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Alexis Milonopoulos

Potências da fome, potências da vida:


uma cartografia das práticas alimentares expressas nas redes sociais

Texto de qualificação apresentado à


Faculdade de Medicina da Universidade de
São Paulo como exigência parcial para
obtenção do título de Doutor em Ciências

Programa de Pós-graduação em Saúde


Coletiva
Orientador: Prof. Dr. Ricardo Rodrigues
Teixeira

São Paulo
2021
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Alexis Milonopoulos

Potências da fome, potências da vida:


uma cartografia das práticas alimentares expressas nas redes sociais

Texto de qualificação apresentado à


Faculdade de Medicina da Universidade de
São Paulo como exigência parcial para
obtenção do título de Doutor em Ciências

Programa de Pós-graduação em Saúde


Coletiva
Orientador: Prof. Dr. Ricardo Rodrigues
Teixeira

São Paulo
2021
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Resumo

Milonopoulos A. Potências da fome, potências da vida: uma cartografia das práticas


alimentares expressas nas redes sociais [tese]. São Paulo: Faculdade de Medicina,
Universidade de São Paulo; 2021.

Introdução: Perseguindo o problema da conformação das práticas alimentares


contemporâneas, este trabalho compõe planos transdisciplinares de investigação e
análise, acolhendo as práticas alimentares expressas nas redes sociais Facebook,
Instagram e Twitter por meio da produção de uma cartografia destas práticas; ofertando
ainda uma perspectiva ontogenética sobre o problema do comportamento, que figura, em
meio a inflexões no capitalismo e no próprio entendimento daquilo que causa e determina
o comportamento, como um elemento e uma questão central no contexto pós-transição
epidemiológica, demográfica e nutricional. Objetivos: Construir uma analítica que
permita problematizar nosso entendimento acerca do tema da determinação da conduta e
ofertar um outro entendimento da problemática do comportamento a partir de uma
perspectiva ontogenética. Bem como produzir uma cartografia das práticas alimentares
expressas nas redes sociais Facebook, Instagram e Twitter, mapeando, identificando,
analisando e problematizando as distintas perspectivas, agenciamentos, campos
problemáticos e ecologias de práticas que se articulam ao redor do tema da alimentação
nestas redes. Materiais e Métodos: Por meio do método perspectivista de análise de
redes esta pesquisa busca identificar perspectivas topológicas e temporais, debruçando-
se sobre clusters ou comunidades em iteração à luz do referencial oferecido inicialmente
pelo campo de estudos em biopolítica e ontogênese. Resultados Esperados: Ao tomar a
alimentação como um agenciamento sociotécnico que conecta os comensais ao planeta,
ou seja, ao tomá-la como um ato cosmopolítico, este estudo visa contribuir com um novo
modo de investigação e uma nova analítica sobre o comportamento humano, a saber, a da
ontogênese, que nos permite evidenciar diferentes perspectivas cosmopolíticas sobre as
problemáticas da alimentação e do comportamento.

Palavras-chave: determinação do comportamento; práticas alimentares;


ontogênese; biopolítica; cosmopolítica.
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Abstract

Milonopoulos A. Powers of hunger, powers of life: a cartography of the food practices


expressed in social networks [thesis]. São Paulo: “Faculdade de Medicina, Universidade
de São Paulo”; 2021.

Introduction: By pursuing the problem of the conformation of contemporary food


practices, this work composes transdisciplinary plans of analysis and seeks to welcome
the food practices expressed in the social networks Facebook, Instagram and Twitter
through the production of a cartography of these practices; it also offers an ontogenetic
perspective on the problem of behavior, which figures, amid inflections on capitalism and
on the very understanding of what causes and determines human behavior, as a central
issue and a central element in the post-epidemiological, demographic and nutritional
transition context. Objectives: To construct an analytic that allows both to problematize
our understanding of the determination of conducts, and to offer an understanding of the
problem of behavior from an ontogenetic perspective. As well as producing a cartography
of the food practices expressed in the social networks Facebook, Instagram and Twitter,
mapping, identifying, analyzing, and problematizing the different perspectives,
agencements, problematic fields and ecologies of practices that articulate around the
theme of food in these networks. Materials and Methods: Through the perspectivist
method of network analysis, this research seeks to identify topological and temporal
perspectives, focusing on clusters and communities in iteration in the light of the
framework initially offered by the field of studies in biopolitics and ontogenesis.
Expected Results: By taking food as a sociotechnical agencement that connects
messmates to the planet, that is, by taking it as a cosmopolitical act, this study aims to
contribute with a new way of investigation and a new analytic about human behavior,
namely, the ontogenesis, which allows us to highlight different cosmopolitical
perspectives on the issues of food and behavior.

Keywords: behavior determination; food practices; ontogenesis; biopolitics;


cosmopolitics.
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Esta tese é realizada com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível


Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001, e está de acordo com as
seguintes normas, em vigor no momento desta publicação:

Referências: adaptado de International Committee of Medical Journals Editors


(Vancouver) e de Universidade de São Paulo. Faculdade de Medicina. Divisão de
Biblioteca e Documentação. Guia de apresentação de dissertações, teses e monografias.
Elaborado por Anneliese Carneiro da Cunha, Maria Julia de A. L. Freddi, Maria F.
Crestana, Marinalva de Souza Aragão, Suely Campos Cardoso, Valéria Vilhena. 3a ed.
São Paulo: Divisão de Biblioteca e Documentação; 2011.

O autor deste trabalho respeitosamente saúda e cumprimenta os povos originários de


Abya Yala e Pindorama, especialmente aqueles em cujas terras este trabalho é produzido
e em cujas terras está hoje a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Agradeço, respeito e honro nossos ancestrais.
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SUMÁRIO

1. Introdução ........................................................................................................ 8
1.1. Entredução: (h)a/terra(r) ............................................................................... 8
1.2. Introdução, tra(ns)dução: (a)transversa(r)mentos ......................................... 9
2. Objetivos ......................................................................................................... 21
3. Ouvir a terra, pensentir o terreno, o traçar de um plano ........................... 22
3.1. Interlúdio I: Quando ‘coletivo’ quer dizer outra coisa: notas tentaculares
sobre ecologia, comportamento e (des)humanização da saúde ........................... 22
3.2. Devorações: entre o saber e o sabor ............................................................ 28
4. Emergências e procedências .......................................................................... 51
4.1. Pro(to)cedências: escu(l)t(ur)as alimentares ............................................... 51
4.2. E se? (Des)leituras no campo ...................................................................... 67
5. Discussão, parte 1: cosmu[m]dos .................................................................. 82
5.1. Ecologi(c)as das práticas: da terceira margem do rio ao caminho do meio . 82
5.2. C(a)ósmicas: da natureza ao cosmos ........................................................... 99
5.3. Ratambufe e os comedores de terra: o que pode um corpo?...................... 119
5.4. Jê est un autre: alteridade, perspectivismo somático e multinaturalismo .. 137
6. Resultados e discussão, parte 2: comporta-mento ..................................... 148
6.1. Interlúdi[c]o II: eat (it) …….……………………………………………. 148
6.2. To bife or not to bife, eis a questão: ontogênese, comporta-mento, hum(an)os
e su(per)jeitos ........................................................................................... 157
6.3. Interlú[r]i(c)o III: In-between hunger and appetite – food for thought in the
act …………………………………………………………………………..… 183
7. Metodologia .................................................................................................. 200
7.1. Refazenda: contra-metodologi(c)as .......................................................... 200
7.2. Proto-tipo: um estudo do método perspectivista de análise de redes sociais
............................................................................................................................ 218
8. Considerações pró/visórias e plano de trabalho ......................................... 225
9. Referências bibliográficas ........................................................................... 229
Apêndice A – Log da coleta de dados do Twitter
Apêndice B – Relatório de Modularidade do Gephi I: HTs
Apêndice C – Relatório de Modularidade do Gephi II: RTs
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(...) dize-me como, com quem, e o que


comes (e o que come o que comes), e
por quem és comido, e a quem dás
comida (e por quem te absténs de
comer), e assim por diante
— e te direi quem és.
É pela boca que
se predica.
Eduardo Viveiros de Castro
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1. Entredução, introdução, tra(ns)dução

Para mim poderoso é aquele que


descobre as insignificâncias
(do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença
me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado.
Sou fraco para elogios.
Manoel de Barros

1.1. Entredução: (h)a/terra(r)

Respire.

Respire longamente.

Respire mais uma vez, profundamente.

Escolha um lugar e uma posição confortáveis.

Feche os olhos, plante os pés na terra, espalhe os dedos e se conecte a ela.

Respire novamente, bem profundamente, e sinta.

Só sinta.

Pensar aqui, é sentir.

Pensinta o pulsar do coração, o pulsar da terra, um pulsar cri/ativo.

Pensinta-se na mata, com os pés descalços, o sol, a água e o vento a rodopiar ao seu redor.

Pensinta com esses elementos, com as sombras, com os sons, com as luzes, com os

cheiros, com as texturas, com a humi(l)dade, com as cores, com os contrastes, com todo

o corpo, com toda a terra: com um corpo-terra, com uma terra-corpo.

Pensinta-se uma clareira, com a vida entrando em abundância, com tudo aquilo que a

atravessa, a sustenta, a compõe e a faz pulsar: um corpo-mundo, uma terra-mundo, um

cosmumdo.

Agradeça, respire e siga.

(entre)
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1.2. Introducão, tra(ns)dução: (a)transversa(r)mentos

E me inventei neste gosto de especular ideia.


Guimarães Rosa

Quando numa floresta, “mundo” quer dizer, definitivamente, uma outra coisa,

assim como “experiência”. No centro da ecologia, não há fora, menos ainda dentro. Não

há um mundo a ser visto, mas, pelo contrário, o mundo é fundamentalmente vívido,

vivido, e a vida, aquilo que, em seu excesso criativo, imensa os olhos que, em meio a esta

exuberância, de pouco valem.

Onde começa e onde acaba uma floresta? O fora da floresta, não por acaso, é o

meio, e no meio só há ecologia. O que é dizer, em outros termos, que a própria palavra

“floresta” não faz muito sentido para quem a habita. De origem latina, a palavra floresta

vem de forestis, um adjetivo derivado de foris ("fora") que carrega a ideia de algo exterior

à comunidade, ao coletivo. E que aparece, por exemplo, na palavra forasteiro e também

na expressão silva forestis, que quer dizer, literalmente, "mata exterior" e que remete ao

nome dado aos territórios em que só o rei estava autorizado a explorar a caça e a extração

de madeira, ficando, portanto, fora dos limites da área comum, da silva communalis, do

coletivo.

Diferentemente disto, o xamã Davi Kopenawa, autor junto ao antropólogo francês

Bruce Albert, da obra-acontecimento A queda do céu: palavras de um xamã yanomami

(2015), nos mostra que a ideia-coisa “ecologia” nunca foi exterior à sua teoria, à sua

práxis do lugar. Diz Davi que:

Na floresta, a ecologia somos nós, os humanos. Mas são também, tanto quanto
nós, os xapiri [os espíritos], os animais, as árvores, os rios, os peixes, o céu, a
chuva, o vento e o sol! É tudo o que veio à existência na floresta, longe dos
brancos; tudo o que ainda não tem cerca. As palavras da ecologia são nossas
antigas palavras, as que Omama [o demiurgo yanomami] deu a nossos
ancestrais. Os xapiri defendem a floresta desde que ela existe. Sempre
estiveram do lado de nossos antepassados, que por isso nunca a devastaram.
Ela continua bem viva, não é? Os brancos, que antigamente ignoravam essas
coisas, estão agora começando a entender. É por isso que alguns deles
inventaram novas palavras para proteger a floresta. Agora dizem que são a
gente da ecologia porque estão preocupados, porque sua terra está ficando cada
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vez mais quente. […] Somos habitantes da floresta. Nascemos no centro da


ecologia e lá crescemos. (KOPENAWA; ALBERT, 2015, p. 16,
grifos nossos)

Em contraste, pois, ao pensamento do exterior do qual deriva a palavra floresta, a

própria palavra indígena diz respeito, etimologicamente, àquele que é ‘natural do lugar

em que vive, àquele [que é] gerado dentro da terra que lhe é própria...” (Dicionário

Houaiss da Língua Portuguesa,). O que é dizer que essa indigenidade, essa ’propriedade’

de ser indígena, “é um atributo imanente ao sujeito, não uma relação extrínseca com um

objeto apropriável” (DE CASTRO apud KOPENAWA; ALBERT, op. cit., p. 16, grifo

nosso).

A ponto de, não por acaso, muitos povos indígenas mundo afora afirmarem que a

terra não lhes pertence, justamente porque são eles que pertencem a ela. O que implica,

imediatamente, que as relações se dão em outros termos, onde, por exemplo, família é

também uma outra coisa, assim como coletivo. Como diz Ailton Krenak, em uma

passagem que recuperaremos futuramente: “o rio Doce, que nós chamamos de Watu, [é]

nosso avô, é uma pessoa, não um recurso, como dizem os economistas. Ele não é algo de

que alguém possa se apropriar; é uma parte da nossa construção como coletivo que habita

um lugar específico”. (2019, p. 21)

Em uma outra passagem de A queda do céu, Kopenawa, em epígrafe ao capítulo

“Falar aos Brancos”, relembra um diálogo ocorrido no dia 19 de abril de 1989 (o

famigerado “Dia do Índio”) entre ele e o General Bayma Denis, então ministro chefe da

Casa Militar do governo Sarney, que lhe pergunta: “O povo de vocês gostaria de receber

informações sobre como cultivar a terra?” Ao que o xamã yanomami responde: “Não.

O que desejo obter é a demarcação de nosso território.” (Id., p. 376) E, como bem diz o

antropólogo Eduardo Viveiros de Castro no prefácio desta obra:

além da presunção do general, que imagina poder ensinar aos


senhores da terra como cultivá-la — convicto de que, [como]
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povo da natureza, os índios não entendiam nada de cultura –, o


mais fascinante ainda é a total inversão de conceitos proposta por
Davi em sua réplica: enquanto o general fala em “terra” – quando
deveria estar falando em território, uma noção muito cara, aliás,
aos brancos, em especial em um Estado nacional, topográfico e
agro-nomocrático como o Brasil. Davi se comunica na linguagem
dos Brancos, a linguagem do território, do espaço estriado, do
limite, da divisa, da fronteira, do marco, do registro (Ibid., p. 36)

Ou seja, a linguagem da porta, da comporta, da porteira, do portão, ao invés da

linguagem da terra. Davi sabe muito bem, e Viveiros de Castro também reforça isto, que

na relação com os Brancos é preciso garantir o território para poder cultivar a terra. Para

eles, finalmente, a terra é algo que está lá fora: “Quem ensinou a demarcar foi o homem

branco. A demarcação, divisão de terra, traçar fronteira é costume de branco, não do índio.

Brasileiro ensinou a demarcar terra indígena, então a gente passamos a lutar por isso.”

(op. cit., p. 36)

“Quem ensinou a demarcar foi o homem branco”. Essa demarcação é, inclusive,

constitutiva da própria cosmologia do povo da mercadoria, que é como Kopenawa

nomeia os Brancos em sua contra-antropologia. Afinal, se há algo que define tal povo é

precisamente a sua relação obsessiva e predatória com a mercadoria, que faz com que os

Brancos ignorem as:

palavras [que] vêm do que os habitantes das cidades chamam de natureza. (...)
[E]les não lhes dão a menor importância. Seus ouvidos continuam tampados e
seu pensamento, enfumaçado. Preferem achar que os Yanomami são
ignorantes e mentirosos. Preferem ficar olhando o tempo todo para os desenhos
de palavras de todas as mercadorias que querem ter. A beleza da floresta os
deixa indiferentes. Sempre nos dizem: “Sua floresta é escura e fechada! É ruim
e cheia de coisas perigosas. Não lamentem por ela! Quando tivermos
desmatado tudo, vamos dar gado para vocês comerem! Vai ser muito melhor!
Vocês serão felizes!”. Mas nós respondemos: “Nossos maiores não conheciam
os animais que vocês criam. Não queremos comer animais de criação.
Achamos nojento e nos dá tonturas! (Id. ibid., pp. 478-479, grifos nossos)

Dar tontura, desestabilizar, rachar, mover, transtornar, transformar: é isso, em um

outro sentido, que muitos relatam ou sentem quando a terra é muito mais do que um mero
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território. Isto é, quando a terra é um corpo e o corpo é a própria terra, e quando o mundo

e a vida são muito maiores do que aquilo que usualmente imaginamos.

Diferentemente, pois, das cosmovivências indígenas, é notável como,

especialmente se tomamos a crítica xamânica de Davi como um norte, que mais do que

demarcar as fronteiras de um território o pensamento Branco também demarca outras

incontáveis fronteiras e limites.

Como por exemplo as de onde começa e de onde acaba o corpo, daquilo que é

vivo e daquilo que não é vivo, do que é humano e do que não é humano, ou ainda, daquilo

que é pensamento e daquilo que não é e, quando muito, é pura teoria ou ficção, ou apenas

algo a se (man)ter como arte, em um zoológico de subjetividades ou em um safári-

ontológico controlado. E quem define fronteira, define fronte (Cf. VACCARO, 2005),

ou, em outros termos, define aquilo que é visível ou invisível, aquilo que é dizível ou

indizível, aquilo que é conceitual ou onírico e aquilo que é empírico, aquilo que é real e

aquilo que é virtual, aquilo que pode ou não (r)existir e, no limite, aquilo que importa e

aquilo que pode ser ignorado porque não tem valor.

Todavia, não só o amanhã não está à venda (Cf. KRENAK, 2020), como o valor

da vida não pode ser reduzido nem ao capital, menos ainda ao humano, ao menos nos

termos em que os conhecemos em nosso humanismo antropocêntrico de cada dia. E se

abrimos esse texto-terreiro com tais saberes e cosmovivências é precisamente porque elas

desestabilizam uma infinidade de separações que são realizadas pelo pensamento “curto

e obscuro” dos Brancos que “não consegue se expandir e se elevar”, distribuindo palavras

“ruins e emaranhadas” enquanto “tomados de vertigem” (KOPENAWA; ALBERT, op.

cit., p. 390).

Mais do que isso, elas ofertam, generosamente e como de costume, elementos

sofisticadíssimos para abordarmos e até mesmo recolocarmos questões e problemas que


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nos são muito caros, especialmente no campo da Saúde Coletiva e na Saúde em si, onde

a própria ideia de saúde,

esta questão da saúde–mercadoria, não está post[a] como condição. Você pode
dizer para alguém no meio da floresta que saúde é um direito, ele vai te
perguntar direito a que? Ele vai dizer que não é um direito, mas um dom, um
bem comum, que todo mundo tem, e você não tem carência disso, ninguém
reivindica saúde em um lugar onde a vida é uma dádiva, onde a vida é
abundante. (...) [De uma tal maneira] que esta conversa de saúde tem tudo a
ver com outro jeito de estar no mundo. Que seja estar no mundo fora desta
perspectiva da mercadoria, do capitalismo, onde o saber é um capital, o saber
é patrimonial, se você está fora disso, aí então o saber, as práticas de cuidado,
fluem de uma maneira vital, tirando os corpos do lugar de flagelados e pondo
os corpos nesse lugar de fricção criativa. (KRENAK apud MERHY;
MOEBUS, 2020, pp. 10-12, grifos nossos)

E é exatamente essa fricção criativa que nos interessa, quer dizer, esse lugar, essa

relação que ela produz e que vai, para emprestarmos, com licença, as palavras de Weir,

“da ‘virada ontológica’ ao Tempo de Volta do Nós”, abrindo um outro horizonte onde

o fazer do mundo, aquele [que] se realiza como um constante giro em seu


caminhar, é o que permite a todos os seres presentes a realizarem seu próprio
fazer como comunidade justamente nos lugares/tempos em que o fazer do
mundo cria em seu caminhar. Assim, tudo o que está presente vive em e pelo
seu fazer como comunidade que exerce um fazer, que sempre é complementar
ao fazer de outras comunidades justo no lugar/tempo criado pelo caminhar do
mundo. Eis ali o equilíbrio que o nosso Eirare[, que o nosso modo de
existência,] nos permite ver, sentir e que orienta nosso viver e conviver como
comunidade humana com o resto das comunidades (plantas, animais, seres
visíveis e invisíveis) com as quais compartilhamos os diferentes
lugares/tempo, que, em seu caminhar, criam para todos o fazer do mundo. Daí
que nossa tarefa mais importante como comunidade humana é contribuir para
esse equilíbrio, o que para nós é nosso horizonte de vida ao que chamamos
Wakuwaipa quer dizer, nosso caminhar como caminha o mundo. (Weir, 2021,
grifos nossos)

É seguindo então nessa mesma direção ou, melhor dizendo, nesse caminhar como

caminha o mundo, que nossa investigação busca, investindo em uma aposta (est)ético-

(cosmo)política, pensentir-com distintas cosmologias – destacadamente as relativas aos

saberes e conhecimentos indígenas, como também a cosmologia da filosofia do processo

– modos de reformular, como dissemos anteriormente, questões e problemas caros ao

campo da Saúde Coletiva, sobretudo o problema do comportamento humano e da

conformação das práticas alimentares.


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A pensensação que cultivaremos se situa, assim, em meio a uma série de

deslocamentos que poderemos ver germinando em cada um dos capítulos desta que

escritura. Capítulos estes que são, ao fim e ao cabo, capítulos-solo, no duplo sentido da

palavra solo: solo porque instauram e operam dentro de sua própria ecologia; e solo

porque também, cada um à sua vez, criam estratos, linhas e camadas, como camadas

geológicas, formando um modo de pensar que é fundamentalmente geofilosófico, para

lembrarmos de Gilles Deleuze e Félix Guattari (1992).

Geofilosófico no sentido mesmo de que não só buscam operar transversando nessa

multiplicidade de territórios existenciais e de terrenos de saber-sentir, como de ser terra

fértil para que outras pensensações germinem no campo e em seus interstícios. De tal

forma que, transversalmente, cada estrato, tal qual em uma agrofloresta, dinamiza e

reselvageriza as relações entre os outros estratos e todo o sistema-tese, cultivando

uma operação física, biológica, mental, social, [cósmica] pela qual uma
atividade se propaga pouco a pouco no interior de um campo, fundando essa
propagação numa estruturação do campo operada passo a passo: cada região
de estrutura constituída serve de princípio de constituição à região seguinte, de
modo que uma modificação se estende progressivamente e simultaneamente a
esta operação estruturante. (SIMONDON, 2003, p. 112)

Operação esta que Gilbert Simondon nomeia como transdução e que diz respeito

às relações que emergem no movimento, no fazer do mundo, e que vão produzindo

singularidades e diferenciações no e ao longo do processo, no próprio caminhar do

mundo. Implicando na

aparição correlativa de dimensões e de estruturas em um ser em estado de


tensão préindividual, ou seja, em um ser que é mais que unidade e mais que
identidade (...) [De modo que [o]s termos extremos atingidos pela operação
transdutiva não pré-existem a esta operação; seu dinamismo provém da tensão
primitiva do sistema do ser heterogêneo que se defasa e desenvolve dimensões
segundo as quais ele se estrutura; [ou seja,] ele não vem de uma tensão entre
os termos que serão atingidos e depositados nos limites extremos da
transdução. (Id., p. 112, grifos nossos)

O que é dizer, em bom português, que não se coloca o carro na frente dos bois. E

muito embora pareça, a um primeiro momento, que seja necessária uma tradução de toda
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essa (geo)filosofia – especialmente tendo em vista que um de nossos solos conceituais

mais férteis é oriundo exatamente do campo da Filosofia, a saber, a já citada filosofia do

processo –, nos parece fortuito situar três coisas.

Uma primeira é que um pensamento orientado pelo processo, uma perspectiva

ontogenética para dizermos de outra forma, é, distante de uma ideia de uma instituição

filosófica, efetivamente um modo de pensar que faz, inicialmente, o manejo da própria

ideia de instituído, de instituição. Quer dizer, ele as maneja, como diríamos na

agroecologia, decupando-as e trabalha com a própria intuição, com um modo de abstração

que é fundamentalmente intuído, ou melhor, sentido-experienciado. Ou ainda, nos termos

de Alfred North Whitehead, um dos expoentes da filosofia do processo, visionado (1978,

pp. 33-34), mas sem nenhum distantismo (Cf. CLARKE, 2019).

Buscaremos, assim, ao longo do nosso caminhar, afofar e cuidar desse solo,

ofertando e criando enzimas para digerirmos e metabolizarmos aquilo que exploraremos

ao longo do trabalho. No entanto, tal qual na eco-lógica operativa da agricultura do

processo (GÖTSCH, 1997; REBELLO; SAKAMOTO, 2021), alguns elementos não vão

pegar e germinar, de modo que ficarão na terra como sementes de potencial para outros

processos por vir.

Outros elementos, por sua vez, vão enraizar e espalhar as suas ramas, aparecendo

e se repetindo em momentos distintos da escritura, ora como epígrafes, ora como parte

do texto ou de um argumento. Produzindo e gerando relações, efeitos, diferenças e

microvariações a cada iteração, a cada evento, a cada acontecimento, a cada encontro

singular.

O que nos aproxima da própria ideia de ontogênese, que é caríssima à filosofia do

processo e também ao nosso trabalho, que compartilha a perspectiva de que o que importa

é precisamente o que está sendo inventado, o que está sendo produzido, o que está se
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expressando e afetando a nossa própria capacidade de afetar e de ser afetado: os nossos

modos de experiência e de produção da experiência.

Cultivamos, nesse sentido, uma ideia ontogenética de experiência, onde ela é

(contrast)ativamente extrospectiva, ultracorpórea, impessoal, transformativa, afetiva,

intensiva. E onde o pensar é transmutado em um pensar-sentir ou, em nossos termos, em

uma pensensação, justamente porque o pensamento, tal qual um conceito, é sentido,

experienciado, e uma pensensação é a propulsora de uma força generativa que opera por

diferenciais – daí a ideia whiteheadiana de contraste –, quer dizer, por diferenças que vão

se diferindo e variando sua capacidade, sua potência, o que elas podem, constituindo,

ssim, uma multiplicidade de terrários expressivos-existenciais.

É, pois, neste acúmulo de camadas e na reselvagerização das relações entre elas,

que uma palavra, um conceito, um termo, enfim, voarão, tal como um dente-de-leão ou

uma semente de tipuana, e retornarão em um outro momento, como um ritornelo.

Produzindo uma diferença, uma microvariação expressiva, criando condições para um

outro (pensamento) possível, florescendo e frutificando em uma outra pla(n)taforma de

pensamento-criação, em um outro sub(e)strato.

Como no caso de Quando ‘coletivo’ quer dizer outra coisa: notas tentaculares

sobre ecologia, comportamento e (des)humanização da saúde que, por mais que já seja

um dos resultados de pesquisa apresentados, nos permite situá-la, de início, numa outra

linguagem, tanto em termos vocabulares e lexicais, quanto no sentido de um outro

suporte, de um outro modo de expressão.

O que nos remete, enfim, à segunda coisa que gostaríamos de situar e que diz

respeito ao fato de que optamos por inserir no texto da Qualificação alguns dos resultados

de nossa pesquisa como parte-integrante do trabalho, precisamente porque elas são


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sub(e)stratos de discussões que atravessam outras camadas da investigação e seu

processo.

A fim de diferenciar tais resultados, os inserimos como “interlúdios” e,

seguramente, vale dizer, eles serão retrabalhados – inclusive traduzidos – no decorrer do

doutorado, destacadamente In-between hunger and apetite – food for thought in the act e

eat (it) onde, mais uma vez, também propomos uma experimentação com outras

linguagens e modos de expressão dada a própria ecologia, o próprio hábitat original desta

peça.

A terceira coisa, finalmente, é que, de fato, nossa proposição trabalha não só nas

interfaces entre Filosofia e Saúde, como efetivamente nos limiares entre as Ciências

Sociais e Humanas em Saúde e outros campos, em especial, como dissemos

anteriormente, pelo pensentir-com diferentes cosmologias e modos da experiência-

pensamento que abordaremos ao longo dos próximos estratos, principalmente em

Devorações: entre o saber e o sabor, que é como que a terra mater de nossa escritura, o

traçado radical de um plano de imanência, diriam Deleuze e Guattari ou, em outros

termos, como o brotário onde germinarão inicialmente nossas pensensações, nossos

deslizamentos e nossa própria investigação.

Investigação esta que remete seja à toda uma saborosa produção que vimos

emergir nas últimas décadas e que tem se debruçado sobre as inflexões contemporâneas

do capitalismo, bem como acerca do nosso entendimento do comportamento humano que

figura, é sabido, como um elemento e uma questão central no contexto pós-transição

epidemiológica, demográfica e nutricional, tanto no campo da Saúde, quanto fora dele.

Seja, ainda, a algo que Michael Pollan compartilha no início de seu livro Cozinhar

– uma história natural da transformação (2014) e que diz respeito a um paradoxo:

enquanto o fenômeno dos programas culinários cresce exponencialmente na televisão, e


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enquanto cada vez mais temos assistido chefs profissionais, agora elevados ao patamar de

estrelas e celebridades, cozinharem coisas que raramente ou nunca comeríamos. Cada vez

mais nossas práticas alimentares têm sido sequestradas por outras práticas, especialmente

as práticas que nutrem o próprio capitalismo. O que implica, diz o autor, cozinharmos

menos para nós mesmos ou nos preocuparmos menos com a origem e a procedência

daquilo que comemos e consumimos.

Pois bem, se esse paradoxo e essa [d]obra, que foi, inclusive, um dos elementos

que me lançou no campo de pesquisa sob(re) o tema da alimentação, já nutriam um certo

questionamento, uma certa estupefação em 2014 acerca daquilo que gravitava ao redor

do comer e da própria alimentação.

Agora, além dos programas televisivos, aumentaram também o número de perfis,

páginas, canais, filmes, fotos, vídeos, documentários, séries, podcasts, posts, tweets e

publicações diversas sobre alimentação, nutrição, gastronomia, dietas, bem-estar e saúde

em mídias como Facebook, Instagram, Twitter, YouTube, Netflix, entre outras, que

empanturram e estufam a internet, atravessando e compondo o feed e o dia a dia de muitos

de nós.

Frente a esta profusão de signos, enunciados, imagens e discursos é possível

intuirmos que algo está acontecendo com relação ao modo como pensamos e consumimos

comida e saúde, do mesmo modo em que podemos não só intuir, como efetivamente

acompanhar transformações no próprio capitalismo.

Tanto que esta quantidade impressionante de novos conteúdos funciona como que

um termômetro, como algo que permite tanto vislumbrarmos alguns dos agenciamentos

(DELEUZE; GUATTARI, 1995) contemporâneos, como também evidenciar como, ao

falarmos de alimentação, nos deparamos com uma multiplicidade de elementos que

gravitam ao redor de nossas práticas alimentares, de nossos comportamentos e de nossa


19

comensalidade, e que, por muitas das vezes, extrapolam um entendimento meramente

biologizante do comer.

Entendimento este que nos lança na discussão que apresentamos em

Pro(to)cedências: escu(l)t(ur)as alimentares, onde compartilhamos o campo empírico do

qual brotou nossa investigação e semeamos uma escuta àquilo que outros modos da

experiência-pensamento podem produzir em nosso entendimento sobre um problema.

Bem como os efeitos e deslocamentos que a polinização cruzada com esses outros modos

da experiencia-pensamento pode produzir no próprio campo da Saúde Coletiva, como

buscamos evidenciar em E se? (Des)leituras no campo.

Efeitos e deslocamentos esses que aprofundamos em In-between hunger and

apetite – food for thought in the act, que é arrizomado à To bife or not to bife, eis a

questão: ontogênese, comporta-mento, hum(an)os e su(per)jeitos, e que são sub(e)stratos

que nos conectam diretamente ao nosso principal objetivo de pesquisa, qual seja: o de

construir uma analítica que permita tanto problematizarmos nosso entendimento acerca

do tema da determinação da conduta, quanto efetivamente ofertar, a partir de uma

perspectiva ontogenética, um outro entendimento da problemática do comportamento.

Perspectiva essa que, como dissemos, atransversa todos os nossos estratos e que

alimenta deslocamentos e deslizamentos fundamentais em nossa proposição, inclusive

metodológica, e que exploramos tanto em Ecologi(c)as das práticas: da terceira margem

do rio ao caminho do meio, quanto em C(a)ósmicas: da natureza ao cosmos, bem como

em Ratambufe e os comedores de terra: o que pode um corpo? e Jê est un autre:

alteridade, perspectivismo somático e multinaturalismo.

Deslocamentos e deslizamentos esses que nos situam, por sua vez, em um outro

hábitat. Permitindo a proposição de um desenho de pesquisa, ou melhor, a própria

operação de uma contra-metodologia – para lembrarmos da contra-antropologia de


20

Kopenawa –, que é fruto de um fazer cosmum com as cosmologias e cosmovisões que

mencionamos anteriormente e que expomos em Refazenda: contra-metodologias.

O que nos remete ao nosso segundo objetivo de pesquisa, a saber, o de produzir

uma cartografia das práticas alimentares expressas nas redes sociais Facebook, Instagram

e Twitter, mapeando, identificando, analisando e problematizando as distintas

perspectivas, os distintos agenciamentos, os distintos campos problemáticos e as distintas

ecologias de práticas que se articulam ao redor do tema da alimentação nessas redes.

Objetivo esse que exploramos em nosso Proto-tipo: um estudo do método

perspectivista de análise de redes sociais, que compartilha um estudo do método com o

qual nos aliamos, a saber, o método perspectivista de análise de redes sociais (MALINI,

2016, 2017), buscando evidenciar a nossa proposta cartográfica em operação, além de sua

materialidade e sua exequibilidade.

Por fim, é importante evidenciarmos que as questões, os deslocamentos, os

deslizamentos e os próprios problemas e proposições que cultivamos ao longo da escritura

não passam ao largo de nosso desenho metodológico, pelo contrário. Cada um de seus

estratos não só oferta questões que podem ser lidas a partir de uma metodo-lógica, quer

dizer, que possuem impactos diretos sobre questões caras à esta problemática do método.

Como buscamos, ao longo do trabalho, situar, demonstrar e evidenciar o quanto

esta problemática é indissociável de toda uma miríade de questões ligadas à nossa própria

cosmovivência e que, ao serem deixadas de lado, acabam por não cultivar os problemas

que julgamos os mais saborosos e apetitosos, quais sejam, os de ordem cosmopolítica

(STENGERS 2010, 2011).


21

2. Objetivos

Objetivo principal

Construir uma analítica que permita problematizar nosso entendimento acerca do tema da

determinação da conduta e ofertar um outro entendimento da problemática do

comportamento a partir de uma perspectiva ontogenética.

Objetivo secundário

Produzir uma cartografia das práticas alimentares expressas nas redes sociais Facebook,

Instagram e Twitter, mapeando, identificando, analisando e problematizando as distintas

perspectivas, agenciamentos, campos problemáticos e ecologias de práticas que se

articulam ao redor do tema da alimentação nessas redes.


22

3. Ouvir a terra, pensentir o terreno, o traçar de um plano


3.1. Interlúdio I: Quando ‘coletivo’ quer dizer outra coisa: notas tentaculares
sobre ecologia, comportamento e (des)humanização da saúde

Antes de qualquer coisa, é importante situarmos que este trabalho foi inicialmente

produzido e apresentado em suporte audiovisual durante o VIII Simpósio Discente da

Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade de São Paulo (SIMCOL) em

dezembro de 2020. Sendo agraciado, em tal ocasião, com o Prêmio Cecília Donnangelo

na área de Ciências Sociais e Humanas em Saúde.

Posto isso, sugerimos que o encontro com este sub(e)strato se dê também por este

suporte. O material original pode ser encontrado neste link: youtu.be/lHtqHnArDDk e

abaixo segue, a fins de facilitação, a reprodução em texto do áudio do vídeo:

Há muito mais problemas entre a “Saúde” e o “Coletivo” do que sonha nossa vã

cosmologia e é por meio da aliança com ontologias relacionais e epistemologias indígenas

que buscaremos criar condições para colocarmos em questão problemas caros ao campo

da Saúde Coletiva, a saber o problema do comportamento humano e o da humanização

da saúde.

A partir de uma eco-lógica, cultivamos uma proposição onde a criatividade e a

força da vida não se resumem à centralidade do humano, tanto que na cosmologia do

processo de Whitehead (1978) o indivíduo é irreduzível a um ser, a uma instância pessoal

ou a um corpo específico.

