doutrinais dos problemas abertos
pelas ciências, e que não se limitem em constatar o desconforto ou afirmar a
ruptura.165
Tal desafio é vivido pela Igreja como um todo, inclusive em questões institucionais.
As propostas para a reforma na formação dos jesuítas apresentadas em 1967 pelo comitê
presidido por Certeau é testemunho dessa necessidade, como pode ser visto no documento
conclusivo do comitê, assinado pelo próprio Certeau.166 Assim como sua proposta editorial

163
CERTEAU, Michel de. Sem título, texto datilografado, 16 de mai. de 1966, caixa 5, Arquivo da Companhia
de Jesus, Vanves, p. 3.
164
“[…] d’articuler sur les différentes disciplines de science ‘humaine’ une réflexion théologique”. Id. Pour une
Bibliothèque des Sciences Religieuses, texto datilografado, sem data, caixa 1, Arquivo da Companhia de Jesus,
Vanves, p. 1.
165
“Jésus et son Evangile, le sens des sacrements et du symbolisme chrétienne, les ruptures et les
recommencements de la tradition, la signification de la foi, la portée de chacune des affirmations du credo, etc.
Il faut aussi des livres qui déchiffrent honnêtement les implications doctrinales des problèmes ouverts par les
sciences, et qui ne se contentent pas de constater le malaise ou d'affirmer la rupture”. CERTEAU, op. cit., p. 3.
166
CERTEAU, Michel de. Propositions pour la réforme des études, texto datilografado, 24 de jun. de 1967, caixa
5, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.
203

mencionada acima, as diretrizes contidas no documento para a reforma pedagógica da ordem


ressoam o gesto teológico certeauniano. Vejamos a imagem que isso assume no documento.
Enquanto os padres responsáveis pelas atividades espirituais afirmarão a urgência de
participar das técnicas atuais dispostas pelas ciências humanas ou exatas, e defenderão os
benefícios de uma formação fundamentada nesses saberes, o professor leigo insistirá sobre a
importância de explicar o sentido, de ordenar os estudos a partir de um objetivo teológico e
sacerdotal. Essas opções não são contraditórias, elas frequentemente se complementam. A
participação defendida na primeira opção coloca problemas indissociáveis à segunda,
enquanto a segunda confirma a convicção da primeira.
Os princípios da educação religiosa devem estar orientados a essa realidade. O jovem
religioso não é alheio aos novos problemas de sua época. Ele não poderia prescindir da
especialização sofrida pela cultura do homem moderno sem prejuízos a sua orientação
espiritual. Essa relação é condição de uma maturidade inerente ao engajamento a nível
pessoal e religioso, além de necessária ao fornecimento das ferramentas de trabalho para seu
ofício.
Uma formação fundamentada nos problemas modernos contribui para entender a
urgência de uma reflexão filosófica e teológica, está na base da atenção à passagem da
experiência humana ao seu sentido espiritual. A combinação entre aprendizados em
disciplinas particulares e a formação religiosa geral em filosofia e teologia em instituições
laicas e eclesiais é o que deve definir a relação entre os vários momentos da formação do
jesuíta.
Toda essa formação precisa ser ordenada segundo as experiências pessoais dos
próprios estudantes. Seu foco não recai sobre a apresentação de conceitos que serão
necessários nas etapas seguintes, mas se localiza em relação à situação em que se encontram
as exigências espirituais e intelectuais dos alunos. A sucessão de ciclos de estudo é voltada à
evolução do sujeito frente esses diversos domínios da formação.
A estrutura desse ensino também tem de estar profundamente ligada às trocas
estabelecidas com os conhecimentos modernos e à proficiência na linguagem das experiências
humanas. Casas de ensino estabelecidas em centros intelectuais vivos e o incentivo ao
aprofundamento das atividades não religiosas dos professores são algumas das propostas
oferecidas pelo comitê presidido por Certeau.
Para a efetivação dessa concepção de ensino, é proposto um primeiro ciclo voltado a
uma iniciação humana e doutrinal sintética. São ao todo três anos aglutinando o noviciado,
teologia básica e expressão humanista, impulsionados pelo “aprofundamento espiritual nas
204

condições normais da vida atual”167 e pela “abertura intelectual sobre as dimensões da


experiência humana e espiritual”.168 Seu conteúdo não seria apenas teológico, mas
antropológico, histórico e acompanhado de análises das situações atuais, composto por um
ensinamento “mais existencial e mais dado às interrogações modernas”.169 Haveria lugar para
um conhecimento básico geral, dividido em três áreas:
Conhecimento do presente, história da cultura e das civilizações (fundo
sobre o qual se inscreve, então, a história religiosa, filosófica ou científica),
exercício e técnica da expressão (o que não é o mesmo que uma
especialização literária ou análise filosófica da linguagem).170
O primeiro ciclo dá lugar a outro com duração de três a quatro anos. Ele é composto
por trabalho extrarreligioso em faculdade, instituto ou organização e totalmente integrado ao
processo de investigação intelectual. São muitas as áreas sugeridas: “animação cultural, meios
de comunicação, psicologia de grupo, gestão de negócios”,171 dentre outras. Essa atividade
tem por objetivo o aprendizado de uma técnica, seja via aquisição de instrumentos de
trabalho, uma entrada precisa na sociedade, o desenvolvimento humano ou o aprofundamento
espiritual, filosófico e teológico.
Ao término desse trabalho ocorreria um ou dois anos de formação com viés filosófico.
Nesse caso a proposta do comitê é aberta, pois restam divergências internas. Parece haver
uma indisposição por parte de alguns acerca da grande carga de tempo que seria exigida pela
atividade extrarreligiosa em alguns setores. A esse respeito, Certeau pergunta: “mas por que
os escolásticos [alunos das turmas teológicas de filosofia] não encontrariam a disponibilidade
que testemunham os estudantes, capazes de se interessar também pela política, pelo cinema,
etc.?”172 Quanto a essa marca que talvez o estudante traga do voluntarismo espiritual da
formação inicial, esse momento pode ser uma escola de liberdade.
Há temas particularmente importantes a serem estudados nesse momento. Dentre eles,
as “origens cristãs, filosofia e política, problemas de linguagem, etc.”, além de autores como

167
“[...] approfondissement spirituel dans les conditions normales de la vie actuelle [...]”. CERTEAU, Michel
de. Propositions pour la réforme des études, texto datilografado, 24 de jun. de 1967, caixa 5, Arquivo da
Companhia de Jesus, Vanves, p. 5.
168
“[...] ouverture intellectuelle sur les dimensions de l'expérience humaine et spirituelle”. Ibid., p. 5.
169
“[...] plus existentiel et plus accordé aux interrogations modernes [...]”. Ibid., p. 6.
170
“[...] connaissance du présent, histoire de la culture et dos civilisations (fond sur lequel s'inscriront ensuite
l'histoire religieuse, philosophique ou scientifique), exercice et technique de l'expression (ce qui est autre chose
qu'une spécialisation littéraire ou une analyse philosophique du langage)”. Ibid., p. 7.
171
“[...] animation culturelle, mass-média, psychologie de groupe, gestion des affaires [...]”. Ibid., p. 7.
172
“Mais pourquoi les scolastiques ne trouveraient-ils pas la disponibilité dont témoignent les étudiants,
capables de s'intéresser aussi à la politique, au cinéma, etc.?”. Ibid., p. 9.
205

“Kant, Hegel, Marx”, dentre outros.173 O comitê deixa em aberto como poderia ser organizado
o tempo para que esses temas não perdessem espaço, pois algumas questões para esse
enquadramento filosófico ainda carecia ser mais bem precisadas (se valeria recorrer a sessões
de férias, a um maior tempo para essa formação, a um ciclo exclusivamente filosófico mais
sistematizado ou a disciplinas simultâneas ao trabalho extrarreligioso).
De qualquer forma, considerando que no mundo moderno a relação entre teologia e
filosofia é elaborada a partir da crítica à religião, “os cursos devem ser dedicados à história
das tensões ou reinterpretações do cristianismo até os dias atuais”,174 com acento sobre alguns
momentos-chave: “Reforma-Renascimento, fim do século XVIII, marxismo e hegelianismo,
Merleau-Ponty, etc.”.175
O terceiro e último ciclo é dedicado à formação especificamente teológica, com
duração de três a quatro anos. Ele deve estar associado à orientação apostólica do estudante e
a colaborações no setor em que irá atuar. As suas questões fundamentais incluem:
Crítica da religião; cursos sobre filosofia e teologia, etc, mas também contato
com outros autores e sistemas (Lutero, Kierkegaard, determinados místicos,
mas também Nietzsche, Heidegger, etc.). 176
Aos olhos de Certeau e do comitê presidido por ele, o saber teológico deve ser relido
“em função da situação atual do homem no mundo, como, por exemplo, Heidegger a
descreve”.177 Ele parte das problemáticas teológicas do mundo moderno para chegar “a uma
elucidação da relação com o passado e a uma hermenêutica da tradição”.178
A essa altura, a abertura às demandas do presente já significa necessariamente uma
relação de distância com o passado: “não se pode mais inventariar o passado que nos chega
sem pensar o ato presente que o recria”.179 É assim que o estudo das estruturas teóricas da
Igreja é acompanhada pelo estudo de suas estruturas políticas (relações Igreja e Estado, por
exemplo). À medida que se conscientiza da crítica histórica à religião no ocidente, mais aberta
sua inteligência estará às questões que lhe são endereçadas hoje.

173
“[...] origines chrétiennes, philosophie et politique, problèmes du langage, etc.; Kant, Hegel, Marx, etc.”.
CERTEAU, Michel de. Propositions pour la réforme des études, texto datilografado, 24 de jun. de 1967, caixa 5,
Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves, p. 9.
174
“[...] des cours doivent être consacrés à l'histoire des tensions ou des réinterprétations du christianisme
jusqu'à nos jours”. Ibid., p. 12.
175
“Réforme-Renaissance, fin du XVIIIe siècle, marxisme et hégélianisme, Merleau-Ponty, etc.”. Ibid., p. 12.
176
“[...] critique de la religion, cours sur philosophie et théologie, etc.; mais aussi contact avec des auteurs et
des systèmes (Luther, Kierkegaard, tel ou tel mystique, mais aussi Nietzsche, Heidegger, etc.)”. Ibid., p. 12.
177
“[...] en fonction de la situation actuelle de l'homme dans le monde, telle, par exemple, que Heidegger la
décrit”. Ibid., p. 13.
178
“[...] à une élucidation du rapport avec le passé et à une herméneutique de la tradition”. Ibid., p. 13.
179
“On ne peut plus inventorier le passé qui vient à nous sans penser l’acte présent que le recrée”. Ibid., p. 13.
206

A novidade das experiências modernas é o lugar de uma ruptura na experiência cristã e


na reflexão teológica em relação às referências recebidas da tradição. A resposta às exigências
próprias da atualidade ganha seus contornos sobretudo naquilo que está em desacordo com a
tradição e com as verdades da Igreja, movimento irredutível a um sentido teológico
previamente determinante.
Uma audácia que postula a ruptura entre presente e passado, a coragem de ser cristão
não apesar da diferença, mas justamente na diferença e uma outra forma de relacionar teologia
e história são marcas expressivas da emergência desse segundo momento na trajetória de
intelectual de Michel de Certeau.
207

Capítulo IV
A desinstitucionalização do crer

O avanço da modernidade no interior do catolicismo e da Igreja católica culminou no


concílio Vaticano II (1962-1965). No entanto, essa mudança de postura foi seguida por um
processo de “desinstitucionalização” das crenças religiosas. Ele pode ser entendido como o
progressivo descompasso – e não necessariamente a total antinomia – entre as disposições
oficiais da Igreja e as ideias e práticas oficiosas dos crentes, tendo como exemplo sensível o
agravamento do desprestígio da autoridade católica na esteira do maio de 1968.
A dicotomia conservadorismo/progressismo predominante no concílio não tardou a ser
denunciada por sua insuficiência no acolhimento da exigência de liberdade espiritual
endereçada às instituições da Igreja. Para dar conta desse quadro, intelectuais católicos
recorreram às inovações das ciências humanas. Isso foi feito em detrimento do humanismo
que havia adentrado o catolicismo ao longo do século passado e terminara por ser chancelado
pelo concílio.
Essas tensões e renovações intelectuais são a matéria-prima existencial da nova
direção seguida pela Christus, sob a responsabilidade de François Roustang e Michel de
Certeau a partir de 1962. A reorientação foi autorizada pelos superiores da Companhia, mas
ela não tardou a suscitar desconfianças, reprovações e até mesmo punições. É o caso do
desconforto gerado pelo fatídico Le troisième homme de François Roustang, na seção
chroniques da edição de outubro de 1966.
Certeau participava e alimentava ativamente esses novos rumos da revista. A transição
em sua trajetória textual, a centralidade da ruptura com o passado e a busca de uma alternativa
cristã sem validade apriorística surgem em paralelo ao redirecionamento editorial da Christus.
Nesse sentido, suas ideias vão fornecendo espessura para a empreitada editorial ao mesmo
tempo em que a feitura de seus textos inscreve produtivamente as circunstâncias religiosas e
intelectuais dessa experiência editorial.
Essa transformação textual é seguida por novas vivências na Companhia e fora dela.
Certeau partirá da Christus para a Études em 1967. Além disso, uma série de viagens à
América Latina se iniciará e uma experiência do maio de 1968 ocupará lugar importante no
conjunto de seus artigos. Essas andanças corresponderão textualmente a um descentramento
religioso, inaugurando a produção de escritos à primeira vista independentes de sua vida
sacerdotal e possibilitando a circulação do padre em instituições não religiosas.
208

Essa linha de fuga da órbita religiosa intensifica as intuições dos anos anteriores sobre
a tensa interação entre a espiritualidade, a modernidade e a história. Isso pode ser pensado
estabelecendo o fio de sua crítica à “fixação” da verdade religiosa, passando pela concepção
do crer como avesso à fixação cristã, isto é, pela valorização teológica da diferença. Essa
reflexão permite expor a metamorfose da crise de linguagem religiosa em crise de autoridade
religiosa em seus textos após o maio de 1968. Na esteira desse agravamento, a própria atitude
de Certeau em relação à companhia de Jesus e à Igreja vai se “desinstitucionalizando” no
alvorecer dos anos 1970.
Tais transformações em sua postura frente à Igreja e à Companhia foram seguidas
também em um de seus vínculos mais basilares, sua proximidade à figura de Henri de Lubac.
Isso ocorre inicialmente por meio de distâncias tácitas, aos poucos assumindo uma diferença
evidente da parte de Certeau se comparada à forma do antigo professor pensar e manter seus
laços com a Igreja, embora Certeau tenha reafirmado seu débito e gratidão mesmo em épocas
de polêmica. Essa postura ambígua diz respeito à sua própria maneira de praticar a fidelidade
e pode ser pensada como uma forma de comunicação espiritual.
Em suma, a desinstitucionalização do crer parece ter sido uma mudança histórica de
enorme relevância para os rumos da trajetória intelectual de Certeau na segunda metade dos
anos 1960. Ele constantemente considerou, assimilou, problematizou e respondeu às suas
questões e consequências. Essa pertinência já podia ser vista tensionando a reorientação da
Christus. Após sua saída da revista, o assunto ganhou centralidade no tratamento da crise da
linguagem religiosa. Ele apareceu ainda mais intensamente após o descentramento de temas
explicitamente espirituais. Foi buscando dar conta da gravidade do problema que Certeau se
dedicou a pensar a crise de autoridade religiosa. O afastamento intelectual de Certeau e Lubac
não deixa de equivaler a diferentes maneiras de lidar com esse desafio enfrentado pela Igreja.
Essa centralidade das mutações do crer nas vicissitudes do segundo momento da trajetória
intelectual de Certeau é o que as páginas seguintes buscarão mostrar.

4.1 A reorientação editorial da Christus

A aproximação entre a modernidade e o catolicismo formalizada pelo concílio


Vaticano II, o crescente descrédito das instituições católicas por parte dos crentes e a entrada
das ciências humanas no cenário intelectual religioso permitiram uma mudança de rumo na
revista Christus. Esse redirecionamento editorial ocorreu na direção de François Roustang e
Michel de Certeau, não sem tensões com as autoridades eclesiais.
209

As inovações e conflitos na Christus formam o pano de fundo das mudanças


verificadas nos textos de Certeau. Seus escritos compartilham a nova sensibilidade religiosa
em gestação naquele momento e respondem à sua maneira aos imperativos de um tempo de
aceleradas mudanças no catolicismo. A transição textual em direção à uma outra forma de se
relacionar com o passado cristão foi a modulação particularmente certeauniana às
circunstâncias da sociabilidade e da intelectualidade católica de então.
Após a revolução francesa, críticas à interpretação cristã do mundo multiplicaram-se
vertiginosamente. A Igreja respondeu aos questionamentos que lhe foram endereçados
reafirmando sua autoridade institucional. É o caso da doutrina da infalibilidade papal
promulgada na constituição dogmática Pastor Aeternus de 1870, no contexto do concílio
Vaticano I (1869-1970). Predominou um completo rechaço à modernidade, embora
pontualmente a Igreja absorvesse novas demandas emergentes, como pode ser visto na
doutrina social da Igreja, promulgada na encíclica Rerum novarum de 1891.
Essa reação antimoderna foi forjada no interior da orientação ultramontana da política
papal. Em linhas gerais, o ultramontanismo vigorou como autocompreensão da Igreja do
início do século XIX até meados do século XX. Ele tinha como fundamentos a condenação do
mundo moderno, a centralização política e doutrinária da Cúria Romana, assim como a
adoção da medievalidade como princípio sociopolítico.1
Contudo, intelectuais e grupos católicos se apropriaram das novas experiências e
conhecimentos emergentes, como as pautas políticas da esquerda, a filosofia não cristã e a
ciência histórica. Para mencionar apenas dois exemplos já explorados no presente trabalho, a
condenação ao modernismo no início do século e a tentativa de conter a nouvelle théologie
por meio da encíclica Humani generis (1950) mostram a resistência da hierarquia eclesial à
abertura aos princípios modernos, cada vez mais incorporados por iniciativas de renovação
promovidas por sacerdotes católicos.
Segundo João Batista Libânio, a modernidade penetrava na Igreja por diversas vias: a
renovação da exegese dos textos bíblicos segundo o espírito da ciência moderna no Pontifício
Instituto Bíblico de Roma, rompendo com a afirmação de um sentido literal único das
Escrituras; a infiltração da categoria de existência no universo litúrgico, tornando o culto mais
próximo das pessoas; o crescimento do ecumenismo e da busca por respeito à pluralidade de
opiniões, principalmente em função da necessidade de lidar com as diferenças culturais na
vida missionária; a maior participação dos leigos na vida da Igreja, como é o caso da Ação

1
MANOEL, Ivan A. O Pêndulo da História: tempo e eternidade no pensamento católico (1800-1960). Maringá:
UEM, 2004. p. 9, nota 2.
210

Operária Católica, dos padres operários e da teologia do laicato; e a nível teológico, as


renovações da escola de Tübingen no século XIX, o “modernismo” no início do século XX, o
movimento querigmático de Innsbruck no entreguerras e a “nova teologia” de Lyon no pós-
guerra.2
Essa inserção cada vez mais intensa da modernidade na vida cristã é o cenário da
convocação do concílio Vaticano II (1962-1965) por João XXIII. Nessa ocasião, a Igreja
abriu-se oficialmente às mudanças históricas que ela tinha resistido frontalmente por mais de
um século. Impelida a estar atenta aos “sinais dos tempos”, como clamara João XXIII na
convocação do concílio,3 ela passava a refletir sobre sua participação no mundo moderno.
Como resultado do Vaticano II, houve mudanças significativas na compreensão e nas
práticas da Igreja. Dentre as principais renovações incorporadas pelo concílio ou dele
decorrentes, destacam-se a “retorno às fontes” como busca do verdadeiro espírito da tradição;
o aggiornamento, termo italiano que significa atualização, ou seja, a adaptação da mensagem
evangélica às questões humanas advindas do mundo moderno; a reforma da liturgia, a
exemplo da exclusão do latim como língua oficial da missa; a abolição da lista de livros
proibidos, o Index Librorum Prohibitorum; a maior participação dos leigos na vida da Igreja;
o diálogo ecumênico e a liberdade religiosa; e uma nova eclesiologia, por meio da qual a
Igreja é entendida mais no sentido de povo de Deus que de hierarquia eclesial.4
Essa mudança de perspectiva pode ser vista inclusive na posição ocupada por figuras
antes acusadas de modernismo, destituídas de postos universitários e cujos livros foram
proibidos e tirados de circulação, como o jesuíta Henri de Lubac. Se esse foi o destino da
“nova teologia” na década de 1950 após a publicação da encíclica Humani Generis, no início
dos anos 1960 veremos Lubac sendo nomeado para a comissão teológica preparatória do
concílio. Muitos dos temas e preocupações dialogados no florescimento teológico francês nas
décadas anteriores estarão na ordem do dia nas discussões e documentos conciliares, como o
retorno às fontes patrísticas, a história, o ecumenismo, o diálogo com o ateísmo, etc.

2
LIBÂNIO, João Batista. Contextualização do concílio Vaticano II e seu desenvolvimento. Cadernos Teologia
Pública, ano 2, n. 16, p. 5-35, 2005, p. 12-18. Disponível em: https://cutt.ly/8fAkzp6. Acesso em: 14 set. 2020.
3
Na constituição apostólica Humanae salutis de 25 de dezembro de 1961. Ele retoma a questão mais
detidamente na carta encíclica Pacem in terris de 11 de abril de 1963. Elas podem ser consultadas em:
http://www.vatican.va/content/john-xxiii/pt.html. Acesso em: 14 set. 2020.
4
Cf. LIBÂNIO, op. cit., passim; MENDES, Vitor Hugo. Vaticano II: a modernidade da Igreja em um contexto
de mudanças. Encontros Teológicos, ano 27, n. 2, p. 139-163, 2012, p. 153-154. Disponível em:
https://cutt.ly/ex64trX. Acesso em: 14 set. 2020; MACHADO, Diane de Carvalho; MÉRIDA, Vinícius Couzzi.
Reflexos do concílio Vaticano II na Igreja contemporânea. Reflexus, v. 23, n. 21, p. 321-339, 2019, p. 330-332.
Disponível em: http://revista.fuv.edu.br/index.php/reflexus/article/view/786. Acesso em: 14 set. 2020.
211

Embora seja evidente a descontinuidade com o cristianismo tridentino e à política


ultramontana, o evento conciliar foi marcado por fortes tensões e discussões entre
perspectivas conservadoras e progressistas. Os conservadores buscavam a reafirmação da
imutabilidade dos dogmas e a manutenção da centralização hierárquica contra as exigências
modernas. Os progressistas, aquilo já característico da tradição que fosse consoante com a
vida moderna.
Os embates entre essas diferentes perspectivas reverberaram na fase preparatória e nos
textos oriundos do concílio. Documentos importantes como as constituições Dei verbum,
Lumen gentium e Gaudium et spes trazem marcas desse conflito de posições. Embora em
diversos aspectos o concílio tenha se inclinado à reforma à luz da modernidade, ele mantém
funcionando a posição conservadora da Igreja em alguns níveis.5
A predominância dessas posições conservadoras e reformistas à época da transição da
Igreja na primeira metade dos anos 1960 não exclui a coexistência de nuances e outras
posturas, sobretudo entre a geração de religiosos mais jovens, cuja produção crítica emergiria
no pós-concílio, na segunda metade dos anos 1960. A infiltração da modernidade na Igreja ao
longo de décadas e a maior abertura institucional à cultura contemporânea na ocasião do
Vaticano II tornava a atmosfera propícia ao engajamento dos religiosos com as novas
questões de seu tempo. É factível pensar que essa situação histórica da Igreja os estimulou a
levar adiante o ímpeto de modernização da religião, dando à empreitada de uma época uma
expressão mais radical se comparada ao reformismo de seus mestres.
Essa radicalidade é o sintoma de uma mutação em andamento na sociedade francesa
nos anos 1960, novo momento do processo de secularização que a socióloga Danièle Hervieu-
Léger designou “crise de plausibilidade”. No contexto de crescente desinteresse pelos
sistemas religiosos instituídos, a difusão do sentimento de inadequação entre os dogmas e as
necessidades espirituais vai transformando a sociabilidade católica. Alguns religiosos
comprometidos com a tradição já começavam a testemunhar a insuficiência desta em fornecer

5
Sobre a tensão interpretativa nos três documentos conciliares citados, cf. LIBÂNIO, João Batista. A Igreja a 50
anos do Concílio Vaticano II. Encontros Teológicos, ano 27, n. 2, p. 29-50, 2012. Disponível em:
https://cutt.ly/zx63HdK. Acesso em: 14 set. 2020. O embate entre conservadorismo e progressismo permaneceu
efervescente na batalha de interpretações sobre o concílio nas décadas seguintes, tanto nas abordagens
hermenêuticas sobre o “espírito” do Vaticano II, quanto na politização do debate historiográfico em torno das
reações romanas à “escola de Bolonha”, como ficou conhecido o trabalho da equipe internacional dirigida por
Giuseppe Alberigo. Cf. ROUTHIIER, Gilles. L'herméneutique de Vatican II: réflexions sur la face cachée d'un
débat. Recherches de Science Religieuse, t. 100, n. 1, p. 45-63, 2012. SCHICKENDANTZ, Carlos. Las
investigaciones históricas sobre el Vaticano II. Estado de la cuestión y perspectivas de trabajo. Teología y Vida,
v. 55, n. 1, p. 105-141, 2014, p. 109-122. Disponível em: https://scielo.conicyt.cl/pdf/tv/v55n1/art06.pdf. Acesso
em: 14 set. 2020.
212

a linguagem para a expressão da fé no pós-concílio. Isso ocorre em um momento em que uma


nova geração, os chamados baby boomers, demonstrava indiferença à cultura católica.6
Essa perda de plausibilidade dos códigos da tradição anda de mãos dadas com a
progressiva desinstitucionalização do universo das crenças. O desenraizamento do solo
católico significou a perda da capacidade de fazer valer os códigos instituídos. O desencontro
entre o magistério oficial e as experiências pessoais foi também a perda de jurisdição de um
sobre o outro. As disposições hierárquicas eram questionadas em nome da liberdade espiritual
no envolvimento com as regras doutrinais. As instituições católicas vão deixando de ter a
prerrogativa sobre os modos de sentir, pensar e viver como cristão. Não cabe mais
exclusivamente a elas a incumbência de fornecer formalidade às instâncias do crer. O sinal
mais explícito dessas consequências “desinstitucionalizantes” da perda de plausibilidade
religiosa foi a adesão política ao maio de 1968 e a recusa à autoridade institucional nos anos
seguintes.
A entrada da modernidade no catolicismo, agora pela porta da frente, e a progressiva
perda de plausibilidade das instituições religiosas tornaram possível a reorientação ocorrida na
revista Christus em meados dos anos 1960. Em determinada altura da direção de François
Roustang e Michel de Certeau, a revista de espiritualidade inaciana borrou as fronteiras entre
a identidade institucional, cara à reforma como pensada pelo concílio, e a incompatibilidade
com a cultura católica, ferida aberta na sociedade francesa que o concílio não conseguirá
remediar. Essa tensão entre interioridade do catolicismo e exterioridade da vida moderna foi
vivenciada e textualizada de maneira distinta pelos dois companheiros jesuítas.
O projeto de criação de uma revista de espiritualidade inaciana vai sendo desenhado
entre 1951 e 1953, após a promulgação da encíclica Humani Generis e a contenda com a
“nouvelle théologie” atribuída aos jesuítas ligados ao seminário de Fourvière em Lyon. Nesse
contexto, a Christus é mais um exemplo das iniciativas que tinham por imperativo superar o
impasse entre fidelidade à tradição e abertura à modernidade. Desde sua fundação em 1954,
sua linha editorial esteve empenhada em estreitar o laço entre o discernimento espiritual e o
mundo culturalmente em transformação, por meio de um retorno às fontes constituintes da
vida jesuítica, de uma fidelidade à Igreja e de uma inteligência da fé participando do mundo
moderno. Durante o primeiro decênio de sua existência, sob a direção do jesuíta Maurice

6
HERVIEU-LÉGER, Danièle. L’évaporation des « engagés ». Au tournant des années 1960-1970 dans le
catholicisme français. In: ROUSTANG, Ève-Alice (Dir.). François Roustang. Le troisième homme entre rupture
personnelle et crise catholique. Paris: Odile Jacob, 2019. p. 99-132.
213

Giuliani (1916-2003), a revista se engajou nessa busca por uma renovação espiritual fiel à
Igreja e aberta os novos anseios do mundo.7
O jesuíta François Roustang (1923-2016) assistia à direção da revista desde 1956.
Michel de Certeau entrara na Christus no mesmo ano que Roustang, mas diferente deste, não
atuou ininterruptamente na equipe do periódico.8
Certeau havia concluído sua formação junto aos jesuítas, quando passou a atuar na
Christus e trabalhar em sua pesquisa sobre Pierre Favre na seção de Ciências Religiosas da
École Pratique des Haute Études. No ano escolar de 1959-1960, vai morar na residência
jesuíta em Saint-Martin-d’Ablois, onde passa por seu “terceiro ano”, retorno ao noviciado
vivido após três anos de trabalho apostólico. Em junho de 1960, defende sua tese de terceiro
ciclo na Sorbonne, com a pesquisa sobre Favre, publicada naquele mesmo ano. Em 1960-
1961, Certeau é enviado a Clamart com a incumbência de dirigir retiros e ministrar os
exercícios espirituais. Entre 1961 e 1962, Certeau é autorizado a dedicar-se exclusivamente à
tese sobre Surin na qual vinha trabalhando desde 1959. Ele habita então em Chantilly, local de
formação filosófica da Companhia e onde se encontrava o acervo mais pungente da ordem.
Em 1962, se instala na rue de Sèvres em Paris, residência na qual estava situada a redação da
Christus, quando assume o posto de adjunto e Roustang passa a editor-chefe. A nova direção
se encarrega da revista a partir da edição de outubro de 1962, embora Giuliani ainda seja
creditado como responsável até o número publicado em julho de 1963.9
A direção da dupla Roustang-Certeau imprimiu uma inflexão na linha editorial da
Christus. As consultas da direção aos superiores provinciais mostram como essa reorientação

7
Sobre a história da Christus, cf. FOUILLOUX, Étienne. Naissance, enfance et adolescence de Christus (1951-
1971). Christus, n. 203, p. 24-50, 2004. (Hors-Série) MAINDREVILLE, Rémi de. Spiritualité jésuite et
spiritualité ignatienne: genèse et histoire de la revue Christus. In: FOUILLOUX, Étienne; MARTIN, Philippe.
(Dir.) Y a-t-il une spiritualité jésuite? (XVIe-XXIe siècles). Lyon: LARHRA, 2016. p. 104-114. (Chrétiens et
Sociétés. Documents et Mémoires, 30) Disponível em: https://books.openedition.org/larhra/4669. Acesso em: 01
set. 2020.
8
LANGLOIS, Claude. Um long compagnonnage. François Roustang et Michel de Certeau à Christus (1956-
1966). In: ROUSTANG, Ève-Alice (Dir.). François Roustang. Le troisième homme entre rupture personnelle et
crise catholique. Paris: Odile Jacob, 2019. p. 68.
9
Além do recurso aos dados biográficos levantados por François Dosse, esse percurso pode ser acompanhado
com base nos seguintes materiais: anuários da EPHE, dossiê de defesa de tese de terceiro ciclo na Sorbonne,
cartas enviadas a Lubac e a Gouhier (o conteúdo e o timbre) e os dados catalográficos das edições da Christus.
Com base nesses documentos, não é certo se a primeira atividade de Certeau na Christus teria sido entre 1956-
1959 ou apenas no ano 1956-1957. Fato é que ele habita no número 15 da rue Monsieur (residência da revista
antes da mudança para a rue de Sèvres) apenas naquele ano. Nos dois seguintes, as cartas são enviadas de
Chantilly, até que o endereço muda para Saint-Martin-d’Ablois. Além disso, os principais resultados de seu
trabalho intelectual nesses anos foram publicações voltadas a temas históricos, majoritariamente sobre Pierre
Favre. Nesse biênio em Chantilly, teria ele se dedicado exclusivamente à pesquisa encomendada pela ordem
sobre a história das origens espirituais da Companhia? Se esse for o caso, então seu trabalho na Christus teria
ocorrido em 1956-1957/1962-1967.
214

foi deliberada. Quanto às respostas às consultas, vão gradualmente da autorização com


ressalvas à reprovação à medida que o projeto editorial ganha corpo.
Já no início de 1964, Roustang indicava a posição da nova direção em relação à
intenção editorial original. Sem colocar à prova o êxito da empreitada de mostrar a atualidade
da espiritualidade inaciana e a viabilidade da coexistência entre tradição e modernidade na
linguagem religiosa, outras urgências são impostas à vida apostólica. Considerá-las
seriamente e renunciar às formulações inadequadas às necessidades atuais requer levar a cabo
“uma crítica da nossa linguagem religiosa”, diz Roustang.10
Os superiores não proíbem essa mudança de perspectiva, desde que o caráter inaciano
da revista seja explicitamente mantido, afinal de contas, a particularidade da espiritualidade
de santo Inácio e de seus herdeiros é leitmotiv da revista. Chamavam também atenção para a
temerária confusão do aspecto espiritual com o aspecto humano, ou seja, do acento no novo
em detrimento da tradição, perdendo de vista o essencial. Além disso, atentavam para o risco
de abstração excessiva.
Certeau toma parte desse novo projeto. A crítica torna-se um imperativo explícito em
seu Des enfants avisés, publicado em 1963. A partir daquele ano, seus textos tratarão cada vez
mais da relação entre a linguagem religiosa recebida do passado e as exigências existenciais
do presente, como pode ser observado em La conversion du missionnaire, Le temps des
conflits, Situations culturelles, vocation spirituelle, Donner la parole, etc.
Contudo, como visto, a crítica da linguagem religiosa, a abertura à novidade do
presente e a renovação da herança cristã é acompanhada de um grande esforço da parte de
Certeau em não colocar em xeque a autoridade da tradição e do magistério da Igreja. Embora
ele não adira elogiosamente a regras doutrinais e disposições hierárquicas, tampouco ele as
questiona. Ao contrário, ele afirma explicitamente a não contradição entre a renovação o
magistério da instituição eclesial.
Considero esse um momento de transição na trajetória intelectual de Certeau
justamente porque ele é caracterizado tanto por novos temas, referências e questionamentos
quanto pela “domesticação” dessa renovação em seus efeitos disruptivos com o passado e
com a Igreja, ainda não rompendo abertamente com a teologia da história explícita ou
implícita no primeiro momento de seu percurso religioso e intelectual.

10
ROUSTANG apud FOUILLOUX, Étienne. L’affaire du « troisième homme ». In: ROUSTANG, Ève-Alice
(Dir.). François Roustang. Le troisième homme entre rupture personnelle et crise catholique. Paris: Odile Jacob,
2019. p. 39.
215

Esse esforço de Certeau tampouco é isolado. Segundo Danièle Hervieu-Léger, uma


geração de religiosos engajados com a cultura religiosa precisou lidar com o mal-estar do
inevitável desenraizamento dos crentes da cultura católica.11 Esse engajamento impregna as
páginas de Certeau sobre o concílio e o aggiornamento.
Isso aparece, por exemplo, ao dar voz ao conflito entre o sistema religioso e a
liberdade do crer, empenhando-se em não os tornar completamente estranhos. Para o jesuíta, a
tarefa da Igreja torna-se melhor esclarecida por meio da confrontação entre posições distintas,
mesmo quando “a seus dogmas, [opõe-se] a distância entre seu ensino e as crenças efetivas
dos fiéis; à sua unidade, a intervenção das paixões, dos interesses e dos partidos nas decisões
da autoridade ou nas orientações das comunidades”.12
Naqueles anos 1960, a perda de autoridade dos sistemas dogmáticos não significou o
fim do crer religioso em si mesmo, mas um processo de descrédito dos seus códigos
instituídos em detrimento da subjetivação de suas práticas. 13 O texto de Certeau “somatiza” o
mal-estar de uma geração em busca de conter essa perda.
Mesmo que para Certeau a dilatação do conhecimento religioso ainda seja uma
questão de conhecer melhor o que a Igreja já sabe, vai crescendo sua atenção à necessidade de
integrar os desejos daqueles que não se reconhecem nos limites institucionais. Não obstante a
ideia de Igreja enquanto instituição amparada em dogmas e na hierarquia ainda continue
tensionado na abordagem de Certeau, vai ganhando peso a ampliação da comunidade, a
multiplicação dos crentes e a próprio ato de crer como fator privilegiado da existência da
Igreja:
Arriscar-se a falar é, afinal de contas, arriscar-se a crer: em uma verdade que
realmente envolve, no Deus que supera todo conhecimento, na mensagem
divina trazida pelo julgamento dos outros. Cada cristão aprende dessa
maneira uma vida missionária (apostólica), chamada para além dos seus atos
(santa) e comunitária (católica). Assim, quando ele fala na Igreja,
testemunha a Igreja.14

11
HERVIEU-LÉGER, Danièle. L’évaporation des « engagés ». Au tournant des années 1960-1970 dans le
catholicisme français. In: ROUSTANG, Ève-Alice (Dir.). François Roustang. Le troisième homme entre rupture
personnelle et crise catholique. Paris: Odile Jacob, 2019. p. 104.
12
“[...] à ses dogmes, la distance entre son enseignement et les croyances effectives des fidèles; [...] à son unité,
l’intervention des passions, des intérêts et des partis dans les décisions de l’autorité ou dans les orientations des
communautés”. CERTEAU, Michel de. Unité et divisions des catholiques. Christus, t. 12, n. 47, t. 12, p. 365-
383, juil. 1965, p. 378.
13
HERVIEU-LÉGER, Danièle. L’évaporation des « engagés ». Au tournant des années 1960-1970 dans le
catholicisme français. In: ROUSTANG, Ève-Alice (Dir.). François Roustang. Le troisième homme entre rupture
personnelle et crise catholique. Paris: Odile Jacob, 2019. p. 99-132. p. 106.
14
“Risquer de parler, c’est finalement risquer de croire: – à une vérité qui engage réellement, – au Dieu qui
dépasse toute connaissance, – au message divin apporté par le jugement des autres. Chaque chrétien apprend de
cette façon une vie missionnaire (apostolique), appelée au-delà de ses actes (sante) et communautaire
(catholique). Quand il parle ainsi dans l’Église, il témoigne de l’Église”. CERTEAU, op. cit., p. 383.
216

O modo por meio do qual Certeau relaciona o passado cristão e o presente


dessacralizado é sintoma da encruzilhada entre o engajamento com a cultura católica e a perda
de plausibilidade em gestação naquele momento, tensão textualizada sobre a forma de uma
transição entre duas maneiras diferentes de identificação institucional e de abordagem da
história.
O desdobramento dessa tensão que caracterizo como transição assimila textualmente a
experiência pessoal de um padre de carne e osso aprendendo a lidar com a difícil convivência
entre a fidelidade a uma instituição advinda do passado, na qual se corporifica sua fé, e a
novidade do seu tempo, que a caridade como ele a pensa o exorta a acolher.
Sacerdote agora em uma posição de maior responsabilidade na direção de uma revista
incumbida da imagem espiritual da Companhia, a crítica de Certeau como uma forma de
tradição dilatada é também o reflexo das reprovações doutrinais que os superiores provinciais
fazem pesar sobre a nova orientação da Christus.
Mais do que resultado desse projeto encabeçado por Roustang, Certeau o nutre
intensamente e contribui com o seu destino. Roustang chega a dizer que Certeau é a
verdadeira fonte de renovação da Christus, em um informe sobre o papel de cada um dos
padres que compunham a redação, datado de março de 1964.15
Em novembro de 1965, além da amplitude das questões aventadas pela Christus e de
certas respostas consideradas desconcertantes, os superiores mostram especial
descontentamento com os artigos de Certeau naquele ano. Como vimos, esses artigos já
colocavam certo acento sobre a descontinuidade, embora ela ainda fosse no seio de uma
continuidade interior que somente a duras penas os textos de Certeau registram.
Nesse ano em que o concílio Vaticano II concluía seus trabalhos, já sendo possível
sentir os efeitos de sua abertura à modernidade dentro dos limites pressupostos pela
instituição; momento em que, ironicamente, a instituição e seus códigos vão deixando de ser
plausíveis; e em que a nova direção da Christus vai acolhendo mais abertamente os
desdobramentos de sua crítica ao passado em função das urgências do presente, a reorientação
da revista abraça um aspecto do presente que ganhava adesão entre os religiosos: as novas
ciências humanas.
Na França do pós-guerra, o humanismo gozava de grande prestígio, tendo sido alvo de
disputas políticas entre existencialistas, comunistas e cristãos. Desde fim dos anos 1950,

15
ROUSTANG apud FOUILLOUX, Étienne. L’affaire du « troisième homme ». In: ROUSTANG, Ève-Alice
(Dir.). François Roustang. Le troisième homme entre rupture personnelle et crise catholique. Paris: Odile Jacob,
2019. p. 40.
217

ganhava terreno uma concepção distinta àquela da primazia da liberdade e o destino humano.
A dissolução do homem tornava-se o objetivo das ciências humanas, como defendia Lévi-
Strauss em sua crítica a Jean Paul Sartre no último capítulo de La pensée sauvage de 1962.
Em Pour Marx, publicado em 1965, Louis Althusser distinguia o humanismo do jovem Marx
da teoria científica da história no Marx da maturidade. Jacques Lacan propunha sua
concepção do inconsciente estruturado como linguagem nos Écrits em 1966, mesmo ano do
sucesso editorial Les mots et les choses, no qual Michel Foucault prenunciava o fim próximo
do homem. As ciências humanas destronavam o Homem e punham fim ao reinado filosófico
do humanismo.
Nesse sentido, a Igreja católica parece abrir-se à modernidade em um tempo em que
alguns dos próprios pressupostos filosóficos modernos perdiam relevância. Esse “atraso” é
testemunhado na Gaudium et spes, sobre a Igreja no mundo contemporâneo, promulgada em
dezembro de 1965. A constituição pastoral confere centralidade ao diálogo com o humanismo
ateu em prol de um sentido cristão da humanidade, mostrando maior aceitação da noção
moderna de homem justo quando ela dá profundos sinais de desgaste.
Isso não significa que a emergência das ciências humanas no cenário intelectual
francês não tenha ressoado entre intelectuais católicos. Ao contrário, muitos jesuítas
aprenderam sua linguagem, continuando a via do diálogo com o presente autorizada pelo
concílio.
Segundo Etienne Fouilloux, o desafio representado pelas ciências humanas foi um dos
destaques do encontro em torno dos Problèmes intellectuels et doctrinaux de l’apostolat
parisien, organizado por Georges Morel e Jean-Yves Calvez para a ocasião da visita do
superior-geral da Companhia, Pedro Arrupe, em fevereiro de 1966. Em outra reunião em
junho daquele ano, foi levantada a hipótese de criação de um centro voltado à pesquisa em
ciências humanas, ideia que não foi levada adiante por falta de pessoal para a empreitada. 16
O lugar crescente das ciências humanas no cenário intelectual francês não tardaria a
adentrar no horizonte das preocupações editoriais da Christus. Em uma nota datada de 10 de
junho de 1966, Roustang e Certeau expressam a divergência com a hierarquia, mencionando a
impossibilidade de manter uma orientação explicitamente inaciana sem tornar superficial a
relação com os problemas contemporâneos. A dupla comunica aos superiores o desejo de
serem substituídos na direção da revista, do contrário, propõe a extinção da Christus e a

16
FOUILLOUX, Étienne. L’affaire du « troisième homme ». In: ROUSTANG, Ève-Alice (Dir.). François
Roustang. Le troisième homme entre rupture personnelle et crise catholique. Paris: Odile Jacob, 2019. p. 42-43.
218

criação de um centro de investigações em ciências humanas, no qual possam ser praticadas


especialidades com a história, a etnologia, a psicologia e a linguística.
A “supressão da revista para consagrar nossas forças à fundação de um centro de
reflexão e de ação no setor das ciências humanas”, eis as palavras exatas dos diretores da
revista.17 Não obstante os superiores concordem com a importância da aproximação com as
ciências humanas, eles não autorizam o projeto da dupla e reforçam a necessidade de manter a
existência da revista e sua clara linha espiritual inaciana.
Essa tensão alcança seu ponto máximo com Le troisième homme, o polêmico artigo de
François Roustang na edição da Christus de outubro de 1966. Escrito de última hora e
aprovado por Certeau, Roustang teria perguntado ao companheiro se ele estava seguro de sua
escolha, pois, fosse o opúsculo publicado, certamente precisariam fazer as malas.18 O texto sai
e Roustang faz as malas. Certeau não, mas por pouco tempo.
O pequeno texto de Roustang ampara as grandes questões enfrentadas pelo
catolicismo à época: as consequências da possibilidade crítica aberta pelo concílio na relação
com a tradição e a paulatina perda de identificação dos cristãos com a cultura católica, da qual
decorre a imperativa aproximação com as ciências humanas intencionada pela Christus. Ele o
faz jogando com a própria herança católica, fazendo-a falar as preocupações de seu próprio
tempo e dando um primeiro esboço a essa situação histórica já sentida, mas ainda não
elaborada pela intelectualidade católica.
Roustang se apropria da ideia de uma “terceira raça”, termo com o qual os primeiros
cristãos designavam sua própria situação em relação aos judeus e pagãos. Ele toma essa
fórmula de um terceiro povo para designar um outro tipo de cristão que emergia com o
concílio Vaticano II. Diferente dos conservadores e dos reformistas, esse terceiro homem
corresponde a uma massa de cristãos cujos imperativos da fé não podem ser resolvidos nos
limites da ortodoxia ou da adaptação, pois o que os caracteriza é o sentimento de inadequação
entre a liberdade espiritual e a instituição.
Roustang deseja dar voz a esses cristãos que ele encontra em seu apostolado. Um
membro da Ação Católica, uma menina e jovens seminaristas são algumas figuras evocadas.
Elas estão entre a massa de cristãos para os quais há uma distância instransponível entre a
experiência espiritual e a prática religiosa, entre a existência cotidiana e os ritos sacramentais,

17
“ [...] suppression de la revue, pour consacrer nos forces à la fondation d’un centre de réflexion et d’action
dans le secteur des sciences humaines”. ROUSTANG e CERTEAU apud FOUILLOUX, Étienne. L’affaire du
« troisième homme ». In: ROUSTANG, Ève-Alice (Dir.). François Roustang. Le troisième homme entre rupture
personnelle et crise catholique. Paris: Odile Jacob, 2019. p. 37.
18
ROUSTANG, Ève-Alice. Le courage de François Roustang. In: ROUSTANG, Ève-Alice (Dir.). François
Roustang. Le troisième homme entre rupture personnelle et crise catholique. Paris: Odile Jacob, 2019. p. 10.
219

entre a fé em Deus e a fé na Igreja – no sentido de hierarquia. Para eles, a linguagem religiosa,


a liturgia e a doutrina católica não possuem relação com o que pensam e vivem. Por isso, ao
invés de tomarem as renovações do concílio como novo tipo de verdade absoluta, apelam para
“um novo tipo de relação entre a fé e a lei”.19
Segundo Roustang, essa consciência cristã foi despertada pelo concílio, embora vá
além do que teriam desejado suas autoridades. Se os esforços de reforma tiveram seu ponto de
partida no Vaticano II, os cristãos devem continuá-las. Nesse sentido, o concílio provocou
uma mudança radical e só é possível ignorar esse “verdadeiro deslizamento de terreno”
(véritable glissement de terrain) à custa da indiferença por parte do terceiro homem quanto à
Igreja: “Se não tivermos cuidado e se nos recusarmos a ver o evidente, o desinteresse pela
Igreja, que amplamente começou, irá acentuar-se”.20
Embora a imensa maioria dos comentários recebidos não discordassem do diagnóstico,
a ausência de uma conclusão menos condescendente ressoou negativamente junto às
autoridades eclesiais. O representante do Vaticano em Paris, Paolo Bertoli, escreve ao
responsável jesuíta daquela província, Philippe Laurent, sobre o texto de Roustang. Ele o
lembra que é a segunda vez em um ano que a Christus publica um artigo indesejado e
assevera que reflexões imprudentes e sem o discernimento adequado são prejudiciais à
doutrina e a disciplina da Igreja.
A fala do papa Paulo VI, em 10 de novembro de 1966, na 31ª Congregação Geral da
companhia de Jesus, mostra-o inquieto com os rumores que colocavam em questão a
fidelidade da ordem ao papado. No início de novembro, os superiores provinciais franceses já
se adiantavam e demitiam Roustang da direção revista, como noticiava o Le monde de 03 de
novembro de 1966. No início de 1968, a Christus recebeu ordens de dar cabo dos exemplares
ainda disponíveis.21 Diferente do que parecia sugerir o Vaticano II, há pouco concluído, os
tempos de anátema não estavam superados.
Em linhas gerais, Certeau e Roustang estavam de acordo no que tange ao Vaticano II,
à crise da linguagem religiosa e ao lugar das ciências humanas. Porém, Certeau tratará a

19
“[...] un nouveau type de relation entre la foi et la loi”. ROUSTANG, François. (1966) Le troisième homme.
In: ROUSTANG, Ève-Alice (Dir.). François Roustang. Le troisième homme entre rupture personnelle et crise
catholique. Paris: Odile Jacob, 2019. p. 26.
20
“Si l’on n’y prend garde et si l’on se refuse à voir l’évidence, le détachement de l’Église, qui est largement
commencé, ira en s’accentuant”. Ibid., p. 26.
21
Sobre a grande repercussão de Le troisième homme na imprensa e entre membros do corpo eclesial, cf.
ROUSTANG, Ève-Alice. Le courage de François Roustang. In: ROUSTANG, Ève-Alice (Dir.). François
Roustang. Le troisième homme entre rupture personnelle et crise catholique. Paris: Odile Jacob, 2019. p. 13.
FOUILLOUX, Étienne. L’affaire du « troisième homme ». In: ROUSTANG, Ève-Alice (Dir.). François
Roustang. Le troisième homme entre rupture personnelle et crise catholique. Paris: Odile Jacob, 2019. p. 44-57.
220

ruptura de uma maneira que, se não desejável pela hierarquia eclesial, ao menos enfatizava
uma solução de “continuidade” entre o passado e o presente, entre a tradição e a novidade,
entre a cultura religiosa e a sociedade que já não se pensa como tal.
No que concerne à trajetória intelectual de Certeau, essa mudança é o “encerramento”
da transição entre dois momentos, quando a descontinuidade na continuidade dá lugar à
continuidade na descontinuidade e a renovação assume a forma de uma expressa e
incontornável ruptura com a tradição.
A noção descontínua de história – ela só conhece a continuidade sob a forma do
“reemprego” – é inseparável dessa avaliação sobre a continuidade espiritual, pois ela é
entendida como correspondência possível que faça jus ao título “cristão” ou “jesuíta”, sem
anteceder ontologicamente a materialidade histórica das experiências espirituais.
Dessa maneira, o pertencimento ao presente e a consequente ruptura com a tradição
convivem com uma distância em relação ao presente em nome da singularidade e da
fidelidade da prática espiritual. Essa modalidade de relações é o gesto teológico por meio da
qual Certeau, em seus textos confessionais, é historiador sem deixar de produzir uma prática
singularmente teológica.
Esse gesto teológico é também a própria maneira de Certeau praticar a audácia de estar
com seu presente e manter-se “fiel” ao passado. Diferente de Roustang, quem deixa a
companhia em 1967, Certeau manterá sua filiação à ordem. Ele declina ao convite para
assumir a direção da revista, mantendo-se alinhado às orientações que davam base à vertente
editorial que ele e Roustang vinham desenvolvendo. Diante da demissão de Roustang e do
irrevogável agravamento de sua própria relação crítica com a instituição, ele solicita deixar a
Christus, mas não tem sucesso. Sua partida ocorre somente em julho de 1967, quando vai para
a Études, revista mensal da Companhia de Jesus voltada a temas gerais.
Ao romper com a Christus, onde estava enraizada boa parte de sua atividade como
jesuíta desde sua ordenação em 1956, ocorre o primeiro evento significativo de sua própria
maneira de praticar a difícil via de adesão da fidelidade e da liberdade, como já havia
formulado em relação à tradição inaciana em L’épreuve du temps, no número temático
Jésuites editado pela Christus em julho de 1966. A partir desse momento, “fidelidade” recebe
uma acepção bastante singular e distinta da que dariam ao termo os “conservadores” e
“reformistas”, o que não deixará de ter consequências em outras esferas de seu pertencimento
à Companhia de Jesus.
221

4.2 A Études, a América Latina e o maio de 1968

A tensa convivência entre docilidade e audácia na relação com a tradição inaciana e


com a Companhia de Jesus são exemplos da transformação na produção intelectual de
Certeau, de sua mobilidade e abertura aos temas caros de sua época. Eles dão a ver o
deslocamento em sua maneira de articular tradição e novidade, pertencimento institucional e
liberdade intelectual.
O destino dessa transformação será nutrida por novas experiências na segunda metade
da década de 1960. Sua atuação na Études, suas viagens para a América Latina e os
acontecimentos que irrompem nas ruas de Paris em maio de 1968 são fatores “extratextuais”
especialmente relevantes para sua posição quanto à Igreja, à companhia e à espiritualidade.
Sua vida comum no número 15 da rue Monsieur a partir de julho de 1967, residência
da Companhia que abrigava a redação da Études, permitiu-lhe integrar-se em um ambiente
propício para o compartilhamento e discussão de novas ideias. Nessa revista voltada a temas
gerais, lugar de sociabilidade intelectual para os jesuítas interessados nas discussões caras à
época, Certeau publicou diversas resenhas que foram lhe proporcionando acompanhar o
desenvolvimento das ciências humanas de então.
Essas resenhas já apareciam na edição da Études de outubro de 1966, ainda no
contexto da reorientação da Christus. Trata-se de dois dos primeiros lançamentos da coleção
Bibliothèque des sciences humaines criada por Pierra Nora e editada pela Gallimard: as
traduções La terre du remords, do antropólogo e historiador das religiões italiano Ernesto de
Martino, e Masse et puissance do romancista e ensaísta búlgaro Elias Canetti.22
Outro lançamento da mesma coleção receberá um extenso comentário de Certeau em
março de 1967: Les mots et les choses de Michel Foucault,23 autor que terá um impacto
considerável em suas reflexões vindouras, sendo o nome do filósofo mencionado inclusive
nas outras duas resenhas anteriores, além de aparecer em seu artigo Cultures et spiritualités
naquele mesmo ano.
Seus textos na Études e em outras revistas acompanharam as publicações de outros
nomes do cenário intelectual da época, cobrindo sobretudo áreas como filosofia, antropologia,

22
CERTEAU, Michel de. Sem título. Études, t. 325, p. 429-431, oct. 1966. Resenha de: MARTINO, Ernesto de.
La terre du remords. Trad. par Claude Poncet. Paris: Gallimard, 1966. (Bibliothèque des sciences humaines); Id.
Sem título. Études, t. 325, p. 431, oct. 1966. Resenha de: CANETTI, Elias. Masse et puissance. Trad. par R.
Rovini. Paris: Gallimard, 1966. (Bibliothèque des sciences humaines)
23
Cf. CERTEAU, Michel de. Les sciences humaines et la mort de l’homme. Études, t. 326, p. 344-360, mars
1967.
222

psicanálise e história. Além dos nomes supracitados, alguns outros de destaque são Régis
Debray, Herbert Marcuse, Géza Róheim, Leszek Kolakowski, Robert Mandrou e Paul Veyne.
Naquele contexto de troca da revista Christus para a Études, iniciava-se também um
costume que iria lhe acompanhar por toda a vida e marcar profundamente seu trabalho
intelectual: suas viagens para a América Latina.
Certeau esteve no Brasil pela primeira vez em 1966 para acompanhar a reunião
brasileira da Confederación Latinoamericana de Religiosos no Rio de Janeiro entre 27 de
outubro a 6 de novembro, momento em que foram discutidos os problemas da vida religiosa e
as urgências pastorais na América Latina. O encontro circulou informações diversas sobre
diferentes experiências de vários países da região e foi marcado por análises sociológicas e
teológicas sobre a abertura ao mundo, no espírito do Vaticano II.24
Certeau volta ao Brasil no ano seguinte, agora passando também pela Venezuela, pelo
Chile e pela Argentina. Dessa vez, além do Rio de janeiro do Morro dos Cabritos, favela onde
participa de uma atividade com mulheres da localidade, são visitadas Belo Horizonte e
cidades históricas mineiras com Mariana e Ouro Preto, na companhia de um dos religiosos
brasileiros de maior envergadura filosófica e uma das fontes intelectuais da esquerda católica
da Ação Popular, o padre Henrique Cláudio de Lima Vaz.25
Ao acompanhar a dimensão desigual dos trechos dedicados a cada um desses países
visitados e do volume das referências bibliográficas neles levantados, em seu relato sobre essa
viagem, é visível o impacto que o Brasil deixou no francês. Permeado por menções a autores
de língua portuguesa, tais quais Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto, Vivaldo da
Costa Lima, Florestan Fernandes, Paulo Freire, para indicar apenas alguns, deparamo-nos
com um Michel de Certeau profundamente interessado na realidade social, cultural, política e
religiosa do país. Nesse texto, encontramos uma modesta ode ao povo brasileiro: “os
brasileiros possuem o segredo de adoçar a crueldade das coisas com o encantamento das
palavras”.26

24
O relatório de sua participação consta em: CERTEAU, Michel de. La vie religieuse en Amérique latine.
Études, t. 326, p. 108-113, janv. 1967.
25
As notas dessa viagem foram apresentadas em: Id. Amérique latine: ancien ou nouveau monde? Notes de
voyage. Christus, t. 14, n. 55, p. 338-351, juil. 1967. Quanto aos dados biográficos acerca da relação de Certeau
com a América Latina, tomo como referência Le nouveau monde latino-américain: foi et révolution, capítulo
contido em: DOSSE, François. (2002) Michel de Certeau: le marcheur blessé. Paris: La Découverte, 2007. p.
172-188.
26
“[…] les Brésiliens ont le secret d’adoucir la cruauté des choses avec l’enchantement de mots”. CERTEAU,
Michel de. Amérique latine: ancien ou nouveau monde? Notes de voyage. Christus, t. 14, n. 55, p. 338-351, juil.
1967, p. 344.
223

O impacto do Brasil em Certeau foi tal que em fevereiro de 1968 ele demandou a seus
superiores retornar em terras tupiniquins e conduzir uma pesquisa duplamente amparada na
realidade do país lusófono e da França. O estudo teria em vista a articulação do ambiente
cultural e do trabalho teológico nos dois países, o qual contribuiria para o enriquecimento
mútuo dessas duas realidades e para a reinterpretação da tradição a partir dos novos
problemas do presente.
Embora Certeau não mostre interesse em abrir mão de sua contribuição na Études,
então bastante ativa, e solicite autorização para uma primeira experiência no Brasil por apenas
dois meses, não obtém a permissão de seus superiores. O padre Lesage e o padre Giuliani
mostram suas reservas ao que consideram uma profunda inquietação e incapacidade se fixar.
Giuliani chega a se perguntar se o acidente de carro que lhe custara uma vista e a vida
de sua mãe no ano anterior teria acentuado essa característica. No relato de algumas pessoas
próximas a Certeau, entrevistadas por François Dosse em sua biografia, como o filósofo
jesuíta Pierre-Jean Labarrière, o acidente teria o marcado imensamente e aberto caminho para
uma espécie de liberdade iconoclasta.27 Giuliani, de sua parte, conclui que não é esse o caso.
Sob seu olhar, a inquietação de Certeau continuava a mesma de quando o conhecera nos anos
iniciais da empreitada espiritual da Christus. Sendo assim, ele sugere que ele escolha entre a
França ou o Brasil.
Certeau fica em seu país natal, mas retornará a países latino-americanos diversas vezes
e passará a contribuir com a Diffusion de l’Information sur l’Amérique Latine (DIAL), revista
que tem por objetivo fornecer informações sobre a realidade da região. Ele volta regularmente
ao Brasil, à Argentina, ao Chile e visita o México pela primeira vez em 1980.
O francês estreita laços em suas passagens na região para pesquisas, seminários e
conferências. No Brasil, a partir de 1973, participa de seminários sobre cultura popular e
religiosa que acontecem no Recife. Um de seus orientandos de doutorado anos atrás em Paris,
Jacques Laberge, o alberga em sua casa no município de Igarassu quando Certeau está em
Pernambuco. Por seu intermédio, conhece o antropólogo Roberto Mauro Cortez Motta, quem
o possibilitou presenciar um culto em um terreiro de candomblé. Em uma de suas visitas a
Bahia, conhece a historiadora Kátia Mattoso, quem ele encontra várias vezes e cujos trabalhos
ele recomenda a Pierre Nora para a coleção Biblithèque des histoires.
Seu interesse pela América Latina e pelo Brasil também ocupa espaço relevante em
suas publicações. Em 1967, ele apresentou a atuação da Ação Católica Operária no Nordeste

27
Cf. DOSSE, François. (2002) Michel de Certeau: le marcheur blessé. Paris: La Découverte, 2007. p. 136-138.
Para os demais dados biográficos, cf. o capítulo supracitado sobre a América Latina.
224

brasileiro. Em 1968, tratou dos problemas do sacerdócio em países latino-americanos. No ano


seguinte, será a vez dos cristãos e da ditadura militar no Brasil, texto sobre a situação política
e a tortura no país, páginas que exalam um ineditismo surpreendente naquela altura em que a
censura fazia pesar inúmeras dificuldades para acessar informações no estrangeiro sobre a real
situação do país. Certeau escreverá ainda sobre o Centro Intercultural de Documentación
criado por Ivan Illich em Cuernavaca no México, sobre Dom Hélder Câmara e sobre as
formas de resistência entre religiosos latino-americanos. Nesse último, ele evoca os
seminários que participava na Recife dos anos 1970, em uma nota sobre os movimentos
messiânicos no nordeste brasileiro em que alude aos trabalhos da socióloga Maria Isaura
Pereira de Queiroz, aos quais já havia mostrado admiração em outra ocasião. 28
A apresentação sintética do desenrolar dessa aproximação com a América Latina
permite verificar o desdobramento da mudança na trajetória intelectual de Certeau. Como
pôde ser visto, o jesuíta vinha ocupando-se ano após ano dos problemas de ordem cultural,
social e política que envolviam a vida dos religiosos em países latino-americanos na segunda
metade dos anos 1960. Essa dimensão humana da vida religiosa ganha uma proporção
significativa no conjunto de seus textos sobre a América Latina. Acredito que esse
redimensionamento é a principal via de realização do mergulho da investigação sobre a
espiritualidade nas ciências humanas, como já era previsto pela editoria da Christus sob sua
responsabilidade junto com Roustang, quando essa pratica ainda era institucionalmente
limitada pela linha explicitamente inaciana que deveria ser mantida.
Isso não quer dizer que esses textos não possuam uma preocupação teológica. Em
menor ou maior grau, eles conservam o desejo de viabilizar um modo de o passado cristão
continuar fazendo sentido nesse presente que ele vasculha no novo mundo, e não perdem de
vista a urgência de produzir um dizer e um fazer singularmente espiritual em resposta às
urgências de então.
Contudo, o objetivo de tornar a vida espiritual e a reflexão teológica viáveis é
perseguido em uma prática de pesquisa sobre o mundo contemporâneo auxiliada por
disciplinas voltadas ao estudo dessa realidade. Essas ferramentas que compõe sua oficina

28
CERTEAU, Michel de. L’ACO brésilienne dénonce l’injustice sociale dans le Nordeste. La Croix, Paris, 21-
22 mai 1967; Id. Développement économique et justice sociale. Un manifeste de l’ACO brésilienne. Masses
ouvrières, n. 242, p. 49-57, août-sept. 1967; Id. Problèmes du sacerdoce en Amérique Latine. Recherches des
Science Religieuse, t. 56, n. 4, p. 591-601, 1968; Id. Les chrétiens et la dictature militaire au Brésil. Politique
Aujourd’hui, p. 38-53, nov. 1969; Id. Le prophète et les militaires. Dom Helder Camara. Études, t. 333, p. 104-
113, juil. 1970; Id. Cuernavaca: le Centre interculturel et Mgr. Illich. Études, t. 331, p. 436-440, oct. 1969; Id.
Mystiques violentes et stratégie non violente. Le Monde Diplomatique, n. 266, p. 16-17, mai 1976. Sobre o
comentário de Certeau ao trabalho de Maria I. P. de Queiroz, Cf. Id. Religion et société: les messianismes.
Études, t. 330, p. 608-616, avril 1969, p. 609-612.
225

intelectual imprimem os traços que caracterizam o seu perfil de investigação naquele


momento. Que perfil é esse? O próprio Certeau o identificará:
Eu sou apenas um viajante. Não somente porque viajei muito tempo pela
literatura mística (e esse tipo de viagem te torna modesto), mas também
porque tendo feito, a título de história ou de pesquisas antropológicas,
algumas peregrinações pelo mundo, aprendi, em meio a tantas vozes, que eu
só podia ser um particular entre muitos outros, contando apenas alguns dos
itinerários traçados em tantos países diferentes, no passado e no presente,
pela experiência espiritual. 29
Um viajante-historiador e viajante-antropólogo se aventurando em “regiões” do
passado e do presente para descobrir os diferentes conjuntos culturais intrínsecos às
experiências religiosas. São muitas as aventuras de um padre em busca dos artefatos
espirituais soterrados nas diferentes linguagens da história e das culturas contemporâneas, seja
no encontro com os místicos do século XVI e XVII ou na companhia dos brasileiros em
tempos de ditadura militar.
Essa face “antropológica” crescente nos textos sobre a América Latina não ficará
restrita à vida religiosa, ao sacerdócio, à educação cristã ou a outros assuntos explicitamente
centrados sobre o cristianismo no mundo contemporâneo. Sua atenção às experiências
contemporâneas serão descentradas do universo religioso, embora essa realidade seja
inseparável da vida religiosa e logo seja retomada como problema em suas reflexões sobre o
cristianismo e sobre a Igreja. Esse descentramento tem nome, ou melhor, data: maio de 1968.
A imersão em temas contemporâneos fora do centro de gravitação religioso foi
preparado historicamente pela “abertura” institucional proporcionada pelo Vaticano II, pelo
crescente sentimento de inadequação entre a cultura religiosa e as vivências cotidianas, pela
reorientação no projeto editorial da Christus, em direção à ciências humanas, pela
sociabilidade de ideias na Études e intensa atuação em seu primeiro ano nessa revista, bem
como pelas viagens à América Latina e sua voraz alfabetização na situação desses países.
Nesse sentido, a participação de católicos nos acontecimentos de maio é um signo do
que já vinha sendo percebido por muitos crentes, que Roustang já havia formulado em seu Le
troisième homme e que já era pressentido nas páginas de Certeau, por exemplo, quando ele
falava do desprestígio da tradição entre os jovens no artigo Ouverture sociale et renouveau
missionaire de l’école chrétienne, na edição da Christus de outubro de 1965.

