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São Paulo
2021
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Alexis Milonopoulos
São Paulo
2021
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Resumo
Abstract
SUMÁRIO
1. Introdução ........................................................................................................ 8
1.1. Entredução: (h)a/terra(r) ............................................................................... 8
1.2. Introdução, tra(ns)dução: (a)transversa(r)mentos ......................................... 9
2. Objetivos ......................................................................................................... 21
3. Ouvir a terra, pensentir o terreno, o traçar de um plano ........................... 22
3.1. Interlúdio I: Quando ‘coletivo’ quer dizer outra coisa: notas tentaculares
sobre ecologia, comportamento e (des)humanização da saúde ........................... 22
3.2. Devorações: entre o saber e o sabor ............................................................ 28
4. Emergências e procedências .......................................................................... 51
4.1. Pro(to)cedências: escu(l)t(ur)as alimentares ............................................... 51
4.2. E se? (Des)leituras no campo ...................................................................... 67
5. Discussão, parte 1: cosmu[m]dos .................................................................. 82
5.1. Ecologi(c)as das práticas: da terceira margem do rio ao caminho do meio . 82
5.2. C(a)ósmicas: da natureza ao cosmos ........................................................... 99
5.3. Ratambufe e os comedores de terra: o que pode um corpo?...................... 119
5.4. Jê est un autre: alteridade, perspectivismo somático e multinaturalismo .. 137
6. Resultados e discussão, parte 2: comporta-mento ..................................... 148
6.1. Interlúdi[c]o II: eat (it) …….……………………………………………. 148
6.2. To bife or not to bife, eis a questão: ontogênese, comporta-mento, hum(an)os
e su(per)jeitos ........................................................................................... 157
6.3. Interlú[r]i(c)o III: In-between hunger and appetite – food for thought in the
act …………………………………………………………………………..… 183
7. Metodologia .................................................................................................. 200
7.1. Refazenda: contra-metodologi(c)as .......................................................... 200
7.2. Proto-tipo: um estudo do método perspectivista de análise de redes sociais
............................................................................................................................ 218
8. Considerações pró/visórias e plano de trabalho ......................................... 225
9. Referências bibliográficas ........................................................................... 229
Apêndice A – Log da coleta de dados do Twitter
Apêndice B – Relatório de Modularidade do Gephi I: HTs
Apêndice C – Relatório de Modularidade do Gephi II: RTs
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Respire.
Respire longamente.
Só sinta.
Pensinta-se na mata, com os pés descalços, o sol, a água e o vento a rodopiar ao seu redor.
Pensinta com esses elementos, com as sombras, com os sons, com as luzes, com os
cheiros, com as texturas, com a humi(l)dade, com as cores, com os contrastes, com todo
Pensinta-se uma clareira, com a vida entrando em abundância, com tudo aquilo que a
cosmumdo.
(entre)
9
Quando numa floresta, “mundo” quer dizer, definitivamente, uma outra coisa,
assim como “experiência”. No centro da ecologia, não há fora, menos ainda dentro. Não
vivido, e a vida, aquilo que, em seu excesso criativo, imensa os olhos que, em meio a esta
Onde começa e onde acaba uma floresta? O fora da floresta, não por acaso, é o
meio, e no meio só há ecologia. O que é dizer, em outros termos, que a própria palavra
“floresta” não faz muito sentido para quem a habita. De origem latina, a palavra floresta
vem de forestis, um adjetivo derivado de foris ("fora") que carrega a ideia de algo exterior
na expressão silva forestis, que quer dizer, literalmente, "mata exterior" e que remete ao
nome dado aos territórios em que só o rei estava autorizado a explorar a caça e a extração
de madeira, ficando, portanto, fora dos limites da área comum, da silva communalis, do
coletivo.
(2015), nos mostra que a ideia-coisa “ecologia” nunca foi exterior à sua teoria, à sua
Na floresta, a ecologia somos nós, os humanos. Mas são também, tanto quanto
nós, os xapiri [os espíritos], os animais, as árvores, os rios, os peixes, o céu, a
chuva, o vento e o sol! É tudo o que veio à existência na floresta, longe dos
brancos; tudo o que ainda não tem cerca. As palavras da ecologia são nossas
antigas palavras, as que Omama [o demiurgo yanomami] deu a nossos
ancestrais. Os xapiri defendem a floresta desde que ela existe. Sempre
estiveram do lado de nossos antepassados, que por isso nunca a devastaram.
Ela continua bem viva, não é? Os brancos, que antigamente ignoravam essas
coisas, estão agora começando a entender. É por isso que alguns deles
inventaram novas palavras para proteger a floresta. Agora dizem que são a
gente da ecologia porque estão preocupados, porque sua terra está ficando cada
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própria palavra indígena diz respeito, etimologicamente, àquele que é ‘natural do lugar
em que vive, àquele [que é] gerado dentro da terra que lhe é própria...” (Dicionário
Houaiss da Língua Portuguesa,). O que é dizer que essa indigenidade, essa ’propriedade’
de ser indígena, “é um atributo imanente ao sujeito, não uma relação extrínseca com um
objeto apropriável” (DE CASTRO apud KOPENAWA; ALBERT, op. cit., p. 16, grifo
nosso).
A ponto de, não por acaso, muitos povos indígenas mundo afora afirmarem que a
terra não lhes pertence, justamente porque são eles que pertencem a ela. O que implica,
imediatamente, que as relações se dão em outros termos, onde, por exemplo, família é
também uma outra coisa, assim como coletivo. Como diz Ailton Krenak, em uma
passagem que recuperaremos futuramente: “o rio Doce, que nós chamamos de Watu, [é]
nosso avô, é uma pessoa, não um recurso, como dizem os economistas. Ele não é algo de
que alguém possa se apropriar; é uma parte da nossa construção como coletivo que habita
famigerado “Dia do Índio”) entre ele e o General Bayma Denis, então ministro chefe da
Casa Militar do governo Sarney, que lhe pergunta: “O povo de vocês gostaria de receber
informações sobre como cultivar a terra?” Ao que o xamã yanomami responde: “Não.
O que desejo obter é a demarcação de nosso território.” (Id., p. 376) E, como bem diz o
linguagem da terra. Davi sabe muito bem, e Viveiros de Castro também reforça isto, que
na relação com os Brancos é preciso garantir o território para poder cultivar a terra. Para
eles, finalmente, a terra é algo que está lá fora: “Quem ensinou a demarcar foi o homem
branco. A demarcação, divisão de terra, traçar fronteira é costume de branco, não do índio.
Brasileiro ensinou a demarcar terra indígena, então a gente passamos a lutar por isso.”
nomeia os Brancos em sua contra-antropologia. Afinal, se há algo que define tal povo é
precisamente a sua relação obsessiva e predatória com a mercadoria, que faz com que os
palavras [que] vêm do que os habitantes das cidades chamam de natureza. (...)
[E]les não lhes dão a menor importância. Seus ouvidos continuam tampados e
seu pensamento, enfumaçado. Preferem achar que os Yanomami são
ignorantes e mentirosos. Preferem ficar olhando o tempo todo para os desenhos
de palavras de todas as mercadorias que querem ter. A beleza da floresta os
deixa indiferentes. Sempre nos dizem: “Sua floresta é escura e fechada! É ruim
e cheia de coisas perigosas. Não lamentem por ela! Quando tivermos
desmatado tudo, vamos dar gado para vocês comerem! Vai ser muito melhor!
Vocês serão felizes!”. Mas nós respondemos: “Nossos maiores não conheciam
os animais que vocês criam. Não queremos comer animais de criação.
Achamos nojento e nos dá tonturas! (Id. ibid., pp. 478-479, grifos nossos)
outro sentido, que muitos relatam ou sentem quando a terra é muito mais do que um mero
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território. Isto é, quando a terra é um corpo e o corpo é a própria terra, e quando o mundo
especialmente se tomamos a crítica xamânica de Davi como um norte, que mais do que
Como por exemplo as de onde começa e de onde acaba o corpo, daquilo que é
vivo e daquilo que não é vivo, do que é humano e do que não é humano, ou ainda, daquilo
que é pensamento e daquilo que não é e, quando muito, é pura teoria ou ficção, ou apenas
ontológico controlado. E quem define fronteira, define fronte (Cf. VACCARO, 2005),
ou, em outros termos, define aquilo que é visível ou invisível, aquilo que é dizível ou
indizível, aquilo que é conceitual ou onírico e aquilo que é empírico, aquilo que é real e
aquilo que é virtual, aquilo que pode ou não (r)existir e, no limite, aquilo que importa e
Todavia, não só o amanhã não está à venda (Cf. KRENAK, 2020), como o valor
da vida não pode ser reduzido nem ao capital, menos ainda ao humano, ao menos nos
abrimos esse texto-terreiro com tais saberes e cosmovivências é precisamente porque elas
desestabilizam uma infinidade de separações que são realizadas pelo pensamento “curto
e obscuro” dos Brancos que “não consegue se expandir e se elevar”, distribuindo palavras
cit., p. 390).
nos são muito caros, especialmente no campo da Saúde Coletiva e na Saúde em si, onde
esta questão da saúde–mercadoria, não está post[a] como condição. Você pode
dizer para alguém no meio da floresta que saúde é um direito, ele vai te
perguntar direito a que? Ele vai dizer que não é um direito, mas um dom, um
bem comum, que todo mundo tem, e você não tem carência disso, ninguém
reivindica saúde em um lugar onde a vida é uma dádiva, onde a vida é
abundante. (...) [De uma tal maneira] que esta conversa de saúde tem tudo a
ver com outro jeito de estar no mundo. Que seja estar no mundo fora desta
perspectiva da mercadoria, do capitalismo, onde o saber é um capital, o saber
é patrimonial, se você está fora disso, aí então o saber, as práticas de cuidado,
fluem de uma maneira vital, tirando os corpos do lugar de flagelados e pondo
os corpos nesse lugar de fricção criativa. (KRENAK apud MERHY;
MOEBUS, 2020, pp. 10-12, grifos nossos)
E é exatamente essa fricção criativa que nos interessa, quer dizer, esse lugar, essa
relação que ela produz e que vai, para emprestarmos, com licença, as palavras de Weir,
“da ‘virada ontológica’ ao Tempo de Volta do Nós”, abrindo um outro horizonte onde
É seguindo então nessa mesma direção ou, melhor dizendo, nesse caminhar como
caminha o mundo, que nossa investigação busca, investindo em uma aposta (est)ético-
deslocamentos que poderemos ver germinando em cada um dos capítulos desta que
escritura. Capítulos estes que são, ao fim e ao cabo, capítulos-solo, no duplo sentido da
palavra solo: solo porque instauram e operam dentro de sua própria ecologia; e solo
porque também, cada um à sua vez, criam estratos, linhas e camadas, como camadas
fértil para que outras pensensações germinem no campo e em seus interstícios. De tal
forma que, transversalmente, cada estrato, tal qual em uma agrofloresta, dinamiza e
uma operação física, biológica, mental, social, [cósmica] pela qual uma
atividade se propaga pouco a pouco no interior de um campo, fundando essa
propagação numa estruturação do campo operada passo a passo: cada região
de estrutura constituída serve de princípio de constituição à região seguinte, de
modo que uma modificação se estende progressivamente e simultaneamente a
esta operação estruturante. (SIMONDON, 2003, p. 112)
Operação esta que Gilbert Simondon nomeia como transdução e que diz respeito
mundo. Implicando na
O que é dizer, em bom português, que não se coloca o carro na frente dos bois. E
muito embora pareça, a um primeiro momento, que seja necessária uma tradução de toda
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ontogenética para dizermos de outra forma, é, distante de uma ideia de uma instituição
processo (GÖTSCH, 1997; REBELLO; SAKAMOTO, 2021), alguns elementos não vão
pegar e germinar, de modo que ficarão na terra como sementes de potencial para outros
Outros elementos, por sua vez, vão enraizar e espalhar as suas ramas, aparecendo
e se repetindo em momentos distintos da escritura, ora como epígrafes, ora como parte
singular.
processo e também ao nosso trabalho, que compartilha a perspectiva de que o que importa
é precisamente o que está sendo inventado, o que está sendo produzido, o que está se
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experienciado, e uma pensensação é a propulsora de uma força generativa que opera por
diferenciais – daí a ideia whiteheadiana de contraste –, quer dizer, por diferenças que vão
se diferindo e variando sua capacidade, sua potência, o que elas podem, constituindo,
que uma palavra, um conceito, um termo, enfim, voarão, tal como um dente-de-leão ou
Como no caso de Quando ‘coletivo’ quer dizer outra coisa: notas tentaculares
sobre ecologia, comportamento e (des)humanização da saúde que, por mais que já seja
um dos resultados de pesquisa apresentados, nos permite situá-la, de início, numa outra
O que nos remete, enfim, à segunda coisa que gostaríamos de situar e que diz
respeito ao fato de que optamos por inserir no texto da Qualificação alguns dos resultados
processo.
doutorado, destacadamente In-between hunger and apetite – food for thought in the act e
eat (it) onde, mais uma vez, também propomos uma experimentação com outras
linguagens e modos de expressão dada a própria ecologia, o próprio hábitat original desta
peça.
A terceira coisa, finalmente, é que, de fato, nossa proposição trabalha não só nas
interfaces entre Filosofia e Saúde, como efetivamente nos limiares entre as Ciências
Devorações: entre o saber e o sabor, que é como que a terra mater de nossa escritura, o
Investigação esta que remete seja à toda uma saborosa produção que vimos
emergir nas últimas décadas e que tem se debruçado sobre as inflexões contemporâneas
Seja, ainda, a algo que Michael Pollan compartilha no início de seu livro Cozinhar
enquanto cada vez mais temos assistido chefs profissionais, agora elevados ao patamar de
estrelas e celebridades, cozinharem coisas que raramente ou nunca comeríamos. Cada vez
mais nossas práticas alimentares têm sido sequestradas por outras práticas, especialmente
as práticas que nutrem o próprio capitalismo. O que implica, diz o autor, cozinharmos
menos para nós mesmos ou nos preocuparmos menos com a origem e a procedência
Pois bem, se esse paradoxo e essa [d]obra, que foi, inclusive, um dos elementos
questionamento, uma certa estupefação em 2014 acerca daquilo que gravitava ao redor
páginas, canais, filmes, fotos, vídeos, documentários, séries, podcasts, posts, tweets e
em mídias como Facebook, Instagram, Twitter, YouTube, Netflix, entre outras, que
de nós.
intuirmos que algo está acontecendo com relação ao modo como pensamos e consumimos
comida e saúde, do mesmo modo em que podemos não só intuir, como efetivamente
Tanto que esta quantidade impressionante de novos conteúdos funciona como que
um termômetro, como algo que permite tanto vislumbrarmos alguns dos agenciamentos
biologizante do comer.
qual brotou nossa investigação e semeamos uma escuta àquilo que outros modos da
Bem como os efeitos e deslocamentos que a polinização cruzada com esses outros modos
apetite – food for thought in the act, que é arrizomado à To bife or not to bife, eis a
que nos conectam diretamente ao nosso principal objetivo de pesquisa, qual seja: o de
construir uma analítica que permita tanto problematizarmos nosso entendimento acerca
Perspectiva essa que, como dissemos, atransversa todos os nossos estratos e que
Deslocamentos e deslizamentos esses que nos situam, por sua vez, em um outro
uma cartografia das práticas alimentares expressas nas redes sociais Facebook, Instagram
qual nos aliamos, a saber, o método perspectivista de análise de redes sociais (MALINI,
2016, 2017), buscando evidenciar a nossa proposta cartográfica em operação, além de sua
não passam ao largo de nosso desenho metodológico, pelo contrário. Cada um de seus
estratos não só oferta questões que podem ser lidas a partir de uma metodo-lógica, quer
dizer, que possuem impactos diretos sobre questões caras à esta problemática do método.
esta problemática é indissociável de toda uma miríade de questões ligadas à nossa própria
cosmovivência e que, ao serem deixadas de lado, acabam por não cultivar os problemas
2. Objetivos
Objetivo principal
Construir uma analítica que permita problematizar nosso entendimento acerca do tema da
Objetivo secundário
Produzir uma cartografia das práticas alimentares expressas nas redes sociais Facebook,
Antes de qualquer coisa, é importante situarmos que este trabalho foi inicialmente
dezembro de 2020. Sendo agraciado, em tal ocasião, com o Prêmio Cecília Donnangelo
Posto isso, sugerimos que o encontro com este sub(e)strato se dê também por este
que buscaremos criar condições para colocarmos em questão problemas caros ao campo
da saúde.
ou a um corpo específico.
partes, pois todo acontecimento é, para Gilbert Simondon (1958), transindividual, o que
quer dizer que no seio de toda e qualquer individuação sempre existe uma coletividade
Fazer um pão, por exemplo, é criar uma sociedade, visto que implica uma
infinidade de relações que se estendem para além de suas partes individuais, isto é, da
da cozinha ou do forno está muito alta, importa, aliás, se é um forno a lenha ou a gás, do
do glúten, do ar, o tempo de descanso da massa e as suas relações com as sociedades que
Importar quer dizer que tudo isto produz não só condições e efeitos (Cf. JAMES,
1996), mas que esta sociedade e sua singularidade contemplam e incluem também o
gás, a cozinha, enfim, toda uma ecologia, um grupo de elementos, que compõe tal
sociedade e que nutre a criatividade e o potencial que floresce em meio aos diferentes
bolo de chocolate que é uma sociedade com os mesmos elementos que um muffin ou um
cookie, mas cujas relações características produzem uma outra singularidade (Cf.
SPINOZA, 2007).
chocolate ao bolo, ou, dito de outra forma, de reduzir os ingredientes ao produto final.
Ou seja, nesta perspectiva ontogenética o pão faz o padeiro, tanto quanto o padeiro
faz o pão, o que é dizer que um pensamento orientado pelo processo não admite qualquer
compõem o mundo, mundo este que é também uma sociedade complexa viva: um mundo-
Isto implica que toda e qualquer distinção entre Natureza e Cultura cai por terra,
afinal, o sujeito é apenas mais uma perspectiva do mundo, do processo, da natureza, uma
Isto não significa dizer, por outro lado, "que não exista um 'eu', mas que o 'eu' não
pode ser localizado antes do acontecimento ou como aquilo que o dispara. O ‘eu’ está no
meio, no campo relacional como um dos vetores da experiência, de tal maneira que o
sujeito é polvilhado para além da forma do humano, da figura da humanidade, o que nos
conecta à uma outra cosmologia – a dos povos da floresta – e ao que Viveiros de Castro
pensamento ameríndio que considera que o mundo é povoado por uma infinidade de
outros sujeitos que não só “nós” e que “há muito mais sociedades (e portanto humanos)
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conectadas, onde as outras espécies são também pessoas, povos e entidades políticas, o
perspectivismo ameríndio afirma que na floresta tudo que existe, pensa, e que aquilo que
modo que] todo objeto é sempre um outro sujeito, e é sempre mais de um” (Ibid., p. 94).
torcer a própria ideia de “ecologia” pois, como nos relembra o xamã yanomami Davi
Kopenawa, a ideia-coisa “ecologia” nunca foi exterior à sua existência, pois “[na] floresta,
a ecologia somos nós, os humanos. Mas são também, tanto quanto nós, os xapiri [os
espíritos], os animais, as árvores, os rios, os peixes, o céu, a chuva, o vento e o sol! É tudo
o que veio à existência na floresta (...) Somos habitantes da floresta. Nascemos no centro
Não por acaso, indígena é aquele “[que é] gerado dentro da terra que lhe é própria”
(Cf. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa,), o que é dizer que ser indígena, “é um
atributo imanente ao sujeito, não uma relação extrínseca com um objeto apropriável”
(VIVEIROS DE CASTRO apud KOPENAWA; ALBERT, op. cit., p. 16), tanto que
muitos povos indígenas mundo afora afirmam que a terra não lhes pertence, justamente
Isto implica, imediatamente, que as relações se dão em outros termos onde não só
o humano é outra coisa, como também a própria família e suas socialidades. Como diz
Ailton Krenak: “o rio Doce, que nós chamamos de Watu, [é] nosso avô, é uma pessoa,
não um recurso (...). Ele não é algo de que alguém possa se apropriar; é uma parte da
nossa construção como coletivo que habita um lugar específico” (2019, p. 21).
O que é dizer que para além da noção de sujeito, nestas ontologias não-dualistas a
da natureza, alienado “desse organismo de que somos parte, a Terra, [e que pensa] que
ele é uma coisa e nós, outra: a Terra e a humanidade. Eu [Krenak] não percebo que exista
algo que não seja natureza. Tudo é natureza (...)” (KRENAK, 2020, p. 8).
potencial ontológico que cultiva saberes, práticas e modos de existência que não se
adquire na produção da experiência e da própria vida, o que implica que, para além do
ideal de objetivação máxima que orienta o pensamento Branco e sua Ciência, para as
intencionalidade ao mundo.
resultados de algum tipo de intencionalidade, pois todo evento é uma ação de alguém e
todo objeto é um artefato para alguém. (Cf. VIVEIROS DE CASTRO apud SZTUTMAN,
2008, p. 41)
certo jeito de viver a vida, e que não há epistemologia desimplicada de uma ontologia,
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muito pelo contrário: conceitos como “vida”, “corpo”, “saúde”, “experiência”, “coletivo”,
“sociedade” e “humano”, são sempre tributários de uma cosmologia e a aliança seja com
para pensarmos, como diria Michel Foucault, outramente (autremont), com outras
mentes, permitindo que criemos condições seja para problematizar paradigmas crônicos,
seja para cultivar diálogos agudos ao redor de modos de desumanizarmos a saúde, quer
O que abre flanco também para criarmos condições para pensarmos o problema
soberano e sua consciência, alimentando uma poética das relações (Cf. GLISSANT,
A questão que fica então é: em meio a todas essas metafísicas canibais (Cf.
VIVEIROS DE CASTRO, 2015), onde começa e onde acaba a vida? No meio. (Cf.
MILONOPOULOS, 2021)
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Para quem tem como ofício ser um desaprendedor profissional, a arte de fazer o
pensamento pegar delírio é definitivamente das mais saborosas. Os que nos conhecem,
aliás, sabem que temos abundância de delírios, tanto quanto um paladar aguçado para as
e pelas insignificâncias: um gosto pelas bordas de uma palavra, pelas aparas de uma
noção, pelas migalhas que um conceito deixa na mesa, pelas sobras de uma questão que
ficou no canto do prato, pelos excessos de um pensamento que cresceu para além da
forma, por uma ideia solada ou por um saber que queimou no fundo da panela. Ou ainda
e buracos no chão.
2004), podemos começar a saborear uma questão que, sem qualquer preparo ou tempero
Um dos modos, diriam Fred Moten e Stefano Harney, é estudar. E o estudo, tal
estudar é o que você faz com outras pessoas. É conversar e caminhar com
outras pessoas, trabalhando, dançando, sofrendo, uma convergência irredutível
desses três verbos, unidos sob o nome de prática especulativa. A ideia de um
ensaio: estar em uma espécie de oficina, tocar em uma banda, em uma jam
session, ou velhos sentados em uma varanda, ou pessoas trabalhando juntas em
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Um outro modo é criar condições para que possamos saborear um problema. Isto
uma atitude frente a um problema. Afinal, para lembrarmos de Henri Bergson e de Gilles
Deleuze, um problema “tem sempre a solução que (...) merece em função da maneira pela
qual é colocado, das condições sob as quais é determinado como problema, dos meios e
problemas. Problemas estes que são postos precisamente para a vida, "que se determina
p. 10), relação esta – entre problema e vida – que, despudoradamente, tal qual uma
mexerica, espalha fragrâncias que não só nos dão água na boca, como também sinais de
determina no ato”, a vida que invenciona técnicas e práticas para perseverar na existência.
Maneira esta onde o que está para ser devorado remete à própria vida, pois é nela
que se inventam as condições para que este encontro com um problema seja apetitoso.
Até porque, para lembrarmos de Benedito de Spinoza (2007), não há diferença entre
desejo e impulso vital, muito pelo contrário: o problema mais íntimo do apetite é
aromas, cores, sabores e texturas acerca do que é uma vida (Cf. DELEUZE, 2000) muitos
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O que nos leva àquilo que Bergson nomeia como falsos problemas, que "vêm de
direção às articulações do real, e reencontrarmos o que difere por natureza nos mistos que
nos são dados e dos quais vivemos.” (DELEUZE, 1999, p. 18, grifo nosso)
empreitada problemática, isto é, uma crítica das condições sob as quais um problema é
sobre os meios e os termos utilizados para inventar um problema, tanto quanto sobre as
técnicas e práticas que compõem, produzem e articulam o que usualmente, em uma certa
Abrir o apetite para o pensamento, neste sentido, é mais do que uma questão de
propósito, se em termos de poesia a palavra poética “tem que chegar ao grau de brinquedo
para ser séria” (BARROS, 2010, p. 348), o encontro seja com um conceito, seja com um
sabor alternativo e heterogêneo do pensamento deve ser aquilo que alimenta o pensar,
fazendo aumentar a sua potência. Potência esta que, para lembrarmos de Antonin Artaud,
deve carregar em si “ideias cuja força viva é idêntica à da fome” (2006, p. 1): a vida que
inventa in-ato1.
1 Como bem evidenciam Fogliano e Magalhães: “Esta noção contém um jogo de palavras intraduzível para
o português. In-act (...) possui uma ambivalência: qualificar a ação, a prática em-ato, bem como o inact,
inativo, inatividade, a impessoalidade da ação, do gesto. Essa ambivalência abre um duplo e paradoxal
entendimento: por um lado, entendimento da experiência valorativa inerente do ato, do ato em si mesmo,
no acontecimento; por outro, entendimento de que o processo de atualização e valoração é um ato inativo,
um gesto, ou seja, não intencional, não volitivo, não passa pela ordem da vontade ou da consciência
individual, do cogito, mas da necessidade mesma de sua natureza material constitutiva.” (in MANNING,
2018, p. 261, nt 118, grifo nosso)
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intensidades que convêm (...) ou não, que passam ou não passam (DELEUZE, 1998, p.
10), que colocamos ou não no prato conforme a força do desejo. São como um aperitivo,
o amuse-bouche que abre o apetite e que move a alegria de pensar, alegria esta que dança
entre a fome e o apetite, e que abre o seu sabor não para a interioridade de uma boca, para
dado que ele, bem como o próprio comer, envolve “não desperdiçar apenas na
preocupação de comer imediatamente nossa simples força de ter fome” (ARTAUD, op.
cit., p. 2). Ou seja, ele envolve desossar, destrinchar e problematizar os mistos que nos
são dados e que, goela abaixo, acreditamos ter enzimas para digerir e metabolizar
naturalmente.
magia da vida, nutrindo um questionamento sobre aquilo que constitui o sujeito e suas
(com) os pensamentos que brotam ao não resumirmos esta força viva da fome à
indivíduo, o corpo, a saúde e a sociedade: fomes que especulam, apetites que fabulam, a
Não por acaso é justamente daí que nasce a proposição de buscarmos novos
ingredientes para cozinharmos condições que nos permitam desenvolver um paladar para
continuamente e para além das formas de vida já cristalizadas, novas formas de ser.