Ele, pelo contrário, é uma sociedade: uma sociedade de moléculas. O que

obviamente nos situa em um deslocamento bem particular no entendimento seja do que é

o individual, seja do que é uma sociedade, seja do que é o coletivo.


23

Em uma perspectiva processual um coletivo é sempre maior do que a soma de suas

partes, pois todo acontecimento é, para Gilbert Simondon (1958), transindividual, o que

quer dizer que no seio de toda e qualquer individuação sempre existe uma coletividade

emergente, uma sociedade, isto é, um conjunto de agrupamentos, uma certa habilidade

de composição (Cf. WHITEHEAD, 1968).

Fazer um pão, por exemplo, é criar uma sociedade, visto que implica uma

infinidade de relações que se estendem para além de suas partes individuais, isto é, da

soma da farinha, da água, do sal, do fermento, do humano e de suas técnicas de

panificação. Quero dizer: importa se é um dia úmido, se é um clima frio, se a temperatura

da cozinha ou do forno está muito alta, importa, aliás, se é um forno a lenha ou a gás, do

mesmo modo em que importa a dieta e a atividade do levain, as características da farinha,

do glúten, do ar, o tempo de descanso da massa e as suas relações com as sociedades que

a circundam e a compõem, etc.

Importar quer dizer que tudo isto produz não só condições e efeitos (Cf. JAMES,

1996), mas que esta sociedade e sua singularidade contemplam e incluem também o

corpo-panificador, a mão, a espátula, a tigela, a bancada, a forma, a batedeira, o fogão, o

gás, a cozinha, enfim, toda uma ecologia, um grupo de elementos, que compõe tal

sociedade e que nutre a criatividade e o potencial que floresce em meio aos diferentes

modos como sociedades podem relacionar-se entre si e potencializar-se, a exemplo de um

bolo de chocolate que é uma sociedade com os mesmos elementos que um muffin ou um

cookie, mas cujas relações características produzem uma outra singularidade (Cf.

SPINOZA, 2007).

A questão da filosofia do processo é, então, a de nunca reduzir um acontecimento,

um campo de potenciais a uma unidade encerrada sobre si (Cf. WHITEHEAD, 1994), o


24

que seria como reduzir nossa sociedade-pão-padeiro ao pão ou a sociedade-bolo-de-

chocolate ao bolo, ou, dito de outra forma, de reduzir os ingredientes ao produto final.

Ou seja, nesta perspectiva ontogenética o pão faz o padeiro, tanto quanto o padeiro

faz o pão, o que é dizer que um pensamento orientado pelo processo não admite qualquer

entendimento do humano que exclua da existência a multiplicidade de elementos que

compõem o mundo, mundo este que é também uma sociedade complexa viva: um mundo-

corpo, um corpo-mundo sempre em produção.

Isto implica que toda e qualquer distinção entre Natureza e Cultura cai por terra,

afinal, o sujeito é apenas mais uma perspectiva do mundo, do processo, da natureza, uma

subjetividade produzida em um acontecimento que excede o humano e que, ao fazê-lo,

evidencia como a problemática do humano, daquilo que o constitui, é preciosa para

pensarmos questões caras ao campo, especialmente porque na cosmologia do processo o

humano é, lembremos, sempre uma sociedade de moléculas: “nós estamos no mundo e o

mundo está em nós” (WHITEHEAD, 1968, p. 227, tradução nossa).

Toda coisa na natureza é, portanto, apenas mais um grau da experiência do mundo,

um ponto de vista, uma perspectiva. Ao invés de um sujeito, diria Whitehead, um

superjecto: um corpar, um mundificar.

Isto não significa dizer, por outro lado, "que não exista um 'eu', mas que o 'eu' não

pode ser localizado antes do acontecimento ou como aquilo que o dispara. O ‘eu’ está no

meio, no campo relacional como um dos vetores da experiência, de tal maneira que o

sujeito é polvilhado para além da forma do humano, da figura da humanidade, o que nos

conecta à uma outra cosmologia – a dos povos da floresta – e ao que Viveiros de Castro

nomeou como perspectivismo ameríndio (1996), uma noção bastante difundida no

pensamento ameríndio que considera que o mundo é povoado por uma infinidade de

outros sujeitos que não só “nós” e que “há muito mais sociedades (e portanto humanos)
25

entre o céu e a terra do que sonham nossas antropologias e filosofias.” (DANOWSKI,

VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p. 94)

Ao considerar o mundo natural como uma multiplicidade de multiplicidades

conectadas, onde as outras espécies são também pessoas, povos e entidades políticas, o

perspectivismo ameríndio afirma que na floresta tudo que existe, pensa, e que aquilo que

chamamos de “ambiente”, diz respeito à uma sociedade de sociedades, uma arena

internacional onde todo o existente se vê fundamentalmente como humano, de maneira

que a própria “humanidade” é, ao mesmo tempo, uma condição universal[, um fundo

comum] e uma perspectiva auto-referencial (Id., p. 95).

O multinaturalismo abole, assim, “qualquer diferença absoluta de estatuto entre

sociedade e ambiente, como se a primeira fosse o “sujeito” e o segundo o “objeto” [, de

modo que] todo objeto é sempre um outro sujeito, e é sempre mais de um” (Ibid., p. 94).

Torcendo a ideia de “humano”, as epistemologias indígenas nos permitem também

torcer a própria ideia de “ecologia” pois, como nos relembra o xamã yanomami Davi

Kopenawa, a ideia-coisa “ecologia” nunca foi exterior à sua existência, pois “[na] floresta,

a ecologia somos nós, os humanos. Mas são também, tanto quanto nós, os xapiri [os

espíritos], os animais, as árvores, os rios, os peixes, o céu, a chuva, o vento e o sol! É tudo

o que veio à existência na floresta (...) Somos habitantes da floresta. Nascemos no centro

da ecologia e lá crescemos.” (KOPENAWA; ALBERT, 2015, p. 480)

Não por acaso, indígena é aquele “[que é] gerado dentro da terra que lhe é própria”

(Cf. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa,), o que é dizer que ser indígena, “é um

atributo imanente ao sujeito, não uma relação extrínseca com um objeto apropriável”

(VIVEIROS DE CASTRO apud KOPENAWA; ALBERT, op. cit., p. 16), tanto que

muitos povos indígenas mundo afora afirmam que a terra não lhes pertence, justamente

porque são eles que pertencem à ela.


26

Isto implica, imediatamente, que as relações se dão em outros termos onde não só

o humano é outra coisa, como também a própria família e suas socialidades. Como diz

Ailton Krenak: “o rio Doce, que nós chamamos de Watu, [é] nosso avô, é uma pessoa,

não um recurso (...). Ele não é algo de que alguém possa se apropriar; é uma parte da

nossa construção como coletivo que habita um lugar específico” (2019, p. 21).

O que é dizer que para além da noção de sujeito, nestas ontologias não-dualistas a

pessoa é, fundamentalmente, um grupo-sujeito, uma pessoa-coletiva e não algo apartado

da natureza, alienado “desse organismo de que somos parte, a Terra, [e que pensa] que

ele é uma coisa e nós, outra: a Terra e a humanidade. Eu [Krenak] não percebo que exista

algo que não seja natureza. Tudo é natureza (...)” (KRENAK, 2020, p. 8).

Ressoando a cosmologia do processo, as cosmo-lógicas indígenas implicam um

potencial ontológico que cultiva saberes, práticas e modos de existência que não se

baseiam na dicotomia natureza/cultura, e situam o papel constituinte que o não-humano

adquire na produção da experiência e da própria vida, o que implica que, para além do

ideal de objetivação máxima que orienta o pensamento Branco e sua Ciência, para as

epistemologias xamânicas conhecer é justamente o oposto: é adicionar subjetividade e

intencionalidade ao mundo.

As epistemologias xamânicas, neste sentido, podem ser consideradas

epistemologias estético-políticas, na medida em que procedem por atribuição de

subjetividade ou “agência” às coisas, visto que os acontecimentos do mundo são

resultados de algum tipo de intencionalidade, pois todo evento é uma ação de alguém e

todo objeto é um artefato para alguém. (Cf. VIVEIROS DE CASTRO apud SZTUTMAN,

2008, p. 41)

Isto é dizer que a produção de conhecimento jamais é despida ou cindida de um

certo jeito de viver a vida, e que não há epistemologia desimplicada de uma ontologia,
27

muito pelo contrário: conceitos como “vida”, “corpo”, “saúde”, “experiência”, “coletivo”,

“sociedade” e “humano”, são sempre tributários de uma cosmologia e a aliança seja com

a cosmologia do processo, seja com as cosmologias ameríndias buscou ofertar elementos

para pensarmos, como diria Michel Foucault, outramente (autremont), com outras

mentes, permitindo que criemos condições seja para problematizar paradigmas crônicos,

seja para cultivar diálogos agudos ao redor de modos de desumanizarmos a saúde, quer

dizer, de antropofagizarmos a saúde e o humano, desinvestindo-os de seu

antropocentrismo, da interioridade de um indivíduo, das meras funções biológicas do

corpo, ou de um jogo entre categorias já dadas e pré-constituídas.

O que abre flanco também para criarmos condições para pensarmos o problema

do comportamento a partir de uma perspectiva ontogenética, isto é, de uma perspectiva

onde outros mundos devoram as fronteiras pretensamente claras e definidas do indivíduo

soberano e sua consciência, alimentando uma poética das relações (Cf. GLISSANT,

1990) onde a experiência é o próprio produto de uma mais-valia de relações.

A questão que fica então é: em meio a todas essas metafísicas canibais (Cf.

VIVEIROS DE CASTRO, 2015), onde começa e onde acaba a vida? No meio. (Cf.

MILONOPOULOS, 2021)
28

3.2. Devorações: entre o saber e o sabor

Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios.


Manoel de Barros

A verdade é que se trata, em filosofia e mesmo alhures,


de encontrar o problema (...), de colocá-lo, mais ainda
que de resolvê-lo. (...) Mas colocar o problema não é
simplesmente descobrir, é inventar.
Gilles Deleuze

Para quem tem como ofício ser um desaprendedor profissional, a arte de fazer o

pensamento pegar delírio é definitivamente das mais saborosas. Os que nos conhecem,

aliás, sabem que temos abundância de delírios, tanto quanto um paladar aguçado para as

coisas, os seres e os pensamentos tidos como mais desimportantes.

Desse apetite por desimportâncias acabou nascendo um gosto pelos desperdícios

e pelas insignificâncias: um gosto pelas bordas de uma palavra, pelas aparas de uma

noção, pelas migalhas que um conceito deixa na mesa, pelas sobras de uma questão que

ficou no canto do prato, pelos excessos de um pensamento que cresceu para além da

forma, por uma ideia solada ou por um saber que queimou no fundo da panela. Ou ainda

por problemas difíceis de descascar e de cozinhar, principalmente aqueles que carecem

de um preparo lento, de fogão a lenha e panelas de barro, ou de folhas de bananeira, brasas

e buracos no chão.

Em meio a este ofício de invenção, a esta arte da invencionática (Cf. BARROS,

2004), podemos começar a saborear uma questão que, sem qualquer preparo ou tempero

especial, já é absolutamente suculenta, a saber: como fazer o pensamento pegar delírio?

Ou, melhor ainda, como abrir o apetite para o pensamento?

Um dos modos, diriam Fred Moten e Stefano Harney, é estudar. E o estudo, tal

qual o cozinhar, o comer, o pensar e o escrever, está sempre prenhe de socialidades:

estudar é o que você faz com outras pessoas. É conversar e caminhar com
outras pessoas, trabalhando, dançando, sofrendo, uma convergência irredutível
desses três verbos, unidos sob o nome de prática especulativa. A ideia de um
ensaio: estar em uma espécie de oficina, tocar em uma banda, em uma jam
session, ou velhos sentados em uma varanda, ou pessoas trabalhando juntas em
29

uma fábrica; existem diferentes modos de atividade. A graça de chamá-lo de


"estudo" é que mostra que a intelectualidade incessante e irreversível dessas
atividades já está presente. Essas atividades não são enobrecidas porque agora
dizemos: "ah, se fizessem essas coisas de uma certa maneira, se poderia dizer
que estavam estudando". Fazer essas coisas é participar de um tipo de prática
intelectual comum. O importante é reconhecer que é assim, porque esse
reconhecimento permite que se tenha acesso a toda uma história alternativa,
heterogênea, do pensamento. (2017, p. 166, tradução nossa)

Um outro modo é criar condições para que possamos saborear um problema. Isto

é, de estabelecer, em meio a toda uma biodiversidade de pensamentos, fomes e apetites,

uma atitude frente a um problema. Afinal, para lembrarmos de Henri Bergson e de Gilles

Deleuze, um problema “tem sempre a solução que (...) merece em função da maneira pela

qual é colocado, das condições sob as quais é determinado como problema, dos meios e

dos termos de que se dispõe para colocá-lo” (DELEUZE, 1999, p. 9).

Uma história das humanidades pode inclusive ser a história da constituição de

problemas. Problemas estes que são postos precisamente para a vida, "que se determina

essencialmente no ato de contornar obstáculos, de colocar e resolver um problema” (Id.,

p. 10), relação esta – entre problema e vida – que, despudoradamente, tal qual uma

mexerica, espalha fragrâncias que não só nos dão água na boca, como também sinais de

uma outra maneira de se trabalhar com a temática da determinação: “a vida que se

determina no ato”, a vida que invenciona técnicas e práticas para perseverar na existência.

Maneira esta onde o que está para ser devorado remete à própria vida, pois é nela

que se inventam as condições para que este encontro com um problema seja apetitoso.

Até porque, para lembrarmos de Benedito de Spinoza (2007), não há diferença entre

desejo e impulso vital, muito pelo contrário: o problema mais íntimo do apetite é

exatamente o de perseverar na existência, de cultivar, fertilizar e imediar as potências da

fome e as potências da vida.

Entretanto, no manejo desta biodiversidade e da própria ecologia de perfumes,

aromas, cores, sabores e texturas acerca do que é uma vida (Cf. DELEUZE, 2000) muitos
30

problemas acabam sendo avaliados somente pela possibilidade ou pela impossibilidade

de receberem uma solução.

O que nos leva àquilo que Bergson nomeia como falsos problemas, que "vêm de

não sabermos ultrapassar a experiência em direção às condições da experiência, em

direção às articulações do real, e reencontrarmos o que difere por natureza nos mistos que

nos são dados e dos quais vivemos.” (DELEUZE, 1999, p. 18, grifo nosso)

Pegar delírio, portanto, contempla ao menos duas coisas. De um lado, uma

empreitada problemática, isto é, uma crítica das condições sob as quais um problema é

determinado e sob as quais a experiência emerge. E, do outro, de cortes e intersecções

sobre os meios e os termos utilizados para inventar um problema, tanto quanto sobre as

técnicas e práticas que compõem, produzem e articulam o que usualmente, em uma certa

cosmologia, entendemos como real.

Abrir o apetite para o pensamento, neste sentido, é mais do que uma questão de

gosto, é uma questão de sedução, de erotizar o pensamento, de pôr cravo e canela. A

propósito, se em termos de poesia a palavra poética “tem que chegar ao grau de brinquedo

para ser séria” (BARROS, 2010, p. 348), o encontro seja com um conceito, seja com um

sabor alternativo e heterogêneo do pensamento deve ser aquilo que alimenta o pensar,

fazendo aumentar a sua potência. Potência esta que, para lembrarmos de Antonin Artaud,

deve carregar em si “ideias cuja força viva é idêntica à da fome” (2006, p. 1): a vida que

inventa in-ato1.

1 Como bem evidenciam Fogliano e Magalhães: “Esta noção contém um jogo de palavras intraduzível para
o português. In-act (...) possui uma ambivalência: qualificar a ação, a prática em-ato, bem como o inact,
inativo, inatividade, a impessoalidade da ação, do gesto. Essa ambivalência abre um duplo e paradoxal
entendimento: por um lado, entendimento da experiência valorativa inerente do ato, do ato em si mesmo,
no acontecimento; por outro, entendimento de que o processo de atualização e valoração é um ato inativo,
um gesto, ou seja, não intencional, não volitivo, não passa pela ordem da vontade ou da consciência
individual, do cogito, mas da necessidade mesma de sua natureza material constitutiva.” (in MANNING,
2018, p. 261, nt 118, grifo nosso)
31

Um conceito, assim, é "exatamente como sons, cores, ou imagens, são

intensidades que convêm (...) ou não, que passam ou não passam (DELEUZE, 1998, p.

10), que colocamos ou não no prato conforme a força do desejo. São como um aperitivo,

o amuse-bouche que abre o apetite e que move a alegria de pensar, alegria esta que dança

entre a fome e o apetite, e que abre o seu sabor não para a interioridade de uma boca, para

a intimidade de um corpo ou de um sujeito, mas para o fora, para um

pensamento que se mantém fora de qualquer subjetividade para dele fazer


surgir os limites como vindos do exterior, enunciar seu fim, fazer cintilar sua
dispersão e acolher apenas sua invisível ausência, e que ao mesmo tempo se
mantém no limiar de qualquer positividade. Não tanto para apreender seu
fundamento ou justificativa, mas para encontrar o espaço em que ele se
desdobra, o vazio que lhe serve de lugar, a distância na qual ele se constitui e
onde se escondem suas certezas imediatas, assim que ali se lance o olhar, um
pensamento que, em relação à interioridade de nossa reflexão filosófica e à
positividade de nosso saber, constitui o que se poderia denominar “o
pensamento do exterior”. (FOUCAULT, 2009, p. 222)

O apetite, tanto quanto o delírio, envolve deste modo as próprias condições de

produção de um pensamento, de ativar um paladar para o impensável no pensamento,

dado que ele, bem como o próprio comer, envolve “não desperdiçar apenas na

preocupação de comer imediatamente nossa simples força de ter fome” (ARTAUD, op.

cit., p. 2). Ou seja, ele envolve desossar, destrinchar e problematizar os mistos que nos

são dados e que, goela abaixo, acreditamos ter enzimas para digerir e metabolizar

naturalmente.

Isso implica em assumirmos um grande e saboroso compromisso que não é só

meramente filosófico, mas [est]ético e [cosmo]político, a saber, o de cultivar a generosa

magia da vida, nutrindo um questionamento sobre aquilo que constitui o sujeito e suas

práticas a partir de uma pensensação onde buscamos experimentar (com) os problemas e

(com) os pensamentos que brotam ao não resumirmos esta força viva da fome à

centralidade do humano, à interioridade de um sujeito, às funções de um sistema

digestório, ou a um jogo entre categorias já dadas e pré-constituídas, tais como o


32

indivíduo, o corpo, a saúde e a sociedade: fomes que especulam, apetites que fabulam, a

vida que invenciona.

Não por acaso é justamente daí que nasce a proposição de buscarmos novos

ingredientes para cozinharmos condições que nos permitam desenvolver um paladar para

outras perspectivas, para novos sabores do problema do comportamento, bem como de

suas relações com o problema da ontogênese (SIMONDON, 1958), alimentando, como

dissemos anteriormente, uma perspectiva ontogenética, qual seja, a de inventar,

continuamente e para além das formas de vida já cristalizadas, novas formas de ser.

Vale notarmos ainda a esse respeito que ontogênese e ontologia não são a mesma

coisa, muito embora recorrentemente sejam usadas como sinônimos. É precisamente no

"para além” que a ontogênese se diferencia da ontologia: ao invés do estudo do ser

(being), dos modos de vida já sedimentados, a ontogênese pode ser definida como o

estudo do devir, do becoming, do vir-a-ser, da criação de novos processos e da exploração

de potenciais a cada corte, a cada dobra da massa, da folha, do plano, do humano.

É neste sentido, no próprio deslizar da ontologia par a ontogenética, da agência

para o agenciamento, que trazemos à mesa o cardápio teórico-conceitual ofertado pela

filosofia do processo, cardápio este que alimenta uma cosmologia eminentemente

relacional e que frutifica no pensamento de autores como Alfred North Whitehead,

Benedito de Spinoza, Gilbert Simondon, William James, Gilles Deleuze, Félix Guattari e

tantas outras, outros e outres contemporaneamente.

Esta aliança com um modo de pensamento orientado pelo processo se dá

precisamente pelo fato de que ele nos oferece ingredientes saborosos para que possamos

ir além dos meios, termos e conceitos já utilizados para formular e explorar a problemática

do comportamento humano e sua determinação no campo da Saúde Coletiva, em especial,

a figura do sujeito, que constitui o recheio seja do entendimento que o campo possui do
33

corpo, da agência e do comportamento humano, seja da própria operatória destas

problemáticas no campo da Saúde.

Assim, entre mil pratos e platôs, uma primeira composição com este modo de

pensamento implica que efetivamente levemos a sério uma ideia muito cara à Saúde

Coletiva, a saber, a ideia de “coletivo”, como buscamos mostrar em nosso sub(e)strato

anterior. Ideia essa que é fundamental não só por ter fomentado o poder do social e da

vida social na crítica do campo à Saúde, como também as concepções de saúde e de

cuidado que brotaram em meio à sua força instituinte e que extravasaram o monopólio

dos discursos biológico-sanitários sobre a produção da saúde a partir da Reforma

Sanitária e da consolidação da Saúde Coletiva no Brasil.

Mais do que levá-la a sério, a filosofia do processo permite também que

radicalizemos tal ideia e que nos deleitemos com a riqueza de seus aromas, sabores,

tonalidades, gostos, cores e texturas que, em meio a esta perspectiva processual e à sua

multiplicidade, nos embrenham em uma ecologia onde poliniza-se um entendimento

particular sobre o coletivo: um entendimento onde ele jamais é reduzível à soma de suas

partes individuais.

O que implica, imediatamente, retomando um solo pelo qual já andamos, que

qualquer ideia de saúde coletiva orientada por um pensamento processual jamais digeriria

qualquer distinção entre uma parte e um todo, entre um indivíduo e uma sociedade, ou

entre um corpo e um mundo.

Um coletivo, desta forma, é sempre maior do que a soma de suas partes, pois para

aquém e para além do indivíduo, todo e qualquer acontecimento diz respeito justa e

precisamente a um excesso do indivíduo, a uma mais-valia relacional que o excede e que

excede as suas partes individuais, no mesmo sentido em que todo evento é, nos termos de
34

Gilbert Simondon, transindividual. O que é dizer que no seio de toda e qualquer

individuação sempre existe uma coletividade emergente, um movimento.

Notemos, aliás, que falamos em individuação e não em um indivíduo, e não o

fazemos fortuitamente. Esse deslizamento nos dá a oportunidade de engrossarmos nosso

caldo processual, adicionando pitadas do menu conceitual ofertado pela filosofia do

processo, onde o indivíduo é sempre emergente e nunca pré-constituído: ele é uma

inflexão, uma série de acontecimentos, o fruto de um processo de individuação. Ou seja,

de um sistema metaestável onde, em sua transitoriedade, ele é menos um resultado

estável, uma identidade cristalizada ou uma unidade envelopada sobre si mesma, e mais

uma singularidade individuada.

Com efeito, o indivíduo é o resultado daquilo que Simondon, como aludimos no

início de nosso encontro, chama de transdução, um processo que fertiliza a ideia de que

todo acontecimento envolve, de um lado, uma mudança na ecologia da experiência, nas

condições que o compõem: como o acontecimento-mesa que altera nosso caminho pela

cozinha. E, do outro, o fato de que todo acontecimento é colaborativo e participativo: o

acontecimento-docinho que, sobre a mesa, nos seduz – “só mais um pedacinho”.

Há, assim, uma relação intrínseca entre ao menos três estratos: a individuação (o

processo), o pré-individual (a força de um tomar forma) e o individual (a inflexão que

catapulta o processo para novas individuações). O que quer dizer que a singularidade de

um processo – o indivíduo – jamais é o seu ponto de partida, pelo contrário: esta

singularidade é o que emerge em meio à individuação, em meio ao brotar de uma

ecologia, ao florejar de uma experiência in-ato.

O indivíduo, deste modo, embebido na coletividade que emprenha tais processos

de individuação e transdução, é como o acontecimento se expressa, e não aquilo que o

coloca em movimento. Ele é o resultado desse disparate, dessa metaestabilidade que,


35

mesmo na última colherada, preserva um nível pré-individual, impessoal (Cf.

GUATTARI, 2000a), isto é, um nível onde o coletivo é a própria potência da

individuação.

O que reforça o fato de que todo processo de individuação é eminentemente

coletivo, já que carrega a virtualidade, os potenciais e as singularidades que fertilizam

toda uma ecologia de práticas que não podem ser reduzidas ao nível do pessoal e à agência

individual, visto que são transversais à experiência: o sol que atrai o girassol, o girassol

que preende o sol – gira-sol.

Radicalizar, portanto, a ideia de coletivo diz respeito a cultivar essa

transindividualidade essa instância coletiva onde o sujeito é, efetivamente, uma fértil

ecologia, um grupo-sujeito (GUATTARI, op. cit.; KOPENAWA; ALBERT, op. cit.;

KRENAK, 2019), uma promíscua multiplicidade em ato. E onde a experiência é sempre

suscetível a mudanças contínuas, haja visto que o acontecimento é localizado não no

sujeito, menos ainda no objeto, mas na relação entre eles: uma saúde coletiva.

Uma prática, neste sentido, também não é individual2, mas essencialmente

transindividual, ou seja, chovendo no molhado, irreduzível a um ser, a uma instância

pessoal ou a um corpo específico. Ainda nesta mesma direção, no caldo conceitual

oferecido por Whitehead, uma prática também é ecológica e despudoradamente

relacional, visto que um corpo é, nada mais, nada menos, que uma sociedade: uma

sociedade de moléculas.

O que obviamente nos situa em um deslocamento bem particular seja no

entendimento do que é o social, seja no entendimento do que é uma sociedade, seja do

2 No que toca à problemática do individual não podemos deixar de lado as discussões acerca daquilo que
autores como Gilles Deleuze (1992) e Brian Massumi (2017a) nomeiam como divíduo: o produto das
injunções neoliberais e do turbilhão de tendências heterogêneas que compõem as máquinas de produção
das subjetividades capitalísticas.
36

próprio lugar que o problema do comportamento pode ocupar nesta ecologia ou em uma

certa eco-lógica da saúde e das práticas que buscaremos cultivar.

Com efeito, nesta perspectiva uma sociedade está sempre prenhe de um nexo

relacional, de uma imanência mútua, ou seja, de um campo de potenciais que fertiliza a

qualidade composicional específica de uma dada ordem social. O que quer dizer, em

outros termos, que a filosofia do processo nos apresenta um conceito de sociedade onde

cada relação, por mais ínfima que seja, está implicada na produção deste corpo-sociedade,

do mesmo modo em que qualquer mudança no campo de potenciais, mesmo a mais

infame, reconfigura o corpo, isto é, reconfigura e potencializa esta sociedade.

Disto decorre que o social envolve tanto a produção de corpos sempre em relação

com as forças do mundo, quanto um problema de duração, pois um corpo-sociedade é

justamente aquilo que se caracteriza por perseverar em meio aos movimentos e às

dinâmicas do mundo. Pensemos, por exemplo, já que falamos em duração, em uma pedra.

Muito aquém das cosmopolíticas e das cosmológicas indígenas, seus movimentos

costumeiramente são tidos como praticamente imperceptíveis para uma percepção

humana neurotípica3, sendo ela reconhecida usualmente pelas suas qualidades estáveis,

pela sua invariabilidade. Contudo, quando uma pedra esfarela, quando um corpo-pedra

se torna um corpo-areia na praia, o que está em jogo é o fato de que suas qualidades de

3 Nos servimos do conceito de neurotipicalidade seja para relembrar que a vida é, em potencial,
neurodiversa – o que é dizer que ela pode ser vivida de formas e maneiras que extrapolam a fixidez de uma
certa definição daquilo que conta como vida e que conta no campo da experiência e da percepção humana
–; seja para evidenciar que o amplo espectro da neurodiversidade contempla modos de existência, de
relação, de pensamento, de percepção e de experiência que usualmente são vistos como fardos para a
sociedade – especialmente no caso de pessoas com diferenças neurológicas –, sendo estes não só excluídos
da educação, da vida social e econômica, como também, por meio de diversas tecnologias de opressão,
violência e exclusão que produzem o próprio entendimento daquilo que é considerado humano (Cf.
BAGGS, 2007). Do mesmo modo, como indicamos anteriormente ao falarmos da tríade volição-
intencionalidade-agência, essa problemática cultivada pela pensadora nos permite germinar interessantes
questões acerca do problema do comportamento futuramente neste trabalho. (Cf. MANNING, 2016)
37

relação com o mundo foram alteradas: criou-se uma nova sociedade, uma nova habilidade

de relação com o mundo.

Há, desta forma, não só uma imersão desta pedridade em uma promiscuidade de

relações – com o vento, com o sol, com o mar, com a vida que a co-compõe, etc. –, mas

também uma precisão absolutamente necessária no universo. Precisão esta que permite

que uma pedra seja uma pedra, que uma montanha seja uma montanha, que um

pedregulho seja um pedregulho, que um cristal seja um cristal, que a areia seja a areia,

que o vidro seja o vidro. Enfim, o ponto é que cada um destes elementos diz respeito à

diferentes sociedades e à diferentes qualidades que frutificam nessas relações diversas

entre corpos.

Pensemos em um outro exemplo: em uma mesa e uma cadeira. Cotidianamente

diríamos que uma mesa é só uma mesa, e uma cadeira é só uma cadeira. Há uma clara

diferença entre elas, tanto quanto uma certa relação mesa-cadeira sedimentada em nossa

sociedade: uma mesa atrai uma cadeira que, por sua vez, atrai um corpo que irá usá-la

para realizar alguma atividade na mesa, tal como sentar e fazer uma refeição.

A questão, todavia, é que existe uma sentabilidade em ambas: é possível fazer isto

seja na mesa, seja na cadeira, o que implica que a potência de sentar que compõe cada

uma delas altera os modos de relação possíveis nesta ecologia, inclusive os seus sabores

afetivos: comer sentado na mesa com os pés balançando enquanto se bate papo na cozinha

definitivamente carrega um sabor distinto que comer em um local onde a etiqueta à mesa

impera, onde cada coisa sabe o que ela é: a posição e a função de cada talher, de cada taça

ou de cada co(r)po.

E são justamente estes modos de relação e seu perseverar que definem a identidade

de uma sociedade: uma mesa pode ser uma cadeira, do mesmo modo que uma cadeira

pode ser um chapéu ou, em termos mais processuais, uma mesa carrega as qualidades –
38

as sentabilidades – de uma cadeira, enquanto uma cadeira carrega as qualidades de um

chapéu – suas vestibilidades (Cf. MANNING, 2016).

Ou ainda, para dizermos de outro modo, o que está na chapa é o potencial, as

potencialidades: “Desinventar objetos. / O pente, por exemplo. / Dar ao pente funções de

não pentear. / Até que ele fique à disposição de ser uma begônia. / Ou uma gravanha. /

Usar algumas palavras que ainda não tenham idioma”. (BARROS, 2010, p. 300)

Notamos, assim, que uma sociedade é mais do que um conjunto de entidades

localizáveis, de identidades cristalizadas e de funções estabelecidas dentro de uma certa

normatividade. Ela é, pelo contrário, constantemente flambada nesta poética das relações

(Cf. GLISSANT, 1990), de maneira que podemos dizer que ela é sempre um excesso da

repetibilidade normativa ou, dito de outra forma, que na perspectiva da filosofia do

processo a força da existência – a força viva da fome, as seduções do apetite – não pode

ser resumida ao pessoal, a uma certa continuidade ou a uma certa categoria, função,

comportamento ou forma definitiva: tal quando o cabo do garfo ou a ponta da faca que

mexem o café.

Para além, portanto, de qualquer fragmentação da experiência entre um sujeito e

um objeto, a perspectiva processual nutre uma “mecânica da expressão, ao invés de um

dispositivo de significação” (MURPHIE, 1996, p. 104, tradução nossa). De tal maneira

que radicalizar a ideia de coletivo quer dizer explorarmos não só um pensamento e uma

prática onde o sujeito é sempre emergente, atualizado, em ato, mas também nutrir essa

potência relacional onde todo acontecimento, no frigir dos ovos, conta. E onde todo ato,

toda singularização eminentemente afeta, move e reorienta a experiência, lá onde ela

ainda não se cristalizou em uma forma, em um envelope, em um objeto, em um indivíduo,

em uma representação ou em um transcendental.


39

A ênfase do pensamento processual, neste sentido, é sobre o devir da

continuidade, isto é, sobre as condições de emergência e de continuidade do processo, da

multiplicidade dos devires, da atividade do mundo e de tudo aquilo que germina em seu

campo relacional: não um mundo, mas um mundificar, não um corpo, mas um corpar.

A filosofia do processo, inclusive, é uma filosofia que poderíamos dizer

absolutamente ativista (Cf. MASSUMI, 2011). Não no sentido de militante e combativa,

mas no sentido de ser uma proposição que parte, generosamente, do ato, ou seja, que parte

da fartura do acontecimento e da experiência, do banquete da atividade do mundo, do

simples fato de que algo está sempre acontecendo (Cf. JAMES, 1996, p. 161): pequenas

devorações, infrafomes, microapetites.

Não por acaso seus conceitos mais fundamentais são justa e precisamente os

conceitos de acontecimento/evento e de processo (Cf. WHITEHEAD, 1968), pois é

sempre no meio, no entre, que o pensamento e a vida germinam e florescem (Cf.

DELEUZE; GUATTARI, 1987, pp. 21-23; 293): na crueza do acontecimento, na nudez

do evento, na descaradez da diferença, nas peraltagens da criatividade que alimenta o

mundo e nutre a vida (Cf. MASSUMI, op. cit., p. 161).

Para Whitehead, vale reforçarmos, a atividade, a transformação, a diferença, o

acontecimento, o evento estão umbilicados ao conceito de potencial. A potencialidade é

um dos elementos mais centrais para o entendimento e a análise da existência em um

pensamento processual, porque é nas imediações entre a realização das potencialidades

do passado e a fulguração das potencialidades do futuro que o processo frutifica, tanto

quanto na transformação do potencial em sua atualização como uma novidade no mundo

(1968, p. 151).

Imersos, assim, em todo este ativismo e nas próprias potências de uma fabulação

ou, para lembrarmos de Deleuze (1976), nas potências do falso, logo podemos perceber
40

que uma ideia valiosa para a perspectiva do processo é a de que toda e qualquer fabulação,

de que toda e qualquer especulação, de que toda e qualquer mudança ou acontecimento,

tal qual um tempero ou uma especiaria, adicionam uma novidade no mundo, alterando o

seu sabor, alterando a sua textura, alterando seu tom. Alterando, enfim, as condições da

experiência, mas não sem antes inventar uma maneira de emergir no mundo: tudo que

não inventa é falso (Cf. BARROS, 2010, p. 345).

Pensemos, por exemplo, no coentro, um dos ingredientes mais disruptivos que

pode adentrar uma cozinha e que, por dificilmente passar incólume em uma preparação,

carrega um pujante e irrefutável potencial de singularização, de produção de diferença no

processo, esteja ele apenas mencionado entre os itens da receita, ou efetivamente no fundo

da panela.

A partir do momento em que o acontecimento-coentro viceja na beira de fogão,

na conversa da boqueta, no meio da receita, na ponta da faca ou numa imaginação sensível

inaugura-se uma nova dinâmica entre cozinheires, comensais e quem quer que possa ter

sentido seu aroma ou ouvido seu nome. O que é dizer que neste evento importa menos se

esta especiaria vai efetivamente ser usada ou não na preparação, e sim o fato de que as

relações, os paladares e as próprias condições da experiência foram transformadas: pode

pôr?

O ponto então é que tudo o que compõe a experiência é, de alguma maneira, real,

pois produz efeitos no mundo, sempre carregando um potencial afetivo. Do mesmo modo

em que tudo que é real é também experienciado, sensível, o que implica o fato de que a

experiência imediata é a experiência da transformação, da produção de uma diferença, da

invenção de um mundo, afinal, a mudança é sempre imediatamente experienciável (Cf.

JAMES, op. cit, p. 48).


41

Um dos princípios fundamentais da filosofia do processo é, neste sentido, a

experiência do devir, ou seja, uma experiência que põe ênfase não no objeto, menos ainda

no sujeito, mas na relação. Uma experiência intersticial que muda a perspectiva do

universo do sujeito autônomo para o campo da própria experiência ou, diria Whitehead

em seu léxico processual, para uma ocorrência (occurrence), isto é, aquilo que acontece

e que altera as condições de existência e de toda a ecologia de relações que a compõe: um

devir-coentro.