29
“Je suis seulement un voyager. Non seulement parce que j’ai longtemps voyagé à travers la littérature
mystique (et ce genre de voyage rend modeste), mais aussi parce qu’ayant fait, au titre de l’histoire ou de
recherches anthropologiques, quelques pèlerinages à travers le monde, j’appris, au milieu de tant de voix, que je
pouvais seulement être un particulier entre beaucoup d’autres, racontant quelques-uns seulement des itinéraires
tracés en tant de pays divers, passés et présents, par l’expérience spirituelle”. CERTEAU, Michel de.
L’expérience spirituelle. Christus, t. 17, n. 68, p. 488-498, oct. 1970, p. 488.
226

Embora a adesão de crentes ao maio de 1968 seja um signo da perda de plausibilidade


da cultura religiosa, esses acontecimentos são um fator decisivo que exacerba a
desvalorização da tradição. Essa situação dá um forte impulso a esse novo momento do longo
processo histórico de dessacralização da sociedade francesa. Desse modo, o maio de 1968
católico é resultado de uma época em transformação para a cultura religiosa e ao mesmo
tempo é o que permite essa própria transformação assumir seu estágio terminal, agravando os
conflitos de tal modo que eles assumem a forma de uma “crise católica” 30
já anteriormente
sentida e prenunciada.
Para entender o impacto que os eventos que tomaram as ruas de Paris tiveram em
Certeau e em seus textos, é preciso levar em conta a sua própria interpretação sobre eles. Uma
série de artigos na Études entre maio e setembro, no calor dos acontecimentos, foram
reeditados em conjunto naquele mesmo ano sob o título La prise de parole.31 Algumas linhas
desses textos contém excelentes testemunhos para pensarmos de que maneira esse objeto
estaria relacionado à sua própria vida religiosa e intelectual a partir de então.
“Em maio passado, tomou-se a palavra como tomou-se a Bastilha em 1789”. 32 Com
essa frase, provavelmente sua afirmação mais célebre, Certeau introduzia a leitura sobre a
onda contestatória que varreu Paris em 1968 – ela consta no segundo capítulo do livro, mas
foi o primeiro artigo publicado sobre o tema por Certeau na Études. A liberação da palavra até
então aprisionada foi descrita em tom entusiasmado pelo jesuíta:
Algo nos aconteceu. Algo começou a mudar em nós. Emergindo sabe-se lá
de onde, enchendo subitamente as ruas e as fábricas, circulando entre nós,
tornando-se nossas, mas deixando de ser o ruído abafado das nossas
solidões, vozes nunca ouvidas nos transformaram. Pelo menos tínhamos esse
sentimento. Produziu-se algo inusitado: nós começamos a falar. Parecia ser a
primeira vez. De todas as partes saiam tesouros adormecidos ou tácitos,
experiências nunca ditas.33
A simpatia pelo despertar das vozes adormecidas e o uso da primeira pessoa do plural
para marcar a audiência tocada por esse espetáculo sonoro mostra a um só tempo certa
distância que separa os combatentes nas barricadas de seus espectadores e uma certa

30
“Crise católica” é o termo usado por Denis Pelletier para designar os conflitos em torno da religião na
sociedade francesa na segunda metade dos anos 1960 e nos anos 1970. PELLETIER, Denis. La crise catholique:
religion, société, politique. Paris : Payot, 2002.
31
O primeiro e o quinto capítulos do livro são inéditos. A primeira edição, impressa pela Desclée de Brouwer,
foi ampliada e modificada por Luce Giard em: CERTEAU, Michel de. (1968) La prise de parole et autres écrits
politiques. Édition établie et présentée par Luce Giard. Paris: Éditions du Seuil, 1994.
32
“En mai dernier, on a pris la parole comme on a pris la Bastille en 1789”. Ibid. p. 40.
33
“Quelque chose nous est arrivé. Quelque chose s'est mis à bouger en nous. Émergeant d'on ne sait où,
remplissant tout à coup les rues et les usines, circulant entre nous, devenant nôtres mais en cessant d'être le
bruit étouffé de nos solitudes, des voix jamais entendues nous ont changés. Du moins avions-nous ce sentiment.
Il s'est produit ceci d'inouï : nous nous sommes mis à parler. Il semblait que c'était la première fois. De partout,
sortaient les trésors endormis ou tacites, d'expériences jamais dites”. Ibid., p. 41.
227

experiência comum entre eles. Sem ser propriamente um soixante-huitard, Certeau


participava daquela história: “É um fato do qual nós somos testemunhas por tê-lo visto e dele
ter participado”.34
Qual é então o sentido dessa “participação”? Essa pergunta pode ser respondida por
meio da maneira como enxergava tais eventos. Certeau não desatentou do papel político das
barricadas. Ele considerava a revolta contra a sociedade de consumo uma forma de colocar
em xeque o regime político vigente. Entretanto, o jesuíta interpretou esses eventos políticos
filosoficamente.
Antes das reivindicações universitárias e sindicais propriamente ditas há algo mais
radical, isto é, uma “experiência criadora” (expérience créatrice). Tomar a palavra não
consiste, então, em estabelecer/apreender/efetivar um poder. A democracia direta, a
autogestão ou outro princípio que constitui um programa de reivindicações são implicações
dessa invenção inicial que as precede.
Esse estilo de experiência pode ser qualificado como uma poética da multidão (une
foule est devenu poétique) em que a experiência de criações imprevisíveis aparece sob a
forma da denúncia de uma falta (a participação dos assujeitados) e da constante recusa a todo
tipo de identificação a um “isto”: “O que foi vivido positivamente só pôde enunciar-se
negativamente”.35 Desse modo, a tomada da palavra se expressa no ato mesmo de contestar,
no gesto de autonomia que precede toda forma de inscrição.
Como, então, apreender essa experiência que inaugura uma novidade sem chegar a
constituir-se ela própria em uma outra realidade? Pensando o maio de 1968 e a tomada da
palavra enquanto acontecimento: “Um acontecimento não é o que se pode ver ou saber dele,
mas o que ele se torna (e, antes de tudo, para nós). Essa opção só se compreende no risco, e
não pela observação”.36
A essa altura já é possível começar a vislumbrar em que medida sua interpretação
sobre os eventos auxilia a compreender o impacto que o maio de 1968 teve em Certeau. Ele
identifica o próprio acontecimento a uma participação – o que ele se torna para “nós”,
compreendê-lo no risco –, e declara sua própria “participação” naqueles eventos. Dessa

34
“C’est un fait dont nous sommes témoins pour l’avoir vu et y avoir participé”. CERTEAU, Michel de. (1968)
La prise de parole et autres écrits politiques. Édition établie et présentée par Luce Giard. Paris: Éditions du
Seuil, 1994. p. 42.
35
“Ce qui a été vécu positivement n’a pu s’énoncer que négativement”. CERTEAU, Michel de. (1968) La prise
de parole et autres écrits politiques. Édition établie et présentée par Luce Giard. Paris: Éditions du Seuil, 1994.
p. 44. Grifo do autor.
36
“Un événement n’est pas ce qu’on peut voir ou savoir de lui, mais ce qu’il devient (et d’abord pour nous).
Cette option ne se comprend que dans le risque, et non par l’observation”. Ibid., p. 51. Grifo nosso.
228

forma, essa leitura do maio de 1968 é já uma primeira experiência que ele faz desse
acontecimento.
Em Certeau, esse acontecimento dá lugar a reflexão sobre a relação entre a novidade e
a ordem estabelecida, à possibilidade de uma modificação ser elaborada a partir de uma
estabilidade e de em um sistema uma relação de forças já conter o índice de sua mutação.
Portanto, a força tirada desses acontecimentos está em seu caráter simbólico. A ação dos
manifestantes é simbólica porque toma os signos de uma linguagem social a contrassenso,
trocando o sentido, significando sem realizar: “esse esquema de um vocabulário não efetuava,
mas representava uma mudança ‘qualitativa’”.37
Essa “revolução simbólica” (révolution symbolique) em maio de 1968 foi a “irrupção
do impensado” (irruption de l’impensé), pois desvelava e contestava valores latentes tidos
como evidentes, liberando perspectivas até então interditas, impossibilidades não elucidadas
tornadas possíveis:
De fato, essa tática se define em função do que uma sociedade não diz e do
que tacitamente admite como impossível. Ela tem, portanto, um efeito de
dissuasão em relação a uma organização dos possíveis: a criação de um
“lugar simbólico” é também uma ação.38

O tratamento do maio de 68 como “tomada da palavra”, “revolução simbólica” e


“irrupção do impensado” fazem desses eventos um verdadeiro acontecimento na trajetória
intelectual de Michel de Certeau. O religioso mesmo testemunha a dimensão do impacto
dessa poética da multidão na sociedade, mais uma vez na primeira pessoa:
As poucas reflexões que seguem nasceram da convicção de que a palavra
“revolucionária” de maio passado, ação simbólica, abre um processo da
linguagem e chama a uma revisão global do nosso sistema cultural. A
questão que me colocava uma experiência de historiador, de viajante e de
cristão, eu a reconheço e também a descubro no movimento que agitou o
avesso 39 do país. Elucidá-lo era para mim uma necessidade. Solidário com o
que significava e me ensinava essa “palavra” tão fundamental, eu não podia
pensar nem crer que ela pudesse ser exilada nas margens do país, prisioneira

37
“Ce schéma d’un vocabulaire n’effectuait pas mais représentait un changement « qualitatif »’”. CERTEAU,
Michel de. (1968) La prise de parole et autres écrits politiques. Édition établie et présentée par Luce Giard.
Paris: Éditions du Seuil, 1994. p. 35. Grifo do autor.
38
“En effet, cette tactique se définit en fonction de ce qu’une société ne dit pas et de ce qu’elle admet tacitement
comme impossible. Elle a donc un effet de dissuasion par rapport à une organisation des possibles: la création
d’un « lieu symbolique » est aussi une action”. Ibid., p. 36. Grifo do autor.
39
Optei por traduzir “dessous” como “avesso”, como previsto pelo Dicionário Bertrand Francês/Português, pois
esse termo da língua portuguesa transmite bem o antagonismo presente na ideia de Certeau sobre a revolução
simbólica como irrupção do impensado, onde o latente corresponde justamente ao avesso reprimido da
sociedade.
229

de si mesma ao mesmo tempo que aprisionada; sua ausência também


condenaria à morte a sociedade que a rejeitasse.40
Essa citação extensa não apenas demonstra o peso da tomada da palavra em maio de
1968 sob o olhar de Certeau, como nos entrega pistas para a interpretação do significado
assumido por esse acontecimento em sua produção intelectual. Essa questão pode ser
desdobrada em algumas frentes, das quais passamos sumarizar as mais diretamente
identificadas ao nosso problema, ou seja, temas ligados a seu pertencimento religioso, à
reflexão teológica e ao seu trabalho de historiador.
Em primeiro lugar, o par reconhecer/descobrir é uma chave para pensar o caso de
Certeau no conjunto dos católicos franceses. A simpatia de Certeau àqueles eventos não foi
um caso isolado, como mostram trabalhos sobre a participação católica no maio de 1968 e
sobre a esquerda católica francesa.41 À guisa de exemplo, citemos o caso dos cem padres
parisienses que encorajaram a contestação do clero, dentre outros mencionado por Jean-Louis
Schlegel.42 Contudo, do mesmo modo que o maio de 1968 tornou uma insatisfação anterior,
sentimento de não pertencimento, em contestação da Igreja como instituição opressora,
Certeau reconhecia na tomada da palavra algo que já vinha se deparando antes e agora
redescobria.
Em segundo lugar, alguns fatores haviam contribuído para um descentramento
temático em seus textos: o contexto de abertura autorizada pelo Vaticano II, a multiplicação
dos cristãos não identificados com a cultura religiosa e as experiências anteriores na Christus,
na Études e na Amérca Latina. Ademais, seus textos anteriores já traziam vestígios de uma
desinstitucionalização das crenças. Mesmo assim, é o maio de 1968 que o permite precisar
isso que antes ainda estava em vias de reconhecimento, abrindo caminho para a formulação
mais radical de uma “crise de autoridade” da Igreja.

40
“Les quelques réflexions qui suivent sont nées de la conviction que la parole « révolutionnaire » de mai
dernier, action symbolique, ouvre un procès du langage et appelle une révision globale de notre système
culturel. La question que me posait une expérience d’historien, de voyager et de chrétien, je le reconnais, je la
découvre aussi, dans le mouvement qui a remué le dessous du pays. L’élucider m’était une nécessité. Solidaire
de ce que signifiait et m’apprenait une « parole » aussi fondamentale, je ne pouvais penser ni croire qu’elle pût
être exilée sur les bords du pays, prisonnière d’elle-même en même temps qu’emprisonnée; son absence vouerait
aussi à la mort la société qui la rejetterait”. CERTEAU, Michel de. (1968) La prise de parole et autres écrits
politiques. Édition établie et présentée par Luce Giard. Paris: Éditions du Seuil, 1994. p. 38-39. Grifo nosso.
41
BARRAU, Grégory. Le mai 68 des catholiques. Paris: Les Éditions Ouvrières, 1998; PELLETIER, Denis. La
crise catholique : religion, société, politique. Paris : Payot, 2002; SCHLEGEL, Jean-Louis. La révolution dans
l'Église. Esprit, n. 344, p. 54-71, mai 2008. Disponível em: https://esprit.presse.fr/article/jean-louis-schlegel/la-
revolution-dans-l-eglise-14503. Acesso em: 01 nov. 2020. Sobre a posição marginal de Certeau no cenário da
esquerda católica francesa, ver: TRANVOUEZ, Yvon. De la marge claire au centre obscur: Michel de Certeau et
la gauche catholique (1965-1978). Revue d'Histoire de l'Eglise de France, t. 104, p. 323-336, 2018.
42
SCHLEGEL, op. cit.
230

Já no livro La prise de parole uma primeira expressão dessa crise de autoridade da


Igreja dava sinais. Reverberam diretamente na esfera religiosa o abalo dos eventos de maio
nas bem estabelecidas circunscrições ideológicas e políticas, bem como a acusação do ensino
e das instituições serem incapazes de fornecer os instrumentos para novas experiências. Um
problema que “a crise do maio” (la crise de mai) tornou evidente foi a demanda de que “a
autoridade diga efetivamente a comunidade da qual ela se pretende representativa, caso
contrário ela é denunciada e recusada”.43 Esse mal-estar atesta a exigência de que a linguagem
seja levada a sério, necessidade cuja localização pode ser encontrada em todo lugar: “no
Estado, na Universidade, na Igreja”.44
Na perspectiva de Certeau, e nesse ponto ele mostra seu otimismo quanto à capacidade
reconciliadora do ato de crer, o controle de cada grupo sobre seus representantes e o direito de
cada um poder manifestar livremente sua consciência em atos públicos não é uma recusa da
linguagem religiosa:
Se, nas comunidades cristãs como alhures, essa dupla exigência contesta
particularmente as expressões coletivas (liturgia, regras comuns, autoridade,
etc.), não é para destruir a linguagem, mas para restaurá-la devolvendo-lhe
seu sentido de ser uma verdadeira comunicação.45
Por último, é digno de nota que essa abordagem do maio de 1968 também permitiu
uma reorientação em sua prática e perspectiva teórico-metodológica. Suas interpretações
sobre o maio e 1968 não são facilmente identificáveis a um campo disciplinar específico. Não
obstante Certeau evoque sua experiência historiadora nesse trabalho, destaca-se uma
interpretação “antropológica” sobre os eventos. Nesse sentido, à alteridade das experiências
humanas concernentes à vida cristã na América Latina, soma-se a nova experiência cultural
inaugurada pela tomada da palavra em 1968 – ele desconfiava da ideia de revolução cultural,
pois antes de uma nova cultura, para ele tratava-se de uma nova experiência da cultura já
existente, daí falar em revolução simbólica.
Além disso, não é nada irrelevante verificar que uma nova interpretação histórico-
filosófica já se anunciava nessa reflexão. Em um trecho do capítulo Le pouvoir de parler,
desponta uma orientação que se tornará um eixo crucial em torno do qual girará sua reflexão
epistemológica sobre a história na primeira metade dos anos 1970, a saber, o fato de que o

43
“[...] l’autorité dise effectivement la communauté dont elle se prétend représentative, faute de quoi elle est
dénoncée”. CERTEAU, Michel de. (1968) La prise de parole et autres écrits politiques. Édition établie et
présentée par Luce Giard. Paris: Éditions du Seuil, 1994. p. 61-62.
44
“[...] dans l’État, dans l’Université, dans l’Église”. Ibid., p. 62.
45
“Si, dans les communautés chrétiennes comme ailleurs, cette double exigence conteste particulièrement les
expressions collectives (liturgie, règles communes, autorité, etc.), ce n’est pas pour détruire le langage, mais
pour le restaurer en lui rendant son sens d’être une véritable communication”. Ibid., p. 62.
231

historiador fala da história estando ele próprio na história: “A história presente, aquela que
nós vivemos, nos ensina a compreender de outra maneira a história passada que se escreve ou
ensina. O saber pode mudar com a experiência”.46 Essa intuição extraída do estudo de um
fenômeno particular, a tomada da palavra seguida do retorno à ordem, conduz Certeau a um
problema que considero um questionamento teórico concernente a toda investigação histórica:
“Como uma mudança pode advir? Como um novo dia se levanta?”.47
Outra ocorrência intrigante, nessa reflexão sobre o maio de 1968, é a eclosão de uma
expressão que ficará enormemente associada ao seu trabalho posterior e será inerente à
revisão de sua maneira de praticar a história religiosa do século XVII: “Querer dizer é se
engajar em fazer história”.48 Para Certeau, não é possível tomar a palavra e mantê-la sem que
haja uma tomada do poder, isto é, a conquista das condições que possibilitem constituir uma
linguagem e uma identidade cultural própria. Esse tratamento avança a reflexão da tomada da
palavra como revolução simbólica, experiência diferente de uma cultura sem chegar a
constituir outra. A esse respeito, ele está desdobrando historicamente o paradoxo de uma
experiência vivida positivamente e enunciada negativamente.
No final das contas, o que está em jogo nesse tratamento dado por Certeau é sua
posição em relação ao debate intelectual e político da época, posição já presente em seu texto
sobre Foucault na Études e agora reformulada sob a ótica de sua interpretação sobre as
contestações políticas do maio de 1968: “Recusamo-nos a ter de escolher, na teoria, entre
história e estrutura; na prática, entre o ‘movimento’ de maio e a ‘ordem’ de junho”.49
São muitas as evidências que testemunham a relevância da tomada da palavra em maio
de 1968, não como um fato isolado, mas como uma delimitação histórica componente de uma
série de circunstâncias e experiências atreladas à trajetória intelectual de Certeau, que embora
não sejam tomadas como o sentido mesmo de seus escritos, são peças indissociáveis dos
rumos seguidos na trajetória de seus projetos intelectuais e de suas ideias maiores. O maio de
1968 permite a Certeau recolocar preocupações anteriores e fornece novos signos por meio
dos quais ele ressignificará seu entendimento sobre a crise da Igreja.
Seu envolvimento com os acontecimentos de maio lhe renderam notoriedade fora do
círculo jesuíta e de historiadores da religião e da espiritualidade moderna. Esse ano significou
46
“L’histoire présente, celle que nous vivons, nous apprend à comprendre autrement l’histoire passée, qui
s’écrit ou s’enseigne. Le savoir peut changer avec l’expérience”. CERTEAU, Michel de. (1968) La prise de
parole et autres écrits politiques. Édition établie et présentée par Luce Giard. Paris: Éditions du Seuil, 1994. p.
65.
47
“Comment un changement peut-il advenir? Comment un nouveau jour se lève-t-il? ”Ibid., p. 65.
48
“Vouloir se dire, c’est s’engager à faire l’histoire”. Ibid., p. 67. Grifo do autor.
49
“Nous refusons d’avoir, en théorie, à choisir entre l’histoire et la structure; en pratique, entre le
« mouvement » de mai et « l’ordre » de juin”. Ibid., p. 77.
232

para Certeau tamanha adesão às demandas do presente que ele passará a dividir suas
atividades na companhia com a atuação em instituições não religiosas, em grande medida
decorrente da evidência pública que ganhou com sua interpretação da tomada da palavra.
Certeau era responsável por um seminário de doutorado em teologia no Instituto
Católico de Paris desde 1964, o qual continuará ministrando até 1978. A partir de 1968, dará
cursos no centro universitário experimental de Vicennes, futura Paris-VIII, recém criado no
bojo da contestação de maio. Lá integrou o departamento de psicanálise, depois o de história.
Em 1971 passa a ensinar antropologia cultural na Paris-VII, onde permanece até sua partida
rumo à Califórnia. Em 1977-1978, vai como professor convidado ao departamento de
psicologia e ciências da educação da Universidade de Genebra. A partir de 1978, integra o
departamento de literatura da Universidade da Califórnia em San Diego. Depois de seis
longos anos, retorna a Paris, após a aprovação de sua candidatura na École des Hautes Études
en Sciences Sociales, onde ministra seu primeiro e último seminário sobre a antropologia
histórica das crenças (séculos XVI e XVII).
No plano editorial, suas parcerias vinham se multiplicando. Além das atividades
editoriais na Études, na Revue d’Ascétique et de Mystique, tornada Revue d'Histoire de la
Spiritualité em 1972, e na Recherches de Sciences Religieuse, todas da Companhia de Jesus,
contribui periodicamente com textos para o mensal católico Esprit a partir de 1967, criado
pelo filósofo católico Emmanuel Mounier; funda a coleção Bibliothèque des Sciences
Religieuses em 1969, em parceria com quatro editoras (Aubier, Cerf, Delachaux et Niestlé e
Desclée de Brower); alguns anos depois, expandirá sua atuação editorial para uma revista não
religiosa, estando entre os membros do comitê editorial da Traverses desde seu primeiro
número, criada em 1975 por Jean Baudrillard no contexto do Centre de Création Industrielle,
integrante do Centre Georges Pompidou, centro cultural cujo projeto Certeau era entusiasta.
Sua ultrapassagem de fronteiras também é intensa em sua circulação em grupos de
pesquisa. A partir de 1964, seguiu os seminários de Jacques na l'École Freudienne de Paris até
sua dissolução em 1980. Desde 1967, esteve ativamente nos encontros sobre história religiosa
do grupo de historiadores que se reunia na abadia de La Bussière, dentre os quais figuravam
Dominique Julia, Hervé Martin, André Vauchez e Claude Langlois. Naquele mesmo ano,
Certeau começou a participar do Groupe de Recherche Sémio-Linguistique, ligado ao Collège
de France e à École Pratique des Hautes Études, fundado por A. J. Greimas e frequentado por
intelectuais como Roland Barthes, Julia Kristeva e Tzvetan Todorov. Certeau também foi
ativo nos encontros do Centro Internazionale di Semiótica e di Lingüística de Urbino, criado
por Greimas em 1970.
233

A maneira como Certeau frequentava esse ambiente greimasiano predominantemente


estruturalista ecoava sua insistente recusa em fazer um corte irremediável entre estrutura e
história. Ou como dizia seu amigo e companheiro de grupo Louis Marin, a semiótica servia-
lhe não como um modelo, mas como um ponto de referência teórico, cuja tônica é uma
linguística da enunciação voltada ao ato de falar e às táticas enunciativas por meio das quais
os locutores operam no sistema linguístico, apropriando-se da língua e instaurando um
presente relativo a um momento e a um lugar.50
Além da América Latina, do maio de 1968, de sua entrada no departamento de
etnologia da Paris-VII e sua participação ativa na revista Traverses, um projeto de
investigação financiado pelo governo francês marcará definitivamente a identificação do
trabalho de Certeau à interpretação da cultura.
Suas considerações sobre a tomada da palavra tinham impressionado o ministro da
educação nacional responsável pela lei de reforma universitária, Edgar Faure, que consultou
Certeau em algumas ocasiões.51 Na esteira do maio de 1968 e de artigos notórios publicados a
partir de então, Certeau foi convidado a ocupar a posição de relator do colóquio internacional
a ocorrer em Arc-et-Senans em abril de 1972, preparação para o encontro de ministros da
comunidade europeia em Helsinque para definição uma política cultural para o bloco. Os
relatórios redigidos nessa ocasião e alguns outros artigos foram reunidos em La culture au
pluriel em 1974.52
É nesse ano que Certeau recebeu a encomenda da Délégation Générale à la Recherche
Scientifique et technique (DGRST) de uma pesquisa sobre práticas culturais. Ele aceitou o
contrato de pesquisa e desenvolveu formalmente o trabalho entre 1974 e 1977, em conjunto
com jovens pesquisadores e pesquisadoras que mobilizou para a empreitada, a exemplo de
Luce Giard, quem designará como sua executora testamentária. Em decorrência de suas
atividades na Universidade de Genebra entre 1977-1978 e em seu primeiro ano como
professor titular na Universidade da Califórnia em San Diego desde 1978, Certeau entrega o

50
MARIN, Louis. L’aventure sémiotique, le tombeau mystique. In: GIARD, Luce. (Dir.) Michel de Certeau.
Paris: Centre Georges Pompidou, 1987. p. 208.
51
Certeau recebe com entusiasmo a lei Faure, mas não tardará a mudar de posição, como pode ser visto em um
artigo escrito com Dominique Julia. CERTEAU, Michel de. La loi Faure, ou le statut de l’enseignement dans la
Nation. Études, t. 329, p. 682-689, déc. 1968; CERTEAU, Michel de; JULIA, Dominique. La misère de
l’université. Études, t. 332, p. 522-544, avril 1970.
52
CERTEAU, Michel de. (1974) La culture au pluriel. Nouvelle édition établie et présentée par Luce Giard.
Paris: Éditions du Seuil, 1993.
234

resultado final do trabalho somente em 1979. Dessa pesquisa, resultou o seu livro mais
conhecido, L’invention du quotidien, publicado em 1980.53
Tal é a imagem do jesuíta naqueles anos após o maio de 1968. É notório seu
descentramento em relação a temas religiosos, sua abertura crítica a diferentes disciplinas e
sua facilidade em transitar por entre instituições sem estabelecer uma identificação estrita a
nenhuma delas. Diante desse quadro, como fica a situação de Certeau em relação à Igreja e à
Companhia de Jesus? É o que veremos a seguir.

4.3 O avesso da fixierung cristã

Certeau desdobrará o “espírito” de maio de 1968, radicalizando a incompatibilidade da


cultura religiosa com a vida moderna, como já vinha ganhando centralidade em seus textos
nos dois anos anteriores. Recorrerei a alguns escritos publicados entre 1966 e 1968, para
delimitar os contornos das preocupações de Certeau naqueles anos. Esse recurso favorecerá o
estabelecimento da gravidade que a questão assume em suas publicações após o maio de
1968. A tomada da palavra foi a ocasião de um agravamento crítico em seu tratamento do
problema da “fixação” e da crise de linguagem religiosa, reaparecendo sob a forma de uma
crise de autoridade da Igreja.
Desde 1966, Michel de Certeau apresentava uma crítica à fixação da verdade cristã.
Em uma época em que o concílio Vaticano II colocava no coração da Igreja o “retorno às
fontes” e um aggiornamento, o historiador jesuíta mostrava sua ressalva à localização do
sentido cristão em um momento do passado ou do presente. Essa problematização aparece em
diferentes graus de intensidade em seus textos naquele ano.

53
CERTEAU, Michel de. (1980) L’invention du quotidien: 1. Arts de faire. Nouvelle édition établie et présentée
par Luce Giard. Paris: Gallimard, 2015. Para a história dessa pesquisa que deu origem ao livro, ver: GIARD,
Luce. História de uma pesquisa. (1990) In: CERTEAU, Michel de. (1980) A invenção do cotidiano: 1. Artes de
fazer. Nova edição estabelecida e apresentada por Luce Giard, tradução de Ephraim Ferreira Alves. 18 ed.
Petrópolis: Vozes, 2012. p. 9-31.
Em 1983, Certeau e Giard publicaram um relatório sobre os “contenus et outils de la communication”,
encomendado pelo Ministério da Cultura no ano anterior. O material contém ainda estudos setoriais assinados
por jovens pesquisadores, dirigidos por Certeau e Giard: a infância (Anne Baldassari), a imigração (Philippe
Mustar), os subúrbios (Jacques Katuszewski et Ruwen Ogien) e as culturas regionais da Bretanha (Fanch
Elegoët). CERTEAU, Michel de; GIARD, Luce. L’ordinaire de la communication. Paris: Dalloz, 1983. Uma
versão foi republicada com algumas supressões e sem os estudos setoriais em: CERTEAU, Michel de. (1968) La
prise de parole et autres écrits politiques. Édition établie et présentée par Luce Giard. Paris: Seuil, 1994. p. 163-
224. Essa reedição de La prise de parole traz também a reimpressão de um relatório solicitado a Certeau pela
OCDE (p. 225-271). Esse material foi encomendado para uma reunião com especialistas sobre o tema das
Educational policies and minority groups, realizado em janeiro de 1985. Uma parte desse texto foi divulgada na
Esprit, e a versão integral apareceu nos Annales ESC: CERTEAU, Michel de. L’actif et le passif des
appartenances. Esprit, p. 155-171, juin 1985; Id. Économies ethniques. Annales ESC, 41e année, n. 4, p. 789-815,
juillet-août 1986.
235

A questão surge ao comentar o decreto De accommodata renovatione vitae religiosae,


promulgado em outubro de 1965. Nesse artigo sobre os princípios norteadores da renovação
na prática religiosa do aggiornamento, intitulado La rénovation de la vie religieuse, vemos o
seguinte: “a Igreja fixa menos fórmulas definitivas que critérios revelados”.54 Nesse sentido, o
retorno às fontes não apreende um passado como absoluto ou o antigo como modelo
definitivo. Na perspectiva de Certeau, ele “desarma o imobilismo” (désarme l’immobilisme),
“revela um pluralismo histórico” (révèle un pluralisme historique), relembra “a exigência de
uma fidelidade que nunca fornece – não mais às comunidades do que aos indivíduos – a
segurança de poder instalar-se em obras ou fórmulas definitivas”.55
Meses depois, em L’épreuve du temps, o tratamento do historiador sobre o retorno às
fontes jesuítas colocará indiretamente o mesmo problema da fixação. Um passado
multifacetado, uma “multitude de momentos” (multitude de moments), é o recurso para
Certeau denunciar como simplificadora a designação no singular de tudo que precede o
presente, isto é, a tradição.56 É justificável afirmar a ligação indireta com o problema da
fixação, pois é justamente a tradição no singular que justificaria localizar no passado um
tesouro intocado como riqueza credora da renovação no presente.
A formulação do problema ganha acabamento preciso em Cultures et spiritualités. Na
quarta parte do artigo, o subtópico La fixation materializa o termo na seguinte declaração:
“Para mim, para nós, ser cristão é isto”. À essa afirmação, considerada ilusória, Certeau
contrapõe: “O ‘isto’ varia, mas não a exclusividade que ele reivindica”. 57 Fixar um “isto” e
torná-lo exclusivo é o mesmo que tornar esse desejo invariável. Aqui pode-se supor o eco da
fixierung freudiana, fixação na qual há a tendência a demorar-se em dada atividade
preparatória da maturação psíquica e representá-la como objeto do desejo.58
Certeau trata como ilusória essa aderência invariável a uma representação, porque a
história das renovações acarretadas pelo outro proíbe determinar uma região exclusiva e frear
a mobilidade do itinerário espiritual. Conforme o autor, a ilusão consiste em acreditar que
esse movimento se tornou “inútil ou perigoso, em querer fixar uma dessas ‘passagens’

54
“[...] l’Église fixe moins des formes définitives que des critères révélés”. CERTEAU, Michel de. La rénovation
de la vie religieuse. Christus, t. 13, n. 49, p. 101-119, janv. 1966, p. 105. Grifo nosso.
55
“[...] L’exigence d’une fidélité qui ne procure jamais – pas plus aux collectivités qu’aux individus – la sécurité
de pouvoir s’installer en des œuvres ou en des formules définitives”. Id. La rénovation de la vie religieuse.
Christus, t. 13, n. 49, p. 101-119, janv. 1966, p. 117.
56
CERTEAU, Michel de. L’épreuve du temps. Christus, t. 13, n. 51, t. 13, p. 311-331, juil. 1966, p. 322.
57
“Pour moi, pour nous, être Chrétien, c’est ça. Le « ça » varie, mais non pas l’exclusivité qu’il réclame”. Id.
Cultures et spiritualités. Concilium, n. 19, p. 7-25, nov. 1966, p. 22.
58
FREUD, Sigmund. (1905) Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: Edição standard brasileira das obras
completas de Sigmund Freud, vol. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1972. p. 157.
236

indispensáveis e tomá-la sozinha como a verdade, da qual não é mais que um signo”.59 A
tentação – no sentido cristão do termo – é fixação: “Ali onde Deus é revolucionário, o diabo
se mostra fixista”, provoca Certeau.60
Essa preocupação com a fixierung cristã é uma forma de colocar em questão o valor
universal da linguagem religiosa do passado, ou seja, a validade irrestrita de qualquer uma de
suas fórmulas, afirmações ou signos. Nesse sentido, ela é sintoma de uma época em que
crescia o sentimento de inadequação entre a cultura religiosa e a vida moderna do crente, em
que as saídas dogmática ou reformista não contemplavam as novas sensibilidades no mundo
pós-concílio. Certeau não tardará a expressar sua inquietação mais diretamente nessa direção.
No ano seguinte, após sua ida para a Études, publicou na Esprit um artigo intitulado
La parole du croyant dans le langage de l’homme.61 Nesse trabalho encontramos um
diagnóstico do esvaziamento da linguagem religiosa naquele tempo. Ele fala de uma “fé
muda” (foi muette), experiência que muitos crentes têm de não poder dizer nada de sua fé,
sensação de perda da linguagem que antes assegurava uma expressão particularmente cristã,
de evanescência do vocabulário, das leis morais, das fórmulas dogmáticas que lhes
proporcionava reconhecer-se enquanto tal.
Esse mutismo da fé encontra correspondência eclesial no que Certeau caracteriza
como “desencantamento do saber religioso” (désenchantement du savoir religieux). A
linguagem que o sacerdote aprendeu no seminário amparado pela bíblia, pela tradição, pelo
ensino da Igreja, tudo isso perde seu poder. Isso que ele fala não é compreendido nem
recebido pelo seu público: “Temos a impressão de não nos fazer ouvir, de falar no vazio”. 62
Para Certeau, essa situação é ainda mais agravada ao levar em conta os aportes dos
etnólogos e dos sociólogos da cultura:
É, então, a comunicação com o Evangelho que é posta em causa, é nossa
fidelidade à revelação. Pretendemos transmitir as palavras do Senhor com o
comentário oficial que fizeram delas a tradição e o ensino da Igreja. Na
realidade, nós as interpretamos em função da sociedade à qual
participamos.63

59
“[...] inutile ou dangereux, à vouloir fixer l’un de ces « passages » indispensables et à le prendre lui seul pour
la vérité dont il n’est qu’un signe”. CERTEAU, Michel de. Cultures et spiritualités. Concilium, n. 19, p. 7-25,
nov. 1966, p. 22. Grifo do autor.
60
“La tentation est fixation. Là où Dieu est révolutionnaire, le diable apparaît fixiste”. Ibid., 22.
61
Id. La parole du croyant dans le langage de l’homme. Esprit, p. 455-473, oct. 1967.
62
“Nous avons l’impression de ne plus nous faire entendre, de parler dans le vide”. CERTEAU, Michel de. La
parole du croyant dans le langage de l’homme. Esprit, p. 455-473, oct. 1967, p. 462.
63
“C’est alors la communication avec l’Évangile qui est mise en cause, c’est notre fidélité à la révélation. Nous
prétendons transmettre les paroles du Seigneur avec le commentaire autorisé qu’en ont fait la tradition et
l’enseignement de l’Église. En réalité, nous les interprétons en fonction de la société à laquelle nous
participons”. Ibid., 462-463.
237

Além da introdução de novas significações em palavras tradicionais, como “pobreza”,


“escuta”, ou “fraternidade”, novas palavras, como “compromisso”, “diálogo”, “sentido do
homem”, integram um mundo diferente à linguagem religiosa. Palavras pertencem a sistemas
mentais e, ao adotá-las, esse universo no qual elas se inserem é inconscientemente aceito.
Até mesmo a modalidade de interpretação é particular a um tempo, intuição que
Certeau busca na epistemologia histórica francesa: “somos do nosso tempo e obtemos dele o
modo e a orientação da interpretação que fazemos da tradição cristã. Uma ‘ruptura
epistemológica’, como Bachelard o mostra, separa-nos do passado”.64
Nesse escrito de Certeau, a crise gerada pela mutação no conteúdo do crer e pelo
desencantamento do saber religioso, não mais restritos aos limites autorizados pela instituição
Igreja, coloca duas urgências a serem enfrentadas para garantir a relevância da mensagem
cristã: uma adaptação que favoreça a comunicação com as exigências humanas do presente e
uma nova forma de inteligência da revelação evangélica e do conteúdo doutrinal.
Ao pensar a maneira como a adaptação deve ser realizada, Certeau retoma o problema
da fixação. Segundo o sacerdote, não se trata de trocar uma segurança por outra, isto é, “o
saber desencantado pelo encanto de um outro saber”,65 como se fosse o caso de “fixar a dedo
o endereço onde se encontra a verdade, não mais aqui, mas ali, não mais diante da
consciência pecaminosa, mas atrás, no inconsciente, etc.”.66
Ainda no horizonte da denúncia da fixação como resolução viável para a crise da
linguagem religiosa, Certeau faz uma crítica à redução da aproximação com as ciências
humanas ao que pode ser designado como “utilitarismo coisista”. O autor suspeita de “uma
adaptação que se contenta em utilizar de uma maneira coisista os procedimentos e técnicas
novas”.67 Isso quer dizer que não basta tornar dados sociológicos, antropológicos, políticos ou
psicológicos os significados dos significantes religiosos, substituindo um objeto/saber sagrado
por um objeto/saber profano.
É razoável dizer que o que Certeau está propondo nessas páginas é o avesso da
fixierung cristã, um contraponto à confusão do querer crente com dada representação/objeto

64
“[...] nous sommes de notre temps et nous tenons de lui le mode et l'orientation de l'interprétation que nous
faisons de la tradition chrétienne. Une ‘rupture épistémologique’, comme Bachelard le montrait, nous sépare du
passé”. CERTEAU, Michel de. La parole du croyant dans le langage de l’homme. Esprit, p. 455-473, oct. 1967,
p. 463.
65
“[...] le savoir déchanté par le charme d’un autre savoir”. Ibid., p. 465.
66
“[...] fixer du doigt l'endroit où se trouve la vérité, nom plus ici, mais là, nom plus sur le devant de la
conscience pécheresse, mais derrière, dans l’inconscient, etc.”. Ibid., p. 465,
67
“[...] une adaptation qui se contente d’utiliser d’une manière chosiste les procédures ou les techniques
nouvelles”. Esse trecho foi adicionado por Certeau na republicação do artigo como sexto capítulo de:
CERTEAU, Michel de. (1969) L'étranger ou l'union dans la différence. Nouvelle édition introduite et établie par
Luce Giard. Paris: Éditions du Seuil, 2005. p. 142
238

desse desejo, dos significantes religiosos com um de seus significados possíveis. Somente ao
não coisificar a mensagem cristã e a linguagem religiosa é possível dar espaço ao que o
sacerdote considera o mais elementar, ou seja, a intervenção mútua da existência dos
interlocutores.
Quanto a esse aspecto e à transformação em suas compreensões, ao seu trabalho como
historiador, à proximidade com as ciências humanas/estruturalismo e ao seu interesse pela
América Latina, acrescenta-se certa simpatia à filosofia da existência. Nomes como
Heidegger, Levinas e Buber marcam presença em seus textos. Desses, Heidegger é o mais
recorrente.68
A acomodação pouco convencional entre “existência” e “estrutura” – os tipos de
“ordens” estabelecidas em uma sociedade – é o que permitia a Certeau pensar uma forma não
“coisificante” de participação cultural. É bastante significativo que ele mobilize no mesmo
artigo duas figuras como Heidegger e Lévi-Strauss.
O reestabelecimento de uma linguagem comum passa necessariamente pela
participação cultural em um universo não religioso: “desprovido de ‘valores’ dados
antecipadamente, todo homem deve inventar sua vida, ‘vir ao mundo’ e fazê-lo advir
trabalhando, como diz Heidegger, para ‘tornar-se morada’”.69 É possível dizer que a recusa do
utilitarismo “coisificante” é também uma forma de renunciar à tendência metafísica
“entificante” que identifica o ser ao ente. Portanto, no avesso da fixierung cristã, pode ser
reconhecida a diferença ontológica entre o ser e o ente como pensada pela filosofia
heideggeriana.
Esse tipo de abertura existencial não é inconsistente com a dimensão estrutural da
sociedade. Certa pensa que a universalização da cultura não exclui a demanda crescente por

68
Menções explícitas a Buber se encontram em: CERTEAU, Michel de. Ouverture sociale et renouveau
missionnaire de l’école chrétienne. Christus, t. 12, n. 48, p. 554-571, oct. 1965, p. 567; p. 568. Levinas aparece
em: CERTEAU, Michel de; DOMENACH, Jean-Marie. Le christianisme éclaté. Paris: Éditions du Seuil, 1974.
p. 3; p. 118, nota 9. Heidegger será recorrido em vários textos: CERTEAU, Michel de; ROUSTANG, François
de. (Dir.) La solitude: une vérité oubliée de la communication. Paris: Desclée De Brouwer, 1967. p. 81;
CERTEAU, Michel de. La parole du croyant dans le langage de l’homme. Esprit, p. 455-473, oct. 1967, p. 471;
Id. Autorités chrétiennes. Études, t. 332, p. 268-286, févr. 1970, p. 272; Id. L’expérience spirituelle. Christus, t.
17, n. 68, p. 488-498, oct. 1970, p. 496; Id. La rupture instauratrice ou le christianisme dans la culture
contemporaine. Esprit, p. 1177-1214, juin 1971, p. 1203 ; Id. Lieux de transit. Esprit, p. 607-625, févr. 1973, p.
625.
69
“[...] dépourvu de « valeurs » données d'avance, tout homme doit inventer sa vie, « venir au monde » et le
faire advenir en travaillant, comme dit Heidegger, à « se faire une maison »”. Id. La parole du croyant dans le
langage de l’homme. Esprit, p. 455-473, oct. 1967, p. 471.
239

diferenciação: “A circulação que rompe com os particularismos deve ser equilibrada pela
diversificação que continuará a animar trocas. Lévi-Strauss o notou com frequência”.70
O jesuíta faz da existência o “espaço” mesmo do modo de participação cultural não
“coisista”. Por estar lançado no mundo, o cristão fala a linguagem compartilhada e recorre às
ciências humanas para explicar a realidade religiosa. Todavia, seu “objeto”, o outro com o
qual busca conversar e cuja situação enseja explicar, “insubordina-se” a esse desejo: ele
resiste e, portanto, existe. Essa experiência da diferença do outro frente às nossas pretensões é
o significado avesso da fixação, da coisificação, da entificação da verdade:
Hoje, uma nova forma de privação é uma “graça” que nos obriga a distinguir
os outros (ou a revelação) de nossas ideias e nossas pretensões sobre eles; ela
revela a diferença dos outros e de Deus; manifesta a existência de outrem
através de sua resistência e abstenção.71
O existir mútuo – o outro me resiste e eu resisto ao outro – estabelece uma
reciprocidade, pois ao encararmos a impossibilidade de identificar o outro às nossas
pretensões descobrimos o sentido de toda comunicação, isto é, uma pobreza (pauvreté)/
fragilidade (faiblesse) cujo acento é a ausência do outro.
Para Certeau, esse desejo que nos vincula ao outro e também nos separa dele é a
estrutura da fé – e logo do desejo crente de ser cristão. Essa vinculação da existência humana
à experiência cristã corresponde à promoção de uma participação cultural e ao discernimento
do sentido espiritual dessa participação. Tal é o modo por meio do qual Certeau propõe
“reconhecer a lógica presente de nossas linguagens comuns e aprender a falá-las em
cristão”.72
Essa expressão cristã é a “união na diferença” (union dans la différence), uma vez que
os interlocutores estão unidos por uma linguagem comum e diferindo na reciprocidade de um
existir que conduz a uma conversão mútua – Certeau ampara essa leitura no diálogo de Jesus
com a samaritana.73

70
“La circulation qui brise les particularismes doit être équilibrée par la diversification qui continuera d'animer
des échanges. Lévi-Strauss l'a souvent noté”. CERTEAU, Michel de. La parole du croyant dans le langage de
l’homme. Esprit, p. 455-473, oct. 1967, p. 471.
71
“Aujourd'hui, une forme nouvelle de privation est une « grâce » qui nous oblige à distinguer les autres (ou la
révélation) de nos idées et de nos prétentions sur eux; elle révèle la différence des autres et de Dieu; elle
manifeste l'existence de quelqu'un d'autre à travers sa résistance et son abstention”. Ibid., p. 466.
72
“promouvoir une participation culturelle et discerner le sens de cette participation. En d'autres termes,
reconnaître la logique présente de nos langages communs, et apprendre à les parler en chrétien”. Ibid., p. 470.
73
O artigo La parole du croyant dans le langage de l’homme retorma, modifica e aprofunda o material de sua
participação no encontro langages de l’athéisme et de la foi organizado pelo Centre Catholique Universitaire de
Grenoble, já tratado no terceiro capítulo deste trabalho. Id. La crise du langage religieux [Session de Currière:
langages de l’athéisme et de la foi, p. 41-54, juil. 1966], texto mimeografado, caixa 5, Arquivo da Companhia de
Jesus, Vanves.
240

Essa reflexão filosófica e teológica sobre a diferença será retomada em seguida, em


janeiro de 1968, na Études. Em sua Apologie de la différence, assume a ideia de união na
diferença como eixo de sua perspectiva sobre uma orientação teológica que segundo ele foi
definida pelo concílio e já estava indicada nas escrituras. Quanto a esse artigo em que
aprofunda sua teologia da diferença, interessa-nos particularmente destacar alguns pontos com
os quais dá sequência a seu diagnóstico sobre as mutações do crer.
A linguagem religiosa não se confunde com as formas da consciência moderna,
diferem em seus modos de sentir, de perceber e pensar. O primeiro problema acarretado por
essa cisão é a localização da Igreja, sua identificação como grupo particular que não goza de
qualquer prerrogativa sobre as outras circunscrições socioculturais. Disso decorre uma forte
tensão, pois ela é definida por determinações históricas e por privilégios adquiridos, mas suas
instituições e afirmações são “a linguagem particular de uma verdade que ela considera
universal”.74 Certeau não esconde sua contrariedade às “ideologias da unidade” (idéologies de
l’unité) e às “sínteses” (synthèses) que buscam falar de Deus sem riscos.
Em segundo lugar: “A aculturação provoca um deslocamento das estruturas mentais,
isto é, uma modificação na inteligência e na percepção de todas as instituições cristãs,
inclusive as mais centrais e menos contestáveis”.75 Como o crer abre-se à liberdade e à
audácia de novas criações, a expressão da fé passa, então, pelo questionamento e pela
reinterpretação da tradição.
Essa mudança cultural requer uma conversão que não se contenta com uma mera
tradução entre linguagens diferentes. Ela não se conforma aos limites da renovação autorizada
pelo magistério oficial da Igreja. Certeau está aludindo ao concílio, no espírito do que já podia
ser visto em seu texto sobre Vaticano II, publicado no fatídico número da Christus no qual
saíra Le troisième homme de François Roustang. Naquele artigo, Certeau dizia: “Precisamos,
portanto, determinar de que maneira esse progresso deve ser entendido e buscado por nós, não
apenas ‘segundo’ o concílio, mas ‘após’ o concílio”.76 Voltando para janeiro de 1968, as
primeiras aberturas da hierarquia tiveram consequências imprevistas. Certeau o constata e
mostra seu desacordo com a postura defensiva ante os que diferiam do que era esperado pelos
superiores.
74
“[...] le langage particulier d’une vérité qu’elle tient pour universelle”. CERTEAU, Michel de. Apologie de la
différence. Études, t. 328, p. 81-106, janv. 1968, p. 86. Grifo do autor.
75
“L'acculturation provoque un déplacement des structures mentales, c'est-à-dire une modification dans
l'intelligence et la perception de toutes les institutions chrétiennes, fût-ce les plus centrales et les moins
contestables”. Ibid., p. 87. Grifo do autor.
76
“Il nous faut donc déterminer de quelle manière ce progrès doit être compris et recherché pour nous, non
seulement ‘d’après’ le concilie, mais ‘après’ le concile”. Id. De la participation au discernement: tâche
chrétienne après Vatican II. Christus, n. 52, t. 13, p. 518-537, oct. 1966, p. 518.
241

Por fim, essas tensões assumem a forma de um “bilinguismo” (bilinguisme). O crente


se encontra em uma situação na qual precisa falar duas línguas, uma em nome de sua
consciência e outra em nome de sua fé, uma usada para explicar sua realidade e outra para dar
conta da realidade que recebeu do passado.
Quer se trate de um vocabulário sociocultural do presente ou de explicações
proporcionadas pelas ciências humanas, essa linguagem não religiosa também contribui para
uma progressiva desidentificação em relação às estruturas institucionais da Igreja: “E o que
significa para eles seu itinerário técnico ou as exigências de consciência os afasta
gradativamente das expressões e das instituições que enunciam suas crenças”. 77
Na apreciação de Certeau, o saldo não é nada positivo: de um lado, inúmeros cristãos
indiferentes à linguagem religiosa; do outro parece prevalecer a preocupação com a saúde da
instituição. Sua reflexão sobre a união a diferença não deixa de ser um esforço para encontrar
uma alternativa para essa situação.
Como visto até aqui, os grandes temas e problemas da época encontram ressonância
em Certeau. As consequências do Vaticano II, as mutações nas experiências do crer religioso
e a reorientação em direção às ciências humanas ganham destaque em seu diagnóstico sobre o
cristianismo na segunda metade dos anos 1960. Esse conjunto de preocupações com a crise da
linguagem religiosa já pontuava a tensão em torno da autonomia do crer e da autoridade
institucional da Igreja, mas a partir da experiência do maio de 1968 essa contenda será
redescoberta sob uma outra ótica e marcará os rumos de seu trabalho intelectual nos anos
1970. A crise da linguagem religiosa assume a forma de uma crise de autoridade religiosa.
Certeau atenta historicamente para a regionalização da Igreja e para a nova dinâmica
de organização social e cultural após a revolução francesa; avalia sociológica e
antropologicamente as consequências desse processo entre os cristãos naquele contexto do
imediato pós-concílio, recorrendo ao caso francês, mas também à África e sobretudo à
América Latina; retoma a ampla averiguação da crise de linguagem tratada em La parole du
croyant dans le langage de l’homme, agora sob a ótica do bilinguismo – essa parte também
tem como fonte sua apresentação no encontro organizado pelo Centre Catholique
Universitaire de Grenoble em 1966; e busca teologicamente determinar de que maneira as
divisões que quebram a unidade da Igreja podem conter uma significação religiosa, o que ele

77
“Et ce qui leur signifie leur itinéraire technique ou des exigences de conscience les éloigne progressivement
des expressions et des institutions qui énoncent leurs croyances”. CERTEAU, Michel de. Apologie de la
différence. Études, t. 328, p. 81-106, janv. 1968, p. 92.
242

faz por meio do aprofundamento de sua reflexão sobre a união na diferença e sobre o papel
espiritual do estrangeiro na experiência cristã – esse último em seu artigo L’étranger.78
Nesse amplo panorama da época, Certeau já indicava algumas consequências políticas
da crise de linguagem religiosa. Ele tinha apontado um reclame de “autonomia espiritual”
(autonomie spirituelle) por parte de religiosos: “Eles exigem ainda dos outros – das
autoridades – uma regra que lhes conceda um status em conformidade com os seus desejos e
que os poupe do risco de encontrar por si próprios, em cooperação, os caminhos da sua
própria liberdade”.79 Nesse caso, os religiosos demandam poder discutir as instituições
segundo critérios de sua consciência. Portanto, o fato mais corrente do que se noticia é o
seguinte: “[os cristãos] recusam o valor em si de uma submissão às decisões de um magistério
distante”.80
Meses depois explodiria a onda contestatória nas ruas de Paris. O resultado, nós já o
vimos. A crise de maio atingiu todas as instituições, inclusive a Igreja, da qual não escapou do
mal-estar gerado por aqueles acontecimentos. Embora a autonomia espiritual, o
questionamento da tradição, a discussão das instituições e a perda do valor intrínseco da
autoridade já tivessem sido observados por Certeau, sua experiência da tomada da palavra
fornece uma intuição mais radical: quando há uma falha entre o “dizer” e o “fazer”, quando
uma linguagem não corresponde à experiência de seus praticantes, a autoridade que pretende
representar essa comunidade é recusada. No plano religioso, quando a linguagem chancelada
pelas instituições não diz o fazer crente, há uma rejeição do que a autoriza: uma crise da
linguagem se torna crise de autoridade.
Essa radicalização já dava indícios em seu livro La prise de parole quando fala da
contestação das expressões coletivas nas comunidades cristãs. No ano seguinte às suas
reflexões sobre os acontecimentos de maio, Certeau reimprimiu Apologie de la différence em
seu único livro teológico publicado em vida, L’étranger ou l’union dans la différence. Uma
pequena adição nessa segunda versão torna-se nada insignificante se a consideramos no bojo
da ressignificação de questões antes abertas. No artigo na Études, ele denunciava mais uma
vez a “concepção fixista” (conception fixiste) e afirmava que as reformas desenhadas no
concílio precisariam ser mais que um primeiro gesto de abertura. Contudo, em sua aparição
como sétimo capítulo de L’étranger ou l’union dans la différence, a manutenção da doutrina

78
Cf. CERTEAU, Michel de. L’étranger. Études, t. 330, p. 401-406, mars 1969.
79
“Ils exigent encore des autres – des autorités – une règle qui leur dispenserait un statut conforme à leurs
désirs et qui leur épargnerait le risque de trouver par eux-mêmes, dans une coopération, les voies de leur propre
liberté”. Id. Apologie de la différence. Études, t. 328, p. 81-106, janv. 1968, p. 91.
80
“[...] récusent la valeur en soi d'une soumission aux décisions d'un lointain magistère”. Ibid., p. 94.
243

já ressoava a crise de autoridade que o maio de 1968 tinha permitido a Certeau reler nisso que
ele já encontrava nos anos anteriores. A fixierung torna-se uma forma ideológica de
manutenção do poder: “[as reformas] requerem mais do que um primeiro gesto liberal ou a
exposição de uma bela doutrina que deixaria inalterada a organização real do poder”.81
Ao tratar novamente a questão da diferença em seu artigo L’étranger, a crítica volta
mais explicitamente. Certeau já tratava a fixação e as ideologias da unidade como forma de
rechaçar diferença, em uma mesma reflexão em que aborda a particularidade de uma Igreja
que se pretende detentora de uma mensagem universal. Mas essa associação ainda era
indireta, tímida. Após maio de 1968, Certeau denuncia explicitamente a tentação fixista e
excludente da Igreja:
Porque ela é também uma sociedade, ainda que de um gênero especial, a
Igreja é sempre tentada a contradizer o que afirma, a se defender, a obedecer
a esta lei que exclui ou suprime os estrangeiros, a identificar a verdade com o
que ela diz sobre ela, a enumerar os “bons” com base em seus membros
visíveis, a levar Deus a não ser mais do que a justificação e o “ídolo” de um
grupo existente. A história mostra que essa tentação é real. Isso põe um
grave problema: uma sociedade que testemunha Deus e que não se contenta
em fazer de Deus sua possessão é possível? 82

Certeau está perguntando sobre – e defendendo – a possibilidade de outro tipo de


“sociedade cristã”, isto é, uma outra “Igreja”. Não penso ser possível confundir estritamente
essa reflexão com a “eclesiologia da comunhão” promovida pelo concílio, pois ela se limita às
fronteiras “reformistas” da abertura que para o Certeau é um gesto inicial a ser continuado.
Respirando essa atmosfera de renovação eclesiológica pós-conciliar e de contestação pós-
maio de 1968, Certeau atentava para à necessidade eclesial e crente de não ceder à “tentação”
que a história da Igreja dava provas e que estava à espreita de todo cristão: “todo cristão é
tentado a tornar-se um inquisidor, como o de Dostoievski, e eliminar o estrangeiro que
vem”.83

81
“Mais les réformes qu'il a entreprises requièrent autre chose qu'un premier geste libéral ou l’exposé d’une
belle doctrine qui laisserait inchangée l’organisation réelle du pouvoir”. CERTEAU, Michel de. (1969)
L'étranger ou l'union dans la différence. Nouvelle édition introduite et établie par Luce Giard. Paris: Éditions du
Seuil, 2005. p. 164. Grifo nosso.
82
“Parce' qu'elle est aussi une société, quoique d'un genre spécial, l'Eglise est toujours tentée de contredire ce
qu'elle affirme, de se défendre, d'obéir à cette loi qui exclut ou supprime des étrangers, d'identifier la vérité à ce
qu'elle en dit, de dénombrer les « bons » d'après ses membres visibles, de ramener Dieu à n'être plus que la
justification et « l'idole » d'un groupe existant. L'histoire montre que cette tentation est réelle. Cela pose un
grave problème : une société qui témoigne de Dieu, et qui ne se contente pas de faire de Dieu sa possession, est-
elle possible? ”. Id. L’étranger. Études, t. 330, p. 401-406, mars 1969, p. 402. Grifo nosso.
83
“[...] tout chrétien est tenté de devenir un inquisiteur, tel celui de Dostoïewski, et d'éliminer l'étranger qui
vient”. Id. (1969) L'étranger ou l'union dans la différence. Nouvelle édition introduite et établie par Luce Giard.
Paris: Éditions du Seuil, 2005. p. 14.
244

A menção à manutenção do poder e à face excludente da Igreja são ecos da atenção do


jesuíta à crise de autoridade em voga na sociedade de então. Naquele momento, seus escritos
enfrentavam a dissociação entre poder e autoridade, assim como a contestação dos
fundamentos antidemocráticos das instituições. Esses dois fatores, a crise de autoridade e a
democratização das instituições são duas atualizações históricas do problema da relação entre
crença religiosa e realidade sociocultural que Certeau vinha tratando e agravavam-se na
passagem entre os anos 1960 e 1970.
Sob o olhar de Certeau, referências fundadoras, instituições, cargos instituídos,
critérios objetivos ou recursos teóricos, em suma, autoridades, não se reduzem a um poder
estabelecido. A autoridade da qual gozam implica princípios reconhecidos, está amparada em
acordos tácitos ou explícitos. Elas possuem autoridade somente enquanto fundadas sobre um
consenso que devem fazer presente. Portanto, a autoridade é inseparável de uma
credibilidade: as afirmações das autoridades devem ser aceitas como críveis.
Contudo, todos os quadros de referência da sociedade caiam em descrédito, eram
atingidos por uma “mutação do crível” (mutation du croyable). Essa mudança significava a
desvinculação entre o dizer e o fazer, a inadequação entre as representações sociais e as
experiências coletivas, a dissociação entre o saber e o poder, sendo a contestação universitária
um microssomo dessa crise global.
Se uma autoridade perde a base sob a qual se dá suas adesões, se ela se isola do
consenso que ela deve fazer presente, desfaz-se o laço social que a sustentava. Se o que a
autorizava passa a lhe faltar e resta-lhe apenas a manutenção de um poder por meio da fixação
em uma referência que não é mais comum, ela deixa de ser crível. Em um contexto de
desvalorização disseminada dos quadros de referência, digamos que essa perda de
credibilidade “retorna” mesmo onde ela é “reprimida”: uma crise de autoridade se instaura. 84
As consequências dessa da crise de autoridade são enormes no caso específico da
Igreja, em uma sociedade na qual foi rompido o automatismo da conjugação entre autoridade
e valores, em que deixou de ser crível a ligação indissolúvel entre a organização de um corpo
social e a confissão de uma verdade, em que se desfez o vínculo natural entre o governo de
uma instituição e a prerrogativa sobre a opção fundamental que ela afirma. Uma mutação do
crível põe em questão o próprio princípio de funcionamento das instituições da Igreja, isto é,
torna inconcebível a identificação entre uma estrutura social e a mensagem evangélica, entre

84
Cf. CERTEAU, Michel de. Les révolutions du « croyable ». Esprit, p. 190-202, févr. 1969; Id. Structures
sociales et autorités chrétiennes, Études, t. 331, p. 128-142, juil. 1969; Id. L’articulation du ‘dire’ et du ‘faire’.
La contestation universitaire, indice d’une tâche théologique. Études théologiques et religieuses, t. 45, p. 25-44,
1970.
245

uma organização particular e uma verdade universal. Essa crise na Igreja é, portanto,
indissociável do fim disso que Certeau chama “sociedades ideológicas” (sociétés
idéologiques).85
Nesse sentido, se acentua um corte entre o dizer e o fazer. A linguagem religiosa
“autorizada” pela Igreja é cada vez mais estranha às experiências humanas por meio das quais
os cristãos vivem sua crença. Essa mesma incompatibilidade também pode ser verificada
inversamente quando a linguagem religiosa ressignificada segundo interesses socioculturais é
considerada em relação às estruturas centralizadoras da Igreja ou à uma práxis singularmente
cristã.86
Diante dessa crise, a Igreja pode empreender grandes esforços para manter suas
instituições e seus conteúdos ideológicos intactos, mas isso apenas a custo de sua
credibilidade e da adesão dos crentes, tornando-se a representação somente de um grupo
particular e despertando reações de desapreço à hierarquia. Na perspectiva do jesuíta, as
medidas das autoridades constituídas para se defender e sufocar os interlocutores são
responsáveis por essa reação, ao mesmo tempo que a intolerância das autoridades acaba
servindo, contrariamente, à fixação da verdade por parte de outros pequenos grupos. 87
Como certa pensa ser possível evitar esse “fixismo institucional” (fixisme
institutionnel)88 e produzir uma articulação do dizer e do fazer – uma práxis cristã – que não
apague o que a justifica e que seja crível no presente? É possível uma autoridade cristã?
Somente no plural, diria Certeau: “Profetas, testemunhos, sim. Uma Igreja, não”. 89 Para ele,
trata-se de uma Igreja ancorada no pluralismo de autoridades e dotada de uma estrutura
comunitária.90
Certeau manterá uma ligação cada vez mais ambivalente em relação à Igreja e à
Companhia. Em seu último artigo na Christus antes de sua partida para a Études em julho de
1967, ele, como de costume, declarava seu vínculo com a ordem por meio da inscrição “s.j.”
(Societas Iesu) em sua assinatura ao fim do texto.91 Em 1973, em um texto sobre o jesuíta,
Inácio de Loyola, também na Christus, Certeau apagará a inscrição que o apresenta como tal,

85
CERTEAU, Michel de. Structures sociales et autorités chrétiennes, Études, t. 331, p. 128-142, juil. 1969, p.
131-133.
86
Ibid., p. 137-138; Id. Autorités chrétiennes. Études, t. 332, p. 268-286, févr. 1970, p. 284-285.
87
Id. Structures sociales et autorités chrétiennes...op. cit., p. 141.
88
Id. Autorités chrétiennes…op. cit., p. 285.
89
“Des prophètes, des témoins, oui. Une Église, nom”. Id. Structures sociales et autorités chrétiennes...op. cit., p.
133.
90
Cf. Id. Autorités chrétiennes...op. cit.
91
Id. Amérique latine: ancien ou nouveau monde? Notes de voyage. Christus, t. 14, n. 55, p. 338-351, juil. 1967.
p. 351.
246

identificando apenas suas credenciais acadêmicas: “Université Paris VII, Département


d’Anthropologie, Institut Catholique, Faculté de Théologie”.92
Fato significativo, pois não é isolado. No mesmo ano de 1973, Certeau participou de
um debate com Jean-Marie Domenach, diretor da Esprit e aguerrido na defesa da
independência da revista em relação a Roma. A emissão pública foi feita pela rádio France
Culture e resultou em uma publicação conjunta no ano seguinte, intitulada Le christianisme
éclaté.93 Naquele tempo de crise da Igreja, Domenach assume a defesa da possibilidade de
“rejuvenescimento” da cultura cristã, de reformas institucionais e de uma continuidade com o
passado do cristianismo. Certeau, por outro lado, no espírito da obra de Kolakowski, mostra-
se mais interessado na multiplicação dos cristãos sem Igreja.94
Ele colocava um problema que considerava fundamental: será a Igreja apenas uma
figura histórica da questão de Deus, em vias de desaparecimento? Embora Certeau não
forneça uma resposta para essa questão, ele profere uma afirmação que é suficiente para
entender o desconforto que sua posição gerou entre os jesuítas: “Na história humana, Deus
precedeu a Igreja e deverá, ao que parece, sobreviver a ela”.95
Suas posições no debate parecem ter complicado as coisas para Certeau. Ele escreve
ao seu amigo Steven Englund, historiador americano correspondente da revista Time em
Paris, em 13 de março de 1974. Nesse relato de sua situação, indica a instabilidade de sua
posição na Companhia. Além disso, demonstra como uma crítica penetrante à Igreja não
exclui sua vontade de seguir sendo jesuíta – ainda que Certeau o seja borrando suas fronteiras,
como se “apagasse” a inscrição “s.j.” a cada novo engajamento vivido fora dos limites estritos
dessa instituição: “Após discussão com o provincial, parece que este texto torna difícil ou
impossível meu ‘pertencimento’ à Companhia. Isso é normal – e para mim um risco ligado ao
desejo de ser crente hoje. Mas é preciso pagar com insegurança por esse risco”.96
Certeau continuará “pertencendo” à Companhia até o fim da sua vida, mas como um
viajante em terras estrangeiras, nômade a postos para uma nova partida: “Trata-se menos de

92
CERTEAU, Michel de. L'espace du désir ou le « fondement » des Exercices spirituels. Christus, t. 20, n. 77, p.
118-128, janv. 1973, p. 128.
93
CERTEAU, Michel de; DOMENACH, Jean-Marie. Le christianisme éclaté. Paris: Éditions du Seuil, 1974.
94
KOLAKOWSKI, Leszek. Chrétiens sans Église. Trad. de A Posner. Paris: Gallimard, 1969.
95
“Dans l’histoire humaine, Dieu a précédé l’Église et paraît devoir lui survivre”. CERTEAU, Michel de;
DOMENACH, Jean-Marie. Le christianisme éclaté. Paris: Éditions du Seuil, 1974. p. 31.
96
“Après discussion avec le provincial, il semble que ce texte rend difficile ou impossible mon ‘appartenance’ à
la Compagnie. C’est d’ailleurs normal – et pour moi un risque lié au désir d’être aujourd’hui croyant. Mais il
faut payer d’une insécurité ce risque”. CERTEAU apud DOSSE, François. (2002) Michel de Certeau: le
marcheur blessé. Paris: La Découverte, 2007. p. 201.
247

saber como viver um pertencimento que de aprender a viver superando o pertencimento”. 97


Para Certeau, a experiência espiritual está mais no caminho, no itinerário e na viagem que no
lugar, no momento e na terra natal.98
Essa ambivalência é bastante condizente à sua própria maneira de compreender esse
processo que qualifiquei como “desinstitucionalização” do crer. É possível falar
“desinstitucionalização” porque a Igreja enquanto instituição perde progressivamente a
prerrogativa sobre aqueles que se sentem de algum modo vinculados ao que ela professa.
Cada vez menos a doutrina, a tradição, os documentos oficiais e a hierarquia fornecem os
marcos para a realização prática da crença. Suas fontes de autoridade mostram-se cada vez
menos críveis e já não definem o sentido e a objetividade do crer.
Michel de Certeau, por exemplo, dizia não mais existir “uma articulação firme entre o
ato de crer e os signos objetivos” e falava em uma “dissociação entre a fé (cristã) e o conjunto
das instituições (religiosas)”.99 A separação entre doutrina e crença, entre fórmulas oficiais e o
sentimento religioso, acentua-se em um momento de crise de autoridade. Pode-se então falar
em “despedaçamento da Igreja” (morcellement de l’Église).100 A instituição deixa de ser o
“lugar do crer” (lieu du croire).101
Contudo, a “desinstitucionalização” da qual falo não significa necessariamente uma
condição “anti-institucional” do crer, pelo menos se tomamos por referência a posição de
Certeau, pois o jesuíta havia falado em “democratização das instituições” (démocratisation
des institutions) no início de 1970.102
Já no debate com Jean-Marie Domenach alguns anos depois, parecia levar as
consequências da crise de autoridade mais longe a esse respeito. Certeau não só mencionava a
insignificância da qual a Igreja era acometida, como também apontava o descrédito e a
suspeita generalizada quanto às suas instituições – sacerdócio, magistério, sacramentos,
liturgia, teologia, etc.103

97
“Il s’agit moins de savoir comment vivre une appartenance que d’apprendre à vivre en dépassant
l’appartenance”. CERTEAU, Michel de. Comme des nomades. Cultures et foi, n. 43-44, p. 7-15, été 1975, p. 9.
98
Cf, por exemplo, Id. L’expérience spirituelle. Christus, t. 17, n. 68, p. 488-498, oct. 1970.
99
“[...] une articulation ferme entre l’acte de croire et des signes objectifs”; “[...] dissociation entre la foi
(chrétienne) et l’ensemble des institutions (religieuses)”. CERTEAU, Michel de; DOMENACH, Jean-Marie. Le
christianisme éclaté. Paris: Éditions du Seuil, 1974. p. 12.
100
CERTEAU, Michel de. Y a-t-il un langage de l’unité ? De quelques conditions préalables. Concilium, n. 51,
p. 77-89, janv. 1970, p. 78.
101
Id. Y aura-t-il encore la foi? In: FOUILLOUX, Étienne; MONNERON, Jean-Louis. (Eds.) 2000 ans de
Christianisme. Paris: Société d’Histoire Chrétienne, 1976. v. 10. p. 280.
102
Id. Y a-t-il un langage de l’unité ? De quelques conditions préalables. Concilium, n. 51, p. 77-89, janv. 1970,
p. 78.
103
Cf. CERTEAU, Michel de; DOMENACH, Jean-Marie. Le christianisme éclaté. Paris: Éditions du Seuil,
1974. p. 25-31.
248

Contudo, em outra ocasião, ao ser interpelado sobre as consequências institucionais


dessa sua posição, Certeau esclarecia que a questão a ser coloca não era tanto sobre a
instituição enquanto tal, mas sobre o status dessa instituição, ou seja, o fato de um corpo
eclesial já não fornecer qualquer garantia para a verdade. Nesse sentido, a instituição em si
não estava em causa, mas a manutenção de uma identificação imutável (ideológica) entre uma
situação particular e o “sentido” evangélico. A questão passa, então, a ser como superar um
pertencimento dado e formular operações cristãs que possibilitem uma nova conversão: “A
instituição não é o lugar da nossa identidade cristã, é o que permite à fé uma objetividade
social”.104
Essa posição “desinstitucionalizante” que não chega a ser anti-institucional é a
maneira de Michel de Certeau interpretar a crise da Igreja em sua época. Essa ambivalência é
também mais um exemplo prático de sua inclinação a borrar as fronteiras dos pertencimentos
estritos. Não à toa, em 1974, ele praticaria novamente seu modo de “pertencer” à companhia,
nova ocorrência do “apagamento” da inscrição “s.j”, isto é, outra “ultrapassagem” em sua
jornada religiosa: ele é autorizado a deixar a comunidade jesuíta no número 15 da rue
Monsieur e aluga um apartamento no 15º arrondissement de Paris, onde passa a viver. Não
era a primeira e nem seria a última vez que uma nova partida iria levá-lo a buscar Deus
alhures.