Vale notarmos ainda a esse respeito que ontogênese e ontologia não são a mesma
(being), dos modos de vida já sedimentados, a ontogênese pode ser definida como o
Benedito de Spinoza, Gilbert Simondon, William James, Gilles Deleuze, Félix Guattari e
precisamente pelo fato de que ele nos oferece ingredientes saborosos para que possamos
ir além dos meios, termos e conceitos já utilizados para formular e explorar a problemática
a figura do sujeito, que constitui o recheio seja do entendimento que o campo possui do
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Assim, entre mil pratos e platôs, uma primeira composição com este modo de
pensamento implica que efetivamente levemos a sério uma ideia muito cara à Saúde
anterior. Ideia essa que é fundamental não só por ter fomentado o poder do social e da
cuidado que brotaram em meio à sua força instituinte e que extravasaram o monopólio
radicalizemos tal ideia e que nos deleitemos com a riqueza de seus aromas, sabores,
tonalidades, gostos, cores e texturas que, em meio a esta perspectiva processual e à sua
particular sobre o coletivo: um entendimento onde ele jamais é reduzível à soma de suas
partes individuais.
qualquer ideia de saúde coletiva orientada por um pensamento processual jamais digeriria
qualquer distinção entre uma parte e um todo, entre um indivíduo e uma sociedade, ou
Um coletivo, desta forma, é sempre maior do que a soma de suas partes, pois para
aquém e para além do indivíduo, todo e qualquer acontecimento diz respeito justa e
excede as suas partes individuais, no mesmo sentido em que todo evento é, nos termos de
34
estável, uma identidade cristalizada ou uma unidade envelopada sobre si mesma, e mais
início de nosso encontro, chama de transdução, um processo que fertiliza a ideia de que
condições que o compõem: como o acontecimento-mesa que altera nosso caminho pela
Há, assim, uma relação intrínseca entre ao menos três estratos: a individuação (o
catapulta o processo para novas individuações). O que quer dizer que a singularidade de
individuação.
toda uma ecologia de práticas que não podem ser reduzidas ao nível do pessoal e à agência
individual, visto que são transversais à experiência: o sol que atrai o girassol, o girassol
sujeito, menos ainda no objeto, mas na relação entre eles: uma saúde coletiva.
relacional, visto que um corpo é, nada mais, nada menos, que uma sociedade: uma
sociedade de moléculas.
2 No que toca à problemática do individual não podemos deixar de lado as discussões acerca daquilo que
autores como Gilles Deleuze (1992) e Brian Massumi (2017a) nomeiam como divíduo: o produto das
injunções neoliberais e do turbilhão de tendências heterogêneas que compõem as máquinas de produção
das subjetividades capitalísticas.
36
próprio lugar que o problema do comportamento pode ocupar nesta ecologia ou em uma
Com efeito, nesta perspectiva uma sociedade está sempre prenhe de um nexo
qualidade composicional específica de uma dada ordem social. O que quer dizer, em
outros termos, que a filosofia do processo nos apresenta um conceito de sociedade onde
cada relação, por mais ínfima que seja, está implicada na produção deste corpo-sociedade,
Disto decorre que o social envolve tanto a produção de corpos sempre em relação
dinâmicas do mundo. Pensemos, por exemplo, já que falamos em duração, em uma pedra.
humana neurotípica3, sendo ela reconhecida usualmente pelas suas qualidades estáveis,
pela sua invariabilidade. Contudo, quando uma pedra esfarela, quando um corpo-pedra
se torna um corpo-areia na praia, o que está em jogo é o fato de que suas qualidades de
3 Nos servimos do conceito de neurotipicalidade seja para relembrar que a vida é, em potencial,
neurodiversa – o que é dizer que ela pode ser vivida de formas e maneiras que extrapolam a fixidez de uma
certa definição daquilo que conta como vida e que conta no campo da experiência e da percepção humana
–; seja para evidenciar que o amplo espectro da neurodiversidade contempla modos de existência, de
relação, de pensamento, de percepção e de experiência que usualmente são vistos como fardos para a
sociedade – especialmente no caso de pessoas com diferenças neurológicas –, sendo estes não só excluídos
da educação, da vida social e econômica, como também, por meio de diversas tecnologias de opressão,
violência e exclusão que produzem o próprio entendimento daquilo que é considerado humano (Cf.
BAGGS, 2007). Do mesmo modo, como indicamos anteriormente ao falarmos da tríade volição-
intencionalidade-agência, essa problemática cultivada pela pensadora nos permite germinar interessantes
questões acerca do problema do comportamento futuramente neste trabalho. (Cf. MANNING, 2016)
37
relação com o mundo foram alteradas: criou-se uma nova sociedade, uma nova habilidade
Há, desta forma, não só uma imersão desta pedridade em uma promiscuidade de
relações – com o vento, com o sol, com o mar, com a vida que a co-compõe, etc. –, mas
também uma precisão absolutamente necessária no universo. Precisão esta que permite
que uma pedra seja uma pedra, que uma montanha seja uma montanha, que um
pedregulho seja um pedregulho, que um cristal seja um cristal, que a areia seja a areia,
que o vidro seja o vidro. Enfim, o ponto é que cada um destes elementos diz respeito à
entre corpos.
diríamos que uma mesa é só uma mesa, e uma cadeira é só uma cadeira. Há uma clara
diferença entre elas, tanto quanto uma certa relação mesa-cadeira sedimentada em nossa
sociedade: uma mesa atrai uma cadeira que, por sua vez, atrai um corpo que irá usá-la
para realizar alguma atividade na mesa, tal como sentar e fazer uma refeição.
A questão, todavia, é que existe uma sentabilidade em ambas: é possível fazer isto
seja na mesa, seja na cadeira, o que implica que a potência de sentar que compõe cada
uma delas altera os modos de relação possíveis nesta ecologia, inclusive os seus sabores
afetivos: comer sentado na mesa com os pés balançando enquanto se bate papo na cozinha
definitivamente carrega um sabor distinto que comer em um local onde a etiqueta à mesa
impera, onde cada coisa sabe o que ela é: a posição e a função de cada talher, de cada taça
ou de cada co(r)po.
E são justamente estes modos de relação e seu perseverar que definem a identidade
de uma sociedade: uma mesa pode ser uma cadeira, do mesmo modo que uma cadeira
pode ser um chapéu ou, em termos mais processuais, uma mesa carrega as qualidades –
38
não pentear. / Até que ele fique à disposição de ser uma begônia. / Ou uma gravanha. /
Usar algumas palavras que ainda não tenham idioma”. (BARROS, 2010, p. 300)
normatividade. Ela é, pelo contrário, constantemente flambada nesta poética das relações
(Cf. GLISSANT, 1990), de maneira que podemos dizer que ela é sempre um excesso da
processo a força da existência – a força viva da fome, as seduções do apetite – não pode
ser resumida ao pessoal, a uma certa continuidade ou a uma certa categoria, função,
comportamento ou forma definitiva: tal quando o cabo do garfo ou a ponta da faca que
mexem o café.
que radicalizar a ideia de coletivo quer dizer explorarmos não só um pensamento e uma
prática onde o sujeito é sempre emergente, atualizado, em ato, mas também nutrir essa
potência relacional onde todo acontecimento, no frigir dos ovos, conta. E onde todo ato,
multiplicidade dos devires, da atividade do mundo e de tudo aquilo que germina em seu
campo relacional: não um mundo, mas um mundificar, não um corpo, mas um corpar.
mas no sentido de ser uma proposição que parte, generosamente, do ato, ou seja, que parte
simples fato de que algo está sempre acontecendo (Cf. JAMES, 1996, p. 161): pequenas
Não por acaso seus conceitos mais fundamentais são justa e precisamente os
(1968, p. 151).
Imersos, assim, em todo este ativismo e nas próprias potências de uma fabulação
ou, para lembrarmos de Deleuze (1976), nas potências do falso, logo podemos perceber
40
que uma ideia valiosa para a perspectiva do processo é a de que toda e qualquer fabulação,
tal qual um tempero ou uma especiaria, adicionam uma novidade no mundo, alterando o
seu sabor, alterando a sua textura, alterando seu tom. Alterando, enfim, as condições da
experiência, mas não sem antes inventar uma maneira de emergir no mundo: tudo que
pode adentrar uma cozinha e que, por dificilmente passar incólume em uma preparação,
processo, esteja ele apenas mencionado entre os itens da receita, ou efetivamente no fundo
da panela.
inaugura-se uma nova dinâmica entre cozinheires, comensais e quem quer que possa ter
sentido seu aroma ou ouvido seu nome. O que é dizer que neste evento importa menos se
esta especiaria vai efetivamente ser usada ou não na preparação, e sim o fato de que as
pôr?
O ponto então é que tudo o que compõe a experiência é, de alguma maneira, real,
pois produz efeitos no mundo, sempre carregando um potencial afetivo. Do mesmo modo
em que tudo que é real é também experienciado, sensível, o que implica o fato de que a
experiência do devir, ou seja, uma experiência que põe ênfase não no objeto, menos ainda
universo do sujeito autônomo para o campo da própria experiência ou, diria Whitehead
em seu léxico processual, para uma ocorrência (occurrence), isto é, aquilo que acontece
devir-coentro.
prenhe de singularidades, de multiplicidades e de diferenças (Cf. JAMES, op. cit., pp. 93-
a porta da geladeira é semear mundos, polinizar devires; é abrir o céu da boca e lamber a
criatividade da vida.
O que seria, entretanto, este mundo? O que seria então o processo? Whitehead nos
responderia esta questão com uma única e singela palavra: a natureza. Entendida como
muito mais do que um agregado de diferentes objetos e seres, ela “é uma estrutura de
eventos e cada evento tem sua posição nessa estrutura e seu próprio caráter ou qualidade
brotamento.
indivíduos. O que podemos ver, inclusive, nas próprias brincadeiras de uma criança onde,
por exemplo:
[é] só olhar para um tigre, ainda que de maneira fugaz e incompleta, seja num
zoológico, livro, filme ou vídeo, e pronto! A criança é entigrezada.
Transformação-in-loco. A própria percepção é um gesto vital. A criança
imediatamente começa não a imitar a forma substancial do tigre que acabou de
42
ver, mas a dar vida a ela — dando a ela mais vida. A criança brinca de tigre
em situações nas quais nunca viu nenhum tigre. Mais que isso, ela brinca de
tigre em situações em que nenhum tigre jamais foi visto, nas quais nenhum
tigre terreno jamais colocou a pata. A criança imediatamente se lança num
movimento de superação do que está dado, permanecendo de modo notável
fiel ao tema do tigre — não convencionalmente, mas a partir do angulo de sua
potencialidade processual. (MASSUMI, 2017b, p. 155, grifos nossos)
devir que não esteja grávido de outros mundos, e não há processo que tenha medo de
Nesta perspectiva, portanto, o campo do real não se reduz ao campo daquilo que
coisas. (…) [Tanto que] perceber o mundo [apenas] em uma estrutura de objetos é
negligenciar uma ampla gama de sua realidade germinativa” (MASSUMI, 2011, p. 6).
uma distinção entre sujeito e objeto, distinção esta que também instaura um abismo
4 “(…) nenhum som teme o silêncio que o extingue. E nenhum silêncio existe que não esteja grávido de
sons.” (CAGE, 1985, p. 98).
43
A filosofia do processo, por sua vez, se situa em outra boca do fogão, em uma de
suas bocas traseiras, lá onde cozinha-se, em fogo baixo, um entendimento menor (Cf.
“O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa era a imagem de um vidro mole
que fazia uma volta atrás de casa. / Passou um homem depois e disse: Essa
volta que o rio faz por trás de sua casa se chama enseada. / Não era mais a
imagem de uma cobra de vidro que fazia uma volta atrás da casa. / Era uma
enseada. / Acho que o nome empobreceu a imagem (BARROS, 2010, p. 303).
questionar se algo é real ou não, seja ele uma cobra de vidro, um monstro embaixo da
cama, um sofá no meio da sala, um vulto, uma notícia falsa circulando na rede ou até
desabrochar, bem como quais são os efeitos que um acontecimento produz no mundo:
Isso quer dizer, em outras palavras, que um efetivo problema está sempre
besuntado em uma afectologia, ou seja, naquilo que Spinoza (op. cit.) nomeia como um
porque:
O que quer dizer, para frasearmos isso de outro modo, que nesta filosofia ativista,
realização de um potencial. Tanto que tudo é tão real quanto seu efeito, de modo que a
que evidencia como vivemos em investimentos especulativos (Cf. JAMES, op. cit., p.
88).
Especulações essas que dizem respeito ao fato de que o poder de afetar e de ser
experiência, uma qualidade nutrida por diferentes formas de experiência, por diferentes
toda uma metafísica canibal (Cf. VIVEIROS DE CASTRO, 2015), a toda uma
vida de um afeto, a força da afirmação da vida” (GIL, 2004, p. 87). E a toda uma
experiência e que criam terrenos férteis para outras formas de viver- ser-criar-saber-sentir
*
45
lancemos uma pergunta: o que seria, em meio a esta cosmologia do processo, uma receita?
Por mais que ela pareça uma pergunta inesperada, tal qual um respingo de molho que voa
receita envolve uma certa reprodutibilidade, uma certa precisão, bem como a criação de
por exemplo, desses mais tradicionais, compõem-se elementos como a farinha, a água, o
também uma sociedade, dado que uma sociedade é, como vimos anteriormente, um
para além de um certo potencial para tornar-se bolo, esta sociedade está sempre queirosa
e aberta ao acontecimento.
O que quer dizer que toda e qualquer transformação nas condições que
caracterizam seus encontros e suas relações – como sua temporalidade e suas durações –
implica que esta sociedade pode efetivamente tornar-se em uma outra ocasião da
experiência (Cf. WHITEHEAD, op. cit.): uma torta, um muffin, um cookie ou qualquer
essencial atentarmos para o fato de que essa intrincada ecologia, que a complexidade
forma, a batedeira, o fogão, a cozinha. Enfim, todo um grupo de ocasiões que compõem
tal sociedade e que nutrem a criatividade e o potencial que floresce em meio aos diferentes
temperatura da cozinha ou do forno está muito alta, importa, aliás, se é um forno a lenha
Importar aqui quer dizer, enfim, que tudo isto produz não só condições e efeitos,
mas uma sociedade que inclui também o corpo-panificador, que co-compõe com o
fermento que está crescendo na geladeira, com a massa que está descansando, com o pão
que está no forno ou com o vento que pode derrubar aquele que está pronto esfriando na
evento, seja a uma coisa definida, localizável e definitiva, seja à percepção do humano e
justa e precisamente porque “[a]o especificar o local e o momento, na verdade vocês estão
observados” (Id., p. 195): o bolo foi feito na casa da avó, entre o almoço e o café da tarde,
47
e graças à brisa que vem do pomar no fim do dia o seu aroma viajou janela afora pela
vizinhança.
que podemos distinguir em eventos finitos a formar, por meio de suas mútuas
onde floresce uma série de maquinações. Ou, para pensarmos-com Deleuze e Guattari
separações e que são, por exemplo, o cheiro do pão, o cheiro do bolo, o cheiro do café
fogo e da brasa.
Tanto quanto o evento-café, que ganha cor, sabor e textura; bem como a varanda, a mesa
da cozinha, o degrau da escada, o toco de madeira ou a caixa de fruta que viram cadeiras
Enfim, elas lardeiam toda uma biodiversidade de relações que, para lembrarmos
de Moten e Harney (op. cit.), não só polinizam múltiplos modos de estudo em meio às
aquilo que Whitehead nomeia como um superjeito (op. cit.): uma subjetividade produzida
nomearíamos como ser (como being) é, então, o fruto de um encontro, de uma transição,
distinção entre Natureza e Cultura cai por terra, afinal, a “natureza nada mais é do que a
O que quer dizer que, cada vez mais, a questão do comportamento e sua
[a] agência sempre começa em uma categoria. É usada para localizar a ação de
volição de um sujeito ou grupo. (...) O que é importante aqui é precisamente a
questão de como uma ênfase naquilo que está no interior do ato, na
temporalidade do acontecimento, abre o caminho para que possamos repensar
o poder e as políticas que o acompanham. Focar no agenciamento ao invés da
agência (...) permite-nos não somente dar valor a modos de experiência que
ficam no segundo plano da agência, mas também chacoalha os alicerces
poderosos da neurotipicalidade, de um modo de existência que profundamente
desvaloriza os relatos de experiências que não podem ser reduzidos à tríade
volição-intencionalidade-agência. (MANNING, 2016, p. 123; tradução nossa)
Whitehead como uma crítica do puro sentir (a critique of pure feeling), justamente
porque ela não admite qualquer entendimento do humano que exclua da existência a
Toda coisa real na natureza pode ser nomeada, assim, como uma ocasião da
experiência, inclusive o próprio universo. De maneira que toda entidade viva possui
(an enduring object, cf. WHITEHEAD, op. cit.), tal qual o humano: uma sociedade
humanidade, sendo ele apenas um exemplo entre muitos tipos de objetos duradouros que
implica em estabelecer uma relação íntima com a diferença, com a variação. Afinal,
Isto não significa dizer, por outro lado, que não exista um sujeito, que não exista
mundos-corpo, desse cosmum, ele não pode ser isolado do evento, localizado antes de um
4. Emergências e procedências
Pois bem, se até este momento viemos empoando elementos para pensarmos,
como diria Michel Foucault, outramente, de “pensar outra mente, [de] pensar com outras
mentes” (VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p. 25). Nos parece que agora seria um bom
problema de pesquisa.
que ainda maneja seu lugar ao sol em meio ao cientificismo que atravessa a Saúde e a
própria ideia da Ciência que, pretensamente soberana em sua objetividade, não só a toma
como epistemologicamente inferior como, mais do que isso, julga-se como a única forma
também como outros campos têm se debruçado sobre as nossas relações com o comer e
5
Este sub(e)estrato herda algumas das discussões compartilhadas no trabalho “Entre a fome e o apetite:
considerações intempestivas sobre o ODS #02 a partir da experiência na obra-restaurante Restauro:
escultura ambiental”, apresentado enquanto um relato de experiência no VI Simpósio dos Pós-Granduandos
do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
(SIMPREV) em dezembro de 2018.
52
sobre aquilo que anima nossa comensalidade e, em nosso caso, a partir do cultivo de uma
Arte de São Paulo (2016), em parceria com o artista proponente Jorgge Menna Barreto6.
Figura 1. Logo da obra-restaurante "Restauro: escultura ambiental". Arte: Joélson Buggila, 2016.
Jochen Volz (Pinacoteca do Estado de São Paulo, Instituto Inhotim) que, junto à sua
equipe, desenvolveu uma proposta curatorial que propôs uma reflexão sobre as atuais
fosse, pela primeira vez, integrado à moldura curatorial da exposição. O que fez com que
obra.
6
Atualmente é docente no Departamento de Artes da Universidade da California – Santa Cruz (UCSC),
dedicando-se à pesquisa em environmental art e práticas site-specific em arte, atravessando temas como
nutrição, ativismo alimentar e veganismo. Vale ressaltar, inclusive, que sua pesquisa de Pós-Doutorado no
Departamento de Artes do CEART/UDESC) sobre as relações entre práticas site-specific e agroecologia
serviu de base para a proposição e feitura do Restauro.
7
Além deste hibridismo, o Restauro funcionou como uma rede, como uma composição entre o artista, a
chef Neka Menna Barreto, a Escola Brasileira de Ecogastronomia, o empresário Vitor Braz, o coletivo O
53
Figura 2. Vista da boqueta da cozinha do Pavilhão da Bienal. Foto: Jorgge Menna Barreto, 2016
do público que visitou a Bienal, seja formulando questões acerca da construção dos
nossos hábitos alimentares e de sua relação com o ambiente, com a paisagem, com o clima
Não por acaso, a verve do trabalho foi aquilo que Menna Barreto nomeou como
escultura ambiental, uma proposição que trata tanto de um redesenho de nosso sistema
digestório – propondo seu início não na boca, mas na terra –, quanto também de um
planeta.
Aos incautos e aos mais apressados, esta proposição poderia ser facilmente
considerada como apenas mais uma bela imagem poética criada pelo mundo artístico e
Grupo Inteiro, o artista e músico Marcelo Wasem, a Secretaria Estadual do Meio Ambiente de São Paulo,
a rede de agrofloresteires pertencentes ao projeto Microbacias II da então Secretaria Municipal do Meio
Ambiente, e mais uma série de outros (in)divíduos que viabilizaram e colaboraram com o projeto.
54
que, claro, tinha sua devida importância dentro de um contexto eminentemente artístico:
a Bienal.
precisamente porque criou uma situação estética onde esse gesto tão naturalizado em
campo de possíveis, quer dizer, todo um outro campo problemático onde o comer passa
a ser atravessado por novas funções, por novas implicações e, certamente, por novas
imagens do pensamento.
vivemos e que, mais do que isso, nos situa em uma encruzilhada onde convergem uma
Não por acaso regenerar foi uma outra tônica deste projeto, dado o próprio fato
etimologicamente da palavra restaurar que serve, por sua vez, como base para
restaurante, justamente o lugar aonde vamos, ao menos em uma acepção mais comum,
escala, extrapolando o nível do restauro individual para, a partir da fome do público que
8
Cf. https://www.youtube.com/watch?v=IXvj_x0qs7U. Acesso em 30/01/2021.
55
Figura 3. Um dos cardápios ofertados no "Restauro" ao longo da Bienal. Foto: Jorgge Menna Barreto, 2016.
deu de maneiras distintas e, ainda que o Restauro possuísse produtos à venda, assim como
um cardápio de almoço e lanches que variava diariamente, seu desafio era o de desinvestir
processo mais amplo do ato de se alimentar, processo este que mina a relação capitalística
de satisfação do cliente e que incide, diretamente, sobre um dos elementos que compõe a
sabor, à sua textura, à sua embalagem, ao seu valor calórico, à sua tabela nutricional e ao
Visando, assim, frutificar uma relação mais complexa que envolvesse o alimento
em todas as suas facetas, um dos nortes do projeto foi o de criar modos de curto-circuitar
tanto a nossa relação com a comida, quanto a nossa relação com a indústria alimentar e
O que imediatamente implicava uma das outras questões levantadas pela obra: a
o alimento tem com o impacto ambiental que gera. Foi com isso em vista, aliás, que o
vegetal, excluindo todo e qualquer produto de origem animal, como carnes, leites e ovos.
Contudo, para além de uma lógica da subtração – aquela que enuncia: “um
que temos ao nosso redor. Biodiversidade essa que beneficia saúdes que não se resumem
ao humano, mas que contemplam todo o planeta, indo de encontro à monotonia alimentar
que atravessa os fluxos capitalísticos das dietas ocidentais contemporâneas e que serve
Figura 4. Alguns dos ingredientes do último prato-feito ofertado na Bienal. Foto: Jorgge Menna Barreto, 2016
Ora, outra relação que se deu de modo distinto no Restauro foi a relação com o
restaurante – que possui receitas fixas e que subjuga a produção do agricultor aos
ingredientes dos quais depende seu menu, independente da estação, da vocação da terra
onde está localizada sua lavoura, ou mesmo dos imprevistos que permeiam a vida no
Não havia, desse modo, um cardápio pré-definido. Não havia um a priori que
mudanças, ajustes e experimentações na nossa cozinha. O que fazia com que o produtor
mas um protagonista da relação, assim como a terra e suas vocações, que determinavam
como o Restauro lidou com seu fornecimento, alçando a rede de agrofloresteires que
Figura 5. Caminhão de entrega de um dos fornecedores do Restauro. Foto: Jorgge Menna Barreto, 2016.
Uma agrofloresta, vale dizer, é uma floresta que conta com a presença humana e
que a inclui como uma catalisadora dos processos florestais, cultivando não só alimentos,
monocultural e sua eficiência e eficácia, quanto a própria ideia de que excluir a presença
humana de uma área de mata é uma estratégia de restauro ambiental eficiente. Ideia essa
que se conjuga-se à própria ideia de criação de áreas de preservação ambiental que cindem
manejando, a partir de diversas técnicas – como, por exemplo, as podas –, a forma como
da própria floresta.
Figura 6. Agrofloresta com seus diferentes estratos. Foto: Jorgge Menna Barreto, 2015.
restaurante a partir da montagem dos pratos do Restauro em potes, que evocavam não só
relação do alimento que comemos com o lugar onde esse alimento foi produzido, afinal,
Essa relação com o lugar, a propósito, preciosa para nossa discussão, é um outro
ponto que atravessa a proposição de Menna Barreto e que remete aquilo que nas Artes
chama-se site-specific. Um conceito que baliza uma série de práticas artísticas onde a
obra é pensada como um sistema, e não apenas como um objeto a ser instalado em um
lugar neutro. De modo que ela necessariamente estabelece uma relação com o lugar e o
especificidades do local que, por sua vez, facilita a definição, quando não propõe, o que
ali será construído. De tal forma que o espaço se torna, numa perspectiva mais-que
seres, etc, sendo o artista algo como um mediador entre a obra e o ambiente.
maneira que ele e seu modo de cultivo, poderiam ser entendidos a partir de uma
Menna Barreto propôs que pensássemos não só a plasticidade do ato de se alimentar mas,
mais do que isso, que déssemos um outro passo: ao invés de simplesmente reconhecer
esse impacto e a responsabilidade dos nossos hábitos alimentares sobre ele, pensar em
como agregar a eles um grau de intencionalidade para que o impacto não fosse
simplesmente uma resultante, mas sim um objetivo: uma modelação ativa do planeta a
Seguramente podemos dizer que esta discussão é das que balizam o conceito de
alimento em um campo complexo de relações que prezam por uma relação com toda a
cadeia alimentar, indo desde sua origem, sua produção, os impactos ambientais que ela
Bem como ao modo como a lavoura foi [es]colhida e plantada, ao modo como as
como no modo como o resíduo orgânico do alimento será devolvido para o sistema
Figura 9. Brotário das sementes utilizadas na cozinha do "Restauro". Foto: Jorgge Menna Barreto, 2016.
9
Que foi incorporado, vale notar, ao projeto pela composição com a Escola Como Como, que mais tarde
tornou-se a Escola Brasileira de Ecogastronomia.
63
(pro)posição que, como já pudemos notar, foi compartilhada pelo Restauro, fornecendo
tabela nutricional que toma o alimento apenas como um conjunto de nutrientes a serem
ético-política com os alimentos que colhia, comprava, preparava e servia, operando mais
por sugestão do que por afirmação. Isto é, não falando em nome de uma verdade, em um
modo correto de se alimentar mas, pelo contrário, buscando ofertar ingredientes para
escolhemos comer.
de práticas alimentares. Elementos esses que, por sua vez, não passavam ao largo do
cotidiano do Restauro.
Havia nele toda uma preocupação e toda uma estrutura educativa que contava seja
No entanto, para além disto, existiam dois grandes desafios com relação ao
Educativo: um deles era o de criar um ambiente que não fosse carregado de informações,
64
e o outro era o de inventar uma modalidade de [i]mediação que não fosse baseada e
nutrida somente pela linguagem, quer dizer, pelo discurso dos educadores.
um, visto não era sempre que se criava ou surgia a oportunidade de uma conversa – ainda
E, mais do que isso, de que para além das conversações entre os humanos, era
justamente no entre, no meio, que havia uma série de outras trocas que nos eram mais
saborosas e nutritivas. Trocas essas que se davam em uma ordem da experiência que não
só não se resumia ao discurso e ao sujeito, como remetia àquilo que Menna Barreto
denominava florestidade: uma noção que dizia respeito a uma revolução molecular, para
65
lembrarmos de uma expressão de Guattari (1981), que emergia no encontro entre as forças
Figura 11. Preparação do móbile “Comer-escutando”. Foto: Jorgge Menna Barreto, 2015.