Ocorrências, assim, envolvem a própria produção de uma sociedade, tanto quanto

de uma economia: uma economia qualitativo-relacional do processo que está sempre

prenhe de singularidades, de multiplicidades e de diferenças (Cf. JAMES, op. cit., pp. 93-

94), cultivando os potenciais e os movimentos formativos dos mundos do processo: abrir

a porta da geladeira é semear mundos, polinizar devires; é abrir o céu da boca e lamber a

criatividade da vida.

O que seria, entretanto, este mundo? O que seria então o processo? Whitehead nos

responderia esta questão com uma única e singela palavra: a natureza. Entendida como

muito mais do que um agregado de diferentes objetos e seres, ela “é uma estrutura de

eventos e cada evento tem sua posição nessa estrutura e seu próprio caráter ou qualidade

peculiar” (WHITEHEAD, 1994, p. 195) na singularidade de uma experiência em seu

brotamento.

A natureza é composta, desta maneira, por uma promiscuidade de devires e de

transformações que excede, indiscriminadamente, a realidade dos objetos e dos

indivíduos. O que podemos ver, inclusive, nas próprias brincadeiras de uma criança onde,

por exemplo:

[é] só olhar para um tigre, ainda que de maneira fugaz e incompleta, seja num
zoológico, livro, filme ou vídeo, e pronto! A criança é entigrezada.
Transformação-in-loco. A própria percepção é um gesto vital. A criança
imediatamente começa não a imitar a forma substancial do tigre que acabou de
42

ver, mas a dar vida a ela — dando a ela mais vida. A criança brinca de tigre
em situações nas quais nunca viu nenhum tigre. Mais que isso, ela brinca de
tigre em situações em que nenhum tigre jamais foi visto, nas quais nenhum
tigre terreno jamais colocou a pata. A criança imediatamente se lança num
movimento de superação do que está dado, permanecendo de modo notável
fiel ao tema do tigre — não convencionalmente, mas a partir do angulo de sua
potencialidade processual. (MASSUMI, 2017b, p. 155, grifos nossos)

Ressoando, então, John Cage (1985, p. 98; MILONOPOULOS, 2013): não há

devir que não esteja grávido de outros mundos, e não há processo que tenha medo de

mundos por vir4, tanto que, não por acaso

a Natureza nos é conhecida, em nossa experiência, como um complexo de


eventos passageiros. Nesse complexo, podemos discernir relações mútuas
definidas entre os eventos componentes, as quais podemos denominar suas
posições relativas, posições estas que expressamos parcialmente em termos de
espaço e parcialmente em termos de tempo. Além de sua mera posição relativa
em face de outros eventos, cada evento particular possui, ainda, seu próprio
caráter peculiar. (Id., p. 195; grifo nosso)

Nesta perspectiva, portanto, o campo do real não se reduz ao campo daquilo que

foi atualizado no mundo ou daquilo que é perceptível conscientemente. Muito pelo

contrário: o processo é sempre germinal, ele está sempre embebido em potenciais. E a

realidade do mundo – a natureza – é sempre um germe, em germe, e “não é um saco de

coisas. (…) [Tanto que] perceber o mundo [apenas] em uma estrutura de objetos é

negligenciar uma ampla gama de sua realidade germinativa” (MASSUMI, 2011, p. 6).

Além do mais, isso implicaria em reduzir a própria realidade aos sabores e

dessabores de uma abordagem cognitivista, isto é, a um modo de relação onde se instaura

uma distinção entre sujeito e objeto, distinção esta que também instaura um abismo

intransponível entre ambos, tanto quanto entre o consciente e o não-consciente (Cf.

WHITEHEAD, op. cit.).

De tal modo que, a princípio, ou melhor, em potencial, a única questão apetecível

neste abismo diz respeito às relações possíveis entre o sujeito-cognoscente e os objetos-

4 “(…) nenhum som teme o silêncio que o extingue. E nenhum silêncio existe que não esteja grávido de
sons.” (CAGE, 1985, p. 98).
43

conhecíveis, entre o interior de um indivíduo reflexivo e o mundo exterior, entre a

materialidade de uma forma e a transcendência de uma ideia, de uma categoria ou de um

comportamento: entre o comensal e a comida.

A filosofia do processo, por sua vez, se situa em outra boca do fogão, em uma de

suas bocas traseiras, lá onde cozinha-se, em fogo baixo, um entendimento menor (Cf.

DELEUZE; GUATTARI, 1997) dessas relações. Um entendimento que, realista e

pragmático, afirma na imanência a realidade de todo acontecimento e de qualquer efeito

ou diferença produzida por uma ocorrência:

“O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa era a imagem de um vidro mole
que fazia uma volta atrás de casa. / Passou um homem depois e disse: Essa
volta que o rio faz por trás de sua casa se chama enseada. / Não era mais a
imagem de uma cobra de vidro que fazia uma volta atrás da casa. / Era uma
enseada. / Acho que o nome empobreceu a imagem (BARROS, 2010, p. 303).

Um falso problema, portanto, nessa perspectiva processual seria justamente o de

questionar se algo é real ou não, seja ele uma cobra de vidro, um monstro embaixo da

cama, um sofá no meio da sala, um vulto, uma notícia falsa circulando na rede ou até

mesmo um punhado de coentro. A questão é outra, com um tempero absolutamente

distinto: a de indagar quais as condições para a emergência de um evento e o seu

desabrochar, bem como quais são os efeitos que um acontecimento produz no mundo:

será que o sal saiu?

Isso quer dizer, em outras palavras, que um efetivo problema está sempre

besuntado em uma afectologia, ou seja, naquilo que Spinoza (op. cit.) nomeia como um

afeto: a potência, a capacidade de um corpo de afetar e de ser afetado. E que é um

acontecimento, um evento, melhor dizendo, uma dimensão de um evento, precisamente

porque:

a capacidade de afetar e a capacidade de ser afetado são duas facetas do mesmo


evento. Uma face está voltada para o que você pode ser tentado a isolar como
objeto, [e] a outra para o que você pode isolar como sujeito. Aqui, eles são dois
lados da mesma moeda. Há uma afetação, e isso está acontecendo no meio.
Você começa com o entrelaçamento. (...) Você começa no meio, como Deleuze
44

sempre ensinou, com a unidade dinâmica de um evento. (MASSUMI, 2015b,


p. 46; tradução nossa)

O que quer dizer, para frasearmos isso de outro modo, que nesta filosofia ativista,

que nessa mecânica da expressão, não há nada separado de um acontecimento e da

realização de um potencial. Tanto que tudo é tão real quanto seu efeito, de modo que a

própria potência de uma fabulação, de um evento, de um acontecimento – aquilo que

chamaremos de virtual – precede a cognição, o que nos lança em um empirismo radical

que evidencia como vivemos em investimentos especulativos (Cf. JAMES, op. cit., p.

88).

Especulações essas que dizem respeito ao fato de que o poder de afetar e de ser

afetado frutifica sempre em meio a um estado de transição, a uma transformação que é

sentida no corpo a partir do aumento ou da diminuição de sua potência, da variação de

um grau de potência. Ou seja, a partir da passagem de um estado aumentativo de potência

para um estado diminutivo de potência, do aumento ou da diminuição do apetite, do

impulso vital: de um pragmatismo especulativo (Cf. WHITEHEAD, 1978, p. 10).

O que é sentido é, assim, para dizermos de outra maneira, a qualidade da

experiência, uma qualidade nutrida por diferentes formas de experiência, por diferentes

formas de encontro, por diferentes relações de (de)composição que florescem em meio a

toda uma metafísica canibal (Cf. VIVEIROS DE CASTRO, 2015), a toda uma

biodiversidade de afetos de vitalidade (Cf. STERN, 2010) que "exprimem a potência da

vida de um afeto, a força da afirmação da vida” (GIL, 2004, p. 87). E a toda uma

infinidade de movimentos e de gestos po(i)éticos que produzem mudanças sutis na

experiência e que criam terrenos férteis para outras formas de viver- ser-criar-saber-sentir

e, claro, de comer e cozinhar.

*
45

Fertilizados, pois, por essa potência de invenção e azeitados nessa afectologia,

lancemos uma pergunta: o que seria, em meio a esta cosmologia do processo, uma receita?

Por mais que ela pareça uma pergunta inesperada, tal qual um respingo de molho que voa

subitamente da panela para a roupa branca, ela não vem ao acaso.

Embebidos nesse relacionalismo imanente ao processo, o nosso ponto é que uma

receita envolve uma certa reprodutibilidade, uma certa precisão, bem como a criação de

um campo relacional entre diferentes elementos. Em uma receita de um bolo de chocolate,

por exemplo, desses mais tradicionais, compõem-se elementos como a farinha, a água, o

fermento, os ovos, o açúcar e o cacau.

Seguindo na esteira do pensamento processual, podemos dizer que uma receita é

também uma sociedade, dado que uma sociedade é, como vimos anteriormente, um

agrupamento de ocorrências. No entanto, é importante notarmos que em nossa receita,

para além de um certo potencial para tornar-se bolo, esta sociedade está sempre queirosa

e aberta ao acontecimento.

O que quer dizer que toda e qualquer transformação nas condições que

caracterizam seus encontros e suas relações – como sua temporalidade e suas durações –

implica que esta sociedade pode efetivamente tornar-se em uma outra ocasião da

experiência (Cf. WHITEHEAD, op. cit.): uma torta, um muffin, um cookie ou qualquer

outra coisa que compartilhe dos mesmos elementos.

Mais do que isso, para além da similitude da receita e de seus ingredientes, é

essencial atentarmos para o fato de que essa intrincada ecologia, que a complexidade

deste agrupamento e sua singularidade contemplam também a mão, a espátula, a tigela, a

forma, a batedeira, o fogão, a cozinha. Enfim, todo um grupo de ocasiões que compõem

tal sociedade e que nutrem a criatividade e o potencial que floresce em meio aos diferentes

modos como sociedades podem relacionar-se entre si e potencializar-se.


46

Fazer um pão de fermentação natural, para tomarmos um outro exemplo, implica

em uma infinidade de relações que inquestionavelmente estende-se para muito além da

soma da farinha, da água, do sal, do fermento, do humano e de suas técnicas de

panificação: importa se é um dia úmido, importa se é um clima frio, importa se a

temperatura da cozinha ou do forno está muito alta, importa, aliás, se é um forno a lenha

ou a gás, do mesmo modo em que importa a dieta e a atividade da sociedade-levain, as

características da farinha e a sociedade glúten-ar, o tempo de descanso da massa e as suas

relações com as sociedades que a circundam e a compõem, etc.

Importar aqui quer dizer, enfim, que tudo isto produz não só condições e efeitos,

mas uma sociedade que inclui também o corpo-panificador, que co-compõe com o

fermento que está crescendo na geladeira, com a massa que está descansando, com o pão

que está no forno ou com o vento que pode derrubar aquele que está pronto esfriando na

janela: alguém, aliás, alimentou o levain?

A questão da filosofia do processo é, então, a de nunca reduzir um acontecimento,

um evento, um campo de potenciais a uma ocasião da experiência, o que seria como

reduzir nossa receita-sociedade-bolo à ocasião da experiência-bolo-de-chocolate, ou

nossa sociedade-pão-padeira à ocasião da experiência-pão, como se este fosse meramente

a soma de suas partes individuais. Isto é, a de reduzir a experiência do mundo, de um

evento, seja a uma coisa definida, localizável e definitiva, seja à percepção do humano e

seus modos de relação com esta coisa: bolacha ou biscoito?

Ainda neste mesmo sentido, segundo Whitehead, “a fim de especificar um evento

observado, são necessários o local, o momento e o caráter do mesmo” (1994, p. 195),

justa e precisamente porque “[a]o especificar o local e o momento, na verdade vocês estão

estabelecendo a relação do dito evento com a estrutura geral de outros eventos

observados” (Id., p. 195): o bolo foi feito na casa da avó, entre o almoço e o café da tarde,
47

e graças à brisa que vem do pomar no fim do dia o seu aroma viajou janela afora pela

vizinhança.

O mundo que conhecemos é, desta maneira, “um fluxo contínuo de ocorrências,

que podemos distinguir em eventos finitos a formar, por meio de suas mútuas

sobreposições, inclusões e separações, uma estrutura espaço-temporal” (Ibid., p. 195)

onde floresce uma série de maquinações. Ou, para pensarmos-com Deleuze e Guattari

(1997b), de máquinas abstratas que untam tais movimentos, sobreposições, inclusões e

separações e que são, por exemplo, o cheiro do pão, o cheiro do bolo, o cheiro do café

sendo passado, da lenha queimando, o calor da cozinha e as tonalidades e movimentos do

fogo e da brasa.

Estas máquinas não só invencionam o evento-bolo, como também a casa da avó,

o caminho até ela, o rancho, o pomar, o galinheiro no quintal e as heranças da infância.

Tanto quanto o evento-café, que ganha cor, sabor e textura; bem como a varanda, a mesa

da cozinha, o degrau da escada, o toco de madeira ou a caixa de fruta que viram cadeiras

junto às outras que estão na calçada ou debaixo da goiabeira.

Enfim, elas lardeiam toda uma biodiversidade de relações que, para lembrarmos

de Moten e Harney (op. cit.), não só polinizam múltiplos modos de estudo em meio às

socialidades que emergem na ocasião bolo-cafézinho, mas fundamentalmente cultivam

aquilo que Whitehead nomeia como um superjeito (op. cit.): uma subjetividade produzida

em uma ocasião que excede o humano.

Subjetividade esta que, ao fazê-lo, evidencia como a problemática do humano,

daquilo que o constitui, é preciosa para pensarmos não só a radicalização da ideia de

coletivo, como a própria complexidade que envolve a questão do comportamento.

Especialmente porque na cosmologia do processo o humano é sempre uma sociedade de


48

moléculas: “nós estamos no mundo e o mundo está em nós” (WHITEHEAD, 1968, p.

227; tradução nossa).

Nesta cosmologia do devir (do becoming), portanto, aquilo que usualmente

nomearíamos como ser (como being) é, então, o fruto de um encontro, de uma transição,

de uma relação: de um mundificar e de um corpar. O que implica que toda e qualquer

distinção entre Natureza e Cultura cai por terra, afinal, a “natureza nada mais é do que a

revelação da apreensão sensível” (WHITEHEAD, 1994, p. 19).

O que quer dizer que, cada vez mais, a questão do comportamento e sua

determinação-invenção não se resumem, nesta perspectiva ontogenética, a um sujeito

consciente e sua agência, ou ao governo de sua volição e de sua intencionalidade, muito

pelo contrário, afinal:

[a] agência sempre começa em uma categoria. É usada para localizar a ação de
volição de um sujeito ou grupo. (...) O que é importante aqui é precisamente a
questão de como uma ênfase naquilo que está no interior do ato, na
temporalidade do acontecimento, abre o caminho para que possamos repensar
o poder e as políticas que o acompanham. Focar no agenciamento ao invés da
agência (...) permite-nos não somente dar valor a modos de experiência que
ficam no segundo plano da agência, mas também chacoalha os alicerces
poderosos da neurotipicalidade, de um modo de existência que profundamente
desvaloriza os relatos de experiências que não podem ser reduzidos à tríade
volição-intencionalidade-agência. (MANNING, 2016, p. 123; tradução nossa)

Isto inclusive nos catapulta à própria definição da filosofia do processo de

Whitehead como uma crítica do puro sentir (a critique of pure feeling), justamente

porque ela não admite qualquer entendimento do humano que exclua da existência a

multiplicidade de ocasiões da experiência que compõem o mundo, mundo este que é

também uma ocasião da experiência, uma sociedade complexa viva: um corpo-mundo,

um mundo-corpo sempre em produção, um cosmumdo.

Toda coisa real na natureza pode ser nomeada, assim, como uma ocasião da

experiência, inclusive o próprio universo. De maneira que toda entidade viva possui

algum grau de experiência e alguma duração, configurando-se como um objeto duradouro


49

(an enduring object, cf. WHITEHEAD, op. cit.), tal qual o humano: uma sociedade

temporal – e relacional – cuja capacidade de durar, cuja temporalidade, é apenas aquilo

que constitui um grau da experiência do mundo – um sujeito –, uma dada perspectiva.

Um ponto de vista onde o ponto:

não é exatamente um ponto, mas um lugar, uma posição, um sítio, um “foco-


linear”, [uma] linha saída de linhas (...). [E]sse lugar é chamado ponto de vista,
na medida em que representa a variação ou inflexão. É esse o fundamento do
perspectivismo. Este não significa uma dependência em face de um sujeito
definido previamente: ao contrário, será sujeito aquele que vier ao ponto de
vista, ou sobretudo aquele que se instalar no ponto de vista. Eis por que a
transformação do objeto remete a uma transformação correlativa do sujeito:
este não é um sub-jecto, mas um superjecto [um superjeito], como diz
Whitehead. Ao mesmo tempo em que o objeto vem a ser objéctil, o sujeito
torna-se superjecto. Entre a variação e o ponto de vista há uma relação
necessária: não simplesmente em razão da variedade dos pontos de vista
(embora haja tal variação, como veremos), mas, em primeiro lugar, porque
todo ponto de vista é ponto de vista sobre uma variação. Não é o ponto de vista
que varia com o sujeito, pelo menos em primeiro lugar; ao contrário, o ponto
de vista é a condição sob a qual um eventual sujeito apreende uma variação
(metamorfose) ou algo = x (anamorfose). (DELEUZE, 1991, pp. 36-37)

O sujeito, desse modo, é polvilhado para além da forma do humano, da figura da

humanidade, sendo ele apenas um exemplo entre muitos tipos de objetos duradouros que

variam em complexidade e em capacidade de mudança e transformação em meio à gula

no banquete da atividade do mundo, ao excesso da experiência.

O que nos situa além de qualquer tipo de pensamento categorizante, isto é, de

qualquer fixação no par forma-matéria, de qualquer distinção entre humano e não-

humano. E, precisamente, na intercessão, nos interstícios, naquilo que não cabe na

definição de uma categoria ou de um pensamento categórico como se eles fossem fixos,

constantes e imutáveis, naquilo que germina, floresce e frutifica no meio: como a

lascividade do cheiro da bergamota.

Modulação esta que, caramelizada nesse excesso criativo, no mais-do-que,

implica em estabelecer uma relação íntima com a diferença, com a variação. Afinal,

enquanto “moldar é modular de maneira definitiva; modular é moldar de maneira


50

contínua e perpetuamente variável” (SIMONDON apud DELEUZE, 1991, pp. 41-42):

tangerina, mexerica, mandarina, mimosa, berga, bergamota, clementina.

Isto não significa dizer, por outro lado, que não exista um sujeito, que não exista

um indivíduo ou um eu, mas sim que, frente a uma multiplicidade de corpos-mundo, de

mundos-corpo, desse cosmum, ele não pode ser isolado do evento, localizado antes de um

acontecimento ou situado como se ele fosse o centro gravitacional da experiência ou como

se o humano fosse o fiador do mundo: (des)humanizar a saúde.


51

4. Emergências e procedências

4.1. Pro(to)cedências: escu(l)t(ur)as alimentares5

Graças à arte, em vez de contemplar um só


mundo, o nosso, vemo-lo multiplicar-se.
Marcel Proust

Não amo os poemas da comida,


mas sim os poemas da fome.
Antonin Artaud

Pois bem, se até este momento viemos empoando elementos para pensarmos,

como diria Michel Foucault, outramente, de “pensar outra mente, [de] pensar com outras

mentes” (VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p. 25). Nos parece que agora seria um bom

momento, principalmente porque já começamos a saborear tais elementos,

compartilharmos a experiência da qual germinou este projeto de investigação.

Evidenciando aquilo que nutriu seu processo de criação e, principalmente, nosso

problema de pesquisa.

Isto nos dá também a oportunidade de experimentarmos o que é esse pensar-sentir

com outros modos de experiência-pensamento, especialmente com o campo das Artes,

que ainda maneja seu lugar ao sol em meio ao cientificismo que atravessa a Saúde e a

própria ideia da Ciência que, pretensamente soberana em sua objetividade, não só a toma

como epistemologicamente inferior como, mais do que isso, julga-se como a única forma

legítima de produção de conhecimento.

O que nos interessa agora é, portanto, compartilhar o que a composição entre

diferentes formas de produção de conhecimento-expressão pode produzir, demonstrando

também como outros campos têm se debruçado sobre as nossas relações com o comer e

5
Este sub(e)estrato herda algumas das discussões compartilhadas no trabalho “Entre a fome e o apetite:
considerações intempestivas sobre o ODS #02 a partir da experiência na obra-restaurante Restauro:
escultura ambiental”, apresentado enquanto um relato de experiência no VI Simpósio dos Pós-Granduandos
do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
(SIMPREV) em dezembro de 2018.
52

sobre aquilo que anima nossa comensalidade e, em nosso caso, a partir do cultivo de uma

epistemologia estética fertilizada ao longo da experiência como coordenador do

Educativo da obra-restaurante Restauro: escultura ambiental ao longo da 32ª Bienal de

Arte de São Paulo (2016), em parceria com o artista proponente Jorgge Menna Barreto6.

Figura 1. Logo da obra-restaurante "Restauro: escultura ambiental". Arte: Joélson Buggila, 2016.

Intitulada Incerteza Viva, esta edição da exibição contou com a curadoria de

Jochen Volz (Pinacoteca do Estado de São Paulo, Instituto Inhotim) que, junto à sua

equipe, desenvolveu uma proposta curatorial que propôs uma reflexão sobre as atuais

condições de vida dos habitantes da Terra – humanos, não-humanos e mais-que-humanos

– e as estratégias oferecidas pela arte contemporânea para acolher ou habitar as incertezas

que atravessa(va)m tais condições.

Alinhado à proposta curatorial, Menna Barreto propôs que o restaurante da Bienal

fosse, pela primeira vez, integrado à moldura curatorial da exposição. O que fez com que

o Restauro nascesse como um projeto híbrido7: uma obra-restaurante, um restaurante-

obra.

6
Atualmente é docente no Departamento de Artes da Universidade da California – Santa Cruz (UCSC),
dedicando-se à pesquisa em environmental art e práticas site-specific em arte, atravessando temas como
nutrição, ativismo alimentar e veganismo. Vale ressaltar, inclusive, que sua pesquisa de Pós-Doutorado no
Departamento de Artes do CEART/UDESC) sobre as relações entre práticas site-specific e agroecologia
serviu de base para a proposição e feitura do Restauro.
7
Além deste hibridismo, o Restauro funcionou como uma rede, como uma composição entre o artista, a
chef Neka Menna Barreto, a Escola Brasileira de Ecogastronomia, o empresário Vitor Braz, o coletivo O
53

Figura 2. Vista da boqueta da cozinha do Pavilhão da Bienal. Foto: Jorgge Menna Barreto, 2016

Ocupando o espaço destinado ao restaurante da Bienal no mezanino do Pavilhão

Ciccilo Matarazzo no Parque Ibirapuera, esta proposição endereçou-se justamente à fome

do público que visitou a Bienal, seja formulando questões acerca da construção dos

nossos hábitos alimentares e de sua relação com o ambiente, com a paisagem, com o clima

e com a vida no planeta, seja propondo um despertar para os usos da terra e as

consequências de nossas escolhas e hábitos alimentares.

Não por acaso, a verve do trabalho foi aquilo que Menna Barreto nomeou como

escultura ambiental, uma proposição que trata tanto de um redesenho de nosso sistema

digestório – propondo seu início não na boca, mas na terra –, quanto também de um

deslizamento de sua função: o sistema digestório como uma ferramenta escultórica do

planeta.

Aos incautos e aos mais apressados, esta proposição poderia ser facilmente

considerada como apenas mais uma bela imagem poética criada pelo mundo artístico e

Grupo Inteiro, o artista e músico Marcelo Wasem, a Secretaria Estadual do Meio Ambiente de São Paulo,
a rede de agrofloresteires pertencentes ao projeto Microbacias II da então Secretaria Municipal do Meio
Ambiente, e mais uma série de outros (in)divíduos que viabilizaram e colaboraram com o projeto.
54

que, claro, tinha sua devida importância dentro de um contexto eminentemente artístico:

a Bienal.

Pensamos, no entanto, que essa proposição é muito mais apetitosa justa e

precisamente porque criou uma situação estética onde esse gesto tão naturalizado em

nosso cotidiano – o comer – foi reconfigurado. E essa reconfiguração abriu um novo

campo de possíveis, quer dizer, todo um outro campo problemático onde o comer passa

a ser atravessado por novas funções, por novas implicações e, certamente, por novas

imagens do pensamento.

Imagens essas onde nos transformamos em cocriadores de uma escultura

ambiental em processo, onde o ato de se alimentar regenera e modela a paisagem em que

vivemos e que, mais do que isso, nos situa em uma encruzilhada onde convergem uma

série de problemáticas [est]ético-[cosmo]políticas, em especial no que toca a questão da

produção de futuro e dos impactos ambientais que cavalgam a problemática da

alimentação e de seus efeitos sobre a terra, em seus múltiplos sentidos.

Não por acaso regenerar foi uma outra tônica deste projeto, dado o próprio fato

de que, como mostrou Menna Barreto8, a própria palavra regenerar avizinha-se

etimologicamente da palavra restaurar que serve, por sua vez, como base para

restaurante, justamente o lugar aonde vamos, ao menos em uma acepção mais comum,

para recarregar as nossas energias, para nos restaurar.

O Restauro, entretanto, propôs que a atividade de restaurar desse um salto de

escala, extrapolando o nível do restauro individual para, a partir da fome do público que

participou da obra e polinizando uma perspectiva agroecológica, favorecer a restauração

8
Cf. https://www.youtube.com/watch?v=IXvj_x0qs7U. Acesso em 30/01/2021.
55

do solo, a formação de biodiversidade, a preservação das florestas, a despoluição dos rios,

assim como a construção de relações mais justas entre produtores e consumidores.

Figura 3. Um dos cardápios ofertados no "Restauro" ao longo da Bienal. Foto: Jorgge Menna Barreto, 2016.

Sendo que a própria relação com o consumidor no contexto do restaurante-obra se

deu de maneiras distintas e, ainda que o Restauro possuísse produtos à venda, assim como

um cardápio de almoço e lanches que variava diariamente, seu desafio era o de desinvestir

o público da condição de consumidor. Buscando inseri-lo como participante de um

processo mais amplo do ato de se alimentar, processo este que mina a relação capitalística

de satisfação do cliente e que incide, diretamente, sobre um dos elementos que compõe a

determinação da conduta alimentar, a saber, o comportamento consumidor.

E, de fato, um problema que compunha a lida cotidiana da obra era a condição de

produto do alimento, condição esta que, investida, naturalizada e propagandeada pela

indústria alimentar, ofusca a multidimensionalidade do alimento. Reduzindo-o ao seu


56

sabor, à sua textura, à sua embalagem, ao seu valor calórico, à sua tabela nutricional e ao

prazer que confere às nossas papilas gustativas.

Visando, assim, frutificar uma relação mais complexa que envolvesse o alimento

em todas as suas facetas, um dos nortes do projeto foi o de criar modos de curto-circuitar

tanto a nossa relação com a comida, quanto a nossa relação com a indústria alimentar e

com o alimento-mercadoria, bem como com a comida-mídia (Cf. JACOB, 2013) e o

fenômeno da interna[ciona]lização do gosto (Cf. POLLAN, 2008).

O que imediatamente implicava uma das outras questões levantadas pela obra: a

de tratar a problemática da alimentação para além do gosto pessoal, pensando o alimento

em um campo expandido (Cf. MENNA BARRETO, 2014) e evidenciando a relação que

o alimento tem com o impacto ambiental que gera. Foi com isso em vista, aliás, que o

Restauro criou e ofertou, ao longo da exibição, um cardápio em homenagem ao reino

vegetal, excluindo todo e qualquer produto de origem animal, como carnes, leites e ovos.

Contudo, para além de uma lógica da subtração – aquela que enuncia: “um

cardápio baseado apenas em vegetais” –, o Restauro fomentou uma política de afirmação

da diversidade do reino vegetal, priorizando em suas preparações ingredientes que não se

resumissem às monoculturas tradicionais do agronegócio (como trigo, milho, soja, feijão

e cana), assim como de plantas alienígenas à biodiversidade encontrada no território dos

produtores-fornecedores que compunham a rede do projeto.

A obra germinou, assim, uma política e um pensamento da multiplicidade,

prezando pela investigação, pelo reconhecimento e pelo resgate da imensa biodiversidade

que temos ao nosso redor. Biodiversidade essa que beneficia saúdes que não se resumem

ao humano, mas que contemplam todo o planeta, indo de encontro à monotonia alimentar

que atravessa os fluxos capitalísticos das dietas ocidentais contemporâneas e que serve

estrondosamente à indústria alimentícia e à produção monocultural do agronegócio.


57

Figura 4. Alguns dos ingredientes do último prato-feito ofertado na Bienal. Foto: Jorgge Menna Barreto, 2016

Ora, outra relação que se deu de modo distinto no Restauro foi a relação com o

produtor: ao invés de trabalhar com a lógica do fornecimento convencional de um

restaurante – que possui receitas fixas e que subjuga a produção do agricultor aos

ingredientes dos quais depende seu menu, independente da estação, da vocação da terra

onde está localizada sua lavoura, ou mesmo dos imprevistos que permeiam a vida no

campo –, o cardápio da obra-restaurante foi definido a partir de diversos vetores, sendo

os mais importantes deles a sazonalidade, a escuta da terra e do produtor.

Não havia, desse modo, um cardápio pré-definido. Não havia um a priori que

determinava a produção do agricultor, da terra e da cozinha. Todas as receitas eram

criadas considerando tanto as colheitas na rede, quanto uma gama de adaptações,

mudanças, ajustes e experimentações na nossa cozinha. O que fazia com que o produtor

deixasse de ser um mero fornecedor para tornar-se não só um colaborador do processo,

mas um protagonista da relação, assim como a terra e suas vocações, que determinavam

aquilo que íamos colher, servir e comer.


58

Este protagonismo, seja da terra, seja do produtor, floresceu, portanto, no modo

como o Restauro lidou com seu fornecimento, alçando a rede de agrofloresteires que

colaborou com o projeto a um lugar no qual o agricultor compartilhava conosco o ofício

de escultor da paisagem, seja enquanto comensal, seja enquanto escultor da floresta.

Figura 5. Caminhão de entrega de um dos fornecedores do Restauro. Foto: Jorgge Menna Barreto, 2016.

Uma agrofloresta, vale dizer, é uma floresta que conta com a presença humana e

que a inclui como uma catalisadora dos processos florestais, cultivando não só alimentos,

como também condições para que problematizemos tanto o mito da produção

monocultural e sua eficiência e eficácia, quanto a própria ideia de que excluir a presença

humana de uma área de mata é uma estratégia de restauro ambiental eficiente. Ideia essa

que se conjuga-se à própria ideia de criação de áreas de preservação ambiental que cindem

e que excluem o humano da natureza, reforçando, assim, o famigerado, no sentido

roseano, binômio Natureza-Cultura (Cf. GOÉS, 2016).

A presença humana, aliás, é aquilo que cria um sistema aquecido numa

agrofloresta, pois o homem cumpre um papel de [i]mediador na relação entre as espécies,

manejando, a partir de diversas técnicas – como, por exemplo, as podas –, a forma como

se relacionam e se (re)organizam. O que implica em um modo de relação e de produção


59

de alimentos que beneficia tanto comensais e agrofloresteires, como a fauna, a flora, a

mata e seus arredores, bem como os processos de regeneração e de fertilização do solo e

da própria floresta.

Figura 6. Agrofloresta com seus diferentes estratos. Foto: Jorgge Menna Barreto, 2015.

Além disso, somando-se à reflexão sobre o alimento em um campo expandido,

conceitos do sistema agroflorestal foram determinantes para a experiência dos pratos

servidos no restaurante-obra, sendo um bom exemplo o de estratificação, que remete ao

fato de que as agroflorestas são, diferentemente das monoculturas tradicionais –cultivadas

em extensão e homogenia –, cultivadas verticalmente por meio da combinação e

superposição de estratos e do manejo de elementos como umidade, luz, calor, etc.

Essa experiência vertical da plantação foi transcriada para o contexto da obra-

restaurante a partir da montagem dos pratos do Restauro em potes, que evocavam não só

a imagem de uma paisagem em seus diversos estratos, como também evidenciavam a


60

relação do alimento que comemos com o lugar onde esse alimento foi produzido, afinal,

sempre que se come, se come uma paisagem.

Figura 7. Pote paisagem. Foto: Janaína Miranda, 2016.

Essa relação com o lugar, a propósito, preciosa para nossa discussão, é um outro

ponto que atravessa a proposição de Menna Barreto e que remete aquilo que nas Artes

chama-se site-specific. Um conceito que baliza uma série de práticas artísticas onde a

obra é pensada como um sistema, e não apenas como um objeto a ser instalado em um

lugar neutro. De modo que ela necessariamente estabelece uma relação com o lugar e o

contexto onde será abrigada.

As práticas site-specific fundamentam-se, pois, na escuta, e consideram as

especificidades do local que, por sua vez, facilita a definição, quando não propõe, o que

ali será construído. De tal forma que o espaço se torna, numa perspectiva mais-que

humana, um colaborador na criação de uma obra, e a própria posição do artista torna-se

a do exercício de uma escuta e de um co[m]hecimento de suas especificidades, de sua


61

história, de seus aspectos ambientais e arquitetônicos, do fluxo de pessoas e de outros

seres, etc, sendo o artista algo como um mediador entre a obra e o ambiente.

Menna Barreto, no entanto, propôs ir um pouco além, sugerindo que, ao invés do

artista, o alimento se tornasse o mediador privilegiado da relação sociedade-ambiente, de

maneira que ele e seu modo de cultivo, poderiam ser entendidos a partir de uma

perspectiva plástica que fizesse essa mediação entre indivíduo e lugar.

Figura 8. Pf Agroecológico, smoothie e sobremesa. Foto: Janaína Miranda, 2016.

Ao considerar, assim, que o que comemos define a paisagem na qual vivemos,

Menna Barreto propôs que pensássemos não só a plasticidade do ato de se alimentar mas,

mais do que isso, que déssemos um outro passo: ao invés de simplesmente reconhecer

esse impacto e a responsabilidade dos nossos hábitos alimentares sobre ele, pensar em

como agregar a eles um grau de intencionalidade para que o impacto não fosse

simplesmente uma resultante, mas sim um objetivo: uma modelação ativa do planeta a

partir de nossas fomes, de nossos apetites e de nosso comer-esculpir.


62

Seguramente podemos dizer que esta discussão é das que balizam o conceito de

escultura ambiental, bem como a noção de ecogastronomia9, que aborda a arte da

gastronomia para além do paladar e do ofício técnico-disciplinar de cozinhar, inserindo o

alimento em um campo complexo de relações que prezam por uma relação com toda a

cadeia alimentar, indo desde sua origem, sua produção, os impactos ambientais que ela

gerou, as relações de trabalho e de vida que a envolveram e a possibilitaram.

Bem como ao modo como a lavoura foi [es]colhida e plantada, ao modo como as

sementes e o alimento foi colhido, transportado e vendido, à sua própria possibilidade de

reaproveitamento, chegando, finalmente, na compra consciente e responsável de

alimentos, no processamento consciente e responsável destes alimentos na cozinha, bem

como no modo como o resíduo orgânico do alimento será devolvido para o sistema

alimentar e para o ambiente.

Figura 9. Brotário das sementes utilizadas na cozinha do "Restauro". Foto: Jorgge Menna Barreto, 2016.

Enfim, o ponto a ressaltar aqui é que a ecogastronomia vê o alimento como o

principal mediador da relação sociedade-ambiente, da relação humano-terra. Uma

9
Que foi incorporado, vale notar, ao projeto pela composição com a Escola Como Como, que mais tarde
tornou-se a Escola Brasileira de Ecogastronomia.
63

(pro)posição que, como já pudemos notar, foi compartilhada pelo Restauro, fornecendo

elementos para a criação de formas de análise e de pensamento, tanto quanto de imagens

mais complexas para aquilo que comemos. Distanciando-nos da imagem clássica da

tabela nutricional que toma o alimento apenas como um conjunto de nutrientes a serem

esquadrinhados, enumerados, medidos, calculados e estrategicamente [não-]informados.