4.4 Uma oração ao padre Lubac

Certeau havia entrado na Companhia de Jesus em razão do forte impacto que a figura
de Lubac teve nele. Quando foi seu aluno em Lyon nos anos 1940 e se juntou aos jesuítas nos
anos 1950, a “nova teologia” era a principal vertente do que poderia ser considerada a
vanguarda teológica francesa. Com o avanço da desinstitucionalização das crenças após o
concílio Vaticano II, figuras como Henri de Lubac, consideradas progressistas, adotariam
posturas mais conservadoras frente às chamadas derivas do período pós-conciliar.
É como se nas décadas de 1940 e 1950 a nouvelle théologie fosse a linguagem
possível de uma renovação que nas duas décadas seguintes já se mostraria historicamente
insuficiente para dar conta do que a os “discípulos” dos teólogos reabilitados pelo concílio
vivenciariam como as demandas daquele tempo. Nesse sentido, como a mudança na forma de

104
“L’institution n’est pas le lieu de notre identité chrétienne, elle est ce qui permet à la foi une objectivité
sociale”. CERTEAU, Michel de. Comme des nomades. Cultures et foi, n. 43-44, p. 7-15, été 1975, p. 9.
249

Certeau compreender a Igreja e pertencer à Companhia impactou em identificações


estabelecidas nas duas décadas anteriores?
A transformação em sua proximidade teológica com Lubac será tratada primeiramente
de forma indireta, tomando como eixo a crescente diferença nas posturas dos dois jesuítas
frente o ateísmo, fantasma que assombrou o catolicismo ao longo da modernidade. Em
seguida, por meio da distância explícita aos poucos tomada por eles até que a contenda ganha
ares de polêmica. O objetivo dessa reflexão é mostrar que duas posturas distintas em relação à
Igreja estavam em jogo e que a “fidelidade” de Certeau a Lubac era redesenhada sob os
contornos de uma herança espiritual.
Os diversos embates em torno da rubrica “modernismo” não raro estiveram associados
à disposição de parte da intelectualidade católica ao pensamento não religioso. No contexto
do pós-guerra, a França viu disseminar uma batalha ideológica entre grupos políticos
comunistas e católicos em torno do destino da identidade e da política francesa. 105 Nesse
embate, o humanismo foi fonte importante tanto para os comunistas quanto para os católicos
de esquerda, e a possível leitura ateísta do humanismo, como promovida pelos comunistas,
não podia ser ignorada por parte dos cristãos.106
Essa ambivalência quanto ao humanismo ateu encontra lugar de destaque nos escritos
de Henri de Lubac. Sua posição favorável ao “vasto movimento humano, portador de
verdadeiro progresso” representado pelo “comunismo histórico, social, operário”, não o
impede de acautelar-se da “inspiração fundamentalmente ateia que fornece ao comunismo sua
armação doutrinal”.107 Semelhante cautela abre caminho à crítica do humanismo à maneira
como está colocado em autores como Feuerbach, Marx, Proudhon, Nietzsche e Comte, para
mencionar os principais nomes com os quais Lubac debate e frente aos quais contrapõe a
compreensão cristã do homem.108

105
FLIPPER, Joseph S. Between apocalypse and eschaton: history and eternity in Henri de Lubac. Minneapolis:
Fortress Press, 2015. p. 74.
106
Cf. BARING, Edward. Humanist pretensions: catholics, communists, and Sartre’s struggle for existentialism
in postwar France. In: The young Derrida and french philosophy, 1945–1968. Cambridge: Cambridge University
Press, 2011. p. 21-47.
107
LUBAC apud LOUZEAU, Frédéric. Gaston Fessard et Henri de Lubac: leur différend sur la question du
communisme et du progressisme chrétien (1945-1950), Revue des Sciences Religieuses, t. 84, n. 4, 2010.
Disponível em: https://journals.openedition.org/rsr/309. Acesso em: 13 fev. 2020.
108
Cf. LUBAC, Henri de. (1944) O drama do humanismo ateu. Itapevi: Nebli, 2015; Id. Proudhon et le
christianisme. Paris: Éditions du Seuil, 1945; Id. L’idée chrétienne de l’homme et la recherche d’un homme
nouveau. Études, t. 255, p. 3-25, oct. 1947; p. 145-169, nov. 1947; Id. Affrontements mystiques. Paris:
Témoignage Chrétien, 1949; Id. (1968) Ateismo y sentido del hombre. Madrid: Euramérica, 1969.
Um comentário sumário sobre o assunto pode ser consultado em GOMES, victor. A fé cristã em confronto com
o humanismo ateu: a perspectiva de Henri de Lubac. Didaskalia, v. 36, n. 2, p. 207-243, 2006. Disponível em:
https://cutt.ly/zx629Ag. Acesso em: 13 fev. 2020.
250

Assim, a defesa do humanismo cristão contra o ateísmo adentra o terreno da


apologética, entendida como atividade teológica que busca demonstrar a veracidade relativa
às afirmações da crença cristã. Em alguns casos, a apologia tinha como alvo distorções
internas à sua doutrina, como verificado na condenação às heresias ao longo da história do
cristianismo. Noutros, a polêmica era estabelecida a partir de críticas vindas de fora, como
observado na Igreja primitiva, quando ela ainda estabelecia seus contornos naquele ambiente
em que não predominava sua religião.
O ímpeto apologético de defesa da validade da fé cristã pode ser confirmado na
postura adotada por Lubac. Sua aula inaugural em 1929 já tratara do assunto. Intitulada
Apologétique et théologie,109 a prelação advogava como necessário alcançar não apenas
corações e mentes já crentes, mas também os espíritos que não compartilham dessa fé. Mas
como fazê-lo se a apologética se mantém exterior à vida e ao pensamento de quem ela busca
convencer? Como realizar a tarefa satisfatoriamente ao permanecer na defensiva, sem
penetrar o mundo humano, em que pese sua condição histórica e conflitos próprios? Como
consegui-lo sem transigir com a inseparabilidade do sobrenatural e do natural?
A resposta para essas limitações da apologética será ensaiada no próprio envolvimento
de Lubac com as questões de seu tempo. Ele associou sua reflexão teológica à realidade que o
rodeava, interpretou as experiências de sua época, fazendo de sua própria prática a expressão
apologética do diálogo com o presente. Sua contribuição com La chronique sociale, jornal da
resistência à ocupação, não estava isolada de sua defesa da vocação cristã da França como
saída viável para o niilismo contemporâneo. Escrevendo à época da segunda guerra mundial,
no contexto de ocupação nazista da França, chamou a atenção da Gestapo. Ele acabou
procurado pelos alemães, refugiando-se no sul da França junto ao jesuíta Yves de Montcheuil.
Lubac conseguiu escapar da perseguição. Já seu amigo não teve a mesma sorte. Capturado
pelos nazistas, foi fuzilado em 1944.
A renovação da apologética está bem exemplificada em um de seus livros mais
conhecidos sobre a questão, O drama do humanismo ateu.110 Com ele, leva a sério as
demandas de seus opositores. Não se esquiva a mergulhar no interior das exigências humanas,
cujos meandros estão na base do ateísmo. Na imanência de seus motivos e contribuições, faz
aparecer problemas de sua antropologia e imperfeições de sua crítica ao cristianismo. A título
de exemplo, digamos que nem mesmo seu desdém às “[...] deformações grosseiras, demasiado

109
Publicada em LUBAC, Henri de. Apologétique et théologie. Nouvelle Revue Théologique, t. 57, p. 362-369,
1930.
110
Id. (1944) O drama do humanismo ateu. Itapevi: Nebli, 2015.
251

reais e muitíssimo evidentes” do humanismo de sua época o levou a deixar de prestar justiça à
força da reflexão característica de um Marx e de um Nietzsche:
A posterioridade de Marx não lhe herdou o gênio. A própria herança de
Nietzsche se encontra ainda mais confusa – e é fora de dúvida que o profeta
do Zaratustra seria hoje o primeiro a amaldiçoar, por muitas razões, muitos
daqueles que invocam seu testemunho.111
E diz ainda o seguinte dos grandes sistemas revolucionários de sua época:
O que os inspirou não deixa de ter sua nobreza. Não lhes faltaram as justas
intuições. Nem sua ambição é pura utopia. As críticas que fazem, são, muitas
vezes, penetrantes, repletas de uma penetração cruel pela sua exatidão, e
algumas das suas realizações não deixam de ter certa grandeza imponente
[...].112
Outro exemplo bastante ilustrativo encontra-se na leitura que faz de Proudhon. Lubac
encontra na figura do filósofo anarquista um aliado inusitado – para os padrões
antimodernistas – como quem busca artifícios para vencer o oponente no próprio terreno
adversário. O humanismo proudhoniano alerta para as tarefas terrenas urgentes sem com isso
afastar o cristão dos problemas eternos. Isso porque, mesmo admitindo a negação do Deus
cristão em Proudhon, ocorreria o constante reaparecimento do absoluto nesse grande rival da
fé cristã. Proudhon estaria consciente da infindável luta travada pelo homem com Deus, do
renascimento constante da “hipótese divina” na realidade humana.113
Mas o humanismo ateu, em geral, postula algo mais radical sobre o divino. E embora o
rigor de sua crítica seja reverenciado por Lubac, ele não os poderia ler a não ser sob a
modalidade do combate, uma vez que Feuerbach, Marx, Nietzsche e Comte estavam
ancorados na ideia de que a fé em Deus tinha desaparecido.
No humanismo absoluto, Deus passa a ser visto como obstáculo à liberdade. O homem
o tira de cena para poder, ele próprio, imperar como o reduto da grandeza. Ateísmo
“virulento”, “trágico desconhecimento” que produz “os seus frutos de morte”, “ideal sem
vida, espreitado pela mentira”, grandeza que disfarça os “horrores” que são o seu preço. São
muitas as fórmulas utilizadas por Lubac para descrevê-lo.114
O diagnóstico dado por Lubac é terminal. A consequência dessa negação completa de
Deus é a autodestruição do humanismo. Ao perder Deus de vista, o homem “acha-se

111
LUBAC, Henri de. (1944) O drama do humanismo ateu. Itapevi: Nebli, 2015. p. 61. A Nietzsche,
particularmente, ele dedicou três capítulos no livro citado: Nietzsche e a morte de Deus, O nascimento da
tragédia e Mito e mistério. Além disso, publicou Nietzsche Mystique em Affrontements mystiques.
112
Ibid., p. 66.
113
Ibid., p. 19. O drama do humanismo ateu não dedica uma reflexão mais detida a Proudhon. Mas Lubac não se
furtou da tarefa, cujo resultado encontra-se em Proudhon et le christianisme. Paris: Éditions du Seuil, 1945.
114
LUBAC, op. cit., passim.
252

literalmente dissolvido”, “deixa de existir, porque também nada existe que possa ultrapassar o
homem”.115
Se o drama da modernidade é o ateísmo, humanismo inumano, presente “na desordem
que engendra as tiranias e os crimes coletivos”116, o drama do humanista ateu é a ilusão;
ilusão que faz perder justo o que busca, pois se de fato “o homem não é o homem senão
porque a sua face é iluminada por um raio divino”;117 e há, inscrito no homem, o desejo de
algo mais profundo, que é o próprio sentido do mistério; então como não negar a si mesmo ao
negar essa fonte da angústia que faz o homem humano?
Para Lubac, tudo isso significa que a única saída para o drama moderno é o
humanismo cristão, fundado na premissa da inscrição do mistério no interior do homem, razão
pela qual dispõe, em sua própria humanidade, das novidades que precisa discernir.
O debate com o humanismo ateu recebeu nova acolhida em Athéisme et sens de
l’homme. As questões aí tratadas o são segundo o espírito do Concílio Vaticano II. Elas
ecoam a Gaudium et Spes, constituição sobre a relação da Igreja com o mundo
contemporâneo.
Na doutrina conciliar, o enfrentamento com o ateísmo contemporâneo, “o ferrão do
concílio”,118 trazia implicado “o espírito de diálogo e de compreensão”; 119 era aquele mesmo
espírito que caracterizara a escrita lubaciana anterior ao concílio, do qual tomou parte como
consultor para preparação teológica. Lubac define esse enfrentamento segundo as palavras
que lemos a seguir:
Por uma espécie de emulação pacífica, desejamos mostrar, tanto por fatos
quanto pela doutrina, que nós cristãos também, “nós, mais do que os outros,
prestamos culto ao homem”. E nos esforçamos primeiro para entendê-lo,
para entrar em suas razões, em suas dificuldades, para compreender suas
próprios incompreensões, sua inquietação ou sua paz de espírito, a fim de
falar-lhe, se possível, de modo que o estimulemos e o convençamos.120

Busca-se o “diálogo verdadeiro”, “amistoso”, amparado na “vontade de cortesia, de


estima, de simpatia, de bondade”.121 No entanto, o tempo do diálogo não é o tempo do

115
LUBAC, Henri de. (1944) O drama do humanismo ateu. Itapevi: Nebli, 2015. p. 61.
116
Ibid., p. 20.
117
Ibid., p. 62.
118
KONIG apud LUBAC, Henri de. (1968) Ateismo y sentido del hombre. Madrid: Euramérica, 1969. p. 13.
119
LUBAC, Ibid., p. 14.
120
“[...] por una especie de emulación pacífica deseamos mostrar, tanto por los hechos como por la doctrina,
que también nosotros los cristianos, ‘nosotros, más que los demás, rendimos culto al hombre’. [...] Y nos
esforzamos primero en entenderle, en entrar en sus razones, en sus dificultades, en comprender sus mismas
incomprensiones, su inquietud o su tranquilidad de espíritu, con el fin de hablarle, si es posible, de modo que le
estimulemos y le convenzamos”. Ibid., p. 14-15.
121
Ibid., p. 15.
253

abandono da razão e da fé cristã. Como “a verdade é una, é santa”,122 é preciso justificá-la,


defendê-la. Por isso, três atitudes são necessárias: “diálogo, enfrentamento, combate”. 123
Em que medida o combate espiritual, como Lubac o pensa, encontra amparo em seu
confrade Michel de Certeau? Como este acompanha aquele quando o assunto é a apologética?
Certeau compartilha com ele o apreço pelo diálogo com os conhecimentos não
religiosos. Por outro lado, diferentemente daquilo visto em visto em Lubac, não enfatiza o
desejo de comprovar os enganos que caracterizam o pensamento do interlocutor. O esforço
combativo não interpreta papel fundamental, recorrente, em sua ideia de comunicação.
Mesmo em seus escritos arquitetados explicita ou implicitamente segundo a teologia de
Lubac, a apologia não interpreta papel central. O que não quer dizer que haja uma ruptura
claramente estabelecida, pois a particularidade em questão aparece antes como rastro, e só
depois como diferença. Ela é antecipação de um relativo desenraizamento teológico por vir.
Em outras palavras, na interioridade da conformidade histórica emerge certa exterioridade da
escritura certeauniana.
Em um trecho sobre Hegel, verifica-se um dos raros casos com teor “apologético” em
Certeau, entendendo por isso a defesa da prerrogativa da verdade cristã sobre suas versões
secularizadas. De acordo com o jesuíta, Hegel realizou uma “transposição do cristianismo”,
uma “inversão de um tipo de pensamento e vida cristã”, influxo acolhido no pensamento de
Marx. Como consequência, a noção cristã de pertencimento a um novo regime estaria “na
origem de todo regime de liberdade”.124
Algo semelhante acha-se em Lubac. Para este, todas as formas de ateísmo conservam
valores originalmente cristãos. Contudo, desvencilhados de sua fonte, já não podem conservar
sua força primordial. Valores como “espírito, razão, liberdade, verdade, fraternidade, justiça”
deixam de ser reais “se não surgirem como uma radiação de Deus, se a fé no Deus vivo os não
alimentar com a sua substância”; apartados do que lhe confere fundamento, tão logo “se
transformam num ideal sem vida, espreitado pela mentira”.125
Por mais que Certeau defenda haver um débito da modernidade com o cristianismo,
ele não avança na condenação dos autores não religiosos recorridos, como frequentemente faz
Lubac. Embora não se eleve das cercanias da teologia de seu antigo professor, ou não faça
asserções que autorizem afirmar uma autonomização em curso, a inexistência de censuras

122
LUBAC, Henri de. (1968) Ateismo y sentido del hombre. Madrid: Euramérica, 1969. p. 18.
123
Ibid., p. 19.
124
“[...] transposition du christianisme” ; “[...] le retournement [...] d'un type de pensée et de vie chrétien” ; “[...]
l'origine de tout régime de liberté […]”. CERTEAU, Michel de. Perfection et charité, texto datilografado, 26-31
de dez. de 1956, caixa 2, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves, p. 57.
125
LUBAC, op. cit., p. 65.
254

evidentes é um rastro da irredutibilidade do texto às regularidades históricas. Isto é, a


inexistência do combate praticado e requerido por Lubac torna-se expressivo, emite um
silêncio que tem algo a dizer.
Com a crescente dessacralização da cultura europeia, sobretudo a francesa, a
linguagem não cristã vai tornando-se o lugar primeiro das ideias e sensibilidades particulares.
A comunicação, ocorrendo a partir da amplitude das atividades humanas. Em meados dos
anos 1960, Certeau não se mostra preocupado em condenar essa dessacralização, em reprovar
as experiências humanas afastadas da linguagem cristã. Ele parece mais interessado em
afirmar uma forma possível de existência cristã naquela realidade, sem ceder à reafirmação
intransigente da tradição nem à adoção irrestrita às mudanças do presente. 126 Talvez seja essa
recusa da neutralidade o seu traço mais combativo, seja frente às exigências tradicionais da fé
cristã, seja diante das demandas históricas de seu tempo.127
Em 1965, tratando do objetivo missionário da escola cristã, isto é, sua abertura ao
público mais amplo, não limitado a sua orientação religiosa, sustenta a relevância da
aproximação com os descrentes, a presença da escola cristã em um ambiente descristianizado.
Contudo, essa participação “não tem por objetivo uma propaganda contrária às intenções
deste último, mas uma experimentação conforme os requisitos internos da primeira”. 128 A
adesão às regras nacionais, não religiosas, para a educação “é uma graça apostólica”, pois “ela
abre uma brecha neste muro invisível que separa as instituições cristãs da vida e da
consciência descristianizadas”.129
Essa abertura defendida por Certeau visa menos o combate ao ateísmo amplamente
acolhido entre uma “população jovem e massivamente indiferente à fé”, 130 e mais tornar a

126
Cf. CERTEAU, Michel de. Situations culturelles, vocation spirituelle. Christus, t. 11, n. 43, p. 294-313, juil.
1964, em especial as páginas 294, 297-298 e 310; Id. Comme un voleur. Christus, t. 12, n. 45, p. 25-41, janv.
1965, p. 33; Id. Expérience chrétienne et langage de la foi, Christus, t. 12, n. 46, p. 147-163, avril 1965,
sobretudo as páginas 160-161; Id. Unité et divisions des catholiques. Christus, t. 12, n. 47, t. 12, p. 365-383,
juil.1965, p. 376-380; Id. Ouverture sociale et renouveau missionnaire de l’école chrétienne. Christus, t. 12, n.
48, p. 554-571, oct. 1965, p. 554-558.
127
Acompanhamos o próprio Certeau, quando este comenta a postura combativa do padre e missionário Vincent
Lebbe. Cf. Id. Un prophète: le père Vincent Lebbe. Bulletin Saint Jean-Baptiste, t. 6, n. 2, p. 81-91, déc. 1965.
Ele também trata do conflito, do enfretamento e do combate em Id. Le temps des conflits. Christus, t. 11, n. 41,
p. 77-90, janv. 1964.
128
“[…] n’ont pas pour but une propagande contraire aux intentions du second, mais une expérimentation
conforme aux exigences internes de la première”. CERTEAU, Michel de. Ouverture sociale et renouveau
missionnaire de l’école chrétienne. Christus, t. 12, n. 48, p. 554-571, oct. 1965, p. 559.
129
“elle ouvre une brèche dans ce mur invisible [...] qui sépare les institutions chrétiennes de la vie et de la
conscience déchristianisées”. Ibid., p. 559.
130
“[…] population jeune et massivement indifférente à la foi”. Ibid., p. 559.
255

escola cristã “um terreno de experimentação privilegiado para as orientações que se impõem
já em toda parte à evangelização”.131
Como é possível ver, Certeau não se esquiva a considerar o lugar do ateísmo na
sociedade moderna. A maneira como ele trata a questão aparece como mais um vestígio da
diferença que pouco a pouco ia se constituindo entre a posição de Certeau e a postura
apologética de Lubac. Daí em diante, esses rastros darão lugar a posições mais expressamente
distintas, coincidindo com a culminância da reorientação editorial da Christus e com a
emergência de um “segundo” Certeau no que se refere à relação entre teologia e história.
No ano seguinte, Certeau intervém no curso dedicado à relação entre o ateísmo e a fé,
organizado pelo Centre Catholique Universitaire de Grenoble. Na transcrição de sua
intervenção, La crise du langage religieux, lemos o seguinte:
O cristão percebe hoje que ele fala uma linguagem ateia que não tem nada a
ver com sua tradição cristã; ele está diante de sua tradição como diante de
um objeto que ele não pode superar e que, no entanto, não pode reconhecer.
O fenômeno é geral, devido a uma mudança cultural. 132
Esse “bilinguismo” é inerente ao cristão na contemporaneidade. A experiência
espiritual efetua-se na comunicação entre as duas esferas. A “linguagem comum” torna-se,
constantemente, um lugar de conversão, de reaprendizado da sua própria verdade religiosa,
sem que ele possa aderir unilateralmente a uma ou outra. Do contrário, acaba-se por perder de
vista a particularidade da experiência cristã ou por identificar sua verdade a uma de suas
expressões históricas.
Ainda em 1966, Culture et spiritualité retoma a questão a partir de uma reflexão
histórica. Ao longo do tempo, os termos “ateu” e “ateísmo” receberam diversas acepções. Os
teólogos utilizaram-nos contra os espirituais no século XVI. Católicos e protestantes
recorreram a eles para designar uns aos outros. No século XVII fora a vez dos jansenistas
serem acusados com essa alcunha. Então dos teístas no século XVIII, dos socialistas no XIX...
De sua parte, os ateus depositaram no termo ateísmo a reação a religião cristã.
Disso Certeau tira uma lição: “Cada vez, os oponentes expressam como absolutas suas
posições recíprocas, quando elas são relativas a uma conjuntura”.133 Qualificações como

131
“[…] un terrain d’expérimentation privilégié pour les orientations qui s’impose déjà partout à
l’évangélisation”. Ibid., p. 559.
132
“Le chrétien s’aperçoit aujourd’hui qu’il parle un langage athée qui n’a rien à voir avec sa tradition
chrétienne […]; il se tient devant sa tradition comme devant un objet dont il ne peut pas passer et que pourtant il
ne peut reconnaître. Le phénomène est général, dû à une mutation culturelle”. CERTEAU, Michel de. La crise
du langage religieux [Session de Currière: langages de l’athéisme et de la foi, p. 41-54, juil. 1966], texto
mimeografado, caixa 5, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves, p. 44.
133
“Chaque fois, les opposants expriment comme absolues leurs positions réciproques, alors qu’elles sont
relatives à une conjoncture”. Id. Cultures et spiritualités. Concilium, n. 19, p. 7-25, nov. 1966, p. 24.
256

“sobrenatural” e “natural”, “crente” e “descrente”, ainda que opostas, guardam uma certa
coerência relativa a um conjunto cultural do qual fazem parte. Algo de uma já reside na outra
e vice-versa: “seus oponentes ou seus críticos estão já presentes nas espiritualidades que
reagem contra eles ou se distinguem deles”.134
Então, há uma solidariedade entre os grupos opostos em um tempo, um está para o
outro não só apesar de sua diferença, mas justo por sua diferença. Portanto, o gesto teológico
certeauniano não poderia comportar o teor apologético de Lubac. A única apologia que ele
conhecerá é da diferença sem a qual não há apostolado ou vida comum.
Certeau parece fazer coro às vozes de uma época de desinstitucionalização religiosa na
qual a crença em Deus não mais autorizava crivar e valorar a existência a partir do magistério
oficial e de princípios teológicos universais. Em um tempo de aceleração do processo de
dessacralização em que se chegou inclusive a falar em uma teologia da morte de Deus, 135
Certeau estava preocupado em pensar a experiência do crente em um mundo onde a religião
não dá a última palavra e no qual Deus parece cada vez menos presente.
Tempo de um mutismo da fé e do desencantamento do saber religioso, não somente o
vocabulário cristão herdado da tradição é crescentemente experimentado como inadequado às
urgências da época, como a linguagem do ateísmo é absorvida no universo católico. Nesse
caso, a crítica certeauniana não é ao ateísmo, mas à maneira como acontece – ou melhor, não
acontece – o diálogo com ele:
Os cristãos fazem hoje da negação ateia a linguagem de seu problema
pessoal. Assim, reduzem o ateísmo a ser somente um signo de seu próprio
mutismo. Com isso, mudam o sentido do ateísmo: acreditando se reconhecer
nele, atenuam a diferença. Eles se “convertem” a posições que adotam
suprimindo: “o outro” torna-se a voz de seu mal-estar; pagando uma alto
preço pelo privilégio do diálogo com "o ateu", fixam-no como espelho de
sua inquietude, o golpe esperado que atinge sua fé, a razão que justifica sua
dúvida, o horizonte abstrato de sua própria segurança. Finalmente, eles
fazem dele o cúmplice de uma solidariedade que queria suprimir as
distâncias e que enuncia as dúvidas do cristão com as objeções do
descrente.136

134
“[...] leurs opposants ou leurs critiques sont déjà présents aux spiritualités qui réagissent contre eux ou s’en
distinguent”. CERTEAAU, Michel de. Cultures et spiritualités. Concilium, n. 19, p. 7-25, nov. 1966, p. 25. Grifo
do autor.
135
Cf. ALTIZER, Thomas; HAMILTON, William. Radical Theology and the Death of God. Indianapolis:
Bobbs-Merrill, 1966.
136
“Des chrétiens font donc aujourd’hui de la négation athée le langage de leur problème personnel. Ils
réduisent ainsi l'athéisme à n'être que le signe de leur propre mutisme. Par là, ils changent le sens de l'athéisme:
en croyant se reconnaître en lui, ils estompent la différence. Ils se « convertissent » à des positions qu'ils
suppriment en les adoptant : « l'autre » devient la voix de leur malaise; en achetant à haut prix le privilège de
dialoguer avec « l'athée », ils lui fixent pour fonction d'être le miroir de leur inquiétude, le coup attendu qui
frappe leur foi, la raison qui justifie leur doute, l'horizon abstrait de leur propre insécurité. Finalement, ils en
font le complice d'une solidarité qui voudrait supprimer les distances et qui énonce les doutes du chrétien avec
257

Então, o paradoxo da experiência que o cristão tem do ateísmo não se trata de traição
da fé ou modismo. É preciso reconhecer as questões que o presente coloca em todo seu
alcance humano e religioso. Esse reconhecimento frequentemente assume duas configurações,
duas formas de diálogo.
Na primeira, procurando o que lhe falta para ser moderno, repete a perspectiva do
interlocutor. Aliena-se nela. E ao fazê-lo, acreditando estar com ele, elimina-o. Na segunda, o
diálogo não é mais que a busca de uma boa consciência. Dá a palavra aos outros, mas não os
escuta. Faz como se existissem, para em seguida retornar a seu monólogo sem que nada
tivesse ocorrido.137
Dessa maneira, Certeau concentra seu “combate” na precariedade da maneira dos
cristãos se relacionam com o ateísmo. E essas críticas preparam para a radicalidade de sua
compreensão de diálogo. Isso quer dizer que essas formas de adaptação são precárias não
porque elas suportam um tipo de descontinuidade histórica que é ruptura com a tradição, mas
porque elas não produzem comunicação, peça-chave da teologia do “sentido” espiritual da
relação com o presente.
Certeau reclama a existência do outro como ponto fundamental da experiência e da fé
cristã.138 As interações entre crentes e descrentes não escapam à questão radical a que Certeau
chama: “Aprendemos que os outros nos escapam – nossos interlocutores, bem como os sinais
da presença de Deus”.139 Essa clareza é já a confissão de que o outro existe, difere, resiste. A
experiência dessa resistência é a base de toda comunicação de toda experiência espiritual.
Por meio da experiência da resistência, do reconhecimento da diferença, os homens se
inventam mutuamente. A diferença é a “energia espiritual da união”. 140 Por isso o
reconhecimento da diferença entre o crente e o descrente permite que ambos existam e
produzam-se reciprocamente.
O que está em questão é o imperativo intercâmbio sociocultural com o presente
dessacralizado. Essa participação nas tarefas hodiernas não se furta às suas consequências. É o
caso do questionamento, da ruptura e da reinterpretação da tradição. A adaptação às urgências

les objections de l'incroyant”. CERTEAU, Michel de. La parole du croyant dans le langage de l’homme. Esprit,
p. 455-473, oct. 1967, p. 457-458.
137
CERTEAU, Michel de. La parole du croyant dans le langage de l’homme. Esprit, p. 455-473, oct. 1967, p.
465.
138
Id. La crise du langage religieux [Session de Currière: langages de l’athéisme et de la foi, p. 41-54, juil.
1966], texto mimeografado, caixa 5, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves, p. 42.
139
“Nous apprenons [ …] que les autres nous échappent – nos interlocuteurs tout comme les signes de la
présence de Dieu”. CERTEAU, op. cit., p. 466.
140
“[...] ressort spirituel de l’union”. Id. (1969) L'étranger ou l'union dans la différence. Nouvelle édition
introduite et établie par Luce Giard. Paris: Éditions du Seuil, 2005. p. 174.
258

do tempo encontra seu formato mais acentuado na condição bilíngue do cristão no mundo
contemporâneo. Ele fala duas línguas, uma relativa à realidade que o circunda, outra à
realidade que ele recebe; uma em nome dos saberes independentes da religião, outra em nome
das leis de sua fé. Tanto a participação quanto o bilinguismo colocam o problema da
diferença, inerente a qualquer busca por continuidade espiritual que se pretenda legítima.
Tudo isso favorece o afastamento dos cristãos entre si e a “proximidade dos ateus”. 141
Os cristãos não só reconhecem sua diferença em comparação a seus correligionários do
passado e do presente, como também “se sentem solidários a homens que não partilham suas
convicções religiosas”.142
Essa solidariedade com o ateu não é suplantada por um combate pela transformação da
descrença em crença; não sustenta uma pedagogia alicerçada na batalha paciente pela
conscientização dos erros do outro. Sua tônica não está na luta pela metamorfose do ateu em
cristão assim como a vinda do Cristo não significou a conversão do gentil em judeu:
O povo judeu inteiro é convidado a compreender sua eleição divina
aprendendo que os gentis também são chamados. Não que o judeu deva
tornar-se gentil ou o contrário.143
Certeau não procede segundo a lógica binária que trata a diferença como qualificação
de tudo “que escapa aos crentes, os conteste ou os atrai”.144 Num diálogo guiado por esse
binarismo, a fé consistiria na defesa de algo contraposto a tudo o que não é crente ou teísta, a
saber, o ateísmo.
No entanto, Certeau constata uma outra experiência da diferença, onde o sentido de
um não é mais a resposta à situação do outro. Ela baseia-se na mutualidade e na pluralidade,
na “relativização recíproca de grupos e de indivíduos diferentes”.145 A oposição binária dá
lugar à experiência do encontro, do vínculo, da relação enquanto região privilegiada da
diferença. Desse modo, o fundamental passa a ser menos a resposta à objeção do outro, e mais
a “localização da experiência em uma rede de determinações, e, então, a possibilidade de
remetê-la ao absoluto ou a um sentido”.146
Essa apologia da diferença permanece simultaneamente fiel e infiel à herança
lubaciana. Aliás, haveria jeito mais zeloso de honrar um hábil teólogo do paradoxo que com

141
Certeau menciona “cette proximité des athées” em CERTEAU, Michel de. (1969) L'étranger ou l'union dans
la différence. Nouvelle édition introduite et établie par Luce Giard. Paris: Éditions du Seuil, 2005. p. 153.
142
“se sentent solidaires d'hommes qui ne partagent pas leurs convictions religieuses”. Ibid., p. 153.
143
“Le peuple juif tout entier est […] invité à comprendre son élection divine en apprenant que les gentils, eux
aussi, sont appelés. Non que le Juif doive se faire Gentil, ou inversement”. Ibid., 176. Grifo nosso.
144
“[…] qui échappe aux croyants, les conteste ou les attire”. Ibid., p. 186.
145
“[…] relativisation réciproque de groupes et d’individus différents”. Ibid., p. 186. Grifo do autor.
146
“[…] localisation de l'expérience dans un réseau de déterminations, et donc la possibilité de la rapporter à
l'absolu ou à un sens”. Ibid., p. 186. Grifo do autor.
259

um paradoxo, o da infidelidade? Fidelidade paradoxal147 exemplificada pelo modo como


Certeau compreende a relação com o ateísmo.
Há entre os dois um paralelo insuspeito quando se trata da abertura que “acolhe e
recolhe todos os signos para neles ler uma linguagem humana de Deus”;148 ou da dependência
entre união e diferenciação, essas “duas coisas que crescem de mãos dadas”.149
Se essas descrições da obra lubaciana estão em sintonia com a própria trajetória de
quem as descreve, não é possível dizer o mesmo daquele espírito de cruzada do mestre. Ele é
raramente encontrado com o mesmo acento no antigo aluno. Esse silencio ruidoso que um dia
fora sua resistência ao combate contra o ateísmo liberou sua voz nessa segunda metade dos
anos 1960.
O primeiro sinal de discordância explícita entre eles manifesta-se ainda em 1966. O
post scriptum de uma carta de 26 de setembro de 1966 indica a divergência da parte Lubac em
relação a comentários de Certeau sobre ele: “Se você fosse menos discreto comigo, eu
cometeria menos erros falando de você. Diga-me, por favor, os pontos sobre os quais eu me
enganei ou sobre os quais você teria reservas”.150
Certeau não precisa as circunstâncias geradoras desse desentendimento aludido na
correspondência. François Trémolières aventa a possibilidade de o desacordo na carta de 26
de setembro de 1966 fazer referência ao artigo Cultures et spiritualités, pois um de seus
trechos menciona uma análise sobre o destino do termo mystique no século XVII feita em
homenagem ao mestre, publicada quase três anos antes no Mélanges offerts au père Henri de
Lubac.151
Essa suposição faz sentido apenas se considerarmos que Lubac tenha tido
conhecimento das ideias do texto anteriormente a sua publicação, pois a carta é de setembro e
o texto aparece na Concilium em novembro. Embora essa suposição não seja inverossímil,

147
Denis Pelletier assim definiu a originalidade do itinerário de Michel de Certeau no que diz respeito à maneira
com que este tratou a “crise católica”. PELLETIER, Denis. Pratique et écriture de la crise catholique chez
Michel de Certeau. Revue d'Histoire des Sciences Humaines, n. 23, p. 19-35, 2010, p. 30. Disponível em:
https://www.cairn.info/revue-histoire-des-sciences-humaines-2010-2-page-19.htm#. Acesso em: 26 fev. 2020.
François Dosse, por sua vez, definiu Certeau como “um discípulo indisciplinado do padre Lubac”. DOSSE,
François. (2002) Michel de Certeau: le marcheur blessé. Paris: La Découverte, 2007. p. 47-58.
148
“[…] accueille et recueille tous les signes pour y lire un langage humain de Dieu”. CERTEAU, Michel de.
Un maître: le père Henri de Lubac. Ecclesia, n. 187, p. 83-90, oct. 1964, p. 83.
149
“[…] deux choses qui croissent de pair”. Ibid., p. p. 87.
150
“Si vous étiez moins discret avec moi, je ferais moins d’erreurs en parlant de vous! Dites-moi, s’il vous plaît,
les points sur lesquels je me suis trompé ou sur lesquels vous feriez des réserves!”. CERTEAU, Michel de. Carta
a Henri de Lubac, texto manuscrito, 26 de setembro de 1966, caixa 34, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.
151
TRÉMOLIÈRES, François. Michel de Certeau, Henri de Lubac: une correspondance. Recherches des Science
Religieuse, t. 106, n. 4, p. 591-609, 2018, p. 597, nota 10.
260

dada a longa filiação espiritual e intelectual que o ligava ao padre, ela não é verificável em
recursos documentais que dispus até o momento.
De todo modo, tomar em conjunto o seu capítulo no Mélanges a Lubac e seu artigo
Cultures et spiritualités auxilia a retomar o deslocamento em seus textos e articulá-lo à
constituição de uma diferença em relação a Lubac no que diz respeito à continuidade com a
tradição. Essa leitura torna possível afirmar que a reinterpretação do passado nesses dois
textos em questão não diz exatamente a mesma coisa. Neles há uma diferença de ordem
teológica pautada historicamente pelas transformações ocorridas no catolicismo dos anos
1960.
Em 1964, em seu texto sobre a linguagem mística no século XVII, o problema
teológico que lhe interessa é a conformidade entre a tradição a novidade da linguagem
espiritual de um tempo. Nessa reflexão de historiador, marcada por uma preocupação
espiritual encontrada em outros de seus escritos naqueles anos, o valor teológico da diferença
não está nela mesma, mas na capacidade de uma práxis ser nova sem que isso contradiga a
“santa Antiguidade” (sainte Antiquité). Por isso Certeau conclui como imperativo não
negligenciar isto que ele credita aos grandes místicos:
Que, certamente, eles não diziam nada de novo, que sua vida tinha nascido e
sido formulada na pregação da Igreja; ou que a novidade neles, repetição
pelo Espírito da palavra de Jesus Cristo, era própria a todos os tempos; mas
que eles a experimentavam de uma maneira nova e que eles tinham de dizê-
la também de uma maneira nova.152
Viver e expressar de forma diferente uma mesma verdade, tal é a qualidade teológica
encontrada nesse texto de historiador. Essa reflexão se situa em um momento de transição em
que a pressão exercida pela novidade do presente era harmonizada na continuidade com o
passado em seus trabalhos de natureza mais diretamente espiritual.
Já em Cultures et spiritualités, mais que um novo agir e um novo dizer
imprescindíveis para uma melhor expressão da doutrina, é uma novidade insubmissa ao
passado religioso que ganha espaço. No Mélanges a Lubac, a novidade aparecia como
requisito para a fidelidade à tradição. Desde então, a novidade ganha entonação mais radical e
passa a significar uma ruptura com ela em nome da fidelidade ao Espírito e à palavra
evangélica que nenhuma teologia pode corresponder.

152
“que, certes, ils ne disaient rien de nouveau, que leur vie étais née et formulée dans la prédication de
l’Église; ou que la nouveauté en eux, répétition par l’Esprit de la parole de Jésus-Christ, était propre à tous les
temps; mais qu’ils l’expérimentaient d’une façon nouvelle et qu’ils avaient à le dire aussi d’une façon nouvelle”.
CERTEAU, Michel de. « Mystique » au XVIIe siècle: le problème du langage « mystique ». In: L’Homme devant
Dieu: Mélanges offerts au père Henri de Lubac. Paris: Aubier, 1964. v. 1. p. 291.
261

O vocabulário atrelado à ideia de ruptura mostra a mudança agora incorporada em


termos como novidade, renovação, inovação e diferença: audácia, atrevimento, traição,
heresia, separação, superação, partida, distância, etc. Dessa maneira, à novidade do presente
(nouveauté du présent), a pena certeauniana acrescenta a estranheza do passado (l’étrangeté
du passé); à fidelidade a Deus, a “insuficiência dos signos religiosos”.153
Em resumo, a diferença em relação ao passado assediava o princípio teológico da
história que ainda permanecia funcionando em seus textos e o mantinha em maior sintonia
com a teologia de Lubac. Só com muito custo a identidade entre passado e presente era
mantida por meio de estratégias retóricas em seus textos.
A inscrição violenta da alteridade sobre essa ordem compreensiva estabelecida alcança
seu ponto limite pelo menos desde meados de 1966, quando os vestígios de uma continuidade
pressuposta cedem lugar a um gesto teológico que integra a realidade histórica sem antecedê-
la e sem amenizar seus impactos disruptivos com o passado cristão. Nesse sentido, é a
emergência de uma outra ordem expressiva na trajetória textual certeauniana a evidência mais
concreta passível de ser tirada da desavença na carta de 26 de setembro de 1966.
François Dosse aborda o documento como exemplo dos desacordos crescentes entre
Certeau e Lubac, no contexto da forte divergência de seus caminhos em meados dos anos
1960.154 Ele tem razão ao afirmar que a história dos dois jesuítas começa a divergir naquela
altura. De fato, Lubac torna-se uma autoridade institucional bastante identificada com as
mudanças ocorridas no Vaticano II, enquanto Certeau não se limita às fronteiras
institucionais, participando ativamente na efervescência das ciências humanas. Contudo, cabe
melhor precisar a emergência e o desenrolar dessa desavença, assim como especificar o que
está historicamente e teologicamente em jogo nela.
Em 1966, uma diferença já constituída aparece em suas interpretações não associadas
explicitamente a Lubac, da qual explorei duas possibilidades, uma relativa ao ateísmo e outra
à teologia da história. Uma possível diferença já funcionando em sua menção explícita ao
confrade dá seus primeiros sinais na missiva de 26 de setembro daquele ano. Não é
insignificante constatar a diminuição expressiva da correspondência, disponível em arquivo,
enviada por Certeau – dezessete em 1965, duas em 1966, duas em 1967, uma em 1968, uma

153
“[...] l’insuffisance des signes religieux”. CERTEAU, Michel de. Cultures et spiritualités. Concilium, n. 19, p.
7-25, nov. 1966, p. 25.
154
DOSSE, François. (2002) Michel de Certeau: le marcheur blessé. Paris: La Découverte, 2007. p. 55. O
historiador indica equivocadamente a data do documento como sendo de 29 de novembro de 1965.
262

em 1972, uma em 1975 e uma em 1983.155 O golpe final certamente serão os textos em que
Certeau associará suas posições à teologia de Lubac, em La rupture instauratrice (1971).
Essas posições eram inaceitáveis para muitos teólogos fieis à ideia de renovação e de história
como pensada teologicamente nos anos 1940 e 1950. Lubac não tardará a mostrar seu
desconforto com a associação e recusá-la publicamente.
Da parte de Lubac, ainda que tenha respondido negativamente a Certeau em 1966,
como a carta de 26 de setembro sugere, não há um afastamento abrupto. Ao contrário, em
dezembro de 1967, o nome de Certeau é cogitado por ele e por Henri Bouillard para uma
novo projeto no qual trabalhavam, a Bibliotheca theologica internationalis, proposta a qual
Certeau responderá negativamente. Não obstante Bouillard dissesse conhecer os defeitos de
Certeau, ele acreditava ser possível controlar suas escolhas. Lubac, por sua vez, pensava
preferível um teólogo ocupar tal posição, o que não considerava o caso de Certeau – àquela
altura mais diretamente associado ao trabalho do historiador. De todo modo, acreditava ser
uma boa escolha, “graças a seus conhecimentos e suas relações múltiplas, graças a sua grande
atividade”.156
Nessa época, Lubac dizia estar isolado no que considerava um momento de crise da
Companhia, quando os jesuítas franceses mergulhavam nas ciências humanas em detrimento
da teologia, como visto na correspondência com Bouillard tratada por Trémolières. 157 Não é o
próprio Certeau quem diagnosticava, em Cultures et spiritualités, uma falha radical
constituinte da tradição, da teologia e da fidelidade? Não é ele quem torna a história um
instrumento negativo para essa reflexão teológica? Certeau estava dentre os adeptos desse
redirecionamento ressentido por Lubac. Em breve se tornaria um de seus nomes mais
significativos a partir de suas resenhas na Études, mas principalmente por seus artigos sobre
os eventos que tomaram as ruas de Paris em maio de 1968, publicados naquela mesma revista.
Na correspondência conservada, uma nova reprovação de Lubac só será mencionada
em janeiro de 1972, quando Certeau fala com o antigo professor sobre a censura de que este
lhe endereça em Les églises particulières dans l’Église universelle. A publicação desse livro é
a ocasião na qual o distanciamento entre eles ganha ares de polêmica e a recusa à
interpretação de Certeau em La rupture instauratrice se cristaliza.

155
Todas essas cartas estão disponíveis caixa 34 do fundo Henri de Lubac do Arquivo da Companhia de Jesus
em Vanves, com exceção de quatro delas, enviadas em 1965, alocadas na caixa 29.
156
LUBAC apud TRÉMOLIÈRES, François. Michel de Certeau, Henri de Lubac: une correspondance.
Recherches des Science Religieuse, t. 106, n. 4, p. 591-609, 2018, p. 606.
157
TRÉMOLIÈRES, François. Michel de Certeau, Henri de Lubac: une correspondance. Recherches des Science
Religieuse, t. 106, n. 4, p. 591-609, 2018, p. 606.
263

Nesse artigo, Certeau caracteriza a práxis cristã pela simultaneidade de uma


determinação efetiva e de uma superação necessária. Nessa interpretação de Certeau, é
possível dizer que a práxis de Jesus aparece como um tipo singular de relação que articula
duas linguagens. Ela é ao mesmo tempo reafirmação da instituição judaica e estabelecimento
de uma distância em relação a ela, validação da lei antiga por meio da instauração de um
outro sentido. Esse tipo particular de conversão que abre a letra a um espírito logo ganharia
seu primeiro enunciado, dando lugar a uma nova letra, e essa a uma outra, e a uma outra...:
Globalmente, essa escritura neotestamentária não tinha por significado ser a
verdade no lugar da precedente ou substituir uma religião por outra, mas
conotar um tipo de conversão doravante inaugurada por Jesus e que estaria
indefinidamente por “fazer” em relação a essa instituição ou a outras.158
No decorrer dessa interpretação da práxis cristã, uma nota de rodapé declara uma
cumplicidade que precipitou o “desmoronamento” de uma relação fraternal pouco a pouco
fragilizada nos anos anteriores: “pode-se reler nessa perspectiva o admirável capítulo
consagrado à “Unidade dos dois Testamentos” pelo padre Henri de Lubac”. 159 A censura do
antigo professor vem ainda naquele ano: “Em razão dos graves equívocos ocasionados sobre
esse assunto por um artigo publicado na Esprit, junho de 1971 (A ruptura instauradora, por
M. de Certeau), devo dizer que reler esse capítulo “na perspectiva” que esse artigo recomenda
é ir contra todo meu pensamento”.160
Caberia a uma abordagem teológica dar conta dessa diferença, mas não é preciso ir
muito longe para mostrar o contraste de suas posições nesse domínio. Certeau trata da
conversão do antigo em novo como uma operação singular e não como um conteúdo, como a
verdade, como o ensino. O novo testamento e as instituições cristãs aparecem como
momentos dessa história possibilitada por seu acontecimento inicial, sem que nenhum desses
enunciados da práxis inaugurada por Jesus seja dotado de autoridade universal. Lubac,
distintamente, reafirma a autoridade do ensino contido no novo testamento, resultante da

158
“Globalement, cette écriture néotestamentaire n'avait pas pour signification d'être la vérité à la place de la
précédente, ou de remplacer une religion par une autre, mais de connoter un type de conversion désormais
inauguré par Jésus, et qui serait indéfiniment à « faire » par rapport à cette institution ou à d'autres”.
CERTEAU, Michel de. La rupture instauratrice ou le christianisme dans la culture contemporaine. Esprit, p.
1177-1214, juin 1971, p. 1211. Grifo do autor.
159
“On peut relire dans cette perspective l’admirable chapitre consacré à « l’Unité des deux Testaments » par le
P. Henri de Lubac”. Ibid., p. 1211, nota 35. O capítulo referido por Certeau encontra-se em LUBAC, Henri de.
Exégèse médiévale: les quatre sens de l’Écriture, Paris: Aubier, 1959. t. 1. p. 305-363.
160
“En raison des graves équivoques occasionnées à ce sujet par un article paru dans Esprit, juin 1971 (« La
rupture instauratrice », par M. de Certeau), je dois déclarer que relire ce chapitre « dans la perspective » où cet
article le recommande est aller à l’encontre de toute ma pensée”. LUBAC, Henri de. (1971) Les églises
particulières dans l’Église universelle suivi de La maternité de l’Église. Paris: Les Éditions du Cerf, 2019. p.
144, nota 1. (Œuvres completes, 10) Lubac retoma essa crítica em: Id. La postérité de Joachim de Flore. t. II: de
saint-Simon à nos jours. Paris: Lethielleux, 1981. p. 447-449.
264

conversão da antiga em nova aliança, ensino cuja continuidade a Igreja recebeu a


incumbência. Isso pode ser visto no tratamento de Lubac sobre a maternidade da Igreja,
ocasião em que rejeita a interpretação de Certeau.
Na perspectiva de Certeau, entre a práxis de Jesus e os textos e instituições que ela
possibilita há um corte gerado pelo silêncio de sua morte. Toda forma de vida cristã é signo
disso que a permite faltando-lhe, é limitada pela ausência do que a instaura, inclusive as
escrituras, a tradição e o concílio. Não há autoridade que não seja marcada por essa condição
que a faz enunciar algo que não é tal qual ela diz. Portanto, o sentido espiritual só se
manifesta pela pluralidade de autoridades e por uma estrutura comunitária na qual a
impossibilidade de apreensão do Outro priva a qualquer um dos enunciados ter a posse da
verdade disso que os autoriza e escapa.
Para Lubac – e para o próprio Certeau anteriormente – a Igreja permanece sendo o
corpo visível do Cristo, presença mística do corpo ausente. Esse paradoxo da Igreja torna
inseparável a presença e a ausência, o visível e o invisível, o particular e o universal. A Igreja
é flexível, aberta às demandas humanas, às particularidades históricas, mas preserva sua
unidade e totalidade. A abertura de Lubac ao mundo moderno permanece estritamente
comprometida com a plenitude da tradição católica, uma posição que nas duas décadas
anteriores ao concílio Vaticano II poderia ser designada como “progressista”, mas que soaria
“conservadora” se a consideramos no contexto da aceleração das transformações na sociedade
católica pós-conciliar.
Dessa maneira, a diferença teológica entre Certeau e Lubac responde diferentemente a
um desafio de ordem histórica na sociedade francesa da segunda metade dos anos 1960.
Como acolher as demandas emergentes em um tempo em que a cultura católica se tornava
cada vez menos plausível entre os próprios cristãos, sem com isso apagar-se nesse
acolhimento, isto é, mantendo-se católico?
Lubac estava entre aqueles que fazia da renovação e da ortodoxia duas faces da mesma
moeda. Em outras palavras, citando o próprio Certeau, ele era um homem da tradição, homem
da Igreja, homo ecclesiasticus, para recorrer a expressão usada por Certeau para designar o
alvo do elogio de Lubac em Méditation sur l’Église.161 Sacerdote que passou da posição de
bode expiatório na contenda da nouvelle théologie a consultor da comissão teológica
preparatória do Vaticano II; uma das fontes de inspiração que é possível encontrar pulsando

161
Cf. CERTEAU, Michel de. Un maître: le père Henri de Lubac. Ecclesia, n. 187, p. 83-90, oct. 1964, p. 90; Id.
La mort du cardinal de Lubac. Le Monde, Paris, 5 sept. 1991, p. 14. Lubac usa o termo vir ecclesiasticus para
falar do homem da Igreja. LUBAC, Henri de. (1953) Meditación sobre la Iglesia. Madrid: Encuentro, 2008. p.
264.
265

nos documentos conciliares; e fiel vigário de cristo homenageado com o cardinalato em 1983,
Lubac é um dos nomes mais expressivos de um tipo de renovação que não seria suficiente
para conter as consequências religiosas da onda contestatória contra as autoridades que varreu
a França, especialmente por parte dos jovens que tomaram a palavra em maio de 1968.
Certeau junta sua voz aos que vão buscar fora dos limites institucionais as alternativas
que possibilitem à cultura católica um lugar para existir em um presente em que a
“catolicidade” dá lugar à “crença” e em que seus próprios adeptos não conseguem voltar-se
para sua tradição e sentir mais que uma inquietante familiaridade. Sem defender a ortodoxia
como revés necessário para a renovação, nem se desligar da instituição em nome do presente
e das ciências humanas, Certeau torna-se o homem das fronteiras. Ele frequentemente
transborda os limites institucionais e teóricos como maneira de forjar um sentido espiritual
que seja plausível para as experiências não identificadas com as fórmulas religiosas e para que
a dimensão espiritual não se esvazie de tal modo que ele não designe mais que “cultura”,
“sociedade”, “economia”, “política”, etc. Essa é a circunstância histórica em que as adesões
intelectuais de Certeau produzem uma diferença de interpretação teológica em relação a
Lubac.162
Certeau identifica sua reflexão a Lubac justamente onde se afasta dele, maneira como
acredito poder ser interpretada sua referência ao quinto capítulo do primeiro volume de
Éxegèse médiévale (1959). A associação da ruptura instauradora à conversão do antigo em
novo testamento em Lubac seria, então, uma leitura equivocada de Certeau, como já foi
sugerido para a sua interpretação do Corpus mysticum no primeiro volume de seu Fable
Mystique?163 O fator explicativo não parece ser uma questão de incompreensão.
Quando Certeau remete a Exégèse médiévale, o convite é à sua releitura na
perspectiva da conversão como articulação entre determinação efetiva e superação necessária.
Esse é um ponto crucial para entender o que está em jogo nessa associação diferenciante, isto
é, um modo particular de ler, mais precisamente uma operação de leitura como ato espiritual,
o exercício de uma forma de fidelidade condizente com o gesto teológico que vinha
aparecendo em suas reflexões nos anos anteriores.

162
Um bom exemplo é L’archéologie d’une crise que compõe a segunda parte de sua reflexão sobre as
Structures sociales et autorités chrétiennes – ela aparece separadamente em dois números seguidos da Études.
Nesse artigo, Histoire e esprit, publicada por Lubac em 1950, é apontado, elogiosamente, como signo de uma
lenta preparação que tem seu desfecho na crise de autoridade religiosa, novo começo de um movimento jamais
acabado, a partir do qual a reflexão teológica precisa ajustar-se. Cf. CERTEAU, Michel de. Structures sociales et
autorités chrétiennes (suite). Études, t. 331, p. 285-293, août-sept. 1969.
163
Cf. HOFF, Johannes. Mysticism, ecclesiology and the body of Christ: Certeau’s (mis-)reading of Corpus
Mysticum and legacy of Henri de Lubac. In: BOCKEN, Inigo. (Ed.) Spiritual spaces: history and mysticism in
Michel de Certeau. Leuven: Peeters, 2013. p. 87-109.
266

Penso que a leitura no assunto em pauta possa ser definida como uma forma
“herança”. Recorro a Jacques Derrida, em seu Espectros de Marx, para encontrar um recurso
que auxilie a operar uma leitura do próprio ato de leitura certeauniano contido em sua
“fidelidade” a Lubac. Derrida enuncia o seguinte:
Uma herança não se junta nunca, ela não é jamais una consigo mesma. Sua
unidade presumida, se existe, não pode consistir senão na injunção de
reafirmar escolhendo. É preciso quer dizer é preciso filtrar, peneirar,
criticar, é preciso escolher entre vários possíveis que habitam a mesma
injunção. E habitam-na de modo contraditório, em tomo de um segredo. Se a
legibilidade de um legado fosse dada, natural, transparente, unívoca, se ela
não pedisse e não desafiasse ao mesmo tempo a interpretação, não se teria
nunca o que herdar.164
Negociando com essa ética derridiana da leitura,165 podemos dizer que pensar a
fidelidade como herança é afirmar que ela não opera por concessão. Ela transfere a posse. A
assinatura original já não é inteiramente legível nesse novo nome que assina. Nessa
perspectiva, a herança não é uma causa genética, uma “influência” como unidade delineável.
O que estava sob o signo da assinatura “original”, tal escolha criva, critica, infiltra, rasura.
Apropriar-se do gesto ético que é a noção de herança no pensamento derridiano para
ler isso que se processa nos textos de Certeau é como penso possível tratar rigorosamente a
simultaneidade de sua constituição histórica e de sua textualidade, ou seja, do que
produtivamente define os textos enquanto tal, o ser-texto do texto em seus aspectos
semióticos, estilísticos, pragmáticos e escriturários.
Isso quer dizer “respeitar” as regularidades que eles mantém com outros
textos/enunciados temporalmente distribuídos; a internalização dos dados compartilhados por
uma época; e seu próprio jogo de termos opostos que tanto o “primeiro” quanto o “segundo”
Certeau subscrevem mesmo que não digam as mesmas coisas; mas sem com isso
“desrespeitar” a própria singularidade do texto em sua abertura, excesso e fuga. Dessa
maneira, é possível dar conta de como uma “leitura fiel” transita nesse espaço do texto que
contém a programação para uma leitura de si mesmo e uma margem de liberdade à
negociação.
A herança, realizada sempre já na contradição, não é nada estranha à própria noção
certeauniana de leitura, o que de modo algum significa resumir à semelhança essas duas
figuras que em suas envergaduras intelectuais se admiravam mutuamente. Em A invenção do

164
DERRIDA, Jacques. (1993) Espectros de Marx: o estado da dívida, o trabalho do luto e a nova internacional.
Tradução de Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. p. 33.
165
Algumas indicações seminais sobre a “ética da leitura” em Derrida estão em GEOFFREY, Bennington.
Desconstrução e ética. In: DUQUE-ESTRADA, Paulo Cesar. (Org.) Desconstrução e Ética: ecos de Jacques
Derrida. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2004. p. 9-31.
267

Cotidiano, seu maior sucesso editorial, a operação de leitura como braconnage, caça furtiva
em território proibido, denuncia a assimilação da leitura à passividade, ao aprisionamento no
interior da “muralha da china que circunscreve um ‘próprio’ do texto”.166
A concepção de leitura de Certeau acentua as modificações insinuadas sobre o texto, a
inventividade do leitor, sua astucia. Seu tratamento sobre a “impertinência do leitor” tem um
tom mais acentuadamente sociológico do que poderia ser identificado na filosofia derridiana,
pois para Certeau a leitura está “na conjunção entre de uma estratificação social (das relações
de classe) e de relações poéticas (construção do texto por seus praticantes)”.167 De qualquer
maneira, ela guarda o paradoxo de uma impertinência ética análoga a que a “ética” derridiana
prevê:
Quer se trate do jornal ou de Proust, o texto só tem sentido por meio de seus
leitores; muda com eles; ordena-se segundo códigos de percepção que lhe
escapam. Torna-se texto somente em sua relação com a exterioridade do
leitor, por um jogo de implicações e de astúcias entre duas espécies de
“expectativa” combinadas: a que organiza um espaço legível (uma
literalidade) e a que organiza uma démarche necessária à efetuação da obra
(uma leitura).168

Não só a leitura é um jogo ético entre legibilidade do texto e “impertinência” do leitor,


como a leitura pode assumir a forma de um gesto espiritual. Para Certeau, Teresa de Ávila e
“outros mil autores espirituais” consideravam “a leitura uma oração”, “a descoberta de um
outro lugar onde articular o desejo”,169 “experiência inicial, até iniciática: ler é estar alhures,
em um outro mundo”.170 Além disso, o próprio jesuíta já havia designado a práxis cristã como
um modo de leitura, em seu artigo sobre a ruptura instauradora:
Essa conversão, aqui função de uma leitura, tornará possível a constituição
de outros textos. Assim se encontra colocado, do texto ao que ele supõe, e do
texto ao que ele abre, a relação entre dizer e fazer – ou entre o lugar e sua
superação crítica por invenções necessariamente diferentes. 171

166
“[...] muraille de Chine qui circonscrit un « propre » du texte”. CERTEAU, Michel de. (1980) L’invention du
quotidien: 1. Arts de faire. Nouvelle édition établie et présentée par Luce Giard. Paris: Gallimard, 2015. p. 247.
167
“[...] à la conjonction d’une stratification sociale (des rapports de classe) et d’opérations poétiques
(construction du texte par son pratiquant)”. Ibid., p. 249. Grifo do autor.
168
“Qu’il s’agisse du journal ou de Proust, le texte n'a de signification que par ses lecteurs; il change avec eux;
il s'ordonne selon des codes de perception qui lui échappent. Il ne devient texte que dans sa relation à
l'extériorité du lecteur, par un jeu d'implications et de ruses entre deux sortes d' « attente » combinées: celle qui
organise un espace lisible (une littéralité), et celle qui organise une démarche nécessaire à l'effectuation de
l'œuvre (une lecture)”. Ibid., p. 247. Grifo do autor.
169
“[...] Thérèsa d’Avila tenait la lecture pour une prière, la découverte d’un autre espace où articuler le désir.
Mille autres auteurs spirituels pensent de même, et l’enfant le sait déjà”. Id. (1980) L’invention du quotidien: 1.
Arts de faire. Nouvelle édition établie et présentée par Luce Giard. Paris: Gallimard, 2015. p. 331, nota 21.
170
“Expérience initiale, voire initiatique: lire, c’est être ailleurs, [...] dans un autre monde”. Ibid., p. 250.
171
“Cette conversion, ici fonction d'une lecture, rendra possible la constitution d'autres textes. Ainsi se trouve
posé, du texte à ce qu'il suppose, et du texte à ce qu'il ouvre, le rapport entre le dire et le faire – ou entre le lieu
268

É uma tal forma de herança, produzida na encruzilhada de uma ética e de uma poética,
que torna explicável a associação diferenciante por meio da qual Certeau buscou manter-se
espiritualmente ligado a Lubac.
Certeau escreve a Lubac em 23 de janeiro de 1972. O assunto era a notícia dada por
amigos em comum sobre que o teólogo dissera em Églises particulières dans l’Église
universelle. Certeau ainda não tinha lido o livro, pois nenhum exemplar chegara na Études,
mas confessava a Lubac que lamentaria caso fosse verdade o que lhe tinham noticiado: a
censura por ter traído seu pensamento. Apesar disso, ele manifesta sua gratidão e fidelidade
antes de finalizar declarando seus sentimentos fraternais ao padre.
Um argumento de Certeau contra a recriminação comentada merece destaque: “você
tinha estado bastante de acordo com o artigo que tinha feito sobre você na Revue d’Ascétique
et de Mystique”.172 Certeau evoca seu Exégèse, théologie et spiritualité, comentário dedicado
aos dois primeiros tomos de Exégèse médiévale em 1960. Ou seja, ele enxerga uma
equivalência entre o que dizia quase doze anos antes e em seu artigo sobre a ruptura
instauradora. Essa equivalência é o elo que justificaria sua interpretação sobre o quinto
capítulo de Exégèse médiévale na década seguinte.
Em Exégèse, théologie et spiritualité, a conversão do antigo em novo testamento
aparece de uma maneira que autoriza tratá-la como o critério da dialética (lê-se paradoxo)
entre o antes e depois, isto é, de uma teologia da história do pensamento teológico medieval.
Na exposição de Certeau sobre Lubac, a radical novidade do Cristo é ela própria a fonte para
a descoberta de uma unificação das oposições nas diferentes durações, para uma inteligência
cristã da história, “Fato único” (Fait unique) em que é ao mesmo tempo uma ruptura interna a
uma continuidade e a operação/manifestação da unidade. Nessa abordagem de Lubac, os fatos
da história expõem o sentido que os funda, neles revelados e a partir do qual pode-se
interpretá-los no horizonte de uma teologia da história.
Efetivamente, um conjunto de elementos atribuídos a Lubac nessa sua leitura são caros
a sua formulação posterior sobre a ruptura instauradora. Certos termos, tipos de relação e
intuições permanecem exercendo papel importante em sua própria interpretação. Poderíamos
ver a vinculação direta com o “Ato do Cristo” (l’Acte du Christ) na “práxis” (paxis), na
“ação” (action) ou no “ato” (acte) de Jesus. A dialética do antes e do depois encontra seu

et son dépassement critique par des inventions nécessairement différentes”. Id. La rupture instauratrice ou le
christianisme dans la culture contemporaine. Esprit, p. 1177-1214, juin 1971, p. 1212.
172
“[…] vous aviez été assez d’accord avec l’article que j’avais fait sur vous dans la RAM”. CERTEAU, Michel
de. Carta a Henri de Lubac, texto manuscrito, 23 de janeiro de 1972, caixa 34, Arquivo da Companhia de Jesus,
Vanves.
269

correspondente na articulação do passado e do presente que caracteriza a fé cristã. Ou ainda,


há uma certa cumplicidade do Certeau da ruptura instauradora com a afirmação de Lubac
sobre a articulação recíproca dos dois testamentos que o Certeau de outrora subscreveu: “A
Tradição cristã medita sobre isso há vinte séculos e não cessará de meditar. Ela não cessará de
encontrar nela, de época em época, um princípio de solução para os problemas mais atuais e
aparentemente mais inéditos.173 Não é o que Certeau busca fazer diante da crise de autoridade
que rebenta em seu tempo?
Todavia, essa “continuidade” carrega diferenças incontestáveis nesses dois artigos. O
ato do Cristo fornece um tipo específico de conversão e não mais o modelo da interpretação
alegórica do sentido dos fatos e das durações da história. Na passagem da dialética do antes e
do depois à articulação de “uma história presente e passada” (une histoire présente et passée)
ocorre uma inversão epistemológica por meio da qual esvai-se qualquer sentido teológico da
história, em um tempo em que “deixa-se de considerá-lo [o cristianismo] como uma série de
enunciados e de representações que introduzem realidades ‘profundas’ na linguagem, ou
como a soma de consequências a tirar de algumas ‘verdades’ recebidas”.174 Nesse sentido, a
meditação incessante da tradição sobre a conversão operada por Cristo torna-se uma
superação crítica a ser constantemente refeita em relação às tradições cristãs – com “t”
minúsculo e no plural.
Em grande medida, essas páginas respiram a feição historiadora de Certeau naquele
momento, em uma acepção que ainda caberá ser precisada. Por ora basta considerar que a
prática historiadora de Certeau esteve sob a mira da crítica de Lubac em seu Pic de
Mirandole: études et discussions.175 Lubac cita Histoire et structure, texto referente à
participação de Certeau em um debate organizado no Centre Catholique des Intellectuels
Français em 1969, no qual também marcaram presença Raoul Girardet e Pierre Nora. 176 Não
obstante a crítica de Lubac gire em torno da questão da decisão do historiador, demiurgo que

173
“La Tradition chrétienne le médite depuis vingt siècles, et ne cessera de le méditer. Elle ne cessera d'y
trouver, d'âge en âge, un principe de solution aux problèmes les plus actuels et apparemment les plus inédits”.
LUBAC apud CERTEAU, Michel de. Exégèse, théologie et spiritualité. Revue d’Ascétique et de Mystique, année
36, n. 143, p. 357-371, juil./sept. 1960, p. 371.
174
“[...] on cesse de l'envisager comme une série d'énoncés et de représentations introduisant des réalités «
profondes » dans le langage, ou comme la somme des conséquences à tirer de quelques « vérités » reçues”.
CERTEAU, Michel de. La rupture instauratrice ou le christianisme dans la culture contemporaine. Esprit, p.
1177-1214, juin 1971, p. 1199.
175
LUBAC, Henri de. Pic de Mirandole: études et discussions. Paris: Aubier-Montaigne, 1974. p. 125; 127.
176
CERTEAU, Michel de. Histoire et structure. Recherches et débats, n. 68, 1970, p. 167-174; p. 187-195. A
parte correspondente a Certeau foi reimpressa como sétimo capítulo em: CERTEAU, Michel de. (1987) Histoire
et psychanalyse: entre science et fiction. Nouvelle édition revue et augmenté. Paris: Gallimard, 2002.
270

“faz” a história – alusão ao artigo Faire de l’histoire na RSR177 –, o texto resultante do debate
contém um comentário autobiográfico sobre a distância em relação a sua perspectiva de
história em um primeiro momento de sua trajetória. Essa distância, já o vimos, está no cerne
da diferença em relação ao trabalho histórico-teológico de Lubac, isto é, a saída de cena da
teologia da história:
No decorrer desse trabalho [a história religiosa do século XVII], os cristãos
do século XVII se desvelaram como uma ilha que emerge do mar. Um país
diferente aparecia, lá onde eu menos esperava. Surpresa, pois o destino do
trabalho está necessariamente ligado aos lugares de onde se parte e ao que se
é. O que determina essa partida, digamos francamente, é uma busca de
identidade. Eu procurava, no século XVII, algo que eu presumia ser idêntico
ao que eu era, cristão do século XX.178
Portanto, há uma “continuidade” e uma diferença fundamental entre “primeiro”
Certeau/Lubac e o “segundo” Certeau. Ele reemprega certas referências a partir de uma lógica
historicamente circunscrita e as faz dizer coisas outras que não aquelas de antes. Portanto, o
que está em questão nessa associação diferenciante é uma operação de leitura por meio da
qual a reflexão teológica certeauniana pode fazer-se herdeira da teologia lubaciana sem abrir
mão de nela inscrever novos significados a partir do enfrentamento às demandas de um tempo
e da prática de outros procedimentos intelectivos, como é o caso de seu trabalho como
historiador da espiritualidade no século XVII.
A herança lubaciana pode ser vista no necrológico escrito por Certeau por encomenda
do Le monde.179 Lá aonde Lubac diz que “a união e a diferenciação são duas coisas que
crescem de mãos dadas”, o que tinha sido reverenciado por Certeau em sua literalidade em
duas ocasiões na primeira metade dos anos 1960, 180 será rasurado em seu elogio fúnebre ao
cardeal: “a união e a diferença são duas coisas que crescem de mãos dadas”.181 Proposital ou
não, essa inscrição alterante segue a mesma lógica por meio da qual a herança lubaciana é

177
Id. Faire de l’histoire. Recherches de Science Religieuse, t. 58, n. 4, p. 481-520, 1970.
178
“Au cours de ce travail, les chrétiens du XVIIe siècle se sont dévoilés comme une île sort de la mer. Un pays
différent apparaissait, là où je l'attendais le moins. Surprise, car la destination du travail est nécessairement liée
aux lieux d'où l'on part, à ce que l'on est. Ce qui détermine ce départ, c'est, disons-le franchement, une
recherche d'identité. Je partais chercher au XVIIe siècle quelque chose dont je présumais que c'était identique à
ce que j'étais, chrétien XXe siècle”. CERTEAU, Michel de. (1987) Histoire et psychanalyse: entre science et
fiction. Nouvelle édition revue et augmenté. Paris: Gallimard, 2002. p. 188.
179
O necrológico de Lubac foi publicado postumamente na edição do Le monde de 05 de setembro de 1991.
Versão consultada na Biblioteca Nacional da França.
180
“[...] l’union et la différenciation sont deux choses qui croissent de pair”. CERTEAU, Michel de. Un maître:
le père Henri de Lubac. Ecclesia, n. 187, p. 83-90, oct. 1964, p. 83; Id. Exégèse, théologie et spiritualité. Revue
d’Ascétique et de Mystique, année 36, n. 143, p. 357-371, juil./sept. 1960, p. 362; LUBAC, Henri de. Le mystère
du surnaturel. Recherches de science religieuse, t. 36, n. 1, p. 80-121, 1949, p. 87.
181
“[...] l’union et la différence sont deux choses qui croissent de pair”. CERTEAU, Michel de. La mort du
cardinal de Lubac. Le Monde, Paris, 5 sept. 1991, p. 14.
271

negociada com signos externos a ela e que remetem à outra ordem compreensiva e histórica
que as nutrem.
Embora haja efetivamente um distanciamento em relação à teologia lubaciana, mais do
que o próprio Certeau estava inicialmente disposto a aceitar, ele nunca deixou de reafirmar
sua fidelidade e gratidão a Lubac, mesmo depois deste rejeitar publicamente a filiação
declarada em La rupture instauratrice. Isso pode ser visto em suas cartas enviadas em 1972,
1975, 1983 e no necrológico escrito em homenagem a Lubac.
Mas o que isso quer dizer em termos espirituais? As seleções, negociações e
modificações operadas por Certeau já não o fazem interpretar o cristianismo diferentemente
de Lubac, como pode ser visto na “desteologização” da história em sua crítica à tradição, ao
concílio e à Igreja? Essa fidelidade pretendida por Certeau não deve ser pensada como o
respeito à “letra”, mas ao “espírito” segundo o qual poderiam estar unidos. Mesmo naquilo
em que suas interpretações diferiam, Certeau acreditava haver algo que poderia ligá-los. Ele
certa vez o declarou acerca de um livro não à toa sobre a história, campo em que estava
ancorada grande parte da divergência teológica entre os dois jesuítas:
Caro Padre, é com gratidão que vou enviar-lhe l’Écriture de l’histoire
(trabalho aqui durante três meses) [a carta foi enviada de Cambridge]. Sem
dúvida, você não reconhecerá nele o que escreveu em Histoire et esprit, um
livro que me marcou profundamente. Eu gostaria que você reconhecesse ao
menos a fidelidade a um espírito que trabalha na linguagem como sua
realidade e também minha recordação sempre agradecida. 182
Esse trabalho do espírito na linguagem tampouco é compreendido por ambos da
mesma maneira. Em Lubac, a dimensão do mistério não exclui a Igreja como corpo místico
do Cristo. Em Certeau, o Deus ausente também está presente nas vicissitudes da história, mas
inapreensível pelas sucessivas escrituras e pelos discursos teológicos que permitiu. A
experiência espiritual é vista como um trabalho do desejo, uma espera atenta, uma relação
mística com um Outro que sempre falta.183
A defesa de um outro modo de viver a fé na presença escondida e de pertencer à
comunidade cristã afastou Certeau daquele que era para ele uma espécie de “modelo”
espiritual, mas a fidelidade de ambos a esse Outro é o que Certeau cria poder associá-lo a

182
“Chère Père, c’est par gratitude que je vous fais envoyer l’Écriture de l’histoire (je travaille ici pour trois
mois). Sans doute n’y reconnaîtrez-vous pas ce que vous avez écrit dans Histoire et Esprit, un livre qui m’a
profondément marqué. Je voudrais que vous reconnaîtriez au moins la fidélité à un esprit qui travaille dans le
langage comme sa réalité, et aussi mon souvenir toujours reconnaissant”. CERTEAU, Michel de. Carta a Henri
de Lubac, texto manuscrito, 5 de maio de 1975, caixa 34, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves. Grifo nosso.
183
Cf. Id. L’expérience spirituelle. Christus, t. 17, n. 68, p. 488-498, oct. 1970; Id. L'espace du désir ou le «
fondement » des Exercices spirituels. Christus, t. 20, n. 77, p. 118-128, janv. 1973.
272

Lubac mesmo ali onde as interpretações dos dois jesuítas, movidas por esse mesmo desejo,
não se reconheciam.
O convite à releitura do quinto capítulo de Exégèse médiévale, a reinterpretação de
elementos teológicos lubacianos enquanto ruptura instauradora, a constante reafirmação de
sua gratidão e a rasura da diferenciação como diferença são variações de uma oração dedicada
ao padre Lubac, uma oração proclamada por meio de uma enunciação produzida na fronteira
tênue entre uma ética e uma poética – o “respeito” ao texto é também sua modificação – e que
faz da fidelidade uma herança espiritual, abrindo a letra a um “espírito” fundado sobre uma
falta radical constituinte do ato de crer.
Nesse sentido, a herança lubaciana está encorada na prática paradoxal de uma
operação de leitura não cristã como instrumento de vinculação espiritual cristã, diferença da
letra como união em espírito, ruptura instauradora de uma conversão na qual o que a permite
lhe falta, gesto teológico que insinua uma marca espiritual sobre o corpo outro do texto,
maneira certeauniana de manter-se “fiel” às suas origens religiosas e às urgências de seu
tempo.
273

Capítulo V
O momento histórico da teologia

A profusão de novas experiências, a ambiguidade dos pertencimentos


institucionais/intelectuais e a efetivação da mudança na maneira de pensar o cristianismo
caracterizaram o percurso de Michel de Certeau na segunda metade dos anos 1960. Esse
intelectual católico inquieto começava a especificar um tipo diferente de relação entre a
teologia e a história. Essa outra posição acerca da cultura religiosa, o aparecimento dessa nova
forma de relação e suas variações nos anos seguintes é o que denomino momento histórico da
teologia na trajetória intelectual do jesuíta.
Essa modalidade histórica de pensar a teologia não significou reduzi-la a maneira
como os historiadores abordam a produção das ideias e as experiências religiosas. Não foi a
ocasião da substituição de uma teologia da história por uma história da teologia, mas da
emergência historicamente pensada (o olhar do historiador) de gestos não históricos (uma
particularidade teológica) no tratamento de temas religiosos. O estudo dessa mudança passou
pelas noções de tradição fraturada, de postulado histórico, de gesto teológico e de
docilidade/audácia.
Após essas modificações, Certeau denunciou explicitamente o laço entre erudição e
apologia religiosa em seus estudos históricos sobre os séculos XVI e XVII. Semelhante
constatação transforma a prática historiadora ela mesma em problema a ser examinado.
Certeau buscava encontrar alternativas aos embaraços e dificuldades do tratamento das
doutrinas e experiências religiosas passadas, sobretudo em função da situação epistemológica
na qual a religião não é mais reconhecida como o princípio de inteligibilidade. Certeau
agencia recursos apreendidos em seu universo intelectual e os elabora sob a forma singular de
uma teoria heterológica da história.
Como consequência do olhar histórico, da abertura epistemológica e da perspectiva
heterológica, a história não pode mais ser o que a teologia pensa. Esta não é mais capaz de
dizer o sentido necessário das contingências ou de fazer passar por evidente e universal o que
hoje é signo de um grupo particular. Inversamente, a história (a realidade histórica) torna-se o
pensável da teologia. A historicidade, a inteligibilidade e a credibilidade aparecem como
eixos de uma operação teológica possível na contemporaneidade. Isto é, elas fornecem à
teologia uma pensabilidade que a faz historicamente viável no seio de uma sociedade não
religiosa na qual o cristianismo não possui mais a prerrogativa de anunciar a verdade.
274

Isso não teria significado o apagamento da diferença da teologia na imanência


histórica e científica da atualidade? Ao contrário, os desafios postos por essa pensabilidade
histórica serão o pressuposto necessário para a existência de uma articulação particularmente
teológica. Sem poder fornecer um corpo científico, doutrinal ou conceitual determinado por si
mesma, os fatores externos que a limitam e lhe fornecem os contornos práticos serão
empregados como forma de instaurar uma operação singularidade cristã. Esse procedimento
tem por efeito um conjunto de gestos teológicos insinuados sobre o plano do pensável.
Além dessa gestualidade teológica fabricada por Certeau, outro efeito da mudança na
relação entre teologia e história que merece destaque se encontra em seu trabalho como
historiador. O desejo de presença do passado e de Deus marava seus primeiros escritos sobre
as doutrinas místicas do século XVI e XVII. Certeau retoma um artigo dessa época como
capítulo de seu livro sobre a fábula mística, no início dos anos 1980. A motivação espiritual
em sua viagem ao passado aparece vividamente nesse reemprego, mas o princípio teológico
ali encontrado já não postula uma presença mística na história. É uma ferida gerada pela
constatação da ausência de Deus que marca espiritualmente a abordagem historiadora de
Certeau. Sem qualquer presença garantida, cabe à história a tarefa do luto do discurso de
efetividade da espiritualidade. Esse luto da teologia em seu sentido tradicional é a forma
historiográfica da inversão produzida no segundo momento da trajetória intelectual de Michel
de Certeau.