Atentando, pois, aos efeitos que este encontro gerava nos participantes desta
escultoria coletiva, havia ali em operação uma política molecular (DELEUZE; PARNET,
1998) que ia além da soberania do prazer das papilas gustativas e da ênfase tão
pensam o ato de comer como um ato político (POLLAN, 2014; LAPPÉ, 1971), sendo o
próprio Restauro nutrido por uma proposta de ativismo político, mais especificamente de
alimentar.
Com isso então na mesa, podemos formular e ruminar algumas questões que nos
discussões que nos são tão caras? Quer dizer, de que maneira as artes contribuem para a
outro modo de pensamento pode nos ofertar? Qual diferença ele pode produzir na
composição com a Saúde Coletiva? Ou, melhor ainda, qual é a diferença que pode ser
que uma obra é muito mais do que a mera expressão de um artista. Se há algo que nos
interessa nas artes é justamente o fato de que uma obra cria, antes de qualquer coisa, uma
O que é dizer que ela reúne em si uma ecologia de encontros e problemas que
e, nesta perspectiva, a força de uma obra relaciona-se não ao seu conteúdo ou ao seu
significado, mas ao modo pelo qual ela pode alterar as condições da experiência, isto é, a
ecologia da qual ela faz parte e de onde ela brota, bem como o campo de problemas ao
tomados aqui como campo empírico e como uma situação estética onde os problemas da
oferecidas pelas Artes, na sua composição com a Filosofia e a Ciência, nos fornecem
Ou, dito de outro modo, elas evidenciam como essa proposição artística inaugurou
um campo problemático onde a fome e o comer passaram a ser atravessados por novas
funções, por novas implicações e imagens do pensamento que abriram caminho, por sua
68
vez, para que pudéssemos tanto explorar as potências da fome e do comer, quanto
Não há, dessa forma, nada a ser descoberto ou decifrado na arte, sendo que o que
(im)plantados pelo Restauro e pelos modos como ele alterou as condições da percepção,
Artes também se esforça para inventar e para experimentar outras formas de se formular
inegável que o Restauro endereçou-se à fome fisiológica dos visitantes da Bienal, mas
não só.
relações com a terra e com os terranos, de outros e novos mundos. Enfim, toda uma sorte
de fomes que alimentaram a nossa empreitada de pensar, não por acaso, as relações entre
que nos abre para um pensamento cuja potência alia-se às potências do vivo, afinal,
[n]unca, quando é a própria vida que nos foge, se falou tanto em civilização e
cultura. E existe um estranho paralelismo entre esse esboroamento
generalizado da vida que está na base da desmoralização atual e a preocupação
69
com uma cultura que nunca coincidiu com a vida e que é feita para dirigir e
governar a vida. (ARTAUD, 2006, p. 1)
Isto não é dizer, por outro lado, que buscamos com esse argumento situar nossa
discussão na divisão, e até mesmo na oposição, entre Ciência, Arte e Filosofia. Muito
pelo contrário, nos é muito mais saboroso cultivar um pensamento transversal a elas, um
é cara ao campo da Saúde, todavia é a partir de uma proposição artística que mergulhamos
nessa discussão tendo como principal meio sua potência conceitual e, portanto, filosófica,
Toda e qualquer separação aqui se dá, assim, apenas por didatismo, o que nos leva,
Deleuze e Félix Guattari acerca das três formas do pensamento ou da criação – a Arte, a
relação que despreza qualquer tipo de hierarquia e qualquer tipo de dependência entre
elas:
as três vias são específicas, tão diretas umas como as outras, e se distinguem
pela natureza do plano e daquilo que o ocupa. Pensar é pensar por conceitos,
ou então por funções, ou ainda por sensações, e um desses pensamentos não é
melhor que um outro, ou mais plenamente, mais completamente, mais
sinteticamente “pensado”.” (Id., p. 233)
mas sem síntese nem identificação. A filosofia faz surgir acontecimentos com
seus conceitos, a arte ergue monumentos com suas sensações, a ciência
constrói estados de coisas com suas funções. Um rico tecido de
correspondências pode estabelecer-se entre os planos. Mas a rede tem seus
pontos culminantes, onde a sensação se torna ela própria sensação de conceito,
ou de função; o conceito, conceito de função ou de sensação; a função, função
de sensação ou de conceito. E um dos elementos não aparece, sem que o outro
possa estar ainda por vir, ainda indeterminado ou desconhecido. Cada
elemento criado sobre um plano apela a outros elementos heterogêneos, que
restam por criar sobre outros planos: o pensamento como heterogênese. (Ibid.,
p. 324-235)
*
70
A ideia aqui, portanto, reside sobre a diferença entre “se afirmar a existência de
De modo que o que Restauro nos oferta opera como um dispositivo intelectual-
afetivo transindividual e transespecífico que é terreno fértil para recusarmos uma certa
pensamento onde “não se trata de imaginar uma experiência, mas de experimentar uma
exclusividade da Arte, muito pelo contrário: o próprio campo da Saúde Coletiva, imerso
em sua força instituinte e à luz de sua multiplicidade, veio experimentando outros modos
Historicamente, por outro lado, não é segredo que desde a gênese do campo
fenômenos, de maneira que o que interessava a[o]s cientistas do campo eram os aspectos
Interesse este que era alicerçado pela tese do aprimoramento eugênico do povo
objetivamente, que não só afastaria o humano de sua ignorância sobre o que e como
comer, mas que também atribuiria ao comer um valor eugênico. Determinante inclusive
conduzido pela razão científica dos nutricionistas, cujo papel era precisamente o de mudar
Esta matriz ideológica pregava que o mal do Brasil era a fome, e não a raça (Cf.
uma questão racial para uma questão sociocultural, ao menos até os anos 1950, quando
não centrado mais apenas no biológico (Cf. VASCONCELOS; BATISTA FILHO, op.
positivistas, que se contrapuseram, por sua vez, às noções “estruturalistas” que vão surgir
10
O campo nasce efetivamente enquanto campo da Nutrição, mas vou utilizar uma nomenclatura corrente
do campo: Alimentação e Nutrição. Para mais sobre a incorporação do “Alimentação” e uma história da
constituição do campo, cf. BOSI; PRADO, 2011.
72
processo que ficou conhecido como transição nutricional brasileira (Cf. MONTEIRO et
al., 2000; BATISTA FILHO; RISSIN, 2003; BATISTA FILHO et al., 2008;
olhares no campo da Alimentação e Nutrição que vai, cada vez mais, buscar novas formas
de abordar o ato de comer em sua complexidade e as relações entre fome, apetite e vida.
Seguindo nesta mesma direção, vale dizer que esse alargamento dos problemas do
movimento mediante o qual o campo (...) [foi] inocula[ado] por todos os núcleos de
saberes da Saúde Coletiva, ao mesmo tempo que nesta [deixou] suas marcas” (BOSI;
PRADO, 2011, p. 16), criando uma zona de mútua fertilização (Idem, p. 16) que abrigou
biomédico (Cf. MONTEIRO, 2009; SILVA et al., 2010; BOSI; PRADO, 2011;
LOUZADA et al., 2015) e que relacionava-se, portanto, ao já citado alargamento seja dos
73
problemas do campo, seja de sua percepção sobre o comer e as temáticas que o compõem
e o atravessam, temáticas essas que iam expandindo fronteiras também fora da Saúde.
PRADO, 2011; PRADO et al., 2011), e a qual se soma também uma visão crítica ao modo
como se tem pensado tanto a ciência no Brasil (Cf. BOSI; PRADO, 2011; PRADO et al.,
2011; NUNES et al., 2010), quanto a própria sociedade brasileira. Afinal, segundo uma
De todo modo, para além de toda esta criticidade é importante notarmos também
não só como resultado da interação entre o biológico e o sociocultural, mas como direito,
11
Brasil. Lei Orgânica de Segurança Alimentar Nutricional (Losan). Lei nº 11.346, de 15 de setembro de
2006. Responsável por criar o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN) que visa
assegurar o direito humano à alimentação adequada. Diário Oficial da União 2006; 18 set. Disponível em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11346.html. Acesso em 21/01/2021.
Além disto, cf. RECINE; VASCONCELLOS, 2011.
74
Desta forma, por mais óbvio que pareça, vale notarmos ainda que esta visão crítica
2005), pois
Elementos estes que nutrem, por sua vez, múltiplas concepções daquilo que
serviços alimentícios.
Seja ainda a busca pela saúde e pelo bem-estar individual que, em alguns
momentos, conjuga tanto a busca por um certo padrão estético-corporal que alia saúde e
beleza à magreza, quanto a fobia do envelhecimento, das calorias, das gorduras e das
compõem.
E a este cardápio poderiam somar-se ainda outros elementos como a busca por
cultural, midiática e biomédica sobre aquilo que se pode e se deve comer; os efeitos
Todavia, para além de situar como a própria abordagem sobre esses problemas e
florescimento tanto do campo em si, quanto do campo problemático correlato a ele, nosso
interesse não é o de meramente apresentar um cardápio cada vez mais amplo de elementos
que afetam, influenciam e determinam a conduta alimentar ou que compõem uma certa
cultura alimentar.
apenas um outro elemento a ser adicionado a este cardápio de fatores – em especial graças
apetece porque ela nos permite propor um deslocamento da categoria de cultura para o
Mais do que isso, esse deslocamento permite que proponhamos um outro, qual
seja, o de situarmos nossa empreitada para além do binômio Natureza-Cultura, visto que,
para além de uma noção estanque de cultura, a própria existência é produzida em meio a
76
problemático que nos permite torcer a ideia de cultura alimentar a partir de uma
perspectiva [est]ético-[cosmo]política.
O que é dizer, que muito mais que uma reles obra de arte, o Restauro, tanto quanto
epifania hippie, mas justamente aquilo que frutifica um campo problemático singular e
como indicamos no primeiro capítulo, quanto a ideia de problematização nos são muito
caros, seja porque não buscam uma experiência histórica neutra e invariante, seja porque
não implicam:
O que está na mesa, assim, é justamente o fato de que conceitos e práticas que são
centrais para nosso trabalho, como fome, apetite, o próprio comer e o alimento, não
princípio criativo, generativo e heterogenético, de tal maneira que uma questão central é,
especialmente porque:
[p]rimeiro, (...) não há mundo pronto para ser visto, um mundo antes da visão,
ou antes, da divisão entre o visível (ou pensável) e o invisível (ou pressuposto)
que institui o horizonte de um pensamento. Segundo, porque tomar as ideias
como conceitos é recusar sua explicação em termos da noção transcendente de
contexto (ecológico, econômico, político etc.), em favor da noção imanente de
77
James (op. cit.), existem múltiplos modos da experiência e, por muitas das vezes, não
estamos falando do mesmo mundo ou, para dizer de outra forma, do mesmo
agenciamento. O que não é dizer que, no frigir dos ovos, um mundo comum não exista,
mas sim que, em potência, sempre existe um mundo [in]comum cujos [novos] possíveis
podem ser absolutamente mais apetitosos do que aquilo já está sedimentado dentro de
uma certa cultura, pois, ainda que “o fardo da imaginação do Ocidente” (CUNHA, 2009,
p. 328) esteja sempre à espreita, “[h]á muito mais regimes de conhecimento e de cultura
seu “triângulo culinário”, é antes de tudo bom para pensar, estando ele sempre conectado
múltiplas perspectivas sobre ela, perspectivas estas que vão da sua abolição (Cf. GUPTA;
DE CASTRO, 1996) que, não por acaso, trazem à mesa elementos que permitem que nos
Solo fértil para todo um relacionalismo sem relativismo (Cf. PRADO Jr., 1997),
por agora o ponto que nos interessa comentar é que essa proposição fertiliza uma certa
que nos permite seguir saboreando seja outros entendimentos sobre a problemática da
cultura, seja nosso deslocamento para o conceito de agenciamento, seja ainda para
explorarmos ainda mais as frutíferas relações possíveis entre artes, saúde e filosofia.
Não por acaso, aliás, é em meio a essas frutíferas relações que convocamos a arte
da antropologia e cultivamos esse diálogo com ela, afinal, aquilo em que a antropologia
conecta a filosofia à antropologia, definida brilhantemente por Tim Ingold, como uma
filosofia “with the people in” (1992, p. 696) – sendo “people” uma alusão tanto às pessoas
possibilidade de “[u]ma filosofia com outros povos dentro (...), de uma atividade
filosófica que mantenha uma relação com a não-filosofia — a vida — de outros povos do
planeta, além de com a nossa própria” (VIVEIROS DE CASTRO, op. cit, p. 127), tanto
quanto com (outros) mundos (por vir), tais como aqueles que a arte invenciona, com
porque a antropologia não sabe de antemão o que é que constitui estes outros mundos e
79
para não dizermos nada dos perigos de simplificação, de epistemicídio e cosmicídio que
Isto é dizer que uma das lições que a antropologia nos traz é que o mundo
sobrecodificado dos princípios científicos não pode moldar e/ou achatar o mundo de
outrem para que este caiba dentro de seu tacho científico-metodológico. Ainda mais à
porque “o que varia crucialmente não é o conteúdo das relações, mas sua ideia mesma: o
que conta como relação nesta ou naquela cultura. Não são as relações que variam, são as
a própria arte de pôr problemas em relação: “não um problema único (‘natural’) e suas
diferentes soluções (‘culturais’) (Id., p. 117), mas a variação das relações sociais. Isto é,
radical do que seja o coletivo e do que seja o social, bem como do que é ou do que compõe
uma pessoa ou um sujeito, ou ainda do que é e do que compõe um alimento, tanto quanto
daquilo que o atravessa, é fortuito lembrarmos também de um plano muito peculiar a que
(…) não o horizonte relativo que funciona como um limite, [que] muda com o
observador e [que] engloba estados-de-coisa observáveis, mas o horizonte
absoluto, independente de todo observador, que libera o acontecimento como
conceito independente de um estado-de-coisa visível onde ele se efetuaria”
(DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 52).
antropológico se define pela sua “objetividade relativa” ou então, nos termos de Viveiros
de Castro, por sua “objetividade intrinsecamente relacional”. Ou seja, que para além das
algo que cabe de direito à antropologia, não é certamente a tarefa de explicar o mundo de
outrem, mas a de multiplicar nosso mundo. (VIVEIROS DE CASTRO, op. cit., p 132)
com conceitos e problemas vindos de outras áreas e campos como a arte, a filosofia, a
afim de criarmos condições para que possamos não só seguir ampliando horizontes, como
81
geral desses encontros e seu estatuto e hierarquia epistemológica, até mesmo porque
[m]ais urgente não (...) [nos] parece, tanto, defender uma cultura cuja
existência nunca salvou uma pessoa de ter fome e da preocupação de viver
melhor, quanto extrair, daquilo que se chama cultura, ideias cuja força viva é
idêntica à da fome. (ARTAUD, 2006, p. 1, grifos nossos).
Proposição essa que abre espaço para que questionemos e experimentemos o que
acontece quando se leva tais modos da experiência a sério, quer dizer, o que se pode
terra”? Ou então, qual o conceito de corpo que se pode colher a partir da proposição de
escultura ambiental? O mesmo para o conceito de saúde: que saúdes estavam ali em
de fome e de apetite? Em quais agenciamento ela nos lança? O que acontece, enfim, com
através do que está acontecendo é justamente o que Isabelle Stengers nomeou como uma
Ou seja, ao nos embrenharmos nessa ecologi(c)a, uma ferramenta não é algo que
para além das suas funções esperadas e pretensamente conhecidas de antemão, uma
ferramenta não seria requisitada por tal ou qual função, ou por um fim determinado
previamente ao acontecimento.
estabelece nele, como a tampa da panela que vira peso para que a receita não voe da
bancada, ou a toalha de mesa que vira guardanapo, o pano de prato que vira uma luva
Usar uma ferramenta, assim, nessa perspectiva, não é algo que depende de um
juízo. Uma ferramenta não carece do julgamento de uma situação que, mediante a devida
análise, justificaria o seu uso. Ela é sempre relativa à uma prática, o que é dizer que ela
emerge na relação, e não como a herdeira de uma mesmicidade que se arrasta e que
organiza seus usos e sua existência, menos ainda de um certo hábito, de um certo fazer
83
que sabe antecipadamente as suas funções, sua natureza e as suas (des)potências: a faca
de pão, a faca de mesa, a faca de peixe, a faca de ostra, a faca de manteiga, a faca de
O que Stengers traz à mesa com sua proposição é, então, a possibilidade de darmos
à uma situação, a um evento, o seu poder de, para além do mero reconhecer, nos afetar e
nos fazer pensar a partir do encontro, a partir da afecção. O que implica na própria
fertilização de um campo de potenciais onde esse poder, essa potência, esses potenciais
sutil a um olhar mais apressado, se engaja com a composição, em ato, de meios para que
um evento, para que uma singularidade nos arraste, para que uma diferença, a mais
mínima das diferenças, nos implique em um campo problemático que diz respeito, não
por acaso, à nossa vida e às próprias condições de nossa existência e de nosso por-vir.
noção de progresso que justifique seu passado como aquilo que leva ao nosso presente e
a um futuro já conhecido está fora de seu cardápio. Ou seja, nada de “primeiro temos de
fazer o bolo crescer para depois dividi-lo”, como se os meios justificassem os fins ou os
Numa ecologia das práticas, os meios justificam os meios, no sentido de que eles
que, como diria Whitehead, uma ocorrência alcance a sua satisfação, quer dizer, que uma
potência se atualize. O que inclui também o próprio praticante, afinal, como dissemos, o
84
pão faz o padeiro tanto quanto o padeiro faz o pão. E isso de uma tal forma que o nosso
trans-formação.
mais uma vez nesse ponto –, os potenciais e os devires, por mais que estejamos tratando
não tem qualquer ambição de descrever as práticas 'como elas são'; ela (...)
[v]isa a construção de novas ‘identidades práticas’ para as práticas, ou seja,
novas possibilidades de estarem presentes ou, em outras palavras, de se
conectarem. Ela, deste modo, não aborda as práticas como elas são – a física
[ou a medicina] como a(s) conhecemos, por exemplo –, mas pelo que elas
podem se tornar. (2005, p. 186, tradução nossa)
Ressoando, assim, Spinoza (2007), poderíamos dizer que se já não sabemos o que
pode um corpo, a pergunta que nos interessa agora é justamente: o que pode uma prática?
Quer dizer, quais são as suas potências? Como ela permite que uma diferença emerja? A
que(m) ela se avizinha? O que ela faz passar? O que ela produz? O que podemos pedir
dela? Com que(m) ela compõe? Qual agenciamento ela inaugura ou em qual
agenciamento ela se alia? A qual ecologia ela pertence? Qual seu ambiente? Qual seu
Pensar pelo meio, não por acaso, é aquilo que nutre uma ecologia das práticas.
Stengers inclusive afirma que ela é em si um exemplo de penser par le milieu, como dizia
Deleuze, de pensar pelo meio. E vale dizer que entendemos meio aqui na dupla acepção
do termo: seja enquanto arredor, enquanto habitat, seja no seu sentido espacial-geográfico
mais recorrente.
Mas o que é, então, pensar pelo meio? É pensar sem um horizonte definido e ideal,
sem uma teoria que dê ao pensamento o poder e a capacidade de separar algo de sua
A identidade de uma prática, seu próprio ethos, é então tributário da relação com
sua ecologia, com uma ocasião singular. De tal maneira que a questão é a de como criar
uma paisagem prática diferente, afinal, a própria maneira como definimos uma prática
faz parte do ambiente que a nutre, ao que se soma, ainda, o fato de que não sabemos o
Tampouco o que ela pode se tornar ou o que ela pode produzir em termos mais
amplos: cozinhar um prato predileto ou comer a comida preferida, por exemplo, é algo
que não se encerra em si, há ali uma série de outras dimensões, como aquele cheiro de
peixe ou de bolo, como dissemos, que nos lança, em espiral, a uma outra ecologia da
eminentemente artística em um primeiro momento. Mas que, como dito, não só anunciava
o que mais essa prática – a alimentar – pode ser (uma ferramenta escultórica do planeta),
como também criava uma paisagem prática outra onde o comer não remetia somente à
Uma paisagem aliás, muito mais complexa em termos processuais, dada sua
alimento a partir de um campo expandido, por práticas educativas que não tomavam o
um modo de experiencia que se baseava em uma relação indissociável entre tais práticas,
o que criou um meio para que essas diferentes práticas se fertilizassem, se (re)inventassem
princípio, algo fora do escopo da proposição, como por exemplo a própria produção, anos
O que é dizer, ainda nessa mesma direção, que uma crítica par le millieu, pelo
meio ou, ainda, que um pensamento orientado pelo processo, são atividades que se
também em favor do mundo, donde decorre o próprio entendimento de que uma prática
Assim, mais do que ser um elemento que diz respeito única e exclusivamente a
sempre prenhe de um vetor cosmopolítico. Ou seja, ela abre a vida para a sua diferença,
para a sua multiplicidade, para os mundos por vir. O que não só poliniza, diria Stengers,
a máxima cosmopolítica de que não estamos sozinhos no mundo, como também nos
seja do meio, seja do seu habitat, seja dos seus arredores e de toda sua ecologia –, é, assim,
a própria produção da diferença em ato, de tal modo que o ponto crucial da pragmática
(...) aquele que torna possível pensar para o mundo, mas não aceitá-lo
passivamente, é o fato de não sabermos como lobos e cordeiros podem tornar-
se capazes, como lobos e cordeiros, de se comportar em circunstâncias
diferentes. Este é o ponto das causas não pertencerem às pessoas. Elas
12
Para mais, ver jorggemennabarreto.com/Enzyme-Magazine. Acesso em 13/03/2021.
87
Isso implica, igualmente, que a ecologia das práticas é sempre correlata a uma
etologia, dado o próprio fato de que não existe uma etologia independente de uma
ecologia singular, da mesma forma que “[n]ão existe uma definição biologicamente
Seguindo nessa mesma direção, a autora afirma que para lidar com as práticas
(...) temos que aceitar o teste crítico de nos abster da poderosa droga da
Verdade. [E, d]e fato, no que diz respeito às práticas, o que vem primeiro é a
diferença etoecológica entre uma prática e seu exterior. Na "ecologia de
práticas" a prática implica primeiro que (...) seus praticantes não irão cruzar a
fronteira da prática que abordam sem uma transformação da intenção e do
objetivo daquilo que endereçam. (Id., pp. 188-189, tradução nossa)
O que é dizer que em meio a uma singularidade, cada parte que a compõe está
implicada de uma maneira distinta, com diferentes riscos e com diferentes desafios
próprios à sua especificidade. De tal modo que a ecologia de práticas nunca irá buscar as
dispõe e com as quais há de se compor, caso a caso, sem a ideia de que sabemos de
antemão o que está na panela ou no forno, o que é que importa e o que é que tem valor.
GUATTARI, 1995, p. 21), o ethos de quem pratica uma ecologia das práticas é, então, o
de quem resiste à tentação de justificar o que quer se faça em termos de razões universais
que devam ser admitidas independentemente de quaisquer fronteiras. O que implica que
uma prática, tanto quanto um conceito, são promiscuamente relacionais e que, nesse
sentido,
existam fronteiras entre diferentes práticas, o ponto que nos interessa é que “não existe
prática científica da Física que, tida como a primeira “ciência moderna”, descobriu e
89
definiu o que se convencionou chamar como ´realidade física’. De uma tal maneira que
poder social de igualar ataques contra a física com ataques contra a própria
racionalidade, (...) [mobilizando-o, retaliando e] produzindo a alternativa
aterrorizante – ou você está conosco e aceita a realidade física da forma como
a apresentamos, ou você está contra nós e é um inimigo da razão. (op. cit., p.
183, tradução nossa)
Ao embriagar-se nessa autoridade, essa prática da física não só perde de vista que
ela é uma prática social como qualquer outra, bem como que os elétrons ou os quarks são
que ela estabelece assim uma hierarquização sobre diferentes práticas, assumindo uma
posição de julgamento sobre outras realidades, inclusive sobre as que interessam à outras
eles [os físicos] sentem que, assim que deixarem a posição segura de alegar
que "descobrem" a realidade física além da mudança das aparências, eles ficam
indefesos, incapazes de resistir à redução do que estão produzindo à simples
receitas instrumentais ou à várias ficções humanas. Eles se tornam sujeitos ao
mesmo tipo de julgamento redutivo que usam contra todas as outras
realidades. (op. cit., pp. 183-184, tradução nossa, grifo nosso)
Ao invés, pois, de tornarmos uma prática reativa a partir da relação com o seu
outro, como se ela fosse proprietária da realidade, do corpo, do saber, da cultura, da saúde,
da natureza, de uma verdade, de um conceito, etc. O problema que nos interessa seguir
para lembrar de Foucault, com um pensamento do exterior: com uma outra ontologia,
com uma outra metafísica, com uma cosmologia, justa e precisamente porque “o que é
preciso saber é justamente o que não se sabe” (VIVEIROS DE CASTRO, op. cit., p. 135).
mesma coisa? Quer dizer, estamos tratando do mesmo conceito de fome? Ou ainda,
90
antemão o que a fome é? E se perguntássemos o que ela pode ao não olharmos para ela
apenas a fim de reconhecer seus efeitos mais conhecidos e esperados? Ou, no limite, o
que ela permite produzir ao compor com um outro agenciamento, ao habitar uma outra
Pois bem, se trazemos todas estas questões é precisamente porque uma ecologia
de práticas envolve “[a]bordar uma prática (...) conforme ela diverge, isto é, sentindo seus
limites, experimentando com as questões que os [seus] praticantes podem aceitar como
relevantes, mesmo que não sejam suas próprias questões” (STENGERS, op. cit., p. 184,
tradução nossa, grifos nossos). O que implica a própria “exigência de que nenhuma
prática seja definida como "como qualquer outra", assim como nenhuma espécie viva é
tecnologia social onde as práticas não devem ser defendidas como se fossem fracas,
uma prática é nutrida, fundamentalmente, pela experiencia e que, portanto, ela não existe
por si só, como se fosse algo que pudéssemos buscar na despensa: tipo keto, paleo, low
Uma prática inventa a si e a seu praticante a partir das necessidades postas para e
[o] problema para cada prática é o de como nutrir sua própria força, de tornar
presente o que faz os seus praticantes pensarem, sentirem e agirem. Mas é um
91
problema que pode também produzir uma união experimental entre as práticas,
uma dinâmica de aprendizagem pragmática do que funciona e como funciona.