É importante notarmos, igualmente, que o Restauro buscou semear uma relação

ético-política com os alimentos que colhia, comprava, preparava e servia, operando mais

por sugestão do que por afirmação. Isto é, não falando em nome de uma verdade, em um

modo correto de se alimentar mas, pelo contrário, buscando ofertar ingredientes para

problematizarmos nossas práticas alimentares e os impactos e efeitos daquilo que

escolhemos comer.

Sugerindo, assim, uma outra perspectiva de pensamento e de mundo, tanto quanto

outras potências e implicações do ato de se alimentar. Potências e implicações essas que

adicionavam, ao fim e ao cabo, outros elementos a serem considerados na conformação

de práticas alimentares. Elementos esses que, por sua vez, não passavam ao largo do

cotidiano do Restauro.

Havia nele toda uma preocupação e toda uma estrutura educativa que contava seja

com educadores que recebiam grupos de visitantes e o público espontâneo da Bienal,

promovendo conversas sobre o cardápio de problemas, processos e conceitos do Restauro

e os temas e problemáticas que o atravessavam; seja com uma programação de oficinas,

degustações, demonstrações de preparo, conversações com convidades, com produtores,

fornecedores e agrofloresteires parceires do projeto.

No entanto, para além disto, existiam dois grandes desafios com relação ao

Educativo: um deles era o de criar um ambiente que não fosse carregado de informações,
64

e o outro era o de inventar uma modalidade de [i]mediação que não fosse baseada e

nutrida somente pela linguagem, quer dizer, pelo discurso dos educadores.

Figura 10. Eco-lógicas do Restauro. Foto: Jorgge Menna Barreto, 2016.

A esta experiência-proposição sugerimos o nome de mediação sem sujeito,

partindo da premissa de que era necessário respeitarmos as fomes e os apetites de cada

um, visto não era sempre que se criava ou surgia a oportunidade de uma conversa – ainda

que existissem ou se inventassem, no encontro, técnicas e estratégias as mais diversas

para que elas acontecessem.

E, mais do que isso, de que para além das conversações entre os humanos, era

justamente no entre, no meio, que havia uma série de outras trocas que nos eram mais

saborosas e nutritivas. Trocas essas que se davam em uma ordem da experiência que não

só não se resumia ao discurso e ao sujeito, como remetia àquilo que Menna Barreto

denominava florestidade: uma noção que dizia respeito a uma revolução molecular, para
65

lembrarmos de uma expressão de Guattari (1981), que emergia no encontro entre as forças

e as informações da floresta carregadas adiante por um alimento, e o corpo do comensal.

Figura 11. Preparação do móbile “Comer-escutando”. Foto: Jorgge Menna Barreto, 2015.

Atentando, pois, aos efeitos que este encontro gerava nos participantes desta

escultoria coletiva, havia ali em operação uma política molecular (DELEUZE; PARNET,

1998) que ia além da soberania do prazer das papilas gustativas e da ênfase tão

comumente dada ao paladar na gastronomia tradicional e em nossas políticas do gosto e

sua própria percepção.

E se falamos em política, o fazemos pois Menna Barreto se alia a autores que

pensam o ato de comer como um ato político (POLLAN, 2014; LAPPÉ, 1971), sendo o

próprio Restauro nutrido por uma proposta de ativismo político, mais especificamente de

ativismo alimentar. Promovendo uma politização do paladar e uma conscientização do

impacto ambiental de nossos atos que se alia a motivações profundamente ecológicas, e


66

enuncia e evidencia, como dissemos anteriormente, outros componentes e vetores no que

toca a conformação de práticas alimentares e a problemática do comportamento

alimentar.

Com isso então na mesa, podemos formular e ruminar algumas questões que nos

parecem pertinentes e apetitivas: qual é, finalmente, a relação entre essa obra e as

discussões que nos são tão caras? Quer dizer, de que maneira as artes contribuem para a

problemática da determinação do comportamento e das práticas alimentares? O que este

outro modo de pensamento pode nos ofertar? Qual diferença ele pode produzir na

composição com a Saúde Coletiva? Ou, melhor ainda, qual é a diferença que pode ser

produzida na interface entre essas diferentes formas de produção de conhecimento, entre

esses modos de experiência-pensamento?


67

4.2. E se? (Des)leituras no campo

Não se trata de chegar ao consenso, mas ao


conceito. Não [se trata de] explicar, nem
interpretar: [mas de] multiplicar, e experimentar.
Eduardo Viveiros de Castro

[O] que é preciso saber é justamente


o que não se sabe.
Eduardo Viveiros de Castro

Bom, a fim de mergulharmos nestas perguntas é importante situarmos o fato de

que uma obra é muito mais do que a mera expressão de um artista. Se há algo que nos

interessa nas artes é justamente o fato de que uma obra cria, antes de qualquer coisa, uma

abertura, um campo relacional.

O que é dizer que ela reúne em si uma ecologia de encontros e problemas que

modulam e criam, entre outras coisas, formas de percepção, de experiência e de existência

e, nesta perspectiva, a força de uma obra relaciona-se não ao seu conteúdo ou ao seu

significado, mas ao modo pelo qual ela pode alterar as condições da experiência, isto é, a

ecologia da qual ela faz parte e de onde ela brota, bem como o campo de problemas ao

qual ela se debruça e do qual ela é correlata e emergente.

Nesse sentido, o conceito de escultura ambiental e a experiência no Restauro –

tomados aqui como campo empírico e como uma situação estética onde os problemas da

fome e do comer foram transformados e transvalorados – indicam como estratégias

oferecidas pelas Artes, na sua composição com a Filosofia e a Ciência, nos fornecem

elementos para suportarmos a própria constituição e configuração de um problema e de

um projeto de investigação a partir de um campo de experiência e de produção de

conhecimento pouco incluído e pouco valorado em nossa tradição científica.

Ou, dito de outro modo, elas evidenciam como essa proposição artística inaugurou

um campo problemático onde a fome e o comer passaram a ser atravessados por novas

funções, por novas implicações e imagens do pensamento que abriram caminho, por sua
68

vez, para que pudéssemos tanto explorar as potências da fome e do comer, quanto

vislumbrar novos possíveis para a agricultura sustentável, a nutrição, a segurança

alimentar – vetores que compõem o segundo Objetivo Sustentável da Agenda 2030 da

Organização das Nações Unidas –, tanto quanto a problemática da determinação e da

invenção de comportamentos e práticas alimentares, .

Não há, dessa forma, nada a ser descoberto ou decifrado na arte, sendo que o que

nos interessa é precisamente explorar e experimentar a abertura e o campo relacional

(im)plantados pelo Restauro e pelos modos como ele alterou as condições da percepção,

da experiência e da existência daquilo que gravita ao redor da alimentação.

No sentido mesmo em que, como dissemos anteriormente, o próprio campo das

Artes também se esforça para inventar e para experimentar outras formas de se formular

questões ligadas à alimentação, favorecendo tanto o nosso esforço de pensar outramente,

quanto de explorar problemas caros à Saúde a partir de outras perspectivas, afinal, é

inegável que o Restauro endereçou-se à fome fisiológica dos visitantes da Bienal, mas

não só.

Ele endereçou-se também à várias outras fomes: de alteridade, de biodiversidade,

de comum, de outras vidas, de outras socialidades, de novos possíveis, de outras relações

de consumo, de outras relações de trabalho, de outras relações com o alimento, de outras

relações com a terra e com os terranos, de outros e novos mundos. Enfim, toda uma sorte

de fomes que alimentaram a nossa empreitada de pensar, não por acaso, as relações entre

fome, apetite e vida a partir de uma epistemologia estética.

Ou seja, de um modo de experiência-pensamento que arrasta consigo uma força

que nos abre para um pensamento cuja potência alia-se às potências do vivo, afinal,

[n]unca, quando é a própria vida que nos foge, se falou tanto em civilização e
cultura. E existe um estranho paralelismo entre esse esboroamento
generalizado da vida que está na base da desmoralização atual e a preocupação
69

com uma cultura que nunca coincidiu com a vida e que é feita para dirigir e
governar a vida. (ARTAUD, 2006, p. 1)

Isto não é dizer, por outro lado, que buscamos com esse argumento situar nossa

discussão na divisão, e até mesmo na oposição, entre Ciência, Arte e Filosofia. Muito

pelo contrário, nos é muito mais saboroso cultivar um pensamento transversal a elas, um

pensamento que cria e experimenta em seus limiares: a problemática do comportamento

é cara ao campo da Saúde, todavia é a partir de uma proposição artística que mergulhamos

nessa discussão tendo como principal meio sua potência conceitual e, portanto, filosófica,

bem como suas implicações cosmopolíticas e todo o seu fundo ontológico-cosmológico.

Toda e qualquer separação aqui se dá, assim, apenas por didatismo, o que nos leva,

fortuitamente, em um primeiro momento, a lembrar da discussão promovida por Gilles

Deleuze e Félix Guattari acerca das três formas do pensamento ou da criação – a Arte, a

Ciência e a Filosofia (Cf. 1992) –,e da própria proposição de se pensar em um regime de

relação que despreza qualquer tipo de hierarquia e qualquer tipo de dependência entre

elas:

as três vias são específicas, tão diretas umas como as outras, e se distinguem
pela natureza do plano e daquilo que o ocupa. Pensar é pensar por conceitos,
ou então por funções, ou ainda por sensações, e um desses pensamentos não é
melhor que um outro, ou mais plenamente, mais completamente, mais
sinteticamente “pensado”.” (Id., p. 233)

O que implica que os três pensamentos operam, assim, em coimplicação, em

co[n]junção, cruzando-se e entrelaçando-se,

mas sem síntese nem identificação. A filosofia faz surgir acontecimentos com
seus conceitos, a arte ergue monumentos com suas sensações, a ciência
constrói estados de coisas com suas funções. Um rico tecido de
correspondências pode estabelecer-se entre os planos. Mas a rede tem seus
pontos culminantes, onde a sensação se torna ela própria sensação de conceito,
ou de função; o conceito, conceito de função ou de sensação; a função, função
de sensação ou de conceito. E um dos elementos não aparece, sem que o outro
possa estar ainda por vir, ainda indeterminado ou desconhecido. Cada
elemento criado sobre um plano apela a outros elementos heterogêneos, que
restam por criar sobre outros planos: o pensamento como heterogênese. (Ibid.,
p. 324-235)

*
70

A ideia aqui, portanto, reside sobre a diferença entre “se afirmar a existência de

diferentes “modos de orientação no pensamento” e se afirmar a operação de “outras

lógicas”” (Cf. JULLIEN e MARCHAISSE, 2000, pp. 205-207), de outros modos da

experiência-pensamento, para lembrarmos mais uma vez de James, de pensentir.

De modo que o que Restauro nos oferta opera como um dispositivo intelectual-

afetivo transindividual e transespecífico que é terreno fértil para recusarmos uma certa

vantagem epistemológica do discurso científico em favor de uma experiência de

pensamento onde “não se trata de imaginar uma experiência, mas de experimentar uma

imaginação” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 123). Afinal, “[g]raças à arte, em vez

de contemplar um só mundo, o nosso, vemo-lo multiplicar-se” (PROUST apud

DELEUZE, 2003, p. 154).

O que não é dizer, no entanto, que essa potência de criação e ampliação é

exclusividade da Arte, muito pelo contrário: o próprio campo da Saúde Coletiva, imerso

em sua força instituinte e à luz de sua multiplicidade, veio experimentando outros modos

de explorar o problema da alimentação e as temáticas que gravitam ao seu redor,

compartilhando inclusive a própria ideia de que o comer,

em nossa sociedade (...), apresenta no mínimo vinte usos diferentes. Destes,


somente um (...) ligado à nutrição: 1) Satisfazer a fome e nutrir o corpo; 2)
Iniciar e manter relações pessoais e de negócios; 3) Demonstrar a natureza e a
extensão das relações sociais; 4) Propiciar um foco para as atividades
comunitárias; 5) Expressar amor e carinho; 6) Expressar individualidade; 7)
Proclamar a distinção de um grupo; 8) Demonstrar pertencer a um grupo; 9)
Reagir ao stress psicológico ou emocional; 10) Significar status social; 11)
Recompensas ou castigos; 12) Reforçar a autoestima e ganhar reconhecimento;
13) Exercer poder político e econômico; 14) Prevenir, diagnosticar e tratar
enfermidades físicas; 15) Prevenir, diagnosticar e tratar enfermidades mentais;
16) Simbolizar experiências emocionais; 17) Manifestar piedade ou devoção;
18) Representar segurança; 19) Expressar sentimentos morais; 20) Significar
riqueza. (Cf. BAAS; WAKEFIELD; Kolasa apud CONTRERAS, 1992, pp.16-
17).
71

Historicamente, por outro lado, não é segredo que desde a gênese do campo

científico da Alimentação e Nutrição10 na década de 1930 (Cf. VASCONCELOS;

BATISTA FILHO, 2011), predominou uma abordagem biológica do comer e desses

fenômenos, de maneira que o que interessava a[o]s cientistas do campo eram os aspectos

clínico-fisiológicos e individuais relacionados ao consumo e à utilização dos nutrientes.

Interesse este que era alicerçado pela tese do aprimoramento eugênico do povo

brasileiro por meio de uma alimentação cientificamente elaborada, racional e

objetivamente, que não só afastaria o humano de sua ignorância sobre o que e como

comer, mas que também atribuiria ao comer um valor eugênico. Determinante inclusive

para a construção da nação e de seu povo, potencialmente vigoroso e forte se bem

conduzido pela razão científica dos nutricionistas, cujo papel era precisamente o de mudar

o comportamento alimentar da população.

Esta matriz ideológica pregava que o mal do Brasil era a fome, e não a raça (Cf.

LIMA; HOCHMAN, 2000) e isto por si só já indicava um deslizamento interessante de

uma questão racial para uma questão sociocultural, ao menos até os anos 1950, quando

os intelectuais do campo começam a problematizar a gênese, a reprodução e o

enfrentamento da fome e da subnutrição da população brasileira a partir de um prisma

não centrado mais apenas no biológico (Cf. VASCONCELOS; BATISTA FILHO, op.

cit.; L’ABATTE, 1988; VASCONCELOS, 2002, 2005).

Floresceram naquele momento abordagens multicausais da determinação do

processo fome-desnutrição, ainda bastante fundamentadas em concepções de mundo

positivistas, que se contrapuseram, por sua vez, às noções “estruturalistas” que vão surgir

nos fins da década de 1970, quando as investigações do campo passam a identificar

10
O campo nasce efetivamente enquanto campo da Nutrição, mas vou utilizar uma nomenclatura corrente
do campo: Alimentação e Nutrição. Para mais sobre a incorporação do “Alimentação” e uma história da
constituição do campo, cf. BOSI; PRADO, 2011.
72

elementos sócio-político-econômico-estruturais do país como pobreza, distribuição de

renda, distribuição da terra, concentração de poder e etc. como os principais

determinantes do processo fome-desnutrição. (Cf. VASCONCELOS, 2001)

Entretanto, para além destas abordagens, ao longo da década de 1980, com o

processo que ficou conhecido como transição nutricional brasileira (Cf. MONTEIRO et

al., 2000; BATISTA FILHO; RISSIN, 2003; BATISTA FILHO et al., 2008;

VASCONCELOS; BATISTA FILHO, 2011),

[o] perfil epidemiológico nutricional que caracterizou a sociedade brasileira no


período 1930-1980 – constituído pelas doenças relacionadas às carências
nutricionais (desnutrição protéico-calórica, hipovitaminose A, pelagra, anemia
ferropriva, bócio etc.) – [sofre uma transformação, onde passam a sobrepor-
se] as doenças relacionadas ao excesso nutricional (obesidade, diabetes,
dislipidemias, hipertensão, certos tipos de câncer, etc.)” (VASCONCELOS;
BATISTA FILHO, 2011: 86)

Com tal transformação germina, assim, a necessidade de construção de novos

olhares no campo da Alimentação e Nutrição que vai, cada vez mais, buscar novas formas

de abordar o ato de comer em sua complexidade e as relações entre fome, apetite e vida.

Seguindo nesta mesma direção, vale dizer que esse alargamento dos problemas do

campo é correlato também à potente composição que floresceu ao longo da década de

1970 quando, no interior do chamado movimento sanitário brasileiro (Cf. MINAYO,

2008), houve uma ressignificação do campo da Alimentação e Nutrição.

Ressignificação esta que não só o reconfigurou, como frutificou um “duplo

movimento mediante o qual o campo (...) [foi] inocula[ado] por todos os núcleos de

saberes da Saúde Coletiva, ao mesmo tempo que nesta [deixou] suas marcas” (BOSI;

PRADO, 2011, p. 16), criando uma zona de mútua fertilização (Idem, p. 16) que abrigou

um investimento ainda maior em abordagens que distanciavam-se do hegemônico modelo

biomédico (Cf. MONTEIRO, 2009; SILVA et al., 2010; BOSI; PRADO, 2011;

LOUZADA et al., 2015) e que relacionava-se, portanto, ao já citado alargamento seja dos
73

problemas do campo, seja de sua percepção sobre o comer e as temáticas que o compõem

e o atravessam, temáticas essas que iam expandindo fronteiras também fora da Saúde.

Com esse alargamento foi-se produzindo, assim, uma visão crítica e

interdisciplinar sobre o campo da Alimentação e Nutrição em Saúde Coletiva (Cf. BOSI;

PRADO, 2011; PRADO et al., 2011), e a qual se soma também uma visão crítica ao modo

como se tem pensado tanto a ciência no Brasil (Cf. BOSI; PRADO, 2011; PRADO et al.,

2011; NUNES et al., 2010), quanto a própria sociedade brasileira. Afinal, segundo uma

certa visão presente no campo:

as medidas sensíveis da fome e seus determinantes, da desnutrição, da


deficiência nutricional (...), da mudança do perfil de consumo de alimentos e
consequências (...) são indicadores de como a sociedade atravessa as etapas de
desenvolvimento social e econômico e incorpora ou abandona padrões de
consumo de alimentos e práticas de saúde (...), [de modo que é decisivo]
monitorar a situação de saúde, alimentar e nutricional de maneira sistemática[,
pois isto] revela desigualdades entre regiões geográficas, grupos populacionais
e populações vulneráveis, e permite subsidiar intervenções voltadas para a
prevenção e o controle de distúrbios nutricionais e doenças associadas à
alimentação e nutrição e para a promoção de práticas alimentares e estilos de
vida saudáveis. (RECINE; VASCONCELLOS, 2011, p. 74)

De todo modo, para além de toda esta criticidade é importante notarmos também

como este movimento nos indica um outro deslizamento interessante, a saber, um

deslizamento a partir do qual passou-se a assumir o conceito de alimentação saudável

não só como resultado da interação entre o biológico e o sociocultural, mas como direito,

de maneira que o que passou a importar era, precisamente:

assegurar o direito humano à alimentação adequada a todas e todos os


habitantes do território brasileiro, promovendo a soberania e a segurança
alimentar e nutricional de modo que tenham acesso regular e permanente a
alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso
a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares
promotoras de saúde, que respeitem a diversidade cultural e que sejam
ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis.11

11
Brasil. Lei Orgânica de Segurança Alimentar Nutricional (Losan). Lei nº 11.346, de 15 de setembro de
2006. Responsável por criar o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN) que visa
assegurar o direito humano à alimentação adequada. Diário Oficial da União 2006; 18 set. Disponível em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11346.html. Acesso em 21/01/2021.
Além disto, cf. RECINE; VASCONCELLOS, 2011.
74

Desta forma, por mais óbvio que pareça, vale notarmos ainda que esta visão crítica

e essa interdisciplinaridade foram fertilizadas justamente a partir da aliança com outros

campos (Cf. BOSI; MARTINEZ, 2010; CANESQUI, 1998; CANESQUI; GARCIA,

2005), pois

mais que reconhecer a existência da alimentação como constituinte do campo


científico, é essencial conhecer suas características, seus fundamentos
epistemológicos, suas bases teórico-metodológicas, [que] situam-se [também]
no âmbito das humanidades e [que] incluem uma ampla gama de disciplinas
em interação. História, sociologia, antropologia, filosofia, psicologia,
economia, política, artes conformam significativa complexidade em torno da
“comida”, constituindo possibilidade de diálogo com a biologia, a medicina, a
nutrição, entre outras, ampliando-as. (PRADO et al., 2011, p. 118)

E se olhamos para estes movimentos, deslizamentos e platôs onde germinaram

distintos modos de se pensar e de se problematizar a gênese, a reprodução e o

enfrentamento da fome e da subnutrição da população brasileira, é precisamente porque

ela evidencia não só a empreitada de ampliação do campo e de seus problemas, mas

também como o entendimento sobre aquilo que determina as condutas alimentares

transitou por perspectivas distintas e diversas que vão do econômico ao subjetivo, do

social ao cultural, do educacional ao ideológico, etc., compondo um cardápio de fatores

bastante vasto e que agencia uma multiplicidade de elementos os mais variados.

Elementos estes que nutrem, por sua vez, múltiplas concepções daquilo que

determina a conduta alimentar, contemplando seja as relações entre oferta, demanda,

abastecimento e o preço dos alimentos; a renda e o poder de compra das famílias; as

transformações nos modos de produzir, estocar e comercializar os bens, os produtos e os

serviços alimentícios.

Seja ainda a busca pela saúde e pelo bem-estar individual que, em alguns

momentos, conjuga tanto a busca por um certo padrão estético-corporal que alia saúde e

beleza à magreza, quanto a fobia do envelhecimento, das calorias, das gorduras e das

doenças ligadas diretamente à distúrbios alimentares ou à uniformização dietética imposta


75

pelo complexo agroalimentar-cultural e os fluxos capitalísticos que o atravessam e o

compõem.

E a este cardápio poderiam somar-se ainda outros elementos como a busca por

ritmos e estilos de vida saudáveis; a influência e a pressão parental, educacional, social,

cultural, midiática e biomédica sobre aquilo que se pode e se deve comer; os efeitos

cognitivos, afetivos e comportamentais da publicidade e da propaganda; a falta de

planejamento e de tempo para cozinhar, etc.

Todavia, para além de situar como a própria abordagem sobre esses problemas e

sobre aquilo que determina a conduta alimentar, foi se transformando com o

florescimento tanto do campo em si, quanto do campo problemático correlato a ele, nosso

interesse não é o de meramente apresentar um cardápio cada vez mais amplo de elementos

que afetam, influenciam e determinam a conduta alimentar ou que compõem uma certa

cultura alimentar.

Nesse sentido, retomando a proposição da escultura ambiental, mais do que

apenas um outro elemento a ser adicionado a este cardápio de fatores – em especial graças

ao seu tempero, digamos assim, socioambiental – a proposição de Menna Barreto nos

apetece porque ela nos permite propor um deslocamento da categoria de cultura para o

conceito de agenciamento (Cf. DELEUZE; GUATTARI, 2010; ZOURABICHVILI,

2004), definido como um acoplamento de um conjunto de relações materiais e um regime

de signos correspondente a elas que envolve elementos heterogêneos, tais como

enunciados, conteúdos, expressão, atos, corpos, ações e transformações que precisam,

finalmente, ser ordenados pelo ponto de vista da imanência.

Mais do que isso, esse deslocamento permite que proponhamos um outro, qual

seja, o de situarmos nossa empreitada para além do binômio Natureza-Cultura, visto que,

para além de uma noção estanque de cultura, a própria existência é produzida em meio a
76

agenciamentos variáveis e remanejáveis. E se, então, a proposição da escultura ambiental

e a experiência empírica correlata a ela nos interessam, é precisamente porque inserem o

comer e as práticas alimentares em um outro agenciamento, mundificando um campo

problemático que nos permite torcer a ideia de cultura alimentar a partir de uma

perspectiva [est]ético-[cosmo]política.

O que é dizer, que muito mais que uma reles obra de arte, o Restauro, tanto quanto

a agroecologia e a ecogastronomia não são uma mera expressão atualizada de uma

epifania hippie, mas justamente aquilo que frutifica um campo problemático singular e

que compõe um outro agenciamento alimentar onde o comer, como dissemos

anteriormente, é atravessado por novas potências, novas funções e novas imagens.

E se falamos, pois, em campo problemático é porque tanto o conceito de problema,

como indicamos no primeiro capítulo, quanto a ideia de problematização nos são muito

caros, seja porque não buscam uma experiência histórica neutra e invariante, seja porque

não implicam:

(...) a representação de um objeto preexistente, nem tampouco a criação pelo


discurso de um objeto que não existe[, transcendente]. [Ela, a problematização,
trata do] (...) conjunto de práticas (...) que faz alguma coisa entrar no jogo do
verdadeiro e do falso e o constitui como objeto para o pensamento”
(FOUCAULT, 2004, p. 242, grifo nosso)

O que está na mesa, assim, é justamente o fato de que conceitos e práticas que são

centrais para nosso trabalho, como fome, apetite, o próprio comer e o alimento, não

podem ser naturalizados. Afinal, assumir uma perspectiva processual é partir de um

princípio criativo, generativo e heterogenético, de tal maneira que uma questão central é,

ao contrário da naturalização, precisamente a da produção, da criação, da invenção,

especialmente porque:

[p]rimeiro, (...) não há mundo pronto para ser visto, um mundo antes da visão,
ou antes, da divisão entre o visível (ou pensável) e o invisível (ou pressuposto)
que institui o horizonte de um pensamento. Segundo, porque tomar as ideias
como conceitos é recusar sua explicação em termos da noção transcendente de
contexto (ecológico, econômico, político etc.), em favor da noção imanente de
77

problema, de campo problemático onde as ideias estão implicadas.


(VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 123)

Implicadas, aliás, de modos distintos, dado o próprio fato de que, lembrando de

James (op. cit.), existem múltiplos modos da experiência e, por muitas das vezes, não

estamos falando do mesmo mundo ou, para dizer de outra forma, do mesmo

agenciamento. O que não é dizer que, no frigir dos ovos, um mundo comum não exista,

mas sim que, em potência, sempre existe um mundo [in]comum cujos [novos] possíveis

podem ser absolutamente mais apetitosos do que aquilo já está sedimentado dentro de

uma certa cultura, pois, ainda que “o fardo da imaginação do Ocidente” (CUNHA, 2009,

p. 328) esteja sempre à espreita, “[h]á muito mais regimes de conhecimento e de cultura

do que supõe nossa vã imaginação metropolitana” (Id., p. 329).

Um alimento, por exemplo, para lembrarmos das Mitológicas de Lévi-Strauss e

seu “triângulo culinário”, é antes de tudo bom para pensar, estando ele sempre conectado

a todo um agenciamento cosmosociotécnico, tanto quanto à uma série de práticas e

conceitos correlatas a ele, como os de pessoa, de sujeito, de indivíduo, de comida, de

cozinhar, de vida, etc.

Nesse mesmo sentido, aquilo que convencionou-se chamar cultura faz, na

verdade, parte de um debate amplo no campo da Antropologia e existem, inclusive,

múltiplas perspectivas sobre ela, perspectivas estas que vão da sua abolição (Cf. GUPTA;

FERGUNSON, 2000) à sua defesa (Cf. CUNHA, 2009; SAHLINS, 1997).

Todavia, aproveitando que estamos falando de perspectivas, não perderemos a

oportunidade de introduzir neste momento um referencial preci(o)so para nosso trabalho,

a saber o perspectivismo ameríndio e suas proposições multinaturalistas (Cf. VIVEIROS

DE CASTRO, 1996) que, não por acaso, trazem à mesa elementos que permitem que nos

situemos em um outro ponto desta discussão – justamente além do binarismo Natureza-

Cultura – e que serão centrais em nosso desenho metodológico.


78

Solo fértil para todo um relacionalismo sem relativismo (Cf. PRADO Jr., 1997),

por agora o ponto que nos interessa comentar é que essa proposição fertiliza uma certa

perspectiva da arte da antropologia (Cf. GELL, 1999; VIVEIROS DE CASTRO, 2002)

que nos permite seguir saboreando seja outros entendimentos sobre a problemática da

cultura, seja nosso deslocamento para o conceito de agenciamento, seja ainda para

explorarmos ainda mais as frutíferas relações possíveis entre artes, saúde e filosofia.

Não por acaso, aliás, é em meio a essas frutíferas relações que convocamos a arte

da antropologia e cultivamos esse diálogo com ela, afinal, aquilo em que a antropologia

se embrenha e que a nutre são exatamente as relações, a tal ponto que:

se há de começar[mos] por algum lugar, que a matéria privilegiada da


antropologia seja a socialidade humana, isto é, o que vamos chamando de
‘relações sociais’; e aceitemos a ponderação de que a ‘cultura’, por exemplo,
não tem existência independente de sua atualização nessas relações (...). Resta,
ponto importante, que tais relações variam no espaço e no tempo; e se a cultura
não existe fora de sua expressão relacional, então a variação relacional
também é variação cultural, ou, dito de outro modo, ‘cultura’ é o nome que a
antropologia dá à variação relacional. (VIVEIROS DE CASTRO, op. cit., pp.
140, grifos nossos)

Seguindo nessa mesma direção e lembrando da conversa entre Bergson e Deleuze,

a arte da antropologia é também uma arte de colocar problemas, o que imediatamente

conecta a filosofia à antropologia, definida brilhantemente por Tim Ingold, como uma

filosofia “with the people in” (1992, p. 696) – sendo “people” uma alusão tanto às pessoas

[in]comuns, como também a outros povos (incomuns) – e da qual decorre a própria

possibilidade de “[u]ma filosofia com outros povos dentro (...), de uma atividade

filosófica que mantenha uma relação com a não-filosofia — a vida — de outros povos do

planeta, além de com a nossa própria” (VIVEIROS DE CASTRO, op. cit, p. 127), tanto

quanto com (outros) mundos (por vir), tais como aqueles que a arte invenciona, com

jardins imaginários, sapos reais e tudo o mais. (Cf. MOORE, 1967)

E se falamos deste campo de possíveis, nesse campo de potenciais, é precisamente

porque a antropologia não sabe de antemão o que é que constitui estes outros mundos e
79

os seus problemas, sendo qualquer tipo de vantagem de direito do discurso científico

sobre qualquer outro ontologicamente indigesta e (cosmo)politicamente intragável, isto

para não dizermos nada dos perigos de simplificação, de epistemicídio e cosmicídio que

rondam as nossas práticas de conhecimento ocidentais.

Isto é dizer que uma das lições que a antropologia nos traz é que o mundo

sobrecodificado dos princípios científicos não pode moldar e/ou achatar o mundo de

outrem para que este caiba dentro de seu tacho científico-metodológico. Ainda mais à

guisa de pena de deslegitimidade metafísico-ontológica caso não o faça, em especial

porque “o que varia crucialmente não é o conteúdo das relações, mas sua ideia mesma: o

que conta como relação nesta ou naquela cultura. Não são as relações que variam, são as

variações que relacionam. (VIVEIROS DE CASTRO, op. cit., p. 141)

A partir, pois, desta mútua implicação, desta capacidade de permeabilidade,

alteração e transformação, podemos dizer não só que o conhecimento antropológico é um

conhecimento que é radicalmente relacional, como também que a arte da antropologia é

a própria arte de pôr problemas em relação: “não um problema único (‘natural’) e suas

diferentes soluções (‘culturais’) (Id., p. 117), mas a variação das relações sociais. Isto é,

de todos os fenômenos possíveis enquanto relações sociais, enquanto implicam relações

sociais: “de todas as relações como sociais” (Ibid., p. 122).

Muito embora, a rigor, mergulharemos a fundo nas questões ontológicas e

metafísicas que o multinaturalismo adiciona à mesa futuramente, especialmente em eat

(it) (MILONOPOULOS, 2021), é importante situarmos que

(...) como diria Deleuze: não se trata de afirmar a relatividade do verdadeiro,


mas sim a verdade do relativo. É digno de nota que [Roy] Wagner associe a
noção de relação à de ponto de vista (os termos relacionados são pontos de
vista), e que essa ideia de uma verdade do relativo defina justamente o que
Deleuze chama de “perspectivismo”. Pois o perspectivismo — o de Leibniz e
Nietzsche como o dos Tukano ou Juruna — não é um relativismo, isto é,
afirmação de uma relatividade do verdadeiro, mas um relacionalismo, pelo
qual se afirma que a verdade do relativo é a relação. (VIVEIROS DE
CASTRO, 2002, p. 129)
80

Mais do que isso, é impossível não dizermos que, ao admitirmos o tratamento de

todas as relações como sociais, estamos imersos em um horizonte onde a reconceituação

radical do que seja o coletivo e do que seja o social, bem como do que é ou do que compõe

uma pessoa ou um sujeito, ou ainda do que é e do que compõe um alimento, tanto quanto

suas perplicações metafísicas e ontológicas, como veremos em In-between hunger and

apetite – food for thought in the act, é o prato do dia.

Seguindo nessa mesma direção, se anteriormente estávamos discutindo os

esforços do campo da arte e da saúde para ampliar o horizonte problemático do comer e

daquilo que o atravessa, é fortuito lembrarmos também de um plano muito peculiar a que

Deleuze nomeia como o plano de imanência, isto é, o horizonte dos acontecimentos:

(…) não o horizonte relativo que funciona como um limite, [que] muda com o
observador e [que] engloba estados-de-coisa observáveis, mas o horizonte
absoluto, independente de todo observador, que libera o acontecimento como
conceito independente de um estado-de-coisa visível onde ele se efetuaria”
(DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 52).

O que é dizer, ressoando Wagner (1981), que a antropologia, que o conhecimento

antropológico se define pela sua “objetividade relativa” ou então, nos termos de Viveiros

de Castro, por sua “objetividade intrinsecamente relacional”. Ou seja, que para além das

formas de neutralização e pasteurização do pensamento alheio, o que nos interessa é situar

a relação de conhecimento em uma perspectiva simétrica (LATOUR, 2007b) pois “se há

algo que cabe de direito à antropologia, não é certamente a tarefa de explicar o mundo de

outrem, mas a de multiplicar nosso mundo. (VIVEIROS DE CASTRO, op. cit., p 132)

Nossa proposição é, assim, reforçando anteriormente, a de pôr a Saúde em relação

com conceitos e problemas vindos de outras áreas e campos como a arte, a filosofia, a

antropologia e tantos outros modos da experiência, como as cosmovivências indígenas,

afim de criarmos condições para que possamos não só seguir ampliando horizontes, como
81

também traçar um plano epistemológico-político que fundamente nossa experiência com

o (impensável no) pensamento ao longo desta investigação.

Isto nos permite também questionar e experimentar o que é pensensar questões

caras à Saúde Coletiva ontogeneticamente, ou seja, sem decidir de antemão o sentido

geral desses encontros e seu estatuto e hierarquia epistemológica, até mesmo porque

[m]ais urgente não (...) [nos] parece, tanto, defender uma cultura cuja
existência nunca salvou uma pessoa de ter fome e da preocupação de viver
melhor, quanto extrair, daquilo que se chama cultura, ideias cuja força viva é
idêntica à da fome. (ARTAUD, 2006, p. 1, grifos nossos).

Proposição essa que abre espaço para que questionemos e experimentemos o que

acontece quando se leva tais modos da experiência a sério, quer dizer, o que se pode

extrair, por exemplo, de um enunciado como “o sistema digestório é uma ferramenta

escultórica da paisagem”? Ou da formulação “o comer não começa na boca, mas na

terra”? Ou então, qual o conceito de corpo que se pode colher a partir da proposição de

escultura ambiental? O mesmo para o conceito de saúde: que saúdes estavam ali em

produção? O que os encontros, aliás, com um entendimento do alimento em um campo

expandido produziram em termos de efeitos sobre a temática da produção de saúdes? O

que as relações humanas e mais-que humanas fomentadas ao longo do Restauro

produziram em termos de deslocamentos no entendimento do que é e do que compõe o

coletivo? Quais os efeitos da proposição da escultura ambiental sobre conceitos como os

de fome e de apetite? Em quais agenciamento ela nos lança? O que acontece, enfim, com

o pensamento, o cuidado e as práticas em saúde quando postas em relação simétrica a

outros campos e modos de experiencia-pensamento? Que plano se traça quando a leitura

no campo se dá em meio a deslizamentos no terreno? Com-posição.


82

5. Discussão, parte 1: cosmu[m]dos

5.1. Ecologi(c)as das práticas: da terceira margem do rio ao caminho do meio

It must be remembered that the phrase ‘actual


world’ is like ‘yesterday’ and ‘tomorrow’, in that
it alters its meaning according to standpoint.
Alfred North Whitehead

O caminho se faz ao caminhar.