5.1 O que Certeau fez da história

A segunda metade dos anos 1960 marcou um ponto de inflexão na relação de Certeau
com a pesquisa histórica. A pertinência teórica da história não está mais somente em seu valor
crítico para a teologia. A prática historiadora foi ela mesma convertida em problema. Esse
alvorecer epistemológico mobilizou a linguagem de uma época e lhe acrescentou uma teoria
original.
A reflexão epistemológica sobre a história tem como ponto de partida o
reconhecimento da insuficiência da erudição, modelo de trabalho que havia determinado sua
atuação no campo da história. Esse tipo de investigação foi determinada por uma busca de
identidade cristã, “apologia” religiosa denunciada por Certeau e cuja constituição esta tese
tratou sob a égide da teologia da história.
Em contraposição às deficiências da pesquisa erudita, ganha espessura a defesa do
valor científico da noção de “estrutura”. A leitura da relação entre história e estrutura
275

estabelece ao menos três grandes direções, concentradas em torno do diálogo com a


arqueologia, a etnologia e a psicanálise.
Destaca-se o diálogo com a arqueologia de Michel Foucault no que diz respeito à
apreciação e tratamento de estruturas históricas. Por meio de suas leituras da obra do filósofo,
também aprofundou a crítica sobre a ideia de progresso contínuo, elevando a descontinuidade
e a morte à categoria de princípio epistemológico da contemporaneidade.
Certeau dedicou sua atenção ao problema da diferença do passado frente às
expectativas do presente. A etnologia e especialmente o trabalho de Claude Lévi-Strauss
forneceram recursos importantes à tarefa. A diversidade das culturas impedia uma estrutura
atribuída a um grupo/tempo ser retomada como significante de um significado externo e total,
cujo grupo particular do observador seria o portador. Isso correspondeu à heterogeneidade
como postulado da situação epistemológica atual.
O interesse da psicanálise para o historiador estava diretamente atrelada a tais
premissas teóricas, pois o jesuíta se insurgiu contra o olhar atemporal sobre a realidade no uso
dos conceitos psicanalíticos. Sua inclinação à obra de Freud não era guiada pela necessidade
de reestabelecimento de uma continuidade superadora dos cortes entre blocos históricos
distintos. Ele não supunha a existência historicamente generalizável do inconsciente como
uma espécie de realidade profunda. A relação entre passado e presente tipicamente freudiana
que o interessava era a do retorno da alteridade recalcada.
Ao tratar a centralidade do “estruturalismo” e os diálogos estabelecidos em torno de
suas possibilidades e limites, já ensaio uma primeira resposta à pergunta “o que Certeau fez
da história?”, para fazer alusão ao título de um de seus textos sobre Freud. 1 O envolvimento
de Certeau com esses domínios opera coletas, deslocamentos e suplementações cujos
resultados serão caros às suas intuições teóricas. A caça por princípios de inteligibilidade
próprios à epistemologia contemporânea foi um traço particular da caligrafia certeauniana na
escrita sobre essas disciplinas. Com essa produção de alternativas às limitações
diagnosticadas em seu trabalho anterior, ele fez da história uma operação fundada sobre um
tipo de compreensibilidade na qual a diferença é o postulado, desenhando os contornos para o
que sua teoria da história daria espessura nos anos 1970.
Não uso o termo “teoria” para designar a produção deliberada de um corpo de
conceitos interdependentes e intercalados em prol de uma tese maior. Apesar de não haver

1
CERTEAU, Michel de. Ce que Freud fait de l'histoire. À propos de: «une névrose démoniaque au XVII e
siècle». Annales ESC, anné 25, n. 3, p. 654-667, 1970. Republicado como capítulo VIII em: Id. (1975) L’écriture
de l’histoire. Paris: Gallimard, 2011.
276

uma intencionalidade sistematizante nesses artigos e capítulos produzidos majoritariamente na


primeira metade da década de 1970, certamente há preocupações, orientações e argumentos
comuns, tácitos ou não. Quando Certeau trata do fazer história, do ausente da história, da
operação historiográfica ou da relação entre história e ficção, premissas teóricas vão sendo
retomadas, nuançadas e aprofundadas. Essa relativa coerência implícita que tenho em vista ao
falar da “teoria” certeauniana da história.
Longe de pretender esgotar suas possibilidades teóricas, proponho tratar um aspecto
regular que em uma de suas variadas ocorrências levou Certeau a nomear a história como
“heterologia”, isto é, como logos do outro. A noção heterológica da história toma o passado
ausente como seu motivo e organiza o trabalho do historiador em torno dessa presença
faltante. Mas o que significa falar em nome de uma outro tão necessário quanto inacessível?
Certeau pensou essa dinâmica entre a diferença do passado e a “identidade” do discurso
histórico do presente sob a modalidade de uma alteridade alterante. Vejamos os caminhos
trilhados para que a história tornada problema rumasse nessa direção que levou Certeau a
fazer dela uma heterologia.
O deslocamento em sua maneira de compreender o trabalho do historiador se
anunciava em um curso intitulado Langages de la foi: christianisme et histoire, ministrado no
Institut de Science et de Théologie des Religions do Institut Catholique de Paris em
1967/1968.2 Naquela ocasião, ele ponderava sobre a mudança de perspectiva no decorrer de
suas investigações sobre a história religiosa do século XVII e indicava um problema de ordem
epistemológica que se tornava central em sua atuação intelectual.
Certeau reconhece um desejo de identidade como aquilo que havia guiado suas
incursões na pesquisa histórica sobre os cristãos do século XVII. Essa “nostalgia ainda cega”
(nostalgie encore aveugle), “apologética inconsciente e pessoal” (apologétique inconsciente
et personnelle), postulava uma problemática “catolicidade” (catholicité). Tal era
o caráter ilusório da “verdade” que eu tinha investido em meus trabalhos
quando eu supunha, entre o passado e o presente, compromissos de
identidade e, sob a forma de palavras, ideias, dogmas ou instituições, uma
geografia de lugares comuns pontuando a diversidade da história. 3
Para a surpresa do jesuíta, ele aos poucos viu emergir uma diferença irredutível nessa
região do passado onde buscava determinar algo comum. Ao intentar detectar uma constante

2
CERTEAU, Michel de. Langages de la foi: christianisme et histoire, texto datilografado, 1967-1968, caixa 5,
Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.
3
“[...] le caractère illusoire de la ‘vérité’ que j’avais investie dans mes travaux lorsque je supposais, entre le
passé et le présent, des rendez-vous de l’identité et, sous la forme de mots, d’idées, de dogmes ou d’institutions,
une géographie de lieux communs ponctuant la diversité de l’histoire”. Ibid., p. 2-3.
277

na diversidade temporal e espacial da história, ele testemunhava afastar-se esse mundo que
acreditava ser próximo. Quanto mais “íntimo” ficava desses cristãos do século XVII, mais
eles se tornavam estrangeiros para ele.
Esse mal-estar estava ligado a uma mudança na modalidade de sua compreensão da
história. A busca de identidade estava associada ao seu trabalho de exumação do passado nos
documentos encontrados nos arquivos e bibliotecas que frequentou por anos a fio. Eis o que
ele considerava ter sido: “um erudito, ainda não um historiador”.4
Essa afirmação não significa que ele deixava de considerar a erudição como uma
forma de método histórico. Em outros escritos, ele falará em história erudita e indicará esse
tipo particular de relação com o real como uma das formas resultantes da historicidade da
ciência histórica.
O que isso quer dizer então? Enquanto erudito, ele não era historiador no sentido que
ele começava a conferir a esse domínio do saber, isto é, um trabalho ligado a uma ausência:
“Passei assim entre os mortos, roubando-lhes palavras que eu não sabia falar. Mas para dizer
o quê? Repeti-me na linguagem deles, o que só me ensinou sua ausência”.5
Esse ausente da história do qual Certeau teorizará em outros textos foi primeiramente
percebido nessa constatação da inadequação do passado em relação ao que desejava nele
encontrar. Esse problema não é alheio à constatação do papel da subjetividade do historiador
nos limites da objetividade do conhecimento histórico, como a filosofia crítica da história
havia colocado em evidência, a exemplo de Raymond Aron e Henri-Irénée Marrou.6
Contudo, o que estava em jogo nessa autorreflexão sobre a história e a fé era mais
precisamente a experiência histórica do historiador. Isso pode ser dito, pois em Certeau essa
surpresa da diferença emergia no espaço de tensão entre o que pode ser designado como uma
“morte” (algo passou) e como um “nascimento” (velo esse morto, logo existo): “no momento
em que [os cristãos do século XVII] me escapavam, eles tornavam-se verdadeiramente mortos
para mim: um passado outro. Eles tinham habitado um outro mundo. Eu me descobria
diferente (isso significava sem dúvida: vivo) constatando sua diferença”.7

4
“un érudit, pas encore un historien”. CERTEAU, Michel de. Langages de la foi: christianisme et histoire, texto
datilografado, 1967-1968, caixa 5, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves, p. 2.
5
“Je passais ainsi parmi les morts en leur volant des mots que je ne savais pas parler. Mais pour dire quoi? Je
me répétais dans leur langage, qui ne m’apprenait que leur absence”. Ibid., p. 2
6
Cf. ARON, Raymond. (1938) Introduction à la philosophie de l’histoire: essai sur les limites de l’objectivité
historique. Nouvelle édition revue et annotée par Sylvie Mesure. Paris: Gallimard, 1986. MARROU, Henri-
Irénée. (1954) Do conhecimento histórico. Tradução de Ruy Belo. Lisboa: Editorial Aster, 1976. A fé histórica
(1959), primeira parte do apêndice, intitulado Resposta às objeções, indica como o debate sobre a subjetividade
do historiador era expressivo na segunda metade dos anos 1950.
7
“[...] au moment où ils m’échappaient, ils me devenaient vraiment des morts: un passé autre. Ils avaient habité
un autre monde. Je me découvrais différent (cela signifiait sans doute: vivant) en constatant leur différence”.
278

Essa distância entre dois mundos precipitou um novo tipo de análise do passado e do
presente, quer dizer, uma nova forma de investigação em história e em etnologia, os dois
principais campos aos quais ele identificará seu trabalho como pesquisador e como cristão.
Certeau passava a testar mais diretamente um novo “modelo” epistemológico:
Assim, a questão que nascia opunha à segurança de uma continuidade da fé
(através de uma tradição, de um desenvolvimento, etc.), a hipótese (que se
tornou condição de pesquisa) de estruturas transversais, épocas mentais
seccionando em pedaços esse belo desenvolvimento e exigindo que cada um
deles fosse integrado nas totalidades culturais das quais fazia parte. 8
Essa dimensão “estrutural” da pesquisa ampara uma nova condição de ordem
epistemológica, pois pressupõe que seus objetos (palavras, ideias, doutrinas, instituições, etc.)
são vividos, sentidos e pensados segundo critérios heterogêneos. Isso se aplica para os
recortes espaço-temporais que ambientam os temas que o historiador estuda, mas também
para os problemas, os instrumentos e a linguagem próprios à sua aproximação com esses
temas. Dessa maneira, a atenção à noção operatória de “estrutura” e a reflexão teórica sobre a
história são indissociáveis, pois os princípios de inteligibilidade de uma sociedade
determinam a maneira como ela pensa cientificamente a si mesma e a seu outro.
A relevância da noção de estrutura já ganhava espessura na reorientação editorial da
Christus, principalmente no momento em que se tornava inviável para seus diretores manter
uma linha explicitamente inaciana sem submeter ideologicamente a particularidade das
urgências humanas do presente a uma identidade que as antecederia. Essa radicalização do
projeto da Christus em 1966 dará lugar à sua participação na Études, o que favorecerá sua
aproximação com o estruturalismo.
Em um país fraturado pelo maio de 1968, o debate já corrente na intelectualidade
francesa sobre o estruturalismo ganhará novo impulso crítico. Estão na ordem do dia as
discussões sobre as possibilidades e os limites do estrutural, as determinações do nível
sincrônico impostas à interpretação do nível diacrônico, os tipos de relação entre a estrutura e
a mudança, sob diversas formas a depender dos interesses disciplinares específicos (história,
revolução, diferença, singularidade, etc.).
Lévi-Strauss, Lacan, Althusser, Barthes, Greimas, Foucault, Derrida, Deleuze,
Guattari, Lyotard, são muitos os exemplos que, variando em níveis de

CERTEAU, Michel de. Langages de la foi: christianisme et histoire, texto datilografado, 1967-1968, caixa 5,
Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves, p. 2.
8
“La question qui venait ainsi opposait donc, à l’assurance d’une continuité de la foi (à travers une tradition, un
développement, etc.), l’hypothèse (devenue une condition de la recherche) de structurations transversales,
époques mentales sectionnant en morceaux ce beau développement et exigeant que chacun d’eux fût intégré dans
les totalités culturelles dont il faisait partie”. Ibid., p. 3.
279

adesão/revisão/crítica/rejeição, comprovam como o estruturalismo era um problema comum


reconhecido nas diferentes linguagens de uma época. Certeau fazia parte desse tempo,
articulou alguns de seus signos e forneceu uma resposta particular ao problema geral em
questão.
Sua linguagem era a da pesquisa histórica sobre a espiritualidade no século XVII e a
da experiência de pertencimento à Companhia de Jesus no século XX. Quanto à história,
inseparável do tratamento conferido a seus textos com tonalidade mais espiritual, o interesse
pela “estrutura” vai coletando diferentes interpretações que de algum modo o auxiliam a tratar
questões de seu interesse: a constituição histórica da espiritualidade, sua participação em
conjuntos mentais mais amplos e sua particularidade quando consideradas essas conjunturas
históricas.
Essas leituras também o permitiam pensar a “ordem” social e cultural do século XVII.
A esse respeito, aparecem menções às obras de Claude Lévi-Strauss, Alphonse Dupront,
Roland Mousnier, Robert Mandrou, Alexandre Koyré, Michel Foucault, dentre outros. 9
Desses, sem dúvida Foucault foi um de seus interlocutores privilegiados.
O diálogo com a obra de Foucault aparecia em um texto na Études em 1967,
envolvendo o essencial do que o filósofo havia publicado até então, mas debruçando-se
particularmente sobre a análise de seu recente Les mots et les choses.10 Nesse comentário, o
elo entre história, estrutura e epistemologia aparece fortemente atrelado ao modo como se
aproxima criticamente da obra de Foucault. Destacarei três linhas de questões tratadas e em
que medida são relevantes para o destino intelectual de Certeau: o método, a filosofia e a
historicidade da arqueologia foucaultiana.
Quanto ao método, citando o próprio Foucault em Naissance de la clinique (1963),
tratava-se de uma “análise estrutural” (analyse structurale) centrada na relação entre
enunciados contemporâneos diferentes. Ao invés do comentário que identifica intenções,
restos não formulados e influências entre pensamentos, tomava-se a diferença como o
elemento privilegiado para o estabelecimento de articulações entre textos, proposições e
instituições que permitissem encontrar uma “organização do sentido” (organisation du sens),
fazendo aparecer um nível estrutural.
Sobre Histoire de la folie à l’âge classique (1961), Certeau notava que essa análise
propiciara a Foucault constatar em um sistema de contradições a referência a uma coerência
velada, convergindo para uma “estrutura histórica” (structure historique), ou seja, para o que

9
Ver as partes I e II de: CERTEAU, Michel de. Cultures et spiritualités. Concilium, n. 19, p. 7-25, nov. 1966.
10
Id. Les sciences humaines et la mort de l’homme. Études, t. 326, p. 344-360, mars 1967.
280

determinava as experiências que uma cultura podia fazer da loucura. Esse procedimento
permite apreender uma coerência, mas também a ruptura brusca entre estruturas históricas
consecutivas, evidenciando a descontinuidade entre blocos mentais distintos.
Les mots et les choses (1966) amplia esse procedimento exposto nos dois livros
anteriores – considerados superiores por Certeau. Para o comentador, a abordagem dessa obra
não foi suficientemente esclarecida, falha da qual Foucault parecia estar consciente, uma vez
que ele prometera uma obra posterior dedicada aos problemas de método suscitados pela
arqueologia aí empreendida – promessa cumprida em L'archéologie du savoir (1969).
Foucault discerne uma “base epistemológica”11 que torna os pensamentos possíveis,
uma coerência implícita como condição e princípio organizador de uma cultura, uma ordem
existente entre as múltiplas doutrinas, experiências e instituições de um tempo. Esse “campo
epistemológico’” («champ épistémologique») – uma “épistémè” – não é ele próprio imutável.
A análise de Foucault desvenda um começo e um fim para esse conjunto de regras invisíveis,
o nascer e o morrer de uma ordem entre as coisas que é a garantia da positividade de um
período.
Portanto, esse método é inseparável de uma filosofia. A demonstração histórica da
superação entre sistemas sucessivos traz em seu bojo o estudo das condições de possibilidade
da própria história. Foucault fala em a priori histórico, ou seja, ao invés de condições de
validade imutáveis para o pensamento verdadeiro, as condições mutáveis para a existência de
pensamentos historicamente situados. Contudo, essa crítica inaugurada pela arqueologia
foucaultiana parece postular ao mesmo tempo a épistémè como sistema sucessor/sucedido e
como condição não histórica da história, em duas direções identificáveis no comentário de
Certeau.
O a priori não escapa ele próprio à historicidade, mas por outro lado a modificação
historicamente demarcável enquanto emergência de uma nova condição de possibilidade é
abrupta, subtaneidade na qual insiste o próprio Foucault. Dessa modificação há apenas sinais
precursores ou consequências, permanecendo ela inexplicável. Certeau designa essa falha
como “acontecimento”, noção que ele mesmo viria explorar acerca do maio de 1968, das
possessões demoníacas das ursulinas no século XVII e do significado de Cristo na
interpretação espiritual no presente.

11
« Socle épistémologique » no original. O termo “socle” designa a base de sustentação de uma coluna, pedestal
ou estátua. Em português, pode ser traduzido por “plinto”. Também é dicionarizado, embora pouco frequente, o
vocábulo “soclo”. Foi adotada a tradução “base”, palavra mais corrente na língua portuguesa e que transmite a
mesma ideia de superfície de sustentação denotada na palavra francesa em questão.
281

Além disso, Foucault toma todas heteronomias da história como relatos do seu
pensamento sem se situar ele próprio em parte alguma – qual a relação de seu projeto e de sua
particularidade? quem fala e de onde fala? Foucault estabelece o limite que atinge as regiões
da razão humana, sem circunscrever os limites de suas próprias afirmações – quais são seus
compromissos? Sem tomar o remédio que ele próprio receita ao passado, as rupturas que ele
habilmente expõe podem ser superadas por um olhar universal.
Uma consequência importante dessa abordagem histórico-filosófica ocorre no plano
da epistemologia. Foucault discerne alianças distintas e sucessivas entre as palavras e as
coisas, diferentes combinações do dizer e do ver, vínculos cambiantes da linguagem com o
real. Ao fazê-lo, desmistifica o evolucionismo ingênuo das ideias, coloca em xeque o
progresso contínuo no qual as ilusões do passado seriam superadas na lucidez do presente,
questiona a crescente perfeição do conhecimento, sua interpretação englobante e unitária, em
suma, a pretensa objetividade da ciência. Por meio das descontinuidades constitutivas de sua
história, a marcha da razão é colocada em causa.
A não garantia de uma época ser a verdade da anterior coloca a morte no interior de
suas obras arqueológicas, mas sobretudo em seus escritos sobre a literatura, como seu livro
sobre Raymond Roussel e seu artigo sobre Maurice Blanchot. Ao questionar o progresso
contínuo, Foucault explicita a falha interna no solo das seguranças científicas, a “face noturna
da realidade”,12 o “sol negro confinado na linguagem”.13
A morte jamais é localizável, não é um fenômeno histórico, embora perceptível nas
organizações temporárias das palavras e das coisas. As tentativas históricas de situar a morte
como um problema externo, supostamente localizável em um outro que põe em risco uma
ordem interna, não escapam ao fato de que a alteridade sempre reaparece na linguagem –
Certeau fará uma análise sobre essa localização e alteração da linguagem no caso histórico
das possessões demoníacas de Loudun no século XVII.
Se cada sistema encontra sua ruína na ilusão de ter superado a perigosa diferença que
o remete ao seu próprio limite, o que a ontologia da literatura e a arqueologia foucaultiana
alertam a Certeau é a necessidade atual de conhecimentos positivos serem formulados em
função dessa negatividade da linguagem e dos desmoronamentos de sistemas sucessivos.
Esse desdobramento aponta para o terceiro e último aspecto da leitura de Certeau
sobre Foucault a ser destacado, a historicidade e a atualidade de seu projeto histórico e

12
“[...] face nocturne de la réalité”. CERTEAU, Michel de. Les sciences humaines et la mort de l’homme.
Études, t. 326, p. 344-360, mars 1967, p. 347.
13
“[...] noir soleil enfermé dans le langage”. Ibid., p. 347.
282

filosófico. Para Certeau, Foucault “elabora seu pensamento no clima de uma coexistência
entre culturas heterogêneas ou entre experiências irredutivelmente isoladas”. 14 Sua
arqueologia remete a uma “situação global da consciência”15 na qual há o deslocamento da
noção moderna de progresso para a ênfase na descontinuidade entre blocos mentais distintos.
Esse pensamento original, ainda em busca de si mesmo, mais do que explicar, pressente uma
interrogação que Certeau considera “hoje essencial a qualquer pensamento”. 16 Para o jesuíta,
essa questão filosófica é da possibilidade da verdade.
Decerto, a arqueologia não pretende estabelecer uma epistemologia, no sentido de uma
história filosófica das ciências ou de uma teoria geral do conhecimento. Certeau sabia bem
disso. Mas ela desnaturaliza o solo sob o qual antes supunha estar fundado o pensamento, faz
da descontinuidade e da linguagem os marcos de um novo risco para o pensamento.
Desse modo, a filosofia foucaultiana possui uma pertinência “epistemológica” à
medida que Certeau estará cada vez mais interessado em tomar para si o problema pressentido
por Foucault, ou seja, o das condições nas quais é possível pensar na atualidade. A reflexão
sobre os princípios de inteligibilidade na contemporaneidade é a tarefa epistemológica que o
filósofo lhe abre, questão mais propriamente certeauniana que foucaultiana – essa “abertura” é
igualmente dependente das resistências do passado com a qual havia se deparado em seu
trabalho como historiador e da irredutível diferença do presente, encontrada em sua
experiência como religioso.
Diante desse panorama já é possível formular algumas indicações mais precisas acerca
da herança do trabalho do filósofo para o jesuíta. Como o próprio Certeau diria sobre sua
maneira de se relacionar com textos de outros autores, acertadamente se considerarmos a
materialidade de seus escritos dessa época, ele “privilegia a troca de questões mais que a
verificação de respostas”.17 Como anotações à margem de um livro, seus comentários são
dialógicos, relacionais, “efeitos de uma dívida, mas para produzir um desvio”. 18 Essas leituras
“se realizam em uma vizinhança de onde nasce sua diferença”, 19 dão espaço a uma “alteração
mútua efetuada objetivamente por uma operação”.20

14
“[...] élabore sa pensée dans le climat d’une coexistence entre des cultures hétérogènes ou entre des
expériences irréductiblement isolées [...]”. CERTEAU, Michel de. Les sciences humaines et la mort de l’homme.
Études, t. 326, p. 344-360, mars 1967, p. 350.
15
“[...] situation globale de la conscience”. Ibid., p. 350.
16
“[...] aujourd’hui essentielle à toute pensée”. Ibid., p. 345.
17
“[...] privilégie l’échange des questions plutôt que la vérification de réponses”. Id. L’absent de l’histoire.
Paris: Repères/Mame, 1973. p. 8.
18
“ [...] les effets d’une dette, mais pour produire un écart”. Ibid., p. 8.
19
“Ils se tiennent dans un voisinage d’où nait leur différence”. Ibid., p. 8.
20
“[...] altération mutuelle qu’effectue objectivement une opération”. Ibid., p. 172. Grifo do autor.
283

Penso ser Histoire de la folie à l’âge classique o livro de Foucault mais importante
para Certeau em termos de método histórico. Isso pode ser argumentado tomando a leitura
dessa obra em seu artigo na Études e a designação arqueológica que ele dará ao seu próprio
trabalho em L’écriture de l’histoire.
No artigo na Études, Certeau trata a arqueologia não apenas a partir das
descontinuidades entre diferentes estruturas históricas, mas também da continuidade entre
blocos distintos. Segundo ele, Foucault soube averiguar o que persiste mesmo onde era
afirmada a ruptura, ainda que essas continuidades sejam movidas pelo equívoco. Conforme
pensa Certeau, a história da loucura identifica uma permanência de superfície, à revelia dos
deslizes do subsolo, por exemplo a reincidência do termo “louco” nos séculos XVII, XVII e
XIX, sem que façam referência à mesma coisa. Certeau interpreta outros tipos de
continuidade, sendo todos os exemplos para tal extraídos de Histoire de la folie.
Sobre essa direção tomada por Certeau na parte Les équivoques de la continuité:
«L’archéologie», cabe perguntar se essa continuidade interpretada em exemplos extraídos do
livro de Foucault não é mais relevante para o comentador que para o filósofo comentado. Não
que ela seja inexistente no livro de Foucault, mas suas publicações arqueológicas seguintes
deixarão de supor tais condições antecedentes como visto no livro de 1961. 21 Isso apenas
reforça a hipótese da relevância metodológica desse livro para a interação de Certeau com a
arqueologia, pois esse ponto era algo que o jesuíta dava importância no momento em que esse
tipo de interpretação desapareceria nos livros de Foucault.
Por volta da mesma época, o sacerdote afirmava sua preocupação com as
ressignificações da tradição cristã em contextos culturais descontínuos. No próprio
comentário sobre Foucault ele assemelha isso que acontece na medicina à exegese e à teologia
na época clássica, nas quais ocorria a tentativa de conservação de certos elementos advindos
de outro universo mental, embora já funcionando de outra maneira em uma estrutura
diferente.
Essa continuidade é ainda pensada de maneira mais explicitamente independente da
obra de Foucault quando Certeau avança em algumas conclusões dessa questão para o
presente. O jesuíta já demonstrava uma preocupação similar àquela vista em sua leitura do
maio de 1968, desdobrada no desenvolvimento de sua teoria cultual na década seguinte: na
homogeneidade de uma estrutura, a insinuação de uma diferença; na uniformidade de uma
linguagem, a abertura das vias de um outro. Assim, o confronto entre continuidade e

21
Roberto Machado notou essa particularidade da História da loucura em relação a seus outros livros
arqueológicos. MACHADO, Roberto. Foucault, a filosofia e a literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 2000. p. 18-20.
284

descontinuidade encontra-se não somente nas rupturas que levam os sistemas a oscilar, mas
também nas próprias coerências que tendem a reprimir as alterações internas:
Há continuidade e descontinuidade, ambas enganosas, porque sobre o “modo
de ser da ordem” que lhe é próprio, cada tempo epistemológico traz em si
uma alteridade que toda representação busca reabsorver, objetivando-a, mas
sem nunca poder sufocar seu obscuro trabalho, nem se prevenir contra seu
veneno mortal.22
A acepção que ele confere à arqueologia em L’écriture de l’histoire também é adepta
da contribuição de Foucault em Histoire de la folie, mas intimamente associada a uma
pertinência teórica do olhar psicanalítico mais característica da interpretação certeauniana que
foucaultiana:
A arqueologia era o modo através do qual eu buscava precisar o retorno de
um “recalcado”, um sistema de Escrituras da qual a modernidade fez um
ausente, mas sem poder eliminá-lo. Essa “análise” permitia ao mesmo tempo
reconhecer, no trabalho presente, um “trabalho passado, acumulado” e ainda
determinante. Sob essa forma, que fazia aparecer, no sistema de práticas,
continuidades e distorções, eu fazia também minha própria análise. 23
Essa é a linha na qual Certeau entenderá o trabalho arqueológico por meio do qual
lidou com a ausência do passado e com a inexistência da continuidade como ele antes
supunha, dilemas aos quais chegou por meio de sua prática da história religiosa. A relação
entre a arqueologia e a história religiosa tem sua aparição mais evidente na segunda parte de
L’écriture de l’histoire, intitulado Production du temps: une archéologie religieuse. Nesse
estudo, a perspectiva arqueológica como método histórico para a investigação das práticas
religiosas nos séculos XVII e XVIII apresenta-se à maneira do “trabalho sobre o limite”
(travail sur la limite) que havia indicado como conceito operatório, em referência ao Foucault
de L’archéologie du savoir.24 Contudo, mesmo nesse caso, Certeau permanece interessado em
pensar a passagem entre níveis estruturais sucessivos articuladamente à diferença produzida
internamente à ordem antecedente:
Uma outra combinação social de sistemas distintos, ao mesmo tempo que
um outro modo do pensável, insinua-se, pouco a pouco, no elemento ainda

22
“Il y a continuité et discontinuité, toutes deux trompeuses, parce que, sur le « mode d'être de l'ordre » qui lui
est propre, chaque temps épistémologique porte en soi une altérité que toute représentation cherche à résorber
en l'objectivant, mais sans jamais pouvoir en étouffer l'obscur travail, ni en prévenir le poison mortel”.
CERTEAU, Michel de. Les sciences humaines et la mort de l’homme. Études, t. 326, p. 344-360, mars 1967, p.
357. Grifo do autor.
23
“L'archéologie m'était le mode sur lequel je cherchais à préciser le retour d'un «refoulé», un système
d'Écritures dont la modernité a fait un absent mais sans pouvoir l'éliminer. Cette «analyse» permettait en même
temps de reconnaître dans le travail présent un «travail passé, accumulé» et encore déterminant. Sous ce mode,
qui faisait apparaître, dans le système des pratiques, des continuités et des distorsions, je faisais aussi ma
propre analyse”. Id. (1975) L’écriture de l’histoire. Paris: Gallimard, 2011. p. 30.
24
Ibid., p. 65; 146.
285

maciçamente religioso (o que não quer dizer necessariamente cristão) da


população francesa. 25
Já no plano filosófico, Certeau tornou sua a tarefa cujo pressentimento ele atribuíra em
grande medida ao Foucault da épistémè e cuja pertinência estendia a de toda uma época.
Desde então, ele dedicou-se a pensar as condições epistemológicas do tempo presente, na
dupla direção de uma análise teórica do discurso histórico e da viabilidade de um discurso
teológico crível.
Embora não estranho ao que a filosofia foucaultiana havia aberto, ele o fará sob a
forma bastante particular de uma socioepistemologia ou de uma sociologia da historiografia.
Quanto a essa abordagem, um traço comum poderia ser estabelecido somente com o Foucault
de L’archéologie du savoir.26 Dessa investigação de Certeau sobre o lugar social do
historiador, os dois capítulos da primeira parte de L’écriture de l’histoire dão sua expressão
mais significativa.27 Além do lugar social, ele acrescenta uma prática (científica) e uma
escritura (literária) ao tripé da operação historiográfica.
Esses recursos evocados para demonstrar a herança foucaultiana de Certeau não
esgotam sua proximidade com o pensamento do filósofo. 28 Todavia, elas são suficientes para
apresentar o papel privilegiado que esse personagem interpretou em algumas cenas que
compõem a teoria da história forjada por Michel de Certeau.

25
“Une autre combinaison sociale de systèmes distincts, en même temps qu'un autre mode du pensable,
s'insinuent peu à peu dans l'élément encore massivement religieux (ce qui ne veut pas dire nécessairement
chrétien) de la population française”. CERTEAU, Michel de. (1975) L’écriture de l’histoire. Paris: Gallimard,
2011. p. 153.
26
É Certeau mesmo quem atribui ao Foucault da Arqueologia do saber o mérito de ter introduzido “[...] à la fois
les techniques d’une discipline et les conflits sociales dans l’examen d’une structure épistémologique”. Ibid., p.
82.
27
Uma versão desses dois capítulos havia sido publicada anteriormente em: Id. Faire de l’histoire. Recherches de
Science Religieuse, v. 58, n. 4, p. 481-520, 1970; Id. L’opération historique. In: LE GOFF, Jacques; NORA,
Pierre. (Ed.) Faire de l’histoire, t. I: nouveaux problèmes. Paris : Gallimard, 1974. p. 3-41. (Bibliothèque des
histoires)
28
Certeau escreverá outros dois textos sobre Foucault: Id. (1982) Microtechniques et discours panoptique: un
quiproquo. In: CERTEAU, Michel de. (1987) Histoire et psychanalyse: entre science et fiction. Nouvelle édition
revue et augmenté. Paris: Gallimard, 2002. p. 174-187; Id. (1984) Le rire de Michel Foucault. In: Ibid., p. 137-
151. Há também a transcrição de uma palestra sua sobre o filósofo, proferida na Universidade de Estrasburgo:
Id. Michel Foucault ou le discours de l’autre. Élan, année 22, p. 8-9, p. 20, avril-mai 1978. Uma abordagem
abrangente das leituras de Certeau sobre Foucault pode ser consultada em: GIARD, Luce. Michel de Certeau
lecteur de Michel Foucault. In: BERT, Jean-François; LAMY, Jérôme. (Dir.) Michel Foucault: un héritage
critique. Paris: CNRS Éditions, 2014. p. 331-347. No que se refere particularmente ao livro Surveiller et punir
(1975), Michelle Perrot defende a existência de uma filiação evidente e até mesmo reivindicada da parte de
Certeau em L’invention du quotidien. PERROT, Michelle. Mille manières de braconner. Le Débat, n. 49, p. 117-
121, mars-avril 1988, p. 118. Essa afirmação é contestada por Luce Giard, argumentando que os principais temas
e termos do livro de 1980 já estavam nos escritos de Certeau anteriores à sua leitura de Vigiar e punir. Ao
contrário, L’invention du quotidien seria onde Certeau mais nitidamente se diferenciaria de Foucault. GIARD,
Luce. História de uma pesquisa. (1990) In: CERTEAU, Michel de. (1980) A invenção do cotidiano: 1. Artes de
fazer. Nova edição estabelecida e apresentada por Luce Giard, tradução de Ephraim Ferreira Alves. 18 ed.
Petrópolis: Vozes, 2012. p. 16; Id. op. cit., p. 338.
286

Essas cenas foucaultianas não são monologais. Poderíamos multiplicar os significantes


mobilizados por Certeau, cujo reemprego inscreveu novos significados na feitura dessa
história. Uma primeira constatação se impõe a esse respeito: não raro, Certeau remeteu seu
pensamento a textos, autores, sistemas de interpretação e disciplinas concorrentes, conflitantes
ou até mesmo contraditórias.
Primeiramente, esse ecletismo teórico justifica-se no fato de Certeau eleger a
negatividade como um princípio de inteligibilidade do que pode ser pensado na
contemporaneidade. Certeau recorre frequentemente a termos como “morte”, “limite”,
“ausência” e “falta”, associados direta ou indiretamente a nomes como Foucault, Heidegger e
Lacan, pensadores cujos projetos intelectuais a princípio pouco se assemelham.
Questão emblemática, pois ao mesmo tempo coloca em evidência o aspecto negativo
do conhecimento positivo e sua pertinência em complexos interpretativos irredutíveis uns aos
outros. Não se trata de desconsiderar ou apagar as possíveis diferenças entre tais autores, mas
extrair deles as “diretrizes” de sua pertença ao “solo” de um tempo.
Certeau busca os sinais do a priori histórico de sua “época epistemológica”, isto é, a
“razão” a partir da qual seja possível pensar sem que o conhecimento seja reduzido à
impostura ou ao interesse de grupo, quer se trate da instituição historiadora, da Companhia de
Jesus ou da Igreja: a negatividade é uma condição epistemológica para a produção do
conhecimento histórico e teológico no presente.
Essa espécie de “epistemologia negativa”29 permitiu-lhe não apenas associar seu
trabalho a autores divergentes, mas também tornou possível dar espaço à emergência de
limites internos aos sistemas intelectuais com os quais ele tinha uma dívida aberta, a partir de
intuições ou críticas recolhidas em interpretações até mesmo opostas. É o caso de Michel
Foucault e Jacques Derrida.
Conforme estima Certeau, o mérito de Histoire de la folie à l’âge classique teria sido
interrogar as regiões silenciosas que a ciência histórica não atinge, tomando como referência
um objeto tanto perdido quanto impossível de suprimir (a loucura). Por outro lado, o resultado
desse trabalho frustrava um de seus objetivos maiores, isto é, fornecer à loucura sua
linguagem própria, o grau zero de sua experiência.30

29
Termo usado por Virgínia Buarque para designar o trabalho de Michel de Certeau, em uma linha
argumentativa diferente, embora não excludente, da nossa. Cf. BUARQUE, Virgínia. A epistemologia negativa
de Michel de Certeau. Trajetos, v. 5, n. 9/10, p. 231-247, 2007. Disponível em: https://cutt.ly/zhY5c6J. Acesso
em: 05 mai. 2020.
30
CERTEAU, Michel de. (1975) L’écriture de l’histoire. Paris: Gallimard, 2011. p. 63-64.
287

O reconhecimento desse limite subscreve a posição crítica de Jacques Derrida sobre as


páginas do livro em que Foucault trata das Meditações metafísicas de Descartes, da qual
resultou uma polêmica entre os dois filósofos.31 Da parte de Certeau, mais do que um
ecletismo descuidado de suas consequências, a negatividade como “fundamento” dos sistemas
históricos e dos modelos interpretativos aos quais ele mesmo não deixa de estar associado.
Isso remete a um segundo aspecto em torno da prática da interdisciplinaridade.
Embora a arqueologia como um procedimento de análise “histórico-estrutural” tenha ganhado
destaque em seu trabalho, Certeau não resumiu seu tratamento dos documentos a esse tipo de
abordagem. Ele testou outros métodos de análise para interrogar o material de arquivo.
Talvez o caso de maior destaque seja a semiótica, como pode ser visto em seus
capítulos sobre Jean de Léry e sobre a linguagem das possuídas de Loudun, na terceira parte
de L’écriture de l’histoire; sobre a tensão entre a política de universalização do uso da língua
francesa e os dialetos campesinos (os patois) após a revolução francesa;32 ou em algumas
partes de seu grande livro sobre a fábula mística.33
O risco do recurso a outros procedimentos analíticos na investigação historiadora não
era tanto o uso concomitante de métodos visivelmente incompatíveis. Conforme as próprias
palavras de Certeau, o problema estava em utilizar esses métodos “da mesma maneira, sem
nada obter de sua diferença”.34
Isso aparece no cerne da designação do “fazer história” como prática, como versava a
própria teoria certeauniana. De acordo com ela, há uma maneira histórica, uma forma
propriamente historiadora de empregar os métodos extraídos de outras ciências, qual seja, a de
fazer aparecer uma diferença em relação aos resultados dos modelos das demais ciências
humanas. A tarefa particular da história em relação às técnicas alheias que lança mão é o de
operar em seus limites.35

31
Cf. DERRIDA, Jacques. Cogito e História da Loucura. In: DERRIDA, Jacques. (1967) A escritura e a
diferença. Tradução de Maria Beatriz Marques Nizza da Silva, Pedro Leite Lopes e Pérola de Carvalho. 4. ed.
São Paulo: Perspectiva, 2014. p. 43-90. (Estudos, 271) A resposta de Foucault apareceu na segunda edição de
História da Loucura. Cf. FOUCAULT, Michel de. Resposta a Derrida. (1972) In: FOUCAULT, Michel de.
(1961) História da loucura. Tradução de José Teixeira C. Netto, revisão de Newton Cunha, apresentação de
Vladimir Safatle. 12. ed. São Paulo: Perspectiva, 2019. p. 609-624. (Estudos, 61)
32
Essa abordagem consta em um livro escrito em conjunto com Dominique Julia e Jacques Revel. O primeiro
ficou responsável pela parte sociológica do trabalho (capítulo I); o segundo, pela abordagem etnográfica
(capítulo VIII); a Certeau coube o tratamento mais propriamente linguístico dos documentos (capítulos II a VII)
e a conclusão. Cf. CERTEAU, Michel de; JULIA, Dominique; REVEL, Jacques. (1975) Une politique de la
langue. La révolution française et les patois: l’enquête de Grégoire. Paris: Gallimard, 2002.
33
Cf. CERTEAU, Michel de. (1982) La fable mystique: XVIe-XVIIe siècle. Paris : Gallimard, 2002.
34
“[...] de la même manière sans rien tirer de leur différence”. Id. (1974) La culture au pluriel. Nouvelle édition
établie et présentée par Luce Giard. Paris: Éditions du Seuil, 1993. p. 70. (Essais)
35
Ver a segunda parte (Une pratique) do capítulo L’opération historiographique em: CERTEAU, Michel de.
(1975) L’écriture de l’histoire. Paris: Gallimard, 2011.
288

Além do valor epistemológico da negatividade e da operacionalidade histórica do uso


de procedimentos de outras ciências, a pertinência heurística de algumas disciplinas é outro
fator decisivo no modo como Certeau praticava e pensava a interdisciplinaridade. Há setores
das ciências humanas nos quais a contribuição de práticas locais ocasionam a emergência de
novos problemas que são de interesse para toda uma época. Os parágrafos que seguem se
contentarão em apresentar esse fator por meio de duas grandes instâncias do cenário
contemporâneo, possivelmente as mais significativas em termos heurísticos para a teoria da
história de Certeau: a etnologia e a psicanálise.
Já era possível encontrar menções à etnologia desde a transição em seus escritos na
primeira metade dos anos 1960. A identificação de seu fazer a esse campo das ciências
humanas esteve diretamente ligada ao outro mundo que se abriu para ele com suas viagens à
América Latina e ao Brasil. Essa identificação só aumentou com sua entrada no departamento
de etnologia da Paris VII e com seus projetos financiados pelo governo francês sobre as
práticas culturais contemporâneas, embora seus textos e livros sobre esse assunto fossem
bastante multifacetados em termos teórico-metodológicos, sendo possível ver neles reflexões
etnológicas, mas também sociológicas, psicanalíticas, filosóficas, semióticas, históricas e
literárias.
A relação mais específica entre história e etnologia já aparecia com força em seu curso
no Institut Catholique de Paris em 1967/1968. Os recursos expressivos utilizados por Certeau
para dar conta do que se descortinava em sua prática erudita presta contas ao problema
inerente ao olhar etnológico.
À medida que se desfazia a ilusão de identidade com os cristãos do passado, as
bibliotecas e os arquivos se tornavam “terras selvagens que são os cemitérios ou as reservas
onde nós os reagrupamos”.36 A imagem retrospectiva do primeiro momento de seu trabalho
histórico assemelha sua pretensão apologética sobre o passado à violência colonizadora sobre
os estrangeiros. Com essa reorientação em seu olhar histórico, os cristãos do século XVII
emergiam como “selvagens” que escapavam aos desejos de um primeiro olhar domesticador
segundo interesses externos. Ao invés de companheiros espirituais para o apostolado no
presente, Certeau descobria os Bororos de Lévi-Strauss.37

36
“[...] terres sauvages que sont les cimetières ou les ‘réserves’ où on les regroupe”. CERTEAU, Michel de.
Langages de la foi: christianisme et histoire, texto datilografado, 1967-1968, caixa 5, Arquivo da Companhia de
Jesus, Vanves, p. 2. Grifo nosso.
37
Essa alusão já aparecia no curso de 1967/1968. Parte desse material foi retomado por Certeau em sua
participação em um debate organizado no Centre Catholique des Intellectuels Français em 1969, publicada no
ano seguinte na Recherches et débats – incluída por Luce Giard na reedição de Histoire et psychanalyse. No
texto relativo ao debate, publicado sob o título Histoire et structure, Certeau precisava a afirmação contida no
289

O que vemos aí não é apenas uma metáfora para expressão do problema da estranheza
do passado. Algo mais grave está em no cerne dessa explanação etnológica da dificuldade
com a qual se deparava em suas pesquisas históricas. Tratava-se de um uso heurístico por
meio da qual ele podia colocar o limite de seu fazer historiador nos termos de um vocabulário
particular que enuncia um problema filosófico compartilhado pela linguagem das ciências
humanas na sociedade europeia de então.
Certeau infiltra no texto um preceito teórico ao enunciar a diferença como o estatuto
próprio desse outro (o passado/o selvagem) e ao aventurar-se na modificação da modalidade
de compreensibilidade científica para fazer jus a essa diferença. Por meio da etnologia,
Certeau implica na ciência histórica o princípio segundo o qual não é possível voltar-se a um
objeto sem supor e tornar operacional um corte entre sociedades distintas, do passado e do
presente.
No momento epistemológico no qual e sobre o qual Certeau produzia, o heterogêneo
não podia mais ser superado por uma homogeneidade reinante. À diversidade das culturas já
não era mais cabível contrapor uma realidade particular considerada como a totalidade. Uma
“experiência do limite” (expérience de la limite)38 torna-se condição de possibilidade para a
epistemologia contemporânea. Esse pensar nos limites tem na heterogeneidade e na
descontinuidade seus postulados.
Daí o interesse de Certeau pelos métodos estruturais, uma vez que as possíveis
combinatórias que estabelecem estruturações particulares em dado tempo ou em dada cultura
fornecem rigor científico a essa heterogeneidade/descontinuidade tornada condição de
possibilidade para produção do conhecimento.
Esse postulado já estava evidente ao tratar da análise “estrutural” de Foucault, no qual
já havia a menção à etnologia.39 Em Histoire et structure, ele reaparece diretamente associado
à linguística de Saussure e à etnologia de Lévi-Strauss.40 Portanto, a noção de “estrutura” se
tornava indispensável à operacionalidade de “uma ciência das diferenças históricas ou
etnológicas”.41

material do curso: “[...] ces spirituels me devenaient des « sauvages » au sens où Lévi-Strauss parle de ses
Bororos ou autres populations”. CERTEAU, Michel de. (1970) Histoire et structure. In: CERTEAU, Michel de.
(1987) Histoire et psychanalyse: entre science et fiction. Nouvelle édition revue et augmenté. Paris: Gallimard,
2002. p. 190.
38
Ibid., p. 194.
39
Id. Les sciences humaines et la mort de l’homme. Études, t. 326, p. 344-360, mars 1967, p. 350.
40
Id. (1970) Histoire et structure. In: CERTEAU, Michel de. (1987) Histoire et psychanalyse: entre science et
fiction. Nouvelle édition revue et augmenté. Paris: Gallimard, 2002. p. 194-195.
41
“[...] une science des différences historiques ou ethnologiques”. Ibid., p. 197.
290

Em uma entrevista publicada em 1969,42 Certeau forneceu comentários esclarecedores


acerca de sua posição sobre o estruturalismo. Sobre o descrédito desse domínio ocasionado
pelo maio de 1968, Certeau estava de acordo que os acontecimentos do ano anterior tinham
colocado questões fundamentais, mas polemizava com uma tendência a usar os eventos de
maio como desculpa para o retorno de tradições filosóficas que o estruturalismo havia
destronado.
Em segundo lugar, seria um certo olhar sobre o estruturalismo que caía por terra.
Ocorria a proveitosa desmistificação de uma versão vulgarizada que fazia da estrutura uma
filosofia universal e abstrata. Lévi-Strauss, por exemplo, não estaria de acordo com esse tipo
de exploração filosófica dos procedimentos de ordem técnica. O próprio etnólogo belga teria
tido um momento mais filosófico em La pensée sauvage, mas logo retornaria a trabalhos mais
técnicos.
Em terceiro lugar, o problema que maio de 1968 colocava era o de um “pós-
estruturalismo” (post-structuralisme). Como já vimos, isso não quer dizer um retorno a algo
anterior ao estruturalismo. Se o maio de 1968 colocava um problema filosófico relevante, não
era da ordem do cogito, de uma filosofia que supõe um sujeito autônomo e que faz dele um a
priori imutável do conhecimento. Contudo, no sentido conferido por Certeau, “pós-
estruturalismo” também não quer dizer antiestruturalismo, pois o que está em pauta não é
necessariamente excludente aos resultados dos métodos estruturalistas.
Segundo Certeau, se havia uma experiência filosófica no maio de 1968, ela era um
modo de comunicação que tornava a relação algo mais fundamental que os dois termos aí já
estabelecidos. O pós-estrutural estaria na viabilidade de mostrar o elemento constitutivo das
redes de relações que as análises estruturais desvendam, e não somente as estabilidades já
constituídas em dada ordem. Desse modo, o trabalho estaria aberto a questões fundamentais
que o estruturalismo tendeu a deixar em branco, como a intervenção ativa e crítica dos atores
de uma determinada organização social.
Em seu entendimento, o estruturalismo é tanto análise rigorosa quanto testemunho de
um tempo. Por isso, a questão passa a ser saber em que medida os procedimentos estruturais
podem introduzir em seu próprio território científico novas demandas em função de uma
mudança global na sociedade. A articulação entre a criatividade e o sistema passa a ser um
problema teórico não negligenciável nas análises estruturais.

42
DAMIANI, J.-M; DESOUCHES, D. (Eds.) Regards sur une révolte. Que faisaient-ils en avril? Paris : Desclée
de Brouwer, 1969. p. 203-216.
291

Nesse sentido, o trabalho de Certeau não deixa de ser uma contribuição “pós-
estrutural”, uma vez que o emprego histórico que fazia da noção de “estrutura” foi
indissociável do esforço em forjar uma práxis na qual a diferença pudesse ser não apenas o
“objeto”, mas um princípio da análise. Isso aparece fortemente na relação arqueológica entre
continuidade e descontinuidade, imputadas tanto nas irrupções diacrônicas quanto nas ordens
sincrônicas. Também está no cerne a operação historiográfica como uma prática que faz
aparecer diferenças nas unidades por meio da qual a análise interpreta o passado.
Essa sua contribuição foi preparada por sua experiência intelectual religiosa. O
contexto de abertura do Vaticano II, o processo de mutação do crer e a reorientação da
Christus em direção às ciências humanas forneceram as vias de abertura que permitiram um
deslocamento em sua trajetória intelectual, representados por sua ida para a Études e pelo
interesse pelas experiências do heterogêneo irredutíveis a homogeneidade espacial e temporal,
a exemplo da América Latina. Esse é o solo para o aparecimento de uma nova maneira de
relacionar passado e presente na experiência espiritual sob a modalidade de uma dupla
ruptura. Aquela foi exatamente a época de seu desenvolvimento teológico da ideia de união na
diferença e de suas primeiras reflexões sobre os limites de sua prática erudita em história.
Portanto, em nada surpreende verificar Certeau tensionando diferença e estrutura em
seu texto sobre Foucault, antes mesmo do maio de 1968. Não foi esse acontecimento que
produziu uma ruptura em sua trajetória religiosa e intelectual. Ao contrário, é o desvio em seu
percurso que trazia em seu bojo um tipo de abertura que o tornava apto a ser receptivo as
criações imprevistas da tomada da palavra em 1968. O que se vê doravante é a redescoberta
de questões anteriores, sua elucidação, aprofundamento e radicalização. É o caso de seu
aporte “pós-estrutural” por meio de sua teologia, de sua arqueologia, de sua epistemologia e
de sua teoria cultural.
No que diz respeito à etnologia, Certeau não tratava o trabalho de Lévi-Strauss como
totalmente negligente à produção diferenciadora no interior de dada cultura. Ele atinha-se à
maneira como O pensamento selvagem ocupava-se do caráter disjuntivo que o jogo insere nas
regras partilhadas pelas partes em disputa, possibilitando a geração de certa assimetria em
decorrência da contingência dos fatos e a depender da intenção, do talento ou do acaso. Já a
esfera do ritual congregaria um aspecto conjuntivo pelo qual haveria a integração de grupos
incialmente dissociados, decompondo e recompondo conjuntos factuais em função de arranjos
estruturais.43

43
Certeau dialoga com essa definição de jogo ao tratar das operações disruptivas no conjunto das diferentes
formalidades das maneiras de fazer. CERTEU, Michel de. (1980) L’invention du quotidien: 1. Arts de faire.
292

Contudo, segundo o próprio Lévi-Strauss, o que a princípio parece ter o semblante do


jogo assume usualmente uma forma similar à estrutura do ritual. Se desdobrarmos essa
constatação em termos de ritualização do jogo, considerando as próprias definições presentes
em O pensamento selvagem, todos os participantes assimétricos de uma relação tenderiam a
passar para o mesmo lado. Em outras palavras, os acontecimentos diferenciadores teriam
sempre um fim estrutural dentro dos limites de uma cultura.
Essa “diferença apagada” pode ser associada a um problema
epistemológico/ético/político que Certeau localiza na etnologia e em Lévi-Strauss. Não se
trata mais da diferença interna a uma cultura, mas entre duas sociedades, a do estudioso e a
grupo estudado. Não seria produzido um apagamento da heterogeneidade quando se supõe
uma adequação entre o que é captado pelos procedimentos de uma investigação relativos a um
lugar social e o universo cultural estudado?
Quando Lévi-Strauss ancora a etnologia no estudo do que não está escrito e das
condições inconscientes da vida social, ele acrescenta uma variante ao que uma arqueologia
da etnologia localiza quatro séculos antes em Jean de Léry: “a linguagem oral espera, para
falar, que uma escrita a percorra e saiba o que ela diz”.44 Para Certeau, esse modo de articular
fala e escrita também está presente na Leçon d’écriture, em Tristes Tropiques, ainda que com
um sentido e moral próprios.45
Outro modo de colocar a questão é dizer que há um corte por meio do qual a diferença
reconhecida é inscrita (apagada) segundo a lógica de uma sociedade que não lhe é própria. O
tempo da docilidade e da gratidão do etnólogo para com a hospitalidade de seus anfitriões é
superado pelo tempo das alianças institucionais que a redação do trabalho evidencia: “Os
Bororos descem lentamente para sua morte coletiva, enquanto Lévi-Strauss entra na
Academia. Mesmo que ele não se console com essa injustiça, isso não muda o fato”. 46
Certeau está consciente que seu próprio trabalho está acometido pela mesma
insuficiência. A recondução do outro ao mesmo não é exclusiva do teatro etnológico de
encenação do diferente. A etnologia e a história mantém um elo bastante estreito quando se
trata de representar seu objeto. Na encenação historiadora, o morto é o personagem no teatro

Nouvelle édition établie et présentée par Luce Giard. Paris: Gallimard, 2015. p. 40-43, 310. LÉVI-STRAUSS,
Claude. (1962) O pensamento selvagem. Tradução de Tânia Pellegrini. Campinas: Papirus, 1989. p. 46-49.
44
“le langage oral attend, pour parler, qu’une écriture le parcoure et sache ce qu’il dit”. CERTEAU, Michel de.
(1975) L’écriture de l’histoire. Paris: Gallimard, 2011. p. 246.
45
Ibid., p. 252.
46
“Les Bororos descendent lentement dans leur mort collective, et Lévi-Strauss entre à l’Académie. Même s’il ne
se console pas de cette injustice, cela ne change pas le fait”. Id. (1980) L’invention du quotidien: 1. Arts de faire.
Nouvelle édition établie et présentée par Luce Giard. Paris: Gallimard, 2015. p. 44.
293

dos vivos, ou como dizia Lévi-Strauss, no grande jogo social entre os mortos e os vivos, os
vivos sempre saem vencedores.47
Como a etnologia em relação ao presente, à história é atribuída a função de amenizar o
perigo que a diferença do passado representa à estabilidade de uma linguagem social. Tal qual
o etnólogo retoma, no horizonte científico de sua sociedade, aquilo que a princípio via
emergir como heterogêneo, procede o historiador em relação àquilo que estuda:
Paradoxalmente, se ele desvela uma descontinuidade, tem, ao mesmo tempo,
o objetivo de dizê-la, relatá-la, analisá-la, explicá-la e, portanto, introduzi-la
no texto homogêneo de uma cultura presente, no interior de uma literatura,
com os instrumentos intelectuais da época em que se situa a narrativa
historiográfica. Trabalho curioso: ele parece negar, pela obra a qual chega, a
ruptura que faz aparecer. 48
A posição crítica a essa forma homogeneizante de relação com a diferença esteve no
cerne do tratamento epistemológico dado por Certeau à história. Outra ferramenta heurística
por meio da qual pensou essa questão foi a psicanálise, crucial na empreitada teórica do
jesuíta.
Durante décadas prevaleceu, da parte de teólogos católicos franceses, a suspeita
quanto à psicanálise, acusada de atentar contra a moral cristã. A aproximação com esse campo
do saber foi fortemente desencorajada pela advertência oficial do Vaticano endereçada a
bispos, censores eclesiásticos e padres em 1961. Contudo, aquele já era um momento em que
havia um descompasso crescente entre as disposições oficiais e a busca por maior liberdade
espiritual dos religiosos. Nesse contexto, a psicanálise ganhou adesão entre alguns sacerdotes,
dentre eles Certeau.49
Jesuítas como Louis Beirnaert, François Roustang, François Courel e Michel de
Certeau estiveram entre os cofundadores da École Freudienne de Paris em 1964, dirigida por
Jacques Lacan. Os três primeiros se tornaram analistas profissionais, já Certeau não seguiu a
mesma direção dos confrades.50
Certeau era leitor voraz da obra de Freud e assíduo nos seminários de Lacan. Mesmo
tendo estado entre os membros que se opuseram judicialmente à dissolução da escola por seu

47
LÉVI-STRAUSS, Claude. (1962) O pensamento selvagem. Tradução de Tânia Pellegrini. Campinas: Papirus,
1989. p. 48.
48
“Paradoxalement, s’il dévoile une discontinuité, il a en même temps pour objectif de la dire, de la raconter, de
l'analyser, de l'expliquer, et donc de l'introduire dans le texte homogène d'une culture présente, à l'intérieur
d'une littérature, avec les instruments intellectuels de l'époque où se situe le récit historiographique. Travail
curieux: il semble nier, par l'œuvre à laquelle il aboutit, la rupture qu'il fait apparaître”. Id. (1970) Histoire et
structure. In: CERTEAU, Michel de. (1987) Histoire et psychanalyse: entre science et fiction. Nouvelle édition
revue et augmenté. Paris: Gallimard, 2002. p. 193.
49
GIARD, Luce. Un chemin non tracé. In: CERTEAU, Michel de. (1987) Histoire et psychanalyse: entre
science et fiction. Nouvelle édition revue et augmenté. Paris: Gallimard, 2002. p. 28, 30, 32.
50
DOSSE, François. (2002) Michel de Certeau: le marcheur blessé. Paris: La Découverte, 2007. p. 317.
294

fundador, em 1980, manteve grande admiração intelectual por ele.51 Além disso, participou de
encontros do meio psicanalítico e publicou alguns textos envolvendo o assunto.52
Apesar dessa grande proximidade, Certeau não se autorizava analista.53 Sua relação
com a psicanálise foi em grande medida em decorrência de seu trabalho como historiador e de
seu interesse em problemas teóricos relativos ao tratamento da história, da experiência
espiritual e das práticas culturais. Seu modo de recorrer à psicanálise refletia sua recusa em
articular disciplinas distintas sem gerar diferenças a partir desses usos cientificamente
situados.
Certeau se posicionava contrariamente a um uso corrente que se fazia da psicanálise.
Ele reagia à utilização atemporal de noções advindas dessa disciplina, como se o inconsciente
fosse um restaurador da continuidade entre momentos historicamente distintos. Para Certeau,
esse problema está posto no interior da própria psicanálise, cuja reflexão precisa verificar se é
possível transpor para antes do tempo do surgimento da psicanálise os conceitos emergidos na
relação de Freud com seus pacientes em um tipo de sociedade, a Viena burguesa do final do
século XIX.54
Além do postulado da existência historicamente generalizável do inconsciente, outro
uso pouco rigoroso dos conceitos psicanalíticos, tanto em história quanto em etnologia, diz
Certeau, seria torná-los nada mais que uma “‘uma maneira de falar’” («une manière de
parler»). Esse tipo de uso teria como único objetivo cobrir o que na história é ainda
incompreensível. Esse emprego meramente tangencial em torno do inexplicado não chega
propriamente a explicar as lacunas nas quais geralmente é aplicado.55
Isso esclarece, por exemplo, a distância tomada quanto a Alphonse Dupront, de quem
ele havia sido aluno e quem aparecia recorrentemente como referência em seus escritos.
Apoiado nas ideias de Rudolf Otto ou de Carl G. Jung consideras questionáveis por Certeau,
51
Como pode ser visto em um texto encomendado a Certeau por Pierre Nora na ocasião da morte de Lacan em
1981, publicado em 1982. CERTEAU, Michel de. Lacan: une éthique de la parole. In: CERTEAU, Michel de.
(1987) Histoire et psychanalyse: entre science et fiction. Nouvelle édition revue et augmenté. Paris: Gallimard,
2002. p. 239-268.
52
Dois deles aparecem na quarta parte de Id. (1975) L’écriture de l’histoire. Paris: Gallimard, 2011. Outros
foram reunidos na primeira parte de um livro existente apenas em língua inglesa: Id. (1986) Heterologies:
discouse on the other. Translated by Brian Massumi, foreword by Wlad Godzich. Minneapolis: University of
Minnesota Press, 2010. (Theory and History of Literature, 17) Esse livro foi parcialmente publicado em francês
em: Id. (1987) Histoire et psychanalyse: entre science et fiction. Nouvelle édition revue et augmenté. Paris:
Gallimard, 2002.
53
Ele afirma isso explicitamente em: Id. (1977) L’institution de la pourriture: Luder. In: CERTEAU, Michel de.
(1987) Histoire et psychanalyse: entre science et fiction. Nouvelle édition revue et augmenté. Paris: Gallimard,
2002. p. 220.
54
Id. (1970) Histoire et structure. In: CERTEAU, Michel de. (1987) Histoire et psychanalyse: entre science et
fiction. Nouvelle édition revue et augmenté. Paris: Gallimard, 2002. p. 200-201.
55
CERTEAU, Michel de. (1970) Histoire et structure. In: CERTEAU, Michel de. (1987) Histoire et
psychanalyse: entre science et fiction. Nouvelle édition revue et augmenté. Paris: Gallimard, 2002. p. 201.
295