Este é o tipo de ‘meio’ ativo e estimulante de que as práticas precisam para
poder responder a desafios e experimentar mudanças, ou seja, para desdobrar
sua própria força. (Ibid., p. 195, tradução nossa, grifo nosso)
Uma prática, assim, está sempre imersa em uma ontologia dos acontecimentos e
das relações, onde “[a] ambivalência, a ambiguidade, a incerteza, a plasticidade não vêm
Bruno Latour, não por acaso, situa a existência de ao menos duas vertentes
ou menos arbitrárias a uma realidade que jamais se poderá reconhecer (...), [e] a da
natureza, a dos objetos sem história sempre já presentes e que os humanos se contentariam
questão epistemológica e à própria historicidade das coisas é o fato de que todo e qualquer
acontecimento só pode ser definido pelas suas relações. Pensemos no próprio exemplo
fermento, estamos ao mesmo tempo, fazendo a história do fermento e de seu Pasteur, pois
[s]em Pasteur, sem a filtração, sem o tubo recurvo, sem o ato de semear num
meio de cultura, a fermentação jamais seria ‘manifesta’. Ela conheceu outras
existências antes de 1857, alhures, mas sua nova concrescência[, a sua nova
atualização] na Faculdade de Ciências de Lille, entre as mãos de um químico
ambicioso novo em folha, oferece-lhe uma nova existência, única, datada,
localizada, feita em parte de Pasteur – ele mesmo transformado por sua
segunda grande descoberta – e do laboratório – ele mesmo corpo e espírito de
Pasteur, inteligência distribuída, teoria materializada nos instrumentos,
assembleia muda e materializada de toda a química havia cem anos. (Ibid., p.
16)
O ponto, portanto, é que todos coalescem nessa mistura e, mais do que isso, ao
contrário das ideias mais (re)correntes sobre natureza, sobre transcendência e sobre
a cosmologia do processo nos permitem é, seja operar em simetria, seja entender que a
Claro está, então, que não existe em nossa perspectiva nenhum essencialismo,
justa e precisamente porque cada entidade se define apenas pelas suas relações e que, caso
variação, transformará por completo sua composição, da mesma maneira que o fermento
(de Pasteur) jamais será o mesmo depois de 1857, assim como (o) Pasteur (do fermento),
exatamente, para usar os seus próprios termos, não o que foi – quer dizer, aquilo que
atualizou (um pão, por exemplo) –, mas o desconhecido no possível, ou seja, aquilo que
quando em face daquilo que Whitehead nomearia concrescência, isto é, em face de sua
atualização.
Neste sentido, não por acaso Latour não fala de uma descoberta, nem de uma
exige que se lhe dê o estatuto de mediação, quer dizer, de uma ocorrência que
não é de todo causa, nem de todo consequência, nem completamente um meio,
nem completamente um fim. Pasteur pode ser entendido como um
acontecimento do fermento porque é imprevisto, exterior à série de heranças
que até então definiam a ‘sociedade’ do microrganismo, sua trajetória, sua
linhagem. (...) Correlativamente, a presença durável de um fermento associável
à fermentação, à atividade química de um ser vivo, constitui para Pasteur, uma
encruzilhada decisiva tanto de sua carreira, como de sua pessoa. Quanto aos
químicos, ao aceitar Pasteur e seu fermento, tornam-se, numa tradução
decisiva, bioquímicos. Nenhum ingrediente, é fácil compreender, entra em tais
relações sem nelas se refundir. (op. cit., p. 21, grifo nosso)
O fermento muda, de/sta forma, sua história em contato com Pasteur (e seu
laboratório, e a Faculdade, e o laboratório, e... e... e...) precisamente porque o que Pasteur
fez foi dar a um acontecimento a possibilidade de expressar-se. Ou, dito em outros termos,
composição, (i)novassem.
Neste mesmo sentido, tomando um outro exemplo vindo do diálogo com a arte,
pensarmos em sua peça 4’33” onde, ao admitir silêncios, ruídos e barulhos como
Ao criar uma situação estética onde não só a música se tornou outra coisa, como
elas (a música, a escuta, bem como com os sons), o encontro de Cage com o silêncio, o
zen e os arranjos sociotécnicos de sua época abriu um campo fértil para que se perguntasse
o que mais a música poderia ser ou, no limite, o que mais a relação entre arte e vida
poderia ser.
94
Neste mesmo sentido, Cage adicionou mais e mais à sua prática artística os
mutações, que integrou todo um ferramental que criava condições para que se colocasse
Cage, aludindo à sua ecologia (d)e práticas é precisamente porque, em favor da noção de
como “fazer com que nossas ações intencionais sejam relacionadas às ações não-
O que é dizer que, para conectarmos essa discussão ao início de nosso sub(e)strato,
a ecologia das práticas é uma ferramenta preciosa para colocarmos práticas e ações em
relação a partir de uma perspectiva que não é, como no caso de Cage, a do artista. Mas
efetivamente a perspectiva dos fluxos da vida, a perspectiva do mundo, dos mundos por-
vir.
95
o som está atuando. E eu amo a atividade do som. O que ele faz é ficar mais
alto e mais baixo, mais agudo e mais grave, mais longo e mais curto. Faz isso
tudo. E estou completamente satisfeito com isso. Não preciso que o som fale
comigo. Não vemos muita diferença entre tempo e espaço. Não sabemos onde
um começa e onde o outro para.13
the author is not me, is chance (o autor não sou eu, é o acaso) diria Marcel Duchamp –,
cara ao império da interioridade soberana do sujeito. De modo que há, então, “[n]ão uma
tentativa de entender algo que está sendo dito pois, se algo estivesse sendo dito, o som
Mas de efetivamente atentarmos “apenas à atividade dos sons, donde aqueles que
estão envolvidos com o processo de composição encontram caminhos e meios para não
interferirem na atividade dos sons” (Id., p. 10, tradução e grifos nossos). O que é dizer
que, contrariamente à uma ideia mais recorrente de compositor, Cage não dita ou organiza
o que são os sons, mas é feito por eles, tanto quanto Pasteur e seu fermento.
máquina expressiva, isto é, relativo não à uma significação e sim ao fazer com que uma
força emerja de modo sensível, nos aproximamos mais uma vez não só de Whitehead e
sua crítica do puro sentir, como também das proposições de Latour que, ressoando tanto
Cage, quanto a filosofia do processo e todo seu ativismo, afirma que é preciso que
13
Transcrição de entrevista de John Cage no filme Écoute de Miroslav Sebestik. Tradução nossa.
96
Ao atribuir, pois, aos não-humanos uma personalidade intencional que até então
era reservada apenas aos humanos, essa proposição simétrica inverte o princípio, o
principiar antrópico, “faze[ndo] os cientistas entrarem na história das coisas. [Ou seja,
abandonarmos a ideia de causalidade numa estrita relação com o par matéria-forma, nos
causa que não está em nenhum outro lugar senão no efeito que ela produz
quando presente, isto é, quando fomentada. E este efeito não é o de 'tomar
consciência' de algo que outros já sabiam, de compreender alguma verdade
além das ilusões - seu efeito é o de ativar [enact] a relação entre pertencer
[belonging] e tornar-se [becoming], produzindo pertencimento como
experimentação (STENGERS, op. cit., p. 195, tradução nossa, grifo nosso).
Estamos, assim, sempre “rio abaixo, rio a fora, rio adentro”” (ROSA, 1972, p. 56),
(Id., p. 49): “rio abaixo, rio a fora, rio adentro”. Não há, pois, trilha, mas o próprio
caminhar, afinal, “caminhante, são teus rastros o caminho, e nada mais; caminhante, não
trás, vê-se a senda que jamais se há de voltar a pisar” (MACHADO apud CATALÃO,
2002).
Cada evento então, caso a caso, é em si uma causa, um caso-causa. Cage, por
expressar o que quer que fosse por meio dela e de realizar uma estrutura formal – , oferta,
a partir de sua ecologia de práticas, um campo, um habitat onde se efetua uma escuta que
não mais opera como receptora de uma música dada a priori, mas que, ressoando
Machado, age como um meio, como uma escuta compondo o que se ouve: “o caminho se
faz ao caminhar”.
O que nos interessa, portanto, é ofertar um meio para que as questões que
uma outra ecologia. O que é dizer que cultivar e polinizar essa eco-lógica que nos é tão
serem expostas a um outro habitat, a um meio que as deslocam de seu tradicional habitat
O que não é dizer, tenhamos isto claro, que se trata aqui de atacar ou destruir as
práticas” (MASSUMI apud STENGERS, op. cit., p. 183, tradução nossa), o que uma
prática pode, em ato, a partir da composição com outras ecologias, com outros habitats,
Cusa, remete ao possest: “a identidade da potência e do ato pelo qual se define alguma
coisa (...) [que] não [se] defin[e] (...) por sua essência, o que ela é, [mas] (...) por esta
definição bárbara, o seu possest: o que ela pode. Literalmente: o que ela pode em ato”
(DELEUZE, 1980)
mãos, como a problemática da alimentação devém com elas, ou seja, como ela se
98
suas próprias práticas. De tal modo que a pergunta mais preci[o]sa é, ao assumirmos que,
como dito anteriormente, o que é preciso saber é justamente o que não se sabe: o que mais
Não há, assim, prática que seja desconectada de toda uma ecologia de práticas e,
seguindo nesta mesma toada, podemos dizer também que não há uma epistemologia que
não seja tributária de uma ontologia ou, mais ainda, de uma certa cosmo-lógica, da qual,
inclusive, o próprio campo de potenciais que nutre uma prática emergente é correlato.
Natureza-Cultura, mas agora tomando como ponto de partida a noção de natureza. Noção
essa que, em um primeiro momento, poderia até parecer mais simples de ser abordada,
dado um entendimento mais usual e uma ideia mais geral do que ela pode ser: o fogo, a
água, a terra, o ar, o vento, as pedras, as árvores, os animais, as plantas. Ou seja, o meio
ainda um outro modo: aquele que a toma como uma força, como uma força expansiva
que cresce e subjuga o que estiver à sua frente. Uma força da qual devemos nos proteger
à guisa de risco de vida, como o caso de furacões, tufões, tsunamis e outras intempéries.
A rigor, o que se nota já de saída é que, tal qual como ocorre com a palavra fome,
há uma abertura no sentido do conceito de natureza ou, nos termos de Whitehead, há uma
100
bifurcação da natureza (1978): existe uma natureza que é subjetiva e uma outra que é
objetiva. Essa é atrelada à visão universal da ciência sobre o universo e seus princípios,
enquanto aquela, à nossa ideia mais usual de natureza como meio ambiente; essa atrelada
à uma certa verdade universal sobre o que é o universo e a natureza ela mesma, e aquela
Esta bifurcação, diria ainda Whitehead, é o que sustenta práticas científicas nos
mais diversos campos, que se nutrem, não por acaso – literalmente –, dessa mística da
governável.
ressoam essa bifurcação entre uma natureza que media e que comunica e uma natureza
mediada e comunicada (Cf. MURPHIE, 2019, p. 22), como se a percepção humana desse
conta de apenas um tipo de natureza, essa natureza apreensível, enquanto o mundo além
O que nos remete ao próprio fato de que há uma tendência em nossas práticas de
para lembrarmos de Foucault (1979), que nos mostra como, em meio à reorganização
Para além, pois, desta distinção entre uma natureza viva (a nature alive) e uma
seja, ela não diz respeito à uma natureza distinta, mas ao cosmos.
o próprio subtítulo de “Processo e Realidade” (1978), uma de suas principais obras, ser
dizermos, como nos mostrou Stengers, fundamentalmente duas coisas: uma que é que
agora tudo que existe importa (lembremos da panificação); e outra é que o Cosmos não é
somente um apanhado de tudo o que existe, ele não é um mero sinônimo de universo. Ele
florestidade).
E dizer que ele possui esse valor inerente a si é dizer, de outro modo, que aquilo
que existe é, nesta perspectiva do processo, parte de uma aventura cósmica. O que é
consideravelmente diferente de dizer, claro está, que o que o pensamento deve fazer é,
segundo uma certa perspectiva científica, se debruçar sobre a ordem da natureza e das
coisas.
102
(cosmo)políticas das mais nutritivas: o que é que acontece quando tudo efetivamente
importa e tudo tem valor? Ou, dito de outra maneira, o que é que importa em cada um
desses modos de abstração? O que é que muda ao nos engajarmos com cada um deles?
Quais os valores em questão? O que é que vale, então, quando dizemos que somente a
também precisam se transformar, bem como aquilo que é valorizado na vida, aquilo que
cabe ou pode se expressar no mundo (BUTLER, 2015) e que, no limite, cultiva outro(s)
mundo(s).
nosso avizinhamento com a etnologia e a história e que nos ajudarão a engrossar essa
nossa discussão.
Lévi-Strauss (1999) remete aos encontros ocorridos no século XVI entre indígenas e
espanhóis nas Grandes Antilhas, bem no período de invasão das Américas, nome, a
propósito que é já herdeiro e tributário desse processo colonial de invasão pela, para
lembrarmos de Caetano Veloso, máquina mercante vinda da Europa. Diz Strauss que:
Bom, com isto posto e não perdendo de vista que uma das questões centrais da
ecologia de práticas é a de ofertar um outro habitat para uma prática para que ela possa
transformar-se, agora, sob esta perspectiva construtivista e à luz desta anedota, mais do
que nunca se trata também de assumir não só que temos que cuidar de nossos modos de
abstração, como precisamos de novos modos para evidenciarmos aquilo que importa
O que no caso de nossa anedota corresponde ao fato de que nesse encontro entre
possuíam alma (são eles animais?); para estes o que estava em jogo era saber justamente
Se para uns, pois, todos tinham corpo e o que estava em questão era a alma, para
os outros, todos tinham alma, mas o que estava em questão era que tipo de corpo o outro
tinha. E não por acaso, e este é o ponto que nos interessa neste momento, ambas as
interessava, o que valia, não era a mesma coisa, pelo contrário: os conceitos eram
definitivamente outros.
quando Umoro, jovem indígena da etnia Kayapó, filho mais velho de Raoni, líder dos
Kayapó Mentuktire, foi encontrado morto próximo à Base Jacaré no Parque Nacional do
Xingu.
Umoro havia sido enviado ao Parque para morar com os Kamayurá afim de ser
tratado pelos seus xamãs daquilo que os médicos não-indígenas diagnosticaram como
104
epilepsia e que, em um outro momento, anos antes, havia feito com que Umoro fosse
acusado de ter matado dois índios em sua aldeia natal, há 500 km do Xingu, na reserva
havia duas versões para o ocorrido: uma era a de Raoni e Megaron, mentuktire que à
época trabalhava junto à Fundação Nacional do Índio e era sobrinho uterino de Raoni, e
Enquanto estes defendiam que Umoro havia saído para pescar sozinho e que de
fato havia morrido por conta de um acidente fruto de um de seus ataques (que fez com
que ele caísse no rio e morresse afogado); Raoni e Megaron acusavam os Kamayurá de
assassinato, pois não só havia marcas no rosto de Umoro que indicavam que ele poderia
ter morrido com uma flechada ou com um tiro. Como, mais do que isso, havia também
indícios de feitiçaria, indícios esses corroborados pelo fato de que os Kamayurás não
avisaram Raoni da morte de seu filho e tampouco tentaram encontrar seu corpo, que foi
achado pelo próprio Raoni dias depois, boiando em um rio no interior do Xingu.
pé de guerra, a ser declarada mediante os resultados de uma pajelança que seria feita no
local onde o corpo de Umoro foi encontrado após o período de luto mentuktire e
determinaria seja a causa de sua morte, seja os próximos passos a serem tomados. E que,
dada a acusação de Raoni e Megaron, e a possibilidade de a morte ter sido provocada pela
Folha de São Paulo14 para onde, dias depois, Megaron enviou uma carta ventilando sua
versão dos fatos ocorridos com Umoro. Dizia Megaron em sua carta, e aqui cito relato de
[o] rapaz morreu porque foi enfeitiçado pelos Kamayurá. É verdade que ele
matou duas pessoas antes de morrer, mas isso foi porque ele achou que estava
matando animais; os pajés (...) deram um cigarro para ele e ele achou que
estava matando bicho. Quando voltou a si, viu que eles eram humanos e ficou
muito triste. (apud SZTUTMAN, 2008, p. 35)
E o que este exemplo nos mostra? A rigor, convocando uma ideia muito cara ao
conceito de cosmologia, que aquele que pensa está absolutamente implicado na natureza,
sem distanciamento. Diferentemente de uma perspectiva que cinde sujeito e objeto, que
cinde natureza e cultura, e onde a natureza está aí para ser conhecida, descoberta e
Ou, mais precisamente, por diferentes culturas que se debruçam sobre um mesmo
e único mundo, sobre um mesmo e único objeto: a natureza, que varia a partir de uma
Outro motivo é porque ele, assim como o nosso primeiro exemplo, ao pôr
relações entre eles – como no caso dos kamauyrá, cujo modo de pensamento aliou-se ao
modo, à ciência, não-indígena –, quanto o contraste entre diferentes práticas que, mesmo
Como por exemplo no caso dos Krenak que, entre tantos outros povos indígenas
no Brasil, tem vivido uma escalada nas tensões com o Estado brasileiro e suas políticas.
14
Cf. https://documentacao.socioambiental.org/noticias/anexo_noticia/36219_20160608_145657.pdf.
Acesso em 05/02/2021.
106
Políticas estas que, em muitos sentidos, contribuem e lançam condições para um projeto
Samarco, controlada pelas multinacionais Vale e BHP Billiton – rompeu e lançou rejeitos
rio Doce, “que nós, os Krenak, chamamos de Watu, [é] nosso avô, é uma pessoa, não um
recurso, como dizem os economistas. Ele não é algo de que alguém possa se apropriar; é
uma parte da nossa construção como coletivo que habita um lugar específico” (KRENAK,
2019, p. 21). O que implica que os efeitos de todo o material tóxico que desceu da
(...)[, como] atingiu as [suas] vidas de maneira radical, [os] colocando na real condição
Mundo este onde falar de natureza é falar, portanto, não a partir de uma bifurcação
e de vida, onde, não só o sagrado conta, como a natureza é outra coisa, bem como o
humano. O que evidencia, mais uma vez, como os conceitos são outros, a exemplo do
[que] é constituído por dois termos: um é a primeira partícula, kre, que significa
cabeça, a outra, nak, [que] significa terra. Krenak é a herança que recebemos
dos nossos antepassados, das nossas memórias de origem, que nos identifica
como “cabeça da terra”, como uma humanidade que não consegue se
conceber sem essa conexão, sem essa profunda comunhão com a terra. (Ibid.,
p. 24)
Nessa conexão e nessa comunhão, pois, a natureza não é aquilo que está lá,
científica, ou seja, “[n]ão [é] a terra como um sítio, mas como esse lugar que todos
107
compartilhamos” (op. cit., p. 24) e que vai, muito além, portanto, de todo um modo de
contrastes entre diferentes modos da experiência evidenciam como o que importa, o que
está em jogo em cada situação, e o que cabe na vida é absolutamente diferente. O que
humano e não-humano.
O que nos remete também, vale dizer, à própria proposição da escultura ambiental
e ao borramento entre corpo e terra que ela cultiva. O que reforça ainda mais o nosso
ponto de que, ao nos situarmos nos limiares entre epistemologia e ontologia, entre modos
não-humanos. O que cascateia, no fim das contas, em uma série de implicações na própria
Mais do que isto, se buscamos trazer tais exemplos é porque essa perspectiva
construtivista que atravessa a cosmologia do processo e que nos nutre trata, ao invés de
uma mera crítica, de trazer elementos para criarmos modos de pensamento ou, para
abstração que estejam, como apontamos em outra ocasião, a favor da vida e que não
anulem a perspectiva do outro, sua posição e seu mundo, bem como a própria perspectiva
onde, ao invés do julgamento, questiona-se: “o que essa posição torna importante?; quais
aspectos tem importância [nela]?; como eles importam? como isso justifica a negligência
[frente aquilo que] não importa? quais são as consequências de tais justificativas?”
O cosmos do processo não busca, assim, uma verdade absoluta a ser descoberta e
desvelada. Pelo contrário, ele se presta a ofertar um dispositivo conceitual a partir do qual
Afinal, se há alguma coisa que é central para um pensamento processual é, como vimos
Whitehead.
109
Em uma perspectiva que não se orienta, portanto, pela busca de contradições, mas
perguntar quais são as outras possibilidades ou, mais exatamente, quais são as
processo busca germinar um campo de potencias onde a questão é sempre a de não limitar
possível em uma metafísica que afirma que tudo o que existe deve ser considerado não
essencialmente pela sua duração, pela sua persistência, mas pelo seu devir: como a
atualização de um potencial que produz uma diferença, um contraste entre o que poderia
de todas as entidades é a criatividade do cosmos, de tal forma que o que existe é uma
E é a esse nós que está no mundo, quer dizer, é a esse isso que existe que
Whitehead nomeia como entidades atuais (actual entities): entidades que transformam a
potencial. Relevância esta que não diz respeito à entidade em si, mas efetivamente ao
Afinal, para Whitehead, o modo como uma entidade atual devém é precisamente aquilo
E por que esta é uma questão relevante? Porque ao assumir que uma entidade não
pode ser explicada por outra, e que nada pode ser explicado a partir de um argumento
de uma entidade, protegendo qualquer devir contra a sua redução imediata à uma função
de outra coisa. Como se, por exemplo, reduzíssemos as potencias de uma prática à uma
única função ou um certo conjunto de ingredientes à uma única receita de bolo, como no
E, com efeito, se essa discussão nos parece tão saborosa é porque, de um lado, ela
não assume que uma coisa, seja lá qual for ela, existe de antemão. E, por outro lado, que
ela não só não existe de antemão, como ela também não é soberana. Quer dizer, não há
uma coisa ou um sujeito decisivo, posto que, no fim das contas, o sujeito é uma
Cage, não só pela ideia de algo como uma dessubjetivação, como também do próprio fato
uma oportunidade para um novo devir, para uma transformação original, por mais mínima
e é (a)crescido pelo um” (1968, p. 21, tradução nossa): n+1. Ou ainda, para lembrarmos
de uma passagem de Cage que parafraseamos em um outro momento: não há som que
tema o silêncio que o extingue, do mesmo modo que não há silêncio que não esteja
grávido de outros sons. Isto é, não há forma atualizada que não esteja implicada no
processo de devir[-outro].
Se não há, assim, produção da existência que não signifique a produção do novo,
ao abrir mão de uma organização prévia do que a vida pode ou deveria ser, aquilo que
sedimentado. O que interessa, então, para lembrarmos do início de nossa conversa, não é
uma ordem em si, uma organização per se, mas a capacidade que uma entidade tem de
abrigar e canalizar novidades a fim de criar uma nova ordem, uma nova composição, uma
nova sociedade.
Esta mirada implica, deste modo, que as questões sejam postas sempre em relação
cosmos possam se expressar. Não se trata, neste sentido, de uma lógica da modificação
avaliar o que é que bloqueia um processo, aquilo que interrompe um fluxo de devir, ou
seja, que organiza as relações de uma tal maneira que não só torna o campo de potenciais
início deste estrato, também é alvo de uma certa bifurcação em seus sentidos: de um lado,
112
uma fome que se aproxima de uma ideia de necessidade, correlata à uma base mais
material do alimentar-se, do nutrir-se, etc.; e, do outro, uma fome que se aproxima de uma
ideia de desejo, correlata, por sua vez, ao menos inicialmente, à vontade de comer.
múltiplos sentidos de fome que podemos encontrar a partir das fomes que atravessaram o
Sustentável que integra a Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas, tanto quanto
dos mundos e dos processos que elas alimentam ou que, no limite, incidem sobre.
O ODS #2, por exemplo, visa precisamente “acabar com a fome, alcançar a
15
segurança alimentar e melhoria da nutrição e promover a agricultura sustentável” e,
não por acaso, ele convoca e opera sobre um sentido mais corrente de fome. Bem como
arregimenta práticas mais usuais ligadas a esta temática – sejam elas científicas, políticas,
sociológicas, alimentares, nutricionais, etc. –, e que nos remetem, imediatamente, aos três
comer foram se transformando ao longo da história destes campos, assim como o próprio
campo problemático onde elas estão implicadas, é importante não perdermos de vista que
alimentares.
15
Para mais, cf. https://nacoesunidas.org/pos2015/agenda2030/. Acesso em 12/02/2021.
113
Se, então, como disse Artaud, não podemos perder na mera vontade de comer as
potências da fome, não podemos também ignorar, para pormos em ressonância o como
de Whitehead e o como de Foucault, que essa bifurcação nos sentidos da palavra fome
problema fome.
Quer dizer, ela não está desconectada de todos os efeitos que gera e que permitem,
evidenciar, ao menos explorar e questionar, aquilo que governa este acontecimento e que,
segurança que emergiram na Europa nos séculos XVII e XVIII, justamente quando se
fome que podemos notar que esta bifurcação nos seus sentidos acontece correlatamente à
uma outra dissociação também bifurcante que envolve, por sua vez, tanto uma série de
problema fome, bem como sobre as tecnologias que buscaram conforma-lo, coloniza-lo,
aponta para o fato de que também foram se criando condições para a emergência de, para
cuja principal novidade foi a criação de um outro modo de abstração, de uma outra
[d]esde então (...) já não há escassez alimentar. Não vai mais haver escassez
alimentar como flagelo, não vai mais haver esse fenómeno de escassez, de
fome maciça, individual e coletiva que evolui exatamente ao mesmo passo e
sem descontinuidade, de certo modo, nos indivíduos e na população em geral.
Agora já não há escassez alimentar no que concerne à população. Mas o que
isso quer dizer? [Quer dizer que] já não haverá escassez alimentar em geral,
desde que haja para toda urna série de pessoas, em toda urna série de
mercados, urna certa escassez, urna certa carestia, (...) uma certa fome, por
conseguinte, e afinal de contas, é bem possível que algumas pessoas morram
de fome. Mas é deixando essas pessoas morrerem de fome que se poderá fazer
da escassez alimentar urna quimera e impedir que ela se produza com aquele
caráter maciço de flagelo que a caracterizava nos sistemas precedentes. (...)
A escassez-flagelo desaparece, mas a escassez que faz os indivíduos morrerem
não só não desaparece, como não deve desaparecer” (Id., pp. 55-56, grifos
nossos)
Ao considerarmos, assim, estes dois níveis de fenómenos que Foucault nos mostra
que:
Isto implica, deste modo, uma lógica biopolítica16 (Cf. FOUCAULT, 1979, 1988,
1999) que não só varre a ideia de devir do mapa como, efetivamente, governa e administra
o próprio Mapa Mundial da Fome17, que inclui países onde ao menos 5% de sua
Instrumentos estes que podem ser tomados, sob esta perspectiva biopolítica, como
dispositivos que não só operam um certo tipo de racismo em certos cortes populacionais
(Cf. FOUCAULT, 1999), como são também responsáveis por ativar o mecanismo de
gestão das taxas e do nível instrumental citado por Foucault em seus estudos.
Posto isto, e muito embora não pretendamos mergulhar em uma análise biopolítica
da fome aqui, neste momento, tomamos a liberdade de fazer este breve comentário pelo
fato de que há pouco o Brasil era considerado um país de referência em políticas sociais
de combate à fome seja pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a
defendiam, inclusive, que o país poderia atingir a fome zero até o ano de 2030.
16
Vale situarmos que biopolítica não é um conceito estanque e encerrado em si mesmo, muito pelo
contrário. Em suas iterações mais comuns na filosofia contemporânea, ele procede dos estudos histórico-
políticos de Michel Foucault, mas seu desenvolvimento, seus usos, seus sentidos e sua problematização
floresceram mesmo após a morte deste pensador que, ainda assim, é nosso ponto de partida (Cf.