Antônio Machado

Ao partirmos e mergulharmos, pois, no meio, uma ferramenta que pode nos

auxiliar a seguir cultivando esse modo de produção da experiência-pensamento que se dá

através do que está acontecendo é justamente o que Isabelle Stengers nomeou como uma

ecologia das práticas (2005). E se dizemos através é precisamente porque, como

buscamos evidenciar anteriormente, em uma perspectiva ontogenética não há nada

localizado antes do evento.

Ou seja, ao nos embrenharmos nessa ecologi(c)a, uma ferramenta não é algo que

possui um fim determinado em si mesmo, no próprio sentido em que, processualmente,

para além das suas funções esperadas e pretensamente conhecidas de antemão, uma

ferramenta não seria requisitada por tal ou qual função, ou por um fim determinado

previamente ao acontecimento.

Elas emergiriam, pelo contrário, justamente a partir do campo relacional que se

estabelece nele, como a tampa da panela que vira peso para que a receita não voe da

bancada, ou a toalha de mesa que vira guardanapo, o pano de prato que vira uma luva

antitérmica, o copo ou a caneca que se transformam em concha acústica e amplificador.

Usar uma ferramenta, assim, nessa perspectiva, não é algo que depende de um

juízo. Uma ferramenta não carece do julgamento de uma situação que, mediante a devida

análise, justificaria o seu uso. Ela é sempre relativa à uma prática, o que é dizer que ela

emerge na relação, e não como a herdeira de uma mesmicidade que se arrasta e que

organiza seus usos e sua existência, menos ainda de um certo hábito, de um certo fazer
83

que sabe antecipadamente as suas funções, sua natureza e as suas (des)potências: a faca

de pão, a faca de mesa, a faca de peixe, a faca de ostra, a faca de manteiga, a faca de

queijo, a faca de desossar, a faca de tornear, a faca do chef, olha a faca.

O que Stengers traz à mesa com sua proposição é, então, a possibilidade de darmos

à uma situação, a um evento, o seu poder de, para além do mero reconhecer, nos afetar e

nos fazer pensar a partir do encontro, a partir da afecção. O que implica na própria

fertilização de um campo de potenciais onde esse poder, essa potência, esses potenciais

que recheiam e preenchem uma situação, um encontro ou um problema, tenham

condições de serem atualizados in-ato.

A proposição de Stengers nos introduz, deste modo, a um pensar com o

acontecimento, a um pensar com a diferença, promovendo um deslizamento que, embora

sutil a um olhar mais apressado, se engaja com a composição, em ato, de meios para que

um evento, para que uma singularidade nos arraste, para que uma diferença, a mais

mínima das diferenças, nos implique em um campo problemático que diz respeito, não

por acaso, à nossa vida e às próprias condições de nossa existência e de nosso por-vir.

A ecologia das práticas, neste sentido, é tudo menos neutra. Preparada na

imanência, qualquer conceito, ideia, ou referência a um transcendental ou a qualquer

noção de progresso que justifique seu passado como aquilo que leva ao nosso presente e

a um futuro já conhecido está fora de seu cardápio. Ou seja, nada de “primeiro temos de

fazer o bolo crescer para depois dividi-lo”, como se os meios justificassem os fins ou os

fins justificassem os meios.

Numa ecologia das práticas, os meios justificam os meios, no sentido de que eles

estão coproduzindo os próprios meios em seus interstícios, as próprias condições para

que, como diria Whitehead, uma ocorrência alcance a sua satisfação, quer dizer, que uma

potência se atualize. O que inclui também o próprio praticante, afinal, como dissemos, o
84

pão faz o padeiro tanto quanto o padeiro faz o pão. E isso de uma tal forma que o nosso

presente e seu diagnóstico são ininteligíveis se desconectados de suas possibilidades de

trans-formação.

O que é dizer, em outros termos que há sempre de se considerar – e vamos martelar

mais uma vez nesse ponto –, os potenciais e os devires, por mais que estejamos tratando

do presente, especialmente porque uma ecologia das práticas:

não tem qualquer ambição de descrever as práticas 'como elas são'; ela (...)
[v]isa a construção de novas ‘identidades práticas’ para as práticas, ou seja,
novas possibilidades de estarem presentes ou, em outras palavras, de se
conectarem. Ela, deste modo, não aborda as práticas como elas são – a física
[ou a medicina] como a(s) conhecemos, por exemplo –, mas pelo que elas
podem se tornar. (2005, p. 186, tradução nossa)

Ressoando, assim, Spinoza (2007), poderíamos dizer que se já não sabemos o que

pode um corpo, a pergunta que nos interessa agora é justamente: o que pode uma prática?

Quer dizer, quais são as suas potências? Como ela permite que uma diferença emerja? A

que(m) ela se avizinha? O que ela faz passar? O que ela produz? O que podemos pedir

dela? Com que(m) ela compõe? Qual agenciamento ela inaugura ou em qual

agenciamento ela se alia? A qual ecologia ela pertence? Qual seu ambiente? Qual seu

hábitat? Qual seu meio?

Pensar pelo meio, não por acaso, é aquilo que nutre uma ecologia das práticas.

Stengers inclusive afirma que ela é em si um exemplo de penser par le milieu, como dizia

Deleuze, de pensar pelo meio. E vale dizer que entendemos meio aqui na dupla acepção

do termo: seja enquanto arredor, enquanto habitat, seja no seu sentido espacial-geográfico

mais recorrente.

Mas o que é, então, pensar pelo meio? É pensar sem um horizonte definido e ideal,

sem uma teoria que dê ao pensamento o poder e a capacidade de separar algo de sua

singularidade, de seu ambiente particular. Isto é, de ir além do singular em direção à uma


85

generalização, a algo passível de reconhecimento e apreensão independentemente de suas

particularidades e de suas singularidades, ou seja, um universal.

A identidade de uma prática, seu próprio ethos, é então tributário da relação com

sua ecologia, com uma ocasião singular. De tal maneira que a questão é a de como criar

uma paisagem prática diferente, afinal, a própria maneira como definimos uma prática

faz parte do ambiente que a nutre, ao que se soma, ainda, o fato de que não sabemos o

que uma prática pode.

Tampouco o que ela pode se tornar ou o que ela pode produzir em termos mais

amplos: cozinhar um prato predileto ou comer a comida preferida, por exemplo, é algo

que não se encerra em si, há ali uma série de outras dimensões, como aquele cheiro de

peixe ou de bolo, como dissemos, que nos lança, em espiral, a uma outra ecologia da

experiência, a um outro tempo, a um outro lugar: na beira do mar, no meio do mato, no

rancho da avó, etc.

Tomemos como exemplo o próprio caso das práticas alimentares que, na

composição com o agenciamento Restauro, assumiram uma função que era

eminentemente artística em um primeiro momento. Mas que, como dito, não só anunciava

o que mais essa prática – a alimentar – pode ser (uma ferramenta escultórica do planeta),

como também criava uma paisagem prática outra onde o comer não remetia somente à

sua função biológico-nutricêutica e à interioridade de um comensal.

Uma paisagem aliás, muito mais complexa em termos processuais, dada sua

ecologia transdutiva composta por práticas agroecológicas, por práticas (re)generativas

transespecíficas, por práticas escultóricas transindividuais, por práticas de economia

solidária, por práticas ecogastronômicas, por práticas de pensamento que abordavam o

alimento a partir de um campo expandido, por práticas educativas que não tomavam o

discurso ou o sujeito como seu centro, etc.


86

Ao compor, assim, avizinhamentos que extrapolavam o campo artístico, criou-se

um modo de experiencia que se baseava em uma relação indissociável entre tais práticas,

o que criou um meio para que essas diferentes práticas se fertilizassem, se (re)inventassem

e se desenvolvessem, desvelando e atualizando potenciais e gerando efeitos que eram, a

princípio, algo fora do escopo da proposição, como por exemplo a própria produção, anos

depois, de um periódico voltado à discussões alimentares, a revista Enzyme12.

O que é dizer, ainda nessa mesma direção, que uma crítica par le millieu, pelo

meio ou, ainda, que um pensamento orientado pelo processo, são atividades que se

enraízam em um pensar a favor do mundo, e que envolvem práticas que efetuam-se

também em favor do mundo, donde decorre o próprio entendimento de que uma prática

é, fundamentalmente, uma atividade generativa, transformativa.

Assim, mais do que ser um elemento que diz respeito única e exclusivamente a

um indivíduo e a um certo campo do saber e do viver antropocêntrico, uma prática está

sempre prenhe de um vetor cosmopolítico. Ou seja, ela abre a vida para a sua diferença,

para a sua multiplicidade, para os mundos por vir. O que não só poliniza, diria Stengers,

a máxima cosmopolítica de que não estamos sozinhos no mundo, como também nos

conecta à uma perspectiva co(m)posicional e a um gênero de conhecimento da

composição (Cf. SPINOZA, 2007).

Essa dimensão escancaradamente generativa e transformativa – seja do praticante,

seja do meio, seja do seu habitat, seja dos seus arredores e de toda sua ecologia –, é, assim,

a própria produção da diferença em ato, de tal modo que o ponto crucial da pragmática

da ecologia das práticas é justamente

(...) aquele que torna possível pensar para o mundo, mas não aceitá-lo
passivamente, é o fato de não sabermos como lobos e cordeiros podem tornar-
se capazes, como lobos e cordeiros, de se comportar em circunstâncias
diferentes. Este é o ponto das causas não pertencerem às pessoas. Elas

12
Para mais, ver jorggemennabarreto.com/Enzyme-Magazine. Acesso em 13/03/2021.
87

obrigam, mas não há possibilidade de produzir uma relação definidora entre a


causa e a obrigação tal como é formulada neste ou naquele habitat. Mas isso
não significa que alguém seria livre para definir, tampouco, como alguém é
obrigado. O 'como' é uma questão que expõe, que põe em risco, aqueles que
são obrigados. O que também significa que somente essas pessoas podem
correr o risco de colocar mudanças experimentais na formulação de suas
obrigações, porque somente elas são expostas pela pergunta [como?]. (op. cit.,
p. 192, tradução nossa)

Isso implica, igualmente, que a ecologia das práticas é sempre correlata a uma

etologia, dado o próprio fato de que não existe uma etologia independente de uma

ecologia singular, da mesma forma que “[n]ão existe uma definição biologicamente

fundamentada de babuíno que autorizaria não levar em consideração a presença ou

ausência de predadores de babuínos no ambiente.” (op. cit., p. 187, tradução nossa)

Seguindo nessa mesma direção, a autora afirma que para lidar com as práticas

devemos não só nos abstermos de qualquer generalização, mas que também

(...) temos que aceitar o teste crítico de nos abster da poderosa droga da
Verdade. [E, d]e fato, no que diz respeito às práticas, o que vem primeiro é a
diferença etoecológica entre uma prática e seu exterior. Na "ecologia de
práticas" a prática implica primeiro que (...) seus praticantes não irão cruzar a
fronteira da prática que abordam sem uma transformação da intenção e do
objetivo daquilo que endereçam. (Id., pp. 188-189, tradução nossa)

O que é dizer que em meio a uma singularidade, cada parte que a compõe está

implicada de uma maneira distinta, com diferentes riscos e com diferentes desafios

próprios à sua especificidade. De tal modo que a ecologia de práticas nunca irá buscar as

contradições, mas sim os contrastes ou, para lembrarmos de nossas discussões

antropológicas prévias, ela se perguntará:

o que acontece quando se leva o pensamento nativo[, o outro do pensamento]


a sério? Quando o propósito do antropólogo [e de todo e qualquer pensador]
deixa de ser o de explicar, interpretar, contextualizar, racionalizar esse
pensamento, e passa a ser o de o utilizar, tirar suas consequências, verificar os
efeitos[, os contrastes] que ele pode produzir no nosso? (VIVEIROS DE
CASTRO, 2002, p. 129)

Existe, assim, uma articulação que é sempre local, imanente às condições de

emergência e de expressão de um evento, tanto quanto ao nível das dimensões de que se


88

dispõe e com as quais há de se compor, caso a caso, sem a ideia de que sabemos de

antemão o que está na panela ou no forno, o que é que importa e o que é que tem valor.

Ao “subtrai[r] o único da multiplicidade a ser constituída” (DELEUZE;

GUATTARI, 1995, p. 21), o ethos de quem pratica uma ecologia das práticas é, então, o

de quem resiste à tentação de justificar o que quer se faça em termos de razões universais

que devam ser admitidas independentemente de quaisquer fronteiras. O que implica que

uma prática, tanto quanto um conceito, são promiscuamente relacionais e que, nesse

sentido,

o meio não é uma média; ao contrário, é o lugar onde as coisas adquirem


velocidade. Entre as coisas não designa uma correlação localizável que vai de
uma para outra e reciprocamente, mas uma direção perpendicular, um
movimento transversal que as carrega uma e outra, riacho sem início nem fim,
que rói suas duas margens e adquire velocidade no meio (Id., pp. 48-49)

Afirma-se, então, a equivalência de direito e de constituição entre práticas e

discursos que entram em relação de conhecimento, uma lição que herdamos da

antropologia simétrica e que frutifica uma maneira pela qual os próprios

conceitos (antropológicos) atualizam tal relação, e são por isso completamente


relacionais, tanto em sua expressão como em seu conteúdo. Eles não são, nem
reflexos verídicos da cultura do nativo (o sonho positivista), nem projeções
ilusórias da cultura do antropólogo (o pesadelo construcionista). O que eles
refletem é uma certa relação de inteligibilidade entre as duas culturas, e o que
eles projetam são as duas culturas como seus pressupostos imaginados. Eles
operam, com isso, um duplo desenraizamento: são como vetores sempre a
apontar para o outro lado, interfaces transcontextuais cuja função é representar,
no sentido diplomático do termo, o outro no seio do mesmo, lá como cá. Os
conceitos antropológicos, em suma, são relativos porque são relacionais — e
são relacionais porque são relatores. (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 125,
grifos nossos)

Embebidos, pois, nessa transversalidade, podemos dizer que muito embora

existam fronteiras entre diferentes práticas, o ponto que nos interessa é que “não existe

uma forma neutra e extraterritorial de definir o que é importante n[um]a situação”

(STENGERS, op. cit., p. 193). Tomemos emprestado, o exemplo de Stengers sobre a

prática científica da Física que, tida como a primeira “ciência moderna”, descobriu e
89

definiu o que se convencionou chamar como ´realidade física’. De uma tal maneira que

seus praticantes, frente a qualquer risco metafísico-ontológico, servem-se de seu

poder social de igualar ataques contra a física com ataques contra a própria
racionalidade, (...) [mobilizando-o, retaliando e] produzindo a alternativa
aterrorizante – ou você está conosco e aceita a realidade física da forma como
a apresentamos, ou você está contra nós e é um inimigo da razão. (op. cit., p.
183, tradução nossa)

Ao embriagar-se nessa autoridade, essa prática da física não só perde de vista que

ela é uma prática social como qualquer outra, bem como que os elétrons ou os quarks são

também mais um construto sóciocosmológico como tantos outros. Do mesmo modo em

que ela estabelece assim uma hierarquização sobre diferentes práticas, assumindo uma

posição de julgamento sobre outras realidades, inclusive sobre as que interessam à outras

práticas científicas. O que, no olhar de Stengers, configura um problema de hábitat, pois

eles [os físicos] sentem que, assim que deixarem a posição segura de alegar
que "descobrem" a realidade física além da mudança das aparências, eles ficam
indefesos, incapazes de resistir à redução do que estão produzindo à simples
receitas instrumentais ou à várias ficções humanas. Eles se tornam sujeitos ao
mesmo tipo de julgamento redutivo que usam contra todas as outras
realidades. (op. cit., pp. 183-184, tradução nossa, grifo nosso)

Ao invés, pois, de tornarmos uma prática reativa a partir da relação com o seu

outro, como se ela fosse proprietária da realidade, do corpo, do saber, da cultura, da saúde,

da natureza, de uma verdade, de um conceito, etc. O problema que nos interessa seguir

cozinhando é o de como fazê-la reagir, no sentido químico da expressão, ao encontro,

para lembrar de Foucault, com um pensamento do exterior: com uma outra ontologia,

com uma outra metafísica, com uma cosmologia, justa e precisamente porque “o que é

preciso saber é justamente o que não se sabe” (VIVEIROS DE CASTRO, op. cit., p. 135).

Se pensamos, por exemplo, no contraste que aparece entre as fomes que

atravessaram e compuseram o Restauro e a fome que é alvo das práticas científicas

ligadas à alimentação e nutrição, podemos imediatamente perguntar: estamos falando da

mesma coisa? Quer dizer, estamos tratando do mesmo conceito de fome? Ou ainda,
90

embebidos em uma perspectiva eco-lógica: o que aconteceria se não soubéssemos de

antemão o que a fome é? E se perguntássemos o que ela pode ao não olharmos para ela

apenas a fim de reconhecer seus efeitos mais conhecidos e esperados? Ou, no limite, o

que ela permite produzir ao compor com um outro agenciamento, ao habitar uma outra

ecologia? O que ela produz se,

[a]ntes de retornar[mos] à cultura, consta[tarmos] que o mundo tem fome e


que não se preocupa com a cultura, e que apenas de um modo artificial é que
se pretende dirigir para a cultura pensamentos que se voltam unicamente para
a fome[?] (ARTAUD, 2006, p. 1)

Pois bem, se trazemos todas estas questões é precisamente porque uma ecologia

de práticas envolve “[a]bordar uma prática (...) conforme ela diverge, isto é, sentindo seus

limites, experimentando com as questões que os [seus] praticantes podem aceitar como

relevantes, mesmo que não sejam suas próprias questões” (STENGERS, op. cit., p. 184,

tradução nossa, grifos nossos). O que implica a própria “exigência de que nenhuma

prática seja definida como "como qualquer outra", assim como nenhuma espécie viva é

como qualquer outra” (Id., p. 184, tradução nossa).

Stengers, nesse mesmo sentido, alude também à necessidade de cultivarmos uma

tecnologia social onde as práticas não devem ser defendidas como se fossem fracas,

capengas ou subservientes. Longe de qualquer contridade, de qualquer impulso de

enfrentamento, a proposição de uma ecologia das práticas envolve o entendimento de que

uma prática é nutrida, fundamentalmente, pela experiencia e que, portanto, ela não existe

por si só, como se fosse algo que pudéssemos buscar na despensa: tipo keto, paleo, low

carb, vegan, etc.

Uma prática inventa a si e a seu praticante a partir das necessidades postas para e

pela vida e sua criatividade, de tal forma que

[o] problema para cada prática é o de como nutrir sua própria força, de tornar
presente o que faz os seus praticantes pensarem, sentirem e agirem. Mas é um
91

problema que pode também produzir uma união experimental entre as práticas,
uma dinâmica de aprendizagem pragmática do que funciona e como funciona.
Este é o tipo de ‘meio’ ativo e estimulante de que as práticas precisam para
poder responder a desafios e experimentar mudanças, ou seja, para desdobrar
sua própria força. (Ibid., p. 195, tradução nossa, grifo nosso)

Uma prática, assim, está sempre imersa em uma ontologia dos acontecimentos e

das relações, onde “[a] ambivalência, a ambiguidade, a incerteza, a plasticidade não vêm

perturbar apenas os humanos que avançam, tateando, na direção de fenômenos garantidos

em si mesmos” (LATOUR, 1995, p. 16).

Bruno Latour, não por acaso, situa a existência de ao menos duas vertentes

epistemológicas distintas: “a da inventividade humana (...) [que] impõe categorias mais

ou menos arbitrárias a uma realidade que jamais se poderá reconhecer (...), [e] a da

natureza, a dos objetos sem história sempre já presentes e que os humanos se contentariam

em descobrir.” (Id., p. 19)

À luz da metafísica de Whitehead, o que Latour traz à mesa ao aludir à essa

questão epistemológica e à própria historicidade das coisas é o fato de que todo e qualquer

acontecimento só pode ser definido pelas suas relações. Pensemos no próprio exemplo

dado pelo autor, que analisa a descoberta-invenção-construção do fermento do ácido

láctico por Pasteur, demonstrando como, ao fazermos a história de Pasteur e de seu

fermento, estamos ao mesmo tempo, fazendo a história do fermento e de seu Pasteur, pois

[s]em Pasteur, sem a filtração, sem o tubo recurvo, sem o ato de semear num
meio de cultura, a fermentação jamais seria ‘manifesta’. Ela conheceu outras
existências antes de 1857, alhures, mas sua nova concrescência[, a sua nova
atualização] na Faculdade de Ciências de Lille, entre as mãos de um químico
ambicioso novo em folha, oferece-lhe uma nova existência, única, datada,
localizada, feita em parte de Pasteur – ele mesmo transformado por sua
segunda grande descoberta – e do laboratório – ele mesmo corpo e espírito de
Pasteur, inteligência distribuída, teoria materializada nos instrumentos,
assembleia muda e materializada de toda a química havia cem anos. (Ibid., p.
16)

O ponto, portanto, é que todos coalescem nessa mistura e, mais do que isso, ao

contrário das ideias mais (re)correntes sobre natureza, sobre transcendência e sobre

causalidade em nossa cosmologia, o que essa coalescência, e a própria composição com


92

a cosmologia do processo nos permitem é, seja operar em simetria, seja entender que a

emergência da sociedade Pasteur-fermento-laboratório-Faculdade-Lille-1857-etc. é fruto

da mutação, da transformação de todos esses elementos. Afirmação feita inclusive, e à

sua própria maneira, pelo próprio Pasteur, já que:

[o] experimentador, homem de conquistas sobre a natureza, se encontra todo o


tempo às voltas com fatos que ainda não se manifestaram e só existem, em sua
maioria, como potência de devir nas leis naturais. O desconhecido no possível
e não no que foi (...), eis o seu domínio (...) (PASTEUR apud LATOUR, op.
cit., p. 20, grifos do autor)

Claro está, então, que não existe em nossa perspectiva nenhum essencialismo,

justa e precisamente porque cada entidade se define apenas pelas suas relações e que, caso

elas mudem ou se transformem, a sua definição também se transformará, dado que os

fatos “só existem (...) como potência de devir”.

Lembremos a esse respeito do exemplo da sociedade padeiro-farinha-água-

fermento-gluten-sal-umidade-forno-lenha-temperatura-etc. que, ao menor sinal de

variação, transformará por completo sua composição, da mesma maneira que o fermento

(de Pasteur) jamais será o mesmo depois de 1857, assim como (o) Pasteur (do fermento),

ou ainda a Faculdade de Lille e seu laboratório.

Retomamos, assim, a questão da ontogênese via Pasteur onde, o que interessa, é

exatamente, para usar os seus próprios termos, não o que foi – quer dizer, aquilo que

atualizou (um pão, por exemplo) –, mas o desconhecido no possível, ou seja, aquilo que

emerge no encontro, no meio, em um campo de potenciais que não se extingue mesmo

quando em face daquilo que Whitehead nomearia concrescência, isto é, em face de sua

atualização.

Neste sentido, não por acaso Latour não fala de uma descoberta, nem de uma

invenção, tampouco de uma construção. Mas sim de uma descoberta-invenção-

construção que, no caso do fermento láctico,


93

exige que se lhe dê o estatuto de mediação, quer dizer, de uma ocorrência que
não é de todo causa, nem de todo consequência, nem completamente um meio,
nem completamente um fim. Pasteur pode ser entendido como um
acontecimento do fermento porque é imprevisto, exterior à série de heranças
que até então definiam a ‘sociedade’ do microrganismo, sua trajetória, sua
linhagem. (...) Correlativamente, a presença durável de um fermento associável
à fermentação, à atividade química de um ser vivo, constitui para Pasteur, uma
encruzilhada decisiva tanto de sua carreira, como de sua pessoa. Quanto aos
químicos, ao aceitar Pasteur e seu fermento, tornam-se, numa tradução
decisiva, bioquímicos. Nenhum ingrediente, é fácil compreender, entra em tais
relações sem nelas se refundir. (op. cit., p. 21, grifo nosso)

O fermento muda, de/sta forma, sua história em contato com Pasteur (e seu

laboratório, e a Faculdade, e o laboratório, e... e... e...) precisamente porque o que Pasteur

fez foi dar a um acontecimento a possibilidade de expressar-se. Ou, dito em outros termos,

a sociedade Pasteur-laboratório-assembleia-Faculdade criou condições para que aquela

sociedade se expressasse, transformando radicalmente ambas as sociedades para que, em

composição, (i)novassem.

Neste mesmo sentido, tomando um outro exemplo vindo do diálogo com a arte,

podemos lembrar de John Cage (Cf. MILONOPOULOS, 2013). Melhor dizendo, de

como a sociedade Cage-zen-budismo-anarquismo-música-contemporânea-cogumelos-

acaso-indeterminação envolveu-se em uma empreitada similar, destacadamente se

pensarmos em sua peça 4’33” onde, ao admitir silêncios, ruídos e barulhos como

elementos da linguagem musical, permitiu que o acontecimento-música, que o

acontecimento som se transformasse e novasse.

Ao criar uma situação estética onde não só a música se tornou outra coisa, como

também as práticas composicionais, as práticas de escuta e a nossa própria relação com

elas (a música, a escuta, bem como com os sons), o encontro de Cage com o silêncio, o

zen e os arranjos sociotécnicos de sua época abriu um campo fértil para que se perguntasse

o que mais a música poderia ser ou, no limite, o que mais a relação entre arte e vida

poderia ser.
94

Desta forma, um princípio muito caro à Cage e às suas práticas composicionais

era o da intencionalidade não-intencional (Cf. CAGE, 1961, p. 17). Um princípio que

nutria a invenção e o exercício de uma prática artística que não fomentasse um

entendimento do evento-música como uma cadeia de signos ou como um esquema formal

que restringisse o acontecimento-som aos desejos do compositor, tampouco a hábitos e

tradições de escuta e de expressão.

Neste mesmo sentido, Cage adicionou mais e mais à sua prática artística os

elementos da indeterminação e do acaso, com destaque para o I Ching – o livro das

mutações, que integrou todo um ferramental que criava condições para que se colocasse

em questão justamente a relação sujeito-objeto (artista-obra), de tal modo que

se há uma linguagem, uma língua ou um código, [e aqui adicionaríamos, uma


prática,] estes nascem juntos com o que dizem (...) [e vem daí] uma armadilha
para qualquer pessoa que queira se aproximar da música (...): a falsa pergunta
(...): o que que isto quer dizer? O que esta música representa? São falsas
perguntas cuja resposta simples é “nada”. (...) E o século XX, exagerando e
embaralhando o binômio forma e matéria, nos legou dois tipos de professor.
Primeiro o formalista que diz “a música é a expressão de uma forma”; depois
o apaixonado que realça: “a música fala da alma e da essência”” (FERRAZ,
2005, p. 21).

Para além pois da forma e da essência transcendentes, se convocamos a sociedade-

Cage, aludindo à sua ecologia (d)e práticas é precisamente porque, em favor da noção de

processo, a sua composição com a indeterminação e o acaso trouxe à mesa a questão de

como “fazer com que nossas ações intencionais sejam relacionadas às ações não-

intencionais do ambiente” (CAGE apud TERRA, 2000, p.74).

O que é dizer que, para conectarmos essa discussão ao início de nosso sub(e)strato,

a ecologia das práticas é uma ferramenta preciosa para colocarmos práticas e ações em

relação a partir de uma perspectiva que não é, como no caso de Cage, a do artista. Mas

efetivamente a perspectiva dos fluxos da vida, a perspectiva do mundo, dos mundos por-

vir.
95

E, se nas proposições cageanas os sons são simplesmente sons, ou seja, se nelas o

acontecimento-som é apenas um evento em um campo de potenciais que se interpenetram

c(a)osmicamente. O que interessa é que, nas próprias palavras de Cage,

o som está atuando. E eu amo a atividade do som. O que ele faz é ficar mais
alto e mais baixo, mais agudo e mais grave, mais longo e mais curto. Faz isso
tudo. E estou completamente satisfeito com isso. Não preciso que o som fale
comigo. Não vemos muita diferença entre tempo e espaço. Não sabemos onde
um começa e onde o outro para.13

Vemos, assim, como ao aproximar a ideia de feitura ao acaso, e não ao artista –

the author is not me, is chance (o autor não sou eu, é o acaso) diria Marcel Duchamp –,

Cage se distancia tanto de uma fenomenologia da escuta, quanto da psicologização tão

cara ao império da interioridade soberana do sujeito. De modo que há, então, “[n]ão uma

tentativa de entender algo que está sendo dito pois, se algo estivesse sendo dito, o som

seria o das palavras” (CAGE, 1961, p. 10, tradução nossa).

Mas de efetivamente atentarmos “apenas à atividade dos sons, donde aqueles que

estão envolvidos com o processo de composição encontram caminhos e meios para não

interferirem na atividade dos sons” (Id., p. 10, tradução e grifos nossos). O que é dizer

que, contrariamente à uma ideia mais recorrente de compositor, Cage não dita ou organiza

o que são os sons, mas é feito por eles, tanto quanto Pasteur e seu fermento.

Ao tomar a escuta, portanto, como um problema de preensão relativo à uma

máquina expressiva, isto é, relativo não à uma significação e sim ao fazer com que uma

força emerja de modo sensível, nos aproximamos mais uma vez não só de Whitehead e

sua crítica do puro sentir, como também das proposições de Latour que, ressoando tanto

Cage, quanto a filosofia do processo e todo seu ativismo, afirma que é preciso que

aceitemos que os acontecimentos sejam em parte sem causa especialmente porque,

[a]o ligar os humanos e os não-humanos, o princípio de simetria generalizada


(...) [estende] a noção de pessoa aos seres da natureza – panpsiquismo,
hilozoísmo – (...) ao contrário [de] mergulhar a invenção do homem no jogo

13
Transcrição de entrevista de John Cage no filme Écoute de Miroslav Sebestik. Tradução nossa.
96

mais ou menos previsível das causas – mecanismo, engenharia social. Como é


diferente se todas as entidades transbordarem, transcenderem, ultrapassarem
em parte suas causas, suas heranças, seus ascendentes! Os objetos da natureza
não oferecem mais, como único modelo ontológico, aquela exigência
opiniática, teimosa, obstinada da substância. Nada mais impede, portanto, de
atribuir-lhes um papel na fábrica do mundo humano. (op. cit., p. 22, grifo
nosso)

Ao atribuir, pois, aos não-humanos uma personalidade intencional que até então

era reservada apenas aos humanos, essa proposição simétrica inverte o princípio, o

principiar antrópico, “faze[ndo] os cientistas entrarem na história das coisas. [Ou seja,

n]ão apenas contar como os dinossauros desapareceram, mas como os paleontólogos

participam da própria história dos dinossauros: duas historicidades complementares, mas

distintas.” (Id., p. 22)

O deslocamento que nos interessa, então, seja na proposição de Latour, seja na

metafísica de Whitehead, é que ao atribuirmos um novo papel aos não-humanos e ao

abandonarmos a ideia de causalidade numa estrita relação com o par matéria-forma, nos

aproximamos da ideia de que uma

causa que não está em nenhum outro lugar senão no efeito que ela produz
quando presente, isto é, quando fomentada. E este efeito não é o de 'tomar
consciência' de algo que outros já sabiam, de compreender alguma verdade
além das ilusões - seu efeito é o de ativar [enact] a relação entre pertencer
[belonging] e tornar-se [becoming], produzindo pertencimento como
experimentação (STENGERS, op. cit., p. 195, tradução nossa, grifo nosso).

Estamos, assim, sempre “rio abaixo, rio a fora, rio adentro”” (ROSA, 1972, p. 56),

“executa[ndo] a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio”

(Id., p. 49): “rio abaixo, rio a fora, rio adentro”. Não há, pois, trilha, mas o próprio

caminhar, afinal, “caminhante, são teus rastros o caminho, e nada mais; caminhante, não

há caminho, faz-se o caminho ao caminhar. Ao andar faz-se o caminho, e ao olhar-se para

trás, vê-se a senda que jamais se há de voltar a pisar” (MACHADO apud CATALÃO,

2002).

Cada evento então, caso a caso, é em si uma causa, um caso-causa. Cage, por

exemplo, ao se abster de reduzir a multiplicidade dos acontecimentos-sons ao nosso


97

sistema de doze sons e de determinar a priori a relação entre eles – recusando-se a

expressar o que quer que fosse por meio dela e de realizar uma estrutura formal – , oferta,

a partir de sua ecologia de práticas, um campo, um habitat onde se efetua uma escuta que

não mais opera como receptora de uma música dada a priori, mas que, ressoando

Machado, age como um meio, como uma escuta compondo o que se ouve: “o caminho se

faz ao caminhar”.

O que nos interessa, portanto, é ofertar um meio para que as questões que

atravessam as práticas alimentares possam se abrir e se avizinhar, quiçá se engraçar, com

uma outra ecologia. O que é dizer que cultivar e polinizar essa eco-lógica que nos é tão

cara é, fundamentalmente, questionar o que mais as práticas alimentares podem ser ao

serem expostas a um outro habitat, a um meio que as deslocam de seu tradicional habitat

historicamente conhecido e empanturrado por questões nutricêuticas e biomédicas.

O que não é dizer, tenhamos isto claro, que se trata aqui de atacar ou destruir as

perspectivas do campo da saúde acerca desta problemática. Trata-se, pelo contrário, de

nos perguntarmos, ao “assumirmos a coexistência e o co-tornar-se como o habitat das

práticas” (MASSUMI apud STENGERS, op. cit., p. 183, tradução nossa), o que uma

prática pode, em ato, a partir da composição com outras ecologias, com outros habitats,

com outros mundos, com outros avizinhamentos e com outros agenciamentos.

Ou ainda, em meio à uma identidade emergente que, para lembrarmos de Nicolau

Cusa, remete ao possest: “a identidade da potência e do ato pelo qual se define alguma

coisa (...) [que] não [se] defin[e] (...) por sua essência, o que ela é, [mas] (...) por esta

definição bárbara, o seu possest: o que ela pode. Literalmente: o que ela pode em ato”

(DELEUZE, 1980)

E, com isso, perguntarmos também, especialmente com nossa cartografia em

mãos, como a problemática da alimentação devém com elas, ou seja, como ela se
98

transforma, pragmaticamente, no encontro com este outro seja do pensamento, seja de

suas próprias práticas. De tal modo que a pergunta mais preci[o]sa é, ao assumirmos que,

como dito anteriormente, o que é preciso saber é justamente o que não se sabe: o que mais

ela pode [ser], ontogeneticamente, a partir do e no meio?


99

5.2. C(a)ósmicas: da natureza ao cosmos

Life lurks in the interstices of each living cell


and in the interstices of the brain.
Alfred North Whitehead

Levantando voo do ninho, as asas de outro


pássaro não servem.
John Cage

Não há, assim, prática que seja desconectada de toda uma ecologia de práticas e,

seguindo nesta mesma toada, podemos dizer também que não há uma epistemologia que

não seja tributária de uma ontologia ou, mais ainda, de uma certa cosmo-lógica, da qual,

inclusive, o próprio campo de potenciais que nutre uma prática emergente é correlato.

A fim de seguirmos nessa toada, recuperemos nossa discussão sobre o binômio

Natureza-Cultura, mas agora tomando como ponto de partida a noção de natureza. Noção

essa que, em um primeiro momento, poderia até parecer mais simples de ser abordada,

dado um entendimento mais usual e uma ideia mais geral do que ela pode ser: o fogo, a

água, a terra, o ar, o vento, as pedras, as árvores, os animais, as plantas. Ou seja, o meio

ambiente e toda a miríade de formas de vida que pudermos encontrar nele.

Ora, certamente esse é um modo de enunciar o que é a natureza, todavia, existe

ainda um outro modo: aquele que a toma como uma força, como uma força expansiva

que cresce e subjuga o que estiver à sua frente. Uma força da qual devemos nos proteger

à guisa de risco de vida, como o caso de furacões, tufões, tsunamis e outras intempéries.

No entanto, se considerarmos os princípios clássicos da física e suas leis

fundamentais, não há distinção entre estes dois entendimentos da natureza: a natureza é,

categoricamente, o produto universal da interrelação entre moléculas, ou melhor, entre

distintas entidades sobre determinadas condições normais que configuram exatamente o

que podemos nomear como Natureza.

A rigor, o que se nota já de saída é que, tal qual como ocorre com a palavra fome,

há uma abertura no sentido do conceito de natureza ou, nos termos de Whitehead, há uma
100

bifurcação da natureza (1978): existe uma natureza que é subjetiva e uma outra que é

objetiva. Essa é atrelada à visão universal da ciência sobre o universo e seus princípios,

enquanto aquela, à nossa ideia mais usual de natureza como meio ambiente; essa atrelada

à uma certa verdade universal sobre o que é o universo e a natureza ela mesma, e aquela

às nossas percepções e valores parciais e subjetivos.