“a imensa erudição cultural de Alphonse Dupront extrai, em toda parte da história, um pânico,
profundidade selvagem e sagrada”.56 Nessa imagem de um psiquismo profundo ocorre certo
uso “retórico” de categorias não históricas questionado por Certeau. Para ele, esse “pânico”
não é outra coisa senão um nome dado por um conhecimento ao seu próprio limite.
O próprio Certeau usava, eventualmente, termos associados a uma abordagem
psicológica dos fenômenos históricos: a angústia,57 a esquizoidia58 e a melancolia59 de Surin;
o delírio coletivo das ursulinas;60 a cidade traumatizada com a peste, período de latência no
qual os inimigos religiosos precisam se aceitar, acumulando ressentimentos; 61 a verdade
interior das possuídas localizada na “inconsciência”,62 para mencionar alguns exemplos.
No início de sua aproximação com a psicanálise na primeira metade dos anos 1960,
Certeau se valia dessas expressões de maneira menos atenta do que pode ser visto a partir de
seu “despertar epistemológico”, verificado desde pelo menos seu artigo sobre Foucault em
1967.63 Contudo, mesmo nesses casos, é possível encontrar uma sensibilidade em relação ao
risco de reduzir a explicação de seu objeto a leis abstratas relativas a uma linguagem que ele
pontualmente lançava mão.64 Certeau desejava, por exemplo, evitar “o ridículo de reduzir a
experiência espiritual a uma deficiência psicológica”.65
Quando passa a tratar frontalmente os problemas epistemológicos de sua época e a
levar teoricamente em conta os efeitos do emprego de noções psicanalíticas em história, esses
usos eventuais ganham contornos mais bem definidos segundo as delimitações culturais e ao
quadro de referências próprio à época estudada.
É o caso do termo “inconsciência”, empregado como designação do alhures que
escapava às religiosas de Loudun vítimas de um outro ameaçador (o feiticeiro, o diabo),

56
“[...] l’immense érudition culturelle d’Alphonse Dupront tire partout de l’histoire un « panique », profondeur
sauvage et sacrée”. CERTEAU, Michel de. (1975) L’écriture de l’histoire. Paris: Gallimard, 2011. p. 62.
57
Id. Introduction. SURIN, Jean-Joseph. (1963) Guide spirituel. Texte établi et présenté par Michel de Certeau,
s.j. Paris: Desclée de Brouwer, 2008. p. 13.
58
Id. Introduction. In: SURIN, Jean-Joseph. Correspondance. Texte établi, présenté et annoté par Michel de
Certeau. Paris: Desclée de Brouwer, 1966. p. 45.
59
Id. (1978) Surin’s melancholy. In: CERTEAU, Michel de. (1986) Heterologies: discouse on the other.
Translated by Brian Massumi, foreword by Wlad Godzich. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2010. p.
101-115 (Theory and History of Literature, 17)
60
Id. Introduction. In: SURIN, Jean-Joseph. Correspondance. Texte établi, présenté et annoté par Michel de
Certeau. Paris: Desclée de Brouwer, 1966.p. 42.
61
Id. (1970) La possession de Loudun. Paris: Gallimard/Julliard, 2005. p. 34.
62
Ibid., p. 192.
63
Parafraseando o próprio Certeau, quem falou em um “réveil épistémologique” na França do final dos anos
1960, exemplificado por nomes como Serge Moscovici, Michel Foucault e Paul Veyne, dentre outros. Id. (1975)
L’écriture de l’histoire. Paris: Gallimard, 2011. p. 78.
64
Id. Introduction. In: SURIN, Jean-Joseph. Correspondance. Texte établi, présenté et annoté par Michel de
Certeau. Paris: Desclée de Brouwer, 1966. p. 28.
65
“[...] le ridicule de réduire l’expérience spirituelle à une déficience psychologique”. Ibid., p. 46.
296

naquele momento em que a possessão se torna o teatro público por meio do qual buscava-se
exorcizar a inquietação de uma sociedade rumando a caminho de outra ordem, linguagem
social da tensão gerada pelas transformações de uma cultura que não é mais homogeneamente
religiosa.
Não será diferente anos depois desse importante estudo sobre um caso de possessão
demoníaca no século XVII, em um texto onde aludirá à “melancolia de Surin”. Ele aponta
algumas características das concepções de loucura melancólica do período, nessa abordagem
semiótica e histórica sobre o místico que ele estudava a tantos anos, declinando
explicitamente a qualquer intenção de realizar o relato de um “‘caso histórico’ patológico da
Época Clássica”.66
Acompanhar esses aparecimentos permite apreender as nuances da maneira como
Certeau reempregava signos da linguagem psicológica/psicanalítica em seus estudos
históricos. Contudo, a contribuição mais substancial dada por ele à relação entre história e
psicanálise foi sua leitura original sobre Freud.
Com ela, levou às últimas consequências sua crítica ao uso atemporal das noções
psicanalíticas e à fixação da pertinência da psicanálise segundo os restos não esclarecidos de
outras explicações. Ela não apenas produziu uma alternativa a esses usos corrente da
psicanálise como o permitiu vislumbrar uma saída à insuficiência do tratamento histórico e
etnológico da diferença.
Freud tem algo a dizer sobre a história. É o que Certeau busca mostrar em Ce que
Freud fait de l'histoire.67 Todavia, Certeau afirma não estar interessado em isolar uma
concepção freudiana de história ou em testar, por meio da ciência histórica, a interpretação
psicanalítica forjada pelo médico vienense. Atento a não subsumir a particularidade de uma
disciplina no contato com outra, Certeau quer revelar o que significou a incursão de Freud
nesse terreno histórico, isto é, “como analista, o que faz ele da história”.68
Ele toma como referência o caso de possessão do pintor bávaro Christoph Haitzmann,
estudado por Freud em Uma neurose demoníaca no século XVII, publicado em 1922. A
atitude de Freud diante desses acontecimentos e do manuscrito que os narra, o Trophaeum

66
“[...] pathological ‘case history from the Classical Age’”. CERTEAU, Michel de. (1978) Surin’s melancholy.
In: CERTEAU, Michel de. (1986) Heterologies: discouse on the other. Translated by Brian Massumi, foreword
by Wlad Godzich. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2010. p. 101. (Theory and History of Literature,
17)
67
Id. Ce que Freud fait de l'histoire. À propos de: «une névrose démoniaque au XVII e siècle». Annales ESC,
anné 25, n. 3, p. 654-667, 1970. Republicado como capítulo VIII em: Id. (1975) L’écriture de l’histoire. Paris:
Gallimard, 2011.
68
“Comme analyste, que fait-il de l'histoire?”. Ibid., p. 340. Grifo nosso.
297

Marianocellense, é característica da explicação psicanalítica, cujo êxito geral era a premissa


que permitiria estendê-la a novas circunstâncias e nelas confirmar seus resultados iniciais.
No entanto, para Certeau, Freud não exerce seu instrumento analítico nessa “outra
região” – o século XVII – como forma de explicar o estranho, o distante, o passado stricto
sensu. Esse “passado” é percebido por Freud como um fragmento de sua própria cultura. Ele
apresenta-lhe a mesma questão que lhe seria proporcionada pelo relato de um paciente ou de
um colega psicanalista. Integradas ao conjunto de interesses e conhecimentos característicos
da linguagem de seu presente, o caso Haitzmann tem, inicialmente, apenas aparência
histórica.
Dessa constatação, duas consequências podem ser destacadas na interpretação de
Certeau. Em primeiro lugar, ao supor a existência das mesmas estruturas neuróticas no século
XVII e no século XX, Freud não teria postulado uma realidade homogênea, uma continuidade
subjacente sustentando a descontinuidade das representações. De acordo com Certeau, é o
historiador profissional quem substantifica a continuidade, coisificando as soluções que são
na verdade resultado de seu discurso. Nada menos freudiano, diria Certeau, uma vez que
“Freud não fala, aqui, de uma permanência da coisa sob a diversidade de suas roupagens”.
Para ele, é uma mesma “relação de ambivalência e de tensão” o passível de ser
“reencontrado”69: “O ‘conteúdo’ constante é uma relação entre termos cambiantes, da qual, a
seu turno, um foi, ontem, a máscara diabólica, hoje, a enxaqueca, a úlcera, a doença
orgânica”.70
Em segundo lugar, a história é resultado dessa operação psicanalítica freudiana. Isso
quer dizer que a “neurose demoníaca” de Haitzmann só se torna um caso histórico quando a
análise o envolve em uma problemática própria da história. Freud faz do Trophaeum
Marianocellense um documento histórico apenas ao instaurar uma distância. O que está em
pauta não é uma “estrutura” neurótica como a priori do demoníaco e do orgânico, sendo eles
simples representações de um “essencial” atemporal pressuposto. Freud torna o caso histórico
ao designar a situação do pintor do século XVII como aquela na qual a lei do conflito mostra-
se com mais claridade. Ao tornar o “antigo” o mais claro, o dota de particularidade em
relação a maneira como a lei se apresenta em seu divã. É somente então que Freud produz
esse passado como histórico.

69
“Freud ne parle pas ici d'une permanence de la chose sous la diversité de ses vêtements. Pour lui, le même
rapport d'ambivalence et de tension peut se répéter et donc « se retrouver »”. CERTEAU, Michel de. (1975)
L’écriture de l’histoire. Paris: Gallimard, 2011. p. 349.
70
“Le « contenu » constant est un rapport entre des termes changeants, dont l'un est tour à tour, hier, le masque
diabolique, aujourd'hui, la migraine, l'ulcère, la maladie organique”. Ibid., p. 349. Grifo do autor.
298

A partir dessa fabricação histórica pela investigação psicanalítica, Certeau enfatizará


como um trabalho da história será inerente à análise freudiana. Freud introduzirá o conceito
de Urbild, o qual “focaliza a linguagem em um simples (Bild único) que não existe mais (Ur,
origem desaparecida), senão como múltiplo”.71 Nesse sentido, “o trabalho da história
(Geschichte) não cessa de ocultar o que era legível”.72 O conflito não é mais encontrado como
um conteúdo originário, mas como lei organizadora de cada linguagem na dispersão do
tempo. Desse modo, a psicanálise freudiana estabelece um “corte epistemológico” (coupure
épistémologique), nova forma de pensar e praticar o conhecimento que exclui a possibilidade
de fechamento sobre si mesmo.73
Isso quer dizer que a análise freudiana não divorcia a psicologia individual e a
psicologia coletiva. Há um elo entre o normal/patológico e seus diversos enquadramentos
socioculturais: “essa ciência instaura, como lei da linguagem, uma diferença dos tempos e um
trabalho do tempo”.74 Uma só doença parece dar lugar a diferentes formas de normalidade que
ocultam o conflito. “Terapêuticas” sucessivas são a sua história: a devoção ao santo, o pacto
com o diabo, a liturgia comercial, o culto à ciência, as práticas analíticas, etc. A psicanálise
instaura essas diferentes manifestações como a história e busca nesse objeto da produção
histórica os vestígios da relação entre elas em função de seu próprio objeto:
Essas modificações sempre traem e repetem a ambivalência posta como
patente na Urbild. O “pai” não morre. Sua “morte” não é senão outra lenda e
uma remanência da sua lei. Tudo acontece como se nunca se pudesse matar
esse morto e como se crer que se “tomou consciência” dele, que ele foi
exorcizado através de um outro poder ou que se fez dele um objeto do saber
(um cadáver) significasse simplesmente que ele se deslocou mais uma vez, e
que está lá precisamente onde nós não o suspeitamos ainda, nesse mesmo
saber e no “lucro” que ele parece assegurar. 75
Para Certeau, há ainda um outro fator decisivo articulado no procedimento freudiano e
naquilo que ele exuma. Junto da racionalidade psicanalítica e da lei que a história repete há
uma diferença, nunca localizável, que Certeau chama o “ato freudiano” (l’acte freudien). O

71
“[...] focalise le langage en un simple (Bild unique) qui n'est plus là (Ur, origine disparue), sinon comme
devenu multiple”. Ibid., p. 352. Grifo do autor. Nesse caso, acompanhei a tradução brasileira. CERTEAU,
Michel de. (1975) A escrita da história. Tradução de Maria de Lourdes Menezes, revisão de Arno Vogel. 3 ed.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015. p. 320.
72
“Le travail de l'histoire (Geschichte) ne cesse de cacher ce qui était lisible”. Ibid., p. 353.
73
Ibid., p. 355.
74
“cette science instaure [...] en loi du langage [...] une différence des temps et un travail du temps”. Ibid., p.
353.
75
“Mais ces modifications trahissent et répètent toujours l'ambivalence posée comme patente dans l'Urbild. Le «
père » ne meurt pas. Sa « mort » n'est qu'une autre légende et une rémanence de sa loi. Tout se passe comme si
jamais on ne pouvait tuer ce mort, et comme si croire qu'on en a « pris conscience », qu'on l'a exorcisé par un
autre pouvoir ou qu'on en a fait un objet de savoir (un cadavre), signifiait simplement qu'il s'est déplacé une fois
de plus, et qu'il est là précisément où nous ne le soupçonnons pas encore, dans ce savoir même et dans le «
profit » que ce savoir semble assurer”. Ibid., p. 359.
299

que vemos aqui é a tentativa de mostrar não somente o que Freud faz da história, mas em que
medida essa própria contribuição é histórica, além de também questionar o que a história faz
de Freud – os teólogos do freudismo, ele provocará em outro texto76 – ao evitar torná-lo um
equivalente contemporâneo ao diabo de Haitzmann.
Portanto, a contribuição da psicanálise freudiana que mais interessa a Certeau não é
uma nova representação da lei, mas o próprio ato de elucidá-la, forjado na tensão entre a
repetição e a instauração de uma diferença: “a práxis analítica permanece um ato arriscado.
Ela nunca elimina uma surpresa”.77 Dito em outras palavras, “a uma loucura que vem antes
da ciência se opõe, em Freud, uma ‘loucura’ que fala a ciência”.78
Estão aí, no “fazer história” de Freud, vários elementos cruciais à teoria em vias de
formulação pelo próprio Certeau à época: o histórico, ao invés de um dado em si mesmo,
pensado como produto do procedimento ao qual se recorre; as unidades socioculturais
sucessivas concernentes ao trabalho da história; o lugar da diferença no conhecimento que ela
produz; e um postulado segundo o qual o morto – a alteridade do passado – “reaparece” na
homogeneidade de seu discurso. A esse último, acrescenta-se o “retorno do recalcado” via
ficção, isto é, na escritura historiográfica.79
Nas diversas linhas estabelecidas pela leitura dos textos Certeau, pode-se perceber a
centralidade conferida à reflexão sobre a descontinuidade, o limite, a heterogeneidade e a
diferença. Além do mais, por meio desse campo semântico, foi possível demonstrar o valor
heurístico da arqueologia, da etnologia e da psicanálise à epistemologia da história. Certeau
associará tais tópicos à própria razão de ser da história, da etnologia e da psicanálise ao
designá-las como “as ciências do ‘outro’” (les sciences de « l’autre »), dedicadas
respectivamente às alteridades passadas, étnicas e inconscientes. 80
Portanto, a reincidência desses temas de interesse e o lugar conferido a tais domínios
do conhecimento aponta para a alteridade, o nervo da teoria certeauniana da história. Eis o

76
CERTEAU, Michel de. (1978) Psychanalyse et histoire. In: CERTEAU, Michel de. (1987) Histoire et
psychanalyse: entre science et fiction. Nouvelle édition revue et augmenté. Paris: Gallimard, 2002. p. 105.
77
“[…] la praxis analytique reste un acte risqué. Elle n'élimine jamais une surprise”. Id. op. cit., p. 363. Grifo
do autor.
78
“A une folie qui vient avant la science, s'oppose, chez Freud, une « folie » qui parle la science”. Ibid., p. 363.
Grifo do autor.
79
Certeau tratou a relação entre história e ficção na psicanálise freudiana em: Id. La fiction de l’histoire:
l’écriture de « Moïse et le monothéisme ». In: CERTEAU, Michel de. (1975) L’écriture de l’histoire. Paris:
Gallimard, 2011. p. 365-419; Id. (1981) Le « roman » psychanalytique: histoire et littérature. In: CERTEAU,
Michel de. (1987) Histoire et psychanalyse: entre science et fiction. Nouvelle édition revue et augmenté. Paris:
Gallimard, 2002. p. 107-136.
80
CETEAU, Michel de. La rupture instauratrice ou le christianisme dans la culture contemporaine. Esprit, p.
1177-1214, juin 1971, p. 1195.
300

cerne e a definição mesma de história em Michel de Certeau: ela é uma “heterologia”


(hetérologie), “logos do outro” (“logos de l’autre”).81
A noção de heterologia aparece em outras frentes nos textos de Certeau. Além dessa
noção heterológica de história cuja pertinência ele começava a desenhar, ele havia localizado
no século XVI um tipo de discurso heterológico no qual a relação entre o outro e o mesmo
tinha sido a pedra de toque.82 Segundo François Hartog, Certeau teria sido o descobridor e
historiador desse espaço heterológico.83 Seu interesse por esse tipo de discurso ia dos relatos
de viagem, passando pelo discurso místico, até a literatura moderna.84 No fim de sua vida,
essa “ciência do outro” estava no centro de seus interesses, haja vista a publicação de uma
coletânea de seus artigos reunidas sobre esse título85 e um projeto em andamento, o qual ele
não veio a concluir.86
Deter-me-ei no conceito heterológico de história. A esse respeito, João Ohara já havia
atentado sobre a importância dos insights heterológicos em L’absent de l’histoire para a teoria
da história em L’écriture de l’histoire.87 Em outra ocasião, Ohara creditou à ideia de
heterologia o ponto mais distintivo do conceito de história forjado por Certeau. Em sua
interpretação, as metáforas utilizadas pelo jesuíta (morto, fantasma, vozes), sobretudo na

81
Id. L’absent de l’histoire. Paris: Repères/Mame, 1973. p. 173.
82
Id. L’oralité, ou l’espace de l’autre: Léry. In: CERTEAU, Michel de. (1975) L’écriture de l’histoire. Paris:
Gallimard, 2011. p. 245-283. Certeau também inscreve Montaigne nessa “tradição heterológica”. Id. Montaigne:
« Des cannibales ». (1981) In: CERTEAU, Michel de. Le lieu de l’autre: histoire religieuse et mystique. Édition
établie par Luce Giard. Paris: Gallimard/Seuil, 2005. p. 250.
83
HARTOG, François. L’écriture du voyage. In: GIARD, Luce. (Ed.) Michel de Certeau. Paris: Centre Georges
Pompidou. p. 127. A maneira certeauniana de articular história e etnologia encontrará paralelo no próprio Hartog
quando este trata o movimento de fechamento e abertura dos viajantes gregos ao outro, em seu Memória de
Ulisses. Id. Memória de Ulisses: narrativas sobre a fronteira na Grécia Antiga. Tradução de Jacyntho Lins
Brandão. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004. p. 23. A importância de Certeau no trabalho de Hartog já podia
ser vista em O espelho de Heródoto, como apontou Hervé Martin – Certeau foi um dos membros da defesa de
tese de Estado de Hartog em 1979, da qual resultaria aquele livro. MARTIN, Hervé. Michel de Certeau et
l’institution historique. In: GIARD, Luce; MARTIN, Hervé; REVEL, Jacques. Histoire, mystique et politique:
Michel de Certeau. Grenoble : Jérôme Millon, 1991. p. 87-88.
84
Por exemplo, seus artigos sobre Jules Verne, Alexandre Dumas e Michel Carrouges, republicados em:
CERTEAU, Michel de. (1986) Heterologies: discouse on the other. Translated by Brian Massumi, foreword by
Wlad Godzich. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2010.
85
Ibid. O livro foi publicado pouco tempo depois da morte de Certeau, embora o material que o comporia tivesse
sido definido ainda em vida.
86
Luce Giard apresenta uma visão geral desse projeto que, segundo ela, Certeau já tinha traçado as linhas
mestras em 1978 em uma proposta apresentada ao CNRS. GIARD, Luce. Epilogue: Michel de Certeau's
Heterology and the New World. Representations, v. 33, p. 212-221, 1991, p. 213.
87
OHARA, João Rodolfo Munhoz. A história como heterologia: do conceito de história em Michel de Certeau.
2013. 80f. Dissertação (Mestrado em História Social) – Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2013.
Disponível em: https://cutt.ly/2nqruIJ. Acesso em 31 abril 2020.
301

primeira parte de L’écriture de l’histoire, mostram como Certeau pensava a história como um
trabalho com a alteridade.88
Faço minhas as palavras de Ohara. Nas páginas seguintes buscarei propor uma
interpretação que de alguma maneira vai nessa direção aberta por ele. Quanto à sua afirmação
sobre a proposta heterológica em L’absent de l’histoire ser uma análise “que flerta com o
freudismo de Lacan”,89 eu apenas especificaria que esse flerte é com um olhar estrutural e
com uma linguagem tipicamente lacanianos sobre Freud. Dito de outro modo, penso ser Freud
a referência psicanalítica capital para a teoria heterológica da história.90
Com essa noção já introduzo minha proposta de leitura. De forma alguma
desconsidero as particularidades de cada um dos capítulos recorridos para a interpretação,
tampouco perco de vista suas circunstâncias específicas de produção e publicação. Contudo,
minha proposta é pensar uma coerência implícita nas retomadas nuançadas e alterantes de
certas ideias à medida que Certeau avançava suas incursões – é isso que chamo “teoria”
heterológica neste capítulo.
Essa teoria heterológica da história está fundamentada na compreensão do passado
como ausência (l’absent de l’histoire), de um trabalho organizado em torno dessa “presença
faltante” (présence manquante) e na noção de diferença enquanto “alteridade alterante”
(altérité altérante). Tal heterologia parte do que Certeau entende por “fazer história” (faire de
l’histoire) e se desdobra no conceito de “operação historiográfica” (opération
historiographique).

88
OHARA, João Rodolfo Munhoz. La Historia como heterología: implicaciones y apropiaciones del concepto de
historia de Michel de Certeau. La Torre del Virrey, v. 17, n. 1, p. 101-106, 2015. Disponível em:
https://cutt.ly/Tb648fx. Acesso em: Acesso em 31 abril 2020.
89
OHARA, João Rodolfo Munhoz. A história como heterologia: do conceito de história em Michel de Certeau.
2013. 80f. Dissertação (Mestrado em História Social) – Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2013. p.
15. Disponível em: https://cutt.ly/2nqruIJ. Acesso em 31 abril 2020.
90
O psicanalista Claude Rabant notou que Certeau tendia a colocar a ficção ao lado da escritura e a fábula ao
lado da fala. A primeira relação, mais associada a Freud; a segunda, a Lacan. RABANT, Claude. Michel de
Certeau, lecteur de Freud et de Lacan. Espaces Temps, n. 80-81, p. 22-26, 2002, p. 23. Não devemos exagerar
essa separação, pois o próprio Certeau via a ética lacaniana da fala ligada a uma escrita poética e à elucidação da
prática literária. CERTEAU, Michel de. Lacan: une éthique de la parole. In: CERTEAU, Michel de. (1987)
Histoire et psychanalyse: entre science et fiction. Nouvelle édition revue et augmenté. Paris: Gallimard, 2002. p.
251. De todo modo, a interpretação original de Certeau sobre a ficção analítica freudiana, o retorno da alteridade
recalcada e sua concepção espectral do tempo serão centrais na teoria heterológica da história, especialmente no
que concerne à escritura. Afirmar isso em nada desconsidera a importância do ensino de Lacan sobre Certeau e
seu papel nesses textos – “falta”, “Outro” (também caro à teologia mística, a Levinas), uma visão estrutural
sobre inconsciente em Freud, etc. Essa posição apenas destaca a operatividade que a leitura de Freud
desempenhou em sua teoria da história.
302

Para Certeau, “fazer história” não se confunde com a aplicação exata de regras
concernentes a determinado procedimento científico. Esse rigor continua sendo
imprescindível, mas não é suficiente para caracterizar uma prática enquanto histórica.91
Com essa expressão, Certeau enfatiza o ato produtor, a fabricação, por meio de um
procedimento, do histórico em um texto, como Freud fez no manuscrito do caso Haitzmann.
Fazer história é adquirir, por meio do trabalho, a consciência de que algo passou, é enfrentar o
que não é mais, logo, produzir uma diferença em relação ao presente.92
Nesse sentido, há uma interdependência entre a produção do passado como outro e a
diferenciação do próprio presente. Uma sociedade dá a si mesma uma definição e recorta suas
próprias pertinências ao distinguir-se do passado que ela mesmo diferencia. O discurso
histórico proporciona um contraste por meio do qual uma sociedade experiencia a si mesma
enquanto presente. Segundo palavras de Certeau, ele “historiciza o atual”,93 “presentifica uma
situação vivida”94 e “explicita uma identidade social”.95
A alteridade do passado é crucial tanto ao fazer singularmente histórico quanto à
“experiência histórica” que esse tipo de prática fornece às sociedades ocidentais. Por meio da
erudição ou de determinada análise “estrutural”, um ato produtor inscreve a diferença entre
um “fato” ou uma “ordem” passada e presente. Todavia, como já visto anteriormente sobre a
crítica de Certeau à etnologia e à história, o heterogêneo é compreendido e retomado na
homogeneidade da explicação de outra sociedade, acabando por ser reduzido a fragmentos
incluídos na história que uma sociedade conta a si mesma.
Nesse ponto está o cerne do problema posto pela teoria heterológica da história. O
discurso histórico supõe uma alteridade do passado como condição de seu fazer, mas ao
mesmo tempo a elimina, integrando-a no tecido social e linguístico de sua sociedade:
Pois a missão social que lhe outorga o presente tem, precisamente, o objetivo
de restabelecer o outro no campo de uma compreensão presente e, por
conseguinte, de eliminar a alteridade que parecia ser o postulado do
empreendimento. O outro seria, convertido em objeto, o elemento que o
discurso histórico transforma em significantes e reduz ao inteligível para
suprimir-lhe o perigo.96

91
CERTEAU, Michel de. L’absent de l’histoire. Paris: Repères/Mame, 1973. p. 156.
92
Id. (1970) Histoire et structure. In: CERTEAU, Michel de. (1987) Histoire et psychanalyse: entre science et
fiction. Nouvelle édition revue et augmenté. Paris: Gallimard, 2002. p. 192; Id. L’absent de l’histoire. Paris:
Repères/Mame, 1973. p. 157; Id. (1975) L’écriture de l’histoire. Paris: Gallimard, 2011. p. 339.
93
“[...] historicise l’actuel”. CERTEAU, Michel de. (1975) L’écriture de l’histoire. Paris: Gallimard, 2011. p.
118.
94
“[...] présentifie une situation vécue”. Ibid., p. 118.
95
“[...] explicite une identité sociale”. Ibid., p. 72. Grifo do autor.
96
“Car la mission sociale qui lui alloue l’[...] présent a précisément pour objectif de ramener l’autre dans le
champ d'une compréhension présente, et par conséquence d'éliminer l'altérité qui semblait être le postulat de
l'entreprise. L'autre [...] serait [...], mué en objet, l'élément que le discours historique transforme en signifiants et
303

Essa redução do outro ao mesmo é o limite ao qual Certeau busca dar uma nova
pertinência teórica no conjunto da prática contemporânea da história.
Pela via negativa, digamos que “Fazer história” não significa apenas produzir um
outro para logo absorvê-lo (eliminá-lo) em um discurso atual transparente, como se a história
não passasse de uma bela lenda narrada pela inteligibilidade neutra de um tempo.
Pela via positiva, Certeau afirma que um tipo distinto de história “tende a instaurar a
heteronomia (isto se passou) na homogeneidade da linguagem (isto se diz, isto se lê). Ela
produz o histórico no elemento de um texto. Estritamente falando, isso é fazer história”.97
A produção do heterogêneo da história na homogeneidade da linguagem passa
necessariamente pela constatação de uma “ferida” negativa que é a condição de qualquer
pretensão positiva: “nos pedaços que organiza, antecipadamente, o imaginário de sua
sociedade [os documentos], ele [o historiador] opera deslocamentos, acrescenta outras peças,
estabelece, entre elas, distâncias e comparações, discerne nesses indícios o rastro de outra
coisa, remete assim a uma construção desaparecida”.98 Com isso, ele cria um espaço povoado
por ausências: “ele constitui um passado capturado, mas não reabsorvido em seu novo
discurso”.99
A história é uma heterologia porque ela se constitui a partir da relação com um outro
ausente de tipo particular: “aquele que ‘passou’”.100 A morte do outro o põe fora do alcance.
Ele não é mais e por isso está inacessível como vivo. Essa vida passada (morta) é
irredutivelmente diferente, dessa existência outra restando apenas vestígios. Embora
entreguem rastros dessa alteridade do passado, a linguagem desses mortos dizem que eles não
estão ali, não são este ou aquele signo, não correspondem a tal ou tal relação estabelecida. 101
O que quer que o historiador entenda ou faça da história, o passado como morto,
diferente e ausente é o seu objeto: o que ele estuda não é mais, é outra coisa e não está em
lugar algum enquanto tal.

réduit à de l'intelligible pour en effacer le danger”. CERTEAU, Michel de. L’absent de l’histoire. Paris:
Repères/Mame, 1973. p. 174.
97
“Elle tend à instaurer l’hétéronomie (« cela s'est passé ») dans l'homogénéité du langage (« cela se dit », «
cela se lit »). Elle produit de l'historique dans l'élément d'un texte. À proprement parler, c'est faire de l’histoire”.
Id. (1975) L’écriture de l’histoire. Paris: Gallimard, 2011. p. 339.
98
“Dans les morceaux qu'organise à l'avance l'imaginaire de sa société, il opère des déplacements, il ajoute
d'autres pièces, il établit entre elles des écarts et des comparaisons, il discerne à ces indices la trace d'autre
chose, il renvoie ainsi à une construction disparue”. Ibid., p. 340. Grifo nosso.
99
“[...] il fait un passé pris mais non pas résorbé dans son nouveau discours”. Ibid., p. 340. Grifo nosso.
100
“[...] celui qui « a passé »”. Id. L’absent de l’histoire. Paris: Repères/Mame, 1973. p. 173. Grifo do autor.
101
Id. (1970) Histoire et structure. In: CERTEAU, Michel de. (1987) Histoire et psychanalyse: entre science et
fiction. Nouvelle édition revue et augmenté. Paris: Gallimard, 2002. p. 189, 190, 192; Id. L’absent de l’histoire.
Paris: Repères/Mame, 1973. p. 7, 8.
304

Quanto a esse ausente da história, Certeau afirma que o historiador organiza uma
“presença faltante” (présence manquante).102 O outro é aquilo em função do que seu trabalho
é produzido e a razão da falha original que seu empreendimento não pode superar. Figura
necessária à sua oficina, esse referente que escapa ao seu discurso é a falta que ele tem por
missão representar.
Indicar a organização da história em nome de uma “presença faltante” retoma o
problema aberto pela intervenção freudiana na história, embora em termos mais associados a
Lacan.103 A ciência histórica postula um morto, mas sua própria prática a contradiz quando
pretende ressuscitá-lo no discurso. A “presença faltante” está justamente nessa tensão entre
algo indispensável, mas que não pode ser enunciado. Essa falta desdobra a conclusão a que
Certeau tinha chegado a partir de sua análise sobre Freud, ou seja, a constatação de um
“objeto perdido” (objet perdu), “cena primitiva apagada, mais ainda organizadora”104 do
discurso.
Uma maneira de avaliar o significado dessa “ferida original” do conhecimento
histórico é articulá-la à maneira como Certeau pensa a diferença do passado por meio da
imagem de uma “alteridade alterante” (altérité altérante).105 Certeau expressa essa imagem
através de Robinson Crusoé e Jules Michelet, considerados por ele, respectivamente, um dos
últimos mitos ocidentais e o poeta da historiografia moderna.
Robinson torna-se chefe da ilha quando impõe uma razão técnica classificatória à sua
desordem. Essa colonização é subitamente interrompida quando se depara com o “vestígio
humano de um pé descalço perfeitamente marcado na areia”.106 A desordem do “método” e
um fascínio/horror ambivalentes são então desencadeados: “A ética tecnicista se modifica em
um poema erótico e alucinatório do outro”.107 Porém, esse arroubo onírico logo será superado
com a chegada do nativo, salvo da morte, tornando-se servo. É quando o controle sobre a ilha
retorna às mãos de Robinson Crusoé: “Sexta-Feira, ‘meu Sexta-Feira’”, fabula Certeau.108

102
CERTEAU, Michel de. L’absent de l’histoire. Paris: Repères/Mame, 1973. p. 9, 156.
103
E bastante conhecida a explicação lacaniana do desejo como falta. Para Lacan, o desejo resulta da subtração
da satisfação à demanda. Também é sua a formulação “o desejo do homem é o desejo do Outro”. LACAN,
Jacques. (1966) Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 698; Id. (1973). O seminário, livro 11: os quatro
conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. p. 223
104
“[...] scène primitive effacée mais encore organisatrice”. CERTEAU, Michel de. (1975) L’écriture de
l’histoire. Paris: Gallimard, 2011. p. 74.
105
Id. L’absent de l’histoire. Paris: Repères/Mame, 1973. p. 180.
106
“[...] vestige humain d’un pied nu parfaitement empreint sur le sable”. DAFOE apud Ibid., p. 178.
107
“ L’éthique technicienne se change en un poème érotique et hallucinatoire de l’autre”. Ibid., p. 178. Grifo
nosso.
108
“Vendredi, « mon Vendredi »”. Ibid., p. 178.
305

De acordo com ele, tal desejo ambivalente do outro encontra-se articulado na


historiografia contemporânea. Embora ela frequentemente tente rejeitar o fato, isso está
presente em uma de suas referências maiores, Jules Michelet, essa espécie de Daniel Dafoe
historiógrafo cujos contornos a interpretação heterológica certeauniana pincela. Michelet teria
praticado a história como uma erótica, sem eximi-la da responsabilidade de ser uma técnica:
“É o que, relido, Michelet volta a nos ensinar quando ele faz disso a narrativa do corpo que
não fala e a alucinação (o retorno, a ‘ressurreição’ literária) do morto”.109 Desse modo, esse
corpo (o outro ausente) é aquilo do que o historiador se ocupa sem ser capaz de ressuscitar (há
algo de irremediável nessa perda). Eis a ambivalência marcante de seu trabalho: “uma morte é
o fantasma que o historiador não pode nem esquecer, nem suportar”.110
Como Robson Crusoé, o historiador também se depara com os vestígios do outro
deixados na areia. Contudo, diferente do primeiro, o segundo tem – ou deveria ter –
consciência que o outro nunca voltará. Ele fica estupefato diante das marcas de uma alteridade
inquietante à ordem de sua sociedade, retornando sempre “alterado” (altéré)111 dessa ilha
distante e do contato com os vestígios do outro. “Sexta-Feira” é para ele objeto perdido de
uma “metáfora do ausente” (métaphore de l’absent)112 forjada por seu trabalho, sinal da
“desrazão”, do “sonho” ou da “morte” que sempre retorna em seu próprio discurso.
Há uma violência alterante capaz de irromper na racionalidade homogeneizante,
“existência” própria do outro que escapa e violenta uma ordem expressiva estabelecida,
suposta ou imaginada imposta sobre ele. Essa alteridade é alterante porque ela é capaz de
ressurgir mesmo onde parece ser eliminada: “a alteridade se inscreve mesmo no trabalho que
a reabsorve”.113
Portanto, é em função dessa problemática da alteridade que Certeau classificará o
modo de proceder do historiador. Suas conclusões sobre o ausente, a presença faltante e a
alteridade alterante são seguidas na prática do trabalho histórico pela noção de “operação
historiográfica”. Um fazer heterológico da história é a condição de possibilidade de uma
operacionalidade propriamente histórica no universo das ciências humanas.

109
“Relu, Michelet nous le réapprend lorsqu’’il en fait le récit du corps qui ne parle pas et l’’hallucination (le
retour, la « résurrection » littéraire) du mort”. CERTEAU, Michel de. L’absent de l’histoire. Paris:
Repères/Mame, 1973. p. 179. Grifo do autor.
110
“Une mort est le fantasme que l’historien ne peut ni oublier ni supporter”. Ibid., p. 179.
111
Ibid., p. 179.
112
Ibid., p. 179.
113
“[...] l’altérité se marque jusque dans le travail qui la résorbe”. Ibid., p. 174.
306

Certeau define a operação histórica/historiográfica pela “combinação de um lugar


social, de práticas ‘científicas’ e de uma escritura”114:
Encarar a história como uma operação será tentar, de um modo
necessariamente limitado, compreendê-la como a relação entre um lugar
(um recrutamento, um meio, uma profissão, etc.), procedimentos de análise
(uma disciplina) e a construção de um texto (uma literatura).115
A história funciona dentro da uma sociedade. Ela é definida por sua participação em
um lugar social no qual é estabelecido o possível e o impossível da pesquisa em determinado
tempo e espaço. Logo, sua prática é dependente do permitido e do interdito à produção de
conhecimento em uma situação epistemológica na qual está inserida. Embora o lugar não seja
suficiente para entender a história, é condição para que ela não seja uma produção lendária,
ideológica ou sem pertinência no seio de uma sociedade.116
Além de ser inerente à uma situação epistemológica socialmente dada, a história é uma
prática. Tendo em vista que os documentos conotam o passado, o historiador procede ao
reconhecimento, multiplicação e reunião dos rastros dessa alteridade que chegam ao presente.
Com o delineamento desse espaço de signos dispersos tornados indícios de realidades
históricas faltantes, ele está apto para estabelecer arrumações, conjugações, construções, em
suma, instaurar um sistema de relações.117
A isso corresponde a combinação do papel da erudição e das análises estruturais.
Nesse domínio o fazer heterológico da história aparece nitidamente. Embora o historiador
recorra a ferramentas conceituais de tipo “estruturais”, ele remete ao ausente desse sistema de
relações representado em sua análise: “essa conexão entre ‘estrutura’ e ‘ausência’ é o próprio
problema do discurso historiográfico”.118
Portanto, os rastros do outro não têm por função ser o elo perdido que, encontrado,
garantiria à análise restaurar determinado sistema do passado, mas o meio de reenviar à
alteridade que deve alterar a própria linguagem unitária da explicação do vivo sobre a morto.
Isso pode ser afirmado por intermédio da demonstração do papel estratégico e crítico
atribuídos por Certeau à prática da história.

114
“[...] combinaison d’un lieu social, de pratiques « scientifiques » et d’une écriture”. CERTEAU, Michel de.
(1975) L’écriture de l’histoire. Paris: Gallimard, 2011. p. 79. Grifo do autor.
115
“Envisager l'histoire comme une opération, ce sera tenter, sur un mode nécessairement limité, de la
comprendre comme le rapport entre une place (un recrutement, un milieu, un métier, etc.), des procédures
d'analyse (une discipline) et la construction d'un texte (une littérature)”. Ibid., p. 78. Grifo do autor.
116
Id. (1975) L’écriture de l’histoire. Paris: Gallimard, 2011. p. 94-95.
117
Ibid., p. 73, 118, 140; Id. L’absent de l’histoire. Paris: Repères/Mame, 1973. p. 156, 157.
118
“Cette connexion entre « structure » et « absence » est […] le problème même du discours
historiographique”. Ibid., p. 157.
307

Falar em estratégia da história significa indicar uma maneira propriamente histórica de


proceder quando esse ramo do conhecimento já não é mais detentor da racionalidade
explicativa dos dados que ela própria produz como históricos, quando ela parece perder sua
condição autônoma, assumindo uma posição auxiliar para outras disciplinas.
Entretanto, a história assume esse interesse externo como sendo sua tarefa própria. Sua
prática se torna “o meio de fazer aparecer diferenças relativas às continuidades ou às
unidades das quais parte”.119 Ela lança mão de construções teóricas de outras disciplinas para
“descobrir o heterogêneo que seja tecnicamente utilizável”.120 As séries e combinações
produzidas são inseparáveis da evidenciação de “desvios relativos a modelos”. 121 O resultado
específico da análise histórica não é a aplicação de modelos, mas o seu emprego tendo em
vista a manifestação de limites e a capacidade de transformá-los em problemas tratáveis: “se a
diferença é manifestada graças à extensão rigorosa de modelos construídos, ela é significante
graças à relação que mantém com eles a título de um desvio”.122
Portanto, esse trabalho tem por objetivo fazer emergir uma alteridade e por meio dela
alterar as formalizações dadas nos sistemas interpretativos estáveis nos domínios científicos
do presente. Isso pode ser visto inclusive no procedimento mais propriamente característico
da história, o do estabelecimento dos “fatos” históricos.
Na reflexão epistemológica de Certeau, o trabalho com os fatos se torna um recurso
estratégico para o desenvolvimento “pós-estrutural” da análise. O historiador está atento ao
excepcional (détail qui fait exception), forma pela qual é possível verificar o esforço de
Certeau em operacionalizar os rastros do outro ausente na prática histórica. Dessa maneira, o
historiador intervém no plano “estrutural” da análise: “o ‘fato’ do qual se trata doravante não
é aquele que oferece ao saber observador a emergência de uma realidade. Combinado com
um modelo construído, ela tem a forma de uma diferença”.123
Essa estratégia já traz implícita um estatuto particular da história em relação à razão
contemporânea. Ela tem a função de ser uma crítica, particularizada em três aspectos.
Primeiro, estabelece desvios significativos (écarts significatifs), fazendo surgir exceções

119
CERTEAU, Michel de. (1975) A escrita da história. Tradução de Maria de Lourdes Menezes, revisão de
Arno Vogel. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015. p. 79. “[…] le moyen de faire sortir des
différences relatives aux continuités ou aux unités d’où part l’analyse”. CERTEAU, Michel de. (1975)
L’écriture de l’histoire. Paris: Gallimard, 2011. p. 110. Grifo do autor.
120
“[...] découvrir de l’hétérogène qui soit techniquement utilisable”. Ibid., p. 107. Grifo do autor.
121
“[...] d’écarts relatifs à des modèles”. Ibid., p. 107.
122
“[...] si la différence est manifestée grâce à l’extension rigoureuse de modèles construits, elle est significante
grâce à la relation qu’elle entretient avec eux au titre d’un écart”. Ibid., p. 108. Grifo do autor.
123
“[...] le « fait » dont il s’agit désormais n’est pas celui qui offrait au savoir observateur l’émergence d’une
réalité. Combiné à un modèle construit, il a la forme d’une différence”. Ibid., p. 111-112. Grifo do autor.
308

pertinentes nas diversas esferas da documentação que produzam algo de negativo e exijam um
maior rigor no controle da aplicação de métodos econômicos, sociológicos, semióticos, etc.
Em segundo, faz do particular o “limite do pensável” (limite du pensable), o que quer
dizer indicar as vias pelas quais as regularidades são sempre relativas a cortes subjacentes,
seja um detalhe biográfico, uma baixa salarial ou um gesto aberrante, exemplos do desnível
necessário à irrupção do que se mantém impensado.
Por fim, o conhecimento histórico instaura a “figuração ambivalente do passado e do
futuro” (figuration ambivalente du passé et du futur): ele representa aquilo que falta no
passado, imprimindo uma falha na coerência científica do presente e dando lugar a uma
possível ultrapassagem que o abre a prática científica a um porvir.124
Por fim, o aspecto no qual a feição heterológica da história é apresentada mais
explicitamente: enquanto uma historiografia. O primeiro ponto a considerar a esse respeito é
levar em conta o vínculo inseparável mantido pela história com a construção de um texto,
quer dizer, com uma representação literária.
Estabelecer esse vínculo não significa reduzir a história à literatura, pois a escrita
historiadora lança mão de uma representação de tipo específico: “a representação – mise-en-
scène literária – só é histórica se ela se articula com um lugar social da operação científica e
se ela é institucional e tecnicamente ligada a uma prática do desvio em relação aos modelos
culturais ou teóricos contemporâneos”.125
Um segundo aspecto a considerar é a variedade de autores com os quais Certeau
dialoga nessa reflexão do aspecto literário da história. Roland Barthes, A. J. Greimas, Émile
Benveniste e G. R. Elton, para citar alguns. 126 Porém, no plano heterológico concernente ao
caráter escriturário da história, sua dívida maior é com a filosofia de Jacques Derrida e com a
psicanálise freudiana.
A herança da filosofia derridiana aparece no fato de que a escrita do historiador é uma
escritura. Seguir a trajetória dos rastros deixados pelo outro significa conscientizar-se que o
passado não voltará jamais: “a voz está perdida para sempre”, diz Certeau.127 Isso indica a

124
CERTEAU, Michel de. (1975) L’écriture de l’histoire. Paris: Gallimard, 2011. p. 115-119.
125
“La représentation – mise en scène littéraire – n'est « historique » que si elle s'articule sur un lieu social de
l'opération scientifique, et si elle est, institutionnellement et techniquement, liée à une pratique de l'écart par
rapport aux modèles culturels ou théoriques contemporains”. Ibid., p. 119.
126
No que diz respeito à relação entre o discurso histórico e a semiótica, cf. a parte Le discours de l’histoire do
capítulo Faire de l’histoire. Ibid., p. 65-70. No que tange mais propriamente ao caráter literário do discurso
histórico, ver a terceira parte (Une écriture) do capítulo L’opération historiographique. Ibid., p. 119-142.
127
“[...] la voix est à jamais perdue”. Id. L’absent de l’histoire. Paris: Repères/Mame, 1973. p. 9.
309

própria situação da historiografia quanto à sua pretensão de representar o outro: “a


historiografia é uma escritura, não uma fala”.128
Tal afirmação retoma a distinção derridiana entre voz e escritura, ou seja, a
contraposição entre a referência unitária à uma presença e a apagamento da origem. De
acordo com Certeau, essas análises feitas por Derrida em De la Grammatologie “permitem
precisar o estatuto da historiografia”.129
Segundo o teórico da historiografia, não se trata de uma entrega ao subjetivismo ou ao
relativismo – ponto onde se afasta de Paul Veyne, por exemplo, “maravilhoso decaptador de
abstrações”, ironiza Certeau.130
Essa condição escriturária da história diz respeito a uma ambivalência característica de
seu trabalho, uma vez que essa operação mantém uma relação necessária do texto com o real e
com a morte.131 O passado foi e não é mais, a um só tempo é o real objeto da história e o
passado morto que por ser inapreensível torna possível a emergência de outra coisa, ou seja, o
discurso historiográfico.
Por outro lado, essa abertura do presente permitida pela morte do passado tende a
dissimular a falta que a possibilitou. A importância dada ao desvio na esfera da prática parece
ser suplantada por uma atitude inversa à sua capacidade de articular uma alteridade do
passado alterante do presente. O “realismo” do discurso histórico identifica o objeto e a
narração, fazendo desse morto a figura objetiva da historicidade dos vivos. Esse é um dos
paradoxos em jogo no caráter ficcional da escrita da história.
O historiador enfatiza a presença do real em seu texto por meio de esforços
referenciais e de enunciados constatativos. Ao fazê-lo, não deixa de estar em funcionamento a
produção de um efeito de realidade, discurso performativo ao qual a escrita histórica não
escapa.132 Isso poderia ser pensado a partir de um certo modo de interpretação dos
documentos, do uso da cronologia, dos tipos de citação, do apelo ao nome próprio, do
discurso impessoal, etc.

128
“L’historiographie est une écriture, nom pas une parole”. CERTEAU, Michel de. L’absent de l’histoire.
Paris: Repères/Mame, 1973. p. 158.
129
“[...] permettent de préciser le statut de l’historiographie”. Ibid., p. 158, nota 7.
130
Id. (1975) A escrita da história. Tradução de Maria de Lourdes Menezes, revisão de Arno Vogel. 3 ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2015. p. 80. “[...] merveilleux coupeur de têtes abstraites”. Id. (1975) L’écriture
de l’histoire. Paris: Gallimard, 2011. p. 111. Certeau questiona a redução da história às decisões subjetivas e ao
prazer do historiador, mas também às regras do gênero literário, como a reflexão epistemológica de Veyne teria
proposto. Ibid., p. 82; Id. Une épistémologie de transition: Paul Veyne. Annales ESC, année 27, n. 6, p. 1317-
1327, 1972.
131
Id. L’absent de l’histoire. Paris: Repères/Mame, 1973. p. 158.
132
Id. (1975) L’écriture de l’histoire. Paris: Gallimard, 2011. p. 133.
310

No entanto, o mais relevante à questão heterológica relativa ao assunto é a maneira


como uma “ficção” historiadora intenta exumar os mortos e representá-los no texto. Ao
tornar-se o seu legista e fazer de sua escrita a mostra do corpo dissecado, o historiador termina
por excluir o outro ausente, representando-o em função de uma pedagogia dos vivos:
A escrita só fala do passado para enterrá-lo. Ela é um túmulo no duplo
sentido de que, pelo mesmo texto, ela honra e elimina. Aqui a linguagem
tem como função introduzir no dizer o que não se faz mais. Ela exorciza a
morte e a coloca no relato que substitui pedagogicamente alguma coisa que o
leitor deve crer e fazer.133
Esse jogo entre o “morto” e o “vivo”, ou entre a história e a ficção, ganha uma nova
dignidade na abordagem freudiana. A “ficção teórica” construída por Freud em Moisés e o
Monoteísmo estabelece a escrita como uma forma de relação heterológica com o passado. A
lucidez de Freud nessa seara é uma alternativa à maneira por vezes ingênua da representação
histórica remeter (eliminar) ao seu outro.
Freud designa como “lendas” as ficções que denegam seu estatuto ao pressuporem
falar do real. À ficção e ao romance, Freud atribui uma função teórica, fazendo delas a própria
forma da seriedade científica.134
A historicidade dos temas tratados é o que levou Freud à ficção, fossem em casos
clínicos ou documentos de outra natureza. Esse foi o meio pelo qual buscou dar conta de
alterações do modelo patológico “estrutural”, das modificações inseridas na posição do
analista pelo sofrimento do outro, ou do vestígio de algo diferente encontrado nos sistemas
históricos explícitos ou implícitos aos quais estavam ligados seus materiais.
Portanto, a escrita literária não é redutível nem estranha à seriedade da cientificidade:
“Desse ponto de vista, o romance é a relação que a teoria mantém com a aparição
acontecimental de seus limites”135 Essas falhas, lacunas e contradições adentram a narrativa
freudiana, violentando a identidade suposta pelo relato.
Uma vez que o corte é aqui o próprio princípio do funcionamento, é a relação da
narrativa com a morte o que a lucidez de Freud põe em cena, esse judeu que estava diante do

133
“L'écriture ne parle du passé que pour l'enterrer. Elle est un tombeau en ce double sens que, par le même
texte, elle honore et elle élimine. Ici, le langage a pour fonction d'introduire dans le dire ce qui ne se fait plus. Il
exorcise la mort et il la case dans le récit qui lui substitue pédagogiquement quelque chose que le lecteur doit
croire et faire”. CERTEAU, Michel de. (1975) L’écriture de l’histoire. Paris: Gallimard, 2011. p. 140.
134
Id. (1981) Le « roman » psychanalytique: histoire et littérature. In: CERTEAU, Michel de. (1987) Histoire et
psychanalyse: entre science et fiction. Nouvelle édition revue et augmenté. Paris: Gallimard, 2002. p. 111-112,
125.
135
“De ce point de vue, le roman, c’est le rapport que la théorie entretien avec l’apparition événementielle de
ses limites”. Ibid., p. 113.
311

horror do totalitarismo e do antissemitismo, lembra Certeau.136 Para Freud, a morte já está na


origem, é um “fora do texto” (hors-texte)137 que condiciona o discurso.
A escrita não cessa de buscar curar essa ferida e enganar a morte. Contudo, ela
apreende apenas os substitutos de um “conteúdo” impossível de capturar, “alteração
fundadora” (altération fondatrice)138 repetida na sucessão de lugares. O evento repete-se no
texto apenas se apagando, sendo a escritura “o próprio trabalho da diferença”.139
Nesse sentido, essa escrita “é ‘romance’ em função de suas relações confessadas com
seu outro”.140 Freud conserva, com a tradição mosaica, uma relação de suspeita e de filiação,
de distância e de obrigação. Sua escrita se produz no enlace da “alteração da identidade”
(altération de l’identité) e da “lei da dívida” (loi de la dette): “a Escritura se produz no lugar
e na língua do outro”.141
Certeau “fala” a língua da psicanálise freudiana com sotaque estrangeiro, de
historiador. Ele intervém nela para tratar questões que são autorizadas pelo “lugar” do qual
fala, a “instituição” histórica. Suas próprias questões são “alteradas” nesse diálogo com o
outro. Nesse texto sobre o “Moisés egípcio”, ele retoma o que estava tensionado na escrita
como componente da operação histórica, “liberando” o tratamento da eliminação do morto
como pedagogia do vivo pela via mais vividamente heterológica do “retorno do recalcado” e
da “inquietante familiaridade”.
Valendo-se de Emmanuel Levinas em Totalité et infini, Certeau associa uma filosofia
implícita e não confessada à historiografia. O logos do desvelamento do ser, agora feito
compreensão dos fatos históricos, torna o outro em mesmo ao apreendê-lo.
O “romance” freudiano teria modificado essa lógica, inserindo o trabalho escriturário
da diferença no discurso científico e didático da história: “Freud reintroduz o outro no
lugar”.142 A ficção histórica pode recalcar, como a historiografia tende a fazê-lo, ou dar lugar
a essa estranheza já marcada em toda escrita da história.
De acordo com Certeau, essa marca pode assumir a forma de sobrevivências que não
deveriam estar lá, em níveis estratificados agindo uns sobre os outros, ou em outros tipos de
“falhas” violentando as fronteiras de unidades homogêneas frequentemente postuladas pelo
discurso histórico.

136
Id. (1975) L’écriture de l’histoire. Paris: Gallimard, 2011. p. 372-373.
137
Ibid., p. 376.
138
Ibid., p. 376.
139
“[...] travail même de la différence”. Ibid., p. 385.
140
“[...] est « roman » du fait de ses relations avouées avec son autre”. Ibid., p. 369.
141
“[...] l’Écriture se produise dans la place et dans la langue de l’autre”. Ibid., p. 380-381. Grifo do autor.
142
“Freud réintroduit l’autre dans la place”. Ibid., p. 413. Grifo do autor
312

Em história religiosa, por exemplo, em uma sociedade que não pensa mais segundo os
mesmos princípios de seu objeto, deve-se considerar a dívida, o retorno e as deformações que
trazem de volta, por meio de ficções, esse “recalcado religioso” (refoulé religieux): “Esse
fantasma ‘deslocado’ assombra a nova morada”.143
Esse retorno do excluído na ficção histórica leva Certeau a questionar a “história
canibal” (histoire cannibale). Ela “devora” o passado para falar em seu lugar, em nome de um
progresso que autoriza saber, melhor do que os próprios textos antigos, o que eles dizem. Em
primeiro lugar, isso significa supor que eles dizem o que sabem (ignorar sua alteridade). Em
segundo lugar, isso é acreditar que o que sabem não reaparece (alterando) o discurso que o
assimila à distância:
Há engodo porque esses discursos enganam a si mesmos não admitindo a
dívida fundamental que, na distância, eles tem a respeito do que, morto, era
nas tradições (e permanece nelas) sabido. [...] Mas essa distância, êxodo do
“filho” e meio de sua vitória no lugar do “pai”, também não poderia impedir
o retorno (sobre um outro nome) do recalcado – “inquietante familiaridade”
no próprio lugar de uma razão e de uma produção científicas. [...] Um e
outro – o ocupante e o fantasma – são recolocados em jogo no mesmo texto:
a teoria presente reencontra o que, inassimilável, retorna do passado como
exterioridade colocada no texto.144
A condição literária da historiografia mantém essa ambivalência do real, outro e
mesmo, inquietante familiaridade encenada pela narrativa histórica. O discurso científico e a
linguagem ficcional deixam de ser excludentes, pois uma das formas dessa conjugação
heterológica entre passado e presente aparece no retorno de questões sem tratamento técnico
enquanto metáforas narrativas. A atenção ao papel da retórica em história estaria intimamente
ligada a essa outra forma de pensar para a qual a ficção e realidade não são estranhas no rigor
do trabalho do historiador.145
Um fazer histórico atinente à ausência do passado, organizador de uma presença
faltante e produzido em função de uma alteridade alterante, eis a significativa contribuição de
Certeau. Por esse caminho, chamou atenção para a astúcia da história, alteridade do passado

143
“Ce revenant « déplacé » hante la nouvelle demeure”. CERTEAU, Michel de. (1975) L’écriture de l’histoire.
Paris: Gallimard, 2011. p. 416.
144
“Il y a leurre parce que ces discours se trompent eux-mêmes en n’avouant pas la dette fondamentale que,
dans la distance, ils ont à l’égard de ce qui, tu, était dans les traditions (et reste chez eux) su. [...] mais cet écart,
exode du « fils » et moyen de sa victoire à la place du « père », ne saurait empêcher non plus le retour (sous un
autre nom) du refoulé – « inquiétante familiarité » dans la place même d'une raison et d'une production
scientifiques. [...] L'un et l'autre – l'occupant et le revenant – sont remis en jeu dans le même texte : la théorie
présente rencontre ce qui d'inassimilable revient du passé comme extériorité placée dans un texte”. Ibid., p. 418.
Grifo do autor.
145
Id. L’absent de l’histoire. Paris: Repères/Mame, 1973. p. 177; Id. (1982) L’histoire, science et fiction. In:
CERTEAU, Michel de. (1987) Histoire et psychanalyse: entre science et fiction. Nouvelle édition revue et
augmenté. Paris: Gallimard, 2002. p. 75, 78, 82.
313

histórico que irrompe onde ela é elipsada, e para a clareza teórica da historiografia em sua
dúvida e sua dívida para com esse estranho familiar constituinte de seu discurso. Dessa forma,
“o morto assombra o vivo” 146 e a heterologia certeauniana fornece dignidade espectrológica à
teoria da história.147

5.2 A pensabilidade histórica da teologia

Certeau descentrou seu trabalho da órbita espiritual e ultrapassou as fronteiras das


instituições religiosas e não religiosas. Tendo questionado os preceitos cristãos de sua prática
historiadora, deslocou suas técnicas de investigação eruditas para a abordagem (pós)estrutural
e despertou epistemologicamente para as fundações teóricas da prática científica
contemporânea, fazendo da história uma heterologia.
Esse conjunto significativo de mudanças encontrou seu paralelo teológico na reflexão
sobre os limites e possibilidades desse tipo de discurso. Ela passa pela explanação da situação
histórica e epistemológica que caracteriza a sua época, pois ela é a condição para a produção
de um enunciado teológico que se pretenda crível.
Essas são preocupações encontradas em seus textos de natureza mais abertamente
espiritual, meios pelos quais dialoga como desencontro entre as instituições católicas e o
universo dos crentes agravado com maio de 1968. A teologia estava dentre esses códigos
institucionais cada vez mais carentes de autoridade na cultura contemporânea.
Em sua resposta ao problema, a história deixa de ser aquilo que a teologia pensa para
tornar-se o seu pensável. A historicidade sintoniza as afirmações teológicas e seus
destinatários em uma mesma frequência. Apenas participando de uma experiência que não é
só sua a teologia pode fazer-se entender e crer. Justamente por saber que os sistemas
intelectuais gozam de autoridade apenas quando não alheios à linguagem e à inteligibilidade
de uma época, Certeau irá averiguar a situação histórica do seu próprio tempo com vistas a
tornar o cristianismo pensável teologicamente.

146
“Le mort hante le vif”. CERTEAU, Michel de. (1978) Psychanalyse et histoire. In: CERTEAU, Michel de.
(1987) Histoire et psychanalyse: entre science et fiction. Nouvelle édition revue et augmenté. Paris: Gallimard,
2002. p. 85.
147
O termo “espectrologia” é uma das traduções possíveis para o neologismo hantologie, cunhado por Jacques
Derrida em Espectros de Marx. Mais recentemente, Ethan Kleinberg explorou a pertinência filosófica da
desconstrução, especialmente do que Derrida evoca com o termo hantologie, para a teoria da história.
DERRIDA, Jacques. (1993) Espectros de Marx: o estado da dívida, o trabalho do luto e a nova internacional.
Tradução de Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. KLEINBERG, Ethan. Haunting history:
for a deconstructive approach to the past. Stanford: Stanford University Press, 2017.
314

Apresentarei esse exame feito por Certeau a partir de sua leitura sobre o conceito
moderno de revolução e sobre a situação epistemológica da religião em sua época, ocasiões
em que o questionamento do discurso (im)possível da teologia aparece diretamente associado
às condições históricas que a fazem pensável, isto é, ao que chamarei pensabilidade histórica.
Com essa expressão, faço alusão ao tríptico experiência/inteligibilidade/credibilidade cuja
efetividade histórica é requisito para a pertinência do discurso teológico.
A consciência da impossibilidade de fixação da verdade cristã por um grupo ou dogma
herdado do passado e da impraticável imunidade frente às demandas por renovação no
presente, dois elementos cruciais da abordagem certeauniana na segunda metade dos anos
1960, foi possível a partir de novas experiências que a modernidade viu emergir. Dentre elas,
os conceitos modernos de revolução e história colocaram em evidência uma nova forma de
relação com o passado que impôs desafios à teologia cristã.
Antes do final do século XVIII, o termo “revolução” fazia referência a outra
experiência diferente da qual ele está hoje associado. Significava a garantia de regularidade da
ordem cósmica ou natural quando dada violência ameaçadora se anunciava, restauração de
uma ordem original.
É o caso do reavivamento religioso em curso durante o Antigo Regime, cuja
renovação é orientada até um passado que é preciso reencontrar. Ou daquele mais
surpreendente da redação do Cahier de doléances, em 1789, cuja crítica aos ministros, à
nobreza ou ao feudalismo justifica-se na vontade de voltar a uma lei fundamental. A esse
respeito, Rousseau não havia concebido a revolução enquanto retorno ao primitivo?148
De qualquer modo, é com as revoluções americana e francesa que uma mudança
radical é inaugurada. A revolução não é mais regresso à origem, mas um novo começo que
interrompe bruscamente o passado, novo início na marcha do tempo, novo começo de uma
história desconhecida a desenrolar-se. Não é à toa que esse conceito de revolução e o conceito
moderno de história nascem juntos, sendo o primeiro a participação coletiva na instauração de
um mundo novo e o segundo um novo olhar que distancia o passado do presente.
Diante dessa nova experiência do tempo e das experiências revolucionárias
contemporâneas como se posicionariam os cristãos?149 Caberia supor uma independência do
cristianismo em relação à história, identificá-lo com instituições ou estruturas contrárias à

148
CERTEAU, Michel de. La révolution fondatrice ou le risque d’exister. Études, t. 329, p. 80-101, juin/juil.
1968, p. 88.
149
Não esqueçamos que essa reflexão data de 1968. Certeau está levando em consideração diferentes
experiências revolucionárias socialistas ocorridas ou ainda em curso naquele momento, dentre elas a revolução
cubana, a revolução cultural chinesa, as experiências guerrilheiras na América Latina, etc.
315

mudança e reveladoras de uma verdade “evangélica” autônoma de sua transmissão cultural e


de suas leituras culturais? Não é esse o caso para Certeau.
As experiências revolucionárias contemporâneas remetem o cristão à sua necessária
relação com o desconhecido. A intenção revolucionária de inventar uma nova sociedade
enuncia a condição de toda sociedade, uma vez que todos que dela participam compartilham o
mesmo risco de morrer para fundar, preço cujo pensamento e a ação cristã, ao falarem a
linguagem humana, não estão dispensados.
Uma postura decorrente seria certo evangelismo revolucionário. Ao reagir contra o
arcaísmo das instituições, ele extrairia de uma história antiga o que deveria fundar a adesão
dos cristãos à descontinuidade, à revolução. Mas esse procedimento corre o risco de negar a
novidade que busca justificar, pois tem necessidade de reencontrar modelos primitivos e
revelações cristãs antigas que a legitimem.
Analisando a possibilidade de uma teologia da revolução a partir de reflexões como as
de Ernst Bloch e de Michel Walzer,150 Certeau comenta:
Apesar do que nos ensinam sobre as relações entre política e religião na
história do cristianismo [...], essas obras, e outras semelhantes, seguem um
procedimento que, sem o saber, tenta sempre alinhar o presente com um
passado ou investir uma concepção contemporânea na história antiga. Elas
implicam uma abordagem paradoxal que julga a revolução de acordo com
critérios pré-revolucionários, ou então dão ao presente a cobertura ficcional
de uma história que, na realidade, vivia segundo outros princípios.151
As doutrinas e experiências cristãs antigas, reempregadas a serviço da teologia da
revolução, fazem parte de quadros históricos diferentes do presente, e se referem a um tipo de
continuidade que é negado pelo conceito moderno de revolução. Citando Hannah Arendt,
Certeau conclui: “os próprios fatos refutam essa teoria de que os ensinamentos do
cristianismo são revolucionários em si mesmos. Pois o fato é que nunca a revolução foi
realizada em nome do cristianismo antes dos tempos modernos”.152

150
As obras comentadas são BLOCH, Ernst. Thomas Müntzer, théologien de la révolution. Paris: Julliard, 1964;
WALZER, Michel. The revolution of the saints: study in the origins of radical politics. London: Weindenfelfand
Nicolson, 1966.
151
“Malgré ce qu'ils nous apprennent des relations entre politique et religion dans l'histoire du christianisme
[...], ces ouvrages, et d'autres semblables, suivent une procédure qui, à son insu, tente toujours d'aligner le
présent sur un passé ou d'investir une conception contemporaine dans l'histoire ancienne. Ils impliquent une
démarche paradoxale qui juge la révolution selon des critères prérévolutionnaires, ou bien ils donnent au
présent la couverture fictive d'une histoire qui, en réalité, vivait selon d'autres principes”. CERTEAU, Michel
de. La révolution fondatrice ou le risque d’exister. Études, t. 329, p. 80-101, juin/juil. 1968, p. 95.
152
“Les faits eux-mêmes réfutent cette théorie que les enseignements du christianisme sont révolutionnaires en
eux-mêmes. Car le fait est que jamais la révolution ne fut entreprise au nom du christianisme avant l'époque
moderne”. ARENDT apud Ibid., p. 96. A referência de Certeau é aos Essais sur la révolution. Paris: Galimard,
1967.
316

Certeau recorre a essa afirmação com certo grau de ressalva, mas ainda a subscreve:
Hannah Arendt opõe essa objeção à teologia da revolução “de uma maneira bastante
peremptória, mas muito sensata”.153 O próprio Certeau já havia algumas vezes classificado a
mensagem evangélica como revolucionária. Essa consciência da inexistência da experiência
revolucionária no cristianismo nesse artigo de 1968 não deixa de ser uma correção quanto à
sua própria leitura do cristianismo. Ela decorre de sua exigência em assentar a emergência de
uma espiritualidade na particularidade histórica indissociável desse nascimento.
Tratando-se do presente, o fazer teologia também não pode ser alheio às intempéries
de seu próprio tempo histórico. A história é um instrumento negativo que autoriza
interditando, pois a constatação de que o fazer e o pensar religioso no passado é
indissociavelmente histórico permite que ele continue o sendo no presente. Além disso, a
descontinuidade na materialidade histórica das diferentes práticas e discursos cristãos censura
autorizar uma dessas formas históricas como a verdade do presente.
Contudo, por volta de 1968, a reflexão de Certeau vai se tornando duplamente
teológica. Se antes ela já abordava a historicidade das experiências cristãs no passado e no
presente indissociavelmente à sua produção de um gesto teológico, agora o fazer teológico
aparece ele mesmo como o objeto de algumas de suas reflexões.
Com isso, o funcionamento negativo da história para a reflexão espiritual começa a
estar mais abertamente associada a prática da teologia enquanto enunciado possível, ou seja,
começam a ganhar mais relevo os indícios disso que chamo pensabilidade histórica do fazer
teológico. O primeiro elemento que faz a teologia um tipo de pensamento crível é a
experiência histórica particular que lhe fornece o vocabulário que a permite comunicar-se.
Vejamos como isso a partir de seu tratamento do vínculo entre o conceito moderno de
revolução e a teologia.
Ao invés de identificação do presente com uma de suas expressões históricas, a
revolução implica outra concepção de história não mais entendida como retorno ao passado.
Para Certeau, isso leva a considerar a fidelidade a Deus na perspectiva de uma sociedade em
que a religião não é mais elemento determinante da civilização, segundo uma modernidade
caracterizada pelo fato de ter sido instaurada em função de revoluções para as quais a religião
não é mais o princípio.