FOUCAULT, 1979, 1988, 1999). Ademais, vale indicar também que este ferramental, ainda que estranho
ou intragável em um primeiro momento para alguns, não só já têm se avizinhado da produção crítica acerca
da problemática da alimentação e da nutrição nos campos da Saúde Coletiva e da própria Alimentação e
Nutrição (Cf. BOZI, 2009, 2015; BOSI; PRADO, 2011; KRAEMER et al., 2014), como opera
deslocamentos potentes para pensarmos questões caras ao campo da Saúde.
17
Ver https://brasil.elpais.com/brasil/2018/07/14/politica/1531600016_303294.html?id_externo_rsoc
=FB_BR_CM. Acesso em 15/07/2018.
18
Cf. “Panorama da Segurança Alimentar e Nutricional na América Latina e no Caribe 2017”, disponível
em http://www.fao.org/3/a-i6977o.pdf. Acesso em 12/02/2021.
116
organizações internacionais e do próprio Estado que enunciavam que a fome não era mais
um problema no país.
voltou a assombrar o país em meio à crise que o atravessa e que compõe a própria
largos no sentido de não só garantir o lugar do país no Mapa Mundial da Fome como,
do necroliberalismo brasileiro20.
Experiencia esta que, por sua vez, indica seja a consolidação de deslizamentos nas
tecnologias do poder que reconfiguram a tensão entre fazer viver, fazer morrer e deixar
morrer de uma tal forma que, como dissemos em outra ocasião (Cf. MILONOPOULOS,
2014, p. 95) o matar não se relaciona mais somente ao assassínio direto, mas também com
tudo o que pode ser assassínio indireto: expor à morte, expor ao risco de morte, multiplicar
19
Cf. “Relatório Luz da Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável”, disponível em
http://actionaid.org.br/wp-content/files_mf/1499785232Relatorio_sintese_v2_23jun.pdf . Ver também
https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/07/23/Como-o-Brasil-saiu-do-Mapa-da-Fome.-E-por-que-
ele-pode-voltar e https://oglobo.globo.com/economia/fome-volta-assombrar-familias-brasileiras-
21569940. Acesso em 12/07/2018.
20
Cf. ”Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil”,
realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede
Penssan). Disponível em http://olheparaafome.com.br/. Ver também “Pesquisa revela que 19 milhões
passaram fome no Brasil no fim de 2020, disponível em https://agenciabrasil.ebc.com.br/
geral/noticia/2021-04/pesquisa-revela-que-19-milhoes-passaram-fome-no-brasil-no-fim-de-2020. Acessos
em 10/04/2021.
117
o risco de morte por meio da expulsão, da rejeição, da segregação, ou até mesmo por
problema; de como ele foi sendo modificado, atualizado e configurado ao longo do tempo
por práticas as mais diversas que, no limite, nutrem um modo de abstração onde a fome
passou ser lida por uma lupa biomédica. O que nos permitiria inclusive questionar se a
Quer dizer, ainda neste como-como, isto é, neste exercício de uma conversa entre
fluxo de devir em favor do governo e da dominação, nos parece que a desnutrição – bem
deficiência crônica de energia, déficit energético e etc. – produz algo que, no contraste
sua abertura a outros sentidos, como no caso do Restauro, nos parece que veio conjurar
Perigos e efeitos estes que passaram a ser exibidos de forma organizada, explícita,
médica, como algo a ser exibido por trás das grades ou pelas lentes das câmeras, sempre
PÉLBART, 1989).
118
mecanismos de poder, uma certa história [a ser feita] destes mecanismos, pelos quais a
fome foi não só inventada enquanto problema, objeto e conceito, mas, na dança com seu
cujo alvo era a fome e cuja própria existência passava a ser tributária dele e de seu
se agrega como um dos vetores que compõem a linha de morte que atravessa a
contemporaneidade e que alimentam a quimera da fome para impedir que ela se reproduza
sobre a população com um caráter maciço de flagelo, enquanto uma série de indivíduos
enfrenta este problema na sua realidade cotidiana, estando inclusive à mercê da morte ou
mencionado da fome: a fome enquanto vontade de comer. Ou, dito de outra maneira, a
fome enquanto desejo, isto é, a fome enquanto potência (onto)criativa. Sentido este que
21
Cf. https://oglobo.globo.com/sociedade/30-das-familias-das-classes-e-no-brasil-passaram-fome-
durante-pandemia-alerta-unicef-24793066. Acesso em 10/02/2021.
119
Há, pois, muito mais problemas entre a “Saúde” e o “Coletivo” do que sonha nossa
vã cosmologia e a esta altura já notamos como conceitos muito caros para nós, como por
exemplo, vida, humano, saúde, experiência, coletivo e, claro, corpo, são tributários de
uma cosmologia. O que é dizer, em outros termos, que não há, em uma perspectiva
importa, uma das operações mais específicas que uma cosmo-lógica pode produzir é
justamente, como dissemos anteriormente, definir aquilo que importa e que cabe na vida.
O que implica, no limite, a abertura e a expansão do cosmos ou, ainda, seu fechamento,
empobrecimento e enclausuramento.
O que, não por acaso, fica muito claro na crítica xamânica da economia política
da natureza (Cf. ALBERT, 2002) que Davi Kopenawa faz de nós, povo da mercadoria,
cujo pensamento “se mostra curto e obscuro [e] [n]ão consegue se expandir e se elevar,
porque eles [os brancos] querem ignorar a morte (...)[, ficando] sempre bebendo cachaça
e cerveja, que lhes esquentam e esfumaçam o peito [o que faz com que] (...) suas palavras
Kopenawa, neste mesmo tom, diz que os Brancos estão à altura dos maus
caçadores Yanomami, que “apesar de terem os olhos abertos, não enxergam nada” (op.
120
cit., p. 474), corroborando o seu próprio diagnóstico xamânico: “[o]s brancos não sonham
tão longe quanto nós, (...) dormem muito, mas só sonham consigo mesmos” (Id., p. 390).
esta que
tomar contato em A Queda do Céu amplia o nosso campo de possíveis e semeia outras
práticas alimentares.
Aventurar-se, assim, no pensar com essas outras ontologias nos permite também,
imagem de nós mesmos na qual não nos reconheçamos” (2005, pp. 773-774),
conhecimento.
leitura de sua teoria da individualidade feita por Gilles Deleuze (2009) e a agonística
universal das coisas singulares proposta por Ricardo Teixeira (2015), nos permitirá
amadurecer ainda mais a nossa perspectiva a partir de um olhar singular sobre o corpo.
pelo próprio Spinoza no século XVI, e que é, seguramente, uma das mais saborosas das
sobre a questão o que se pode fazer com um corpo?, o problema que nutre esta pergunta
vitalista de Spinoza, que possui desdobramentos cruciais para o campo da Saúde Coletiva
Deleuze, será um personagem conceitual que, assim como o Restauro, nos ajudará a
Diriam, aliás, Deleuze e Guattari que “na enunciação filosófica, não se faz algo
conceitual [de maneira que] os personagens conceituais são [efetivamente os] verdadeiros
agentes de enunciação” (1992, p. 87). Isto é, eles são operadores que criam pontos de
vista, que criam condições para que possamos traçar um plano onde os conceitos
germinam e florescem.
“Quem é Eu [então]? [Eu] é sempre uma terceira pessoa” (Id., p. 87) e, em nosso
caso, uma pessoa com rabo, cascos e quatro patas: Ratambufe, um boi que agora se juntará
122
a tantos outros personagens conceituais clássicos das histórias da filosofia, como por
uma multiplicidade de práticas culturais que florescem Brasil afora por meio de autos,
folguedos, danças e tantas outras manifestações que contam, cantam, dançam e brincam
como Caprichoso e Garantido e festas que vão de norte a sul e de leste a oeste, inclusive
no Morro do Querosene.
de São Pedro, padroeiro dos pescadores, e dotado de uma característica especial ou,
usualmente descia à cidade para vender seus produtos, Ratambufe cresceu em seu sítio
no alto da serra onde recorrentemente ouvia histórias de seu dono sobre o mar e seus
habitantes: seus tons de azul, os peixes, as baleias, as sereias e todas as suas maravilhas.
Prometido de que iria conhecer o mar quando maior, Ratambufe sonhava com este
dia que o encantava e o embevecia, sem qualquer pista dos planos de Cipriano, que o
tinha apenas como peça de açougue, sendo que sua promessa de viagem ao litoral era, ao
Chegado o grande dia de sua ida ao litoral, nosso boizinho se pôs ansioso no
caminho para a cidade sem qualquer sombra, pista ou ideia dos verdadeiros intentos de
seu dono. Enlevado em seu desejo e próximo do destino escrito em sua testa e em seus
sonhos, ao ver o mar Ratambufe desembestou a correr em sua direção, onde mergulhou
A despeito dos gritos de Cipriano, Ratambufe, que de mercadoria não tinha nada,
ressurgiu encantado do mar apenas tempos depois ao som de uma viola, que lhe serviu
como chamado e que iluminurou aquele momento que acabou por render-lhe, desde
Cinema Novo – terra fértil para outras cria(tura)s como Glauber Rocha e sua estética da
fome (1965) que, lembremos, conversa com trabalhos caros à Saúde Coletiva, como os
de Samuel Barnsley Pessoa e de Maria Cecília Ferro Donnangelo –, um outro animal que
Assolada pela fome, Milagres, pequena cidadela sertaneja onde se passa o filme
de Guerra, era o centro de um movimento de romaria que atraía fiéis de todo o sertão à
cidade afim de visitarem e adorarem um boi que, sob as exclamações, as juras e os dizeres
devoravam a cidade, este mesmo beato, desiludido com o sacro animal e seus poderes,
anuncia em alto e bom som: “se não chover logo, você vai deixar de ser santo, e vai deixar
de ser boi”.
Poupado então até aquele momento, é precisamente a partir dessa ameaça que o
boi passa de boi-sacro à boi-comível ou, para dizermos em outros termos, recuperando
124
um conceito que tanto nos interessa: é a partir desta ameaça que o boi muda de
Kopenawa e de Weir a respeito da terra e de seus povos, evidenciam como uma coisa
singular, para adicionarmos mais uma pitada de Spinoza, é determinada, ressoando algo
O que é dizer de uma outra forma que um certo modo da experiência-boi, uma
certa, diríamos, boizicidade, é tributária, por exemplo, de uma ecologia de relações que
inclui, no caso do boi-jesus de Guerra, a própria chuva – “se não chover, você vai (...)
deixar de ser boi” –, tanto quanto a miséria, a ocupação militar, bem como uma série de
pela sua categoria específica ou pelas partes que o compõem. De tal maneira que, para
Isto nos remete ao fato de que na ontologia spinozana, toda coisa singular, todo
ou exteriores umas às outras” (TEIXEIRA, 2015, p. 240). O que ressoa muito do que já
O que significa, reforçando o que dissemos anteriormente, que aquilo que define
um corpo, que define uma coisa singular, não são efetivamente as suas partes – os seus
órgãos –, isto é, aquilo que lhe pertence e o compõe. Mas efetivamente as relações
características que submetem essas partes: um pão não é um pão por conta de seus
ingredientes, mas sim pelas relações que os submetem e o caracterizam, que caracterizam,
Estas relações características são, deste modo, aquilo que define a sua
singularidade, “que expressa um grau de potência que constitui (...) uma essência
parte, sua virtude e potência de agir” (2007, p. 98), de tal forma que o mantra que define
extensivas sob uma dada relação que é a que o caracteriza” como corpo (Cf. TEIXEIRA,
Teixeira (2015) explora e que nos ajudarão a evidenciar aquilo que mais nos interessa a
esta altura de nossa investigação: a dimensão ontológica que atravessa o comer e que é
fundamental para que possamos seguir enriquecendo nossa perspectiva acerca dessa
alimentares.
perguntar: o que é o meu corpo? Spinoza responderia, sem pudores, com seu mantra: ele
126
é um conjunto de partes extensivas sob uma dada relação que é a que o caracteriza como
Alexis.
Mas será que esta definição caberia a qualquer ser vivo? Diria o autor que sim,
afinal, “não sentimos nem percebemos nenhuma outra coisa singular além dos corpos e
dos modos do pensar (...)[, isto é, d]aquelas coisas que são finitas e que têm uma
boi é também uma coisa singular? O que seria um boi? Pasmem, tanto quanto este que
vos escreve, um boi é um conjunto de partes extensivas sob uma dada relação que, nesse
acompanhando Teixeira: o que seria um bife? Um bife, como sabemos, veio do boi,
Será que também neste caso poderíamos entoar nosso mantra? Sim, afinal, ele
também é um conjunto de partes extensivas sob uma dada relação que o caracteriza como
Spinoza, que nos responderia: fazendo com que as partes extensivas do boi abandonem a
Ora, se já está claro o que é um corpo, o que é um boi, o que é um bife e como se
passa de boi à bife, agora é hora de nosso prato principal, quer dizer, de nossa pergunta
principal: o que é comer um bife? Pois bem, a rigor, nos termos de Spinoza e de Teixeira,
127
E, de fato, é pela boca que se predica. Tanto que, como podemos notar, nessa
de integrar as partes sob minhas relações; quando como, por exemplo, há partes
extensivas que eu me aproprio. O que quer dizer se apropriar das partes? (...)
Quer dizer: fazer com que deixem a relação precedente que elas efetuavam
para tomar uma nova relação, sendo esta nova relação uma das relações
comigo, a saber: com a carne eu faço a minha carne. Que horror! [risos] Mas,
enfim, é preciso saber viver, isto não deixa de ser assim. Os choques, as
apropriações de partes, as transformações de relações, as composições ao
infinito, etc.” (2009, pp. 242-243).
É então em meio a este jogo de oposições entre corpos que podemos falar de uma
agonística das coisas singulares, agonística esta que envolve o próprio fato de que a
“possibilidade de produção de um corpo mais potente está dada pela aptidão desse corpo
em estabelecer relações de composição com outros corpos e evitar as relações que possam
nos diz Spinoza, é: afetar e ser afetado. Quer dizer, o que um corpo pode é fazer variar o
Elemento este que nos coloca um problema novo que pode, como nos mostra Teixeira,
nos ajudar a afinar ainda mais o nosso entendimento do que é um corpo a partir de uma
nosso mantra e responderíamos: uma onda é um conjunto de partes extensivas sob uma
dada relação que a caracteriza como onda. Contudo, como nós também sabemos, uma
onda, para o horror de alguns banhistas e para a alegria dos surfistas, nunca deixa de
variar.
128
De qualquer maneira, uma onda não deixa de ser um conjunto de partes extensivas.
No entanto, esse corpo-onda é um conjunto de partes extensivas “não apenas sob uma
dada relação, mas sob [um] certo espectro de relações possíveis, que podem ser variadas
Pois bem, já que já sabemos o que é uma onda e já que citamos os surfistas, cabe
perguntarmos agora, considerando que uma onda é um conjunto de relações variáveis por
uma certa duração: o que é um surfista? Obviamente podemos dizer que ele é um corpo,
ao que se aplicaria a nossa definição inicial, mas, na relação com a onda, há uma
diferença: o surfista não só é um corpo, ele é “um outro corpo, um conjunto de relações
que ele precisará saber variar de tal forma a estabelecer uma relação de composição com
Notemos, assim, que agora o problema da relação adquire um sabor ainda mais
complexo, visto que passa a envolver também uma relação de conhecimento, um saber
Ratambufe, nosso personagem conceitual que, diria Deleuze, é o devir de uma filosofia,
como o mais ínfimo dos gestos, o mais imperceptível dos acontecimentos ou, lembrando
“o assobio produzido no roçar das pernas [das calças aveludadas] ao caminhar (...)”, “A
O que é dizer, em outras palavras, que o mais larval dos eventos pode alterar as
um acontecimento singular ocorrido nas águas de Salvador nos fins de 2018, quando na
praia de Stella Maris, no litoral da capital baiana, ocorreu um encontro mais do que
Visto em meio aos surfistas, o encontro desse zebu com as ondas nos permite
de um corpo vir a estabelecer relações de composição com outros corpos o que, no caso
A questão, todavia, seria se o boi saberia fazer variar as suas relações. O que
sob relações que componham com as relações que os caracterizam” (TEIXEIRA, op. cit.,
produzir comum ou de fazer comunidade com esses outros corpos.” (Id., p. 31)
A fim de fugir de um caldo ou de levar uma vaca, nosso boi sem conchas deveria,
assim, praticar a arte da composição. Arte esta que, no caso de nosso exemplo, é muito
cara aos surfistas, afinal “surfista é aquele que sabe fazer comunidade com a onda[, de tal
forma que o] surf é a arte de produzir comum com as ondas.” (Ibid., 31, grifo nosso).
Ou seja, ele é, tal qual a agroecologia, uma arte da composição: uma arte onde um
grau de potência se relaciona diretamente com outro grau de potência. Onde um corpo de
relações compõe, intuitivamente, com um outro corpo de relações, cultivando uma rede
também uma ética, uma ética da composição que, no limite, dado o fato de que as relações
são sempre relações entre relações – em qualquer escala que seja, do micro ao macro, do
22
Cf. https://aratuon.com.br/noticia/geral/boi-aparece-no-mar-em-stella-maris-apos-fugir-do-parque-de-
exposicoes-assista; https://aratuon.com.br/noticia/geral/boi-que-morreu-afogado-em-praia-de-stella-maris-
valia-12-mil-reais. Acesso em 17/02/2021.
130
contribuem para uma única ação, de maneira tal que sejam todo, em conjunto, a causa de
um único efeito, consider[emos] todos, sob este aspecto, como uma única coisa singular”
(SPINOZA, op. cit., livro 2, def. 7), isto é, como um único corpo: surfista-onda, boi-de-
conchas-mar, onda-boi.
Frente, então, à onda, esse corpo cujas relações não podemos governar, cabe ao
nosso boi-surfista fazer variar as relações que o caracterizam. Ou seja, cabe a ele fazer
variar o seu grau de potência segundo sua capacidade de se apresentar a esses outros
corpos. O que é dizer, em outras palavras, que o que cabe a ele é, em seu esforço de
Não por acaso, tanto para Spinoza, quanto para muitas cosmologias indígenas o
corpo é o locus dessa dimensão ontológica que tanto nos interessa. Dimensão esta que
situa e caracteriza o lugar singular que a discussão sobre corporalidade ocupa nessas
a originalidade das sociedades tribais brasileiras (de modo mais amplo, sul-
americanas) reside numa elaboração particularmente rica da noção de pessoa,
com referência especial à corporalidade enquanto idioma simbólico focal. Ou,
dito de outra forma, suger[em] que a noção de pessoa e uma consideração do
lugar do corpo humano na visão que as sociedades indígenas fazem de si
mesmas são caminhos básicos para uma compreensão adequada da
organização social e [da] cosmologia destas sociedades. (SEEGER; DA
MATTA; VIVEIROS DE CASTRO, 1979, p. 3)
E se o corpo e os processos a ele relacionados são tão centrais para estes povos é
definição mesma da estrutura destas sociedades, onde o corpo, longe de ser um suporte
inerte onde se deposita o social, é efetivamente constituído por ele. De tal modo que:
[a]s mudanças corporais não podem ser tomadas apenas como signos das
mudanças de identidade social, mas como seus correlatos necessários, e
mesmo mais: elas são ao mesmo tempo a causa e o instrumento de
transformação das relações sociais. Isso significa que não é possível fazer uma
distinção entre processos fisiológicos e processos sociológicos;
transformações do corpo, das relações sociais e dos estatutos que as
condensam são uma coisa só. Assim, a natureza humana é literalmente
131
entendimento, como já pudemos notar, do próprio corpo. Entendimento este no qual ele
é, certamente, distinto do nosso. E, em alguns casos, até mesmo múltiplo, a exemplo dos
Wari’, para quem a figura, a representação de um homem de sua etnia em contato com os
brancos é:
construída por traços duplos, de modo que a roupa em estilo ocidental, como
aquela com a qual os Wari’ se vestem hoje, se sobrepõe ao corpo sem, no
entanto, escondê-lo. O que se vê, na verdade, são dois corpos simultâneos: o
do Branco, por cima, e o do Wari’, por baixo. (VILAÇA, 2000, p. 57, grifos
nossos)
cosmologias ameríndias, muito embora ela esteja, com uma certa regularidade, referida e
associada à experiencia dos xamãs. Entretanto, o ponto central que esta discussão traz à
mesa é que para os ameríndios o corpo não é um dado genético, mas efetivamente uma
Construção essa que é feita recorrentemente ao longo da vida por meio de, para
seguirmos a conversa com Spinoza, relações. Relações que, diga-se de passagem, já que
sociais em uma perspectiva onde o “social” é muito mais povoado e populoso do que em
nosso sentido mais corrente, e onde, para lembrarmos novamente dos Wari’, vê-se que
assim”); ou por que a água é fria: “Je kwerein kom” (“o corpo da água é
assim”). (VILAÇA, op. cit., p. 59)
caracterizam (“o corpo é assim”) e que co(n)formam uma singularidade, de tal modo que
Principalmente porque:
É a partir então da fabricação que o corpo passa a corpo humano, o que nos
uma mudança pela extensão, pela duração, pela repetição de uma atividade. A exemplo
de um filho, que para os Yalawapití é construído por meio de relações sexuais repetidas,
e que remetem ao próprio fato de que o homem esculpe o bebê no corpo da mãe.
Fazer um filho, nesse sentido, é uma atividade escultórica, o que é dizer que é um
fazer que é, ao menos para o que interessa à nossa presente discussão, menos afetiva e
mais, para lembrarmos de Spinoza, afectiva. Ou seja, é menos uma questão de afeto e
133
mais de affecto, de uma affectio: de um agir sobre um outro corpo, produzindo um efeito
Para além, portanto, de uma ideia de que momentos como este sejam naturais,
quer dizer, livres da in(ter)venção puramente humana, “[s]eu caráter liminar marca o
tempo da fabricação de uma nova condição social por meio de uma tecnologia do corpo”
(VIVEIROS DE CASTRO, op. cit., p. 44, grifo nosso). De uma tal maneira que “na
44)
O que essas cosmologias indígenas evidenciam, assim, é que para além de uma
O que nos conecta, não por acaso, à nossa discussão inicial sobre o corpo em
Spinoza, para quem também existe toda uma outra fisiologia (Cf. TEIXEIRA, 2004a)
pragmática: como criar para si um corpo? Ou ainda, lembrando mais uma vez de Deleuze
e Guattari (1996), a questão é a de como criar para si um corpo sem órgãos. Isto é, um
corpo que é feito de uma tal maneira que “só pode ser ocupado, povoado por intensidades”
Quer dizer, esse corpo é aquilo que se produz em meio às variações da força de
existir, da potência de agir, daquilo que Spinoza nomeava como conatus: o esforço de
Em meio, assim, a toda esta outra fisio-lógica, fica claro que o corpo é muito mais
O ponto, para nós, é que a fabricação do corpo envolve uma dimensão processual
que diz respeito à própria fabricação da pessoa, o que nos conecta a uma das lições que a
cosmologia do processo nos deixou, a saber, a de que nada está dado de antemão e,
cosmológico. Assim como a alimentação e as práticas alimentares que são mais um dos
elementos que evidenciam este fundamento e que produzem, que fazem uma diferença,
vide a própria
Entendido, portanto, como lugar da diferença, o corpo é assim mais do que mera
substância física, mas efetivamente “um conjunto de afecções ou modos de ser que
constituem um habitus” (Id., p. 128). E que remetem à própria alimentação, que é, como
precisamente sobre aquilo que conecta o corpo ao mundo e que compete à fabricação do
próprio corpo humano (Ibid., p. 43) e de relações sociais as mais diversas, como nos
mostra a narrativa de Vilaça que, quando iniciando seu campo junto aos Wari’,
De tal forma que, em suma, a questão que nos interessa neste ponto, ecoando a
perspectivismo somático quanto também a toda uma expansão das capacidades e das
potências do humano, visto que, “ali onde toda coisa é "humana", o humano é toda uma
outra "coisa"” (Id., p. 145; VIVEIROS DE CASTRO, 1996) e, por certo, a alimentação
também.
137
“Sejamos objetivos.”
Sejamos objetivos? – Não!
Sejamos subjetivos, diria um xamã,
ou não vamos entender nada.
Eduardo Viveiros de Castro
Ora, se já não sabíamos o que podia um corpo, agora, em meio a todo esse
das poucas coisas que podemos repetir é, precisamente, que não sabemos o que pode um
corpo, ainda mais esses corpos, isso para não dizermos de suas almas (Cf. VIVEIROS
DE CASTRO, 2002a). Todavia, o que sabemos é que um corpo pode, isto é, que uma
singularidade, lembremos de Cusa, se define justa e precisamente pelo seu poder, pela
sua potência, pelas suas capacidades e afetos, tanto quanto pelas suas transformações e o
deslocamento seja em nosso entendimento sobre o corpo, seja sobre o próprio humano;
demonstra tal conceito operando em uma situação cotidiana. Situação essa que foi descrita
23
Cf. VALLIAS, 2014, p. 33.