Esta bifurcação, diria ainda Whitehead, é o que sustenta práticas científicas nos

mais diversos campos, que se nutrem, não por acaso – literalmente –, dessa mística da

objetividade e da causalidade soberana de uma natureza conhecível, mensurável e

governável.

O que alimenta também uma série de empreitadas teórico-práticas na Saúde que

ressoam essa bifurcação entre uma natureza que media e que comunica e uma natureza

mediada e comunicada (Cf. MURPHIE, 2019, p. 22), como se a percepção humana desse

conta de apenas um tipo de natureza, essa natureza apreensível, enquanto o mundo além

dela daria conta de uma outra, uma natureza apreendida.

O que nos remete ao próprio fato de que há uma tendência em nossas práticas de

se separar o sujeito do encontro, das próprias ecologias emergentes em um encontro, isto

é, de se separar a matéria, o próprio conceito de matéria de sua percepção. Como se

houvesse uma fragmentação da experiência onde germinasse uma diferença essencial e

distintiva entre “a natureza apreendida na consciência e a natureza que é a causa da

consciência” (WHITEHEAD, 1968, p. 30).

E que, no mesmo sentido, extirpa e extrai, disciplinarmente, aquilo que é

conhecível da eco-lógica operativa que o produz, o alocando e o isolando do campo

relacional do qual é tributário e germinal. A exemplo da própria tecnologia hospitalar,

para lembrarmos de Foucault (1979), que nos mostra como, em meio à reorganização

hospitalar ocorrida no século XVIII, se vê


101

o aparecimento de uma disciplina hospitalar que terá por função assegurar o


esquadrinhamento, a vigilância, a disciplinarização do mundo confuso do
doente e da doença, como também transformar as condições do meio em que
os doentes são colocados. Se individualizará e distribuirá os doentes em um
espaço onde possam ser vigiados e onde seja registrado o que acontece; ao
mesmo tempo se modificará o ar que respiram, a temperatura do meio, a água
que bebem, o regime, de modo que o quadro hospitalar que os disciplina seja
um instrumento de modificação com função terapêutica. (pp. 62-63)

Para além, pois, desta distinção entre uma natureza viva (a nature alive) e uma

natureza sem vida (a nature lifeless), assumimos, como buscamos evidenciar, a

perspectiva whiteheadiana onde não se separa o sujeito emergente da experiencia.

Justamente porque, para Whitehead, a percepção é efetivamente uma parte do mundo, ou

seja, ela não diz respeito à uma natureza distinta, mas ao cosmos.

O que implica tanto a abolição dessa distinção e desse isolamento, quanto a

própria implicação de uma dimensão (e uma) cosmo-lógica em sua filosofia, a ponto de

o próprio subtítulo de “Processo e Realidade” (1978), uma de suas principais obras, ser

exatamente “Um Ensaio sobre Cosmologia”.

Mais do que isso, dizermos cosmologia na perspectiva da filosofia do processo é

dizermos, como nos mostrou Stengers, fundamentalmente duas coisas: uma que é que

agora tudo que existe importa (lembremos da panificação); e outra é que o Cosmos não é

somente um apanhado de tudo o que existe, ele não é um mero sinônimo de universo. Ele

é, efetivamente, algo com um valor inerente a si mesmo: sua criatividade (lembremos da

florestidade).

E dizer que ele possui esse valor inerente a si é dizer, de outro modo, que aquilo

que existe é, nesta perspectiva do processo, parte de uma aventura cósmica. O que é

consideravelmente diferente de dizer, claro está, que o que o pensamento deve fazer é,

segundo uma certa perspectiva científica, se debruçar sobre a ordem da natureza e das

coisas.
102

Se o pensamento de Whitehead produz, então, algum deslocamento nesse ponto é

precisamente porque seu construtivismo nos permite formular questões ético-metafísico-

(cosmo)políticas das mais nutritivas: o que é que acontece quando tudo efetivamente

importa e tudo tem valor? Ou, dito de outra maneira, o que é que importa em cada um

desses modos de abstração? O que é que muda ao nos engajarmos com cada um deles?

Quais os valores em questão? O que é que vale, então, quando dizemos que somente a

ordem da natureza importa? O que é que importa, em um outro sentido, quando é o

cosmos que está na mesa?

O ponto, portanto, é que se o que importa muda, necessariamente os conceitos

também precisam se transformar, bem como aquilo que é valorizado na vida, aquilo que

cabe ou pode se expressar no mundo (BUTLER, 2015) e que, no limite, cultiva outro(s)

mundo(s).

Tomemos como exemplo dois eventos que contrabandearemos novamente do

nosso avizinhamento com a etnologia e a história e que nos ajudarão a engrossar essa

discussão, tanto quanto a introduzir alguns ingredientes que usaremos futuramente em

nossa discussão.

O primeiro exemplo trata de uma anedota presente em “Tristes Trópicos” onde

Lévi-Strauss (1999) remete aos encontros ocorridos no século XVI entre indígenas e

espanhóis nas Grandes Antilhas, bem no período de invasão das Américas, nome, a

propósito que é já herdeiro e tributário desse processo colonial de invasão pela, para

lembrarmos de Caetano Veloso, máquina mercante vinda da Europa. Diz Strauss que:

[n]as Grandes Antilhas, alguns anos após a descoberta da América, enquanto


os espanhóis enviavam comissões de inquérito para investigar se os indígenas
tinham ou não uma alma, estes se dedicavam a afogar os brancos que
aprisionavam, a fim de verificar, por uma demorada observação, se seus
cadáveres eram ou não sujeitos à putrefação. (p. 384)
103

Bom, com isto posto e não perdendo de vista que uma das questões centrais da

ecologia de práticas é a de ofertar um outro habitat para uma prática para que ela possa

transformar-se, agora, sob esta perspectiva construtivista e à luz desta anedota, mais do

que nunca se trata também de assumir não só que temos que cuidar de nossos modos de

abstração, como precisamos de novos modos para evidenciarmos aquilo que importa

quando os conceitos mudam.

O que no caso de nossa anedota corresponde ao fato de que nesse encontro entre

diferentes cosmologias, entre diferentes práticas de conhecimento, os modos de abstração

sobre a humanidade do Outro se transformaram completamente. Dado que o próprio

conceito de humano, bem como o que efetivamente importa no cosmos mudou

indiscutivelmente: enquanto para os europeus a questão era saber se os indígenas

possuíam alma (são eles animais?); para estes o que estava em jogo era saber justamente

se os europeus tinham corpo (são eles espíritos?).

Se para uns, pois, todos tinham corpo e o que estava em questão era a alma, para

os outros, todos tinham alma, mas o que estava em questão era que tipo de corpo o outro

tinha. E não por acaso, e este é o ponto que nos interessa neste momento, ambas as

cosmologias convocaram distintas práticas de investigação precisamente porque o que

interessava, o que valia, não era a mesma coisa, pelo contrário: os conceitos eram

definitivamente outros.

Um outro exemplo, mais contemporâneo, remete a um episódio ocorrido em 1996,

quando Umoro, jovem indígena da etnia Kayapó, filho mais velho de Raoni, líder dos

Kayapó Mentuktire, foi encontrado morto próximo à Base Jacaré no Parque Nacional do

Xingu.

Umoro havia sido enviado ao Parque para morar com os Kamayurá afim de ser

tratado pelos seus xamãs daquilo que os médicos não-indígenas diagnosticaram como
104

epilepsia e que, em um outro momento, anos antes, havia feito com que Umoro fosse

acusado de ter matado dois índios em sua aldeia natal, há 500 km do Xingu, na reserva

Capoto Jarina, no estado do Pará.

Inicialmente, segundo o diagnóstico médico não-indígena, indicou-se que Umoro

havia morrido em decorrência de um de seus já conhecidos ataques epiléticos. Contudo,

havia duas versões para o ocorrido: uma era a de Raoni e Megaron, mentuktire que à

época trabalhava junto à Fundação Nacional do Índio e era sobrinho uterino de Raoni, e

a outra a de Tacumã, pajé Kamayurá do Xingu e de Kotok, seu filho.

Enquanto estes defendiam que Umoro havia saído para pescar sozinho e que de

fato havia morrido por conta de um acidente fruto de um de seus ataques (que fez com

que ele caísse no rio e morresse afogado); Raoni e Megaron acusavam os Kamayurá de

assassinato, pois não só havia marcas no rosto de Umoro que indicavam que ele poderia

ter morrido com uma flechada ou com um tiro. Como, mais do que isso, havia também

indícios de feitiçaria, indícios esses corroborados pelo fato de que os Kamayurás não

avisaram Raoni da morte de seu filho e tampouco tentaram encontrar seu corpo, que foi

achado pelo próprio Raoni dias depois, boiando em um rio no interior do Xingu.

Esse acontecimento gerou tamanha tensão intergrupal que os Kayapó estavam em

pé de guerra, a ser declarada mediante os resultados de uma pajelança que seria feita no

local onde o corpo de Umoro foi encontrado após o período de luto mentuktire e

determinaria seja a causa de sua morte, seja os próximos passos a serem tomados. E que,

dada a acusação de Raoni e Megaron, e a possibilidade de a morte ter sido provocada pela

feitiçaria Kamayurá, caminhavam na direção da vingança dos Kayapó.


105

Curiosamente, o evento se espalhou tanto que chegou até às manchetes do jornal

Folha de São Paulo14 para onde, dias depois, Megaron enviou uma carta ventilando sua

versão dos fatos ocorridos com Umoro. Dizia Megaron em sua carta, e aqui cito relato de

Viveiros de Castro, que:

[o] rapaz morreu porque foi enfeitiçado pelos Kamayurá. É verdade que ele
matou duas pessoas antes de morrer, mas isso foi porque ele achou que estava
matando animais; os pajés (...) deram um cigarro para ele e ele achou que
estava matando bicho. Quando voltou a si, viu que eles eram humanos e ficou
muito triste. (apud SZTUTMAN, 2008, p. 35)

E o que este exemplo nos mostra? A rigor, convocando uma ideia muito cara ao

conceito de cosmologia, que aquele que pensa está absolutamente implicado na natureza,

sem distanciamento. Diferentemente de uma perspectiva que cinde sujeito e objeto, que

cinde natureza e cultura, e onde a natureza está aí para ser conhecida, descoberta e

abstraída pelo pensamento, pela cultura.

Ou, mais precisamente, por diferentes culturas que se debruçam sobre um mesmo

e único mundo, sobre um mesmo e único objeto: a natureza, que varia a partir de uma

lente cultural, de um perspectivismo multiculturalista.

Outro motivo é porque ele, assim como o nosso primeiro exemplo, ao pôr

cosmologias distintas em relação, evidencia tanto diferentes modos de abstração e as

relações entre eles – como no caso dos kamauyrá, cujo modo de pensamento aliou-se ao

modo, à ciência, não-indígena –, quanto o contraste entre diferentes práticas que, mesmo

que estejam tratando de um mesmo evento, convocam e operam repertórios distintos, e

efetivamente co(i)mplicam o mundo e, no limite, a existência de outros mundos possíveis

(pensemos na pajelança e no xamanismo).

Como por exemplo no caso dos Krenak que, entre tantos outros povos indígenas

no Brasil, tem vivido uma escalada nas tensões com o Estado brasileiro e suas políticas.

14
Cf. https://documentacao.socioambiental.org/noticias/anexo_noticia/36219_20160608_145657.pdf.
Acesso em 05/02/2021.
106

Políticas estas que, em muitos sentidos, contribuem e lançam condições para um projeto

de exaustão da natureza que, no caso dos Krenak, desaguou em novembro de 2015 no

crime de Mariana, quando a barragem do Fundão – mineradora de propriedade da

Samarco, controlada pelas multinacionais Vale e BHP Billiton – rompeu e lançou rejeitos

de mineração ao longo do rio Doce, desencadeando efeitos imediatos e a médio e longo

prazo na vida dos Krenak e de outras milhares de pessoas.

E se destacamos o caso dos Krenak é justamente porque em sua cosmovivência o

rio Doce, “que nós, os Krenak, chamamos de Watu, [é] nosso avô, é uma pessoa, não um

recurso, como dizem os economistas. Ele não é algo de que alguém possa se apropriar; é

uma parte da nossa construção como coletivo que habita um lugar específico” (KRENAK,

2019, p. 21). O que implica que os efeitos de todo o material tóxico que desceu da

barragem de Mariana não só deixaram os Krenak “órfãos e acompanhando o rio em coma

(...)[, como] atingiu as [suas] vidas de maneira radical, [os] colocando na real condição

de um mundo que acabou.” (Id., p. 22)

Mundo este onde falar de natureza é falar, portanto, não a partir de uma bifurcação

que nos separa da natureza, mas efetivamente de um cosmum, de um modo de pensamento

e de vida, onde, não só o sagrado conta, como a natureza é outra coisa, bem como o

humano. O que evidencia, mais uma vez, como os conceitos são outros, a exemplo do

próprio nome krenak:

[que] é constituído por dois termos: um é a primeira partícula, kre, que significa
cabeça, a outra, nak, [que] significa terra. Krenak é a herança que recebemos
dos nossos antepassados, das nossas memórias de origem, que nos identifica
como “cabeça da terra”, como uma humanidade que não consegue se
conceber sem essa conexão, sem essa profunda comunhão com a terra. (Ibid.,
p. 24)

Nessa conexão e nessa comunhão, pois, a natureza não é aquilo que está lá,

despersonalizado, como recurso e matéria para a atividade industrial, extrativista e

científica, ou seja, “[n]ão [é] a terra como um sítio, mas como esse lugar que todos
107

compartilhamos” (op. cit., p. 24) e que vai, muito além, portanto, de todo um modo de

abstração a partir do qual, reitera Ailton Krenak,

excluímos da vida, localmente, as formas de organização que não estão


integradas ao mundo da mercadoria, pondo em risco todas as outras formas de
viver — pelo menos as que fomos animados a pensar como possíveis, em que
havia corresponsabilidade com os lugares onde vivemos e o respeito pelo
direito à vida dos seres, e não só dessa abstração que nos permitimos constituir
como uma humanidade, que exclui todas as outras e todos os outros seres. Essa
humanidade que não reconhece que aquele rio que está em coma é também o
nosso avô, que a montanha explorada em algum lugar da África ou da América
do Sul e transformada em mercadoria em algum outro lugar é também o avô,
a avó, a mãe, o irmão de alguma constelação de seres que querem continuar
compartilhando a vida nesta casa comum que chamamos Terra. (op. cit., pp.
23-24, grifos nossos)

Pois bem, se antes estávamos falando de contrastes, é justamente porque estes

contrastes entre diferentes modos da experiência evidenciam como o que importa, o que

está em jogo em cada situação, e o que cabe na vida é absolutamente diferente. O que

transforma, literalmente, tanto os conceitos em jogo, quanto os seres e os cosmos em

questão, como no caso da narrativa de Ailton e na explicação de Megaron, que recorre a

um argumento que embaralha radicalmente as fronteiras entre natureza e cultura, entre

humano e não-humano.

O que nos remete também, vale dizer, à própria proposição da escultura ambiental

e ao borramento entre corpo e terra que ela cultiva. O que reforça ainda mais o nosso

ponto de que, ao nos situarmos nos limiares entre epistemologia e ontologia, entre modos

de conhecimento e modos de experiência, especialmente na relação com os saberes e as

cosmologias indígenas, os conceitos precisam ser outros, afinal:

tudo mudou. Os [pensamentos] selvagens não são mais etnocêntricos, mas


cosmocêntricos; em lugar de precisarmos provar que eles são humanos porque
se distinguem dos animais, trata-se agora de mostrar quão pouco humanos
somos nós, que opomos humanos e não-humanos de um modo que eles nunca
fizeram: para eles, natureza e cultura são parte de um mesmo campo
sociocósmico. Os ameríndios não somente passariam ao largo do Grande
Divisor cartesiano que separou a humanidade da animalidade, como sua
concepção social do cosmos (e cósmica da sociedade) anteciparia as lições
fundamentais da ecologia, que apenas agora estamos em condições de
assimilar. Antes, ironizava-se a recusa, por parte dos índios, de conceder os
predicados da humanidade a outros homens; agora se sublinha que eles
108

estendem tais predicados muito além das fronteiras da espécie (VIVEIROS DE


CASTRO, 1996, p. 234)

O que é dizer, em outros termos, que nestes exemplos as ações cosmo-pragmáticas

cultivadas em cada um deles co(i)mplica o pensamento sobre o problema da natureza,

sobre o problema do multiculturalismo, sobre o problema das práticas e da agência dos

não-humanos. O que cascateia, no fim das contas, em uma série de implicações na própria

temática do comportamento, que está embebida em toda essa discussão ontológico-

epistemológica que, obviamente, é eminentemente central para nossa investigação.

Mais do que isto, se buscamos trazer tais exemplos é porque essa perspectiva

construtivista que atravessa a cosmologia do processo e que nos nutre trata, ao invés de

uma mera crítica, de trazer elementos para criarmos modos de pensamento ou, para

usarmos os termos de Whitehead, de abstração mais complexos e apetitosos.

Apetitosos no sentido mesmo, inclusive, de cultivar modos de experiencia e de

abstração que estejam, como apontamos em outra ocasião, a favor da vida e que não

anulem a perspectiva do outro, sua posição e seu mundo, bem como a própria perspectiva

do mundo. O que implica, a rigor, em cultivarmos e polinizarmos modos de engajamento

onde, ao invés do julgamento, questiona-se: “o que essa posição torna importante?; quais

aspectos tem importância [nela]?; como eles importam? como isso justifica a negligência

[frente aquilo que] não importa? quais são as consequências de tais justificativas?”

(STENGERS, op. cit., p.193, tradução nossa)

O cosmos do processo não busca, assim, uma verdade absoluta a ser descoberta e

desvelada. Pelo contrário, ele se presta a ofertar um dispositivo conceitual a partir do qual

podemos fomentar essa aventura do pensamento a fim de ampliarmos o próprio cosmos.

Afinal, se há alguma coisa que é central para um pensamento processual é, como vimos

também, justa e precisamente a novidade, a diferença, uma relevant novelty, diria

Whitehead.
109

Em uma perspectiva que não se orienta, portanto, pela busca de contradições, mas

sim pelos contrastes existentes entre potenciais, a questão em jogo é exatamente a de se

perguntar quais são as outras possibilidades ou, mais exatamente, quais são as

possibilidades ainda não realizadas?

E fazer esta pergunta visa justamente a criação de uma abertura, de uma

ampliação. Ampliação esta onde, ao invés de se reduzir o mundo e as suas possibilidades,

promovendo um fechamento e um enclausuramento ontológico, a cosmo-lógica do

processo busca germinar um campo de potencias onde a questão é sempre a de não limitar

a experiência ao atualizado, mas ao que mais é possível.

O que implica, desta forma, em operarmos por meio da irredutibilidade do

possível em uma metafísica que afirma que tudo o que existe deve ser considerado não

essencialmente pela sua duração, pela sua persistência, mas pelo seu devir: como a

atualização de um potencial que produz uma diferença, um contraste entre o que poderia

ter sido e o que será.

O que é dizer em outros termos que na cosmologia do processo o fundo comum

de todas as entidades é a criatividade do cosmos, de tal forma que o que existe é uma

criatura de criatividade, é algo irredutivelmente novo, especialmente porque, como

dissemos anteriormente, “nós estamos no mundo e o mundo está em nós”

(WHITEHEAD, 1968, p. 227; tradução nossa).

E é a esse nós que está no mundo, quer dizer, é a esse isso que existe que

Whitehead nomeia como entidades atuais (actual entities): entidades que transformam a

potencialidade em sua própria atualização e cujo papel na metafísica whiteheadiana é

precisamente o de criar um apetite pela relevância a partir de uma perspectiva do

potencial. Relevância esta que não diz respeito à entidade em si, mas efetivamente ao

modo como ela satisfaz seu processo de devir.


110

A pergunta que interessa, assim, é menos de ordem identificatória, causal e

classificatória. Ao invés, então, de nos perguntarmos por que, perguntemos: como?

Afinal, para Whitehead, o modo como uma entidade atual devém é precisamente aquilo

que a constitui, que define o que ela é (Id., p. 23).

E por que esta é uma questão relevante? Porque ao assumir que uma entidade não

pode ser explicada por outra, e que nada pode ser explicado a partir de um argumento

baseado na liberdade, ou seja, na autodeterminação de uma entidade, produz-se um

deslocamento no conceito de atualização, que passa a ser tributário da criatividade do

processo, e não da bifurcação da natureza.

Esse deslocamento, ademais, priva qualquer causa do poder de definir o processo

de uma entidade, protegendo qualquer devir contra a sua redução imediata à uma função

de outra coisa. Como se, por exemplo, reduzíssemos as potencias de uma prática à uma

única função ou um certo conjunto de ingredientes à uma única receita de bolo, como no

caso de nosso bolo de chocolate.

E, com efeito, se essa discussão nos parece tão saborosa é porque, de um lado, ela

não assume que uma coisa, seja lá qual for ela, existe de antemão. E, por outro lado, que

ela não só não existe de antemão, como ela também não é soberana. Quer dizer, não há

uma coisa ou um sujeito decisivo, posto que, no fim das contas, o sujeito é uma

perspectiva do mundo, uma perspectiva da criatividade da natureza.

A rigor, então, a ideia de determinação é atravessada, em Whitehead, tal qual em

Cage, não só pela ideia de algo como uma dessubjetivação, como também do próprio fato

de que, se tudo é produção criativa, a determinação necessita da inserção de um

coeficiente de indeterminação, de uma acaso-ística. De tal modo que qualquer processo é

uma oportunidade para um novo devir, para uma transformação original, por mais mínima

que ela seja: tal qual a orelha do pão.


111

Não por acaso, a fórmula da cri/atividade whiteheadiana é “o múltiplo se torna um

e é (a)crescido pelo um” (1968, p. 21, tradução nossa): n+1. Ou ainda, para lembrarmos

de uma passagem de Cage que parafraseamos em um outro momento: não há som que

tema o silêncio que o extingue, do mesmo modo que não há silêncio que não esteja

grávido de outros sons. Isto é, não há forma atualizada que não esteja implicada no

processo de devir[-outro].

Se não há, assim, produção da existência que não signifique a produção do novo,

ao abrir mão de uma organização prévia do que a vida pode ou deveria ser, aquilo que

fabrica uma transformação é da ordem da novidade, não da modificação de algo

previamente determinado e organizado ou ainda de um modo de determinação já

sedimentado. O que interessa, então, para lembrarmos do início de nossa conversa, não é

uma ordem em si, uma organização per se, mas a capacidade que uma entidade tem de

abrigar e canalizar novidades a fim de criar uma nova ordem, uma nova composição, uma

nova sociedade.

Esta mirada implica, deste modo, que as questões sejam postas sempre em relação

às condições necessárias para que a novidade, para que a criatividade e a aventura do

cosmos possam se expressar. Não se trata, neste sentido, de uma lógica da modificação

ou da adaptação via conformação de um elemento, muito pelo contrário. Há sempre um

contraste intenso entre o que é e o que pode ser: ontogênese.

Outra pergunta fundamental, do mesmo modo, é justamente aquela que busca

avaliar o que é que bloqueia um processo, aquilo que interrompe um fluxo de devir, ou

seja, que organiza as relações de uma tal maneira que não só torna o campo de potenciais

infértil, como também poda qualquer novidade pela raiz.

Pensemos, por exemplo, na palavra fome que, como comentamos brevemente no

início deste estrato, também é alvo de uma certa bifurcação em seus sentidos: de um lado,
112

uma fome que se aproxima de uma ideia de necessidade, correlata à uma base mais

material do alimentar-se, do nutrir-se, etc.; e, do outro, uma fome que se aproxima de uma

ideia de desejo, correlata, por sua vez, ao menos inicialmente, à vontade de comer.

A título de exercício pragmático-especulativo, tomemos o contraste entre os

múltiplos sentidos de fome que podemos encontrar a partir das fomes que atravessaram o

Restauro e da fome que alimenta o citado segundo Objetivo do Desenvolvimento

Sustentável que integra a Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas, tanto quanto

dos mundos e dos processos que elas alimentam ou que, no limite, incidem sobre.

O ODS #2, por exemplo, visa precisamente “acabar com a fome, alcançar a
15
segurança alimentar e melhoria da nutrição e promover a agricultura sustentável” e,

não por acaso, ele convoca e opera sobre um sentido mais corrente de fome. Bem como

arregimenta práticas mais usuais ligadas a esta temática – sejam elas científicas, políticas,

sociológicas, alimentares, nutricionais, etc. –, e que nos remetem, imediatamente, aos três

movimentos que abordamos anteriormente e que dizem respeito à consolidação do campo

da Alimentação e Nutrição no país e sua composição com a Saúde Coletiva.

E, ora, se lá pudemos notar como as problemáticas da fome, da desnutrição e do

comer foram se transformando ao longo da história destes campos, assim como o próprio

campo problemático onde elas estão implicadas, é importante não perdermos de vista que

o que nos interessa é não anular, determinar ou organizar de antemão um campo de

potenciais. No nosso caso, um campo de potenciais relativo às próprias potências da fome

e à todas as perguntas que fizemos ao final de Pro(to)cedências: escu(l)t(ur)as

alimentares.

15
Para mais, cf. https://nacoesunidas.org/pos2015/agenda2030/. Acesso em 12/02/2021.
113

Se, então, como disse Artaud, não podemos perder na mera vontade de comer as

potências da fome, não podemos também ignorar, para pormos em ressonância o como

de Whitehead e o como de Foucault, que essa bifurcação nos sentidos da palavra fome

não está desconectada de toda a positividade que atravessa o próprio acontecimento-

problema fome.

Quer dizer, ela não está desconectada de todos os efeitos que gera e que permitem,

ao estabelecermos uma aliança com as práticas genealógicas foucaultianas, senão

evidenciar, ao menos explorar e questionar, aquilo que governa este acontecimento e que,

no limite, regula um processo de devir, enclausurando, assim, um mundo que, diria

Artaud, tem fome.

Retomemos, pois, alguns dos estudos histórico-políticos de Foucault que nos

fornecem um outro horizonte problemático ao se debruçarem sobre os dispositivos de

segurança que emergiram na Europa nos séculos XVII e XVIII, justamente quando se

passou a entender que,

[n]o fundo, o flagelo, a escassez alimentar (...) era um fenómeno ao mesmo


tempo individual e coletivo: as pessoas passavam fome, populações inteiras
passavam fome, a nação passava fome, e era precisamente isso, essa (...)
grande abrangência do acontecimento que constituía seu caráter de flagelo.
Ora, (...), o que vai acontecer? Vai acontecer que, no fundo, o acontecimento
será dissociado em dois níveis. De fato, (...) graças à supressão do jugo
jurídico-disciplinar que enquadrava o comércio de cereais (...), a escassez
alimentar se torna urna quimera. Patenteia-se que, de um lado, ela não pode
existir e que, quando existia, longe de ser urna realidade (...), nada mais era
que o resultado aberrante de certo número de medidas artificiais, elas mesmas
aberrantes. (2008a, pp. 54-55, grifo nosso)

É, então, precisamente na relação entre o governo e o acontecimento-problema

fome que podemos notar que esta bifurcação nos seus sentidos acontece correlatamente à

uma outra dissociação também bifurcante que envolve, por sua vez, tanto uma série de

apostas e investimentos políticos – micro, meso macro e cosmopolíticos – que estão

presentes no ato de determinar as origens e as categorias que compõem o acontecimento-


114

problema fome, bem como sobre as tecnologias que buscaram conforma-lo, coloniza-lo,

disciplina-lo, domestica-lo e regula-lo.

O que é dizer, em outros termos, que a transformação da fome em uma quimera

aponta para o fato de que também foram se criando condições para a emergência de, para

seguirmos ressoando Foucault, um novo modo de exercício do saber-poder biomédico

cuja principal novidade foi a criação de um outro modo de abstração, de uma outra

maneira de se relacionar com a fome. Afinal,

[d]esde então (...) já não há escassez alimentar. Não vai mais haver escassez
alimentar como flagelo, não vai mais haver esse fenómeno de escassez, de
fome maciça, individual e coletiva que evolui exatamente ao mesmo passo e
sem descontinuidade, de certo modo, nos indivíduos e na população em geral.
Agora já não há escassez alimentar no que concerne à população. Mas o que
isso quer dizer? [Quer dizer que] já não haverá escassez alimentar em geral,
desde que haja para toda urna série de pessoas, em toda urna série de
mercados, urna certa escassez, urna certa carestia, (...) uma certa fome, por
conseguinte, e afinal de contas, é bem possível que algumas pessoas morram
de fome. Mas é deixando essas pessoas morrerem de fome que se poderá fazer
da escassez alimentar urna quimera e impedir que ela se produza com aquele
caráter maciço de flagelo que a caracterizava nos sistemas precedentes. (...)
A escassez-flagelo desaparece, mas a escassez que faz os indivíduos morrerem
não só não desaparece, como não deve desaparecer” (Id., pp. 55-56, grifos
nossos)

Ao considerarmos, assim, estes dois níveis de fenómenos que Foucault nos mostra

– o nível da população e o nível da multiplicidade de indivíduos –, vemos como

estabelece-se também uma cesura entre o nível pertinente de ação econômico-política do

governo (relativo à população), e o nível da administração (relativo à série de indivíduos),

que:

só será pertinente na medida em que, administrado devidamente, mantido


devidamente, incentivado devidamente, vai possibilitar o que se pretende obter
no nível da população, este sim, pertinente. A multiplicidade dos indivíduos já
não é pertinente, a população, sim. [Entretanto,] essa cesura não é urna cesura
real. Não vai haver urna coisa e outra. Mas é no próprio interior do saber-
poder, no próprio interior da tecnologia e da gestão económica que vamos ter
esse corte entre o nível pertinente da população e o nível não-pertinente, ou
ainda, o nível simplesmente instrumental. (...) O objetivo final vai ser a
população. [Ela] é pertinente como objetivo, e os indivíduos, (...) a
multiplicidade dos indivíduos, esta não vai ser pertinente como objetivo. Vai
ser simplesmente pertinente como instrumento, intermédio ou condição para
obter algo no nível da população. (Ibid., p. 56)
115

Isto implica, deste modo, uma lógica biopolítica16 (Cf. FOUCAULT, 1979, 1988,

1999) que não só varre a ideia de devir do mapa como, efetivamente, governa e administra

o acontecimento-fome de um tal modo que estas práticas de governo e dominação

reconfiguram-se e reatualizam-se na contemporaneidade por meio de instrumentos como

o próprio Mapa Mundial da Fome17, que inclui países onde ao menos 5% de sua

população ingere menos calorias do que o recomendável pelos padrões internacionais e a

Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA), utilizada pelo IBGE.

Instrumentos estes que podem ser tomados, sob esta perspectiva biopolítica, como

dispositivos que não só operam um certo tipo de racismo em certos cortes populacionais

(Cf. FOUCAULT, 1999), como são também responsáveis por ativar o mecanismo de

gestão das taxas e do nível instrumental citado por Foucault em seus estudos.

Posto isto, e muito embora não pretendamos mergulhar em uma análise biopolítica

da fome aqui, neste momento, tomamos a liberdade de fazer este breve comentário pelo

fato de que há pouco o Brasil era considerado um país de referência em políticas sociais

de combate à fome seja pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a

Agricultura (FAO), seja pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS)18, que

defendiam, inclusive, que o país poderia atingir a fome zero até o ano de 2030.

16
Vale situarmos que biopolítica não é um conceito estanque e encerrado em si mesmo, muito pelo
contrário. Em suas iterações mais comuns na filosofia contemporânea, ele procede dos estudos histórico-
políticos de Michel Foucault, mas seu desenvolvimento, seus usos, seus sentidos e sua problematização
floresceram mesmo após a morte deste pensador que, ainda assim, é nosso ponto de partida (Cf.
FOUCAULT, 1979, 1988, 1999). Ademais, vale indicar também que este ferramental, ainda que estranho
ou intragável em um primeiro momento para alguns, não só já têm se avizinhado da produção crítica acerca
da problemática da alimentação e da nutrição nos campos da Saúde Coletiva e da própria Alimentação e
Nutrição (Cf. BOZI, 2009, 2015; BOSI; PRADO, 2011; KRAEMER et al., 2014), como opera
deslocamentos potentes para pensarmos questões caras ao campo da Saúde.
17
Ver https://brasil.elpais.com/brasil/2018/07/14/politica/1531600016_303294.html?id_externo_rsoc
=FB_BR_CM. Acesso em 15/07/2018.
18
Cf. “Panorama da Segurança Alimentar e Nutricional na América Latina e no Caribe 2017”, disponível
em http://www.fao.org/3/a-i6977o.pdf. Acesso em 12/02/2021.
116

Defesa esta que se ancorava na saída do Brasil do Mapa Mundial da Fome da

ONU, bem como em uma série de narrativas de cientistas, de estatísticos, de outras

organizações internacionais e do próprio Estado que enunciavam que a fome não era mais

um problema no país.

Todavia, contrariamente a tudo isto e cavalgando a experiencia necroliberal do

Brasil contemporâneo, ultimamente entidades da sociedade civil, setores da mídia, setores

da academia e uma série de narrativas individuais19 passaram a evidenciar como a fome

voltou a assombrar o país em meio à crise que o atravessa e que compõe a própria

governamentalidade contemporânea. (Cf. FOUCAULT, 1979, 2008)

Especialmente no cenário que emergiu com a pandemia e que avança a passos

largos no sentido de não só garantir o lugar do país no Mapa Mundial da Fome como,

efetivamente, de consolidá-la como um dos produtos de maior destaque da experiencia

do necroliberalismo brasileiro20.

Experiencia esta que, por sua vez, indica seja a consolidação de deslizamentos nas

tecnologias do poder que reconfiguram a tensão entre fazer viver, fazer morrer e deixar

morrer de uma tal forma que, como dissemos em outra ocasião (Cf. MILONOPOULOS,

2014, p. 95) o matar não se relaciona mais somente ao assassínio direto, mas também com

tudo o que pode ser assassínio indireto: expor à morte, expor ao risco de morte, multiplicar

19
Cf. “Relatório Luz da Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável”, disponível em
http://actionaid.org.br/wp-content/files_mf/1499785232Relatorio_sintese_v2_23jun.pdf . Ver também
https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/07/23/Como-o-Brasil-saiu-do-Mapa-da-Fome.-E-por-que-
ele-pode-voltar e https://oglobo.globo.com/economia/fome-volta-assombrar-familias-brasileiras-
21569940. Acesso em 12/07/2018.
20
Cf. ”Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil”,
realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede
Penssan). Disponível em http://olheparaafome.com.br/. Ver também “Pesquisa revela que 19 milhões
passaram fome no Brasil no fim de 2020, disponível em https://agenciabrasil.ebc.com.br/
geral/noticia/2021-04/pesquisa-revela-que-19-milhoes-passaram-fome-no-brasil-no-fim-de-2020. Acessos
em 10/04/2021.
117

o risco de morte por meio da expulsão, da rejeição, da segregação, ou até mesmo por

proteção por meio de dispositivos de exceção.

Neste mesmo sentido, se buscamos não o consenso, mas o conceito e o contraste,

convocamos esta prática genealógica justamente porque ela, ressoando o como de

Whitehead, nos permite questionar como o acontecimento-fome se tornou um objeto, um

problema; de como ele foi sendo modificado, atualizado e configurado ao longo do tempo

por práticas as mais diversas que, no limite, nutrem um modo de abstração onde a fome

passou ser lida por uma lupa biomédica. O que nos permitiria inclusive questionar se a

emergência da problemática da desnutrição quando da criação do campo da Nutrição no

Brasil não fomentou um novo modo de apropriação do problema da fome.

Quer dizer, ainda neste como-como, isto é, neste exercício de uma conversa entre

Foucault e Whitehead, se falamos da desnutrição é porque, pensando em termos de

governo do campo de potenciais ou, como dissemos anteriormente, da própria definição

de modos de abstração que permitam o controle de processos afim de interromper-se um

fluxo de devir em favor do governo e da dominação, nos parece que a desnutrição – bem

como um campo semântico-conceitual correlato à ela e que inclui termos como

deficiência crônica de energia, déficit energético e etc. – produz algo que, no contraste

entre os diferentes movimentos e práticas que incidiram sobre o acontecimento-fome e

sua abertura a outros sentidos, como no caso do Restauro, nos parece que veio conjurar

seus perigos e governar seus efeitos.