153
“[...] d'une façon assez péremptoire, mais pleine de bon sens”. CERTEAU, Michel de. La révolution
fondatrice ou le risque d’exister. Études, t. 329, p. 80-101, juin/juil. 1968, p. 96.
317

O que é então a teologia em tempos de revolução? “Para o teólogo a revolução é


menos aquilo do que fala que aquilo em função do que deve falar”.154 Ao invés de partir de
uma síntese teológica para concluir uma política, deve partir de análises políticas para
determinar “o tipo de ética e de renovação cristã que exigem de nós esses engajamentos
políticos”.155 A linguagem espiritual precisa ser pensada a partir desses acontecimentos, da
mobilidade das sociedades, pois ela se abre na experiência humana do risco de morte.
Nesse sentido, o cristão se encontra em situação análoga a de Agostinho no momento
da tomada de Roma por Alarico em 410. Seria preciso perguntar-se, como Agostinho, se o
fim de um universo cultural significava a morte do cristianismo. Faz-se necessário enterrar o
cristianismo junto com seus mortos? O que significa para os cristãos o presente de antes,
subitamente tornado passado? E sobre esses estrangeiros nascituros, godos de ontem,
socialistas de hoje, o que anunciam de Deus? Para Certeau, com o livro I da Cidade de Deus,
meditação sobre a violência, a guerra e a morte, Agostinho consagrara catorze anos da sua
vida a responder tais questões e a desvelar, no destino do paganismo romano, o mistério da
história.156
Segundo Certeau, levar a sério o “mistério da história” não significa reempregar a
reflexão sob os auspícios de uma “teologia da história” (« théologie de l'histoire ») – como
era o caso de santo Agostinho e do próprio Certeau em seu momento teológico da história.
Esta traz implícito “um desenvolvimento contínuo, no qual as instituições e doutrinas cristãs
pareciam fornecer os marcos ao longo de uma história, preparando e depois desvelando a
revelação do Cristo”.157
Ao contrário, se a morte é o preço que deve ser pago para que uma sociedade nova
nasça, então a reflexão precisa “mostrar o sentido de uma nova experiência histórica”,158
experiência que associa a recusa ao desamparo dos oprimidos à desaparição de um regime
social; e que ao fazer da colaboração coletiva a definição do presente, anuncia um passado,
dividindo-o na descontinuidade das culturas, na sucessão de nascimentos e mortes.

154
“La révolution est donc moins pour le théologien ce dont il parle, que ce en fonction de quoi il doit parler”.
CERTEAU, Michel de. La révolution fondatrice ou le risque d’exister. Études, t. 329, p. 80-101, juin/juil. 1968,
p. 97. Grifo do autor, mas poderia ser nosso, pois é o cerne do que se propõe tratar aqui.
155
“[...] le type d’éthique et de renouveau chrétien qu’exigent de nous ces engagements politiques”. Id.
Construction révolutionnaire et violence. In: BLANC, E. et al. Christianisme et révolution. Paris: La Lettre,
1968. p. 117.
156
Id. La révolution fondatrice ou le risque d’exister. Études, t. 329, p. 80-101, juin/juil. 1968, p. 97-98.
157
“La théologie de l'histoire que nous avons apprise impliquait un développement continu dont des institutions
et des doctrines chrétiennes paraissaient fournir les jalons tout au long d'une histoire préparant puis dévoilant
la révélation du Christ”. Ibid., p. 98.
158
“[...] montrer le sens d'une nouvelle expérience historique”. Ibid., p. 98.
318

Portanto, é necessário levar a sério o papel da descontinuidade. Para tanto, deve-se


investigar a passagem entre gerações e culturas, transição que faz da morte a condição de uma
linguagem da verdade, ou seja, de uma história da qual ela é inseparável. É preciso buscar
descobrir “como a manifestação de Deus numa sociedade passada (as origens cristãs) nos
revela uma relação específica entre cada forma histórica do risco humano, o modo de
participação específico a esse risco e o significado religioso dessa participação”. 159 Essa é a
condição para que a teologia possa fazer parte daquele novo tempo de revoluções e falar uma
língua que ela não inventou.
Nas tensões e invenções de um novo começo, na ruptura com uma história percebida
como passada as interrogações humanas aparecem aos cristãos. Somente não negligenciando
essa condição histórica da experiência é possível perguntar sobre o significado espiritual do
processo nunca acabado de transformação das sociedades, o que para Certeau quer dizer
encontrar soluções proporcionais em situações diferentes sem com isso abafar a
particularidade histórica de nenhuma delas.160
A pensabilidade contígua à teologia passa não só por uma experiência histórica
particular que fornece o material humano no qual funda sua participação e a partir da qual
fala. Ela também dependente de uma situação epistemológica da religião no mundo moderno,
na qual a fronteira entre o pensável e o impensável estabelece os limites inteligíveis e críveis
do discurso teológico. A efetividade histórica dessas urgências humanas, dos princípios
postuláveis/reconhecíveis e da capacidade de fazer crer forma a condição pensável da teologia
na atualidade.
No início dos anos 1970, Certeau busca esclarecer “como, numa situação
epistemológica dada, o cristianismo é pensável”.161 A pergunta, incluída em seu conhecido

159
“[...] comment la manifestation de Dieu dans une société passée (les origines chrétiennes) nous révèle une
relation spécifique entre chaque forme historique du risque humain, le mode de participation propre à ce risque,
et le sens religieux de cette participation”. CERTEAU, Michel de. La révolution fondatrice ou le risque
d’exister. Études, t. 329, p. 80-101, juin/juil. 1968, p. 98-99.
160
Essa é a tarefa de uma fidelidade criadora que Certeau via, por exemplo, na atuação de Dom Bernard Besret
na abadia cisterciense de Boquen. Fundada no século XII, extinta com a revolução francesa e restaurada em
1936, até 1973 a abadia de Boquen esteve confiada à ordem dos cistercienses. O padre Bernard Besret,
responsável pela comunidade monástica entre 1965 e 1969, lá empreendeu um trabalho de reforma da vida
monástica. Sobre o tratamento de Certeau do assunto, cf. Id. Les structures de communion à Boquen. Études, t.
332, p. 128-136, janv. 1970.
161
“[...] comment, dans une situation épistémologique donnée, le christianisme est pensable”. Id. La rupture
instauratrice ou le christianisme dans la culture contemporaine. Esprit, p. 1177-1214, juin 1971, p. 1200. Grifo
do autor.
319

artigo sobre a ruptura instauradora, também embalou o título de outra publicação: how is
christianity thinkable today?162
Apresento essa pensabilidade pela via negativa, pois o reconhecimento de certos
pressupostos corresponde ao não reconhecimento de outros na produção do discurso
teológico. Certeau diagnostica a situação epistemológica de então a contrastando à posição da
religião em relação a ela. Ao fazê-lo, ele historiciza a inteligibilidade contemporânea, pois o
nascimento de seus princípios significa necessariamente a morte de outros. Em uma
modernidade que “secularizou” o pensável, certas fixações da teologia estão na base de seu
descrédito.
Nessa correlação traçada a partir da leitura de textos de Certeau, à “folclorização” da
verdade corresponde um cristianismo “cultural”; à secularização do pensável, o impudor
ontológico da teologia; à religião como objeto das ciências humanas, a dissolução das ciências
religiosas; e à perda do corpo eclesial, a “perversão” do discurso teológico e a universalização
ideológica da Igreja. Dados esses impasses, a pretensa declaração do sentido teológico da
história não poderia incorrer senão em uma impostura que Certeau denuncia, com isso já
apontando os possíveis e impossíveis dos quais a teologia não pode se esquivar se pretende se
fazer crer.
O jesuíta considera sua época como a de um tempo em que o desejo de firmeza
doutrinal ou de abertura são fenômenos secundários. É antes de tudo um tempo no qual a
expressão religiosa não mais está guardada sob os auspícios eclesiásticos, mas incorporada na
linguagem corrente, convertidas em propriedade do público.163 Se antes as crenças cristãs
estavam enraizadas em grupos e associações específicos, fundamentados em práticas e
verdades determinadas, em seguida se desvencilharam gradualmente da autoridade
eclesiástica, tornando-se fragmento da cultura.164
Desse modo, a linguagem religiosa estava apta a integrar o espetáculo dos mass media,
cuja linguagem não transpareceria a profundidade do mundo ou a verdade da história, mas
fazia do vivido uma produção mitológica. A partir de elementos cotidianos, dramatizava a
vida ordinária, animava grandes lendas populares. Realizava o enigma da relação do homem
com o mundo, ilustrado pelo azar e pelo destino, alicerce do sucesso desse tipo de produção.
162
CERTEAU, Michel de. How is christianity thinkable today? (1971) In: GRAHAN, Ward. (Ed.) The
postmodern God: a theological reader. Oxford: Blackwell, 1997. p. 142-155.
163
A esse respeito, cf. Id. La rupture instauratrice ou le christianisme dans la culture contemporaine. Esprit, p.
1177-1214, juin 1971, especialamente páginas 1177 a 1183; Id. La folklorisation de la vérité. Cultures et foi, n.
11, p. 3-7, janv./fév. 1971; Alguns comentários também estão presentes na seção Un christianisme culturel em
CERTEAU, Michel de; DOMENACH, Jean-Marie. Le christianisme éclaté. Paris: Éditions du Seuil, 1974.
164
Certeau não precisa cronologicamente o aparecimento desse cenário. Escrevendo no início dos anos 1970, ele
apenas afirma que até poucos anos a situação era diferente.
320

Esse mistério era expressado pelo material religioso, uma vez que os signos cristãos
careciam de referências precisas. É assim que bispos e sacerdotes, personagens tão próximos
quanto folclóricos, figuravam em emissões ou crônicas dedicadas a algum problema vital.
Contudo, participavam não por estarem habilitados a dizer a verdade ou porque “faziam
passar” algo dela. Sua função era outra:
Na commedia dell’arte de toda uma sociedade, têm sucessivamente o papel
de um mesmo personagem enigmático, encarregado de ser o figurante das
perguntas sem resposta que, precisamente, produz a desaparição de
ideologias ou de dogmas críveis.165
Verdades anteriormente asseguradas passam a ser desprovidas de representações
críveis. Convicções perdem seus contornos, funcionam como linguagem do exotismo,
componente do teatro contemporâneo, lendas numa sociedade baseada no espetáculo. A
religião é utilizada em nome de interrogações que não se identificam com o que ela diz
literalmente: a expressão religiosa não é mais signo de uma verdade.
Essa folclorização de verdades antes consideradas legítimas parece corresponder a
certa racionalização do saber. Ela resulta de uma nova situação epistemológica, de uma nova
modalidade de compreensão edificada “sobre a coerência entre os procedimentos de análise,
os postulados que implicam e os objetos que determinam”. Ela “faz do ‘religioso’ um
material, e não mais um ‘objeto científico’, ainda menos a determinação das práticas. Dá o
verdadeiro alcance ao isto que se chamou de secularização. É o pensável que é
‘secularizado’”.166
Essa situação foi historicamente possibilitada por um tipo de mutação a partir da qual
as sociedades ocidentais paulatinamente deixaram de falar a linguagem religiosa. Pelo menos
desde o século XVII, a civilização europeia indicava escolhas sustentadas no risco de fundar a
si própria “em vez de ser organizada pela arquitetura cósmica de uma integração religiosa”. 167
Essa propensão moderna foi difundida “através de uma série de fenômenos históricos
– desde o discurso cartesiano ou nascimentos científicos da época clássica até a revolução
francesa e a própria análise marxista”.168 A partir de então, deixou de ser possível pensar os

165
“[...] dans la commedia dell'arte d'une société entière, ils tiennent tour à tour le rôle d'un même personnage
énigmatique, [...] chargé d'être le figurant des questions sans réponse qu'a précisément fait naître la disparition
d'idéologies ou de dogmes croyables”. CERTEAU, Michel de. La rupture instauratrice ou le christianisme dans
la culture contemporaine. Esprit, p. 1177-1214, juin 1971, p. 1181.
166
“[...] sur la cohérence entre les procédures de l'analyse, les postulats qu'elles impliquent et les objets qu'elles
déterminent. Il fait du «religieux» un matériau, et non plus un « objet scientifique », encore moins la
détermination des pratiques. Il donne sa véritable portée à ce qu'on a appelé la sécularisation. C'est le pensable
qui est «sécularisé»”. Ibid., p. 1188-1189. Grifo nosso.
167
“[...] au lieu d'être organisée par l'architecture cosmique d'une intégration religieuse [...]”. Ibid., p. 1198.
168
“[...] à travers une série de phénomènes historiques — depuis le discours cartésien ou les naissances
scientifiques de l'âge classique jusqu'à la Révolution française et à l'analyse marxiste elle-même”. CERTEAU,
321

problemas contemporâneos segundo um saber religioso. Numa sociedade que deixou de ser
religiosa, as ciências também o fizeram.
Mas o que foi tornado falso problema ou impensável, permanece atuando na teologia.
Certo pudor científico exclui das ciências humanas toda proposição ontológica. Diante dessa
condição epistemológica, nenhum metadiscurso mostra-se capaz de “restaurar a antiga
ambição de uma teoria unitária”.169 Enquanto isso, a teologia outorga a si a capacidade de
desvelar “valores essenciais e a emergência da verdade da história”. Presume “cegamente o
poder de trespassar a opacidade da linguagem e de tornar presentes, à luz do dia, verdades
substanciais”.170
Para superação dessa pretensão impudica não basta à teologia investir no auxílio das
ciências religiosas. Em sua miséria,171 a teologia fantasia encontrar socorro entre seus
vizinhos. Má aposta, pois as ciências religiosas, convertidas em história, sociologia, ou outra
dentre as ciências humanas, deixam de estar em condições de definir critérios especificamente
religiosos. Embora inegável a existência de instituições, literaturas ou manifestações
religiosas, já não é possível esclarecer sua particularidade.
Durante três séculos, coube às ciências religiosas assegurar essa transição das
teologias de ontem para as ciências humanas de hoje. Inicialmente, elas buscavam se dissociar
de crenças ou ortodoxias eclesiásticas. Reclamavam os objetos religiosos então sob a guarda
das igrejas. Sua racionalidade adquiria tonalidade particular, uma vez que princípios
teológicos circunscreviam o lugar onde eram introduzidos outros métodos. Antigas
compreensões sintonizavam o aporte das abordagens históricas, sociológicas ou psicológicas.
Os recortes segundo esses modelos acabaram predominando, descolando-se da crença
que garantia sua qualificação religiosa. O que se vê são as ciências religiosas operando uma
passagem, conduzindo os fenômenos até suas identificações culturais, linguísticas, etc., até
sua conversão em objetos produzidos consoante critérios científicos. Dado que esse transporte

Michel de. La rupture instauratrice ou le christianisme dans la culture contemporaine. Esprit, p. 1177-1214, juin
1971, p. 1198.
169
“[...] aucun « méta-discours » scientifique n’est susceptible de [...] de restaurer l’antique ambition d’une
théorie unitaire [...]”. Ibid., p. 1190.
170
“[...] elle suppose à ses mots la capacité d'être la transparence et le don des choses, le dévoilement de valeurs
essentielles et l'émergence de la vérité de l'histoire”. Ibid., p. 1190.
“[...] Elle présumerait aveuglément le pouvoir de transpercer l'opacité du langage et de rendre présentes [...], au
grand jour, des vérités substantielles”. Ibid., p. 1190.
171
Na formulação A miséria da teologia é possível reconhecer o eco do título Miséria da filosofia (1847),
dirigido por Marx contra a Filosofia da miséria de Proudhon (1846). GIARD, Luce. Cherchant Dieu. In:
CERTEAU, Michel de. (1987) La faiblesse de croire. Texte établi et présenté par Luce Giard. Paris: Éditions du
Seuil, 2003. p. 23; CERTEAU, Michel de. La misère de la théologie. In: Ibid., p. 251-259.
322

era a razão de sua existência, as ciências religiosas se dissolveram nesse trânsito, junto com os
escombros teológicos que fundavam sua especificidade.172
Possibilitadas por um tipo de sociedade não religiosa, as ciências humanas privam os
signos cristãos de qualquer prerrogativa frente outros fenômenos de ordem sociocultural. Eles
são tratados como produtos da esfera psicológica, social e histórica, como elementos
dependentes desses outros domínios, explicados por eles e dando deles uma representação.
São inteligíveis somente nas relações regulares que mantém com outros elementos do
“sistema” que fazem parte.173
É assim que uma forma de religião ou de teologia passa a ser explicada pelo tipo de
sociedade, cultura e economia à qual remete. Do mesmo modo que outras formas de discurso,
a linguagem religiosa é sintoma ou variante de certa organização linguística ou social, seu
vocabulário é significante somente enquanto ligado a outros elementos, as afirmações
religiosas individuais representam estruturas psicológicas. Isso porque as ciências humanas
superam a regionalização dos fatos religiosos, não mais consideram como determinante a
relação entre um enunciado religioso e a verdade nele inscrita por uma crença, mas sua
posição num estado de conexões entre fenômenos heterogêneos.
Essa forma de tratar o fato religioso parece tomá-lo como indissociável de um
equívoco. O conteúdo religioso esconde suas condições de produção, é significante de outra
coisa que não daquela que realmente diz. Ou seja, o conteúdo religioso não enuncia o
processo que o explica, é uma alegoria a ser decifrada. Quando fala de Deus, graça, salvação,
o que está em questão é sua posição em dada organização social ou estruturação psicológica.
O historiador debruçado sobre uma mística centrada na hierarquia eclesiástica do
século XVII francês, nela descobre a repercussão de uma situação em que as estruturas da
sociedade paulatinamente perdiam seu caráter religioso. Assim, os cristãos manifestam
coerções sociais, o endurecimento defensivo das instituições e uma compreensão gratificante
acerca do martírio em favor da verdade. Os conteúdos doutrinais ratificam um novo
funcionamento do cristianismo em dado recorte espaço-temporal.
Desse modo, o essencial é a inversão que as ciências humanas praticam, pois as
afirmações religiosas pretendiam dizer a verdade, apresentar o sentido da vida individual ou

172
Sobre esse assunto, ver: CERTEAU, Michel de. Lieux de transit. Esprit, p. 607-625, févr. 1973,
especialmente p. 621- 623. Algumas considerações também podem ser encontradas em: Id. La rupture
instauratrice ou le christianisme dans la culture contemporaine. Esprit, p. 1177-1214, juin 1971, p. 1187-1188.
173
Certeau define sistema nos seguintes termos: “Par «système», il faut entendre non la réalité d'une
infrastructure ou d'un tout isolable, mais le modèle interprétatif que constitue et vérifie une pratique scientifique,
c'est-à-dire une organisation cohérente des procédures interprétatives”. Ibid., p. 1184, nota 13. Grifo do autor.
323

coletiva, enquanto hoje são os modelos sócio-históricos ou os mecanismos psicológicos que


explicam a existência religiosa, afirma Certeau.
Assim como o auxílio às ciências religiosas, o pertencimento ao corpo eclesiástico já
não garante a verdade do discurso teológico. Por corpo, Certeau entende “o ser-aí histórico e
social de um lugar organizado”.174 Do mesmo modo que a admissão em um corpo sustenta um
discurso médico e psicanalítico,175 uma ekklesia sustenta o discurso cristão, autoriza seu
logos.
Mas se todo campo discursivo “permanece relativo a um conjunto de possibilidades e
impossibilidades que não dependem dele e que o ligam às determinações da história”,176
quando o corpo é assombrado pelos efeitos do tempo, violado por tumultos e agitações da
história, a linguagem que ele suporta não sai ilesa.
É o que acontece quando a sociedade deixa de ser globalmente eclesiástica. Nesse
caso, a teologia passa a ser despossuída de referências com valor intrinsecamente verdadeiro,
pois sua credibilidade correspondia à posição ocupada no interior de um sistema, de um
imaginário coletivo.
Nessas condições, a referência a autoridades recebidas por um meio eclesiástico oculta
o que no corpo já está aberto a forças de ordem não eclesiástica. O corpo já não organiza as

174
“[...] l’être-là historique et social d’un lieu organisé”. CERTEAU, Michel de. Comme une goutte d’eau dans
la mer. In: CERTEAU, Michel de; DOMENACH, Jean-Marie. Le christianisme éclaté. Paris: Éditions du Seuil,
1974. p. 81.
Être-là é a tradução geralmente dada em francês ao dasein heideggeriano. Se levarmos em conta as ressonâncias
heideggerianas implicadas na formulação, diremos que o corpo eclesiástico e a “verdade” que ele professa não
podem ser senão no mundo, nas relações constitutivas de dada situação. Nesse sentido, uma propriedade ou
sentido primordial não poderiam ser garantidos através de particularidades “históricas” sem que se confundisse o
ser e o ente, sem que uma diferença ontológica irredutível fosse esquecida.
175
Certeau remete a Michel Foucault em Arqueologia do saber e a Jacques Lacan nos Escritos, respectivamente.
CERTEAU, Michel de. (1973 ou 1974) Du corps à l’écriture, un transit chrétien. In: CERTEAU, Michel de.
(1987) La faiblesse de croire. Texte établi et présenté par Luce Giard. Paris: Éditions du Seuil, 2003. p. 265-266,
notas.
Esse texto permaneceu inédito em sua versão original. Ela seria publicada como epílogo no livro Le
christianisme éclaté, referente ao debate com Jean-Marie Domenach, transmitido em maio de 1973 pela rádio
France-Culture sobre o tema Le christianisme, une nouvelle mythologie. Devido à extensão do texto, maior que o
espaço disponível, Certeau selecionou algumas passagens sob o título Comme une goutte d’eau dans la mer.
Outra parte foi publicada com acréscimos em La faiblesse de croire de 1977. Alguns trechos permaneceram
inéditos até sua publicação integral em 1987 na edição dirigida por Luce Giard. Ela conta ter, em 1985, proposto
a Certeau publicá-lo em sua integralidade. Embora ele tenha mostrado interesse pela proposta, caiu enfermo,
vindo a falecer no início do ano seguinte. GIARD, Luce. Cherchant Dieu. In: CERTEAU, Michel de. (1987) La
faiblesse de croire. Texte établi et présenté par Luce Giard. Paris: Éditions du Seuil, 2003. p. 23. Uma referência
ao original encontra-se em Comme une goutte d’eau dans la mer, cuja versão afirmava fazer parte de um
trabalho em curso que apareceria em Fable chrétienne, projeto que não veio a concluir. Comme une goutte d’eau
dans la mer. In: CERTEAU, Michel de; DOMENACH, Jean-Marie. Le christianisme éclaté. Paris: Éditions du
Seuil, 1974. p. 117. Minhas referências a Du corps à l’écriture, un transit chrétien concernem às passagens não
publicadas em outros textos.
176
“Tout champ de discours reste relatif à un ensemble de possibilité et d’impossibilité qui ne dépendent pas de
lui et qui le lient aux déterminations de l'histoire [...]”. CERTEAU, Michel de. (1973 ou 1974) Du corps à
l’écriture, un transit chrétien. In: CERTEAU, op. cit., p. 266.
324

operações cristãs, sejam elas textuais ou éticas. Não faz falar os discursos; é aquilo do que
eles falam. Não é o lugar de produção, mas o produto do discurso, seu efeito imaginário.
Como descreve Certeau, é um “lugar” que já
não funciona como uma instituição fundadora de sentido, capaz de organizar
uma representação em função dos limites de um corpo. Ela ao contrário se
transformou em uma representação ilimitada, indefinida. Objeto ideológico,
a Igreja pode avançar em todas as partes onde haja uma falta e pretender
preencher todos os vazios de uma sociedade. 177
A fabricação do discurso religioso funciona pela superação fictícia dos limites
encontrados em toda racionalidade regional que ocupa o terreno antes reservado à religião. É
o seu léxico que apresenta os sintomas das limitações de toda atividade técnica. Seus
significantes são estendidos a todas as formas de finitude, sem eles próprios sofrerem de
nenhuma insuficiência. Impermeáveis às regras e resistências de um campo próprio, entram
“em uma lógica da perversão”178.
Certeau está jogando com a carga psicanalítica do termo “perversão”. Em psicanálise,
ele remete à ligação do desejo a outros objetos, à fuga da norma, à recusa da Lei. 179
Desdobrando essa noção a partir do tratamento dado por Certeau à perda do corpo eclesial,
diremos que o deslocamento do funcionamento do discurso religioso à outra ordem histórica
distinta daquela “perverte” a pensabilidade própria à teologia em uma época determinada,
fantasiando uma aplicabilidade generalizada com a qual possa seguir infalível e universal.
À perda progressiva do corpo eclesial seguiu-se a expectativa de manter a forma
unitária e globalizante da Igreja, restabelecendo outro conteúdo social, prossegue o jesuíta em
sua avaliação. A Igreja continua se pretendendo o único lugar onde é possível anunciar o
sentido da história, embora esteja ampara em instâncias nas quais a história não é enunciada
em termos cristãos. Suas normas e seu poder em organizar práticas vêm de lugares sociais
onde deveriam ser introduzidas. Ela impõe critérios ao pensamento e à ação irredutíveis à
tutela efetiva da Igreja, como mostra o exemplo da ligação entre vocação religiosa e classe
trabalhadora.180

177
“[...] ne fonctionne plus comme une institution fondatrice de sens, capable d'organiser une représentation en
fonction des limites d'un corps. [...] Il s'est au contraire transformé en une représentation illimitée, indéfinie.
Objet idéologique, l'Eglise peut s'avancer partout où il y a du manque et prétendre combler tous les vides d'une
société”. CERTEAU, Michel de. La faiblesse de croire. Esprit, p. 231-245, avril/mai 1977, p. 234. Grifo do
autor.
178
“[...] dans une logique de la perversion”. Ibid., p. 233.
179
Cf. FREUD, Sigmund. (1905) Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: Edição standard brasileira das
obras completas de Sigmund Freud, vol. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1972; LACAN, Jacques. (1956-1957) O
seminário, livro 4: A relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.
180
CERTEAU, Michel de. La faiblesse de croire. Esprit, p. 231-245, avril/mai 1977, p. 234-235. Aqui, Certeau
se refere aos “padres trabalhadores”. A mission ouvrière, como ficou conhecido esse movimento, era composto
325

Isso quer dizer que o discurso religioso atua a partir de pertencimentos particulares.
Fala a partir da vinculação que estabelece com localizações sociais, culturais, econômicas,
políticas, etc. Portanto, obedece a clivagens que não são cristãs. Esse deslocamento para
novos espaços181 implica a inexistência de um lugar próprio a partir do qual a Igreja possa
falar e a substituição de elementos circunscritos historicamente por uma linguagem universal.
Quando a doutrina se adapta a essa desestruturação da Igreja, a pluralidade torna-se
signo de uma nova linguagem unitária. O lugar de produção, aquilo que o acredita, já não é
reconhecido no discurso que se pretende teológico. O discurso religioso oculta o que o faz
funcionar, silencia o que é a sua história.
Dessa maneira, vemos como para Certeau a teologia já não está em condições de
incumbir-se guardiã de verdades recebidas, a partir das quais restaria extrair consequências
que explicassem o sentido da realidade. Se assim o fosse, precisaria supor universal uma
opção que é singular e tomar como base a ideologia de um grupo particular, alternativas
inviáveis nas circunstâncias históricas do presente em que as verdades autorizadas pelo corpo
eclesiástico se dissipam e o sacerdote torna-se personagem folclórico.
De que maneira a teologia pode produzir-se a partir dessa pensibilidade sem a qual não
pode funcionar pudicamente? De que forma conseguiria o discurso teológico ser crível em
uma época em que o cristianismo vira espetáculo teatral, em que as ciências religiosas se
dissolvem nas ciências humanas e em que o corpo cristão já não o autoriza? Se no coração de
uma sociedade globalmente estruturada em torno da linguagem religiosa o papel da teologia
era anunciar o sentido, o que resta-lhe dizer habitando uma nova cultura? Qual sua potência
no interior de outra realidade histórica a qual agora pertence? Diante das interdições que sua
época implica, o que pode o discurso cristão?
Certeau trabalha em função de experiências e linguagens particulares de um tempo,
como a sensibilidade crente pós-concílio, os problemas humanos do sacerdócio na América
Latina, o maio de 1968, o estruturalismo, etc. Ele recusa a manutenção folclórica da verdade,
por meio da qual o papel do religioso na cultura não teria outra função que a de teatralizar
aquilo que a sociedade não acredita mais. Absorvendo epistemologicamente o secular como a
“ordem” na qual objetos científicos são produzíveis e pensáveis, postula uma inteligibilidade

por sacerdotes autorizados a atuar na posição de trabalhadores assalariados. Condenado por Pio XII em 1954,
passou a ser aceito oficialmente após o concílio Vaticano II.
181
Certeau localiza a emergência desse processo séculos antes. Uma série de partidas foi necessária à medida
que encontrar um lugar próprio na cultura resultava cada vez mais difícil para a Igreja: “desde o século XVII, as
‘missões’ tentam reconstituir sobre outro terreno (o selvagem, os meios populares, etc.) o solo faltante de uma
identidade interna”. Quanto mais restrito fica o território propriamente religioso, mas se aprofunda esse
movimento de disseminação. CERTEAU, Michel de. La faiblesse de croire. Esprit, p. 231-245, avril/mai 1977,
p. 235, nota 4.
326

baseada em princípios arregimentados sob o signo da alteridade, assim como assume as


ciências humanas como campo procedimental possível para a interpretação. Além disso,
encara a Igreja como um grupo particular onde, enquanto crente, deposita a objetividade
social de sua participação na sociedade.
Essa materialidade estabelece o lugar não teológico da teologia em Certeau. Ela
significa em todos os seus níveis uma superação, pois produzem a ruptura com uma situação
da religião e da teologia passadas ou remanescentes de outrora. Suas experiências não são as
mesmas que a de Jesus, de Inácio, de Favre, de Surin, das ursulinas de Loudun... Ao suspeitar
da folclorização da verdade e assumir o secular como o pensável, afirmando o real como o
ausente que permite a produção do conhecimento, demarca sua diferença em relação ao
anacronismo da fixação “presentificante” da teologia. O manejo das técnicas das ciências
humanas supera sua submissão a postulados teológicos estranhos a elas. Por fim, seu modo de
pertencer à Igreja denuncia a pretensão ideológica de manutenção fictícia de uma instituição
particular como o corpo unitário do sentido universal.
Esses critérios experienciais, inteligíveis e críveis efetivos fornecem a condição
histórica da prática teológica certeauniana. Diante desse limite pensável da teologia, qual seria
a tarefa que a particularizaria? Conforme o próprio Certeau sugeriu em La misère de la
théologie, trata-se de articular uma opção singularmente cristã às questões gerais de um
tempo. O exercício certeauniano dessa tarefa teológica produziu uma pluralidade de
interpretações, gestualidade teológica a qual passo a seguir.

5.3 A gestualidade teológica certeauniana

A denúncia da miséria da teologia nas frentes que organizei e desdobrei sob o signo da
pensabilidade histórica não esgotam as posições de Certeau sobre o assunto. Seus textos ainda
trazem tácita ou explicitamente a crença de uma pertinência da teologia, haja vista eles
próprios produzirem uma interpretação na qual a particularidade do feito vale ao menos o
adjetivo.
O que significou essa passagem da teologia ao teológico em Certeau? Ela teve como
consequência a perda de garantia ontológica em favor da equivalência performativa do
“sentido” do cristianismo. O capital deixa de ser a harmonia entre os conteúdos essenciais da
verdade cristã e suas expressões renovadas segundo experiências modernas. A ênfase desloca-
se para a capacidade dessas novas expressões serem “heréticas” e ainda manterem uma
327

correspondência com o passado que as autorize cristãs. Não é a questão de uma identidade,
mas de uma modalidade propriamente cristã.
O gesto da dupla diferença foi a maneira certeauniana de introduzir uma modalidade
cristã sem por isso produzir um efeito heterônomo de presença sobre a cultura de um tempo.
Na abordagem teológica de Certeau, uma particularidade cristã em relação à situação global
de um tempo/espaço é inseparável da fabricação de diferenças na tradição recebida. A
docilidade inaudita de uma práxis cristã anda de mãos dadas com uma abertura audaciosa aos
desafios atuais às possessões da fé cristã.
Esse gesto pode ser visto como a prática de uma alternativa à impensabilidade da qual
a teologia parece agonizar na contemporaneidade. Ele fornece parâmetros à leitura da
experiência cristã por meio de uma modalidade de relações com o passado e com o presente.
Essa dependência não exclusiva e mútua entre tempos é capaz de ser “gestualizada” de
maneiras distintas segundo as exigências existenciais e epistemológicas atuais. Portanto, a
dupla diferença como modalidade de relações do gesto teológico certeauniano é o outro
teológico emergido dos riscos históricos que a fazem pensável.
Gostaria de ponderar sobre algumas consequências importantes quando consideramos
a realização do gesto teológico certeauniano na concretude de sua pensabilidade histórica.
Seguindo esse caminho por intermédio da lógica da ruptura instauradora, duas consequências
se destacam. Primeiro, ao relacionar seu passado e seu presente a partir da modalidade secular
do pensável, como meio de contornar as consequências folclorizantes, universalizantes e
ideológicas do discurso teológico, não há como não correr o risco de ficar à deriva e fazer do
ser cristão não mais que a permanência de um desejo sem certezas objetivas. Segundo,
enquanto inerente à dada experiência histórica, ela é constante risco de morte, pois participar
de algo novo que nasce significa fazer morrer algo do seu passado cristão. Como estaria o
resultado dessa modificação ele próprio isento desse mesmo destino no futuro? Certeau
assume ambos os riscos como o preço a pagar ao buscar fazer o cristianismo pensável por
meio da operação de uma ruptura instauradora.
Quanto ao desejo de tornar a teologia historicamente pensável e à modalidade
teológica da dupla diferença, cabe distinguir uma gestualidade teológica certeauniana que a
essa altura já é possível falar. Trata-se do conjunto de gestos atrelados mais ou menos
explicitamente à forma duplamente diferenciante da páxis cristã, na qual vão sendo acrescidos
traços, imagens e novas exigências de acordo com problemas específicos tratados nos textos.
Nesse sentido, a diferença do passado e do presente como dupla ruptura dá lugar à união na
diferença. Esta, por sua vez, ganha ares de fidelidade criadora, ruptura instauradora...
328

Veremos outras duas leituras que compõe essa gestualidade teológica, que à sua maneira
também pagam o preço por buscarem ser pensáveis historicamente. São elas a escritura e a
fábula cristã, dois gestos diferentes de uma mesma gestualização do teológico como
fragilidade de crer.
Segundo Certeau, o procedimento teológico não pode mais dissociar um discurso
sobre a mensagem cristã de seu objeto, também seu fundamento, que são as experiências de
um tempo.182 A tarefa da teologia é dar uma interpretação coerente da relação entre fidelidade
e diferença a uma história que toma simultaneamente a forma passada das origens, da qual o
presente recebe sua possibilidade e se distingue, e a forma presente do ato da fé postulada
pelo discurso sem ser idêntico a ele.183
Nessa perspectiva é possível ver o gesto teológico da dupla diferença como a
ancoragem da reflexão de Certeau. Isso porque a linguagem teológica não pode excluir a
inventividade cristã do passado que a permite sem determinar, nem ser restrita a uma
experiência do presente que a historiciza.
Nesse sentido, a teologia assume a forma de uma inteligência cristã em relação a suas
origens e a possibilidade do presente que permite novos modelos de inteligibilidade, lugar
historicamente particular cuja nova cultura é indissociável do que o cristianismo pode dizer
sobre si mesmo. Com relação às suas condições históricas passada e presente, “a fé aparece
como uma ruptura sempre instauradora”,184 permitida por seu acontecimento instaurador,
Jesus Cristo.
Essa interpretação da práxis cristã como ruptura instauradora, pontuada em Vers une
pratique théologique: la rupture instauratrice, parte final de seu artigo Faire de l’histoire na
Recherches de Science Religieuse em 1970, será retomado no ano seguinte em um texto
dedicado ao tema na Esprit.
Aos olhos de Certeau, à revelia de empobrecimentos moralizantes, o termo
“permissão” (permission) traz consigo peso epistemológico e histórico – mais um dentre
muitos exemplos da pensabilidade histórica da teologia como a defino segundo os escritos do

182
A esse respeito, ver as impressões de Certeau sobre o Congresso Mundial de Teologia ocorrido no ano de
1970 em Bruxelas. Outros congressos (a Convenção de Baltimore, 1971 e a Feira Internacional das Ciências
Religiosas, Los Angeles, 1972) também foram resenhados pelo jesuíta. Eles são excelentes recursos para
acompanhar o movimento que a teologia e as ciências religiosas percorriam à época. Cf. CERTEAU, Michel de.
Qu’est-ce qu’un congrès de théologie? (Bruxelles, 12-17 septembre 1970). Études, t. 333, p. 587-596, nov. 1970;
Id. Culture américaine et théologie catholique. A propos de la Convention de Baltimore (juin 1971). Études, t.
335, p. 561-577, nov. 1971; Id. Lieux de transit. Esprit, p. 607-625, févr. 1973.
183
Id. Faire de l’histoire. Recherches de Science Religieuse, t. 58, n. 4, p. 481-520, 1970, p. 516.
184
“[...] la foi apparaît comme une rupture sans cesse instauratrice”. Id. Faire de l’histoire. Recherches de
Science Religieuse, t. 58, n. 4, p. 481-520, 1970, p. 516.
329

jesuíta. Certeau exemplifica a força do termo com exemplos da experiência cotidiana: um


espectador assiste Play-Time, filme de Jacques Tati, e passa a notar o humor das ruas como se
tivesse o olhar do diretor. Nas palavras de Certeau, “o filme tornou possível uma observação
humorística que, sem ele, não teria ocorrido. O mesmo vale para a leitura de um poema, o
encontro com alguém, a agitação de um grupo”. 185 Isso quer dizer que o evento torna possível
outra forma de relação com o mundo.
Certeau pensa o significado epistemológico e histórico da “permissão” a partir do
espírito do “retorno a Freud” (« retour à Freud ») tão caro a Lacan, cujos seminários o jesuíta
acompanhou por anos a fio. Freud possibilitou nova maneira teórico-prática de análise, dando
lugar a múltiplas interpretações, heterogêneas, sem que seja razoável circunscrever sua
“verdade” a uma delas. O “acontecimento Freud” (l’événement Freud) se dissemina em
diferentes leituras, foge a todo enquadramento objetivo. Permite interpretações distintas
justamente por manter-se inacessível como objeto. O “retorno a Freud” aponta para um
desdobramento que cria diferenças e afirma incompatibilidades relativas a um começo
epistemológico.
Analogamente, o “acontecimento Jesus Cristo” (l’événement Jésus-Christ) permite
elaborações cristãs historicamente distintas sem que nenhuma delas seja idêntica a esse
começo. Qualquer tipo de transmissão ou leitura acerca das “origens” é impossível sem o
Evangelho, embora nunca o repitam. Portanto, nenhum saber é capaz de oferecer uma
representação universal àquilo que aconteceu inaugurando.
Esse acontecimento não é passível de um conhecimento objetivo, não porque a vida,
os discursos, a morte e a ressurreição de Jesus não tenham deixado rastro nas comunidades e
escritos antigos, mas porque eles são um rastro a mais. Na relação dos crentes com aquilo que
acreditavam, o que aprendiam se convertia num acontecimento que os abria a novas
possibilidades. Assim, os primeiros documentos não fornecem mais que o avesso do
essencial:
Todos eles já falam de um acontecimento cuja particularidade apagam
substituindo-o por resultados diferentes, mas cuja natureza, assim,
manifestam pelo próprio fato de referir-se a ele como o que lhes permite. O
caráter histórico do acontecimento não tem por indício sua conservação fora

185
“Le film a rendu possible une observation humoristique qui, sans lui, ne se serait pas produite. II en va de
même pour la lecture d'un poème, la rencontre de quelqu'un, le remuement d'un groupe”. CERTEAU, Michel
de. La rupture instauratrice ou le christianisme dans la culture contemporaine. Esprit, p. 1177-1214, juin 1971, p.
1200.
330

do tempo, graças a um conhecimento mantido intacto, mas ao contrário sua


introdução no tempo das invenções diversas às quais “dá lugar”. 186

Em diferentes conjunturas históricas, as criações sucessivas da fé especificam o


“sentido” do corte inicial – uma indicação baseada em seus rastros e nunca a exposição de sua
realidade, pois esta é sempre faltante e jamais identificável a um dado objetivo – e as regras
de uma fidelidade formulada em termos de compatibilidades ou de incompatibilidades.
Portanto, a fidelidade não pode ser estabelecida como fato objetivo, refere-se à ausência do
objeto, do particular que o instaura, do acontecimento diferente, já passado, que possibilita
outras expressões.
O postulado dessa leitura é a teoria heterológica da história, por sua vez articulada
estritamente a uma compreensibilidade contemporânea. Isso torna plausível defender que a
análise da ruptura instauradora é também uma alternativa ao drama da teologia na atualidade.
A teologia está na encruzilhada entre a fidelidade à revelação cristã e a diferença da
epistemologia contemporânea. Certeau está enfrentando o problema e vasculhando essas
regiões em busca de um modo de tornar o discurso cristão pensável historicamente em função
do presente.
Além disso, esse drama inclui na pensabilidade histórica da teologia um imperativo
ético. A credibilidade e a relevância do discurso cristão na sociedade não religiosa estão
condicionadas à impossibilidade de pensar a partir de uma ontologia entificante, totalizante e
teleologizante, tornando um “isto” ou “aquilo” a essência de todas as coisas e a
origem/finalidade do destino humano.
Esse princípio filosófico negativo interdita a redução da alteridade do presente à
condição de heteronomia do conteúdo da mensagem cristã, cujas guardiãs seriam as
instituições da Igreja. A teologia não fornece o que falta ao outro, mas fala em função do
outro que lhe falta, quer se trate do fundamento ausente em torno do qual se organiza toda sua
fé ou da resistência da historicidade da existência ao que recebe de seu passado cristão.
Portanto, é em nome de um acolhimento da alteridade dos outros e do Outro que a
dupla diferença da ruptura instauradora busca superar a impossibilidade da teologia. Essa
operação leva o gesto teológico certeauniano às suas últimas consequências, pois torna o

186
“Ils parlent déjà tous d'un événement dont ils effacent la particularité en lui substituant des suites différentes,
mais dont ils manifestent ainsi la nature par le fait même d'y renvoyer comme à ce qui les permet. Le caractère
historique de l’événement n'a pas pour indice sa conservation hors du temps, grâce à un savoir maintenu intact,
mais au contraire son introduction dans le temps des inventions diverses auxquelles il « fait place ».”.
CERTEAU, Michel de. La rupture instauratrice ou le christianisme dans la culture contemporaine. Esprit, p.
1177-1214, juin 1971, p. 1201-1202.
331

nervo da fé o desejo de ser fiel a um conteúdo objetivo já sempre perdido, logo, o risco de
estar à deriva.
Para Certeau, a relação com um acontecimento inicial instaurador aponta sempre para
a existência de um outro necessário, irredutível a um saber. Como condição e não objeto,
perde-se naquilo que autoriza. Em sua própria particularidade histórica, morre nas invenções
que suscita. Desaparece, impossível de apreender, pois assume o sentido de uma pluralidade
de experiências, na multiplicidade das práticas que não o conservam nem o repetem.
A “verdade” do começo – uma crença/desejo e não um conteúdo objetivo – só pode
ser encontrada no espaço de possibilidade que abre. A uma só vez mostram algo das
diferenças acerca do acontecimento e escondem algo por suas novas elaborações. Desse
modo, converte-se em “inter-dito” (Inter-dit): nem dado ou dito em qualquer ponto particular,
a não ser na forma das interrelações constituídas na abertura dessas expressões impossíveis
sem ele.
“Expressões que não seriam sem ele”.187 “Não sem”: segundo Certeau, a formulação
mais pudica e rigorosa da relação entre a pluralidade de linguagens cristãs e o “inter-dito” que
indicam. Ou ainda, nas palavras de Certeau, “a face negativa de uma verdade que se enuncia
objetivamente no modo da ausência”.188 Não sem ti, enunciado próprio da fé encontrado na
forma litúrgica “que eu não esteja nunca separado de ti”.189
O “não sem” (nicht ohne), explora Certeau, foi sugerido por Heidegger “a propósito da
relação do ser com o sujeito neutro e doador (es) que a coloca. O que quer que seja de suas
referências heideggerianas, a categoria de não sem joga de mil maneiras no funcionamento da
experiência cristã”.190 Por isso, não pode haver organização comunitária que se pretenda cristã
sem o outro do passado, do presente e do futuro, do mesmo modo que nos Evangelhos Jesus
não é sem o Pai nem os discípulos.
O cristianismo é impossível sem um acontecimento instaurador, cuja singularidade se
evanesce permitindo experiências plurais e comunitárias; impossível sem a multiplicidade, a
qual se diferenciando manifesta seu sentido. Todo objeto primitivo, todo essencial dado na
voz ou na letra se esvai, não restando o que pudesse ser verificado fora da abertura a novos
espaços, mutações e criações. Qualquer autoridade cristã está marcada pela ausência que a
187
“[...] expressions qui ne seraient pas sans lui.”. CERTEAU, Michel de. La rupture instauratrice ou le
christianisme dans la culture contemporaine. Esprit, p. 1177-1214, juin 1971, p. 1203. Grifo do autor.
188
“[...] La face négative d’une vérité qui s’énonce objectivement sur le mode de l’absence.”. Ibid., p. 1203.
189
“[...] que je ne sois jamais separé de toi.” Ibid., p. 1203.
190
“[...] à propos du rapport de l'être à un sujet neutre et donateur (es) qui le pose [...]. Quoi qu’il en soit de ses
références heideggériennes, la catégorie du pas san joue de mille manières dans le fonctionnement de
l’expérience chrétienne.”. Ibid., p. 1203. Certeau remete a: HEIDEGGER, Martin. Temps et être. In:
L’endurance de la pensée. Pour saluer Jean Beaufret. Paris: Plon, 1968. p. 16-71.
332

funda, manifesta o que não é, carrega a falta do que a permite, sejam as Escrituras, tradições,
concílios ou papas. A fidelidade ao cristianismo se inscreve numa necessária e irredutível
pluralidade de autoridades.
Mas se a ninguém pertence a “verdade”, só pode ser dita por vários, logo a própria
estrutura do cristianismo é comunitária, pois o que postula como verdade não pode ser
circunscrita a um membro, discurso ou função. Por ser a condição inapreensível do que ela
possibilita, seus rastros são signos múltiplos, uma superfície de lugares articulados.
É o caso dos Evangelhos, conjunto polissêmico de textos que não dizem a mesma
coisa, “conexão de opostos” – complexio oppositorum – como afirmou Käsemann.191 A
linguagem do Novo Testamento pode ser caracterizada por uma não identidade. Nenhuma de
suas diferenças internas podendo ser excluída em detrimento da outra. Possui uma superfície
articulada, não unificada, que coordena opostos. Segundo Certeau,
o corpo escriturário não seria cristão sem essa remissão a outros. O limite
tem uma função permissiva. Representa, em cada espaço sincrônico e
desdobramento diacrônico, um papel de diferenciação que restaura
incessantemente a falta do outro.192
O encerramento do corpo testamentário permite, fora e depois dele, outras
articulações, por vezes opostas, sejam elas patrísticas, litúrgicas ou teológicas. Por isso
Certeau afirma não ser possível aceitar reduções unitaristas.
Ao longo da história, em ocasiões nas quais “o cristianismo foi reduzido ao privilégio
de uma letra escriturária, ou identificado com a palavra de um personagem eclesiástico”, 193 ou
mesmo viu-se “bloqueado em um corpo institucional e doutrinal, ou afogado no
indiferenciado totalitário de uma ‘profundidade mística’”,194 o que estava em jogo eram
variações de uma mesma estrutura de identificação. Uma “estrutura de limite” (structure de
limite) incompatibilizava com elas, garantia a pluralidade, permitia a diferença.
A experiência cristã opera nesse limite. Seu ponto nevrálgico é a morte. Assim como a
morte de Jesus permitiu o Evangelho, “deu lugar” ao Pai e à pluralidade das Escrituras, toda
experiência cristã orientada à invisibilidade do Espírito, à multiplicidade de formas, à
alteridade do passado e do presente, é uma experiência de morte. O limite é partida, passagem

191
KÄSEMANN apud CERTEAU, Michel de. La rupture instauratrice ou le christianisme dans la culture
contemporaine. Esprit, p. 1177-1214, juin 1971, p. 1205.
192
“Le corpus scripturaire ne serait pas chrétien sans ce renvoi à d'autres. La limite a une fonction permissive.
Elle joue, dans chaque espace synchronique et dans le déploiement diachronique, un rôle de différenciation qui
restaure incessamment le manque de l'autre [...]”. Ibid., p. 1205. Grifo do autor.
193
“[...] le christianisme a été ramené au privilège d'une lettre scripturaire, ou identifié à la parole d'un
personnage ecclésiastique [...]”. Ibid., p. 1205.
194
“[...] ou bloqué dans un corps institutionnel et doctrinal, ou noyé dans l'indifférencié totalitaire d'une «
profondeur mystique ».”. Ibid., p. 1205.
333

de um lugar a outro. A operação cristã é constituída pelo reconhecimento e pela superação de


uma particularidade, distanciamento que abre caminho a uma nova investigação.
Essa operação não dá ao fazer a missão de colocar em prática uma doutrina, nem o
estabelece enquanto objeto ou regra a ser descrita pela linguagem. Quanto mais atenção à
história e à sociologia religiosa, mais claro fica como a práxis cristã foi e continua sendo
irredutível às leis e ao ensino. Ela opera bruscos deslocamentos quanto ao ensinamento
recebido, possibilitando novas leis e teologias, rupturas diversas – contemplativas,
missionárias, sociais, políticas, etc.
Essa superação é sempre relativa aos lugares atuais da cultura. Seja qual for seu
enquadramento, essa práxis mantém “a efetividade de uma determinação e a necessidade de
uma superação”.195 Só assim faz o movimento articulador de toda a fé crista, ou seja, a
conversão do Antigo em Novo Testamento:
A práxis de Jesus – que culmina no silêncio de sua morte – articula duas
linguagens entre si. [...] Jesus não deixou de manter a particularidade da
instituição judaica e de criar, todavia, graças a um desvio, a instauração de
outro sentido. Uma distância (seu ato) em relação à lei antiga operava o
deslocamento que ia dar origem a uma lei nova. [...] Globalmente, essa
escritura neotestamentária não tinha por significação ser a verdade em lugar
da precedente, ou para substituir uma religião por outra, mas para conotar
um tipo de conversão doravante inaugurada por Jesus, e que estaria
indefinidamente por “fazer” em relação a essa instituição ou outras. 196
Essas instruções espirituais foram compreendidas pelas primeiras gerações cristãs. As
confrontações e diálogos característicos dos primeiros textos não pairam sobre uma estrutura
binária, em posições maniqueístas ou sínteses que superem a diferença. Sua lógica não é a do
“um ou outro” (l’un ou l’autre) nem “um e outro” (l’un et l’autre), mas a do “nem um nem
outro” (ni l’un ni l’autre).197
Nem antinomia nem exclusão da diferença, ela cria uma terceira hipótese não
determinada, remete a um terceiro ausente, vínculo com o futuro ainda ausente que é o sentido

195
“[...] l'effectivité d'une détermination et la nécessité d’un dépassement.”. CERTEAU, Michel de. La rupture
instauratrice ou le christianisme dans la culture contemporaine. Esprit, p. 1177-1214, juin 1971, p. 1211.
196
“La praxis de Jésus – qui a son achèvement dans le silence de sa mort – articule entre eux deux langages. [...]
Jésus n'a cessé de tenir la particularité de l'institution judaïque et de créer pourtant, grâce à un écart,
l'instauration d'un autre sens. Une distance (son acte) par rapport à la loi ancienne opérait le déplacement qui
allait donner lieu à une loi nouvelle. [...] Globalement, cette écriture néotestamentaire n'avait pas pour
signification d'être la vérité à la place de la précédente, ou de remplacer une religion par une autre, mais de
connoter un type de conversion désormais inauguré par Jésus, et qui serait indéfiniment à « faire » par rapport
à cette institution ou à d'autres.”. Ibid., p. 1211. Grifo do autor.
197
A esse respeito, Certeau confessa seu débito para com os apontamentos de Luce Irigaray sobre o interdito. O
título do artigo de Irigaray, Le sexe fait « comme » signe, é indicado incorretamente por Certeau como Le sens
fait « comme » signe. O título aparece corrigido na republicação póstuma editada por Luce giard no livro La
faiblesse de croire. Cf. Ibid., p. 1211; Id. La faiblesse de croire. Texte établi et présenté par Luce Giard. Paris:
Éditions du Seuil, 2003. p. 223; IRIGARAY, Luce. Le sexe fait « comme » signe. Langages, année 5, n. 17, p.
42-55, 1970.
334

da relação com o acontecimento inicial, ele mesmo fechado e faltante, por isso permitindo
outras conversões, a constituição de novos textos e superações críticas por intermédio de
novas invenções.
Dessa maneira, um duplo processo é característico do desdobramento das linguagens
cristãs: diferenciação e desvelamento de incompatibilidades. Cada nova elaboração deve
“manter a pluralidade, reabrir uma ‘terceira hipótese’ e restaurar a relação com a
‘permissão’ inicial”.198
Esse trabalho de diferenciação exorciza as exclusões redutoras que identificam o
cristianismo a uma teorização única, com um só lugar teológico ou com uma experiência
interior. Certeau precisa em termos negativos a direção que tal procedimento assume: ela
“deve manifestar que o cristianismo está ‘aberto’ (é a diferenciação jamais finita) e que não é
compatível com qualquer coisa”.199
Um acontecimento está suposto em toda parte, mas nunca apreendido. Jesus é o Outro,
logo não pode ser um objeto possuído. Sua presença permitiu o que o sucedeu, assim como
sua desaparição é a condição da pluralidade do que se seguiu. Tudo o que fez e transmitiu não
seria possível sem sua particularidade histórica, do mesmo modo que elaborações objetivas
não poderiam ter sentido espiritual sem a superação dessa singularidade através da
multiplicidade de expressões necessárias entre si, sempre insuficientes.
A experiência cristã pode ser definida por essa dialética da particularidade e sua
superação, o que permite esclarecê-la a partir da relação que mantém com a um lugar, seja ele
doutrinal, cultural, social, científico, etc., e de sua crítica a ele em razão de novas práticas da
fé.
A “teologia”200 articula essa opção singular que é a fé cristã e questões gerais, sejam
elas sociais, políticas, econômicas ou culturais. É necessário repensar as formas teológicas
sucessivas assumidas por essa articulação, as elaborações acerca desse vínculo fundamental
entre o cristianismo e aquilo que ele não é.
O recurso a essa “tradição” permite vislumbrar a tensão constante entre lugares
particulares a partir de onde fala e a história nunca terminada. Portanto, uma linguagem não

198
“Maintenir la pluralité, réouvrir une « troisième hypothèse » et restaurer la relation à la «permission»
initiale.”. CERTEAU, Michel de. La rupture instauratrice ou le christianisme dans la culture contemporaine.
Esprit, p. 1177-1214, juin 1971, 1212, nota 37. Grifo do autor.
199
“[...] doit manifester que le christianisme est « ouvert » (c'est la différenciation jamais nie) et qu'il n'est pas
compatible avec n'importe quoi.”. Ibid., 1212, nota 37. Grifo nosso.
200
As aspas são utilizadas pelo próprio Certeau, indicando que ao falar em “teologia” já está expressando outra
coisa que não aquilo que o termo normalmente implicava. Id. (1973) La misère de la théologie. In: CERTEAU,
Michel de. (1987) La faiblesse de croire. Texte établi et présenté par Luce Giard. Paris: Éditions du Seuil, 2003.
p. 253.
335

seria cristã sem uma dupla tarefa: confrontar-se com o que chega de sua história para seguir
reinterpretando rigorosamente e inventivamente o que recebe, por intermédio de sua
participação efetiva no presente, de suas ambições, conflitos e riscos.
A abordagem da ruptura instauradora feita por Certeau torna o “sentido” cristão não
um continuum unitário na história, mas um conjunto de expressões sobre a mensagem
evangélica dependentes de lugares históricos determinados. Isso pressupõe uma
dessemelhança em relação ao ensino recebido em decorrência de sua linguagem e experiência
hodiernas, mas também uma singularidade cristã na imanência da ordem atual das coisas.
Nessa perspectiva trazida por Certeau, os evangelhos, a tradição, o magistério da
Igreja, tudo o que se refere à trajetória do singular cristão, carrega essa dignidade “revelada”
pela práxis de Jesus, ou seja, um ato que permite sem identificar. A trajetória do cristianismo
é a história dessas novas elaborações sucessivas cuja fidelidade está na compatibilidade
sempre limitada e nunca garantida com o corte fundador, sua possibilidade e o objeto que lhes
falta.
Portanto, uma forma particular do presente onde se reelabora essa compatibilidade
será sempre temporária. Por ser cristã e aquilo que a permite ter sido perdido, ela já traz o
índice de sua própria superação. Sobre toda práxis cristã paira o fantasma de uma
incompatibilidade insuperável por meio da qual deverá ser refeita outra ultrapassagem que
estabeleça uma nova vinculação com a permissão inicial.
A operação cristã proposta como ruptura instauradora corresponde ela própria a uma
determinação efetiva a ser superada pela instauração de algo diferente, do mesmo modo como
a conversão operada por Jesus articulou a lei antiga e a deslocou em lei nova. O que está em
jogo não é a sucessão de uma verdade coloca no lugar da outra, mas uma modalidade
particular e limitada de conversão.
Certeau faz a teologia pensável ao tomar a historicidade, a inteligibilidade e a abertura
ética caras ao seu tempo como partida para a operação singularmente cristã proposta por ele.
Apesar da força de sua reflexão, da agudeza de suas ideias e do agenciamento original de
disciplinas, autores e problemas contemporâneos, essa reflexão só poderia manter uma
coerência teológica com a conversão cristã que expõe se estivesse ela mesma cônscia da
morte que necessariamente deveria acometê-la. Ela só seria crível e relevante se fosse
atravessada pela experiência do limite.
Eis que Certeau não escapa à navalha dos efeitos de presença que algumas cabeças seu
próprio trabalho teológico cortou: “Este esboço visa somente formular como, em uma região
336

que me é particular, o cristianismo é pensável e vivível. Por essa razão, o meu trabalho pode
permitir outros que o apaguem e que, dessa forma, manifestem seu sentido ‘inter-dito’”.201
Poderia algum gesto teológico ser outra coisa além de um “esboço” se sua operação se
pretende uma experiência fiel a um objeto que a permite faltando? Nesse sentido, a deriva no
oceano da história e a morte causada por outras rupturas instauradoras se tornam um risco real
que a ética de uma atualidade cristã exige correr para que haja lugar ao estrangeiro que pode
vir sem que se saiba quando e onde. Tanto é que uma fragilidade constituinte do crer ocupou
o espaço em seus esboços teológicos posteriores, sob a perspectiva de uma escritura e de uma
fábula cristãs.
A confrontação do corpo de ritos e textos cristãos com as práticas contemporâneas
possibilita a produção do que Certeau chama de escritura, isto é, “o traçado de um desejo no
sistema de uma linguagem (profissional, político, científico, etc., e não somente literária)”, 202
prática significante que “insinua” um movimento em um corpo (um conjunto de leis, um
corpo social, o corpo de uma língua), alterando-o.
A definição de escritura proposta por Certeau é bastante próxima à maneira como ela é
pensada por Jacques Derrida. Em outro texto já mencionado, Certeau refere-se ao filósofo
francês e sua distinção entre voz e escritura, “uma caracterizada pela referência unitária a uma
presença; a outra, por uma pluralidade espacial e pelo apagamento da origem”. 203 Todavia,
mais que a distinção entre voz e escritura, interessa como Certeau e Derrida tratam a
insinuação de uma sobre a outra.
Derivada da linguagem, reduplicação acidental e secundária, significante do
significante, suplemento da fala, violência que deforma a presença do sentido à voz, a
escritura foi designada negativamente ao longo de toda história da metafísica ocidental.
Derrida opera a desconstrução desse binarismo característico da metafísica da presença:
Não se trata pois de aqui reabilitar a escritura no sentido estrito, nem de
inverter a ordem de dependência quando evidente. [...] Desejaríamos, antes,
sugerir que a pretensa derivação da escritura, por mais real e sólida que seja,
só fora possível sob uma condição: que a “linguagem original”, “natural”

201
“Cette esquisse vise seulement à formuler comment, dans une région qui m’est particulière, le christianisme
est pensable et vivable. A ce titre, mon travail peut en permettre d'autres qui l'effacent et qui, de la sorte, en
manifestent le sens « inter-dit »”. CERTEAU, Michel de. La rupture instauratrice ou le christianisme dans la
culture contemporaine. Esprit, p. 1177-1214, juin 1971, p. 1214.
202
“[...] le tracé d'un désir dans le système d'un langage (professionnel, politique, scientifique, etc., et non pas
seulement littéraire) [...]”. Id. Comme une goutte d’eau dans la mer. In: CERTEAU, Michel de; DOMENACH,
Jean-Marie. Le christianisme éclaté. Paris: Éditions du Seuil, 1974. p. 81.
203
“[...] l’une caractérisée par la référence unitaire à une présence; l’autre, par une pluralité spatiale et par
l’effacement de l’origine”. Id. L’absent de l’histoire. Paris: Repères/Mame, 1973. p. 158.
337

etc. nunca tivesse existido, nunca tivesse sido intacta, intocada pela escritura,
que sempre tivesse sido ela mesma uma escritura. 204
Em Certeau, lemos o seguinte: “um trabalho [escriturário] introduz, então, nos
sistemas estabelecidos, as mobilidades que o oral já revela”.205 Além dessa recusa do
binarismo oralidade/escritura, outro vestígio que endossa essa proximidade de Certeau em
relação a Derrida são as referências a textos derridianos em Du corps à l’écriture, e a Philippe
Lacoue-Labarthe, filósofo herdeiro da desconstrução derridiana.206
Poderíamos ir mais além e dar crédito a dados biográficos narrados por François
Dosse: enquanto se recuperava do acidente de carro que custara a vida de sua mãe e uma de
suas vistas em agosto de 1967, “[Certeau] empreende a leitura da obra de Derrida que acabava
de sair, Gramatologia, e diz a suas visitas nela encontrar novas razões para esperar”. 207
De acordo com Certeau, todo texto, seja primitivo ou apostólico, representa uma
escritura. Em sua resposta ao chamado de Jesus, narram o que ele despertou, descrevem sua
própria condição de escrituras crentes, isto é, atestam a modificação que implicam. Esse
chamado, sem poder ser fixado em qualquer enunciado próprio, é reconhecível apenas nessas
respostas que lhe são dadas, nas conversões sucessivas a que dá lugar.
Ele vem de uma voz irrecuperável, desaparecida nas modificações múltiplas daqueles
que a atestam, nada mais que a relação entre uma vinda, uma partida, um retorno e uma
desaparição (nascimento, morte, ascensão e ressurreição, respectivamente). Ponto de partida e
ponto de fuga,
o que [esse nome sem lugar] torna possível é igualmente o que vai além. [...]
A instauração e a superação que ele nomeia só são significadas pelas
relações entre escrituras (ou operações), cuja quantidade não está
encerrada.208
Embora o “sentido” evangélico não possua um lugar, ele é enunciado a partir de
instaurações e superações relativas a lugares determinados (religiosos no passado, seculares
no presente). Mas embora esteja assentado em tarefas que não define (supõe um mundo, mas

204
DERRIDA, Jacques. (1967) Gramatologia. Tradução de Miriam Chnaiderman e Renato Janine Ribeiro. São
Paulo: Perspectiva, 2013. p. 68-69.
205
“Un travail introduit alors dans les systèmes établis les mouvances que l’oral trahit déjà”. CERTEAU,
Michel de. (1973 ou 1974) Du corps à l’écriture, un transit chrétien. In: CERTEAU, Michel de. (1987) La
faiblesse de croire. Texte établi et présenté par Luce Giard. Paris: Éditions du Seuil, 2003. p. 263. Grifo nosso.
206
Ibid., p. 288, 289, 291, 293.
207
DOSSE, François. (2002) Michel de Certeau: le marcheur blessé. Paris: La Découverte, 2007. p. 137.
208
“Ce qui rend possible est également ce qui va au-delà. [...] L'instauration et le dépassement qu'il nomme ne
sont signifiés que par les rapports entre des écritures (ou des opérations) dont le nombre n'est pas clos”.
CERTEAU, Michel de. Comme une goutte d’eau dans la mer. In: CERTEAU, Michel de; DOMENACH, Jean-
Marie. Le christianisme éclaté. Paris: Éditions du Seuil, 1974. p. 89. Grifo do autor.
338

não o produz), a resposta que permite não pode ser limitada ao lugar social ou histórico do
acontecimento: “introduz o não-lugar de uma diferença num sistema de lugares”.209
É sempre uma tentação evangélica instituir o ato da diferença como lugar, transformar
a conversão em estabelecimento, fazer da palavra uma nova morada (a verdade). Todavia, o
imenso repertório da diferença que são as muitas escrituras da espiritualidade cristã
permanece crítico a essa cilada; interdita deter-se numa partida, obra, prática, êxtase, ou
qualquer outra forma assumida pelo momento do corte; não cria uma identidade, um lugar
dogmático, institucional, histórico, etc. Desfaz qualquer forma de identificação da fé com um
lugar.
Como navegantes que percebem a miragem outrora promessa de terra firme, eis a
fragilidade de crer:
Ao sentir que se dissipa o solo cristão sobre o qual acreditávamos avançar;
ao reconhecer assim nossa relação com a história sob a forma de uma morte
sem amanhã próprio e de uma crença desprovida de lugar assegurado,
manifesta-se para nós uma violência do instante. Uma necessidade poética
nasce da perda que desdobra efetivamente em uma fraqueza. 210

A experiência da perda do lugar assegurado traz em seu alcance a indicação de algo


mais frágil, fundamental: “a alegria impenitente de ter amado coisas semelhantes e essas
ausências que nos fazem viver211 acompanha o retorno e a ‘invenção’ de uma in-fância”,212 ou
seja, algo que é simultaneamente começo e silêncio,213 algo de indefinidamente originário.
Indício de um não-lugar iniciador, esse “acontecimento” é narrado como sonho, pois
só possui sentido vindo de outra parte, das respostas que suscita (as sucessivas respostas ao