138
por Peter Gow no contexto de seu trabalho junto aos Piro, povo indígena que vive no rio
missão junto a este povo e uma mulher piro que, enquanto preparava a comida de seu
filho pequeno com água não-fervida, foi interpelada pela professora de Santa Clara que,
replicou:
infantil – esta conversa nos permite enxergar um dos pontos centrais do multinaturalismo:
o de que o que distingue diferentes tipos de gente não suas culturas, mas efetivamente os
seus corpos. Nas palavras da própria mulher piro: “Talvez para o povo de Lima isso seja
verdade. Mas para nós, gente nativa daqui, a água fervida dá diarreia. Nossos corpos são
–, como se, pensando com nosso exemplo, a mulher piro fosse aquela que representasse
E, de fato, seria tentador ver esta conversa como um grande exercício relativista,
‘natural’, pois o
Partindo então das notas de Gow, Viveiros de Castro traça alguns comentários
interessantes sobre essa anedota, situando que o que se trata em seu caso é menos de
determinar de antemão o mundo e seus limites gerais e seus sentidos possíveis, mas sim
de encontrar “o problema real que torna possível o mundo implicado na réplica da mulher
E o que tornaria possível este mundo possível? Bom, se, para início de conversa,
não sabemos o que pode um corpo e, menos ainda o seu espírito, uma coisa que devemos
ideia de que tudo importa, e considera-se que o mundo é povoado por uma infinidade de
que disse que certa vez “ouvi[u] um zande dizer de nós: ‘Talvez lá no país deles as pessoas
não sejam assassinadas por bruxos, mas aqui elas são” (1978, p. 274). Ou seja, o que nutre
No caso de nosso exemplo com os Piro, por outro lado, o que está em questão para
a mulher piro é “[u]m mundo possível no qual os corpos humanos sejam diferentes em
Lima e em Santa Clara — no qual seja necessário que os corpos dos brancos e dos índios
sejam diferentes” (VIVEIROS DE CASTRO, op. cit., pp. 139-140, grifos nossos).
diferentes dos corpos de vocês” (Id., p. 140) –, mas distintos não em um sentido físico-
140
biológico. Afinal, o “argumento de que “nossos corpos são diferentes” não exprime uma
Distintos, então, precisamente pelo fato de que o corpo Piro, opera uma ideia não-
infantil – para além de uma chave biológica. De modo que o corpo não é, assim, objeto
de uma teoria biológica, no mesmo sentido em que a “anedota da água piro não reflete
uma outra visão de um mesmo corpo, mas um outro conceito de corpo, cuja dissonância
O que implica também o próprio fato de que o conceito em questão neste caso não
diz respeito à uma representação ou à uma biologia diversa, e sim à uma outra
mas o corpo como perspectiva interna do conceito: o corpo como implicado no conceito
cartesiano ao afirmar que na floresta tudo que existe, pensa, e que aquilo que chamamos
Ou, em outras palavras, como uma arena internacional onde todo o existente se vê
uma condição universal e uma perspectiva dêitica e auto-referencial (Id., p. 94). De modo
podemos notar como no perspectivismo ameríndio existe algo como, ressoando Teixeira,
Spinoza e James, uma agonística multiversal das humanidades, visto que a humanidade
de uma espécie é imposta sobre a da outra, sendo essa última devorada, precisamente
porque
portanto humanos) entre o céu e a terra do que sonham nossas antropologias e filosofias”
qualquer diferença absoluta de estatuto entre sociedade e ambiente, seja no fato de que a
radicalizamos esta proposição, dado que tanto o corpo quanto o próprio mundo são
apreensível de um ponto de vista exterior, para outrem, uma vez que, para si mesmo, cada
tipo de ser tem a mesma forma (a forma genérica do humano): os corpos são o modo pelo
Isto não só nos conecta imediatamente à Whitehead, para quem uma entidade atual
de Viveiros de Castro acerca do ponto de vista dos índios sobre o conceito de ponto de
vista, afinal
[n]ão se trata de perguntar qual é o ponto de vista dos índios sobre o mundo,
porque essa pergunta já contém sua própria resposta. Ela supõe que o ponto de
vista é uma coisa, o mundo uma outra, que o mundo é exterior ao ponto de
vista e que é necessário que se deixe o mundo quieto (isto é, nas mãos dos
cientistas duros) para fazer variar o ponto de vista (questão para os cientistas
macios). É necessário ancorar o ponto de vista na realidade objetiva como um
balão preso à terra por um fio, isto é, para poder fazê-lo divagar, flutuar sem
perigo de se perder no ar; o “mundo” é mais importante que todos os nossos
pontos de vista “sobre” ele. (VIVEIROS DE CASTRO apud SZTUTMAN,
2008, p.109)
Uma imagem interessante que vale recuperarmos a fim de tornar isto mais claro é
exatamente a utilizada por Viveiros de Castro (op. cit.): a das pernas de um compasso.
Composto por um eixo central e duas hastes, uma de suas pernas corresponderia à cultura,
pontos de vista sobre esse centro que está aí, imóvel, em torno do qual gira a visão
O que é bem diferente das perspectivas indígenas, onde “[é] a cultura que é fixa,
no sentido de que há apenas uma “cultura”, e que o que varia são os corpos que
incorporam essa cultura, que dão a essa cultura expressões diferenciadas” (p. 109).
Os índios, neste sentido, não são relativistas, da mesma maneira que o próprio
mas efetivamente de uma relação, de uma posição em relação a outras posições possíveis,
sendo “Humano” precisamente aquele que ocupa a posição de sujeito: “é aquele que diz
A humanidade, neste sentido, não é uma convenção ou uma propriedade, mas algo
que circula, como uma “diferença na posição relativa das coisas” (Ibid., p. 114). O que
remete à ideia de uma certa transversalidade indígena que afirma seja que a humanidade
é relativamente universal, seja que o próprio corpo humano, enquanto a forma de todas
E, não por acaso, ele carece, como vimos, de atributos e operações diversas para
que a pessoa se torne mais humana como, mais uma vez, no caso de um bebê:
144
Quando nasce uma criança, a primeira coisa que os que estão em volta fazem
é ver se ela é humana ou não. É preciso conferir se o bebê é realmente um filho
de humano, ou se é um espírito, ou talvez o filhote de algum animal que teria
deitado com a mulher, talvez em sonho, e que teria feito um monstro. Se o bebê
tem a aparência de um ser humano, ele é conservado; em seguida, é necessário
tomar as medidas adequadas para que ele não seja capturado, sequestrado por
outros sujeitos não-humanos. Toda vez que nasce um humano, os animais e os
espíritos em geral costumam ficar enciumados; querem a criança para eles,
buscam capturá-la. É necessário, pois, proteger a criança; ela é frágil porque
sua humanidade é frágil. Deve-se, pois, tomar todas as providências para que
ela seja, de forma clara, definida como um humano. Para isso, é preciso raspar-
lhe o cabelo, pintá-la, furá-la, moldá-la para que se torne humana como nós.
Tudo se conecta; portanto, é preciso diferenciar; é preciso distinguir. (Ibid, p.
112, grifos nossos)
problemática central e crucial nas cosmo-lógicas ameríndias já que fazer um corpo, que
produzir um corpo é, simultaneamente, aquilo que produz também o humano, que devém-
humano. Na própria medida em que é necessário se fazer humano através de toda uma
disciplina corporal que remete não só ao fato de que o corpo é, como dito, absolutamente
E disto tudo decorre, claro, uma série de implicações nas práticas alimentares
indígenas que, mais do que nunca, se aliam à toda uma ecologia de práticas que convoca,
esta cosmopolítica, na própria medida em que comer envolve toda uma ecologia de
práticas que se baseia, inclusive, em uma prática diplomática entre diferentes povos. O
que evidencia como o comer é um ato político, mas, mais do que isso, o comer é
humano, mesmo que em potência, qualquer deslize dietético em meio a essa metafísica
145
canibal imediatamente expõe o comensal à predação ontológica, tanto quanto seu próprio
E, muito embora essa temática seja o solo sob o qual eat (it) frutifica, a questão
por agora é que aqui vemos não só uma complexificação ainda maior do que envolve o
comer e as ecologias de práticas que o atravessam, como também o fato de que o humano
é tributário de um ponto de vista. Isto é, que ser humano é efetivamente uma qualidade
nominal e que, no fim das contas, não se sabe de antemão o que é o humano, muito pelo
contrário.
de desumanização da saúde. Tema que, no fim das contas, envolve uma proposição que
entendimento muito reduzido no campo do que pode ser o humano e do que o humano
pode. Entendimento esse que contrasta absolutamente com o que vemos nestas
Estreiteza essa que implica questões que nos são muito caras e, no limite, o próprio
modo como pensamos seja a produção científica no campo – tanto a nível metodológico
campo que, quer queira, quer não queira, deixa de fora de seu espectro de discussão uma
Acabando por ignorar, como diz Ailton Krenak, a questão de se somos de fato
uma humanidade em meio ao cenário atual, onde “[n]ós nos acostumamos com essa ideia
[de que somos uma humanidade], que foi naturalizada, mas ninguém mais presta atenção
no verdadeiro sentido do que é ser humano.” (2020, pp. 5-6) Na mesma medida em que
146
não presta atenção na própria operação de poder que é definir o humano a partir de uma
perspectiva antropo-egocêntrica.
O que não só faz funcionar uma operatória racista (FOUCAULT, 1999) que cria
toda “uma subhumanidade que vive numa grande miséria, sem chance de sair dela – e
isso também foi naturalizado [–]” (KRENAK, op. cit., p. 7). Uma subhumanidade
composta por “caiçaras, índios, quilombolas, aborígenes (...) [que evidencia como e]xiste,
então, uma humanidade que integra um clube seleto que não aceita novos sócios. E uma
camada mais rústica e orgânica, uma sub-humanidade que fica agarrada na Terra.” (Id.,
p. 8).
vivendo numa abstração civilizatória que suprime a diversidade, nega a pluralidade das
limites do humano, da humanidade e da vida, opera-se toda uma filtragem dos indivíduos,
MASSUMI, 2017b).
O que permite, por sua vez, tanto definir, entre a minha vida e a morte do outro,
os sujeitos que devem viver e os que podem morrer, quanto também definir aqueles e
aquelas que, no limite, podem ser considerados como pertencentes à humanidade a partir
escancara como:
pensensação, é que na interface com aquilo que eles nutrem, com seus modos de vida-
humano e as maneiras pelas quais nosso entendimento deste conceito impacta as nossas
humanização da saúde e os modos como o humano está implicado nas ecologias que o
24
Cf. BAGGS, Amelia Mel. “In My Language”, 14/01/2007. Disponível em youtube.com/watch?v=
JnylM1hI2jc. Acesso em 12/10/2021.
148
in the middle26
in an immanent entanglement
in a plurivocal multiplicity
in a relational imagination
in metamorphosis
in transformation
in metaphysical continuity
in physical discontinuity
25
Publicado originalmente em Art + Australia, ‘Multinaturalism’, Vol 57, No. 1, March, 2021, pp. 68-73.
Este texto mantém as referências formatadas conforme a publicação original, mas devidamente adaptadas
em nossas Referências Bibliográficas.
26
As in Amerindian cosmologies, cannibal metaphysics are lurking at every encounter. The visible shape
of a body may be deceptive and a human appearance may be concealing an animal-affect. Moving from
there and from the perspectival relation in which nature is the form of the third person, this piece builds
itself around the similarity of the sounds of the impersonal pronoun ‘it’ (the form of the other in
multinaturalism) and the verb ‘eat’ (whose phonetic transcription in Australian spelling is precisely ‘it’). It
also approaches the transversality between eating, multinaturalism and otherness by juggling with the
exchangeability of these terms around the relational pointer it and by following the multinaturalist idea that
the origins of perspectival differences depend not on self-perception but on the gaze of the other, so that
this piece is undeniably about eating and the cosmopolitics of becoming related to it, but only by virtue of
it being about the cosmopolitics of becoming related to multinaturalism, as well as the cosmopolitics of
becoming related to otherness. In this same sense, it experiments with immediated perspectives that are, as
Amerindian perspectivism teaches us, exchangeable within multiple relational-positional constellations,
which is to say that every perspectival (pro)position seeds the transformation of the piece from its own
deictic position, so that the very encounter with the piece’s mobile shape and its multiple beginnings feeds
the potential relationality of a form-in-the-making that enacts multiple ways of unmediated exchange, akin
to Amazonian cannibalism. Where does it begin? Where does it end? In the middle, in the condition(al)s,
‘in Amazonia and elsewhere’ (see Eduardo Viveiros de Castro, The Relative Native: Essays on Indigenous
Conceptual Worlds, HAU Books, Chicago, 2015, p. 189).
149
of supernatural encounters28
in the middle
decolonise hunger
something else
be deceiving
an ontological potentiality
27
See Alexis Milonopoulos, Erin Manning, Jorge Menna Barreto and Ricardo Rodrigues Teixeira, ‘In-
between Hunger and Appetite – Food for Thought in the Act’, Inflexions, no. 11, ‘popfab’, 2019,
senselab.ca/inflexions/popfab/pdfs/alexis.pdf; accessed 29 June 2020.
28
For more on the supernatural, see Viveiros de Castro, ‘Supernature: Under the Gaze of the Other’, The
Relative Native, p. 274.
29
Viveiros de Castro, The Relative Native, p. 274.
30
For a bite of the Indigenous understanding of the earth as a body, see Davi Kopenawa and Bruce Albert,
The Falling Sky: Words of a Yanomami Shaman, Nicholas Elliott and Alison Dundy (trans.), Belknap Press
150
in the middle
revalue taste
ontological provinces
of Harvard University Press, Cambridge, Mass., 2013, and Ailton Krenak, ‘Do sonho e da terra’, Ideias
para adiar o fim do mundo, Companhia das Letras, São Paulo, 2019. It is worth remembering that for Gilles
Deleuze and Félix Guattari the earth is also a body (without organs). See A Thousand Plateaus: Capitalism
and Schizophrenia, Brian Massumi (trans.), Continuum, London, 2008, p. 45.
31
For the Spinozan mantra, see Baruch Spinoza, The Ethics, Wilder, Floyd, Va., 2009. See also Viveiros
de Castro, The Relative Native, pp. 36–37.
151
in the middle
dehumanise health
32
Eduardo Viveiros de Castro, Cannibal Metaphysics: For a Post-structural Anthropology, Peter Skafish
(ed. and trans.), Univocal Publishing, Minneapolis, 2014, p. 70.
33
Kopenawa and Albert, The Falling Sky, p. 393.
34
Viveiros de Castro, Cannibal Metaphysics, p. 131.
35
While Viveiros de Castro mentions the works of Isabelle Stengers and Bruno Latour around this term, it
is also worth looking at Brian Massumi’s piece ‘Sur le droit à la non-communication des différences’ (‘On
the Right to the Non-Communication of Cultural Difference’), in Couplets: Travels in Speculative
Pragmatism, Duke University Press, Durham, N.C., forthcoming, 2021), where the author cultivates a
discussion around it and around other themes that are transversal and akin to this piece.
152
in the middle
36
See Alfred North Whitehead, Science and the Modern World: Lowell Lectures, 1925, The Free Press,
New York, 1926.
37
See Milonopoulos et al., ‘In-between Hunger and Appetite’.
38
For other appetising discussions around the concept of ‘humanity’, see ‘A humanidade que pensamos
ser’, Ideias para adiar o fim do mundo, and O amanhã não está à venda, Companhia das Letras, São Paulo,
2020, both by Ailton Krenak. In addition to that, from a process philosophy-oriented gaze, see Erin
Manning’s discussion on the more-than-human in The Minor Gesture, Duke University Press, Durham,
N.C., and London, 2016.
153
of emergent relations
in the middle
39
See Spinoza, The Ethics, as well as Brian Massumi, Politics of Affect, Polity, Cambridge, UK, 2015.
40
Gilles Deleuze, Bergsonism, Zone Books, New York, 1988, p. 203.
154
in the middle
devour otherness
41
Viveiros de Castro, Cannibal Metaphysics, p. 57.
42
See Viveiros de Castro, Cannibal Metaphysics, p. 143.
43
Viveiros de Castro, Cannibal Metaphysics, p. 155.
155
of the earth
it middles
it bodies
it worlds
it c(a)osmos44
it explodes
the mouth
in the middle
44
See Félix Guattari, Chaosmosis: An Ethico-aesthetic Paradigm, Paul Bains and Julian Pefanis (trans.),
Indiana University Press, Bloomington, Ind., 1995.
45
Fed by Indigenous farming practices and by previous conversations around the relations between food
practices, agroecology and rewilding strategies (see Milonopoulos et al., ‘In-between Hunger and
Appetite’), especially within the dialogue and collaboration with Brazilian artist Jorgge Menna Barreto in
156
in the middle
(in) an encounter
(in) otherness
(in) fꜵrmation
in feeling
(in) a world
in difference
(in) differentiation
in becoming-worlds
in life-living
in the vividness of it
rewild appetite46
the work Restauro: Environmental Sculpture (2016–ongoing), the term ‘transfꜵrm’ not only alludes to the
composition ‘Refazenda’ by Brazilian composer Gilberto Gil (1975)—loosely transcreated here as the
wor(l)d ‘transfarm’—but cultivates Barreto’s understanding of the digestive system as a sculptural tool of
the landscape. Pollinating both the ideas that farming and eating transform and sculpt the ambient, plus that
environmental sculpting and its transversal(itie)s can sow tastier compositions and trans-formations with
earth(s), it also regards the fact that in shamanism transformation is a sign of power, and sculpting a (human)
form is part of the shamanic work (especially of desubjectivisation and despiritualisation of animals) that
flourishes within the dietary rules, the food restrictions and the precautions that move around the danger of
cannibal counter-predation and the inversion of perspectives in Amerindian cosmologies. See Viveiros de
Castro, The Relative Native, p. 269, and Cannibal Metaphysics, p. 60. For more on environmental sculpture,
see jorggemennabarreto.com/Enzyme-Magazine; accessed 9 July 2020.
46
Author’s note: This study was financed in part by the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior - Brasil (CAPES) - Finance Code 001.
157
hombre/hambre
Décio Pignatari
To be or not to be, eis a questão. Será mesmo? Quer dizer, seguramente ela é, só
que para Hamlet e talvez Ofélia, Polônio, o Rei e até mesmo Shakespeare (2005). E para
nós? Será que após tantas camadas de solo e discussão esta questão deveria ser formulada
acontece com o ser (e o[s] não ser[es]) quando pensamos-com essas experiências que não
célebre de Hamlet, é justa e precisamente porque elas nos permitem, tanto quanto tudo
que viemos cultivando até agora, lançar questões sobre o próprio modo como formulamos
comportamento a esse lugar central de objeto privilegiado das práticas em Saúde, que
que foram tomadas como elementos fundamentais para a prevenção ou, ao menos, para o
teorias e métodos caros a cada um destes campos, mas cujo fulcro compartilhado é
Neste mesmo sentido, por mais que tais movimentações tenham começado a
acontecer no início do século XX, ainda permanece presente “a ideia de que a Educação
isto é, aqueles que mais eficazmente produziriam os efeitos esperados” (Id., p. 1).
acaso, em um entendimento sobre o comportamento onde este pode ser alterado a partir
saberes médico-sanitários.
permanece sendo uma das ferramentas de trabalho mais elementar dos profissionais de
saúde, que usualmente agem a partir de uma perspectiva prescritiva. Tomando como
pode ser heterodeterminado, isto é, que ele pode ser determinado “de fora”.
hábito, tanto quanto a adesão à alguma medida ou estratégia de saúde não diz respeito
embora este modelo, por mais que tenha se demonstrado como pouco efetivo ao longo
O que não é dizer, ainda assim, que não há nada de novo sob sol. A própria
operando distintos modos de entendimento sobre aquilo que causa a conduta humana e
comportamento.
comportamento humano e daquilo que causa nossas condutas. Como no caso do já citado
modelo unidirecional de Lasswell, bem como nos modelos dialógico (Cf. FREIRE, 1971)
e estrutural (Cf. MANN et al., 1993) que, cada um à sua maneira, redistribuem a agência
experiências.
O ponto que nos interessa é, neste sentido, que estes dois últimos modelos não só
atravessa cada um destes modelos, que são, ao fim e ao cabo, indissociáveis de um certo
modo de se pensar seja o social, seja o político, seja, no limite, o próprio problema do
O que implica toda uma ecologia de poderes que, em nosso caso, como já
O que nos remete, além do mais, à toda uma multiplicidade de técnicas, táticas e
dispositivos que visam modificar e conduzir a conduta dos homens e que adentram o
tocante à alimentação. Bem como a outros elementos que compõem a existência e a vida
Sinergismo este que, numa microfísica do poder (FOUCAULT, 1979a), pode ser
elementos atravessam condutas que, embora correlatas à práticas, remetem mais à forma
alimentação.
Um bom exemplo, aliás, que toca essa distinção entre conduta e prática, remete
da existência onde a “prática do regime (...) [era uma] arte de vida, bem diferente de um
De tal modo que o que interessava era a constituição de uma ética de si onde a
dietética operava como uma arte estratégica, uma técnica de existência que “(...) não se
los passivamente” (Id., p. 97). Tanto que a dieta “não [era] concebida como uma
obediência nua ao saber do outro; ela deveria ser, por parte do indivíduo, uma prática
2008), o poder opera também pelo investimento, pela definição e pelo cuidado do corpo
condições nas quais ele pode ser livre [e, por fim, onde] (...) a própria ascese foi absorvida
É frente, pois, a este diagrama biopolítico, onde falamos de uma conduta alimentar
(Cf. COSTA, 2010) que compõe a nova seara de intervenções do saber-poder biomédico
sobre a vida.
alimentação saudável (Cf. KRAEMER et al., 2014. Discursos estes que determinam a
prática e a conduta de muitos profissionais da Saúde que acabam por ignorar a complexa
poder.
legítimo esforço de parte dos pensadores do campo para, como também buscamos situar
lidar com esta questão. Estratégias que passam, inclusive, a se debruçar sobre toda essa
ontológica.
ganha novos contornos que, para além do referencial foucaultiano das técnicas de governo
por Cyrino e Teixeira (2017) em diálogo com Lévy (1996) e que diz respeito ao
ontológico.
Não por acaso, aliás, o esquema do quadrívio ontológico convoca, sustenta e opera
discussão em uma ontologia do comportamento. O que cria condições para olharmos para
possíveis que podem se realizar (ou não), o que estabelece uma relação íntima entre dois
Relação esta que se situa, portanto, na ordem do facultativo e que se move por
meio de algo que vem fundamentalmente de fora. Ou seja, de variáveis que podem
compreensão da relação entre saber e ação a partir de um outro ponto de vista. Quer dizer
saber-ação.
Bem como evidencia que um dos pontos centrais desta discussão é justamente que
exist[em] na latência de um conjunto de ações possíveis” (Id. ibid., p. 14). O que alimenta,
por sua vez, o próprio fato de que um comportamento, uma conduta, uma prática, uma
competências
não guardam com seus condicionantes uma relação de possibilidade, mas uma
relação de necessidade. Pode se dizer que sua manifestação obedece a uma
imposição vital. Não dependem mais do arbítrio de alguém que, em dadas
condições de possibilidade, possa escolher realizá-la ou não, mas se
manifestam em ato como exigências vitais atravessando o que se poderia
chamar das “condições de impossibilidade” que se colocam para a existência
de cada um. (op. cit., p. 15)
experiência singular de se viver com uma dada condição de saúde (Cf. CYRINO, 2009),
O fazer, neste sentido, não só não está desconectado das condições de vida, como
efetivamente envolve uma série de saberes da experiência que são tributários das
De tal modo que problemas são tudo, menos abstratos, tanto que
“Antes” dela não podemos verificar nada que tenha existência, mas, quando
muito, que se verifica enquanto potência. Esse “antes” só pode ser concebido
como “pura potência”. Essa, entretanto, sequer pode ser concebida como
“anterioridade” e, por isso, sua relação com o manifesto é da ordem do
necessário e do atual. O não manifesto não existe! (Ibid., p. 15)
potência de existir (...) [tanto que o] que existe em ato expressa imediatamente uma
16)
que aponta para o que Cyrino e Teixeira aventam como uma “ontologia da ação humana”,
que é correlata à uma “ontologia das competências”. Ontologias essas que evidenciam
como há, no fim das contas, “toda [um]a gama de relações inextricáveis entre esses quatro
modos de ser: possível, real, virtual e atual” (Id., p. 16), e que compõem o quadrívio
ontológico.
Introduzido pelo diálogo com Lévy, é por meio dele que os autores não só põem
esta máquina ontológica para funcionar, como aprofundam as diferenças entre estes
[r]eal, possível, atual e virtual são quatro modos de ser diferentes, mas quase
sempre operando juntos em cada fenômeno concreto que se pode analisar.
[Afinal, t]oda situação viva faz funcionar uma espécie de motor ontológico a
quatro tempos e portanto jamais deve ser ‘guardada’ em bloco num dos quatro
compartimentos.” (Ibid., pp. 141-142)
manifesto (correlato, por sua vez, ao real e ao atual), o que nos leva a convocar e situar
da conduta humana, é que elas permitem que evidenciemos duas dimensões constitutivas
168
E, com efeito, seguindo nesse mesmo sentido, há sempre que se considerar “as
condições objetivas de que dispõe [o sujeito] para transformar suas práticas” (AYRES,
2009, p. 449), que são determinadas também “pelo lugar que ocupa o indivíduo
socialmente, [o que compõe] seu modo de vida e o acesso que dispõe junto às redes de
cuidado e proteção social” (CYRINO; TEIXEIRA, op. cit., p. 199), bem como a sua
perplicação com determinantes estruturais, coletivos, institucionais que vão afetar a sua
mostra Massumi (2015a, 2016, 2018), já não se sustenta mais na distinção entre as esferas
o manifesto porque o capital toma corpo de maneira sempre emergente. Ele opera não
existência.
própria captura dos potenciais tendenciais que revolvem no mundo, estamos diretamente
em relação com a “atividade formativa, ainda não completamente canalizada para assumir
169
processo do capitalismo, abrimos caminho para exploramos uma outra inflexão, correlata
Inflexão essa que é terra fértil para pensarmos como estes processos manipulam
Esta modulação, esta manipulação é, não por acaso, o que constitui uma forma
qualitativa.
capitalismo dizem respeito ao fato de que o próprio processo capitalista fez de si mesmo
estende à produção dos indivíduos e às formas de vida do capital relaciona-se seja aos
infraindividuais (lá onde um hábito, um comportamento, uma prática, senão uma vida
ainda estão por emergir). Seja, a rigor, o da intervenção, tanto quanto o da própria
individualidade. Noção essa que se atrela, entre tantas outras coisas, a noções e conceitos
como os de sujeito, de corpo e de identidade, todos estes relacionados, por sua vez, ao
mecanismo da representação e a uma certa teoria social que baseia-se na oposição entre
“macro” e “micro”, entre “geral” e “particular”, entre “sociedade” e “indivíduo”, etc. (Cf.
escalas: infra e transindividual. Enquanto o capitalismo, por sua vez, atua exatamente
neste
imanente aos seus movimentos, operando a sua própria máquina ontogenética, que bebe
fluxo, onde:
E é em meio a essa abstração do capital, quer dizer, de sua auto-abstração, que nos
[o] valor do setor financeiro é, agora, muitas vezes maior que o do setor
manufatureiro nas economias desenvolvidas. [E a]inda que a autoabstração
nunca possa ser completa, e que a articulação dos mercados financeiros com a
economia dita “real” não possa ser eliminada, é extremamente significativo
que o equilíbrio tenha mudado, e que o esforço do capital para levitar a si
mesmo da esfera da produção concreta tenha assumido o primeiro plano. (Id.
ibid., p. 7, grifo nosso)
corpo fora. Ela o abstrai na existência. Ela desce até o nível vital da matéria emergente,
cit., p. 8, grifos nossos) Ela opera, assim, em um nível infracorpóreo, de tal maneira que
elas não são fabricadas em si, mas fabricadas para assumir uma forma através da
nossos)
questão neste infranível é precisamente o devir, o próprio processo de devir do ser, sua
que ainda não está completamente formado e que remete ao que Massumi nomeia como
atividade nua, que “[n]o que diz respeito ao infra-humano, (...) são os altos e baixos do
desejo, tendência, medo, esperança, interesse pessoal, simpatia, tensionamentos por ação
melhor, ser ou não ser é a falsa questão, o falso problema, porque o ser não é uma métrica,
formativos. No mesmo sentido em que a vida não existe em si mesma, de uma tal maneira
que “[m]ais do que (...) qualquer em-si das coisas, estamos falando do de-si do mundo: a
Em meio a esta nova ecologia do poder, o que está em jogo é, portanto, não a
dizer, está em jogo um processo transversal que opera em níveis trans e infraindividuais
e que nos abre, ainda, para uma multiplicidade de tendências que não podem ser reduzidas
O que não quer dizer, entretanto, que essa dimensão deva ser desconsiderada, pelo
MONTEIRO et al., 2000, 2010, 2011, 2013; MOUBARAC et al., 2014) nomeou como
alimentos ultraprocessados.
capitalismo, possuem, não por acaso, uma relação íntima com o próprio processo
capitalista que, virtualmente em toda a parte, cria uma ecologia de práticas – alimentares,
corrobora a
(...) ideia de que, num certo grau, tudo está incluído no campo capitalista[. E]
a ideia de que há graus de inclusão, mais do que um simples dentro e fora,
possibilita trabalhar com essa cumplicidade, mais do que simplesmente
moralizá-la. Trabalhar com isso – ou melhor, brincar nisso. Brincar disso.