Perigos e efeitos estes que passaram a ser exibidos de forma organizada, explícita,

sistemática e científica, transformando a fome no alvo de uma dominação física, moral e

médica, como algo a ser exibido por trás das grades ou pelas lentes das câmeras, sempre

em uma distância segura (Cf. VALENTE, 1986; HAKIM; SOLIMANO, 1989;

PÉLBART, 1989).
118

Em suma, o que está em questão nesta genea-lógica são precisamente os

mecanismos de poder, uma certa história [a ser feita] destes mecanismos, pelos quais a

fome foi não só inventada enquanto problema, objeto e conceito, mas, na dança com seu

duplo – a desnutrição –, como desvio a ser perseguido, vigiado, controlado e

administrado, criando, ativando e colocando em movimento métodos particulares de

observação, de monitoramento, de registro, de investigação, de exame.

Bem como saberes e poderes que sustentaram estratégias, relações e dispositivos

cujo alvo era a fome e cuja própria existência passava a ser tributária dele e de seu

encerramento dentro de um único sentido – o da fome enquanto necessidade – e da

miríade de efeitos de poder, de subjetivação, de sujeição e de dominação que gera e que

se agrega como um dos vetores que compõem a linha de morte que atravessa a

contemporaneidade e que alimentam a quimera da fome para impedir que ela se reproduza

sobre a população com um caráter maciço de flagelo, enquanto uma série de indivíduos

enfrenta este problema na sua realidade cotidiana, estando inclusive à mercê da morte ou

com o risco de morte multiplicado21.

A rigor, então, pensando novamente no contraste entre o agenciamento Restauro

e o agenciamento biomédico-nutricêutico; entre as fomes que nutriram a proposição da

escultura ambiental e suas relações com o que vínhamos explorando a partir da

cosmologia do processo, não percamos de vista o segundo sentido que havíamos

mencionado da fome: a fome enquanto vontade de comer. Ou, dito de outra maneira, a

fome enquanto desejo, isto é, a fome enquanto potência (onto)criativa. Sentido este que

situa a fome a partir da perspectiva do apetite, o que exploraremos em In-between hunger

and appetite – food for thought in the act.

21
Cf. https://oglobo.globo.com/sociedade/30-das-familias-das-classes-e-no-brasil-passaram-fome-
durante-pandemia-alerta-unicef-24793066. Acesso em 10/02/2021.
119

5.3. Ratambufe e os comedores de terra: o que pode um corpo?


A relatividade do espaço e do tempo tem sido imaginada como
se dependesse da escolha de um observador. É perfeitamente
legítimo incluir o observador, se ele facilita as explicações.
Mas é do corpo do observador que precisamos,
não de sua mente.
Alfred North Whitehead

O corpo “sabe mais”, ele é o cosmos,


um cosmos realizado.
Isabelle Stengers

Há, pois, muito mais problemas entre a “Saúde” e o “Coletivo” do que sonha nossa

vã cosmologia e a esta altura já notamos como conceitos muito caros para nós, como por

exemplo, vida, humano, saúde, experiência, coletivo e, claro, corpo, são tributários de

uma cosmologia. O que é dizer, em outros termos, que não há, em uma perspectiva

processual e relacional, uma epistemologia que esteja desimplicada de uma ontologia,

muito pelo contrário.

Se lembrarmos, aliás, da máxima da cosmologia do processo, isto é, de que tudo

importa, uma das operações mais específicas que uma cosmo-lógica pode produzir é

justamente, como dissemos anteriormente, definir aquilo que importa e que cabe na vida.

O que implica, no limite, a abertura e a expansão do cosmos ou, ainda, seu fechamento,

empobrecimento e enclausuramento.

O que, não por acaso, fica muito claro na crítica xamânica da economia política

da natureza (Cf. ALBERT, 2002) que Davi Kopenawa faz de nós, povo da mercadoria,

cujo pensamento “se mostra curto e obscuro [e] [n]ão consegue se expandir e se elevar,

porque eles [os brancos] querem ignorar a morte (...)[, ficando] sempre bebendo cachaça

e cerveja, que lhes esquentam e esfumaçam o peito [o que faz com que] (...) suas palavras

[fiquem] tão ruins e emaranhadas”. (KOPENAWA; ALBERT, op. cit., p. 390)

Kopenawa, neste mesmo tom, diz que os Brancos estão à altura dos maus

caçadores Yanomami, que “apesar de terem os olhos abertos, não enxergam nada” (op.
120

cit., p. 474), corroborando o seu próprio diagnóstico xamânico: “[o]s brancos não sonham

tão longe quanto nós, (...) dormem muito, mas só sonham consigo mesmos” (Id., p. 390).

O que nos faz ignorar, com muita eficácia, a infinitude de não-humanos, de

agências inteligíveis, (i)mediáveis e radicalmente outras que povoam o cosmos. Eficácia

esta que

espanta por sua absurda incapacidade de compreender a floresta, de perceber


que “a máquina do mundo” é um ser vivo composto de incontáveis seres vivos,
um superorganismo constantemente renovado [particularmente para os
Yanomami] pela atividade vigilante de seus guardiões invisíveis, os xapiri,
imagens ‘espirituais’ do mundo que são a razão suficiente e a causa eficiente
daquilo que chamamos Natureza — em yanomami, hutukara —, na qual os
humanos estamos imersos por natureza (o pleonasmo se autojustifica). A
‘alma’ e seus avatares leigos modernos, a ‘cultura’, a ‘ciência’ e a ‘tecnologia’,
não nos isentam nem nos ausentam deste comprometimento não desacoplável
com o mundo, até porque o mundo, segundo os Yanomami, é um plenum
anímico, e porque uma verdadeira cultura e uma tecnologia eficaz consistem
no estabelecimento de uma relação atenta e cuidadosa com “a natureza mítica
das coisas” —, que se encontram disseminadas pelo cosmos” (VIVEIROS DE
CASTRO apud KOPENAWA; ALBERT, 2015, p.14).

Se falamos, pois, de Kopenawa é porque suas palavras abrem caminho para

seguirmos experimentando o que é pensarmos com outros mundos, especialmente à luz

deste diagnóstico xamânico, deste exercício de contra-antropologia simétrica dos

Brancos, que por si só é um acontecimento científico imensuravelmente potente em

nossos tempos e que merece a devida atenção de nosso campo.

Neste mesmo sentido, toda a epistemologia radicalmente estética que é polinizada

através dos modos de conhecimento indígenas, destacadamente na “ampla exposição

filosófica dos fundamentos de um mundo indígena, em seu triplo aspecto ontológico,

cosmológico e antropológico” (VIVEIROS DE CASTRO, op. cit., p. 34) que podemos

tomar contato em A Queda do Céu amplia o nosso campo de possíveis e semeia outras

maneiras de formularmos nossas questões acerca do comportamento e das ecologias de

práticas alimentares.

Aventurar-se, assim, no pensar com essas outras ontologias nos permite também,

para lembrarmos de uma expressão célebre de Patrice Maniglier, “devolver-nos uma


121

imagem de nós mesmos na qual não nos reconheçamos” (2005, pp. 773-774),

complexificando, desta maneira, nossos modos de abstração e de produção de

conhecimento.

Para tanto, além desta composição com os pensamentos ameríndios,

convocaremos também a ontologia relacional de Bento de Spinoza (2007) que, aliada à

leitura de sua teoria da individualidade feita por Gilles Deleuze (2009) e a agonística

universal das coisas singulares proposta por Ricardo Teixeira (2015), nos permitirá

amadurecer ainda mais a nossa perspectiva a partir de um olhar singular sobre o corpo.

Singular justamente porque nos serviremos de uma pergunta clássica formulada

pelo próprio Spinoza no século XVI, e que é, seguramente, uma das mais saborosas das

histórias da filosofia, a saber: o que pode um corpo?

Para além, pois, dos investimentos tecnocientíficos e biopolíticos que se debruçam

sobre a questão o que se pode fazer com um corpo?, o problema que nutre esta pergunta

vitalista de Spinoza, que possui desdobramentos cruciais para o campo da Saúde Coletiva

e da Saúde em geral, nos permite convocar ainda um intercessor que, lembrando de

Deleuze, será um personagem conceitual que, assim como o Restauro, nos ajudará a

preparar o campo para trabalharmos com esta questão e seus desdobramentos.

Diriam, aliás, Deleuze e Guattari que “na enunciação filosófica, não se faz algo

dizendo-o, mas faz-se o movimento pensando-o por intermédio de um personagem

conceitual [de maneira que] os personagens conceituais são [efetivamente os] verdadeiros

agentes de enunciação” (1992, p. 87). Isto é, eles são operadores que criam pontos de

vista, que criam condições para que possamos traçar um plano onde os conceitos

germinam e florescem.

“Quem é Eu [então]? [Eu] é sempre uma terceira pessoa” (Id., p. 87) e, em nosso

caso, uma pessoa com rabo, cascos e quatro patas: Ratambufe, um boi que agora se juntará
122

a tantos outros personagens conceituais clássicos das histórias da filosofia, como por

exemplo, o Zaratustra e o Dioniso de Nietzsche ou o Sócrates de Platão.

Conhecido como um ente da cultura caiçara em Ubatuba, Ratambufe faz parte de

uma multiplicidade de práticas culturais que florescem Brasil afora por meio de autos,

folguedos, danças e tantas outras manifestações que contam, cantam, dançam e brincam

com nossos amigos bovinos.

Como por exemplo os boi-bumbás, que envolvem expressões ribeirinhas,

indígenas e caiçaras e frutificam em diversos grupos de boi espalhados pelo país,

destacadamente no Amazonas, no Maranhão e no Pernambuco, e que contam com estrelas

como Caprichoso e Garantido e festas que vão de norte a sul e de leste a oeste, inclusive

em São Paulo onde tradicionalmente celebra-se o nascimento, o batizado e a morte do boi

no Morro do Querosene.

Falando em nascimento, voltemos ao nosso boi, que é nascido justamente no dia

de São Pedro, padroeiro dos pescadores, e dotado de uma característica especial ou,

melhor ainda, para já irmos nos aprochegando de Spinoza, de um corpo singular, um

corpo que passou à existência com uma concha desenhada na testa.

Propriedade de Cipriano, tropeiro conhecido do povo de Ubatuba e que

usualmente descia à cidade para vender seus produtos, Ratambufe cresceu em seu sítio

no alto da serra onde recorrentemente ouvia histórias de seu dono sobre o mar e seus

habitantes: seus tons de azul, os peixes, as baleias, as sereias e todas as suas maravilhas.

Prometido de que iria conhecer o mar quando maior, Ratambufe sonhava com este

dia que o encantava e o embevecia, sem qualquer pista dos planos de Cipriano, que o

tinha apenas como peça de açougue, sendo que sua promessa de viagem ao litoral era, ao

fim e ao cabo (efetivamente), uma viagem até o abatedouro na cidade.


123

Chegado o grande dia de sua ida ao litoral, nosso boizinho se pôs ansioso no

caminho para a cidade sem qualquer sombra, pista ou ideia dos verdadeiros intentos de

seu dono. Enlevado em seu desejo e próximo do destino escrito em sua testa e em seus

sonhos, ao ver o mar Ratambufe desembestou a correr em sua direção, onde mergulhou

com alegria, desaparecendo completamente.

A despeito dos gritos de Cipriano, Ratambufe, que de mercadoria não tinha nada,

ressurgiu encantado do mar apenas tempos depois ao som de uma viola, que lhe serviu

como chamado e que iluminurou aquele momento que acabou por render-lhe, desde

então, a alcunha de Boi de Conchas.

Similar a Ratambufe, podemos encontrar também na história do cinema brasileiro,

mais precisamente em Os fuzis, clássico de 1964 de Ruy Guerra e do movimento do

Cinema Novo – terra fértil para outras cria(tura)s como Glauber Rocha e sua estética da

fome (1965) que, lembremos, conversa com trabalhos caros à Saúde Coletiva, como os

de Samuel Barnsley Pessoa e de Maria Cecília Ferro Donnangelo –, um outro animal que

compartilhava dessa aura de encantamento.

Assolada pela fome, Milagres, pequena cidadela sertaneja onde se passa o filme

de Guerra, era o centro de um movimento de romaria que atraía fiéis de todo o sertão à

cidade afim de visitarem e adorarem um boi que, sob as exclamações, as juras e os dizeres

de um profeta local, era tido como sagrado.

A certa altura da história, no entanto, em meio à tensão e à miséria crescente que

devoravam a cidade, este mesmo beato, desiludido com o sacro animal e seus poderes,

anuncia em alto e bom som: “se não chover logo, você vai deixar de ser santo, e vai deixar

de ser boi”.

Poupado então até aquele momento, é precisamente a partir dessa ameaça que o

boi passa de boi-sacro à boi-comível ou, para dizermos em outros termos, recuperando
124

um conceito que tanto nos interessa: é a partir desta ameaça que o boi muda de

agenciamento, de sagrado ele passa a profano, de santo ele passa à alimento.

Contrariamente à Ratambufe que, destinado a ser, na perspectiva de Cipriano,

alimento, passa à encantado na perspectiva do mar indo do agenciamento boi-mercadoria

ao agenciamento boi-entidade a partir da satisfação de seu apetite.

Estas passagens de um agenciamento a outro, somadas aos diferentes

agenciamentos sóciocosmológicos que pudemos ver nas narrativas de Krenak, de

Kopenawa e de Weir a respeito da terra e de seus povos, evidenciam como uma coisa

singular, para adicionarmos mais uma pitada de Spinoza, é determinada, ressoando algo

que já vimos, pelas suas relações.

O que é dizer de uma outra forma que um certo modo da experiência-boi, uma

certa, diríamos, boizicidade, é tributária, por exemplo, de uma ecologia de relações que

inclui, no caso do boi-jesus de Guerra, a própria chuva – “se não chover, você vai (...)

deixar de ser boi” –, tanto quanto a miséria, a ocupação militar, bem como uma série de

outros elementos do roteiro-agenciamento e, claro, os próprios fuzis.

Um corpo, assim, um boi no nosso caso, não se define única e exclusivamente

pela sua categoria específica ou pelas partes que o compõem. De tal maneira que, para

recuperarmos um exemplo preci[o]so de Teixeira, um boi no Mato Grosso, não é a mesma

coisa que um boi na Índia. Ou seja, um boi no agenciamento-agronegócio definitivamente

não é o mesmo ser que aquele produzido no agenciamento-espiritual-hindu.

Isto nos remete ao fato de que na ontologia spinozana, toda coisa singular, todo

modo finito da existência, é “uma infinidade de conjuntos infinitos de partes extensivas

ou exteriores umas às outras” (TEIXEIRA, 2015, p. 240). O que ressoa muito do que já

vínhamos discutindo sobre a noção de ecologia na perspectiva do processo, e se define

pelas relações características que a caracterizam e que subordinam estas partes.


125

O que significa, reforçando o que dissemos anteriormente, que aquilo que define

um corpo, que define uma coisa singular, não são efetivamente as suas partes – os seus

órgãos –, isto é, aquilo que lhe pertence e o compõe. Mas efetivamente as relações

características que submetem essas partes: um pão não é um pão por conta de seus

ingredientes, mas sim pelas relações que os submetem e o caracterizam, que caracterizam,

nos termos de Whitehead, aquela sociedade.

Estas relações características são, deste modo, aquilo que define a sua

singularidade, “que expressa um grau de potência que constitui (...) uma essência

singular” (SPINOZA, op. cit., p. 240), o que nos leva a um

“[e]ntendimento básico de que toda coisa singular, todo corpo, já é um


composto de partes (um coletivo) e de que suas características singulares estão
dadas pelas relações que subordinam essas partes (todo corpo é um conjunto
de relações) e que exprimem o grau de potência deste corpo (sua essência
singular)” (TEIXEIRA, Id., p. 32).

Para Spinoza a natureza é, assim, sempre a mesma: “uma só e a mesma, em toda

parte, sua virtude e potência de agir” (2007, p. 98), de tal forma que o mantra que define

o que é um corpo na ontologia spinozana é que um corpo é “um conjunto de partes

extensivas sob uma dada relação que é a que o caracteriza” como corpo (Cf. TEIXEIRA,

op. cit., p. 32).

Afim, então, de clarearmos as ideias, convoquemos uma série de exemplos que

Teixeira (2015) explora e que nos ajudarão a evidenciar aquilo que mais nos interessa a

esta altura de nossa investigação: a dimensão ontológica que atravessa o comer e que é

fundamental para que possamos seguir enriquecendo nossa perspectiva acerca dessa

problemática, tanto quanto das problemáticas do comportamento e das práticas

alimentares.

Ora, se a rigor nós já sabemos o que é um corpo genérico, poderíamos agora

perguntar: o que é o meu corpo? Spinoza responderia, sem pudores, com seu mantra: ele
126

é um conjunto de partes extensivas sob uma dada relação que é a que o caracteriza como

Alexis.

Mas será que esta definição caberia a qualquer ser vivo? Diria o autor que sim,

afinal, “não sentimos nem percebemos nenhuma outra coisa singular além dos corpos e

dos modos do pensar (...)[, isto é, d]aquelas coisas que são finitas e que têm uma

existência determinada” (SPINOZA, 2007, p. 81)

Isso quer dizer, então, se lembrarmos de nosso personagem conceitual, que um

boi é também uma coisa singular? O que seria um boi? Pasmem, tanto quanto este que

vos escreve, um boi é um conjunto de partes extensivas sob uma dada relação que, nesse

caso, é a que o caracteriza como boi.

Sabido isto e levando em consideração os agenciamentos mencionados

anteriormente, podemos avançar para a seara da alimentação e questionar, ainda

acompanhando Teixeira: o que seria um bife? Um bife, como sabemos, veio do boi,

entretanto, ele não é mais exatamente o boi.

Será que também neste caso poderíamos entoar nosso mantra? Sim, afinal, ele

também é um conjunto de partes extensivas sob uma dada relação que o caracteriza como

bife. Mas a próxima pergunta seria: como um boi passa a bife?

Bom, seguramente poderíamos adicionar à essa nossa discussão os agenciamentos

sociotécnicos que produzem um bife, entretanto, sigamos na ontologia relacional de

Spinoza, que nos responderia: fazendo com que as partes extensivas do boi abandonem a

relação-boi para entrar na relação-bife.

Ora, se já está claro o que é um corpo, o que é um boi, o que é um bife e como se

passa de boi à bife, agora é hora de nosso prato principal, quer dizer, de nossa pergunta

principal: o que é comer um bife? Pois bem, a rigor, nos termos de Spinoza e de Teixeira,
127

comer um bife é extrair as partes extensivas da relação-bife para submetê-las à relação

daquele que o come.

E, de fato, é pela boca que se predica. Tanto que, como podemos notar, nessa

onto-lógica spinozana não se cessa

de integrar as partes sob minhas relações; quando como, por exemplo, há partes
extensivas que eu me aproprio. O que quer dizer se apropriar das partes? (...)
Quer dizer: fazer com que deixem a relação precedente que elas efetuavam
para tomar uma nova relação, sendo esta nova relação uma das relações
comigo, a saber: com a carne eu faço a minha carne. Que horror! [risos] Mas,
enfim, é preciso saber viver, isto não deixa de ser assim. Os choques, as
apropriações de partes, as transformações de relações, as composições ao
infinito, etc.” (2009, pp. 242-243).

É então em meio a este jogo de oposições entre corpos que podemos falar de uma

agonística das coisas singulares, agonística esta que envolve o próprio fato de que a

“possibilidade de produção de um corpo mais potente está dada pela aptidão desse corpo

em estabelecer relações de composição com outros corpos e evitar as relações que possam

decompor [as] suas relações características”. (TEIXEIRA, op. cit, p. 33)

Implicado, pois, em todas essas devorações: o que pode um corpo? A resposta,

nos diz Spinoza, é: afetar e ser afetado. Quer dizer, o que um corpo pode é fazer variar o

seu grau de potência, o que implica no aparecimento de um novo elemento: a variação.

Elemento este que nos coloca um problema novo que pode, como nos mostra Teixeira,

nos ajudar a afinar ainda mais o nosso entendimento do que é um corpo a partir de uma

outra pergunta: o que é uma onda?

Se considerarmos o nosso percurso até agora, imediatamente lembraríamos de

nosso mantra e responderíamos: uma onda é um conjunto de partes extensivas sob uma

dada relação que a caracteriza como onda. Contudo, como nós também sabemos, uma

onda, para o horror de alguns banhistas e para a alegria dos surfistas, nunca deixa de

variar.
128

De qualquer maneira, uma onda não deixa de ser um conjunto de partes extensivas.

No entanto, esse corpo-onda é um conjunto de partes extensivas “não apenas sob uma

dada relação, mas sob [um] certo espectro de relações possíveis, que podem ser variadas

sem deixar de caracterizar aquele corpo.” (TEIXEIRA, op. cit., p. 34)

Pois bem, já que já sabemos o que é uma onda e já que citamos os surfistas, cabe

perguntarmos agora, considerando que uma onda é um conjunto de relações variáveis por

uma certa duração: o que é um surfista? Obviamente podemos dizer que ele é um corpo,

ao que se aplicaria a nossa definição inicial, mas, na relação com a onda, há uma

diferença: o surfista não só é um corpo, ele é “um outro corpo, um conjunto de relações

que ele precisará saber variar de tal forma a estabelecer uma relação de composição com

a onda que dure o maior tempo possível”. (Ib., p. 34)

Notemos, assim, que agora o problema da relação adquire um sabor ainda mais

complexo, visto que passa a envolver também uma relação de conhecimento, um saber

da relação: um saber apresentar-se à uma relação. Relembremos, neste sentido, de

Ratambufe, nosso personagem conceitual que, diria Deleuze, é o devir de uma filosofia,

a condição para o exercício de um pensamento, a própria potência de um conceito.

Relembremos também, à luz da cosmo-lógica do processo e todo seu ativismo,

como o mais ínfimo dos gestos, o mais imperceptível dos acontecimentos ou, lembrando

de Marcel Duchamp, o inframince – “a quentura de um assento (que acabou de ser

deixado)”; “o portão do metrô naquele último instante em que as pessoas o atravessam”.

“o assobio produzido no roçar das pernas [das calças aveludadas] ao caminhar (...)”, “A

diferença entre o contato da água, do chumbo fundido, ou de um creme (…)” – é o que

está em jogo: “a mais mínima das diferenças”. (1989)

O que é dizer, em outras palavras, que o mais larval dos eventos pode alterar as

condições da experiencia, e favorecer e fertilizar um pensar-sentir. O que nos remete a


129

um acontecimento singular ocorrido nas águas de Salvador nos fins de 2018, quando na

praia de Stella Maris, no litoral da capital baiana, ocorreu um encontro mais do que

especial, principalmente para nós: o de um boi com o mar22.

Visto em meio aos surfistas, o encontro desse zebu com as ondas nos permite

evidenciar um ponto importante em meio às nossas questões spinozanas: a possibilidade

de um corpo vir a estabelecer relações de composição com outros corpos o que, no caso

de nosso boi-surfista, remete à composição boi-onda.

A questão, todavia, seria se o boi saberia fazer variar as suas relações. O que

dependeria, fundamentalmente, “de sua capacidade de se apresentar a esses outros corpos

sob relações que componham com as relações que os caracterizam” (TEIXEIRA, op. cit.,

p. 31). Ou, em outras palavras, “depende[ria] de sua maior ou menor capacidade de

produzir comum ou de fazer comunidade com esses outros corpos.” (Id., p. 31)

A fim de fugir de um caldo ou de levar uma vaca, nosso boi sem conchas deveria,

assim, praticar a arte da composição. Arte esta que, no caso de nosso exemplo, é muito

cara aos surfistas, afinal “surfista é aquele que sabe fazer comunidade com a onda[, de tal

forma que o] surf é a arte de produzir comum com as ondas.” (Ibid., 31, grifo nosso).

Ou seja, ele é, tal qual a agroecologia, uma arte da composição: uma arte onde um

grau de potência se relaciona diretamente com outro grau de potência. Onde um corpo de

relações compõe, intuitivamente, com um outro corpo de relações, cultivando uma rede

de relações entre relações.

Existe, assim, nessa arte, não só um gênero de conhecimento – a intuição –, como

também uma ética, uma ética da composição que, no limite, dado o fato de que as relações

são sempre relações entre relações – em qualquer escala que seja, do micro ao macro, do

22
Cf. https://aratuon.com.br/noticia/geral/boi-aparece-no-mar-em-stella-maris-apos-fugir-do-parque-de-
exposicoes-assista; https://aratuon.com.br/noticia/geral/boi-que-morreu-afogado-em-praia-de-stella-maris-
valia-12-mil-reais. Acesso em 17/02/2021.
130

meso ao cosmo – envolve a produção de um corpo comum: “se vários indivíduos

contribuem para uma única ação, de maneira tal que sejam todo, em conjunto, a causa de

um único efeito, consider[emos] todos, sob este aspecto, como uma única coisa singular”

(SPINOZA, op. cit., livro 2, def. 7), isto é, como um único corpo: surfista-onda, boi-de-

conchas-mar, onda-boi.

Frente, então, à onda, esse corpo cujas relações não podemos governar, cabe ao

nosso boi-surfista fazer variar as relações que o caracterizam. Ou seja, cabe a ele fazer

variar o seu grau de potência segundo sua capacidade de se apresentar a esses outros

corpos. O que é dizer, em outras palavras, que o que cabe a ele é, em seu esforço de

perseverar na existência, justa e precisamente, fazer um corpo.

Não por acaso, tanto para Spinoza, quanto para muitas cosmologias indígenas o

corpo é o locus dessa dimensão ontológica que tanto nos interessa. Dimensão esta que

situa e caracteriza o lugar singular que a discussão sobre corporalidade ocupa nessas

ontologias, tanto que

a originalidade das sociedades tribais brasileiras (de modo mais amplo, sul-
americanas) reside numa elaboração particularmente rica da noção de pessoa,
com referência especial à corporalidade enquanto idioma simbólico focal. Ou,
dito de outra forma, suger[em] que a noção de pessoa e uma consideração do
lugar do corpo humano na visão que as sociedades indígenas fazem de si
mesmas são caminhos básicos para uma compreensão adequada da
organização social e [da] cosmologia destas sociedades. (SEEGER; DA
MATTA; VIVEIROS DE CASTRO, 1979, p. 3)

E se o corpo e os processos a ele relacionados são tão centrais para estes povos é

porque, em muitos sentidos, a corporalidade é central para as questões que tangem a

definição mesma da estrutura destas sociedades, onde o corpo, longe de ser um suporte

inerte onde se deposita o social, é efetivamente constituído por ele. De tal modo que:

[a]s mudanças corporais não podem ser tomadas apenas como signos das
mudanças de identidade social, mas como seus correlatos necessários, e
mesmo mais: elas são ao mesmo tempo a causa e o instrumento de
transformação das relações sociais. Isso significa que não é possível fazer uma
distinção entre processos fisiológicos e processos sociológicos;
transformações do corpo, das relações sociais e dos estatutos que as
condensam são uma coisa só. Assim, a natureza humana é literalmente
131

fabricada ou configurada pela cultura. O corpo é imaginado, em todos os


sentidos possíveis da palavra, pela sociedade. (VIVEIROS DE CASTRO,
2002, p.72, grifos nossos)

Imaginado e, nessa mesma direção, também fabricado. Na própria dimensão em

que ele é constituinte de uma singularidade implicada, com efeito (literalmente), em um

complexo dispositivo de construção da pessoa, bem como em um complexo

entendimento, como já pudemos notar, do próprio corpo. Entendimento este no qual ele

é, certamente, distinto do nosso. E, em alguns casos, até mesmo múltiplo, a exemplo dos

Wari’, para quem a figura, a representação de um homem de sua etnia em contato com os

brancos é:

construída por traços duplos, de modo que a roupa em estilo ocidental, como
aquela com a qual os Wari’ se vestem hoje, se sobrepõe ao corpo sem, no
entanto, escondê-lo. O que se vê, na verdade, são dois corpos simultâneos: o
do Branco, por cima, e o do Wari’, por baixo. (VILAÇA, 2000, p. 57, grifos
nossos)

A constituição deste corpo duplo, no entanto, não é presente em todas as

cosmologias ameríndias, muito embora ela esteja, com uma certa regularidade, referida e

associada à experiencia dos xamãs. Entretanto, o ponto central que esta discussão traz à

mesa é que para os ameríndios o corpo não é um dado genético, mas efetivamente uma

construção: é menos algo que se tem e mais algo que se faz.

Construção essa que é feita recorrentemente ao longo da vida por meio de, para

seguirmos a conversa com Spinoza, relações. Relações que, diga-se de passagem, já que

exploraremos isto futuramente, são fundamentalmente sociais. E, mais do que isso,

sociais em uma perspectiva onde o “social” é muito mais povoado e populoso do que em

nosso sentido mais corrente, e onde, para lembrarmos novamente dos Wari’, vê-se que

o corpo (kwere-, sempre seguido de sufixo indicador de posse) é o lugar da


personalidade, é o que define a pessoa, animal, planta ou coisa. Tudo o que
existe tem um corpo, uma substância, que é o que lhe dá características
próprias. Os Wari’ costumam dizer: “Je kwere” (“meu corpo é assim”), que
significa: “esse é meu jeito”, “eu sou assim mesmo”. E também quando se
referem a animais ou coisas. Se perguntamos a eles por que os queixadas
andam em bando, eles dirão: “Je kwerein mijak” (“o corpo do queixada é
132

assim”); ou por que a água é fria: “Je kwerein kom” (“o corpo da água é
assim”). (VILAÇA, op. cit., p. 59)

O corpo é, neste sentido, ainda ressoando Spinoza, o produto de relações que o

caracterizam (“o corpo é assim”) e que co(n)formam uma singularidade, de tal modo que

o corpo é o lugar da diferença, isto é, ele é mais um substrato do que efetivamente um

lugar de expressão de uma identidade ou de um comportamento dado a priori.

Principalmente porque:

sabemos como o corpo é destotalizado nas sociedades tribais da América do


Sul, com atribuição de valores mais ou menos sociais a certas partes ou órgãos
do corpo que estão servindo aqui como um idioma francamente social. Assim,
os meninos, prestes a se transformarem em homens (serem sociais), devem ter
seus lábios e orelhas furadas. É essa penetração gráfica, física da sociedade no
corpo que cria as condições para engendrar o espaço da corporalidade que é a
um só tempo individual e coletiva, social e natural. Quando tal trabalho se
completa, o homem está completo, sintetizando os ideais coletivos de manter
a individualidade, tal como nós a concebemos, reforçando a coletividade e a
complementaridade com ela”. (SEEGER, DA MATTA, VIVEIROS DE
CASTRO, op. cit., pp. 14-15)

É a partir então da fabricação que o corpo passa a corpo humano, o que nos

reconecta àquele entendimento da cosmologia do processo como onde ele é uma

sociedade em intensa atividade, já que algo está sempre acontecendo, produzindo,

maquinando, transformando. Repercutindo, assim, uma multiplicidade de cosmologias

indígenas onde a transformação e a metamorfose estão sempre à espreita e a questão, no

fim das contas, é de como engajar-se em uma metamorfose-controlada, em uma

contrametamorfose (Cf. VIVEIROS DE CASTRO, 2002b).

Há aí, então, uma dimensão prática, pragmática: fabrica-se uma transformação ou

uma mudança pela extensão, pela duração, pela repetição de uma atividade. A exemplo

de um filho, que para os Yalawapití é construído por meio de relações sexuais repetidas,

e que remetem ao próprio fato de que o homem esculpe o bebê no corpo da mãe.

Fazer um filho, nesse sentido, é uma atividade escultórica, o que é dizer que é um

fazer que é, ao menos para o que interessa à nossa presente discussão, menos afetiva e

mais, para lembrarmos de Spinoza, afectiva. Ou seja, é menos uma questão de afeto e
133

mais de affecto, de uma affectio: de um agir sobre um outro corpo, produzindo um efeito

sobre este outro corpo (Cf. DELEUZE, 1997, p. 156).

Para além, portanto, de uma ideia de que momentos como este sejam naturais,

quer dizer, livres da in(ter)venção puramente humana, “[s]eu caráter liminar marca o

tempo da fabricação de uma nova condição social por meio de uma tecnologia do corpo”

(VIVEIROS DE CASTRO, op. cit., p. 44, grifo nosso). De uma tal maneira que “na

transição entre estados da pessoa, a sociedade intervém radicalmente, submetendo o

indivíduo e o individual (POCOCK, 1967) a uma normalização sociofisiológica.” (Id., p.

44)

O que essas cosmologias indígenas evidenciam, assim, é que para além de uma

lógica jurídico-política e para além da

visão da estrutura social que a Antropologia tradicional nos legou (...)[:]a de


um sistema de relação entre grupos. (...) As sociedades indígenas deste
continente [América do Sul] estruturaram-se em termos de categorias lógicas
que definem relações e posições sociais a partir de um idioma de substância. É
paradoxal, portanto, que os chamados estudos do contato interétnico relativos
aos grupos ameríndios focalizem, de um modo geral, a atenção na relação
entre entidades socioculturais (grupos, instituições, indivíduos como “atores
sociais” ou “sujeitos históricos”) e não entre agregados corporais. (SEEGER;
DA MATTA; VIVEIROS DE CASTRO, op. cit., p. 14, grifos nossos)

E dizemos isso justamente porque as práticas alimentares são entendidas nestes

contextos como mais um dos recursos de transformação, de singularização e de

diferenciação do corpo em um sentido que compete, de fato, a uma função fisiológica,

mas que responde a toda uma outra fisio-lógica. Precisamente porque

a sociologia indígena é antes de tudo uma “fisiologia”, de modo que, no lugar


de “aculturação” ou “fricção”, o que se tem é transubstanciação, metamorfose.
A “abertura ao Outro”, que, segundo Lévi-Strauss (1991, p. 16), define o
pensamento ameríndio, é aqui uma abertura “fisiológica”. É curioso que (...)
existe uma relação entre corpo e sociedade que, no afã de “desorganicizar” a
sociedade, os modernos estudos processualistas do contato têm deixado de
perceber (...). Se a sociedade não é um organismo, no sentido de um conjunto
de partes funcionalmente diferenciadas, ela é um ente somático, um corpo
coletivo formado de corpos, e não de mentes. (VILAÇA, op. cit., p. 66, grifos
nossos)
134

O que nos conecta, não por acaso, à nossa discussão inicial sobre o corpo em

Spinoza, para quem também existe toda uma outra fisiologia (Cf. TEIXEIRA, 2004a)

onde, como vimos:

I. O corpo humano se compõe de muitíssimos indivíduos (de diversa


natureza), cada um dos quais é mui composto.
II. Alguns dos indivíduos que compõe o corpo humano são fluidos; outros
são moles e outros, enfim, são duros.
III. Os indivíduos que compõem o corpo humano (e, por conseguinte, o
próprio corpo humano) são afetados de muitíssimas maneiras pelos corpos
exteriores.
IV. O corpo humano necessita para conservar-se, de muitíssimos outros
corpos, e é como se esses o regenerassem continuamente.
V. Quando uma parte fluida do corpo humano é determinada por um corpo
externo a se chocar frequentemente com outra parte mole, altera a
superfície desta e lhe imprime uma espécie de vestígio do corpo externo que
a afeta. (SPINOZA, op. cit., p.137)

A questão é, portanto, menos de ordem filosófica e efetivamente de uma ordem

pragmática: como criar para si um corpo? Ou ainda, lembrando mais uma vez de Deleuze

e Guattari (1996), a questão é a de como criar para si um corpo sem órgãos. Isto é, um

corpo que é feito de uma tal maneira que “só pode ser ocupado, povoado por intensidades”

(p. 9) e cuja fisiologia é, nesse mesmo sentido, fundamentalmente afetiva.

Quer dizer, esse corpo é aquilo que se produz em meio às variações da força de

existir, da potência de agir, daquilo que Spinoza nomeava como conatus: o esforço de

existir. O Corpo sem Órgãos é, assim:

necessariamente um Lugar, necessariamente um Plano, necessariamente um


Coletivo (agenciando elementos, coisas, vegetais, animais, utensílios, homens,
potências, fragmentos de tudo isto, porque não existe ‘meu’ corpo sem órgãos,
mas ‘eu’ sobre ele, o que resta de mim, inalterável e cambiante de forma
transpondo limiares). (Id., pp. 24-25, grifos nossos)

Em meio, assim, a toda esta outra fisio-lógica, fica claro que o corpo é muito mais

do que simplesmente um dado genético ou biológico, mas efetivamente um lugar da

diferença que não se limita à relações interespecíficas tampouco a um elemento natural e

pré-constituído, e menos ainda, humano.