209
A referência para esse não-lugar de uma diferença é mais uma vez o próprio acontecimento fundador do
cristianismo: “L'irruption de Jésus ne fonde pas un nouveau lieu — un Testament, une religion — qui aurait un
autre contenu mais la même forme que le précédent. Il introduit le non-lieu d’une différence dans une système
de lieux”. CERTEAU, Michel de. Comme une goutte d’eau dans la mer. In: CERTEAU, Michel de;
DOMENACH, Jean-Marie. Le christianisme éclaté. Paris: Éditions du Seuil, 1974. p. 95. Grifo do autor.
210
“A sentir s'évanouir le sol chrétien sur lequel nous avions cru nous avancer, [...] à reconnaître ainsi notre
rapport à l'histoire sous la forme d'une mort sans lendemain propre et d'une croyance dépourvue de lieu assuré,
se découvre pour nous une violence de l'instant. Une nécessité poétique naît de la perte qui ouvre effectivement
sur une faiblesse”. Id. La faiblesse de croire. Esprit, p. 231-245, avril/mai 1977, p. 237. Grifo do autor.
211
Esse trecho é um extrato do poema 59 da coletânea Vergers, de Rainer Maria Rilke.
212
“La joie impénitente d'avoir aimé des choses ressemblantes à ces absences qui nous font vivre accompagne le
retour et « l’invention » d’une en-fance”. CERTEAU, Michel de. La faiblesse de croire. Esprit, p. 231-245,
avril/mai 1977, p. 238.
213
Do latin infantia, proveniente de infans: In (prefixo de negação) e fans (particípio presente do verbo fari -
falar), ou seja, infante, aquele que não fala. É o silêncio que precede a emissão das palavras, que dá lugar a
enunciação do discurso. É a própria condição da linguagem e do pensamento. PAGNI, Pedro Angelo. Infância,
arte de governo pedagógica e cuidado de si. Educação e Realidade, v. 35, n. 3, p. 99-123, set./dez., 2010. p. 100.
Disponível em: https://cutt.ly/Tx395f1. Acesso em: 21 de dez. 2018.
339

chamado). Uma vez que os evangelhos e as múltiplas escrituras cristãs não são mais que seu
relato, o sonho é figurado como fábula, assim como Deus “não é mais que uma palavra”.214
Deixemos os termos do próprio jesuíta nos explicar o que tem em mente ao definir a
fragilidade da experiência crente como fábula:
Entendo por “fábula” uma linguagem simbólica que não decide operações,
que não define os gestos éticos, políticos ou profissionais. A fábula é uma
linguagem “pobre”, não de pobreza intelectual ou de significação, mas de
potência: “sem poder”, como diz São Paulo da linguagem da cruz. O sentido
da fábula depende da posição do auditor: “aquele que tem ouvidos para
ouvir, ouça”. A palavra “fábula” reenvia não ao conteúdo, mas a um estatuto
de um discurso.215
Entre a alteridade das fábulas sonhadas no passado e a alteridade do intérprete no
presente, estrangeiro que intervém no enigma e deve crer para dar sentido ao sonho, surge um
querer como diferença: “ser crente é querer ser crente”.216 Inquietante familiaridade a desses
sonhos! Seu sentido, inicialmente ausente (eles simbolizam o desejo), é produto da
interpretação trazida pela chegada de outra época, resultado de uma operação de leitura.
Sem contar com a possibilidade de corporizar a si mesma (isto é, de alocar o sentido
de sua existência num corpo institucional, doutrinal, textual, etc.), a experiência cristã vê-se
impelida em participar da história, em perder-se “no imenso e incerto poema da realidade
anônima que vai e que vem”.217
Ao invés de enunciar o sentido do mundo, o crente recebe dessa história uma vida que
preenche e ultrapassa a cada um, é alterado pelo “corpo” do outro. Na docilidade à
regularidade de exigências objetivas não escolhidas, opera “uma erotização da história, uma
paixão alterante e alterada”, uma “raiva de amar”,218 Certeau se atreve a dizer. Dá lugar a uma
existência arriscada, ao mesmo tempo estranha e familiar, que possibilita ser cristão.
Ao perder-se na história, a experiência cristã precisa situar-se frente a um corpus
textual e relê-lo. Essa interpretação não encontra garantia em nenhum documento ou

214
LEVINAS apud CERTEAU, Michel de. Comme une goutte d’eau dans la mer. In: CERTEAU, Michel de;
DOMENACH, Jean-Marie. Le christianisme éclaté. Paris: Éditions du Seuil, 1974. p. 89.
215
“J'entends par "fable" un langage symbolique qui ne décide pas des opérations, qui ne définit pas des gestes
éthiques, politiques ou professionnels. La fable est un langage "pauvre", non de pauvreté intellectuelle ou de
signification, mais de puissance : "sans pouvoir'', comme le dit S. Paul du langage de la croix. [...] Le sens de la
fable, lui, dépend de la position de l'auditeur : "que celui qui a des oreilles pour entendre entende". Le mot de
"fable" renvoie non au contenu, mais au statut d'un discours”. Id. Comme des nomades. Cultures et foi, n. 43-44,
p. 7-15, été 1975, p. 14.
216
“[...] être croyant, c’est vouloir être croyant”. Id. La faiblesse de croire. Esprit, p. 231-245, avril/mai 1977, p.
238. Grifo do autor.
217
“[...] dans l'immense et incertain poème d'une réalité anonyme qui va et qui vient”. Id. Comme une goutte
d’eau dans la mer. In: CERTEAU, Michel de; DOMENACH, Jean-Marie. Le christianisme éclaté. Paris:
Éditions du Seuil, 1974. p. 91.
218
“[...] une érotisation de l'histoire – une passion altérante et altérée, j’oserais dire: une rage d’aimer”. Ibid.,
p. 91-92.
340

instituição. Não trata de recuperar a verdade, a essência ou sujeito-autor através do texto. Um


lugar discursivo ou institucional é efeito da interrogação contida na resposta que é lançado a
um documento. Inexistem princípios estáveis apartados dos efeitos causados por operações
interpretativas. Não só as diversas inscrições do passado divergem, como são heterogêneas as
práticas presentes que singularizam seu reemprego. O estabelecimento de critérios de leitura é
apenas um dentre outros possíveis.
Desse modo, a leitura de um “objeto cristão” é determinada por condições de produção
não cristãs. Em resposta às fabula cristãs, uma operação de leitura fabrica um sentido a partir
de uma história que lhe é estranha, opera um desvio resultante da distância que separa do
outro do passado.
Dessa relação entre uma “interpretação dos sonhos” (« interprétation des rêves ») e
uma “erótica do ‘querer’” (érotique du « vouloir »), surge a escritura. Ela manifesta na
linguagem o desejo como diferença, tece alteridades, “lugar textual do não-lugar”.219 O
trabalho escriturário “materializa” a conversão da “‘letra’ da Lei em ‘poema’ da diferença”,
da legalidade do texto em fragilidade da fábula, do “alfabeto de sabedorias divinas em
escritura de uma ‘loucura’”.220
A distância entre o lugar do texto e o lugar de produção (a morte de Jesus e do corpo
eclesiástico os separa) impõe uma diferença inevitável em relação ao passado. Entre um
signo/texto do passado e uma produção de sentido (outro signo/texto) pelo ato de crer, ocorre
uma atividade regida por determinações científicas e sociais das operações de leitura e
escritura no presente, fábrica de interpretações equacionadas sobre uma desapropriação que
afasta o vivo dos escritores mortos.
Mas a escritura crente, ao arriscar enunciar um sentido, aventura-se numa travessia em
seu próprio espaço. Assim, também é, por definição, “exterior às linguagens organizadoras
das práticas sociais, e por conteúdo, uma diferença em relação ao presente”. 221 Isso porque o
sentido que engendra, aponta além (teleologicamente), aquém (historicamente) ou alhures
(poeticamente) da atualidade.
Portanto, a escritura crente é da ordem da fábula. Isto é, por mais interpretativa que
seja, reproduz a natureza da fábula evangélica, “linguagem sem força, estruturada pela
219
“Elle est un lieu textuel du non-lieu”. CERTEAU, Michel de. (1973 ou 1974) Du corps à l’écriture, un transit
chrétien. In: CERTEAU, Michel de. (1987) La faiblesse de croire. Texte établi et présenté par Luce Giard. Paris:
Éditions du Seuil, 2003. p. 289.
220
“[...] la « lettre » de la Loi en « poème » de la différence. [...] l'alphabet des sagesses divines en l'écriture
d'une « folie »”. Id. Id. Comme une goutte d’eau dans la mer. In: CERTEAU, Michel de; DOMENACH, Jean-
Marie. Le christianisme éclaté. Paris: Éditions du Seuil, 1974. p. 97.
221
“[...] extérieure aux langages organisateurs des pratiques sociales, et pour contenu une différence par
rapport au présent [...]”. Id. La faiblesse de croire. Esprit, p. 231-245, avril/mai 1977, p. 241.
341

ausência do corpo, pela renúncia da proximidade e pela desaparição do próprio”.222 Na fábula,


a realidade é suprimida, e ainda que uma história seja sua condição de possibilidade, ela não
se prende ao que lhe é exterior, arrisca a realidade, um lugar e uma verdade, perde o tempo e
suas aquisições, dá lugar à diferença.223 A fábula mantém-se “na distância, como o outro
poético da efetividade histórica”.224
Assim, frente às tarefas efetivas assumidas pela experiência crente no presente, uma
teologia como operação de escritura carrega uma exigência do tipo crítico. Procede um
trabalho negativo no interior de cada teologia positiva:
Toda alienação do sentido no sistema de uma sociedade será denunciada. [...]
Um desvio (que nunca é identificável ao verdadeiro) deverá constantemente
restaurar na coerência dos sistemas existentes a ferida de uma relação com o
outro.225
Mas esse desvio frente a ordem estabelecida (seja em relação ao que recebe do
passado ou às determinações do presente) não é em primeiro lugar crítico. Antes, é da
abertura, do excesso. É desrazão, partida, acréscimo: “gesto poético de abrir espaço, de passar
a fronteira, de lançar pela janela, de arriscar mais”.226
Esse risco de morte e de vida é o trabalho de hospitalidade sem o qual não há
linguagem cristã: “combate para dar lugar aos outros, no discurso, na colaboração coletiva,
etc”, caminho nunca completo, pois perdido na imensidão da história humana: “Ali se apaga,
como Jesus na multidão”.227
É preciso permanecer no risco de um “feliz naufrágio” (« heureux naufrage »),228
seguir caminhando cada vez mais longe. Ao tomar parte dessa “viagem abraâmica” (voyage

222
“[...] langage sans force, structuré par l'absence du corps, par le renoncement à la proximité et par
l'effacement du propre”. CERTEAU, Michel de. La faiblesse de croire. Esprit, p. 231-245, avril/mai 1977, p.
241.
223
Para essa compreensão acerca da fábula, Certeau recorre a Philippe Lacoue-Labarthe e Schiller.
224
“[...] dans la distance, comme l'autre poétique de l'effectivité historique”. CERTEAU, Michel de. Comme une
goutte d’eau dans la mer. In: CERTEAU, Michel de; DOMENACH, Jean-Marie. Le christianisme éclaté. Paris:
Éditions du Seuil, 1974. p. 98. Grifo do autor.
225
“Tout alignement du sens sur le système d une société sera dénoncé. [...] Un écart (qui n'est jamais
identifiable au vrai) devra sans cesse restaurer dans la cohérence des systèmes existants la blessure d'une
relation à l'autre”. Id. (1973) La misère de la théologie. In: CERTEAU, Michel de. (1987) La faiblesse de
croire. Texte établi et présenté par Luce Giard. Paris: Éditions du Seuil, 2003. p. 258.
226
“[...] geste « poétique » d’ouvrir l’espace, de passer la frontière, de jeter par la fenêtre, de risquer plus”.
Ibid., p. 258.
227
“[...] combat pour faire place à d'autres, dans le discours, dans la collaboration collective, etc.”. “Il s'y efface
comme Jésus dans la foule”. Ibid., p. 259. Grifo do autor.
228
Certeau atribui essa expressão a Jean-Joseph Surin. CERTEAU, Michel de; DOMENACH, Jean-Marie. Le
christianisme éclaté. Paris: Éditions du Seuil, 1974. p. 71.
342

abrahamique),229 movimento de escrituras sucessivas que vêm e vão, a escritura crente


aparece no oceano da linguagem para logo desaparecer “como uma gota de água no mar”.230
Certeau havia proposto a ruptura instauradora como a tensão produtiva entre uma
particularidade efetiva e uma superação necessária. Isso significa dizer que ela é tanto
reelaboração do passado na determinação do presente quanto crítica do presente em nome de
um passado sem o qual não há singular cristão, sem com isso supor que ela seja objetivável.
Desse modo, a operação cristã enquanto escritura teológica insere uma diferença na
ordem das operações não cristãs pela via do desejo crente. No entanto, por assumir o risco de
morte e de vida, de romper para instaurar, essa escritura não assegura um lugar institucional,
doutrinal ou científico próprio, no sentido de um “isto” determinável como o lugar de sua
verdade.
Tal é a fragilidade de seu ato crente, desprovida de propriedades e lugares
assegurados. Ela é, portanto, fábula cristã, figura sem força porque não determina as
experiências, linguagens e instrumentos com as quais responde à fábula evangélica e a outras
escrituras que lhe sucederam. Como fábula, a escritura cristã espera que outras venham
identificá-la ao sonho e sucedê-la com a injunção de um outro sentido.
Resta-lhe a “força” do desejo produtivo de ser cristão e a coragem das batalhas
travadas para deixar entrar o Outro que vem. Essa poética e essa ética cristãs fazem “delirar”
o oceano da pensabilidade histórica na qual Certeau inscreve sua gestualidade teológica,
gestos alterantes da alteridade de sua experiência histórica.

5.4 A mística ou luto historiográfico da teologia

As inovações epistemológicas e teológicas ocorridas no segundo momento da


trajetória de Certeau merecem ainda ser tratadas a partir de seus trabalhos históricos. La
possession de Loudun, por exemplo, viu a luz bem no momento em que Certeau começava a
divulgar os questionamentos sobre a prática historiadora com as quais estava se debatendo.
Certamente, o livro traz marcas desse florescer teórico, tendo contribuído inclusive para outra

229
Certeau empresta a linguagem de Lévinas, quem à aventura de Ulisses, resumida em sua totalidade, contrapõe
a de Abraão, cuja jornada não conhece regresso ao ponto de partida: “Ao mito de Ulisses que retorna a Ítaca,
gostaríamos de opor a história de Abraão que deixa para sempre sua pátria para uma terra ainda desconhecida
e proíbe ao servo até mesmo de trazer seu filho a esse ponto de partida”. LÉVINAS apud DERRIDA, Jacques.
(1967) A escritura e a diferença. Tradução de Maria Beatriz Marques Nizza da Silva, Pedro Leite Lopes e Pérola
de Carvalho. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2014. p. 223. (Estudos, 271); Cf. CERTEAU, Michel de;
DOMENACH, Jean-Marie. Le christianisme éclaté. Paris: Éditions du Seuil, 1974. p. 32.
230
Segundo Certeau, une goutte d’eau dans la mer é uma expressão comum entre os místicos. Id. Comme une
goutte d’eau dans la mer. In: Ibid., p. 99.
343

posição do arquivo na investigação e dialogado elementos arqueológicos, psicanalíticos e


semióticos no tratamento dos documentos.
A pesquisa que resultaria na publicação de La fable mystique, em 1982, também
acompanhou a arguição epistemológica da história. Em 1973, a folha de rosto de L’absent de
l’histoire indicava a futura publicação de Le langage mystique. Isso ocorreria somente no
início da década seguinte e sob outro título, retomando textos publicados desde os anos 1960,
diferentemente de La possession de Loudun, único livro de Certeau composto exclusivamente
por capítulos inéditos.
A justificativa da opção por deter-se em La fable mystique nas páginas derradeiras que
seguem está diretamente ligada ao fato desse livro conter a reutilização de resultados de
pesquisa surgidos em outro momento de sua trajetória. O terceiro capítulo toma como
referência « Mystique » au XVIIe siècle: le problème du langage « mystique », publicado no
Mélanges offerts au père Henri de Lubac em 1964. Reutilizado com rearranjos, modificações
e adições, o seu reemprego permite estudar as ressignificações desse material no livro de
1982.
O capítulo no Mélanges apareceu nesta tese em seu próprio contexto de produção e
como recurso para a comparação das características dessa época de transição com as
mudanças encontradas em Cultures et spiritualité, já sinalizando um momento diferente em
sua trajetória intelectual. Agora, serão brevemente examinadas as alterações sofridas nele
próprio ao ser recuperado no horizonte desse “segundo” Certeau.
La fable mystique passa pela arguição histórica, mas também lança mão de recursos
semióticos e psicanalíticos. Livro de muitas direções, cruzamentos e nuances, detenho-me
particularmente em uma de suas contribuições, estritamente ligada ao capítulo no Mélanges
dedicado a Lubac: o significado histórico da passagem do emprego adjetivo à designação
substantiva do termo “mística” por volta do fim do século XVI. Abordarei o assunto em duas
frentes: a relação com a obra Corpus mysticum, de Henri de Lubac e as alterações no material
comum às duas versões do texto.
Esta parte final da tese proporá que a história assume a forma prática de um luto, seja a
nível do desejo religioso de Deus ou do desejo erudito de restituição do passado. Isso tem
implicações no modo como uma ressignificação heterológica e um apagamento de certa
pertinência teológica alteram o aporte anteriormente dado à história do vocábulo “mística”.
Em suma, essa mudança é efeito da mutação do realismo “presentificante” em leitura
espectral do passado histórico e da superação da continuidade cristã antes postulada em seu
trato com os autores espirituais do século XVI e XVII.
344

Em linhas gerais, La fable mystique trata a mística como uma figura histórica dos
séculos XVI e XVII, momento em que uma economia escriturária exila a palavra no reino do
que Certeau remonta ao termo “fábula”. “Ficção” que camufla o sentido nela receptado, a
fábula depende que uma escrita interprete o que ela diz sem o saber. Portanto, a fábula mística
é tanto a linguagem ferida por essa violência escriturária quanto o enfrentamento desse
desafio à palavra, buscando alhures o que o Espírito fala. A isso remete o enorme interesse
dos espirituais pela “língua” da criança, da mulher, dos iletrados, dos loucos, etc., assim como
o aparecimento de um discurso erótico em busca de imagens para a palavra gravada, mas
doravante ilegível no corpo ardente de amor.
O terceiro capítulo é dedicado às viagens do termo mística em território medieval e
moderno. Sua primeira parte comporta recursos com base nos quais é possível afirmar uma
diferença na maneira como Certeau se reporta ao livro de seu antigo professor se comparado à
primeira versão do texto. Na homenagem a Lubac, os dois primeiros parágrafos tomavam a
obra Corpus mysticum como ponto de partida para a abordagem da história do termo
“mística” no século XVII. Também encontramos essa referência logo no início do capítulo em
La fable mystique, mas por meio de uma vintena de páginas onde Certeau inscreve sua própria
perspectiva sobre o assunto. Dessa maneira, tendo em vista o enquadramento proposto pela
expressão “fábula mística”, ele altera o que retinha da contribuição de Lubac, inscrevendo um
traço componente da gestualidade teológica encenada em seus textos nos anos anteriores.
A expressão “corpus mysticum” (corpo místico) designava o mistério da eucaristia até
meados do século XII, quando passa a fazer referência ao mistério da Igreja, isto é, a
qualificá-la como o sacramento visível do mistério do Cristo. Embora esse estudo de Lubac 231
seja estabelecido nos limites da Idade Média, ele assinala que essa transformação se prolonga
até o século XVI quando uma intensificação acaba por opor o corpo místico ao corpo político
da Igreja. Certeau propõe-se a estudar justamente essa nova significação do adjetivo “místico”
em seu « Mystique » au XVIIe siècle: le problème du langage « mystique ».232
Em La fable mystique, o jesuíta discorre mais detalhadamente sobre o assunto cuja
pertinência ele deve ao estudo de Lubac. Uma inversão semântica ocorre por volta de meados
do século XII. Antes, “corpus mysticum” designava a eucaristia e “corpus verum” a Igreja;

231
LUBAC, Henri de. Corpus mysticum: l'eucharistie et l’Église au moyen âge. Paris: Aubier, 1944.
232
CERTEAU, Michel de. « Mystique » au XVIIe siècle: le problème du langage « mystique ». In: L’Homme
devant Dieu: Mélanges offerts au père Henri de Lubac. Paris: Aubier, 1964. v. 1. p. 267.
345

desde então, “mysticus” (oculto) cabe à Igreja e “verus” (o verdadeiro reconhecido como tal) à
eucaristia. À Igreja atrela-se um significado invisível cujo significante visível é a eucaristia. 233
Essa inversão semântica é acompanhada por um deslocamento teológico ao qual
Lubac teria dedicado seu estudo: há uma mudança no modo como três termos (corpo
histórico, sacramental e eclesial) são distribuídos por meio de um corte, antes entre o primeiro
e o segundo, depois entre o segundo e o terceiro.
A fórmula antiga separa o corpo histórico (Jesus) e conjuga o sacramental e o eclesial.
Esse corte é temporal, pois separa o “acontecimento” original de seus efeitos entendidos como
momentos distintos. Esses tempos separados (origens apostólicas e Igreja presente) são unidos
pelo sacramento, entendido como ação invisível (o “mistério”) que liga o acontecimento à sua
paulatina manifestação. Portanto, a combinação Igreja/eucaristia une misticamente a
comunidade visível e o “mistério”: “é ‘místico’ o terceiro ausente que conjuga dois termos
disjuntos”.234
A partir do século XIII, outra fórmula passará a combinar o corpo
histórico/sacramental e separá-los do corpo eclesial. Com esse corte, a Igreja torna-se a
extensão oculta desse outro polo tornado reino da lei e do visível. À visibilidade sacramental
segue a multiplicação de efeitos secretos dos quais a vida real da Igreja é composta. O visível
se dissocia do corpo místico que agora deve ser produzido. Nessa vitória, “místico” remete à
viagem para além da situação presente: “É doravante graças ao corpus legível das origens
e/ou ao signo visível da eucaristia que um corpo místico eclesial deve ser ‘inventado’, como
haverá invenção do Novo Mundo”.235 Isso é inseparável da consciência aos poucos imposta
entre os séculos XIV e XVI de que a Igreja deve ser reformada, vitória da oposição
visível/invisível sobre a organização ternária.
Essa sistematização de Corpus mysticum feita por Certeau não passou ilesa de críticas.
É o caso dos comentários de Laurence Hemming e Johannes Hoff, cujas reservas seguem ao
menos duas direções, indissociáveis. Uma é relativa à inexatidão do comentário; a outra, mais
propriamente ligada a diferença teológica entre Certeau e Lubac. Dialogar com essas críticas
permite avançar na proposta de interpretação sobre o reemprego feito por Certeau de seu
próprio material.
Laurence Hemming não esconde seu desconforto com o perigo de leituras
compulsivas que tornam acessíveis textos que são obscuros e difíceis, ancorando sua

233
CERTEAU, Michel de. (1982) La fable mystique: XVIe-XVIIe siècle. Paris : Gallimard, 2002. p. 111.
234
“Est « mystique » le tiers absent qui conjoint deux termes disjoints”. Ibid., p. 112.
235
“C’est désormais grâce au corpus lisible des origines et/ou au signe visible de l’eucharistie qu’un corps
mystique ecclésial doit être ‘inventé’, comme il y a aura invention du Nouveau Monde”. Ibid., p. 114.
346

autoridade mais na clareza de sua apresentação que na exatidão da leitura. É esse tipo de
comentário que o tradutor do Corpus mysticum em língua inglesa atribui a Certeau,
curiosamente tomando como referência não La fable mystique, mas a interpretação de
Catherine Pickstock sobre o livro.236 Para Hemming, ao colocar o acento na objetificação da
eucaristia na Idade Média, Certeau simplifica a contribuição mais sutil do Corpus mysticum, o
triunfo de um certo tipo de racionalismo em detrimento da liturgia como fonte de sentido para
a teologia.237
Seguindo Hemming, Johannes Hoff afirma que o desejo de clareza de Certeau o fez
perder de vista o ponto central sobre a mudança na Idade Média. O relato de Lubac não
focaria na oposição semântica entre visível/invisível, mas na oposição entre simbolismo e
racionalismo litúrgico. Essa oposição tendeu a reduzir “simbólico” e “místico” à imprecisão,
contrapondo-lhes o uso da razão – antíteses dialéticas que cindiam o que a tradição unia, diz
Lubac238 –, donde uma acentuada objetificação da eucaristia.239
Em última instância, essas críticas parecem postular um “próprio” do texto, tesouro a
ser conquistado no terreno minado do adversário. Certeau não acreditava na interpretação
como busca do sentido depositado em um texto. Tampouco a entendia como uma cartografia
passiva de respostas a coletar, como se fosse possível percorrer a floresta cerrada que é o
terreno labiríntico de um texto sem deixar para trás rastros de sua passagem.
Uma leitura pormenorizada dessa parte de La fable mystique permite dizer que Certeau
não se propõe em momento algum apresentar o texto de Lubac, como já havia sido o caso na
primeira metade dos anos 1960. Certeau retorna ao texto de Lubac para herdá-lo: “ele [o
termo corpus mysticum na Idade Média] apresenta a vantagem de ter sido objeto de uma
minuciosa análise teológica da qual a minha história poderia ser a sequência”.240
A “herança” não deve ser confundida com leviandade ou descompromisso. O herdeiro
não está isento do rigor necessário à leitura, nem da responsabilidade para com os caminhos
abertos no texto. Por exemplo, a “estrutura” ternária dos corpos e os dois tipos de cesura estão
no cerne da contribuição de Lubac. Ele o enfatiza referenciando linhas extraídas do próprio

236
PICKSTOCK, Catherine. After Writing: The Liturgical Consummation of Philosophy. Oxford: Blackwell,
1998. p. 158. HEMMING, Laurence P. Henri de Lubac: reading Corpus Mysticum. New blackfriars, v. 90, n.
1029, p. 519-534, Sep. 2009, p. 524. Disponível em: https://cutt.ly/ex69anm. Acesso em: 12 jan. 2021.
237
Ibid., p. 519.
238
LUBAC apud Ibid., p. 530, nota 27.
239
HOFF, Johannes. Mysticism, ecclesiology and the body of Christ: Certeau’s (mis-)reading of Corpus
Mysticum and legacy of Henri de Lubac. In: BOCKEN, Inigo. (Ed.) Spiritual spaces: history and mysticism in
Michel de Certeau. Leuven: Peeters, 2013. p. 105.
240
“Il présente l’avantage d’avoir été l’objet d’une minutieuse analyse théologique [Lubac] dont mon histoire
pourrait être la suite”. CERTEAU, Michel de. (1982) La fable mystique: XVIe-XVIIe siècle. Paris : Gallimard,
2002. p. 108. Grifo nosso.
347

Corpus mysticum: “Tal é, em resumo, o fato que domina toda a evolução das teorias
eucarísticas”.241
Entretanto, Certeau negocia na multitude do texto a margem possível para sua própria
questão. A cesura teológica ocorrida em determinada altura da Idade Média está entre os
deslocamentos que “desenham o quadro em função do qual se forma ‘a’ mística”. 242 Essa
mudança é um dos antecedentes da formação autônoma de seu objeto nos séculos XVI e
XVII, configuração histórica moderna desfeita na época das luzes quando seus traços
sobreviverão apenas em outros campos.
Certeau se aproxima da questão aberta por Lubac e a trata ao seu próprio modo. Isso
pode ser visto em suas construções semióticas para desdobrar os dois tipos de cesura na
relação entre os três corpos no discurso teológico. Como seria possível retomar esse material
segundo uma operação específica, sem tirar daí resultados diferentes?
Desse modo, Certeau termina por expressar à sua maneira os elementos recolhidos em
Corpus mysticum. Ele conclui defendendo que a mudança ocorrida na Idade Média teve como
desfecho a vitória do binarismo visível/invisível sobre a estrutura ternária do corpo histórico,
sacramental e eclesial.243
Mas essa é a pena de Certeau, não de Lubac. Nenhuma das alusões ao autor do Corpus
mysticum estão nos parágrafos mais diretamente ligados à segunda formulação, onde a
reinterpretação dada pelo autor de La fable mystique vai mais longe. Além disso, as
referências existentes em outros parágrafos só levariam o leitor a esperar algo diferente se
fosse desconsiderada a práxis certeauniana da leitura e do trabalho científico, com a qual essas
páginas são bastante condizentes.
Essa reinterpretação leva a outro ponto crítico, mais acurado que o anterior. É a
significação mais propriamente teológica dessa diferença entre Lubac e Certeau. A questão no
período pré-moderno não estaria no invisível enquanto algo a ser inventado, mas recebido e
confirmado enquanto uma realidade invisível.244 O caráter místico da Igreja não se referiria
apenas ao trabalho a fazer, mas ao seu pertencimento a algo misticamente mais amplo que ela.
O verdadeiro sentido de ecclesia estaria no fato de algo visto já trazer em si algo não visto, ato

241
“Tel est en résumé le fait qui domine toute l’évolution des théories eucharistiques”. LUBAC apud
CERTEAU, Michel de. (1982) La fable mystique: XVIe-XVIIe siècle. Paris : Gallimard, 2002. p. 111.
242
“[...] dessinent le cadre en fonction duquel se forme « la » mystique”. Ibid., p. 111.
243
Ibid., p. 114.
244
HOFF, Johannes. Mysticism, ecclesiology and the body of Christ: Certeau’s (mis-)reading of Corpus
Mysticum and legacy of Henri de Lubac. In: BOCKEN, Inigo. (Ed.) Spiritual spaces: history and mysticism in
Michel de Certeau. Leuven: Peeters, 2013. p. 108.
348

do próprio Cristo.245 Na perspectiva de Lubac, o corpo desaparecido já se encontraria


misticamente presente na Igreja, enquanto para Certeau o corpo de Cristo seria essencialmente
ausente.246
Certeau não esconde esse princípio teológico em La fable mystique, fornecendo outro
componente gestual ao conjunto de suas insinuações teológicas. O acontecimento instituinte
do cristianismo é “a perda de um corpo” (la perte d’un corps), “desaparição fundadora”
(disparition fondatrice) que especifica toda experiência cristã.247
Essa privação inicial que foi a perda do corpo de Jesus suscita discursos e instituições
ao longo de toda a história do cristianismo, ao mesmo tempo efeito e substitutos dessa
ausência. Todas essas experiências tentam se haver com a questão considerada inesquecível
por Certeau – eu arriscaria dizer ser a mais explicita e fundamentalmente teológica encontrada
ao longo de todo o livro e talvez da trajetória religiosa e intelectual de Certeau na última
década e meia: “‘onde você está?’”.248 Ela remete à “dor de uma ausência de corpo” 249 e
coloca a questão de um “luto impossível”.250
Essa tumba vazia com a qual se depara Maria Madalena não é exclusiva à comunidade
primitiva. Essa condição não se limita a uma circunstância histórica específica. Todo o
discurso apostólico se organiza em torno dela:
Seu corpo se estrutura pela disseminação, como uma escritura. Desde então,
os crentes continuam a se interrogar – Onde você está? – e, de século em
século, eles perguntam à história que passa: “Onde você o colocou?” Com os
acontecimentos que são ruídos vindos de outra parte, com os discursos
cristãos que codificam a hermenêutica das novas experiências e com as
práticas comunitárias que tornam presente uma caridade, eles “inventam”
um corpo místico - faltante e procurado - que seria também o deles.251
Aqui há mais uma evidência do deslocamento de perspectiva teológica se comparado
aos textos de até meados da década de 1960. A experiência dos peregrinos de Emaús era o
“arquétipo” do caráter místico do mistério da presença. Com o avançar da segunda metade
daquela década, essa passagem bíblica reaparece menos como o “modelo” da experiência da

245
HEMMING, Laurence P. Henri de Lubac: reading Corpus Mysticum. New blackfriars, v. 90, n. 1029, p. 519-
534, Sep. 2009, p. 526. Disponível em: https://cutt.ly/ex69anm. Acesso em: 12 jan. 2021.
246
HOFF, op. cit., p. 109.
247
CERTEAU, Michel de. (1982) La fable mystique: XVIe-XVIIe siècle. Paris : Gallimard, 2002. p. 109. Grifo
nosso.
248
“Où es-tu?”. Ibid., p. 110
249
“[...] douleur d’une absence de corps”. Ibid., p. 108.
250
“[...] deuil impossible”. Ibid., p. 110.
251
“Son corps est structuré par la dissémination, comme une écriture. Depuis, les croyants continuent de
s’interroger – « Où es-tu ? » - et, de siècle en siècle, ils demandent à l’histoire qui passe : « Où l’as-tu mis ».
Aves les événements qui sont des bruits venus d’autre part, avec les discours chrétiens qui codifient
l’herméneutique de nouvelles expériences, et avec les pratiques communautaires qui rendent présente une
charité, ils « inventent » un corps mystique – manquant et cherché – qui serait aussi le leur”. Ibid., p. 110-111.
349

presença dada e ainda não reconhecida e mais intimamente atrelada à figura do estrangeiro
que vem interditando fixações. Agora, a tumba vazia fornece a imagem máxima de uma
impossibilidade, deslocando o acento para o desejo da presença sempre faltante e para as
produções daí decorrentes.
Esse deslizamento de um ausente presente a uma presença faltante torna esse último o
princípio teológico da abordagem certeauniana da história dos discursos místicos. Essa
premissa aparece em toda sua força no primeiro parágrafo do livro:
Este livro se apresenta em nome de uma incompetência: ele está exilado
daquilo que trata. A escrita que dedico aos discursos místicos de (ou sobre) a
presença (de Deus) tem como estatuto não o ser. Ele se produz a partir desse
luto, mas um luto não aceito, tornado a doença de estar separado, análogo,
talvez, ao mal que constituía já no século XVI uma mola secreta do
pensamento, a Melancholia.252
O livro está afastado do seu assunto porque os místicos esperam encontrar as certezas
que perdem, enquanto Certeau fez o luto da expectativa da capacidade de dar uma resposta à
pergunta “onde você está?”. Por outro lado, é impossível para o cristão se haver realmente
com essa ausência e consumar efetivamente esse luto, pois sua própria condição comporta um
desejo insuperável do Único. Certeau percorreu países longínquos em busca da terra
prometida de sua fé, embora uma decepção fosse terminar por se tornar o signo maior dessas
aventuras surinescas. Uma resignação paciente diante da Inefabilidade do inefável seria desde
então a companheira de viagem da ânsia incorrigível do absoluto. Certeau mantém uma
relação de necessidade com o que crê, ainda que já sabendo ilusório encontrar algo mais que
uma miragem. Tal é a imagem certeauniana do dilema do crente: ele está entre um luto da
apreensão da presença e a melancolia desejante do Único.
Certeau produziu inúmeras performances teológicas por meio das quais foi realizando
essa “terapêutica” da ferida da ausência aos poucos imposta, desde a “dupla ruptura” à
“desaparição fundadora”. Ele iria ainda retornar ao desejo do ver Deus em seu opúsculo
Extase blache, poesia teológica na qual uma “escatologia branca” (eschatologie blache)
fornece uma bela imagem à associação já pincelada em La fable mystique entre a claridade da
visão beatífica e o beijo da morte.253

252
“Ce livre se présente au nom d'une incompétence : il est exilé de ce qu'il traite. L'écriture que je dédie aux
discours mystiques de (ou sur) la présence (de Dieu) a pour statut de ne pas en être. Elle se produit à partir de
ce deuil, mais un deuil inaccepté, devenu la maladie d'être séparé, analogue peut-être au mal qui constituait
déjà au XVIe siècle un secret ressort de la pensée, la Melancholia”. CERTEAU, Michel de. (1982) La fable
mystique: XVIe-XVIIe siècle. Paris : Gallimard, 2002. Grifo do autor.
253
Id. (1983) Extase Blanche. In: CERTEAU, Michel de. La faiblesse de croire. Texte établi et présenté par
Luce Giard. Paris: Éditions du Seuil, 1987. p. 307-310; Id. (1982) La fable mystique: XVIe-XVIIe siècle. Paris :
Gallimard, 2002. p. 11. Nessa ocasião, Certeau alude à relação entre claridade e morte a partir de Franz Kafka.
350

As produções permitidas pela tumba vazia não são, contudo, exclusivamente


teológicas. A escrita da história dos místicos é também sua forma de velar esse morto. Pode-
se atribuir à sua pena historiadora uma de suas próprias intuições: “a historiografia é uma
maneira contemporânea de praticar o luto”. 254 Mas qual é o possível significado desse luto
historiográfico do Outro?
Quando Certeau escreve sobre os místicos, percebe que eles “lutam contra o luto, esse
anjo noturno”.255 Eles tanto defendem quanto confrontam a inacessibilidade do que desejam.
Mesmo estabelecendo uma gratuidade absoluta, eles ainda produzem “aparências de
presença”.256 O místico multiplica e divina o excepcional e “transforma o detalhe em mito” 257.
Uma vez que a presença aparece como efeito do desejo do Outro, Certeau constata
historicamente sua impossível assimilação mesmo onde místicos criam poder superar sua
perda. Pode-se imaginar quão vertiginosa tenha sido a gravidade dos indícios que levaram a
essa constatação, tendo em vista que foram eles, seus companheiros espirituais do século XVI
e XVII, quem haviam lhe fornecido o que pensava ser os instrumentos de uma educação
espiritual. Não é nem um pouco insignificante que seja justo ao retomar os seus místicos em
um texto daquela época que ele fará essa confissão de seu luto (im)possível.
O luto possibilitado por sua historiografia é efeito dessa constatação, mas também da
verificação do significado da disseminação da mística moderna após o seu desaparecimento
enquanto figura histórica particular:
Desse espírito de ultrapassagem [da mística], seduzido por uma
inexpugnável origem ou fim chamado Deus, parece que subsiste sobretudo,
na cultura contemporânea, o movimento de partir sem cessar, como se, por
não mais poder fundar-se sobre a crença em Deus, a experiência guardasse
somente a forma e não o conteúdo da mística tradicional. 258
Esse luto explica parcialmente porque Certeau não foi ao passado e encontrou em uma
de suas doutrinas a sustentação para o problema aberto com a modernidade, como havia sido
o caso de seu antigo professor. Johannes Hoff lembra que Lubac, diferente de Certeau, tinha
considerado o simbolismo da teologia sacramental medieval como real alterativa para o
racionalismo da teologia moderna e sua supervalorização das crenças baseadas puramente em

254
“L’historiographie est une manière contemporaine de pratiquer le deuil”. CERTEAU, Michel de. (1982) La
fable mystique: XVIe-XVIIe siècle. Paris : Gallimard, 2002. p. 21.
255
“[...] luttent [...] avec le deuil, cet ange nocturne”. Ibid., p. 13.
256
“[...] des semblants de présence”. Ibid., p. 14.
257
“[...] transforme le détail en mythe”. Ibid., p. 19.
258
“De cet esprit de dépassement, séduit par une imprenable origine ou fin appelée Dieu, il semble que subsiste
surtout, dans la culture contemporaine, le mouvement de partir sans cesse, comme si, de ne plus pouvoir se
fonder sur la croyance en Dieu, l'expérience gardait seulement la forme et non le contenu de la mystique
traditionnelle”. Ibid., p. 411. Grifo nosso.
351

evidências “visíveis”.259 A compreensão da disseminação escriturária permitida pela


“desaparição fundadora” e o postulado de um ausente da história não facilitavam esse tipo de
relação com a tradição como vista em Lubac.
Certamente, caberia a uma “teologia do fantasma” (théologie du fantôme)260 analisar
as ressurgências do morto desaparecido da tumba em outras ocasiões e discursos. Contudo,
inversamente, o que Certeau instaurou foi uma “história do fantasma”, tendo por estatuto
teórico, inversamente, o retorno espectral da ausência na constituição histórica dos discursos
onde era ela inventada como presença.
A escrita da história dessa espectralidade mística é sua forma privilegiada de
reconhecer que o corpo não é localizável, mesmo entre os seus fervorosos místicos. Por meio
dela ele pode admitir que a tumba vazia não pode ser preenchida a não ser como delírio do
corpo alterado pela falta do objeto desejado. Esse estudo sobre a sua própria impossibilidade
lhe fornece uma forma, ainda que precária, de elaborar a perda261 da potência de efetividade
da progressão espiritual sob o modo como um dia lhe havia parecido crível. A peregrinação
entre as divinizações do excepcional o ajudam a “chorar” sua própria incapacidade de
produzir um discurso de presença, como havia sido sua busca em outro momento. Portanto,
esse trabalho é o luto historiográfico da teologia, única face realizável do drama da
possibilidade de viver sem o único.
Esse luto (im)impossível é íntimo de outro aspecto que gostaria de percorrer. Trata-se
do sentido heterológico do reemprego feito por Certeau dele mesmo em La fable mystique. A
historiografia é uma prática do luto porque por meio dela é possível conscientizar-se que algo
se perdeu e não voltará. O historiador escreve a partir dessa falta, colocando uma
representação em seu lugar. Ao estudar os místicos, ele conscientiza-se da impossibilidade de
uma reconstituição, da ilusão de poder reestabelecer aquilo tornado inacessível pelo passado.
À medida que procura encontrar um desaparecido, ela encontra apenas um desaparecido que

259
HOFF, Johannes. Mysticism, ecclesiology and the body of Christ: Certeau’s (mis-)reading of Corpus
Mysticum and legacy of Henri de Lubac. In: BOCKEN, Inigo. (Ed.) Spiritual spaces: history and mysticism in
Michel de Certeau. Leuven: Peeters, 2013. p. 106.
Brenna Moore também ressaltou a diferença nas maneiras de Lubac e Certeau pensarem a integração do passado
cristão ao presente, com destaque para a divergência no modo como eles praticaram o retorno às fontes.
MOORE, Brenna. How to awaken the dead: Michel de Certeau, Henri de Lubac, and the instabilities between the
past and the present. Spiritus: a Journal of Christian Spirituality, v. 12, n. 2, p. 172-179, fall 2012. Disponível
em: https://cutt.ly/XcRzksR. Acesso em: 12 jan. 2021.
260
CERTEAU, Michel de. (1982) La fable mystique: XVIe-XVIIe siècle. Paris : Gallimard, 2002. p. 10.
261
Aqui não estou seguindo a distinção feita por Dominick LaCapra entre perda e ausência, uma gerada por
situações históricas de violência, como Nazismo ou Apartheid, e a outra dotada de cunho metafísico. Recorro ao
termo “perda” como sinônimo de “ausência”, porque o que está em jogo é uma crença na progressão em direção
à presença antes existente e agora impossível. LACAPRA, Dominick. Trauma, Absence, Loss. Critical Inquiry,
v. 25, n. 4. p. 696-727, 1999, p. 698.
352

procura um outro desaparecido. Desse modo, como os místicos, ele é convidado a se haver
com a natureza heterológica de seu trabalho, isto é, com a produção de um discurso sobre o
outro: “um exercício de ausência define ao mesmo tempo a operação pela qual ele produz seu
texto e aquela que construiu o deles”.262
Essa consciência heterológica alterou inclusive os trechos de « Mystique » au XVIIe
siècle: le problème du langage « mystique » reutilizados. Certeau tinha associado o princípio
ontológico da presença a certa maneira do historiador apreender os fatos históricos, implícita
em seu próprio trabalho erudito na edição crítica de textos antigos e na história de suas
doutrinas místicas. Alguns trechos retomados em La fable mystique reconsideram esse
realismo por meio de rasuras nas quais estão articulados os traços dessa outra imagem do
trabalho histórico.
Essa parte comum entre as duas ocorrências do texto tratam basicamente das
transformações do termo “mística” durante a Idade Moderna. Antes do fim do século XVI, o
termo tinha aplicação adjetiva a unidades substantivas já correntes na língua, designando
maneiras particulares de entender e utilizar as expressões às quais qualificavam.
Paulatinamente, o termo vai se complexificando até suas significações serem reunidas em um
campo próprio em torno de um substantivo (a mística), circunscrevendo a elaboração de uma
“ciência” cujos procedimentos serão organizados em torno de um modus loquendi (uma
maneira de falar).
O termo “mística” ainda estava carregada de suas acepções antigas, “ligada[s]
determinadas pela exegese alegórica e/ou pela teologia dionisiana”.263 Essa substituição de
“ligado” por “determinado” altera a vinculação direta da ordem semântica com os campos de
sua pratica em produção da significação pelas operações intelectivas que lhe visam. O
princípio epistemológico de um elo transparente do pensado e do pensamento é modificada
em insinuação produtiva do conhecimento sobre o objeto.
No século XVI, o termo começa a reempregar “contemplativo” e “espiritual”, mais
correntes para especificar o reino interior cuja realidade escapa à inteligência. Em alguns
casos, quando “místico” substitui “espiritual”, trata-se ainda de “ler nessas coisas o ensino que

262
“un exercice d’absence définit à la fois l’opération par laquelle il produit son texte et celle qui a construit le
leur”. CERTEAU, Michel de. (1982) La fable mystique: XVIe-XVIIe siècle. Paris : Gallimard, 2002. p. 21.
263
“lié déterminées par l’exégèse allégorique et/ou par la théologie dionysienne”. CERTEAU, Michel de.
« Mystique » au XVIIe siècle: le problème du langage « mystique ». In: L’Homme devant Dieu: Mélanges offerts
au père Henri de Lubac. Paris: Aubier, 1964. v. 1. p. 270. CERTEAU, Michel de. (1982) La fable mystique:
XVIe-XVIIe siècle. Paris : Gallimard, 2002. p. 129-130. Grifo nosso.
Optei pelo recurso gráfico da linha cortando a palavra para indicar as exclusões vocabulares, ao invés de
transcrever as duas ocorrências em separado. A sequência do texto após a rasura indicada com o recurso gráfico
segue o texto da segunda versão, ainda que contenham pequenas alterações em relação à primeira versão.
353

se pretende dar um efeito de leitura e uma transformação das coisas em vocabulário de um


ensino doutrinal ou moral”.264
Ao invés de desvelar (ler) nas coisas qualificadas pelo termo “místico” a presença de
uma verdade invisível (o ensino que o antecede), a mudança na construção do enunciado
passa à lógica operativa da leitura e à conversão da realidade em signo da linguagem de um
campo específico. A interpretação simbólica do invisível no visível torna-se uma operação
fabricadora de efeitos e a unidade pressuposta entre o presente (as coisas) e o passado (o
ensino) dá lugar à prática de injunção da nova coloração do termo “mística” à linguagem
teológica da tradição.
Desse modo, a reinterpretação de Certeau sobre a mudança no adjetivo faz o “luto” da
autoimagem “presentificante” do pensamento teológico do século XVI reproduzida em seu
texto. A frequentação do invisível no visível que era o postulado da época correspondia, no
“realismo factual” no texto de Certeau, à afirmação da “marca” do uso teológico impressa no
termo “mística”. Em sua reformulação, essa relativa transparência entre uma “exterioridade”
(uma intenção/uma intelecção teológica) e o documento (o significado de “mística” nos textos
do passado) dá lugar ao “rastro” do outro deixado no material do passado: “se a palavra
guarda ainda essa marca o rastro de uma prática anagógica e escriturária, as regras dessa
leitura se desorbitam e se atenuam”.265
No plano da leitura dos signos textuais e das regularidades que podem ser
estabelecidas em uma época, Certeau está preocupado com a história do que as palavras
fazem das coisas, para jogar com o título do conhecido livro de John Austin (How to do things
with words), mais do que com a recondução das coisas à facticidade escamoteada pela
linguagem “mística” dos documentos: “a alegoria explicativa dos fatos bíblicos (a allegoria in
factis) se dilata em alegoria das coisas e em imagens vivas se estende a todos os tipos de
coisas para transformá-las em imagens vivas dos segredos da experiência”.266
“Místico” passa então a qualificar assuntos caracterizados por uma significação
inacessível à apreensão imediata. Concomitantemente, há o aparecimento do substantivo

264
“lire dans ces choses l’enseignement que l’on veut donner un effet de lecture et une transformation des choses
en vocabulaire d’un enseignement doctrinal ou moral”. CERTEAU, Michel de. « Mystique » au XVIIe siècle: le
problème du langage « mystique ». In: L’Homme devant Dieu: Mélanges offerts au père Henri de Lubac. Paris:
Aubier, 1964. v. 1. p. 270; CERTEAU, Michel de. (1982) La fable mystique: XVIe-XVIIe siècle. Paris :
Gallimard, 2002. p. 130.
265
“si le mot garde encore cette marque la trace d’une pratique anagogique et scripturaire, les règles de cette
lecture se désorbitent et s’estompent”. Ibid., p. 271; Ibid., p. 130-131. Grifo nosso.
266
“l’allégorie explicatrice des faits bibliques (l’« allegoria in factis ») se distend en allégorie des choses et en
images vivants s’étend à toutes sortes de choses pour les muer en vivantes images des secrets de l’expérience”.
Ibid., p. 271. Ibid., p. 131. Grifo nosso.
354

designando um procedimento, uma maneira de expressar-se, ou ainda um estilo,


autonomizando uma “ciência” mística à qual cabe dar a ver a o indizível das coisas ou da vida
interior.
Dessa transformação, retenho uma última questão. Ela permite pensar o luto da
presença operada pela história da mística, implicada na revisão heterológica do texto sobre a
linguagem mística, agora a partir de uma preocupação de natureza teológica fundamental na
primeira versão, inexistente e até mesmo questionada pela escrita da fábula mística.
A relação entre o antigo e o novo no destino do termo “mística” era o assunto
acentuadamente teológico que estimulava Certeau. O conteúdo e o tom de suas palavras
permitem afirmá-lo: “O pensamento não cessa de se mover de dentro dessas palavras
inalteradas, através de uma obra secreta que respeita uma linguagem consagrada, mas nela
cava novas vias, como água viva em grutas ancestrais”.267 A disputa entre os escolásticos e os
místicos modernos colocava para o presente o problema da “harmonia” necessária entre a
nova linguagem espiritual de um tempo e a única verdade religiosa revelada pelo Cristo.
Essa questão era pontuada segundo espírito da “nouvelle théologie” e do concílio
vaticano II, pois Certeau dizia que as tensões decorrentes da particularização e as
ambiguidades da linguagem mística levavam os espirituais a precisar sua terminologia
sobretudo quando se acentuava o movimento de “retorno às fontes” (retour aux sources).268
Além do uso dessa expressão cara ao seu solo religioso, Certeau se deterá sobre um problema
colocado pela abertura à modernidade em seu próprio tempo, qual seja, a fidelidade às fontes
da tradição é à universalidade de seu magistério.
Certeau dedicará uma longa sequência de páginas269 às críticas endereçadas às
novidades inseridas pelos místicos na linguagem religiosa e à devoção destes em comprovar a
descendência de seus enunciados na autoridade ancestral, na continuidade com a tradição e no
respeito aos santos da antiguidade. Quanto a esse fato, Certeau não escondia sua
concordância: “Quando Fénelon responde: ‘A Igreja dos séculos XVI e XVII, que os autoriza,
não tem menos peso do que a Igreja dos primeiros tempos’, ele tem razão, mas não admite
menos a novidade do fato”.270

267
“La pensée ne cesse de mouvoir du dedans ces mots inchangés, par un travail secret qui respecte un langage
consacré mais y creuse des voies nouvelles, comme l’eau vive dans les grottes ancestrales”. CERTEAU, Michel
de. « Mystique » au XVIIe siècle: le problème du langage « mystique ». In: L’Homme devant Dieu: Mélanges
offerts au père Henri de Lubac. Paris: Aubier, 1964. v. 1. p. 267.
268
Ibid., p. 281.
269
Ibid., p. 281-291.
270
“Quand Fénelon répond: « L’Église du XVIe et du XVIIe siècle, qui les autorise, n’a pas moins de poids que
l’Église des premiers temps », il a raison, mais il n’en admet pas moins la nouveauté du fait”. Ibid., p. 282. Grifo
nosso.
355

O cerne teológico dessa história da linguagem mística escrita por Certeau é o


cruzamento não excludente entre o novo e antigo, entre multiplicidade e a unidade. Novas
experiências, locuções e intuições não são estranhas à identidade doutrinal e ao acolhimento
de uma verdade que diz respeito a tudo e a todos: “Dito de outro modo, ela [a linguagem
mística] se caracteriza menos pelo desdobramento de verdades progressivamente adquiridas
do que por um reconhecimento cada vez mais profundo de sua verdade; menos pelo conteúdo
do conhecimento, do que por sua intensidade crescente”.271 O paradoxo não está relacionado à
verdade proposta pela mística, mas em sua assimilação interior.
Essa pertinência teológica não se encontra em La Fable mystique. Em páginas dedicas
à controvérsia,272 a resposta aos ataques dos examinadores é bastante próxima à vista na outra
versão, mas ela não é seguida da mesma complacência da parte de Certeau. No mesmo trecho
de Fénelon supracitado, já não encontramos mais as palavras que lhe dão razão.273
Nos discursos ligados à controvérsia, a solução de continuidade e a garantia de uma
genealogia é angariada pela perda de uma linguagem que carrega um século de lutas místicas.
Essa perda não é lamentada teologicamente por Certeau, pois para ele a linguagem mística
“não diz nada de próprio”.274 Sua singularidade é ser uma maneira de falar – e não mais uma
exegese para dizer o sentido da linguagem recebida que um dia havia sido para ele a
“pedagogia” de místicos modernos como Surin.
Essa “aceitação” da presença impossível aponta uma direção bastante diferente
daquela vista na primeira versão do texto. Talvez o maior rastro dessa desvinculação a uma
teologia da história em prol da historiografia como a prática do luto da teologia seja o elogio
da “frutuosa tensão da fidelidade e da novidade”275 ter dado lugar à qualificação dessa
aventura polêmica como uma “estranha história” (étrange histoire).276
Embora esse discurso busque apagar as diferenças para produzir uma tradição e
restaure a unicidade de uma mesma coisa nas rusgas do presente, ele não silencia a irrupção

271
“Autrement dit, il se caractérise moins par le déploiement de vérités progressivement acquises, que par une
reconnaissance de plus en plus profonde de leur vérité; moins par le contenu de la connaissance, que par son
intensité grandissante”. CERTEAU, Michel de. « Mystique » au XVIIe siècle: le problème du langage
« mystique ». In: L’Homme devant Dieu: Mélanges offerts au père Henri de Lubac. Paris: Aubier, 1964. v. 1. p.
287.
272
Id. (1982) La fable mystique: XVIe-XVIIe siècle. Paris : Gallimard, 2002. p. 149-155.
273
Ibid., p. 154.
274
“[...] ne dit rien de propre”. Ibid., p. 155.
275
“[...] fructueuse tension de la fidélité et de la nouveauté”. Id. « Mystique » au XVIIe siècle: le problème du
langage « mystique ». In: L’Homme devant Dieu: Mélanges offerts au père Henri de Lubac. Paris: Aubier, 1964.
v. 1. p. 268. Grifo nosso.
276
Id., op. cit., p. 155. Grifo nosso.
356

de desvios e os ruídos do outro ressurgidos em sua pragmática da enunciação: “Como lapsos,


palavras insinuam na linguagem uma alteridade reprimida”.277
A história da fábula mística não é o relato dos sucessos da salvaguarda da unidade da
história cristã, mas do fantasma da diferença que obsedia as ficções teológicas da
continuidade e da presença. A pena de Certeau não podia mais ser reconhecida nesses
companheiros espirituais, a não ser sob a forma da inquietante familiaridade de uma “viagem
mística”, cujas incansáveis partidas não poderiam levar ao mesmo lugar esses caminhantes
separados por uma distância histórica intransponível.
Seja na diferença entre Certeau e Lubac, seja no princípio teológico explícito em La
fable mytique, seja no trabalho do luto proporcionado pela história da mística, implicado nas
ressignificações heterológicas e no apagamento da antiga intenção teológica do texto, uma
ferida do indizível, uma irredutibilidade da diferença e uma alteridade alterante são as
insígnias maiores deixadas no terceiro capítulo desse grande livro que laureia a relevante
trajetória intelectual de Michel de Certeau.

277
“Tels des lapsus, des mots insinuent dans le langage une altérité refoulée”. CERTEAU, Michel de. (1982) La
fable mystique: XVIe-XVIIe siècle. Paris : Gallimard, 2002. p. 155.
357

Considerações finais

A relação entre teologia e história se tornou um dos pontos centrais da reação


antimoderna por parte da política papal em vigor desde o século XIX. As consequências
doutrinais da crítica histórica praticada pelo chamado “modernismo” foram duramente
repreendidas no início do século XX. Tal rótulo também foi atribuído às contribuições
teológicas dos jesuítas associados ao Seminário de Fourvière em Lyon nos anos 1940,
suspeitas de serem prejudiciais à ortodoxia do magistério da Igreja.
Dentre os alvos da reação antimodernista, baseada no tomismo, estava a entrada do
historicismo no interior dos portões da Igreja, como representado pelos escritos do teólogo
Alfred Loisy, quem havia sido aluno de Ernest Renan, historiador da vida de Cristo. O
antimodernismo também se contrapunha ao diálogo com correntes filosóficas nas quais havia
o acento na historicidade e na participação cristã em experiências do mundo moderno, como
os movimentos políticos de esquerda.
Essa intimidade entre modernidade e religião foi marcante em um filósofo católico
como Maurice Blondel. Sua maneira não tomista de relacionar história e dogma, ensejando
abrir a tradição à mudança sem por isso colocá-la em questão, seria desdobrada
teologicamente na forma pela qual alguns jesuítas associados ao Seminário de Lyon
recorreriam à história nos anos 1940. Essa terceira via alternativa a um tomismo a-histórico e
a um historicismo visto como prejudicial à universalidade do magistério da Igreja dava o tom
a projetos editoriais orientados pelo espírito do “retorno às fontes”, como a coleção Théologie
e Sources chrétiennes, ligadas à Fourvière.
Esses teólogos buscaram legitimar revitalização da tradição nela própria, recusando as
consequências modernistas de questionamento à doutrina da Igreja. Eles estarão também entre
aqueles cujos trabalhos desenvolverão uma teologia da história fundada sobre a revelação
cristã. Dessa maneira, resguardavam sua diferença quanto às filosofias que rivalizavam com o
cristianismo pelo destino da humanidade naquele ambiente pós-guerra, como o hegelianismo,
o marxismo e o existencialismo.
Mesmo assim, as obras desses jesuítas, intitulada “nova teologia” pelos seus críticos,
será acusada de modernismo. Essa denúncia partiu principalmente de teólogos dominicanos e
foi seguida pela reprovação romana com a promulgação da encíclica Humani generis em 12
de agosto de 1950. Sanções foram impostas a Henri de Lubac, eleito líder de um movimento
teológico que ele mesmo não reconhecia a existência. Essa orientação antimoderna só perderá
358

primazia com a mudança de rumos representada pela convocação do concílio Vaticano II no


início dos anos 1960.
Michel de Certeau passou pelo Seminário Saint-Sulpice em Issy-les-Moulineaux e
pelo Seminário teológico de Lyon na década de 1940. Ele acompanhou de perto as renovações
teológicas ligadas à colina de Fourvière, onde estudou em 1947-1950. Essa ligação com
aquela atmosfera vinha sobretudo por sua forte proximidade espiritual e intelectual com Henri
de Lubac, fortalecida nos anos posteriores àqueles em que fora seu aluno em Lyon.
Em 1955-1956, foi para lá novamente, agora para concluir seus estudos em teologia
para sua formação na Companhia, em um momento no qual o “movimento” teológico de
Fourvière já havido sido vulnerabilizado pela encíclica Humani generis. No entanto, algo
daquele espírito teológico também será encontrado na revista Christus, da qual Certeau fará
parte após sua ordenação em julho de 1956. Fundada em 1954, seu o objetivo era dialogar
com o mundo moderno pela via do retorno às fontes da Companhia e da fidelidade à
espiritualidade inaciana.
O primeiro momento da trajetória intelectual de Certeau compartilhou muitos motivos,
interesses e orientações com esse ambiente teológico vivaz dos anos 1940/1950. Dessa
linguagem religiosa em papéis, artigos e livros de Certeau, destaca-se a importância do
pensamento de santo Agostinho e da espiritualidade de santo Inácio. Quanto à teologia
moderna, seus escritos conferem explícita ou implicitamente grande relevância ao pensamento
de Henri de Lubac, como visto no interesse de Certeau pela relação não excludente entre
natural e sobrenatural e pelo paradoxo humano da espiritualidade. O mesmo pode ser dito da
maneira como a teologia espiritual ensaiada por Certeau é acompanhada por uma
argumentação cara à teologia da história a nível providencial, cristológico, escatológico e
eclesiológico.
Ainda não há um projeto bem desenhado que singulariza essa orientação teológica de
Certeau. Em linhas gerais, a teologia espiritual e da história pincelada em seus escritos não
fogem às delimitações gerais que já haviam sido estabelecidas desde Newman, Blondel e da
“nova teologia” no que concerne à relação entre história e dogma, a rigor permanecendo nas
cercanias da linguagem lubaciana.
Contudo, é possível afirmar uma vivacidade em seus textos, entendendo com isso a
escritura de uma diferença que deixa seus rastros ao apagar-se. Essa escritura certeauniana na
imanência da teologia lubaciana foi tratada pela feição imotivada da entrada de Heidegger
nesse plano da teologia espiritual. Ela também pôde ser vista em uma vizinhança com a
filosofia da história que insinua uma diferença hegeliana na linguagem lubaciana, ao mesmo
359

tempo em que essa diferença é ela mesma remarcada por uma semântica teológica da história
que é estranha a Hegel.
A teologia da história é seguida por seu estudo sobre algumas fontes da espiritualidade
inaciana, detendo-se principalmente nas doutrinas místicas de Pierre Favre (século XVI) e
Jean-Joseph Surin (século XVII). Esse trabalho sobre as origens da Companhia foi
demandado pelos seus superiores, tendo ocupado grande parte de suas publicações entre
1958-1962, quando lhe foi atribuída, junto com François Roustang, a responsabilidade da
direção editorial da Christus.
Tendo estudado filosofia e letras clássicas na Universidade de Grenoble, ampliou sua
formação em instituições não religiosas nos seminários de Jean Baruzi no Collège de France,
de Jean Orcibal na École Pratique des Hautes Études, como também nos de Alphonse Dupront
e Roland Mousnier, ambos na Sorbonne. Isso o possibilitou desenvolver um tratamento
erudito de documentos da mística moderna, reestabelecendo e editando criticamente esses
textos. O estudo histórico dessas ideias foi pautado na exigência de exatidão das referências
intelectuais constituintes dessas doutrinas místicas, assim como na demonstração de suas
contribuições particulares aos problemas apresentados aos religiosos na época em que foram
produzidas.
À essa interpretação histórica foi integrada uma interpretação teológica da
espiritualidade. Essas ideias espirituais eram indissociáveis de sua história, mas se davam por
uma experiência de insubmissão a ela, isto é, integravam critérios por meio dos quais as
inquietações humanas particulares de seu tempo podiam ser manejadas como recursos para
desvelar a presença de Deus (uma solução espiritual) e para produzir uma fidelidade à
tradição e à Igreja (uma solução religiosa). Esse trabalho de erudição e de história das ideias
comportava um postulado teológico segundo o qual uma continuidade era prioritária em
relação às mudanças históricas. Semelhante postulado era o fundamento da relação
pedagógica estabelecida por Certeau entre as doutrinas espirituais do passado e as exigências
humanas no presente.
Os anos após os primeiros trabalhos histórico-teológicos de Certeau foram de grandes
transformações no universo do catolicismo. Com o avançar do concílio Vaticano II (1962-
1965), ficava cada vez mais evidente o espaço ganho pela orientação “progressista” à maneira
da nouvelle théologie. O processo de secularização da sociedade francesa alcançava uma nova
dimensão, na qual crescia o desinteresse pela cultura religiosa da parte das novas gerações,
sangria que o reformismo do concílio não foi capaz de estancar. Essa perda de plausibilidade
360

significou certa desinstitucionalização das crenças religiosas, sobretudo a partir do


questionamento generalizado das autoridades na esteira do maio de 1968.
Certeau mergulhou na vida editorial da Christus naqueles anos conciliares, quando ele
e François Roustang foram designados para a direção da revista. A exigência de uma
renovação teológica que não questionasse a fidelidade à tradição estava na ordem do dia nos
debates conciliares. Ela também havia sido o preceito do “retorno às fontes” em Fourvière e
do projeto editorial original na Christus. Essa exigência encontrava paralelo no elogio à
renovação teológica do século XVII, feita por Certeau em textos publicados a partir de 1963.
No entanto, Roustang e Certeau imprimiram uma reorientação editorial na revista,
dando cada vez mais espaço às linguagens não religiosas, às experiências humanas e às
ciências humanas modernas. Essa nova postura editorial foi autorizada pelos superiores, sob a
condição da manutenção explícita da identidade inaciana das reflexões veiculadas em seus
números.
Os novos editores se esforçaram para respeitar a exigência dos superiores da
Companhia, mas os conflitos não tardariam a aparecer. Um artigo de Certeau publicado em
1965 foi questionado pelas autoridades eclesiásticas. No ano seguinte, os diretos da revista
pedem para ser substituídos na chefia de sua editoria, do contrário propõem sua dissolução
para criação de um centro de pesquisas dedicado às ciências humanas.
Na edição da Christus em outubro de 1966, o opúsculo de François Roustang, Le
troisième homme, autorizado por Certeau, reverberava esse contexto de transformações não
suficientemente respondidas pelo reformismo conciliar. Esse texto causou enorme
desconforto nos superiores da Companhia e em Roma, desencadeando a demissão do diretor e
seu desligamento voluntário da ordem. Certeau manteve-se na revista até julho do ano
seguinte e nunca deixou a Companhia, mas recusou ao convite para assumir sua direção,
solicitando sua partida para a Études.
Essas tensões sociorreligiosas, editoriais e intelectuais não são isoladas da
intensificação da defesa de renovação da tradição em textos de Certeau a partir de 1963. De
fato, esses escritos sugerem um esforço considerável em acomodar as mudanças na própria
tradição e no magistério da Igreja, textualizado sob a forma de uma tradição dilatada.
Contudo, à medida que o conflito com as autoridades avançava, seu campo vocabular e
semântico vai tornando cada vez mais tênue a continuidade antecedente às mudanças e a
identidade religiosa evidente.
Essa transição foi preparando o terreno para a mudança na maneira de Certeau
relacionar teologia e história em seus materiais ministeriais e seus artigos teológicos pelo
361

menos desde o segundo semestre de 1966. Essa mudança coincide com o aprofundamento
crítico da orientação da revista e com o pedido de saída da dupla de sua direção. Ela foi a
maneira propriamente certeauniana de responder às questões urgentes de sua época e uma
primeira imagem da conformidade de seus textos às impossibilidades e possibilidades
epistemológicas como Certeau as estudará nos anos subsequentes.
O conhecimento histórico desempenha papel crítico fundamental nessa mudança, pois
ele permite verificar com uma participação cultural e uma ruptura com a tradição estiveram
sempre em funcionamento na tradição inaciana e cristã, mesmo onde se pensava reproduzir o
passado. Isso implicou abrir mão da manutenção teológica de uma continuidade no interior da
qual mudanças seriam absorvidas, tornando a descontinuidade histórica a condição para a
interpretação espiritual. A tradição assume uma forma fraturada: caracterizada pela
pluralidade, por rupturas e por superações não homogêneas da distância.
A realidade histórica não é mais o resultado de uma verdade cristã universal e
necessária (uma teologia da história); a erudição e a história das ideias espirituais não são
mais um procedimento semiautônomo em última instância submetido à uma interpretação não
histórica na qual está pressuposta uma continuidade religiosa (um postulado teológico da
história); e a identidade entre a tradição e as renovações do presente (uma tradição dilatada)
não pode ser mais ser garantida.
A pressuposição da possibilidade do desvelamento da presença de Deus nas
experiências humanas no presente ainda aparecia em materiais nos quais é possível apontar os
primeiros indícios dessa mudança ocorrida entre 1966/1967. Contudo, ela já dá sinais de uma
impossibilidade assombrando essa busca pela manifestação da verdade espiritual, antes
defendida como progressão em direção a Deus. Esse drama do desejo de uma presença que só
“manifesta” sua ausência, cujos traços ainda são a esta altura imotivados, tornar-se-á um
princípio teológico destacado nas reflexões vindouras.
Nesse segundo momento, Certeau aprimorou o diagnóstico da religião no mundo
moderno, cenário desafiador cujo chamado atendeu e frente ao qual produziu o deslizamento
em sua produção. Suas peregrinações lhe renderam urgências vitais tanto inseparáveis quanto
irredutíveis à sua atividade escriturária: o trabalho na Études, as incursões na América Latina,
a atenção meticulosa ao maio de 1968, a circulação entre instituições religiosas e não
religiosas, dentre outras. A essa série móvel de descobertas correspondeu um descentramento
religioso em seus temas de trabalho, uma avaliação da crise de autoridade religiosa, uma
docilidade inaudita às suas origens religiosas, uma desinstitucionalização de sua própria
práxis espiritual e uma herança espiritual lubaciana em seu discurso teológico.
362

Em meio a esses partidas e ultrapassagens, a relação entre história e teologia


característica desse “segundo” Certeau foi radicalizada e suplementada em algumas frentes.
Certeau elevou à categoria de problema sua maneira religiosa de pensar a história quando
partiu rumo aos séculos XVI e XVII. Ele tratou essa questão por meio do estabelecimento de
princípios epistemológicos viáveis para a investigação histórica em seu tempo. Ele o fez em
profundo diálogo com a filosofia, com a etnologia e com a psicanálise. Desse problema posto
e desse tratamento percorrido, resultou sua contribuição teórica à concepção heterológica de
história.
A atenção estrita conferida à epistemologia contemporânea foi seguida de perto em
seu modo de articular história e teologia. Isso pode ser visto em torno da indissociabilidade da
efetividade histórica e da estrutura do pensável no que diz respeito ao discurso teológico. Tal
articulação entre historicidade e inteligibilidade condizente à credibilidade do pensamento
religioso foi tratada sob o signo da pensabilidade histórica da teologia delimitável em Certeau.
A essa pensabilidade histórica da teologia pode ser vinculada uma série de realizações
particulares de um gesto teológico da dupla diferença, traço marcante desse segundo momento
certeauniano. Essa modalidade é produzida em suas retomadas em formas gestuais sucessivas
componentes da gestualidade certeauniana: dupla ruptura, união na diferença, fidelidade
criadora, ruptura instauradora, fragilidade do crer, escritura cristã, fábula cristã, desaparição
fundadora...
Por fim, a abordagem de Certeau sobre a história da fábula mística leva às últimas
consequências o não lugar teológico da teologia. O trabalho do historiador já não traz consigo
nenhuma obrigação teológica ao tratar da espiritualidade, se entendemos por isso a
explicitação de um método de apreensão da presença ainda crível no presente. Não que não
haja um valor espiritual atribuído à prática historiadora, mas ele está em fazer da
historiografia o luto da possibilidade teológica de dar resposta ao desejo religioso de presença.
Diante de tudo que foi dito até aqui, é factível combinar os planos histórico-teológicos
de significação e as suas condições históricas de produção, grosso modo, da seguinte maneira:
em uma primeira delimitação, prevalece uma dependência da história (no duplo sentido) em
relação a teologia, e o trabalho histórico está a serviço da identidade religiosa, ou ao menos
não a contradizendo; em uma segunda, há uma dependência da teologia em relação à história
(no duplo sentido) e um trabalho teológico sem compromisso evidente com a identidade
religiosa, quando não se opondo a ela. Essa inversão foi o signo da passagem entre dois
momentos diferentes na trajetória intelectual de Michel de Certeau.
363