Brincar com isso. Fazer jogo-duplo com isso. A duplicidade processual é uma
ferramenta ontopoderosa (...): é o conjunto difuso de capacidades que um
divíduo tem para pertencer genuinamente a dois conjuntos ao mesmo tempo,
mas não da mesma maneira – e sim com tendências divergentes simultâneas
em cooperação. A prática da duplicidade processual é um modo – limitado pela
necessidade, é bem verdade — de prolongar a “esquize” da atividade nua no
panorama institucional; um modo de conservar uma influência sobre o
potencial, de continuarem em movimento com um quantum de devir.
(MASSUMI, op. cit, p. 30, grifos nossos)
O modo, então, como essa ecologia de poderes gira em torno da ontogênese não
só nos lança em problemas que são efetivamente metafísicos, como evidenciam esta
Esta ação ontogenética envolve, assim, não uma comunicação que se presta a
passar uma mensagem, mas uma ativação que irá produzir uma nova modulação sob(re)
algo que nunca aconteceu antes: um processo de ontogênese. O que é dizer, em outros
Afinal, como já dissemos antes, a “ontogênese não pressupõe nenhum sujeito pré-
contrário, vê os sujeitos e [os] objetos como co-emergentes dos eventos” (Id., p. 271,
campo de emergência, modula a atividade nua constitutiva deste campo no seu intervalo
de formação.
intensificados: seu poder de produzir a vida, incitando-a a assumir sua própria forma, a
Ele é, assim, menos um poder sobre a vida, sobre o vivo, sobre indivíduos e
Com efeito, nesta vasta ecologia de tecnologias de poder, vemos distintas lógicas
que nos situa em um equilíbrio distinto entre a reprodução sistêmica e o devir. E que é
entendida como um devir que é tão trans-histórico – isto é, não delimitado por um período
emergiu nos EUA após os ataques de 11/09. O que implica, e este é o ponto que nos
Esta lógica operativa está, assim, sempre em mutação, polinizando-se por diversos
campos, como no caso da própria Saúde ou ainda dos processos políticos recentes no
prisão de Luís Inácio “Lula” da Silva, onde convicção era mais do que o suficiente para
uma condenação e medidas coercitivas preventivas eram tomadas antes que qualquer
encontra, a preempção favorece sempre sua própria forma processual, operando em meio
à toda uma eco-lógica preventiva que atua já sob o campo de potenciais. Aproveitando,
aos devires que as compõem, atravessam e ultrapassam, e à própria gênese dos momentos,
[u]ma ameaça que não ocorre – que não eventua como um perigo atual – ainda
carrega esse poder quase-causal de induzir uma individuação coletiva (...) [em
meio à] uma sintonia afetiva emergente: a individuação complexamente
correlacionada de uma população inteira. No calor de uma individuação
coletiva, o indivíduo vive a si mesmo como parte-sujeito. O coletivo aqui –
“coletivo” em seu significado verdadeiramente processual – não é um
agregado de indivíduos. É uma subjetividade sem sujeito singularmente
múltipla expressando-se por meio de sujeitos-partes em uma sincronia de
correlatos tornar-se-diferentes uns dos outros e do que cada um foi. (Ibid., p.
239, tradução nossa)
constituído, radicalizamos a ideia de que “não somos sem um Outro” (AYRES, 2002) e
sobre “uma individuação perpétua que é a própria vida, segundo o modo fundamental do
O que é dizer, em outros termos, que qualquer ideia mais geral de um sujeito ou
científico, é importante situarmos que por mais que toda essa discussão ontopolítica
pareça apenas uma hipertrofia filosófico-conceitual, ela não só evidencia em que níveis
essa discussão está sendo cultivada em outras terras como, mais do que isso, ela também
realidade por si só, e que uma relação pode ser percebida diretamente (mesmo que apenas
seguir –, como ao empirismo radical de James (op. cit.), cujo desafio é justamente o de
começar pelo meio, na experiência pura: naquilo que é imanente às relações reais em um
c(a)osmos aonde elas ainda não foram organizadas em termos fixos, como sujeito e
objeto. E onde a experiência ainda está aberta ao seu excesso, ao seu mais-do-que, ao
potencial, de tal modo que o virtual, neste campo de relações, nunca é o oposto do atual,
mas o próprio modo como o atual ressoa além dos limites de sua atualização. (Cf.
MANNING, 2016)
É, pois, neste registro afetivo que contribui para a própria experiência, à beira do
virtual e do atual, que há de se observar, para além de uma distinção entre real e irreal, a
[n]ada deve ser admitido como fato (...) exceto o que pode ser experimentado
em algum momento definido por algum experienciador; e para cada
característica de fato já experimentada, um lugar definido deve ser encontrado
em algum lugar no sistema final da realidade. Em outras palavras: tudo o que
é real deve ser experienciado em algum lugar, e todo tipo de coisa
47
Massumi se refere aqui ao priming, isto é, ao processo pelo qual criam-se respostas automáticas ou,
melhor, uma prontidão de conduta, como no caso da educação e do treinamento policial e militar.
179
experienciada deve ser, em algum lugar, real” (JAMES, 1996, p. 160, grifo
nosso)
O que está em jogo, neste sentido, é não um sujeito, mas uma qualidade, uma
experiência na qual ela não é constituída previamente ao sujeito ou, dito de outra forma,
de uma relação em que o sujeito não é desacoplado da experiência, que poderia ser
gastronômica tipicamente singular de uma dada parte do globo que é deslocada de toda a
ecologia que a compõe a fim de ser comercializada como um bloco de experiência (pré-
fabricada): como se a experiência de tomar um coco na praia fosse a mesma que tomar
se o bolo ou qualquer outra receita de nossas avós pudesse ser emulado e vendido em uma
loja especializada.
condições e os meios pelos quais algo eventua como uma entidade fractal. E “uma
experiências” (WHITEHEAD, 1978, p. 43, tradução nossa). Que é, por sua vez, o próprio
solo germinal para um novo sujeito que, dipolar ao seu superjecto, ao seu superjeito, é
criado a partir de uma sensação que arrasta o processo para outras composições e
experiências.
anteriormente, onde, para além de um reconhecimento, de uma relação entre dois seres
180
pré-constituídos, o que se expressa nesta ocasião não é uma reprodução, mas uma
entre, isto é, em um modo de análise que é afetivo, ao invés de (con)formal. Quer dizer,
numa perspectiva que não é nem a do tigre, tampouco a da criança, que vê:
a imanência de uma vida. Não “o” tigre: tigretude. As crianças não divisam a
forma do tigre. Elas têm uma visão intuitivamente estética do tigresco como
uma forma dinâmica da vida. É isso que elas transpõem quando brincam de
animal. Não sobre suas próprias formas, mas dentro de seus próprios
movimentos vitais. (...) [Sendo que o] ponto principal é que a criança não se
coloca na forma do tigre, tampouco coloca a forma do tigre em si mesma (o
que, em termos identificatórios, redunda na mesma coisa, a depender se
olhamos do angulo da projeção humana no animal ou da contraprojeção do
animal retornando o gesto identificatório do humano para si mesmo). (...) Na
brincadeira intuitivamente visionaria da criança, o ponto do tigre in-forma o
contraponto do devir-tigre da criança. A relação é imanente. Não é uma
relação de ação-reação, no sentido corrente, que conota uma relação extrínseca.
O que está em jogo é uma relação imanente de modulação. A criança não imita
o tigre a certa distância. A criança é en-tigrada, numa vívida e infinita
proximidade da tigretude. (MASSUMI, 2017b, pp. 156-159, grifos nossos)
ontogenética, seria como efetivamente criar uma comporta que reduziria e regularia a
pensá-la (...) [como uma noção ao mesmo tempo metafísica e lógica (...) [que] se aplica
O que não é dizer que falar “eu” é um problema. A questão é não perdermos de
vista que o “eu” é, ao fim e ao cabo, ou melhor, no meio e na corda bamba, uma
isso: (...) o senhor empurra para trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados.
Ser[-]tão é quando menos se espera” (ROSA, 1982, p. 218), é caminhar como caminha o
mundo: em devir.
É, lembrando ainda de Kazuo Ohno, o próprio dançar da vida, onde o “[e]u dancei
nesse mesmo sentido, é, ao mesmo tempo, também deserto já que, na perspectiva do butô,
do corpo em um deserto, em uma concha vazia para o próprio dançar da vida em sua
cri/atividade, como no caso de Zorbás: “há em mim um diabo que grita, e eu faço o que
ele diz. [E]le diz: Dança, e [o] eu danç[a]”. (KAZANTZAKIS, 1978, p. 42)
E pertence, assim, ‘‘à natureza de todo ‘ser’ ser um potencial para todo ‘devir’”
(WHITEHEAD, 1985, p. 45, tradução nossa), “assim como um ser (...) sai de outro”
48
Excerto de entrevista de Kazuo Ohno que integra o documentário “Butoh: piercing the Mask”
(BOLLARD; MOORE; MASSON-SEKINÉ; HIJIKATA, AKA, 1991, DVD vídeo). Disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=paHf7Dfaky4. Acesso em 13/04/2021. Tradução nossa.
182
(OHNO, op. cit., tradução nossa). De tal modo que, nessa poética das relações, segue-se
singular de todas as coisas no universo” (DA SILVA, 2016, p. 67) e com os quais ela
6.3. Interlú[r]i[c]o II: In-between hunger and appetite49 – food for thought in the
act50
What is more important (...) is not so much to
defend a culture whose existence has never kept a
man from going hungry, as to extract, from what is
called culture, ideas whose compelling force is
identical with that of hunger.
Antonin Artaud
questions that feed our contemporaneity, nourishing even what became known as the
a concept, marks the evidence and the extent of human activities that have had a
Not by chance, agribusiness, monoculture and livestock farming are some of the
human activities that most affect and transform the planet, and their implications can be
seen all around the globe, being deforestation, biodiversity decrease, water pollution, and
49
Esse sub(e)estrato foi publicado originalmente em Inflexions, popfab, número 11, disponível em
http://www.inflexions.org/popfab/pdfs/alexis.pdf. Acesso em 12/02/2021.
50
Resonating the idea that no one writes alone, this composition is a welling ecology and it was fertilized
throughout the minor movements and Farm for Social Dreaming celebrations held by the SenseLab in São
Paulo (Brazil) in April 2019, specially through the encounters with Brian Massumi, Andrew Goodman,
Tessa Laird, Branca Cabral, Halbe Kuipers, Sebastian Wiedemann, Meline Costa, Ana Dupas, Nathalia
Favaro, Suely Rolnik and Thomi Kunze, who between other senselabbers, partners and friends, have taught
us that we never dream, think, cook or eat alone. Many thanks to all of you. Besides that, it is important to
mention that a first version of this writing was presented in the session Food in the Anthropocene as part
of the programme of the international conference Art in the Anthropocene, held at Trinity College (Dublin,
Ireland) in June 2019, and also to situate that it has been cultivated in the research Powers of hunger, powers
of life: a cartography of the food practices expressed in social networks, developed under the supervision
of Prof. MD Ph.D. Ricardo Rodrigues Teixeira in the Postgraduate Program in Collective Health of the
School of Medicine of the University of São Paulo (Brazil) and in collaboration with Prof. Ph.D. Erin
Manning and Prof. Ph.D. Jorge Menna Barreto. This study is financed in part by the Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Finance Code 001.
184
soil exhaustion the most common ones, especially in Brazil, where we can also see the
rising violence against indigenous peoples and traditional communities in the last years51.
proposition from the Brazilian artist Jorge Menna Barreto for the 32nd São Paulo Art
Biennial – Live Uncertainty, 2016 – that, for the first time, integrated the restaurant of the
Biennial Pavilion in Ibirapuera Park to the curatorial frame of the exhibition, which made
Through themes such as multispecies assemblages, land art, plant-based food and
food activism, the project investigated the possible relations between agroecology and
site- specific practices in art, formulating not only questions about the construction of our
eating habits and their relationship with the environment, with climate and with life on
the planet, but also proposing an awakening to the uses of land and the consequences of
Not surprisingly, the verve of the work was what the artist named as
environmental sculpture, a concept that deals with both a redesign of our digestive system
– proposing its beginning not in the mouth, but on the land –, as well as a slippage of its
In addressing the issue of food beyond the idea of personal taste, Menna Barreto
aimed at highlighting the relationship that food has with the environmental impact it
generates, and in this very sense, restoration was another theme of the project, even
51
See Violence against Indigenous Peoples in Brazil – Data for 2017, a report by the Indigenist Missionary
Council (Conselho Indigenista Missionário - Cimi). Available at https://cimi.org.br/wp-
content/uploads/2018/12/Report-Violence-against-the- Indigenous-Peoples-in-Brazil_2017-Cimi.pdf. See
also https://theintercept.com/2019/02/16/brazil-bolsonaro-indigenous-land/. Both accessed on June 11,
2019.
52
See https://www.youtube.com/watch?v=IXvj_x0qs7U&t=3s. Accessed on June 9, 2019.
185
restoration, which in its turn serves as the basis for restaurant, precisely the place where
extrapolating the level of the individual restoration to, through the hunger of the public
that participated in the artwork, favor the restoration of the soil, of biodiversity, of forests,
of rivers, as well of fairer relations between producers and consumers through principles
In addition to the fact that the project was already itself a relational soup – as it
involved a series of institutions and individuals that collaborated with it and that made
the proposition feasible, principally in the proportions that it engaged in that occasion –,
the protagonism that agroecology assumed flourished in the way that Restoration dealt
with its supply, which came mostly from a network of agroforestry farmers, who shared
with us the role of a sculptor, not only of the landscape but also of the forest.
assemblages that count with human presence, including it as a catalyst for forest
processes, since humans play a intertwining role in the relationship between species,
composing with their qualities and tendencies, and articulating, from a sustainable forest
managing perspective, the way that they relate inside its creative system, which leads to
a technique for food production that benefits humans and all living beings of the forest,
as well as its surroundings through processes of regeneration and fertilization of the soil,
the water, the ecology of the region, and even other things, like local economies.
Well, by summoning the idea of site-specificity Menna Barreto not only proposed
to think the sculpturability implied in the act of eating – considering that what we eat
define the landscape where we live –, but took another step: rather than simply
recognizing the impact and the responsibility of our eating habits on the landscape,
186
Restauro pollinated a way in which we can add a degree of intentionality to them, so that
the impact is not simply a resultant, but a goal that implies an active modeling of the
If we talk about politics then is because Restoration not only understood the act
of eating as a political act, but also because it emerged as a proposal of political activism,
Our interest, though, is to take this assemblage, this agencement and think-move
fabulate what, indeed, dance and play between hunger and appetite.
1996, 1998), for instance, maybe we can start to perceive not just this movements, but the
possibility of cultivating this political dimension in another terms, maybe still strange to
our tastes.
This concept deals with a widespread notion in Amerindian thoughts in which the
world is populated by a multitude of other subjects, in the very sense that "there are many
more societies (and therefore also humans) between heaven and Earth than have been
2017, p. 94), so that what we would call natural world is for Amerindian epistemologies
a society of connected societies where other species are also subjects and peoples.
the first was the subject and the second the object, Amerindian perspectivism not only
radicalizes the assertion that everything is political, but also reverses the classical
187
Cartesian postulate, stating that if something exists, it thinks; and that what we call
fundamentally seen as human, so that the very humanity is at the same time a universal
This implies the fact that the point of view of the “I-subject”, of the "I-human"
species, in such a way that the humanity of one species is imposed on that of the other,
and usually the latter ends up being devoured in this metaphysics of predation, where:
humans will under normal conditions see humans as humans and animals as
animals (...). Predatory animals and spirits, for their part, see humans as prey,
while prey see humans as spirits or predators (...). ‘The human being sees
himself as what he is. The loon, the snake, the jaguar, and The Mother of
Smallpox, however, see him as a tapir or a pecari to be killed’ (…) In seeing
us as nonhumans, animals and spirits regard themselves (their own species) as
human: they perceive themselves as or become anthropomorphic beings when
they are in their houses or villages, and apprehend their behavior and
characteristics through a cultural form [which means that]: they perceive their
food as human food – jaguars see blood as manioc beer, vultures see the worms
in rotten meat as grilled fish – and their corporeal attributes (coats, feathers,
claws, beaks) as finery or cultural instruments, and they even organize their
social systems as human institutions, are with chiefs, shamans, exogamous
moieties and rituals. (VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p. 76)
menu, imminently we cannot think of food and eating in the same manner, especially
considering not just the way that humans see animals, spirits and other actants in the
Amerindian cosmos, but mainly because every difference is political in this multiverse,
“there is scarcely an existent that could not be defined in terms of its relative position on
a scale of predatory power” (Id., p. 57), and the positions of predator and prey implicate
biopolitical problem, and also the recurrent idea of hunger as a physiological problem that
comprises the individual body and, at its limit, the human species.
not only an ethical-political act, an act of resistance but, more than that, it is a
cosmopolitical act of resistance, in such a way that we can fabulate how an eater is also a
kind of cosmopolitical diplomat, in the sense that our food practices put us in the center
of an arena where all the multiplicity of beings strives to persevere into existence, and
where the “shocks, [the] appropriations of parts, the transformations of relations, the
Hence, the very possibility of producing a more potent body involves the capacity
to, if we remember Spinoza, establish relations of composition with other bodies, with
other beings and also to avoid relations which may break down our own singular relations,
as the Yanomami shaman Davi Kopenawa narrates in The Falling Sky while he tells us
At first, I really suffered from the hunger, to the point of crying! But that’s the
way it is, you cannot see the xapiri [the spirits of the forest] and become a
shaman by dozing with your stomach full of game and manioc. (…) The xapiri
were constantly dancing around me, and it was they who were feeding me. By
becoming other, I was starting to eat an invisible food that they placed in my
mouth while I was asleep. In my dream, they repeated: “Eat, this is our food!”
(…) Then I could smell the scent of their annatto body paint and magic plants
spreading around me. I was very weak but in my sleep, I happily ate what they
brought to me. (…) Bit by bit, the wasp spirits and the xaki bee spirits devoured
all the fat in my body. There was nearly nothing left of my flesh (…) All traces
of food and rotten game had disappeared from my insides. The xapiri had
weakened me with hunger and thirst. They had made me much thinner. I had
become clean and sweet-scented like I was supposed to be. It is so. Yet I did
not feel badly at all for I truly wanted to become a shaman! It is so. To receive
the spirits of the elder who give us the yãkoana, we must have an empty
stomach. At the beginning, its powder must be our only food. Once our insides
are truly cleaned out, the xapiri can finally come to us. (KOPENAWA;
ALBERT, 2013, pp. 81-82)
189
So, as we can note, hunger in this vibratory field appears as a technique that not
just shifts ontologies and modes of existence toward a collective milieu, but flowers
That is to say that hunger has less to do with feeding the biological body, but
rather, mainly to ontogenesis, in the very sense that, as Andrew Goodman well observes:
This is an idea that takes us back to the vegetable promiscuity held by Restoration
with the notion of forestness, that tried to address a certain force, a certain quality of
relations within this bodyplant individuations that was transversal to the environmental
appetite that the artwork cultivated and that was determinant to it, especially to its
educational approach, which attempted to invent techniques to work not via human
mediation and human discourses, but through a sort of molecular politics where art is a
technique, a way, an “intuitive process for activating the relational composition that is
other species already arouses a certain appetite from many thinkers, this proposition was
trying precisely to take the human discourse away from the center of the discussion, and
this spurs us to a fabulation about what else hunger could be if we refuse any categorical
distinctions between human and nonhuman and if we try to include in the mix the
crossing its daily routine as a food service provider – as it was, after all, the restaurant of
190
the Biennial –, and clearly it was something that we had to deal and to learn to compose
with as, to remember Spinoza again, an encounter with a typical hungry person could
minor tendency that pointed out to a different understanding of hunger: a hunger for
commons, a hunger for compositions, a hunger for socialities, a hunger for relationality,
a hunger for something that was not given, an appetite for novelty we might say.
And that resonates what Erin Manning calls artfulness: “the world’s capacity to
make felt the force of a welling ecology (…) [that is not] a general fact [but] an intensive
singularity, an opening onto an outside that affects each aspect of experience but cannot
When there is artfulness, Manning adds, it is because conditions have been created
that enable new openings for experience in the making, new conditions, new possibilities,
even because, as well as ecologies, “artfulness is always more than human.”53 (Id., p. 72)
Which is not to say that we want to exclude it. When we talk about Restoration
we are talking also about the human, but through an ecology of existence in which it is
more likely a relay, an entertainer (Cf. GOODMAN; MANNING, 2012) or, to phrase it
in different terms, in a way where there is no need to make the experience all about the
human, neither to colonize and organize the powers of life from the perspectives of our
53
As in Always More Than One (2013) and The Minor Gesture (2016), Manning toggles between more-
than-human and more-than human. For her the more-than-human is “a way of making operative ways of
thinking the nonhuman without excising the force of human complicity from these worldings” (2016, p.
244). The more-than human, by its turn, focuses on the dimension of the human, “emphasizing that the
category of the human is always modulated and affected by the more-than” (Id., p. 245). It is also important
to situate that the author develops the concept of speciation to account for the intercession of the more-than
in what it means to be human.
191
Those perspectives – of the human, of the biological, of the senses – organize our
bodies, our hungers, our appetites and also the novelties of life in a choreography that
frames the qualities of experience in such a way that, as in certain parts of a dense forest,
In this same sense, considering the fact that in contemporaneity the very field of
emergence is at the core of the investments of what Brian Massumi (2015a) defines as
ontopower – a power that acts at the level of the production of a form of life, precisely in
its field of emergence – the problems around eating and hunger are coined in misleading
and poor ways that engender questions like "what will be the future of food and eating?",
And we say this justly because they are formulated in modes that continuously
reset human centrality, calling the attention to some kind of new stage in human
development where the very mankind is threatened by the end of the world.
The good news is that, as the indigenous thinker Ailton Krenak would say54, it is
the end of a certain world. A world where the human considers himself suspended and
White people call us [indigenous people] ignorant because we are other people
than they are. But their thought is short and obscure. It does not succeed in
spreading and rising because they prefer to ignore death. They are prey to
dizziness because they constantly eat the meat of their domestic animals who
are sons-in-law of Hayakoari, the tapir-like being who makes people turn
other. They constantly drink cachaça and beer that overheat their chests and
fill them with fumes. This is why their words become so bad and muddled.
(KOPENAWA; ALBERT, op. cit., p. 313)
54
See “Somos índios, resistimos há 500 anos. Fico preocupado é se os brancos vão resistir”.
https://expresso.pt/internacional/2018-10-19-Somos-indios-resistimos-ha- 500-anos.-Fico-preocupado-e-
se-os-brancos-vao-resistir#gs.KsXCCzw. Accessed on June 17, 2019. See also Krenak, 2019; Danowski;
Viveiros de Castro, op. cit.
55
See Kopenawa about ecology: “In the forest, we human beings are the 'ecology.' But it is equally the
xapiri, the game, the trees, the rivers, the fish, the sky, the rain, the wind, and the sun! It is everything that
came into being in the forest, far from the white people: everything that isn’t surrounded by fences yet. The
words of “ecology” are our ancient words, those Omama [the demiurge] gave our ancestors at the beginning
of time. The xapiri have defended the forest since it first came into being. Our ancestors have never
devastated it because they kept the spirits by their side. (...) That is all. We are inhabitants of the forest. We
were born in the middle of the 'ecology' and we grew up in it. We have always heard its voice because it is
the voice of the xapiri who come down from the mountains and hills of the forest.” (op. cit., p. 393)
192
Not by chance, and as we already had the opportunity to taste, politics are
something else for the peoples of the forest. To the Yanomami, for instance:
It is the words of Omama and those of the xapiri that he gave us. These are the
words that we listen to during the time of dream and that we prefer because
they are truly ours. The white people, they do not dream as far as we do. They
sleep a lot but only dream of themselves. Their thought remains blocked, and
they slumber like tapirs or turtles. This is why they are unable to understand
our wor[l]ds. (Id, p. 313)
separations, but involves the affirmation of multiple multiplicities that dance around at
least three tasty cosmopolitical problems that resonate within each other: the one of
eating, the one of dreaming and the one of listening (Cf. LAIRD, 2018).
And when we talk about resonance it is because their transversality do not resonate
sameness, but produce difference, co-composing multiple worlds that are not individual
and reflexive in each other by common contents and/or forms of life, but resonant in their
affirmative co-creating togetherness that, as Manning also points out about artfulness,
“cleaves experience to produce not a recognizable set of frameworks, but new modes of
practice that listens not just to the sounds of our hungry stomachs, but that fertilizes modes
56
Manning, Erin. Interviewed by Brad Evans for Histories of Violence Project – Los Angeles Review of
Books, January 2, 2018. Available at https://lareviewofbooks.org/article/histories-of-violence-
neurodiversity-and-the- policing-of-the-norm/#!. Accessed on 13 June 2019. See also Manning, 2016,
“Artfulness – Emergent Collectivities and Processes of Individuation”.
57
See DELEUZE; GUATTARI, 1987: "The multiple must be made, not by always adding a higher
dimension, but rather in the simplest of ways, by dint of sobriety, with the number of dimensions one
already has available— always n - 1 (the only way the one belongs to the multiple: always subtracted).
Subtract the unique from the multiplicity to be constituted; write at n - 1 dimensions. A system of this kind
could be called a rhizome.” (p. 6)
193
In this sense, the relational field that Restoration opened allowed hunger to exceed
that enables the conditions for the emergence of complexity and difference, emphasizing
the potential of dynamic and diverse ecologies with intensive capacities towards a
rewilding (GOODMAN, op. cit.), but that moves experience towards a politics of
creativity, and not just a good – we mean, food –, agroforestry aims the flow and the
“a tuning of the field towards its future differentiation that is felt by the ecology itself –
an immediatory process by which ‘fields of relation agitate and activate to emerge into
than returning an ecology to a state where it can immediate” (Id, p. 12), neither of
which disparate entities and forces are integrated into a system of relation through the
7).
hereupon:
we need to live first of all (…) to believe that whatever is produced from the
mysterious depths of ourselves need not forever haunt us as an exclusively
digestive concern. (…) if it is important for us to eat first of all, it is even more
important for us not to waste in the sole concern for eating our simple power
of being hungry (ARTAUD, 1958, p. 7) [: the wonder remains.]