Um primeiro desdobramento que gostaria de produzir se refere ao caráter epistêmico


dessa mudança. Farei isso por intermédio da seguinte proposição: um a priori histórico da
teologia substituiu o a priori teológico da história na interpretação certeauniana da
espiritualidade. Aposto nessas duas formulações para elaborar um significado teórico preciso
para a diferença desses “dois” Michel de Certeau cartografados e historiados por nossa
análise. Dito de outro modo, busco explorar o que pode estar implicado filosoficamente na
tensão do “teológico da história” e do “histórico da teologia” que usei para qualificar os
momentos postos pela interpretação.
O termo “a priori” ficou consagrado com o uso que Kant fez dele logo na introdução
de sua Crítica da razão pura. Trata-se do conhecimento independente da experiência, em
oposição ao conhecimento a posteriori, cuja fonte é a experiência. Mais precisamente, os
conhecimentos a priori “se dão não independente desta ou daquela, mas de toda e qualquer
experiência”.1 Kant distingue ainda o conhecimento a priori do a priori puro, ambos
independentes da experiência, mas o segundo não envolvendo qualquer empiria: “toda
mudança tem uma causa” é um juízo universal, mas não puro, porque “mudança” é um
conceito que só pode derivar da experiência. Kant precisa ainda o a priori do ponto de vista
do projeto de sua filosofia transcendental, isto é, como condição universal de possibilidade de
todas as formas de conhecimento, cujos critérios de valor ou desvalor a crítica objetiva
esclarecer.2
A fortuna do termo excedeu em muito as formas puras como “tempo” e “espaço” tal
qual Kant o quis, sendo frequentemente usado de maneira abrangente para designar o que é
anterior à experiência e da qual esta depende.3 O próprio Certeau se refere a ele no plano
religioso para fazer menção a algo aceito como verdade independente das particularidades
históricas que lhe resistem.4 É nessa linha do uso não exclusivo às categorias resultantes da
crítica transcendental kantiana que proponho recorrer ao termo.
Para ser mais preciso, falo não em a priori, mas em a priori teológico. Com essa
expressão me refiro a fatores caros à fé cristã tomados como condição evidente, necessária e
universal afirmada ou pressuposta em uma interpretação de determinado aspecto da realidade

1
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Tradução e notas de Fernando Costa Mattos. Petrópolis: Vozes,
2012. p. 46. KrV, B, 3.
2
O cerne da crítica kantiana está em sua contribuição original sobre os juízos sintéticos a priori. Para os juízos
analíticos, sintéticos e sintéticos a priori, ver: Ibid., p. 51-59. KrV, B, 10-23.
3
Para a história do termo e seus diferentes usos, ver os verbetes disponíveis em: ABBAGNANO, Nicola.
Dicionário de filosofia. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 85-87; JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES,
Danilo. Dicionário básico de filosofia. 3 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996. p. 14-15.
4
CERTEAU, Michel de. L’épreuve du temps. Christus, t. 13, n. 51, p. 311-331, juil. 1966, p. 319.
364

humana. Esse a priori é teológico não apenas por tomar aspectos de uma crença particular
como válidos independentemente de sua demonstração, mas porque a ela é subordinado o
sentido das experiências humanas. Além disso, essas experiências não lhe acrescentam nada
de novo. Embora essas verdades a priori sejam vivenciadas, ruminadas e entendidas na
pluralidade da existência, em si mesmas elas são perfeitas e imutáveis. Portanto, quaisquer
mudanças ou aprofundamentos só podem ser fruto das insuficiências dos próprios viventes
que fazem sua experiência.
Essa condição da interpretação é um a priori teológico da história porque funcionam
na interpretação das contingências humanas no tempo e no espaço. Esse a priori teológico
aparece com especial força quando a revelação cristã fornece os critérios providenciais,
cristológicos, salvíficos, escatológicos e eclesiológicos no entendimento do sentido da
história. Ele reaparece sob a forma mais moderada de uma continuidade cristã autoevidente,
generalizável e insubordinada à mutabilidade das experiências humanas da vida dos crentes.
Essa continuidade é o postulado teológico da validade pedagógica dos discursos de presença
dos séculos XVI/XVII para o século XX. Ela também é a condição para a salvaguarda da
harmonia da tradição e da catolicidade com as renovações espirituais dos séculos XVII e XX.
Essa continuidade ainda tenuemente postulada por volta de 1965/1966 acabou dando
lugar à descontinuidade histórica. Ela é condição para uma forma de continuidade pela qual as
múltiplas experiências sejam qualificáveis como cristãs. O mesmo encontra-se na produção
do gesto teológico como será forjado por Certeau. Esse postulado é o ponto de partida do que
chamei a priori histórico da teologia.
A expressão “a priori histórico” havia sido utilizada por Edmund Husserl em A
origem da geometria. Para Husserl, o a priori histórico é a “tradição, o sedimentado, o
disponível, as idealidades de uma forma geral”,5 mas cuja validade depende de um presente
que o reativa e dá sentido. Uma história pressupõe o presente sem determiná-lo, enquanto
uma presente só é possível a partir de uma história. Essa relação entre presente e passado
processa uma repetição que abre um novo horizonte de possibilidades. Trata-se de “uma
continuidade viva entre o passado e o presente” e de “uma abertura para o futuro”.6
O conceito de a priori histórico reaparecerá em Michel Foucault em uma perspectiva
crítica à concepção continuísta de história como vista na fenomenologia de Husserl. Em A
arqueologia do saber, Foucault retomou e precisou essa expressão que já utilizara em As

5
MANZI, Ronaldo Filho. Duas noções de a priori histórico: a tradição e o arquivo - a concepção de uma “anti-
crise” de Michel Foucault. Philósophos, v. 19, n. 1, p. 191-217, 2014, p. 200. Disponível em:
https://cutt.ly/vb5Dvjs. Acesso em: 22 maio 2021.
6
Ibid., p. 201.
365

palavras e as coisas. Esse termo coloca em evidência as condições de possibilidade (a priori)


restritas e mutáveis (histórico) para a emergência de enunciados: “quero designar um a priori
que não seria condição de validade para juízos, mas condição de realidade para enunciados”.
Para Foucault, “o a priori não escapa à historicidade”, não é “uma estrutura intemporal”, mas
“o conjunto das regras que caracterizam uma prática discursiva”.7
Se levarmos em conta que o a priori histórico abre caminho para descontinuidades nas
regularidades discursivas em dada época; se considerarmos a descontinuidade histórica como
postulado crucial para a abordagem de Certeau em um segundo momento; 8 então a definição
dada por Foucault poderia parecer condizente com o nosso propósito. O próprio Certeau
recorreu com frequência à ideia de condição de possibilidade de uma maneira que não é
estranha trabalho de Foucault.
Contudo, a condição de possibilidade estava atrelada à busca dos princípios de
inteligibilidade, à investigação do que era pensável e impensável à sua época. Além disso,
Certeau recorrentemente recusou a opção exclusiva da descontinuidade em detrimento da
continuidade. Essa recusa da descontinuidade pura ocorria mesmo quando ela já considerava
impensável uma continuidade de fundo superando as descontinuidades de superfície, como
ele próprio havia adotado a priori em outro momento e que de alguma maneira estava prevista
na noção de idealidade em Husserl.
Portanto, como poderíamos falar em a priori histórico, termo que não é
completamente estranho à semântica dos textos de Certeau, mas que ele próprio não definiu?
Como podemos colocar a noção se não for na acepção de continuidade e de tradição viva em
Husserl ou de descontinuidade e positividade discursiva em Foucault? Penso que uma questão
razoável de apresentar uma possível solução é tomando a noção de a priori histórico em
conjunto com seu outro necessário quando se trata da delimitação específica que estamos
estudando: a priori histórico da teologia.
Falo em a priori porque me refiro à condição de possibilidade da qual depende todo
discurso teológico. Essas condições não são de validade como em Kant, de idealidade como
em Husserl e de realidade como em Foucault. Elas são condições de pensabilidade, ou seja,

7
FOUCAULT, Michel. (1969) A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 8 ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2015. p. 155, 156.
8
Certeau usou abundantemente esse termo, embora em uma ocasião tenha afirmado ser preferível falar antes em
“limite” ou “diferença”. Ele não estava questionando o princípio, mas a ambiguidade do termo, uma vez que ele
“parece postular a evidência de um corte na realidade”. Optei por manter o seu uso pelas seguintes razões: o
papel extremamente importante que ele exerce na mudança em meados dos anos 1960, o seu manejo recorrente
nos anos seguintes e o questionamento não do princípio, mas de seu efeito de realidade. Cf. CERTEAU, Michel
de. (1975) L’écriture de l’histoire. Paris: Gallimard, 2011. p. 65.
366

aquilo que torna algo produzível enquanto objeto, praticável pelo intelecto e crível por uma
comunidade.
Para avançarmos na questão, lembremos algumas condições de possibilidade do
discurso teológico: somente a efetividade histórica faz uma teologia pensável; essa efetividade
é culturalmente descontínua em relação a outra que a antecede; e, por isso, torna-se inevitável
uma ruptura do cristão com sua tradição. Esses três critérios são os elementos constituintes do
que chamo a priori histórico da teologia.
Esse a priori é histórico não somente por postular uma efetividade cultural, uma
descontinuidade temporal e uma ruptura com a tradição. Ele também pode ser assim
qualificado porque esses critérios advêm do seu modo particularmente historiador de ver o
cristianismo. Além disso, eles são relativos ao pensável e ao impensável da época de Certeau,
quer dizer, são gerais e não universais. Nosso jesuíta olha para a época de santo Inácio
postulando essa efetividade, essa descontinuidade e essa ruptura, mas consciente de que
naquele momento outra ordem do pensável determinava o modo como o cristão enxerga a si
mesmo e aos outros.
Portanto, podemos resumir dizendo que o a priori histórico da teologia congrega uma
positividade sincrônica (um espírito do tempo, um contexto, uma estrutura, uma episteme, um
paradigma ou uma pensabilidade) e uma negatividade diacrônica (a descontinuidade dessa
materialidade com outra antecedente e a ruptura com a tradição). Essas são as condições
históricas atuais da interpretação das teologias passadas e da produção teológica do presente.
Participar do hoje e romper com o ontem é o primeiro passo para uma significação espiritual
dessa “heresia” em relação à tradição e para a produção de uma diferença quanto à linguagem
não religiosa. Esse a priori histórico é a condição epistêmica da tradição fraturada, do gesto
teológico, da pensabilidade histórica da teologia, da gestualidade teológica certeauniana e do
luto historiográfico da teologia.
Epistemicamente, portanto, há duas formas de relacionar teologia e história em Michel
de Certeau. Essa coexistência é inversa: teologia e história → história e teologia; mas ela é
desproporcional: o a priori teológico determina antecipadamente o sentido/interpretação final
da história → o a priori histórico não predetermina o sentido/interpretação final da teologia.
Isto porque a interpretação teológica da história é substituída por uma interpretação teológica
na história, qual seja, na concretude histórica da experiência humana são inscritos gestos
singularmente teológicos cuja positividade sincrônica/negatividade diacrônica é a condição de
possibilidade para a invenção de uma proporcionalidade espiritual com o passado. O discurso
367

teológico precisa ser uma heresia do presente para que possa assumir uma fidelidade
(docilidade a princípio inaudita) jesuíta e cristã.
Um segundo desdobramento passível de ser feito é pensar a passagem entre essas duas
economias intra-extra-textuais como uma reescrita desconstrutiva de si. Nesse caso, refiro-me
à desconstrução como a pensou Jacques Derrida, duplo gesto de inversão e deslocamento
entre pares binários que comandam determinado pensamento ou esfera da realidade. Embora
esses procedimentos componham a atividade filosófica desconstrutiva, os textos e as coisas
desconstroem a si mesmos. Como apontou Derrida, a desconstrução é um acontecimento (ça
se déconstruit).9
A desconstrução acontece nos textos de Certeau enquanto inversão desproporcional na
posição hierárquica da teologia em relação à história. Dessa forma, não é uma história da
teologia que ocupa o lugar de uma teologia da história, mas a história elevada à condição de
possibilidade necessária como conteúdo mutável para a inscrição de uma singularidade
teológica. Ela fornece uma materialidade cambiante sem qual a teologia não pode traçar uma
modalidade, uma formalidade, uma expressão ou uma invenção poética próprias. Em outras
palavras, o a priori teológico enforma a história, enquanto o a priori histórico desenforma a
teologia, abrindo espaço para serem esboçadas diferentes formações sempre limitadas e
temporárias.
Entender a passagem entre dois momentos como acontecimento desconstrutivo
significa dizer que essa mudança opera dentro do esquema que ela violenta. Permanece
havendo uma necessária vinculação entre teologia e história, mas agora estando os termos
invertidos e sua lógica deslocada para uma anterioridade não intocável de uma sobre outra.
Embora haja uma ruptura entre o primeiro e o segundo momento, certos compromissos,
preocupações, noções e imagens são recolocados segundo outra lógica produtiva. É assim que
termos como continuidade, sentido, fidelidade, caridade, alteridade, dentre outros, são
empregados sem que digam a mesma coisa que antes.
No final das contas, tanto a teologia/religiosidade de Certeau determinaram sua
maneira de pensar a história, quanto sua historiografia/historicidade implicaram na forma de
refazer seu trato sobre a teologia. A dinâmica reversa e desigual encontrada/extraída dessa
vicissitude mostra como o jesuíta esteve entre a teologia e a história ao longo de toda sua
trajetória intelectual, embora esse “entre” não diga a mesma coisa em momentos distintos.

9
DERRIDA, Jacques. (1972) Posições. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. p.
47-49; Id. Psyché: Inventions de l’autre. Paris: Galilée, 1987. p. 391.
368

Portanto, está em pauta menos uma unidade superando a multiplicidade de suas


criações e mais a vivacidade de uma empreitada intelectual que ousou se aventurar para além
dos limites consolidados entre o um e o outro, entre o passado e o presente, entre a
continuidade e a descontinuidade. Certeau lutou para manter próximo o que é diferente,
recusando toda forma de exclusão da alteridade sempre alterante das semelhanças supostas.
Gostaria de traçar um terceiro e último desdobramento que caminha para essa atenção
de Certeau à alteridade. Ao ler a força e a fragilidade no/do pensamento certeauniano de
modo não binário, abre-se caminho para vislumbrar como uma ética da hospitalidade foi o
traço marcante desse acontecimento desconstrutivo.
O cristão não encontra garantias nem no passado nem no presente. As instituições, as
doutrinas e as tradições não fornecem mais que uma relação com uma permissão inicial que
autoriza faltando. Todas realizações cristãs refazem o movimento imperioso de superação,
conversão consumada em experiências, linguagens e modos de leitura particulares. Essa
operação cristã de reinvenção do passado, por meio de recursos alheios, efetua uma alteração
no estado atual das coisas. No passado e no presente, essas escrituras são fábulas cristãs,
discursos sem força, dependentes de que o porvir venha lhes responder e continuar o trabalho
de reinvenção da fé.
A fragilidade cristã está nessa falta de segurança, carência de um lugar próprio,
dependência de situações e de recursos não forçosamente seus, “viagem abraâmica”
constituída de sucessivas partidas sem retorno à terra natal. Portanto, a poética cristã como
variação espiritual da linguagem humana é dependente de territórios estrangeiros nos quais
está exilada – uma historiografia, uma pensabilidade, etc. Isso pode ser dito tanto da maneira
como Certeau pensou o fazer teológico quanto da forma que ele o praticou.
Tal é a fragilidade crente posta por Certeau no cerne de sua contribuição histórico-
teológica: linguagem sem força, sem propriedade, sem garantias. Para ser fiel ao seu
acontecimento fundador e continuar o trabalho das múltiplas escrituras autorizadas pelo
evento original necessário e faltante, o crente tem como certeza objetiva apenas seu desejo de
ser cristão.
Essa fragilidade impõe o risco de morte (tornar-se uma fábula passada) e também o
perigo de estar à deriva no oceano da história enquanto se pensava velejar em direção à ilha
espiritual prometida. Aliás, apenas ousando caminhar pelas vias humanas na qual os destinos
são sempre incertos, uma espera atenta (o luto impossível) pode enfim se haver, ou
precariamente se haver, com uma ausência instransponível (o luto da teologia como discurso
de presença).
369

Certeau sabia que suas enunciações teológicas só poderiam manter sua pertinência
enquanto práxis cristã se elas mesmas fossem tão frágeis quanto aquelas às quais respondia;
se sua escritura do desejo crente na ordem corrente das coisas fosse virtualmente fábula a
permitir outras conversões a retomá-la, borrá-la, rasurá-la, apagá-la; se aceitasse ele mesmo o
risco de morrer para dar lugar a outros nascimentos; se ele entendesse como inevitavelmente
cristãos o êxodo não teológico e a angústia da perda disso sem o qual não pode ser, mas que
irremediavelmente falta.
A gestualidade teológica certeauniana parece acolher de bom grado esse risco do “feliz
naufrágio” do qual falava Surin. Não foi o próprio Certeau quem aceitou lucidamente pagar o
preço de ser crente com a insegurança que sua maneira de se posicionar gerava em seu
pertencimento à Companhia de Jesus? Não foi ele próprio quem confessou as superações que
deveriam violentar o resultado de seu esforço para tornar o cristianismo pensável e vivível em
seu tempo? Essa coerência entre sua escritura e sua prática torna inevitável considerar sua
própria poética enquanto existência arriscada, marcada pela fragilidade da qual ele falava.
Mas a força da contribuição dada por sua reflexão histórico-teológica não contradiria
essa fragilidade abrigada em seu interior? O fato delas estarem sendo retomadas em ambientes
intelectuais heterogêneos, quase meio século depois de terem sido escritas e publicadas, não
indicaria uma força prevalecente que a humildade do padre Certeau teria estado pouco
inclinada a aceitar?
A robustez dos aportes certeaunianos ao fazer teologia e de sua gestualidade teológica
está em seu diagnóstico das impossibilidades e possibilidades epistemológicas de sua época;
em seu compromisso em dialogar de forma não apologética com essa realidade desafiadora à
religião, objetivando garantir a viabilidade de uma existência cristã singular e crível no
presente; e, principalmente, na originalidade de suas intervenções sobre a teologia possível e
de seus gestos teológicos.
Com o termo “força”, faço alusão ao reemprego de princípios epistemológicos,
procedimentos científicos e exigências humanas em função de problemas postos por sua
atuação particular como religioso. Sendo ele um padre que não podia mais reproduzir o
passado nem deixar de manter algum tipo de vínculo com ele, a força de seus aportes está na
preservação de uma singularidade cristã sem com isso tornar a ciência histórica/história um
conjunto de técnicas/contingências submetidas a postulados teológicos/juízos a priori aos
quais seriam assujeitados.
Religioso e intelectual das fronteiras, Certeau deu voz aos conflitos sem que a
ultrapassagem das separações entre as partes envolvidas significasse o apagamento de suas
370

diferenças. Essa pode ser considerada a tônica de sua tendência a tratar dialeticamente os
assuntos pela via do paradoxo e a expressar certas questões por intermédio do oxímoro. Por
isso, penso ser pela via da tensão não binária o modo possível de propor um entendimento
sobre a fragilidade e a força do pensamento certeauniano.
Isso implica não supor a “fragilidade” de seu pensamento como o outro polo
antinômico de uma relação. Não se trata de optar por uma dessas qualificações como
reciprocamente excludentes ou de alternar as potências realizadas de um trabalho,
merecedoras de continuidade, e as deficiências localizáveis, as quais é preciso aperfeiçoar.
Certamente, limites atravessam qualquer pensamento, por mais vigoroso que seja, mas não é
esse o motivo da ponderação. Nem mesmo é uma questão de mapear potências latentes sobre
as quais o futuro viria sustentar suas inovações. Sua “força” e sua “fragilidade” não estão em
sua maior ou menor capacidade em impor-se à época ou à posterioridade.
Nesse sentido, a “fragilidade” de Certeau não se opõe àquilo que é “forte” em sua
escrita. Em seu trabalho, a única maneira encontrada para manter a singularidade da práxis
cristã (sua força) foi a tornando frágil, ou seja, despindo-a de seguranças objetivas, de
verdades concretas, de posições peremptórias, de propriedades institucionais, sociais e
científicas. Ao invés de uma precariedade ter excluído uma desenvoltura teológica e
delimitado sua impossibilidade, é justo ela que a faz possível. A força da reflexão histórico-
teológica certeauniana é aberta por sua fragilidade, pois essa operação singular só é crível
como risco, como não-lugar teológico, como fábula. Ela é forte porque é frágil.
Dessa maneira, a fragilidade assombra a força da práxis cristã certeauniana. Sua
impossibilidade virtual assedia sua possibilidade atual. O seu vigor é já sua carência: não é o
caso de defender a existência de uma debilidade ou uma potência em seu trabalho, mas de
constatar, nisto de notável produzido por ele, uma vulnerabilidade que exige uma alteração
futura por parte de novas conversões permitidas pelas suas.
A gestualidade certeauniana foi possível por sua participação em lugares não-
teológicos, então as respostas futuras a ela precisarão elas mesmas aventurar-se em novos
não-lugares, provocar outras superações e elaborar suas próprias escrituras. A “força” dos
gestos teológicos certeaunianos já contém sua efemeridade, ou seja, eles permitirão outras
conversões futuras que devem apagar as suas. Portanto, uma herança só será certeauniana
enquanto for em alguma medida pós-certeauniana.
O alicerce ético dessa diferença não excludente entre a fragilidade e a força é a
hospitalidade. Entendo por “ético” não apenas os hábitos tomados por desejáveis em
determinada situação histórico-cultural e a filosofia dedicada à reflexão sobre as condições
371

gerais que definem os costumes como bons, mas a delimitação de um princípio existencial
específico cuja ausência inviabiliza uma “moral” religiosa na atualidade: a alteridade. Esse
valor ético da alteridade aparece em Certeau sob a modalidade da hospitalidade porque
depositado na pertinência humana e espiritual do acolhimento do estrangeiro que vem.
Faço referência à hospitalidade como a propôs Jacques Derrida.10 Na esfera do ethos,
da justiça ou da política, o termo usualmente é entendido como dever ou direito sustentado
sobre um pacto mútuo. Nessa forma condicional de acolhimento, é digno de ser recebido
somente o estrangeiro cuja antecipação, determinação ou identidade foi garantida. A
soberania de quem hospeda é exercida pela prática de certa violência excludente, poder de
estabelecer as regras segundo as quais um hóspede é legítimo, ilegítimo, abusivo ou
clandestino. Ao visitante são veiculados direitos, mas também deveres que, uma vez
descumpridos, torna-o sujeito à penalização ou à expulsão. Dessa forma, a hospitalidade
condicional exclui – ou busca excluir – o bárbaro indesejável.
Nessa hospitalidade político-jurídica apressa-se outra, incondicional, absoluta,
hiperbólica. Ela acolhe um visitante anônimo, estrangeiro não identificado, outro absoluto ao
qual dou lugar, querendo eu recebê-lo ou ele entrando sorrateiramente pelas portas, janelas e
demais passagens que toda casa contém. Essa forma de hospitalidade é hostilidade virtual às
regras da casa, ameaça às normas estritas do pacto de hospitalidade, pervertibilidade
irredutível que estremece as leis do acolhimento, as delimitações dos direitos e deveres, o
ethos do hospedeiro e do hóspede, assim como a soberania do proprietário que julga
resguardar o poder de especificar quem é merecedor de habitar seu lar. A chegada do outro
absoluto, desconhecido, imprevisível, devir-estrangeiro do estrangeiro, seja mulher, negro,
animal, espectral, inumano, etc., é a condição das diferenças históricas, éticas, políticas ou
jurídicas da hospitalidade.
É na perspectiva dessa hospitalidade absoluta que pode ser relido o comentário de
Certeau sobre a relação de Jesus com a Samaritana. Desse estrangeiro que chegava ao poço e
pedia que sua sede fosse saciada, a mulher esperava uma conduta condizente com a imagem
tida de um judeu. Contudo, um outro absoluto vinha sem avisar, chegava “roubando” como
um hóspede perturbador da soberania das regras da casa, abrindo a fissura que permitia algo
novo nascer. Ao invés de confirmar as expectativas da samaritana e contrapor-lhe um
programa externo, ele remete a mulher à sua própria vida, abre caminho para que emerja

10
DERRIDA, Jacques. (1997) Da hospitalidade. Tradução de Antonio Romane; revisão de Paulo Ottoni. São
Paulo: Escuta, 2003.
372

internamente a consciência de suas próprias limitações, atinge suas seguranças, permite uma
conversão.
A impossibilidade de falar em nome da presença talvez encontre nessa forma de
hospitalidade o máximo de elaboração explícita que seu luto poderia alcançar. A desaparição
do corpo de Cristo deu lugar a uma presença faltante cuja inacessibilidade frustra o desejo de
encontro efetivo. É impossível tanto contentar-se com essa inefetividade (ele é o objetivo
último da fé cristã) quanto fazer o luto desse morto (como chorar por esse corpo se a tumba
ainda está vazia?). Ainda assim, vemos as “lágrimas” de Certeau quando ele afirma uma
alteridade irredutível. Ele não “chora” a ausência, mas a incapacidade de falar em nome desse
indispensável inacessível. O único luto possível é o da expectativa de enquadrar, nas regras do
discurso, o Estrangeiro que vem: “Deus não está lá, ‘ele vem’, esperado até o último dia,
surpreendendo sempre os desejos que o anunciam”.11
O outro que chega sem que se possa escolher fechar a porta, sem que se possa exigir
dele a entrada em um acordo, esse estrangeiro sempre mais estrangeiro do que se pode supor,
é a hospitalidade incondicional a esse Estrangeiro o valor que pode ser atribuído à abertura
ética em Michel de Certeau. Talvez seja esta uma justa definição da viagem certeauniana do
pensamento: o dom dos muitos “sim” ao outro que vem, para brincar com uma expressão
vista no título de uma homenagem de Derrida ao amigo recém desaparecido.12
O padre, teólogo, historiador e viajante aceitou lucidamente a insegurança
representada por esse dom da hospitalidade. Afinal de contas, como seria possível hospedar o
visitante anônimo que chega sem ser acometido pela finitude trazida por essa recepção? Como
o devir-estrangeiro do estrangeiro poderia advir sem violar as regras bem estabelecidas da
casa e sem exigir novos compromissos com o passado e com o presente? Como adentraria a
morada um estrangeiro mais estrangeiro do que o esperado sem que a própria soberania de
uma escritura particular fosse ameaçada e terminasse por ceder espaço a outras colaborações e
linhas de fuga? Essa pervertibilidade é o cerne do risco cujo preço o cristão deve pagar: o
outro existe porque resiste às intenções de circunscrevê-lo, é o estrangeiro que vem
transgredindo fixações e exigindo novas ultrapassagens, logo, é tanto ameaça de morte
quando expectativa de vida.

11
“Dieu n’est pas là, « il vient », attendu jusqu’au dernier jour, surprenant toujours les désirs qui l’annoncent”.
CERTEAU, Michel de. L’expérience spirituelle. Christus, t. 17, n. 68, p. 488-498, oct. 1970, p. 493. Grifo nosso.
12
DERRIDA, Jacques. Nombre de oui. In: GIARD, Luce (Dir.). Michel de Certeau. Paris: Éditions du Centre
Georges Pompidou, 1987. p. 191-203.
373

A hospitalidade incondicional tornada imperativo categórico13 parece ressignificar


essa “hostilidade”, conferindo-lhe valor positivo. A revalorização ética da inacessibilidade do
Outro validou espiritualmente o movimento de constante superação que materializa
diferenças, sucessões e desaparecimentos: “Não há experiência cristã que não viva uma
hospitalidade ferida e jubilosa, um gosto e uma ostentação da vida ligados à um
apagamento”.14 As rupturas, inversões, deslocamentos e acréscimos na trajetória de Michel de
Certeau foram as partidas dessa viagem arriscada.
A hospitalidade absoluta cobra um alto preço a pagar. Ética nada indolor, mas nem por
isso triste, ela requer abraçar o risco de que seus gestos se percam na imensidão da história e
desapareçam como uma “uma gota de água no mar”. Certeau assume de bom grado a
necessidade de que o futuro venha cobrir suas pegadas teológicas deixadas na areia, cuja
gestualidade feita sonho caberá a outra escritura modificar. Tenhamos ou não a ousadia de
responder a esse chamado, que ao menos possamos aceitar o seu convite à hospitalidade,
fazendo de nossas incertezas, perdas e ausências um motivo para novas criações e para uma
modalidade ética de existência.

13
Certeau foi explícito ao estabelecer a hospitalidade como o critério decisivo da conduta cristã. Além das
referências trazidas nos dois últimos capítulos desta tese, isso foi reafirmado em documento intitulado Exposé du
père M. de Certeau à la réunion du C.A.M.I, texto datilografado, 10 de fev. de 1972, caixa 5, Arquivo da
Companhia de Jesus, Vanves, p. 7.
14
“Il n’y a pas d’expérience chrétienne que n’habitent [...] une hospitalité blessée et jubilante, un goût et un luxe
de la vie liés à un effacement”. CERTEAU, Michel de; DOMENACH, Jean-Marie. Le christianisme éclaté.
Paris: Éditions du Seuil, 1974. p. 40.
374

Referências bibliográficas

1. Michel de Certeau

1.1 Documentos

Fundo Michel de Certeau – Arquivo da Companhia de Jesus:

Caixa 1

CERTEAU, Michel de. Carta a Henri Gouhier, texto datilografado, 08 de julho de 1959, caixa
1, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.

CERTEAU, Michel de. Carta a Henri Gouhier, texto manuscrito, 02 de janeiro de 1960, caixa
1, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.

CERTEAU, Michel de. Carta a Henri Gouhier, texto datilografado, 27 de julho de 1960, caixa
1, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.

CERTEAU, Michel de. Carta a Henri Gouhier, texto datilografado, 12 de novembro de 1960,
caixa 1, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.

CERTEAU, Michel de. Carta a Henri Gouhier, texto datilografado, 19 de janeiro de 1961,
caixa 1, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.

CERTEAU, Michel de. Carta a Henri Gouhier, texto datilografado, 01 de agosto de 1961,
caixa 1, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.

CERTEAU, Michel de. Carta a Henri Gouhier, texto datilografado, 14 de setembro de 1961,
caixa 1, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.

CERTEAU, Michel de. Carta a Henri Gouhier, texto datilografado, 28 de novembro de 1961,
caixa 1, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.

CERTEAU, Michel de. Carta a Henri Gouhier, texto datilografado, 13 de junho de 1963,
caixa 1, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.

CERTEAU, Michel de. Carta a Henri Gouhier, texto datilografado, 19 de setembro de 1963,
caixa 1, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.

CERTEAU, Michel de. Carta a Henri Gouhier, texto datilografado, 08 de outubro de 1963,
caixa 1, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.

CERTEAU, Michel de. Carta a Henri Gouhier, texto datilografado, 11 de março de 1964,
caixa 1, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.
375

CERTEAU, Michel de. Silence et expérience. Le Père Surin. texto datilografado, 01 de março
de 1961, caixa 1, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.

CERTEAU, Michel de. Silence et expérience. Le Père Surin (1600-1665). Note


complémentaire: recherches sur le milieu intellectuel et spirituel, texto datilografado, 13 de
setembro de 1961, caixa 1, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.

CERTEAU, Michel de. Pour une Bibliothèque des Sciences Religieuses, texto datilografado,
sem data, caixa 1, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.

Caixa 2

CERTEAU, Michel de. Pentecote [sic], texto datilografado, 24 de maio de 1953, caixa 2,
Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.

CERTEAU, Michel de. Debut de retraite, texto manuscrito, 22 de set. de 1953, caixa 2,
Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.

CERTEAU, Michel de. “IIe preambule. Grâce à demander”, texto manuscrito, 23 de set. de
1953, caixa 2, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves. Grifo do autor.

CERTEAU, Michel de. Discernement des esprits et θgie du laïcat, texto manuscrito, 11 de set.
de 1954, caixa 2, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.

CERTEAU, Michel de. Perfection et charité, texto datilografado, 26-31 de dez. de 1956, caixa
2, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.

CERTEAU, Michel de. Conclusion – progrès spirituelle et théologie de l’agapè, texto


datilografado, 26-31 de dez. de 1956, caixa 2, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.

CERTEAU, Michel de. La messe, notre prière (homélie pendant une retraite sacerdotale),
texto manuscrito, 20 de out. de 1958, caixa 2, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.

CERTEAU, Michel de. La prière de l’homme moderne, texto manuscrito, 15 de abr. de 1959,
caixa 2, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.

CERTEAU, Michel de. Mariage de Gabrielle Teyssier de Savy et de Jean de la Ferrière, texto
datilografado, 31 de mar. de 1959, caixa 2, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.

CERTEAU, Michel de. Jeudi st., texto manuscrito, 14 de abr. de 1960, caixa 2, Arquivo da
Companhia de Jesus, Vanves.

CERTEAU, Michel de. Pâques, texto manuscrito, 17 de abr. de 1960, caixa 2, Arquivo da
Companhia de Jesus, Vanves.

CERTEAU, Michel de. Secours catholique, texto datilografado, 20 de nov. de 1960, caixa 2,
Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.
376

CERTEAU, Michel de. Grands vœux de Lesage, texto datilografado, 02 de fev. de 1961,
caixa 2, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.

CERTEAU, Michel de. Mysterium fidei. Fin de l’adoration perpétuelle, texto datilografado, 5
de mar. de 1961, caixa 2, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.

CERTEAU, Michel de. Mariage de Christian Foulla et Anne de la Rorie, texto datilografado,
25 de mar. de 1965, caixa 2, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.

CERTEAU, Michel de. S. Ignace, texto datilografado, 31 de jul. de 1965, caixa 2, Arquivo da
Companhia de Jesus, Vanves.

CERTEAU, Michel de. Saint Ignace de Loyola, texto datilografado, 31 de jul. de 1966, caixa
2, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.

CERTEAU, Michel de. “Qui n’est pas avec moi est contre moi”, texto manuscrito, sem data,
caixa 2, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.

CERTEAU, Michel de. 8e dim. ap. Pentecôte, texto datilografado, sem data, caixa 2, Arquivo
da Companhia de Jesus, Vanves.

CERTEAU, Michel de. Application des sens: le verbe incarné, la parole faite chair, texto
manuscrito, sem data, caixa 2, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.

CERTEAU, Michel de. Dimanche de la Passion. Le “Credo”, texto datilografado, sem data,
caixa 2, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.

CERTEAU, Michel de. Discernement de première semaine, texto manuscrito, sem data, caixa
2, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.

CERTEAU, Michel de. Discernement des esprits: l’onction de l’Esprit qui guide dans
l’action, texto manuscrito, sem data, caixa 2, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.

CERTEAU, Michel de. Entrer en retraite, texto datilografado, sem data, caixa 2, Arquivo da
Companhia de Jesus, Vanves.

CERTEAU, Michel de. Fidélité et pauvreté. Naissance de Jésus, texto manuscrito, sem data,
caixa 2, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.

CERTEAU, Michel de. Jean 20: 11-18, texto manuscrito, sem data, caixa 2, Arquivo da
Companhia de Jesus, Vanves.

CERTEAU, Michel de. L’Evangile de la passion, texto manuscrito, sem data, caixa 2,
Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.

CERTEAU, Michel de. La parole de Dieu: Dieu vous parle, texto manuscrito, sem data, caixa
2, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.

CERTEAU, Michel de. La tentation de Jesus, texto manuscrito, sem data, caixa 2, Arquivo da
Companhia de Jesus, Vanves.
377

CERTEAU, Michel de. Le règne, texto manuscrito, sem data, caixa 2, Arquivo da Companhia
de Jesus, Vanves.

CERTEAU, Michel de. Noël – matin, texto manuscrito, se data, caixa 2, Arquivo da
Companhia de Jesus, Vanves.

CERTEAU, Michel de. Paques [sic] II, texto manuscrito, sem data, caixa 2, Arquivo da
Companhia de Jesus, Vanves.

CERTEAU, Michel de. Première reencontre, texto datilografado, sem data, caixa 2, Arquivo
da Companhia de Jesus.

CERTEAU, Michel de. Règne, texto manuscrito, sem data, caixa 2, Arquivo da Companhia
de Jesus, Vanves.

CERTEAU, Michel de. Retraite – IIe semaine: le règne, texto datilografado, sem data, caixa 2,
Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.

CERTEAU, Michel de. Retraite de fin d’études, texto datilografado, sem data, caixa 2,
Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves, especialmente a parte “second stade”.

CERTEAU, Michel de. Verbum caro factum est, texto manuscrito, sem data, caixa 2, Arquivo
da Companhia de Jesus, Vanves.

RAHNER, Karl. L’apostolat du laïc [traduzido por Michel de Certeau], texto datilografado,
sem data, caixa 2, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.

Caixa 3

CERTEAU, Michel de. Présentation [à defesa de tese de terceiro ciclo], texto datilografado,
correções manuscritas, 1960, caixa 3, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.

CERTEAU, Michel de. Expérience et esprit chez Favre, texto datilografado, sem data, caixa
3, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.

CARAMAN, Philip. [editor do periódico londrino The Month] Carta a Michel de Certeau,
texto datilografado, 25 de mar. de 1960, caixa 3, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.

BATLLORI, Miquel. [Archivum Historicum Societatis Iesu] Carta a Michel de Certeau, texto
datilografado, 27 de nov. de 1957, caixa 3, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.

GUIDOTTI, Renato M. [arquivo da província jesuíta de Turim] Carta a Michel de Certeau,


texto datilografado, 25 de abr. de 1958, caixa 3, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.

RIVA, César Real de la. [Biblioteca da Universidade de Salamanca] Carta a Michel de


Certeau, texto datilografado, 08. de jul. de 1958, caixa 3, Arquivo da Companhia de Jesus,
378

Vanves. A data dessa carta é mencionada em outra, enviada pelo jesuíta a César Real de la
Riva em 29 de out. de 1959.

STELIO, Bassi. [Biblioteca Nacional de Turim] Carta a Michel de Certeau, texto


datilografado, 17. de jul. de 1958, caixa 3, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.

VALSECCHI, Felice. [Biblioteca Nacional de Milão] Carta a Michel de Certeau, texto


datilografado, 01. de ago. de 1958, caixa 3, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.

BEGEY, Bersano. [Biblioteca Real de Turim] Carta a Michel de Certeau, texto datilografado,
20. de ago. de 1958, caixa 3, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.

DALMASES, Cándido de. [Institutum Historicum Societatis Iesu] Carta a Michel de Certeau,
texto datilografado, 13. de out. de 1959, caixa 3, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.

DALMASES, Cándido de. [Institutum Historicum Societatis Iesu] Carta a Michel de Certeau,
texto datilografado, 09. de nov. de 1959, caixa 3, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.

Caixa 5

CERTEAU, Michel de. Sem título [Sobre o trabalho editorial no campo temático da religião],
texto datilografado, 16 de mai. de 1966, caixa 5, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.

CERTEAU, Michel de. La crise du langage religieux [Session de Currière: langages de


l’athéisme et de la foi, p. 41-54, juil. 1966], texto mimeografado, caixa 5, Arquivo da
Companhia de Jesus, Vanves.

CERTEAU, Michel de. Propositions pour la réforme des études, texto datilografado, 24 de
jun. de 1967, caixa 5, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.

CERTEAU, Michel de. Langages de la foi: christianisme et histoire, texto datilografado,


1967-1968, caixa 5, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.

CERTEAU, Michel de. Exposé du père M. de Certeau à la réunion du C.A.M.I, texto


datilografado, 10 de fev. de 1972, caixa 5, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.

CERTEAU, Michel de. Développement dogmatique, texto manuscrito, sem data, caixa 5,
Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.

CERTEAU, Michel de. Doctrine trinitaire de saint Augustin dans la lettre à consentius, texto
manuscrito, sem data, caixa 5, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.

CERTEAU, Michel de. Situation du théologien (vie et travail du θgien), texto manuscrito,
sem data, caixa 5, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.
379

Fundo Henri de Lubac – Arquivo da Companhia de Jesus:

CERTEAU, Michel de. Carta a Henri de Lubac, texto manuscrito, 14 de janeiro de 1951,
caixa 34, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.

CERTEAU, Michel de. Carta a Henri de Lubac, texto manuscrito, 20 de setembro de 1954,
caixa 34, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.

CERTEAU, Michel de. Carta a Henri de Lubac, texto manuscrito, 15 de maio de 1956, caixa
34, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.

CERTEAU, Michel de. Carta a Henri de Lubac, texto datilografado, 22 de outubro de 1956,
caixa 34, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.

CERTEAU, Michel de. Carta a Henri de Lubac, texto datilografado, 29 de outubro de 1957,
caixa 34, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves

CERTEAU, Michel de. Carta a Henri de Lubac, texto datilografado, 27 de agosto de 1962,
caixa 34, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.

CERTEAU, Michel de. Carta a Henri de Lubac, texto datilografado, 10 de janeiro de 1963,
caixa 34, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.

CERTEAU, Michel de. Carta a Henri de Lubac, texto datilografado, 08 de julho de 1964,
caixa 34, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.

CERTEAU, Michel de. Carta a Henri de Lubac, texto manuscrito, 26 de setembro de 1966,
caixa 34, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.

CERTEAU, Michel de. Carta a Henri de Lubac, texto manuscrito, 23 de janeiro de 1972,
caixa 34, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.

CERTEAU, Michel de. Carta a Henri de Lubac, texto manuscrito, 5 de maio de 1975, caixa
34, Arquivo da Companhia de Jesus, Vanves.

Anuários da Escola Prática de Altos Estudos – Seção de Ciências Religiosas

ANNUAIRE 1957-1958, t. 65, p. 80-83, 1957. Disponível em: https://cutt.ly/tj54pmW.


Acesso em: 29 maio 2020

ANNUAIRE 1958-1959, t. 66, p. 104-106, 1958. Disponível em: https://cutt.ly/ij57fse.


Acesso em: 29 maio 2020.

ANNUAIRE 1959-1960, t. 67, p. 97-99, 1960. https://cutt.ly/Lj6zufl. Acesso em: 29 maio


2020.
380

ANNUAIRE 1960-1961, t. 68, p. 61, 1960. Disponível em: https://cutt.ly/Vj57z4F. Acesso


em: 29 maio 2020.

ANNUAIRE 1960-1961, t. 68, p. 125-126, 1960. Disponível em: https://cutt.ly/Xj6qaBV.


Acesso em: 29 maio 2020.

Outros documentos

CERTEAU, Michel de. Auto-critique! L’expérience religieuse. Notes (3 septembre 1956). In:
GIARD, Luce (Dir.). Le voyage mystique: Michel de Certeau. Paris: RSR/Cerf, 1988. p. 49-
51.

CERTEAU, Michel de. L’ACO brésilienne dénonce l’injustice sociale dans le Nordeste. La
Croix, Paris, 21-22 mai 1967. Jornal microfilmado consultado na Biblioteca Nacional da
França.

CERTEAU, Michel de. La mort du cardinal de Lubac. Le Monde, Paris, 5 sept. 1991, p. 14.
Jornal microfilmado consultado na Biblioteca Nacional da França.

1.2 Artigos, resenhas, relatos de viagem, mesas redondas, congressos


acadêmicos e entrevistas publicados em revistas

CERTEAU, Michel de. Le Canada français. Pax. Bulletin du Séminaire Universitaire, v. 12,
n. 69, p. 16-18, 1948.

CERTEAU, Michel de; MASNE, Henri le. Rencontre avec l’Islam. Pax. Bulletin du
Séminaire Universitaire, v. 13, n. 71, p. 12-15, 1949.

CERTEAU, Michel de. Michel de Certeau s.j. vient interviewer le S.U. Pax. Bulletin du
Séminaire Universitaire, v. 17, n. 89, p. 34-36, 1953.

CERTEAU Michel de. [Parágrafos introdutórios e comentários] In: FAVFE, Pierre. Le


progrès de l’homme spirituel de Pierre Favre. Christus, t. 1, n. 4, p. 89-104, août 1954.

CERTEAU, Michel de. L’expérience religieuse: “connaissance vécue” dans l’Eglise. Pax.
Bulletin du Séminaire Universitaire, v. 19, n. 99, p. 1-19, mai 1956.

CERTEAU, Michel de. Les pèlerins d’Emmaüs (méditation). Christus, t. 4, n. 13, p. 56-63,
janv. 1957.

CERTEAU, Michel de. Aspects de la Prière. Christus, t. 4, n. 13, p. 132-141, janv. 1957.

CERTEAU, Michel de. Les Lendemains de la décision: la “confirmation” dans la vie


spirituelle. Christus, t. 4, n. 14, p. 187-205, avril 1957.

CERTEAU, Michel de. La prière des ouvriers. Christus, t. 4, n. 15, p. 413-427, juil. 1957.
381

CERTEAU, Michel de. L’expérience du salut chez Pierre Favre. Christus, t. 5, n. 17, p. 75-
92, janv. 1958.

CERTEAU, Michel de. L’ascension. Christus, t. 6, n. 22, p. 211-220, avril 1959.

CERTEAU, Michel de. Le texte du Mémorial de Favre. Revue d’Ascétique et de Mystique,


année 36, n. 141, p. 89-101, janv./mars 1960.

CERTEAU, Michel de. Un texte inédit de Pierre Favre. Le Pro privata alicuius reformatione.
Revue d’Ascétique et de Mystique, année 36, n. 143, p. 343-349, juil./sep. 1960.

CERTEAU, Michel de. Exégèse, théologie et spiritualité. Revue d’Ascétique et de Mystique,


année 36, n. 143, p. 357-371, juil./sept. 1960.

CERTEAU, Michel de. Jean-Joseph Surin. The Month, v. 24, n. 6, p. 340-353, déc. 1960.

CERTEAU, Michel de. Politique et mystique: René d’Argenson (1596-1651). Revue


d’Ascétique et de Mystique, année 39, n. 153, p. 45-82, janv./mars 1963.

CERTEAU, Michel de. Des enfants avisés. Christus, t. 10, n. 38, p. 165-177, avril 1963.

CERTEAU, Michel de. De saint-Cyran au jansénisme: conversion et réforme. Christus, t. 10,


n. 38, p. 399-417, juil. 1963.

CERTEAU, Michel de. La conversion du missionnaire. Christus, t. 10, n. 40, p. 514-533, oct.
1963.

CERTEAU, Michel de. Le temps des conflits. Christus, t. 11, n. 41, p. 77-90, janv. 1964.

CERTEAU, Michel de. La vie aventureuse du Père Surin. Ecclesia, n. 181, p. 55-62, avril
1964.

CERTEAU, Michel de. Situations culturelles, vocation spirituelle. Christus, t. 11, n. 43, p.
294-313, juil. 1964.

CERTEAU, Michel de. Donner la parole. Christus, t. 11, n. 44, p. 438-456, oct. 1964.

CERTEAU, Michel de. Un maître: le père Henri de Lubac. Ecclesia, n. 187, p. 83-90, oct.
1964.

CERTEAU, Michel de. Les œuvres de Jean-Joseph Surin: histoire des textes I. Revue
d’Ascétique et de Mystique, année 40, n. 160, p. 443-476, oct./déc. 1964.

CERTEAU, Michel de. Les œuvres de Jean-Joseph Surin: histoire des textes II. Revue
d’Ascétique et de Mystique, année 41, n. 161, p. 55-78, janv./mars 1965.

CERTEAU, Michel de. Comme un voleur. Christus, t. 12, n. 45, p. 25-41, janv. 1965.
382

CERTEAU, Michel de. Expérience chrétienne et langage de la foi, Christus, t. 12, n. 46, p.
147-163, avril 1965.

CERTEAU, Michel de. Unité et divisions des catholiques. Christus, t. 12, n. 47, t. 12, p. 365-
383, juil.1965.

CERTEAU, Michel de. Ouverture sociale et renouveau missionnaire de l’école chrétienne.


École chrétienne et mission. Christus, t. 12, n. 48, p. 554-571, oct. 1965.

CERTEAU, Michel de. Crise sociale et réformisme spirituel au début du XVIIe siècle: une «
nouvelle spiritualité » chez les jésuites français. Revue d’Ascétique et de Mystique, année 41,
n. 163, p. 339-386, juil./sept. 1965.

CERTEAU, Michel de. Psychologie ou spiritualité. Recherches et Débats, n. 53, p. 172-184,


déc. 1965.

CERTEAU, Michel de. Un prophète: le père Vincent Lebbe. Bulletin Saint Jean-Baptiste, t. 6,
n. 2, p. 81-91, déc. 1965.

CERTEAU, Michel de. La rénovation de la vie religieuse. Christus, t. 13, n. 49, p. 101-119,
janv. 1966.

CERTEAU, Michel de. L’universalisme ignatien: mystique et mission. Christus, t. 13, n. 50,
p. 173-183, avril 1966.

CERTEAU, Michel de. L’éprouve du temps. Christus, t. 13, n. 51, p. 311-331, juil. 1966, p.
311-312.

CERTEAU, Michel de. De la participation au discernement: tâche chrétienne après Vatican II.
Christus, n. 52, t. 13, p. 518-537, oct. 1966.

CERTEAU, Michel de. Sem título. Études, t. 325, p. 429-431, oct. 1966. Resenha de:
MARTINO, Ernesto de. La terre du remords. Trad. par Claude Poncet. Paris: Gallimard,
1966. (Bibliothèque des sciences humaines).

CERTEAU, Michel de. Sem título. Études, t. 325, p. 431, oct. 1966. Resenha de: CANETTI,
Elias. Masse et puissance. Trad. par R. Rovini. Paris: Gallimard, 1966. (Bibliothèque des
sciences humaines)

CERTEAU, Michel de. Cultures et spiritualités. Concilium, n. 19, p. 7-25, nov. 1966.

CERTEAU, Michel de. La vie religieuse en Amérique latine. Études, t. 326, p. 108-113, jan.
1967.

CERTEAU, Michel de. Les sciences humaines et la mort de l’homme. Études, t. 326, p. 344-
360, mars 1967.

CERTEAU, Michel de. Amérique latine: ancien ou nouveau monde? Notes de voyage.
Christus, t. 14, n. 55, p. 338-351, juil. 1967.
383

CERTEAU, Michel de. Développement économique et justice sociale. Un manifeste de


l’ACO brésilienne. Masses ouvrières, n. 242, p. 49-57, août-sept. 1967.

CERTEAU, Michel de. La parole du croyant dans le langage de l’homme. Esprit, p. 455-473,
oct. 1967.

CERTEAU, Michel de. Apologie de la différence. Études, t. 328, p. 81-106, janv. 1968.

CERTEAU, Michel de. La révolution fondatrice ou le risque d’exister. Études, t. 329, p. 80-
101, juin/juil. 1968.

CERTEAU, Michel de. La loi Faure, ou le statut de l’enseignement dans la Nation. Études, t.
329, p. 682-689, déc. 1968.

CERTEAU, Michel de. Problèmes du sacerdoce en Amérique Latine. Recherches des Science
Religieuse, t. 56, n. 4, p. 591-601, 1968.

CERTEAU, Michel de. L’illettré éclaire dans l’histoire de la lettre de Surin sur le jeune
homme du Coche (1630). Revue d’Ascétique et de Mystique, t. 44, n. 176, p. 369-412, 1968.

CERTEAU, Michel de. Les révolutions du « croyable ». Esprit, p. 190-202, févr. 1969.

CERTEAU, Michel de. L’étranger. Études, t. 330, p. 401-406, mars 1969.

CERTEAU, Michel de. Religion et société: les messianismes. Études, t. 330, p. 608-616, avril
1969.

CERTEAU, Michel de. Structures sociales et autorités chrétiennes, Études, t. 331, p. 128-142,
juil. 1969.

CERTEAU, Michel de. Structures sociales et autorités chrétiennes (suite). Études, t. 331, p.
285-293, août-sept. 1969.

CERTEAU, Michel de. Cuernavaca: le Centre interculturel et Mgr. Illich. Études, t. 331, p.
436-440, oct. 1969.

CERTEAU, Michel de. Les chrétiens et la dictature militaire au Brésil. Politique Aujourd’hui,
p. 38-53, nov. 1969.

CERTEAU, Michel de. Y a-t-il un langage de l’unité ? De quelques conditions préalables.


Concilium, n. 51, p. 77-89, janv. 1970.

CERTEAU, Michel de. Les structures de communion à Boquen. Études, t. 332, p. 128-136,
janv. 1970.

CERTEAU, Michel de. Autorités chrétiennes. Études, t. 332, p. 268-286, févr. 1970.

CERTEAU, Michel de; JULIA, Dominique. La misère de l’université. Études, t. 332, p. 522-
544, avril 1970.
384

CERTEAU, Michel de. Le prophète et les militaires. Dom Helder Camara. Études, t. 333, p.
104-113, juil. 1970.

CERTEAU, Michel de. L’expérience spirituelle. Christus, t. 17, n. 68, p. 488-498, oct. 1970.

CERTEAU, Michel de. Qu’est-ce qu’un congrès de théologie? (Bruxelles, 12-17 septembre
1970). Études, t. 333, p. 587-596, nov. 1970.

CERTEAU, Michel de. Ce que Freud fait de l'histoire. À propos de: «une névrose
démoniaque au XVIIe siècle». Annales ESC, anné 25, n. 3, p. 654-667, 1970.

CERTEAU, Michel de. Faire de l’histoire. Recherches de Science Religieuse, v. 58, n. 4, p.


481-520, 1970.

CERTEAU, Michel de. Jean-Joseph Surin interprète de saint Jean de la Croix. Revue
d’Ascétique et de Mystique, t. 46, n. 181, p. 45-70, 1970.

CERTEAU, Michel de. L’articulation du ‘dire’ et du ‘faire’. La contestation universitaire,


indice d’une tâche théologique. Études théologiques et religieuses, t. 45, p. 25-44, 1970.

CERTEAU, Michel de. La folklorisation de la vérité. Cultures et foi, n. 11, p. 3-7, janv./fév.
1971.

CERTEAU, Michel de. La rupture instauratrice ou le christianisme dans la culture


contemporaine. Esprit, p. 1177-1214, juin 1971.

CERTEAU, Michel de. Culture américaine et théologie catholique. A propos de la


Convention de Baltimore (juin 1971). Études, t. 335, p. 561-577, nov. 1971.

CERTEAU, Michel de. Une épistémologie de transition: Paul Veyne. Annales ESC, année 27,
n. 6, p. 1317-1327, 1972.

CERTEAU, Michel de. L'espace du désir ou le « fondement » des Exercices spirituels.


Christus, t. 20, n. 77, p. 118-128, janv. 1973.

CERTEAU, Michel de. Lieux de transit. Esprit, p. 607-625, févr. 1973.

CERTEAU, Michel de. Comme des nomades. Cultures et foi, n. 43-44, p. 7-15, été 1975.

CERTEAU, Michel de. Mystiques violentes et stratégie non violente. Le Monde


Diplomatique, n. 266, p. 16-17, mai 1976.

CERTEAU, Michel de. La faiblesse de croire. Esprit, p. 231-245, avril/mai 1977.

CERTEAU, Michel de. Michel Foucault ou le discours de l’autre. Élan, année 22, p. 8-9, p.
20, avril-mai 1978.

CERTEAU, Michel de. L’actif et le passif des appartenances. Esprit, p. 155-171, juin 1985.
385

CERTEAU, Michel de. Économies ethniques. Annales ESC, 41e année, n. 4, p. 789-815,
juillet-août 1986.

1.3 Livros e capítulos em edições críticas, obras coletivas e coletâneas


póstumas

CERTEAU, Michel de. Introduction. In: FAVRE, Pierre. (1960) Mémorial. Traduit et
commenté par Michel de Certeau, s.j. Paris: Desclée de Brouwer, 2006. p. 7-95. (Collection
Christus, 4).

CERTEAU, Michel de. Introduction. In: SURIN, Jean-Joseph. (1963) Guide spirituel. Texte
établi et présenté par Michel de Certeau, s.j. Paris: Desclée de Brouwer, 2008. p. 7-61.
(Collection Christus, 12).

CERTEAU, Michel de. « mystique » au XVIIe siècle: le problème du langage « mystique ».


In: L’Homme devant Dieu: Mélanges offerts au père Henri de Lubac. Paris: Aubier, 1964. v.
1. p. 267-291.

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406

Anexo I
Artigos de Michel de Certeau republicados em livros

Seguem listados os artigos citados nesta tese e hoje facilmente acessíveis em obras póstumas
organizadas por Luce Giard, executora testamentária de Certeau.1 Também indico aqueles que
foram retomados em livros por Certeau. Alguns desses artigos foram modificados e/ou não
aparecem em sua integralidade na segunda versão, conforme indica a bibliografia publicada
por Luce Giard.2 As referências seguem separadas pelo livro em que constam, dispostas em
ordem cronológica e seguidas do capítulo correspondente.

CERTEAU, Michel de. (1969) L'étranger ou l'union dans la différence.


Nouvelle édition introduite et établie par Luce Giard. Paris: Éditions du Seuil,
2005. (Points Essais)

CERTEAU, Michel de. La conversion du missionnaire. Christus, t. 10, n. 40, p. 514-533, oct.
1963. [Capítulo 4]

CERTEAU, Michel de. Le temps des conflits. Christus, t. 11, n. 41, p. 77-90, janv. 1964.
[Capítulo 2]

CERTEAU, Michel de. Situations culturelles, vocation spirituelle. Christus, t. 11, n. 43, p.
294-313, juil. 1964. [Capítulo 4]

CERTEAU, Michel de. Donner la parole. Christus, t. 11, n. 44, p. 438-456, oct. 1964.
[Capítulo 3]

CERTEAU, Michel de. Comme un voleur. Christus, t. 12, n. 45, p. 25-41, janv. 1965.
[Conclusão]

CERTEAU, Michel de. Unité et divisions des catholiques. Christus, t. 12, n. 47, t. 12, p. 365-
383, juil.1965. [Capítulo 2]

CERTEAU, Michel de. La parole du croyant dans le langage de l’homme. Esprit, p. 455-473,
oct. 1967. [Capítulo 6]

CERTEAU, Michel de. Apologie de la différence. Études, t. 328, p. 81-106, janv. 1968.
[Capítulo 7]

CERTEAU, Michel de. La révolution fondatrice ou le risque d’exister. Études, t. 329, p. 80-
101, juin/juil. 1968. [Capítulo 5]

CERTEAU, Michel de. L’étranger. Études, t. 330, p. 401-406, mars 1969. [Capítulo 1]

1
Dentre os artigos, estão listados dois capítulos em livros: A conclusão do livro L’absent de l’histoire e a
conclusão de Certeau em Le christianisme éclaté.
2
GIARD, Luce. Bibliographie complète de Michel de Certeau. In: GIARD, Luce (Dir.). Le voyage mystique:
Michel de Certeau. Paris: RSR/Cerf, 1988. p. 191-243.
407

CERTEAU, Michel de. L’expérience spirituelle. Christus, t. 17, n. 68, p. 488-498, oct. 1970.
[capítulo incluído por Luce Giard na edição de 2005]

CERTEAU, Michel de. (1974) La culture au pluriel. Nouvelle édition établie


et présentée par Luce Giard. Paris: Éditions du Seuil, 1993. (Points Essais)

CERTEAU, Michel de. Les révolutions du « croyable ». Esprit, p. 190-202, févr. 1969.
[Capítulo 1]

CERTEAU, Michel de. (1987) La faiblesse de croire. Texte établi et présenté


par Luce Giard. Paris: Éditions du Seuil, 2003. (Points Essais)

CERTEAU, Michel de. L’éprouve du temps. Christus, t. 13, n. 51, p. 311-331, juil. 1966, p.
311-312. [Capítulo 3: o título foi alterado para Le mythe des origines]

CERTEAU, Michel de. Cultures et spiritualités. Concilium, n. 19, p. 7-25, nov. 1966.
[Capítulo 2]

CERTEAU, Michel de. Structures sociales et autorités chrétiennes, Études, t. 331, p. 128-142,
juil. 1969. [Capítulo 4]

CERTEAU, Michel de. Structures sociales et autorités chrétiennes (suite). Études, t. 331, p.
285-293, août-sept. 1969. [Capítulo 4]

CERTEAU, Michel de. Les chrétiens et la dictature militaire au Brésil. Politique Aujourd’hui,
p. 38-53, nov. 1969. [Capítulo 5]

CERTEAU, Michel de. Autorités chrétiennes. Études, t. 332, p. 268-286, févr. 1970.
[Capítulo 4]

CERTEAU, Michel de. La rupture instauratrice ou le christianisme dans la culture


contemporaine. Esprit, p. 1177-1214, juin 1971. [Capítulo 7]

CERTEAU, Michel de. Lieux de transit. Esprit, p. 607-625, févr. 1973. [Capítulo 8]

CERTEAU, Michel de. Comme une goutte d’eau dans la mer. In: CERTEAU, Michel de;
DOMENACH, Jean-Marie. Le christianisme éclaté. Paris: Éditions du Seuil, 1974. p. 79-99.
[Capítulo 10]

CERTEAU, Michel de. La faiblesse de croire. Esprit, p. 231-245, avril/mai 1977. [Parte no
cap 10 e parte no 11]3

3
Sobre essa separação em dois capítulos, ver a explicação de Giard em: GIARD, Luce. Cherchant Dieu. In:
CERTEAU, Michel de. (1987) La faiblesse de croire. Texte établi et présenté par Luce Giard. Paris: Éditions du
Seuil, 2003. p. 23-24.
408

CERTEAU, Michel de. (1987) Histoire et psychanalyse: entre science et


fiction. Nouvelle édition revue et augmenté. Paris: Gallimard, 2002. (Folio
Histoire)

CERTEAU, Michel de. Les sciences humaines et la mort de l’homme. Études, t. 326, p. 344-
360, mars 1967. [Capítulo 5, com o título Le noir soleil du langage: Michel Foucault]

CERTEAU, Michel de. Altérations. In: CERTEAU, Michel de. L’absent de l’histoire. Paris:
Repères/Mame, 1973. p. 171-180. (Sciences humaines et idéologies) [publicado somente na
reedição de 2002, como capítulo 8 e título L’absent de l’histoire]

GIARD, Luce (Dir.). Le voyage mystique: Michel de Certeau. Paris:


RSR/Cerf, 1988.

CERTEAU, Michel de. L’expérience religieuse: “connaissance vécue” dans l’Eglise. Pax.
Bulletin du Séminaire Universitaire, v. 19, n. 99, p. 1-19, mai 1956. [p. 27-51]

CERTEAU, Michel de. Le lieu de l’autre: histoire religieuse et mystique.


Édition établie par Luce Giard. Paris: Gallimard/Seuil, 2005. (Hautes Études)

CERTEAU, Michel de. Politique et mystique: René d’Argenson (1596-1651). Revue


d’Ascétique et de Mystique, année 39, n. 153, p. 45-82, janv./mars 1963. [Capítulo 12]

CERTEAU, Michel de. De saint-Cyran au jansénisme: conversion et réforme. Christus, t. 10,


n. 38, p. 399-417, juil. 1963. [Capítulo 9]

CERTEAU, Michel de. L'espace du désir ou le « fondement » des Exercices spirituels.


Christus, t. 20, n. 77, p. 118-128, janv. 1973. [Capítulo 10]
409

Anexo II
Michel de Certeau traduzido em língua portuguesa

CERTEAU, Michel. Culturas e Espiritualidades. Concilium - Revista Internacional de


Teologia, Petrópolis, Vozes, nov. 1966.1

CERTEAU, Michel. Existe uma linguagem própria da unidade? Concilium - Revista


Internacional de Teologia, Petrópolis, Vozes, jan. 1970.

CERTEAU, Michel de. [entrevista] Cultura popular e religiosidade popular. Cadernos do


CEAS, Salvador, n. 40, p. 52-59, 1975.

CERTEAU, Michel de. A operação histórica. In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre. (Ed.)
História: novos problemas, Traduzido por Theo Santiago. Rio de Janeiro: Francisco Alves,
1976. p. 17-48. Tradução de: CERTEAU, Michel de. L’opération historique. In: LE GOFF,
Jacques; NORA, Pierre. (Ed.) Faire de l’histoire, t. I: nouveaux problèmes. Paris : Gallimard,
1974. p. 3-41. (Bibliothèque des histoires)

CERTEAU, Michel de. A Escrita da história. Traduzido por Maria de Lourdes Menezes,
revisado por Arno Vogel. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982. Tradução de:
CERTEAU, Michel de. L’écriture de l’histoire. Paris: Gallimard, 1975. (Bibliothèque des
Histoires). A tradução contém o prefácio à segunda edição.

CERTEAU, M. Teoria e método no estudo das práticas cotidianas. In: SZMRECSANYI,


Maria Irene de Queiroz Ferreira. (Org.) Cotidiano, cultura popular e planejamento urbano.
São Paulo: FAU/USP, 1985. p. 3-19.

CERTEAU, Michel de; JULIA, Dominique; REVEL, Jacques. A beleza do morto: o conceito
de cultura popular. In: REVEL, Jacques. A invençao da sociedade. Traduzido por Vanda
Anastácio. Lisboa/Rio de Janeiro: Difel/Bertrand Brasil, 1989. p. 49-75. (Memoria et
Sociedade) Tradução de: CERTEAU, Michel de; JULIA, Dominique; REVEL, Jacques. La
beauté du mort. Le concept de “culture populaire”, Politique aujourd’hui, p. 3-23, déc. 1970.
Certeau republicou o artigo em seu livro La culture au pluriel (1974).

CERTEAU, Michel de. Andando na Cidade. Cidade – Revista do Patrimônio Histórico e


Artístico Nacional (Rio de Janeiro), n. 23, p. 21-31, 1994. Traduzido por Anna Olga de
Barros Barreto. A tradutora toma como fonte o seguinte capítulo: CERTEAU, Michel de.
Walking in the City. In: DURING, Simon. (Ed.) The Cultural Studies Reader. London:
Routledge, 1993. (p. 126-133 na segunda edição de 1999). Este, por sua vez, é um extrato do
capítulo VII da tradução inglesa de L’invention du quotidien (The practice of everyday life.
Berkeley: University of California Press, 1984).

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Traduzido por Ephraim
Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1994. Tradução de: CERTEAU, Michel de. (1980)
L’invention du quotidien: 1. Arts de faire. Nouvelle édition établie et présentée par Luce
Giard. Paris: Gallimard, 1990. (Folio Essais)

1
A Concilium era publicada simultaneamente em sete idiomas: alemão, inglês, espanhol, francês, holandês,
português e italiano.
410

CERTEAU, Michel de. A Cultura no Plural. Traduzido por Enid Abreu Dobránsky.
Campinas: Papirus, 1995. Tradução de: CERTEAU, Michel de. (1974) La culture au pluriel.
Nouvelle édition établie et présentée par Luce Giard. Paris: Éditions du Seuil, 1993. (Points
Essais)

CERTEAU, Michel de; GIARD, Luce; MAYOL, Pierre. A invenção do cotidiano: 2. Morar,
cozinhar. Traduzido por Ephraim Ferreira Alves e Lúcia Endlich Orth. Petrópolis: Vozes,
1997. Tradução de: CERTEAU, Michel de; GIARD, Luce; MAYOL, Pierre. (1980)
L’invention du quotidien: 2. Habiter, cuisiner. Nouvelle édition revue et augmentée, présentée
par Luce Giard. Paris: Gallimard, 1994. (Folio Essais) São de autoria de Certeau Anais do
cotidiano (p. 31-33) e Os fantasmas da cidade (p. 189-222); Uma ciência prática do singular
(p. 335-342) é assinado por Certeau e Giard – as páginas mencionadas correspondem à nona
edição da versão em língua portuguesa (2009).

CERTEAU, Michel de. [Entrevista] Histórias de corpos. Projeto História, São Paulo, v. 25, p.
407-312, dez. 2002. Traduzido por Márcia Mansor D’Alessio. Tradução de: CERTEAU,
Michel de. Histoires de corps. Esprit, n. 2, p. 179-185, fév 1982.

CERTEAU, Michel de. História e psicanálise: entre ciência e ficção. Traduzido por
Guilherme João de Freitas Teixeira. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. Tradução de:
CERTEAU, Michel de. (1987) Histoire et psychanalyse: entre science et fiction. Nouvelle
édition revue et augmenté. Paris: Gallimard, 2002. (Folio Histoire)

CERTEAU, Michel de. A fábula mística, séculos XVI e XVII: volume 1. Traduzido por Abner
Chiquieri, revisado por Manoel Barros da Motta. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015.
Tradução de: CERTEAU, Michel de. La fable mystique: XVIe-XVIIe siècle. Paris: Gallimard,
1982. (Bibliothèque des Histoires)

CERTEAU, Michel de. A fábula mística, séculos XVI e XVII: volume 2. Traduzido por Abner
Chiquieri, revisado por Manoel Barros da Motta. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015.
Tradução de: CERTEAU, Michel de. La fable mystique (XVIe-XVIIe siècle), t. 2. Édition
établie et présentée par Luce Giard. Paris: Gallimard, 2013. (Bibliothèque des Histoires)

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