194
That is to say that hunger is not an entropic force, but a fruitful and fertile one, in
such a way that the powers of hunger, as a transvaluing gift, move us toward an ecology
of experiences and practices that values its relational emergence, as well as of the
relational emergence of the experience of eating, which, as Menna Barreto stated, begins
Eating then connects the forces of becoming-other at the level of the process, a
level in which this ecological field – mouth-land-forest – is pointing to potentials that are
not yet fully unfolded in a world in which metabolism is always nascent within potential
So, to paraphrase Monteiro (2009): the issue is not food, nor nutrients, so much as
process. And in this same sense, resonating Deleuze and Guattari, a food practice “does
not come after the emplacement of the terms and their relations, but actively participates
in the drawing of the lines” (1987, p. 203), in the very sense that environmental sculpting
not just fruits a way to get out of the nutritional-biological loop, but pollinates affective
relations with objects, functions or systems, fertilizing forces for bodies in the making in
way that eating not just plays with emergent cosmologies, but flowers as a biogramming
Thus, by enjoying the blurriness of the lines between body and world – not in the
mouth, but on the land –, hunger blossoms as an intercession. It doesn’t start in the body,
but in the middle, in-between, moving “the transindividual nature of the forces at play
and their primary role in the potential individuation of plant, human, image, thought and
195
hybrids of all these components” (GOODMAN, p. 11): we are in hunger, and not hunger
in us.
And with this we try precisely to emphasize the coindividuation that hunger moves
forces of becoming resonate the richness of the potential individuations that arouse our
that move the ecology forward. To where? Perhaps to a new intensity – new degrees of
differentiation – lived across new planes” (GOODMAN, op. cit., p. 8): rewilding appetite.
logic –, precisely the ones that we commonly see intensified in restaurants, where the
human- anthropocentric sovereignty is crowned as it ascends to the top of the food chain.
In this very sense, one of the tastiest questions is, as Manning well poses:
what exactly it is that has led us to the certainty we seem to have that the world
can be parsed out into subjects and objects, and how intertwined this assertion
has become with a notion of interactivity that sets itself up (...) as a mediating
interplay between already-existent terms? (2013, p. 220)
hunger, since it becomes an onto-topological problem and, in this very sense, it is no more
subjects and species, but an event that plays with adverbs and speciations58: not life, but
58
See “Another Regard” in MANNING, 2013, and also footnote #6.
196
So, if we think in terms of speciations, we start to cross organic and inorganic all
singularly contributes, especially because neither human, nor object, nor animal, nor plant
(…) they are tweakings of emergent tendencies for coalescence within a co-
emergent field of experience. They are neither human nor nonhuman – more
like resonance machines that are activated in the between of the organic and
the inorganic (…) a kind of coming-into-emergence of a welling individuation
that connects as a remarkable point or a point of inflection to a wider field of
experience (…). The singular “speciation” (…) activates the wider field of
relation toward certain tendencies (…) [in a way in which] speciations
converge not through a matrix of identity (“the” animal, “the” human), but
through (…) speeds and slownesses of welling co-constitutive ecologies.
(MANNING apud MASSUMI, 2015b, pp. 122-123)
nor a cultural relation – what is edible –, neither a social practice – a food practice –, but
a relational field, fruiting a mode of perception that doesn’t perceive ontologically distinct
categories of beings, and a mode of living that doesn’t move from subjects to objects,
from species to species, from self to self, from self to other, or from self [to] service, but
including all manner of differentiation in potential in such a way that, to remember Ursula
Le Guin and the Frin People, it engenders a collective, social and ecologically generative
force, a set of conditions where the messmate doesn’t share its practice – a particular food
practice –, neither the content – the food –, but the style: a mode of life that nourishes a
collective sensitivity in which the eater is always intertwined and nascent within every
particle and potential of the milieu, that expresses a relational movement that, by its turn,
exceeds the terms of the predator and the prey, and their individual bodyness, in-forming
the speciations that their movement-moving creates: hungerness as the felt quality of a
Meanwhile, this is not to say that there is no human, plant, or animal, nor any
Thereat, appetiteness creates the stakes of its own adventure, blossoming in “an
ecology of practices that continuously interfolds the inorganic with the organic, shaping
experience in the making” (140). It is, in this sense, preindividual, a virtual contribution
that opens life to its potentials: appetiteness as the virtual force of a process that creates
newness.
Hungerness and appetiteness then, as well as lifeness, are obviously not just about
surviving, but producing potential politics within a style of life care that engage itself in
the vital production of life-living and whose aim is precisely to value and to expand the
[under]commons, feeding a relational third. In this same sense, since each of us is several,
we never eat alone. Even because eating is not an end, but a beginning of a process that
is capable of keeping difference alive as, to remember John Cage: “not one sound fears
the silence that extinguishes it. And no silence exists that is not pregnant with sound”
(1969, p. 98).
The question that remains for now, though, is not exactly “what moves between
hunger and appetite?” – regardless the fact that Whitehead spurs us to think that “life is
in the intervals between things - in the way things relate, in the way they come together
in events under the dominant tendency towards the generation of new forms, or
ontogenesis” (MASSUMI, 2015b, p. 127) –, but above all, to ask: what is to experiment
Far from answering this question, this composition is a way of playing with its
whatness, a way of experimentally think-across-and-with the idea that every practice, like
environmental sculpting, is a mode of thought already in the act, and a thought, we might
add,
That is to say that our proposition aims to offer, by the alliance with speculative
pragmatism, an environment for experimentation with the problems that gravitate around
food and eating by serving a new handful of ingredients, a different set of conditions
where we not just don’t define the concepts of hunger and appetite by their usual
dreams and fields of inquiry that fruit in the in-betweeness of the potentials, of the affects,
of the minor gestures, of the empirical content and of the more-than of art, of indigenous
philosophy, of cosmopolitcs, of the medicine of the body without organs; which, in all of
their inventiveness, not solely create events, but allow relations to emerge differently,
changing the quality of processes, fabulating healths, hungers, peoples, appetites, politics
7. Metodologia
Pois bem, posto tudo isto, se deixamos para apresentar nossa metodologia apenas
após este longo percurso, foi precisamente porque nosso desenho metodológico é
de nossa escritura. Escritura essa que, ao fim e ao cabo, partiu de uma questão muito clara
E se o que está em jogo no empirismo radical (JAMES, op. cit.) que nos alimenta
uma ocasião da experiência e o fluxo de uma iteração relacional, não podemos deixar de
problemática dos modos de existência pois, “de fato a arte da vida é, primeiramente, estar
vivo, segundo, viver de um jeito satisfatório e, terceiro, alcançar uma intensificação dessa
Inclusive, como bem nos relembra Whitehead (Cf. 1929, p. 19), a própria questão
condições para se “viver melhor” e “de promover a arte da vida” (Cf. 1929, p. 4); seja
frente ao fato de que “[a]lguns dos maiores desastres da humanidade foram produzidos
precisamente porque
[c]ada metodologia tem sua própria história de vida. (...) [E quando o]s maiores
contrastes atingíveis no âmbito do método foram explorados e familiarizados
[e a] satisfação com a repetição desapareceu[, a] vida então enfrenta as últimas
alternativas das quais depende seu destino. Essas últimas alternativas surgem
do caráter do triplo impulso que já mencionei: [v]iver, viver bem, viver melhor.
O nascimento de uma metodologia (...), [e]m seu princípio, (...) satisfaz as
condições imediatas para uma vida boa. Mas a vida boa é instável: a lei da
fadiga é inexorável. Quando qualquer metodologia de vida exauriu as
novidades dentro de seu escopo e jogou com elas até a chegada da fadiga, uma
decisão final determina o destino de uma espécie. Ele pode se estabilizar e
recair para viver; ou pode se libertar e entrar na aventura de viver melhor.
(WHITEHEAD, 1929, pp. 9-10)
Isso no próprio sentido de que, nessa aventura, não há metodologia que esteja
desimplicada de uma certa forma de viver a vida. O que é dizer, finalmente, que nos
c(a)osmos operativo, vivo e em fluxos de potencial. De tal forma que cabe à razão
produzir um
caminho para possíveis – a lure for feeling – e que remete, convoca e opera em meio a
que nos interessa – as práticas alimentares – optamos por priorizar seu estudo em meio às
202
Neste sentido, se optamos pelas redes é, em uma primeira medida, porque estamos
em um momento em que vivemos cada vez mais conectados59 e não por acaso as redes
2014; HELBING et al., 2017) nos permitem mergulhar no caldo produzido pelo
fenômeno sociotécnico das culturas digitais virtuais, onde artefatos tecnológicos e uma
sorte de atores humanos e não-humanos, tais como algoritmos e bots, nutrem uma
infinidade de relações.
ecológica e, claro, alimentar. Tanto quanto o nosso próprio entendimento do coletivo, pois
59
Para dados sobre a penetração das redes sociais no Brasil, conferir o relatório desenvolvido pelas
empresas We are Social e Hootsuite. Disponível em https://datareportal.com/reports/digital-2019-brazil.
Acesso em 01/03/2019.
203
Com isso em vista e partindo da aliança com Latour et al. (2012, 2015), o
O que nos leva um outro motivo pelo qual escolhemos trabalhar com as redes: tais
2015, p. 11). Evitando, assim, uma cisão estruturante entre dois níveis de análise: o nível
micro dos indivíduos e o nível macro dos coletivos e agregados. Cisão esta cuja
consequência (...) é que quase todas as questões levantadas pela teoria social
[passam a ser] enquadradas como uma busca pelo caminho correto que levaria
de um nível para o outro: a investigação deve começar a partir do micro ou a
partir do macro?” (Id., p. 8, grifo nosso)
uma que diz respeito ao fato de que uma mônada é um ponto de vista sobre todas as outras
entidades tomadas singularmente (não sendo ela uma parte de um todo). E, outra, que é a
204
proposição de uma teoria social que não se limita ao indivíduo e a atores humanos, mas
E que, no nosso caso, remetem, à consideração de que uma prática alimentar conta,
motivações e objetivos que, embora diversos e múltiplos, são detectáveis e rastreáveis nas
redes. De tal modo que é possível notarmos, tomando por exemplo as práticas alimentares
veganas, como elas são conectadas em sua variedade por um cerne e uma preocupação
com a vida dos animais e do planeta, mas que, quando postas em contraste, podem diferir
fazem por meio da associação entre alimentos funcionais, smart foods e nootrópicos e
aqueles que acoplam, literalmente, implantes e próteses a fim de cumprir seus objetivos.
interações, e depois estruturas complexas – ou o contrário (...)” (Id., p.13). O que nos
Sabemos, no entanto, que tal proposição tem limites e fazemos, neste sentido,
Estamos bem conscientes de que essas bases de dados estão cheias de defeitos,
que elas mesmas incorporam uma definição bastante crua da sociedade, que
são marcadas por fortes assimetrias de poder e, acima de tudo, que elas marcam
apenas um momento passageiro de cruzamento na rastreabilidade das conexões
sociais. Além disso, estamos dolorosamente conscientes das limitações
estreitas que lhes são colocadas pela análise de rede e pelas limitações das
ferramentas de visualização disponíveis hoje. Mas seria uma pena perder esta
oportunidade de explorar uma alternativa tão poderosa capaz de fornecer uma
outra maneira de abordar as ciências sociais de forma empírica e quantitativa
sem perder a sua necessária ênfase nos detalhes. (Ibid., p. 23)
multiplicidade de práticas alimentares que não serão mapeáveis nas redes. Todavia, no
suculenta proposição de Malini (2016, 2017) que revelou-se como uma abordagem
fomenta,
[d]o ponto de vista teórico (...) uma reflexão que articula a teoria antropológica
formulada por Eduardo Viveiros de Castro (de onde retiramos os conceitos de
perspectiva e relação); a concepção de Bruno Latour sobre a teoria ator-rede
(de onde retiramos os conceitos de cartografia, grupos, mediadores e
intermediários); e a teoria dos grafos (de onde retiramos o conceito de
clusterização, modularidade, centralidade e densidade). [E, d]o ponto de vista
empírico, (...) apresenta os conceitos de perspectiva espacial e perspectiva
temporal nas análises de redes sociais, a partir da produção de mensagens
escritas e imagens que os perfis fabricam no Twitter, Facebook, Instagram e
Youtube, fornecendo, assim, ao pesquisador pistas para a construção de objetos
60
Como exemplo de um estudo formulado nestes termos, sugerimos ver, inicialmente, o vídeo publicado a
partir do trabalho de Latour et al., 2012: https://medialab.sciencespo.fr/publications/monads/video.html.
Acesso em 17/01/2021.
206
O que nos lança em uma outra perspectiva sobre os estudos de redes digitais,
perspectiva esta onde toda rede é entendida como uma sobreposição de camadas de rede
As redes são, assim, diria Malini (2016, pp. 103-4), partes lado a lado e não um
todo, e nelas afirma-se “uma ontologia fractal dos perfis e seus laços (...) [onde] ‘tudo são
2007, p. 102)”. De modo que tudo são pontos de vista, perspectivas que correspondem
menos a um perfil individual e mais a um cluster de perfis que produzem uma agência de
Ou, dito de outro modo, a um adensamento de perfis que, numa rede de perfis,
habita uma mesma perspectiva que, ao fim e ao cabo, é um efeito no sujeito, e não sua
um perfil existe porque está em relação com o outro (...) [e] resulta de seu
entrelaçamento com outros perfis, fazendo de sua ação na rede sempre uma
207
Não por acaso a proposição de Malini é conhecida também como método das
que a web é constituída por múltiplas perspectividades em rede, tanto topológicas, quanto
aspectos particulares dos pontos de vista que se constituem no interior da rede (...) [e é]
por meio de agências de rede, os modos como o social se (re)agrega a partir e ao redor de
uma perspectiva. Que é, ainda, aquilo que alimenta tanto a transformação de redes de
perfis em redes sociais, quanto os conceitos e as convicções que fazem os perfis agirem
Pontos de vista estes que são, em si, “princípios, ideias, agregados, visões de
p. 83, grifo nosso) que está sempre em transformação, contágio e composição. Tal qual
uma ecologia e, no limite, uma pessoa, pois “uma pessoa fractal nunca é uma unidade que
está em relação com um agregado, ou um agregado em relação com uma unidade, mas
sempre uma entidade cujas relações estão integralmente implicadas” (WAGNER, 2011,
p.3).
E isto no sentido mesmo em que uma “perspectiva é menos algo que se tem, [e]
que se possui, e muito mais algo que tem o sujeito, que o possui e o porta, isto é, que o
208
constitui como sujeito” (VIVEIROS DE CASTRO, 2008, p.118). De tal forma que, não
por acaso, o método perspectivista de análise de redes sociais parte da concepção de que
Deslocamos, assim, o modo pelo qual podemos nos engajar com o estudo das
centrada e baseada na identidade de sujeitos para uma abordagem que foca na agência de
um perfil. Quer dizer, que foca nas “agências que o tornam sujeito” (VIVEIROS DE
Onde há rede há, portanto, relação e, diz Malini, onde há relação, há rede. De tal
modo que o componente mais elementar nesta nossa perspectiva simétrica é precisamente
nas redes faz emergir pontos de vista coletivos que dizem respeito menos a um conjunto
209
porque está em relação com o Outro (seguidor, amigo, inscrito etc). Um perfil
resulta de seu entrelaçamento com outros perfis (...) [e é] "necessário ser
pensado (desejado, imaginado, fabricado) pelo outro para que a perspectiva
apareça como tal, isto é, como uma perspectiva. O sujeito não é aquele que
pensa (como sujeito) na ausência de outrem; ele é aquele que é pensado (por
outrem e perante este) como sujeito" (VIVEIROS DE CASTRO, 2008, p.119).
(MALINI, op. cit., p. 10)
evidenciar comportamentos e práticas sociais diversas, quanto de influir nos sentidos dos
acontecimentos e das práticas sociais. Vide, por exemplo, a própria importância que as
redes e que tais comunidades tiveram seja na Primavera Árabe em 2011, seja nas
manifestações de junho de 2013 no Brasil, seja ainda nas Eleições de 2018 no país e fora
dele. Donde:
[a] cooperação associativa – entre pessoas, entre coisas, entre perfis – são
rastros que retratam visualmente, através dos desenhos de redes, relações de
múltiplas entidades entre si. (...) E a transformação de nossos rastros digitais
em metadados acelera a descoberta das relações incorporadas aos dados
pessoais ou institucionais armazenados em distintos bancos de dados online.
(MALINI, 2016, p. 9)
E, no caso que nos interessa, quer dizer, no caso das redes sociais, essa relação
pode ser:
vista que funda o laço entre os perfis; e, do outro, que as perspectivas de rede são pistas
se abrem pela sua expressão visual num grafo, dado que “os pontos de vista se apresentam
forma de clusters” (op. cit., p. 94). Bem como pelo próprio fato de que a clusterização e
seu lugar na rede pode revelar conceitos distintos acerca daquilo que se propaga em rede,
é exatamente essa cultura dos laços sociais – como ação conjugada de perfis
em rede – que nos interessa e cabe lembrar que as relações, que as agências de
redes são, antes de tudo, relações sociais que revelam os modos de como o
social se reagrega. Contudo, só se é possível se agregar se os perfis forem
agenciados por uma perspectiva. A formação de redes de perfis em redes
sociais depende da ação, mas esta, antes, de uma perspectiva. (Ibid., p. 6)
as camadas de rede que vão inventando e articulando relações entre si, e que vão criando
Especialmente porque
ter um ponto de vista é (...) assumir uma perspectiva com o outro sobre uma
realidade. Trata-se de atuar dentro de um sentido que é anterior e formador do
tópico frasal publicado por um perfil. Sentido coletivo que reproduz a
experiência de ser perfil, por primeiro capturar e ser o feed de outrem, uma
experiência relacional de estar no entre, que faz os perfis, ao mesmo tempo,
acederem à perspectiva de outrem ao mesmo tempo que a atualizam a partir de
seu sotaque próprio em suas postagens que viralizam essa atualização.
(MALINI, 2016, p. 10)
211
E, neste mesmo sentido, as redes são como campos motorrelacionais onde floresce
uma complexa trama de relações que constitui, ao mesmo tempo, uma espiral de
Mais do que isto, considerando também a dimensão ontopolítica que tanto nos
no mundo.
Dizemos isso para reiterar então que, em meio aos fluxos e aos movimentos
pensar que os perfis e as redes sociais não representam o social, tampouco que elas são
(...) esses dois níveis [indivíduo – todo] não correspondem a nenhum domínio
ontológico real (...) [e] eles começam a desaparecer, para serem literalmente
redistribuídos, toda vez que se modifica ou melhora a qualidade de acesso aos
conjuntos de dados, permitindo assim que o observador defina qualquer ator
por sua rede e vice-versa. Isto é exatamente o que a ampliação impressionante
das ferramentas digitais está fazendo com os conceitos de “indivíduo” e de
“todo”. A experiência (cada vez mais comum hoje em dia) de se navegar em
uma tela de elementos para os agregados pode levar os pesquisadores a
concederem menos importância a esses dois pontos finais provisórios.
(LATOUR et al., op. cit., p. 10)
212
Nossa hipótese, assim, é que as redes são, a partir desta perspectiva ontogenética,
e temporalmente.
aparelhos que, dedicados a capturar tais tendências, estratificam também o próprio campo
da vida, operando em uma base preemptiva que se debruça e atua justamente sob(re) os
níveis trans e infraindividuais que mencionamos anteriormente. Isto é, sobre aquilo que
ainda não emergiu, mas cujo movimento, cuja motorrelacionalidade já desperta o apetite
O que é dizer, em outros termos, que as redes nos permitem pensar e observar não
expressão e de produção do vivo a partir de uma curadoria destas tendencias e dos rastros
alimentares expressas nas redes são como coagulações das tendências nesses campos e,
para além de qualquer binarismo, ou seja, para além de qualquer distinção maniqueísta
convocamos nos possibilita trabalhar não só olhando e analisando os efeitos que estas
empreitadas ontogenéticas.
por fim, uma curadoria dos rastros de sua passagem, afinal, tendências são modos de se
muitas das vezes, nutrem uma infinidade de operações sob(re) a ontogênese, como por
Assim sendo, temos seguido as sugestões de Malini (2016, 2017) para identificar
reprocessamento de dados. Sendo que, no momento do depósito deste texto, estamos nas
etapas de coleta e mineração dos dados, feitas a partir da busca das palavras chaves
o recorte temporal situado entre as 00h00 do dia 01/01/2015 as 23h59 do dia 31/12/2019
(UTC BRT).
publicado; o tipo de publicação; a página/conta pública que publicou tal conteúdo, bem
como o grupo onde foi publicado; as iterações ocorridas, incluindo seu número; e as
públicas, entre outros”, é importante situar que as limitações deste aplicativo dizem
respeito ao fato de que ele não acompanha contas privadas e não rastreia os alcances e
61
Estes elementos exercem ao menos dois papéis importantes nas redes: enquanto indexam conteúdos –
como posts e tweets –, também criam comunidades e memórias ao agruparem temas e assuntos, permitindo
interações entre atores que estão discutindo o mesmo tema e os mesmos assuntos (Cf. HAACKE et al,
2014). Estes dois papéis são, assim, metodologicamente, elementos chave para que possamos trabalhar com
uma quantidade grande de dados, contribuindo para processos de coleta, extração e mineração, bem como
para seu armazenamento e visualização.
62
Cf. https://crowdtangle.com. Sobre sua política de dados e sua base de dados, que citaremos a seguir:
https://help.crowdtangle.com/pt-BR/articles/4201940-sobre-nos. Acesso em 14/03/2021.
215
públicos e perfis verificados”, incluindo “todas as Páginas do Facebook com mais de 100
mil curtidas”, enquanto no Instagram são “mais de 1,8 milhão de contas públicas,
incluindo todas as contas com mais de 75 mil seguidores, além de todas as contas
verificadas”.
dados, vale dizer também, estão sendo coletados a partir da interface do próprio
que dividem os datascapes por semestres, indo do dia 01/01 ao dia 30/06 e do dia 01/07
conforme pode ser visto nas imagens a seguir (a primeira com dados de nossa busca
31/03/2021).
216
Agora, quanto ao Twtitter, neste momento temos um banco de dados que nos foi
ofertado pelo Laboratório de Estudos sobre Imagem e Cultura (UFES), coordenado pelos
Profs. Drs. Fábio Malini, Fabio Gouveia, Patrick Ciarelli e pela Profa. Dra. Adriana Ilha,
que foi o contato inicial com o Laboratório, juntamente com o pesquisador Saulo Sales,
que nos colocaram em contato com o pesquisador Willian Lopes, que recebeu minha
seguinte à solicitação.
Partindo então do dataset ofertado pelo LABIC, criamos este protótipo que
membro do LABIC, por meio da composição entre o Ford, software do LABIC63 que se
pelo Ford após o procedimento de Mineração, denominado neste software como Parse,
63
Cf. http://www.github.com/ufeslabic. Acesso em 13/03/2021.
219
Além deste conjunto de estatísticas, o Parse também produz uma série de arquivos
para grafos, que podem ser plotados em softwares específicos (como o já mencionado
Visualização dos Dados –, plotando estes arquivos no software Gephi que, lembremos,
presente no software, separando através do atributo cor aquilo que a teoria dos grafos
denomina como clusters e que são, diria Malini, os argumentos associativos de uma rede,
afinidades.64
iterativa, a operação seguinte foi exatamente sobre o layout do grafo a partir do algoritmo
Force Atlas 2, também presente no Gephi, que permite que o grafo ganhe uma forma de
rede em função de uma lógica algorítmica que se baseia na atração dos pontos que se
64
Para mais, cf. http://www.labic.net/publicacao/introducao-a-teoria-dos-grafos-e-visualizacao-de-redes-
sociais-slides/. Acesso em 04/04/2021.
220
Weighted Degree, optando por visualizar destacadamente os com maior taxa de grau de
peso médio de entrada (Weithed In Degree). Lembrando que nós são aquilo que
representa o nome dos perfis e as hashtags, e arestas as linhas que revelam as ações dos
visualização dos clusters, já que todas as outras hashtags estão forçosamente conectadas
a ela e isso acaba por poluir a imagem, dificultando a identificação dos clusters.
Figura 14. Rede de hashtags que se articulam ao redor da hashtag #alimentacao no Twitter entre as 00h00 de
31/07/2019 e as 02h04 de 13/02/2020 (UTC).
221
ligados à hashtag #alimentacao, com destaque para os nomes dos perfis que ativamente
Figura 15. Rede de RTs ligados â hashtag #alimentacao no Twitter entre as 00h00 de
31/07/2019 e as 02h04 de 13/02/2020 (UTC).
neste momento de nossa pesquisa, optamos por incluir este breve protótipo e estes grafos
ou agrupamentos em iteração.
Figura 16. Clusters destacados na rede de hashtags ligadas â hashtag #alimentacao no Twitter.
sobre o tema da alimentação e que conta com alguns perfis em destaque dada a sua medida
223
(Apêndice C), se formam ao redor deste tema, cada uma delas com suas características
Figura 17. Clusters destacados na rede de RTs ligados â hashtag #alimentacao no Twitter.
224
De todo modo, trazemos estes dois exemplos de grafos porque eles também
demonstram uma das hipóteses que compõe o nosso método, a saber, a de que “toda rede
que se conectam mais intensamente a outros, distinguindo-se de outros na rede, o que faz
com que sua posição seja distinta de outros agrupamentos” (MALINI, 2016, p. 13).
topológicas que interpretam, cada qual à sua maneira e a partir de suas afinidades, a
alimentação. Evidenciando pontos de vista diferentes sobre tal assunto, bem como uma
reprocessamento de dados.
225
LABIC após nova solicitação de coleta de dados a ser realizada após o depósito do Exame
de Qualificação.
a operação do método perspectivista – como arquivos .csv e .gdf com os nós e a as arestas
é, primeiro, a identificação dos clusters numa dada rede no Gephi a partir das diferentes
cores características de cada módulo associativo presente no grafo (como vimos nas
identificaremos o nome dos usuários pertencentes a cada um deles, passando assim à fase
datasets.
"usernames.csv" – que conterá uma lista de usuários (usernames.csv) distinta para cada
publicações dos usuários contidos em cada cluster, usando para isso softwares e scripts
como o citado Ford, que gerarão os mesmos arquivos ou arquivos similares aos citados
nosso objetivo secundário e a produção de múltiplos grafos a partir das periodizações que
sistematização dos dados, para que sigamos com a sua feitura. Do mesmo modo em que
análises.
227
Vale ressaltarmos, inclusive, que nossas análises não estarão desconectadas dos
De tal modo que as nossas análises serão nutridas por esta perspectiva
ontogenética que toma o humano como humo, ou seja, que o toma como uma
Buscando, assim, situar vetores que atuam sobre esses campos relacionais e essas
ecologias, investindo sob(re) essas relações, suas condições e, no limite, sob(re) o próprio
experiência, mas sim à própria necessidade de, ao invés de situar e de posicionar os termos
valorizar essa dimensão do potencial ontocriativo da vida, dando conta não só dos termos
que compõem uma relação e de sua análise, mas daquilo que emerge transversalmente
apresentar uma “proposição cujo desafio não é o de dizer o que ela é, nem de dizer o que
ela deve ser, mas de fazer pensar” (p. 443). Uma proposição que, no limite, “não requer
outra verificação senão esta: a forma como ela terá “desacelerado” os raciocínios cria[ndo
uma outra ritmologia, um]a ocasião de uma sensibilidade um pouco diferente no que
alimentação e tantas outras questões pelas quais passamos, estão embebidos, em nosso
inicialmente, mas efetivamente na abertura de uma clareira, isto é, na criação de uma terra
fértil onde possamos germinar uma perspectiva que, para além do nosso entendimento
mais usual de política e de saúde, cultiva uma cosmopolítica da saúde, uma ter(r)apêutica,
Cronograma de Execução
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