135

O ponto, para nós, é que a fabricação do corpo envolve uma dimensão processual

que diz respeito à própria fabricação da pessoa, o que nos conecta a uma das lições que a

cosmologia do processo nos deixou, a saber, a de que nada está dado de antemão e,

especialmente neste contexto, sequer o humano.

O que é dizer em outros termos, que a corporalidade, que as discussões acerca do

corpo, ganham nestes contextos etno-filosóficos uma dimensão e um fundamento

cosmológico. Assim como a alimentação e as práticas alimentares que são mais um dos

elementos que evidenciam este fundamento e que produzem, que fazem uma diferença,

vide a própria

pregnância simbólica universal dos regimes alimentares e culinários – do “cru


e cozido” mitológico e lévi-straussiano à ideia dos Piro de que sua “comida
legítima” é o que os faz, literalmente, diferentes dos Brancos (Gow 1991a); das
abstinências alimentares definidoras dos “grupos de substância” do Brasil
Central (Seeger 1980) à classificação básica dos seres em termos de seu regime
alimentar (Baer 1994: 88); da produtividade conceitual da comensalidade,
semelhança de dieta e condição relativa de presa-objeto e predador-sujeito
(Vilaça 1992) à onipresença do canibalismo como horizonte predicativo de
toda relação com o outro, seja ela matrimonial, manducatória ou guerreira
(Viveiros de Castro 1993a) –, essa universalidade manifesta justamente a ideia
de que o conjunto de maneiras e processos que constituem os corpos é o lugar
de emergência da diferença. (VIVEIROS DE CASTRO, 2002b, p. 387)

Entendido, portanto, como lugar da diferença, o corpo é assim mais do que mera

substância física, mas efetivamente “um conjunto de afecções ou modos de ser que

constituem um habitus” (Id., p. 128). E que remetem à própria alimentação, que é, como

vínhamos dizendo, parte de um conjunto de operações e intervenções que se dão

precisamente sobre aquilo que conecta o corpo ao mundo e que compete à fabricação do

próprio corpo humano (Ibid., p. 43) e de relações sociais as mais diversas, como nos

mostra a narrativa de Vilaça que, quando iniciando seu campo junto aos Wari’,

ouvia constantemente exclamações do tipo: “Ela não é Wari’, não come


gongos”. Quando finalmente ingeri diante deles algumas dessas larvas, a
notícia que se espalhou na aldeia é que eu havia me tornado completamente
Wari’. Essa consubstancialidade produzida pelas relações físicas e pela
comensalidade (...) é tão efetiva quanto aquela dada pelo nascimento, de modo
que aqueles que vivem juntos, comem juntos ou partilham a mesma dieta
alimentar vão se tornando consubstanciais, especialmente se passarem a se
casar entre si. (op. cit., p. 60)
136

De tal forma que, em suma, a questão que nos interessa neste ponto, ecoando a

ontologia spinozana, é que o corpo nessas ontologias ameríndias é “o instrumento

fundamental de expressão do sujeito e ao mesmo tempo o objeto por excelência, aquilo

que se dá a ver a outrem” (VIVEIROS DE CASTRO, op. cit., p. 263).

Isto é, ele é o lugar de uma perspectiva diferenciante que se conecta não só a um

perspectivismo somático quanto também a toda uma expansão das capacidades e das

potências do humano, visto que, “ali onde toda coisa é "humana", o humano é toda uma

outra "coisa"” (Id., p. 145; VIVEIROS DE CASTRO, 1996) e, por certo, a alimentação

também.
137

5.4. Jê est un autre23: alteridade, perspectivismo somático e multinaturalismo

Onça upon a time.


André Vallias

“Sejamos objetivos.”
Sejamos objetivos? – Não!
Sejamos subjetivos, diria um xamã,
ou não vamos entender nada.
Eduardo Viveiros de Castro

Ora, se já não sabíamos o que podia um corpo, agora, em meio a todo esse

perspectivismo somático, a essas outras ontologias e a essas outras cosmo-lógicas, uma

das poucas coisas que podemos repetir é, precisamente, que não sabemos o que pode um

corpo, ainda mais esses corpos, isso para não dizermos de suas almas (Cf. VIVEIROS

DE CASTRO, 2002a). Todavia, o que sabemos é que um corpo pode, isto é, que uma

singularidade, lembremos de Cusa, se define justa e precisamente pelo seu poder, pela

sua potência, pelas suas capacidades e afetos, tanto quanto pelas suas transformações e o

modo como elas ocorrem.

E se a composição com a ontologia spinozana e com as cosmovivências indígenas

que trouxemos ao largo do nosso último sub(e)strato buscavam evidenciar como

epistemologia, ontologia e cosmologia estão umbilicalmente ligadas, produzindo um

deslocamento seja em nosso entendimento sobre o corpo, seja sobre o próprio humano;

agora vamos explorar o conceito de multinaturalismo que, como indicamos

anteriormente, nutre a nossa discussão em múltiplos níveis, inclusive o próprio desenho

metodológico de nossa investigação.

No entanto, ao invés de mergulharmos em um caldo teórico-conceitual

novamente, façamos de uma maneira diferente. Comecemos por um exemplo que

demonstra tal conceito operando em uma situação cotidiana. Situação essa que foi descrita

23
Cf. VALLIAS, 2014, p. 33.
138

por Peter Gow no contexto de seu trabalho junto aos Piro, povo indígena que vive no rio

Bajo Urubamba, no sudoeste da Amazônia peruana.

O exemplo em si remete a um evento ocorrido entre uma professora de uma

missão junto a este povo e uma mulher piro que, enquanto preparava a comida de seu

filho pequeno com água não-fervida, foi interpelada pela professora de Santa Clara que,

preocupada com os riscos de se consumir a água daquela maneira, tentou convencer a

cozinheira da necessidade de se ferver a água para consumo, ao que a mulher piro

replicou:

“Se bebemos água fervida, contraímos diarreia”. A professora, rindo com


zombaria da resposta, explicou que a diarreia infantil comum é causada
justamente pela ingestão de água não-fervida. Sem se abalar, a mulher piro
respondeu: “Talvez para o povo de Lima isso seja verdade. Mas para nós,
gente nativa daqui, a água fervida dá diarreia. Nossos corpos são diferentes
dos corpos de vocês (GOW apud VIVEIROS DE CASTRO, 2002a, p. 137,
grifos nossos).

Ao redor, pois, de uma questão de ordem bastante prática – a causa da diarreia

infantil – esta conversa nos permite enxergar um dos pontos centrais do multinaturalismo:

o de que o que distingue diferentes tipos de gente não suas culturas, mas efetivamente os

seus corpos. Nas palavras da própria mulher piro: “Talvez para o povo de Lima isso seja

verdade. Mas para nós, gente nativa daqui, a água fervida dá diarreia. Nossos corpos são

diferentes dos corpos de vocês.”

Contudo, muito embora o nome multinaturalismo seja efetivamente uma

provocação aos multiculturalistas, esta proposição vai muito além do desejo de

estabelecer um outro um par-binário – agora entre multinaturalismo e multiculturalismo

–, como se, pensando com nosso exemplo, a mulher piro fosse aquela que representasse

o multinaturalismo e a professora o multiculturalismo.

E, de fato, seria tentador ver esta conversa como um grande exercício relativista,

como se ela tratasse fundamentalmente de um choque de culturas. No entanto, se há aí


139

um certo relativismo, ele não é de ordem cultural, mas fundamentalmente de ordem

‘natural’, pois o

“paroquialismo” traduz o debate de Santa Clara nos termos da posição da


professora, com seu universalismo natural e seu diferencialismo (mais ou
menos tolerante) cultural[, onde h]á várias visões de mundo, mas há um só
mundo — um mundo onde todas as crianças devem beber água fervida (se, é
claro, se encontrarem em uma parte do mesmo onde a diarreia infantil seja uma
ameaça). (Id., p. 139, grifo nosso)

Partindo então das notas de Gow, Viveiros de Castro traça alguns comentários

interessantes sobre essa anedota, situando que o que se trata em seu caso é menos de

determinar de antemão o mundo e seus limites gerais e seus sentidos possíveis, mas sim

de encontrar “o problema real que torna possível o mundo implicado na réplica da mulher

piro.” (Ibid., p. 140, grifo nosso)

E o que tornaria possível este mundo possível? Bom, se, para início de conversa,

não sabemos o que pode um corpo e, menos ainda o seu espírito, uma coisa que devemos

atentar é precisamente o fato de que nestas cosmologias multinaturalistas radicaliza-se a

ideia de que tudo importa, e considera-se que o mundo é povoado por uma infinidade de

outros sujeitos que não só nós.

Se lembrarmos, a título de exemplo, dos Azande e do trabalho de Evans-Pritchard

que disse que certa vez “ouvi[u] um zande dizer de nós: ‘Talvez lá no país deles as pessoas

não sejam assassinadas por bruxos, mas aqui elas são” (1978, p. 274). Ou seja, o que nutre

o campo de possíveis Azande é precisamente a bruxaria.

No caso de nosso exemplo com os Piro, por outro lado, o que está em questão para

a mulher piro é “[u]m mundo possível no qual os corpos humanos sejam diferentes em

Lima e em Santa Clara — no qual seja necessário que os corpos dos brancos e dos índios

sejam diferentes” (VIVEIROS DE CASTRO, op. cit., pp. 139-140, grifos nossos).

O que implica, claramente, distintos conceitos de corpo – “[n]ossos corpos são

diferentes dos corpos de vocês” (Id., p. 140) –, mas distintos não em um sentido físico-
140

biológico. Afinal, o “argumento de que “nossos corpos são diferentes” não exprime uma

teoria biológica alternativa e, naturalmente, equivocada, ou uma biologia objetiva

imaginariamente não-standard” (Ibid., p. 140).

Distintos, então, precisamente pelo fato de que o corpo Piro, opera uma ideia não-

biológica de corpo, o que desloca os problemas de saúde – como a questão da diarreia

infantil – para além de uma chave biológica. De modo que o corpo não é, assim, objeto

de uma teoria biológica, no mesmo sentido em que a “anedota da água piro não reflete

uma outra visão de um mesmo corpo, mas um outro conceito de corpo, cuja dissonância

subjacente à sua ‘homonímia’ com o nosso é, justamente, o problema” (VIVEIROS DE

CASTRO, 2002a, p. 140, grifos nossos).

O que implica também o próprio fato de que o conceito em questão neste caso não

diz respeito à uma representação ou à uma biologia diversa, e sim à uma outra

perspectiva: “[n]ão, então, o conceito como representação de um corpo extraconceitual,

mas o corpo como perspectiva interna do conceito: o corpo como implicado no conceito

de perspectiva” (Id., p. 140).

E a perspectiva é, portanto, um elemento precioso nesta discussão. Não por acaso

o próprio conceito de multinaturalismo é conhecido também como perspectivismo

ameríndio, justa e precisamente porque “[e]ntre a subjetividade formal das almas e a

materialidade substancial dos organismos, há um plano intermediário que é o corpo como

feixe de afecções e capacidades, e que é a origem das perspectivas”. (VIVEIROS DE

CASTRO, 1996, p. 128).

Um ponto central no perspectivismo ameríndio é, assim, que ele considera o

mundo natural como uma multiplicidade de multiplicidades conectadas onde as outras

espécies são também pessoas, povos e entidades políticas, radicalizando não só a

afirmação de que tudo é político, como também invertendo o clássico postulado


141

cartesiano ao afirmar que na floresta tudo que existe, pensa, e que aquilo que chamamos

de “ambiente”, diz respeito à uma cosmopolitéia, isto é, à uma sociedade de sociedades.

Ou, em outras palavras, como uma arena internacional onde todo o existente se vê

fundamentalmente como humano e onde a própria “humanidade” é, ao mesmo tempo,

uma condição universal e uma perspectiva dêitica e auto-referencial (Id., p. 94). De modo

que os humanos, em condições normais, tipicamente veem os animais como animais e os

humanos como humanos:

Os animais predadores e os espíritos, por seu lado, veem os humanos como


animais de presa, ao passo que os animais de presa veem os humanos como
espíritos ou como animais predadores. (...) O ser humano se vê a si mesmo
como tal. A Lua, a serpente, o jaguar e a mãe da varíola o veem, contudo, como
um tapir ou um queixada que eles matam [e comem]. (2015, p. 43)

Sendo a humanidade, portanto, o fundo cosmológico comum à todas as espécies,

podemos notar como no perspectivismo ameríndio existe algo como, ressoando Teixeira,

Spinoza e James, uma agonística multiversal das humanidades, visto que a humanidade

de uma espécie é imposta sobre a da outra, sendo essa última devorada, precisamente

porque

vendo-nos como não-humanos, é a si mesmos – a seus respectivos


congêneres – que os animais e espíritos veem como humanos: eles se
percebem como (ou se tornam) entes antropomorfos quando estão em suas
próprias casas ou aldeias e experimentam seus próprios hábitos e
características sob uma aparência cultural – veem seu alimento como
alimento humano (os jaguares veem o sangue como cerveja de milho, os
urubus veem os vermes da carne podre como peixe assado etc.), seus atributos
corporais (pelagens, plumas, garras, bicos etc.) como adornos ou instrumentos
culturais, seu sistema social como organizado do mesmo modo que as
instituições humanas (com chefes, xamãs, festas, ritos... ). (Id., pp. 44-45)

A rigor então, há nesta perspectiva multinaturalista “muito mais sociedades (e

portanto humanos) entre o céu e a terra do que sonham nossas antropologias e filosofias”

(DANOWSKI; VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p. 94), o que implica seja na abolição de

qualquer diferença absoluta de estatuto entre sociedade e ambiente, seja no fato de que a

alteridade passa a assumir um lugar central nesta metafísica canibal e no relacionalismo

que lhe é característico.


142

O que é dizer que, se antes, quando falávamos de Spinoza, um corpo era

fundamentalmente relacional. Agora, na composição com o multinaturalismo,

radicalizamos esta proposição, dado que tanto o corpo quanto o próprio mundo são

eminentemente relacionais. De tal maneira que a “diferença dos corpos (...) só é

apreensível de um ponto de vista exterior, para outrem, uma vez que, para si mesmo, cada

tipo de ser tem a mesma forma (a forma genérica do humano): os corpos são o modo pelo

qual a alteridade é apreendida como tal.” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002b, p.257)

Isto não só nos conecta imediatamente à Whitehead, para quem uma entidade atual

se define como uma perspectiva da natureza, como também ao próprio questionamento

de Viveiros de Castro acerca do ponto de vista dos índios sobre o conceito de ponto de

vista, afinal

[n]ão se trata de perguntar qual é o ponto de vista dos índios sobre o mundo,
porque essa pergunta já contém sua própria resposta. Ela supõe que o ponto de
vista é uma coisa, o mundo uma outra, que o mundo é exterior ao ponto de
vista e que é necessário que se deixe o mundo quieto (isto é, nas mãos dos
cientistas duros) para fazer variar o ponto de vista (questão para os cientistas
macios). É necessário ancorar o ponto de vista na realidade objetiva como um
balão preso à terra por um fio, isto é, para poder fazê-lo divagar, flutuar sem
perigo de se perder no ar; o “mundo” é mais importante que todos os nossos
pontos de vista “sobre” ele. (VIVEIROS DE CASTRO apud SZTUTMAN,
2008, p.109)

Para além, portanto, desta realidade objetiva, o que essas cosmovivências

indígenas, bem como a própria filosofia do processo em certa medida, colocam em

questão, ou melhor, em operação, é exatamente um modo de (produção de) conhecimento

eminentemente subjetivo. Quer dizer, um modo de experiência-pensamento que adiciona

agência ao mundo, como no caso mencionado dos Azande.

Uma imagem interessante que vale recuperarmos a fim de tornar isto mais claro é

exatamente a utilizada por Viveiros de Castro (op. cit.): a das pernas de um compasso.

Composto por um eixo central e duas hastes, uma de suas pernas corresponderia à cultura,

a outra à natureza. No caso de uma visão multiculturalista, é como se “mantivéssemos


143

fixa a haste correspondente à natureza e fizéssemos a da cultura descrever o círculo dos

pontos de vista sobre esse centro que está aí, imóvel, em torno do qual gira a visão

infinitamente diversificada das culturas” (p. 109).

O que é bem diferente das perspectivas indígenas, onde “[é] a cultura que é fixa,

no sentido de que há apenas uma “cultura”, e que o que varia são os corpos que

incorporam essa cultura, que dão a essa cultura expressões diferenciadas” (p. 109).

Os índios, neste sentido, não são relativistas, da mesma maneira que o próprio

perspectivismo ameríndio não diz respeito a um relativismo. Afinal, o relativismo carece

de um universalismo que, aproveitando nossa imagem, o dê régua e compasso.

O ponto que o multinaturalismo nos coloca é, então:

o ponto em que as duas hastes [do compasso] se encontram, é o momento


“imediativo” da natureza e da cultura, o ponto de encontro e de distanciamento
entre o que é corporal e o que é espiritual. Nesse nível, nesse ponto, tudo se
encontra, não se pode dizer que um é móvel e o outro é imóvel, que um é fixo
e o outro varia. Na realidade e ao mesmo tempo, aqui tudo é fixo e móvel.
Natureza e cultura, universalidade e relatividade, são sempre resultados,
nunca condições. (op. cit., p. 110, grifos nossos)

Para além, pois, do relativismo e do universalismo, o multinaturalismo traz à mesa

um relacionalismo generalizado, onde o próprio humano não é o nome de uma substância,

mas efetivamente de uma relação, de uma posição em relação a outras posições possíveis,

sendo “Humano” precisamente aquele que ocupa a posição de sujeito: “é aquele que diz

“eu”” (Id., p. 113).

A humanidade, neste sentido, não é uma convenção ou uma propriedade, mas algo

que circula, como uma “diferença na posição relativa das coisas” (Ibid., p. 114). O que

remete à ideia de uma certa transversalidade indígena que afirma seja que a humanidade

é relativamente universal, seja que o próprio corpo humano, enquanto a forma de todas

as almas, é absolutamente genérico.

E, não por acaso, ele carece, como vimos, de atributos e operações diversas para

que a pessoa se torne mais humana como, mais uma vez, no caso de um bebê:
144

Quando nasce uma criança, a primeira coisa que os que estão em volta fazem
é ver se ela é humana ou não. É preciso conferir se o bebê é realmente um filho
de humano, ou se é um espírito, ou talvez o filhote de algum animal que teria
deitado com a mulher, talvez em sonho, e que teria feito um monstro. Se o bebê
tem a aparência de um ser humano, ele é conservado; em seguida, é necessário
tomar as medidas adequadas para que ele não seja capturado, sequestrado por
outros sujeitos não-humanos. Toda vez que nasce um humano, os animais e os
espíritos em geral costumam ficar enciumados; querem a criança para eles,
buscam capturá-la. É necessário, pois, proteger a criança; ela é frágil porque
sua humanidade é frágil. Deve-se, pois, tomar todas as providências para que
ela seja, de forma clara, definida como um humano. Para isso, é preciso raspar-
lhe o cabelo, pintá-la, furá-la, moldá-la para que se torne humana como nós.
Tudo se conecta; portanto, é preciso diferenciar; é preciso distinguir. (Ibid, p.
112, grifos nossos)

Neste mesmo sentido, a produção da diferença, o próprio devir, é uma

problemática central e crucial nas cosmo-lógicas ameríndias já que fazer um corpo, que

produzir um corpo é, simultaneamente, aquilo que produz também o humano, que devém-

humano. Na própria medida em que é necessário se fazer humano através de toda uma

disciplina corporal que remete não só ao fato de que o corpo é, como dito, absolutamente

genérico, como a uma série de empreitadas hominizantes e diferenciantes, a exemplo das

marcas teriomórficas comuns a muitos povos indígenas.

E disto tudo decorre, claro, uma série de implicações nas práticas alimentares

indígenas que, mais do que nunca, se aliam à toda uma ecologia de práticas que convoca,

por exemplo, práticas xamânicas que se voltam à dessubjetivizar o que há de tornar-se

alimento, a fim de garantir a segurança alimentar dos comensais, mas agora em um

sentido absolutamente distinto do que usualmente pensaríamos na Saúde.

O que convoca também um outro sentido de soberania alimentar em meio a toda

esta cosmopolítica, na própria medida em que comer envolve toda uma ecologia de

práticas que se baseia, inclusive, em uma prática diplomática entre diferentes povos. O

que evidencia como o comer é um ato político, mas, mais do que isso, o comer é

efetivamente um ato cosmopolítico.

Afinal, se agora aquilo que chamaríamos usualmente de alimento é também

humano, mesmo que em potência, qualquer deslize dietético em meio a essa metafísica
145

canibal imediatamente expõe o comensal à predação ontológica, tanto quanto seu próprio

povo à uma guerra ontológico-metafísica com uma infinidade de outros entes.

E, muito embora essa temática seja o solo sob o qual eat (it) frutifica, a questão

por agora é que aqui vemos não só uma complexificação ainda maior do que envolve o

comer e as ecologias de práticas que o atravessam, como também o fato de que o humano

é tributário de um ponto de vista. Isto é, que ser humano é efetivamente uma qualidade

nominal e que, no fim das contas, não se sabe de antemão o que é o humano, muito pelo

contrário.

E é justamente ao não se saber, finalmente, o que ele é que falamos anteriormente

de desumanização da saúde. Tema que, no fim das contas, envolve uma proposição que

essencialmente cosmopolítica, na justa medida em que visa pôr em evidência um

entendimento muito reduzido no campo do que pode ser o humano e do que o humano

pode. Entendimento esse que contrasta absolutamente com o que vemos nestas

cosmologias multinaturalistas, que nos permitem problematizar as operações e os efeitos

tributários desta estreiteza na definição do que é o humano e do que é a humanidade.

Estreiteza essa que implica questões que nos são muito caras e, no limite, o próprio

modo como pensamos seja a produção científica no campo – tanto a nível metodológico

quanto a nível de implantação e impacto social e ambiental –, seja a própria produção do

campo que, quer queira, quer não queira, deixa de fora de seu espectro de discussão uma

infinidade de elementos que, inegavelmente, compõem senão o coletivo, ao menos um

outro entendimento do que é o social.

Acabando por ignorar, como diz Ailton Krenak, a questão de se somos de fato

uma humanidade em meio ao cenário atual, onde “[n]ós nos acostumamos com essa ideia

[de que somos uma humanidade], que foi naturalizada, mas ninguém mais presta atenção

no verdadeiro sentido do que é ser humano.” (2020, pp. 5-6) Na mesma medida em que
146

não presta atenção na própria operação de poder que é definir o humano a partir de uma

perspectiva antropo-egocêntrica.

O que não só faz funcionar uma operatória racista (FOUCAULT, 1999) que cria

toda “uma subhumanidade que vive numa grande miséria, sem chance de sair dela – e

isso também foi naturalizado [–]” (KRENAK, op. cit., p. 7). Uma subhumanidade

composta por “caiçaras, índios, quilombolas, aborígenes (...) [que evidencia como e]xiste,

então, uma humanidade que integra um clube seleto que não aceita novos sócios. E uma

camada mais rústica e orgânica, uma sub-humanidade que fica agarrada na Terra.” (Id.,

p. 8).

Como também de(s)cola de “maneira absoluta desse organismo que é a Terra,

vivendo numa abstração civilizatória que suprime a diversidade, nega a pluralidade das

formas de vida, de existência e de hábitos.” (Ibid., p. 7) Afinal, ao definir os próprios

limites do humano, da humanidade e da vida, opera-se toda uma filtragem dos indivíduos,

estabelecendo cortes nas populações e fragmentando todo o campo do qual o poder

passou a se [pre]ocupar, inclusive em termos de uma biopolítica não-antropocêntrica (Cf.

MASSUMI, 2017b).

O que permite, por sua vez, tanto definir, entre a minha vida e a morte do outro,

os sujeitos que devem viver e os que podem morrer, quanto também definir aqueles e

aquelas que, no limite, podem ser considerados como pertencentes à humanidade a partir

de um enquadramento ontológico-metafísico que, no fim das contas, resume a experiencia

da vida à experiencia antropocêntrica-neurotípica-ocidental. Como bem evidencia Mel

Baggs em In my language onde, partindo de seus modos de expressão-experiência

escancara como:

minha linguagem não é sobre desenhar palavras ou mesmo símbolos visuais


para as pessoas interpretarem. É estar em uma conversa constante com todos
os aspectos do meu ambiente. Reagindo fisicamente a todas as partes do meu
entorno. (...) [E, i]ronicamente, a maneira como me movo ao responder a tudo
147

ao meu redor é descrito como "estar em um mundo próprio", ao passo que se


eu interagir com um conjunto muito mais limitado de respostas e apenas reagir
a uma parte muito mais limitada do meu ambiente, as pessoas afirmam que
estou “abrindo-me para a verdadeira interação com o mundo”[.] (2007,
tradução nossa)24

O ponto, portanto, ao convocarmos o multinaturalismo e outros modos de

pensensação, é que na interface com aquilo que eles nutrem, com seus modos de vida-

experiencia-expressão-pensamento-conhecimento-investigação-criação etc., podemos

cultivar condições para um questionamento dos nossos próprios modos de definir o

humano e as maneiras pelas quais nosso entendimento deste conceito impacta as nossas

práticas seja de produção da saúde, seja de produção de cuidados, seja de produção de

conhecimento, seja ainda as próprias práticas e discussões acerca da problemática da

humanização da saúde e os modos como o humano está implicado nas ecologias que o

rodeiam, o atravessam e o compõem.

24
Cf. BAGGS, Amelia Mel. “In My Language”, 14/01/2007. Disponível em youtube.com/watch?v=
JnylM1hI2jc. Acesso em 12/10/2021.
148

6. Resultados e discussão, parte 2: comporta-mento

6.1. Interlúdi[c]o – eat (it)25

where does it begin

where does it end

in the middle26

in an immanent entanglement

in an (aesth)ethics of emergent relationality

in a plurivocal multiplicity

in a relational imagination

in metamorphosis

in transformation

in metaphysical continuity

in physical discontinuity

25
Publicado originalmente em Art + Australia, ‘Multinaturalism’, Vol 57, No. 1, March, 2021, pp. 68-73.
Este texto mantém as referências formatadas conforme a publicação original, mas devidamente adaptadas
em nossas Referências Bibliográficas.
26
As in Amerindian cosmologies, cannibal metaphysics are lurking at every encounter. The visible shape
of a body may be deceptive and a human appearance may be concealing an animal-affect. Moving from
there and from the perspectival relation in which nature is the form of the third person, this piece builds
itself around the similarity of the sounds of the impersonal pronoun ‘it’ (the form of the other in
multinaturalism) and the verb ‘eat’ (whose phonetic transcription in Australian spelling is precisely ‘it’). It
also approaches the transversality between eating, multinaturalism and otherness by juggling with the
exchangeability of these terms around the relational pointer it and by following the multinaturalist idea that
the origins of perspectival differences depend not on self-perception but on the gaze of the other, so that
this piece is undeniably about eating and the cosmopolitics of becoming related to it, but only by virtue of
it being about the cosmopolitics of becoming related to multinaturalism, as well as the cosmopolitics of
becoming related to otherness. In this same sense, it experiments with immediated perspectives that are, as
Amerindian perspectivism teaches us, exchangeable within multiple relational-positional constellations,
which is to say that every perspectival (pro)position seeds the transformation of the piece from its own
deictic position, so that the very encounter with the piece’s mobile shape and its multiple beginnings feeds
the potential relationality of a form-in-the-making that enacts multiple ways of unmediated exchange, akin
to Amazonian cannibalism. Where does it begin? Where does it end? In the middle, in the condition(al)s,
‘in Amazonia and elsewhere’ (see Eduardo Viveiros de Castro, The Relative Native: Essays on Indigenous
Conceptual Worlds, HAU Books, Chicago, 2015, p. 189).
149

in the hungerness27 that moves

through the qualitative excess

of supernatural encounters28

where does it begin

where does it end

in the middle

decolonise hunger

(when) ecology is everything

that came into being

(when) appearance means

something else

(when) a body can

be deceiving

(when) in the midst of

an ontological potentiality

(of) transforming itself

(when) into a person

(when) others are everywhere

(when) every relation is social

(when) ‘eating ... is a dangerous act’29

(when) (in) the liveliness of the earth-body30

27
See Alexis Milonopoulos, Erin Manning, Jorge Menna Barreto and Ricardo Rodrigues Teixeira, ‘In-
between Hunger and Appetite – Food for Thought in the Act’, Inflexions, no. 11, ‘popfab’, 2019,
senselab.ca/inflexions/popfab/pdfs/alexis.pdf; accessed 29 June 2020.
28
For more on the supernatural, see Viveiros de Castro, ‘Supernature: Under the Gaze of the Other’, The
Relative Native, p. 274.
29
Viveiros de Castro, The Relative Native, p. 274.
30
For a bite of the Indigenous understanding of the earth as a body, see Davi Kopenawa and Bruce Albert,
The Falling Sky: Words of a Yanomami Shaman, Nicholas Elliott and Alison Dundy (trans.), Belknap Press
150

(when) (in) the quality of the encounters

(when) (in) the concern for sharing

(when) (in) existence

(when) (in) the concern for sharing

(when) (in) an appetite (for)

(when) perceiving a world

where does it begin

where does it end

in the middle

revalue taste

(when) we do not know

what a body can do

(when) we do not know

what its soul can do31

(when) there are no fences

over existential territories

(when) there are no distinct

ontological provinces

(when) what moves the world

(when) (in) potentia is a

(when) quality of experience (is)

of Harvard University Press, Cambridge, Mass., 2013, and Ailton Krenak, ‘Do sonho e da terra’, Ideias
para adiar o fim do mundo, Companhia das Letras, São Paulo, 2019. It is worth remembering that for Gilles
Deleuze and Félix Guattari the earth is also a body (without organs). See A Thousand Plateaus: Capitalism
and Schizophrenia, Brian Massumi (trans.), Continuum, London, 2008, p. 45.
31
For the Spinozan mantra, see Baruch Spinoza, The Ethics, Wilder, Floyd, Va., 2009. See also Viveiros
de Castro, The Relative Native, pp. 36–37.
151

(when) ‘the cosmos is

saturated with humanity’32

(when) ‘we ... are the “ecology”’33

(when) we are one with the land

(when) (in) a becoming-form

(when) (in) a becoming multiplicity

(when) (in) the metamorphoses of experience

(when) (in) its emergence

where does it begin

where does it end

in the middle

dehumanise health

‘[when] everything is human

[when] the human is

an entirely different thing’34

(when) in the cosmopolitics35 of becoming

(when) transformation is not

(when) from one thing to another

(when) nothing coincides with itself

(when) no one coincides with itself

32
Eduardo Viveiros de Castro, Cannibal Metaphysics: For a Post-structural Anthropology, Peter Skafish
(ed. and trans.), Univocal Publishing, Minneapolis, 2014, p. 70.
33
Kopenawa and Albert, The Falling Sky, p. 393.
34
Viveiros de Castro, Cannibal Metaphysics, p. 131.
35
While Viveiros de Castro mentions the works of Isabelle Stengers and Bruno Latour around this term, it
is also worth looking at Brian Massumi’s piece ‘Sur le droit à la non-communication des différences’ (‘On
the Right to the Non-Communication of Cultural Difference’), in Couplets: Travels in Speculative
Pragmatism, Duke University Press, Durham, N.C., forthcoming, 2021), where the author cultivates a
discussion around it and around other themes that are transversal and akin to this piece.
152

(when) nature is how

(when) a world expresses itself

(when) there is no stable ground

(when) there are no fixed identities

(when) there is no simple location36

(when) experience shifts

(when) (in) the nondecidable coexistence (of)

(when) (in) more than one perspective

(when) appetiteness37 co-composes (with)

(when) (in) an immanent orientation

(when) (we) change not the subject

but the world

where does it begin

where does it end

in the middle

care for the encounter

(and care-ful with it)

(when) the humanity is leaking38

(when) the human is lurking

(when) alterity is licking

(when) individual substances are

36
See Alfred North Whitehead, Science and the Modern World: Lowell Lectures, 1925, The Free Press,
New York, 1926.
37
See Milonopoulos et al., ‘In-between Hunger and Appetite’.
38
For other appetising discussions around the concept of ‘humanity’, see ‘A humanidade que pensamos
ser’, Ideias para adiar o fim do mundo, and O amanhã não está à venda, Companhia das Letras, São Paulo,
2020, both by Ailton Krenak. In addition to that, from a process philosophy-oriented gaze, see Erin
Manning’s discussion on the more-than-human in The Minor Gesture, Duke University Press, Durham,
N.C., and London, 2016.
153

not the ultimate reality

(when) substantial forms are

not the ultimate reality

(when) the similarity of souls

(when) (it) prevails over

(when) the differences of body

(when) in the metamorphosis

of emergent relations

(when) the perspective is transductive

(when) food is transversally (cosmo)political

(when) eating is not an individual affair

(when) it is the continuation of (cosmo)politics

(when) by the same means

(when) it is always more-than

where does it begin

where does it end

in the middle

cook with affect(ion)39

(when) there is more than

one world in play

(when) ‘things and beings are

themselves points of view’40

(when) ‘there is scarcely an existent

39
See Spinoza, The Ethics, as well as Brian Massumi, Politics of Affect, Polity, Cambridge, UK, 2015.
40
Gilles Deleuze, Bergsonism, Zone Books, New York, 1988, p. 203.
154

that could not be defined in terms [of]

[when] [in] its relative position

[when] on a scale of predatory power’41

(when) eating is radically relational

(when) anthropophagy (as anthropology)42

(when) (it) feeds ‘the resemblance shared

by dead humans and living nonhumans’43

(when) the interactional field is

(when) (it is) ontologically heterogeneous

(when) the interactional field is

(when) (it is) sociologically continuous

(when) humanity is reciprocally reflexive

(when) (it) is never mutual

(when) what exists are relational multiplicities

where does it begin

where does it end

in the middle

devour otherness

(when) all animals are

intensively and virtually

(when) (it) persons

(when) cosmic constituents are

intensively and virtually

41
Viveiros de Castro, Cannibal Metaphysics, p. 57.
42
See Viveiros de Castro, Cannibal Metaphysics, p. 143.
43
Viveiros de Castro, Cannibal Metaphysics, p. 155.
155

(when) (it) (is) persons

(when) the immanent humanity is

(when) structured by alterity

(when) life is ecological

(when) the human is not a being

(when) the biological is not enough

(when) it is a relation that comprises

a multiplicity of subjective positions

(when) the movement of

the jaw is the movement

of the earth

it middles

it bodies

it worlds

it c(a)osmos44

it explodes

the rooftop (of)

the mouth

where does it begin

where does it end

in the middle

transfꜵrm the body45

44
See Félix Guattari, Chaosmosis: An Ethico-aesthetic Paradigm, Paul Bains and Julian Pefanis (trans.),
Indiana University Press, Bloomington, Ind., 1995.
45
Fed by Indigenous farming practices and by previous conversations around the relations between food
practices, agroecology and rewilding strategies (see Milonopoulos et al., ‘In-between Hunger and
Appetite’), especially within the dialogue and collaboration with Brazilian artist Jorgge Menna Barreto in
156

where does it begin

where does it end

in the middle

in the thirdness (of)

(in) an encounter

in the more-than (of)

(in) otherness

(in) fꜵrmation

in feeling

(in) a world

in difference

in the excess (of)

(in) differentiation

in becoming-worlds

in life-living

in the vividness of it

rewild appetite46

the work Restauro: Environmental Sculpture (2016–ongoing), the term ‘transfꜵrm’ not only alludes to the
composition ‘Refazenda’ by Brazilian composer Gilberto Gil (1975)—loosely transcreated here as the
wor(l)d ‘transfarm’—but cultivates Barreto’s understanding of the digestive system as a sculptural tool of
the landscape. Pollinating both the ideas that farming and eating transform and sculpt the ambient, plus that
environmental sculpting and its transversal(itie)s can sow tastier compositions and trans-formations with
earth(s), it also regards the fact that in shamanism transformation is a sign of power, and sculpting a (human)
form is part of the shamanic work (especially of desubjectivisation and despiritualisation of animals) that
flourishes within the dietary rules, the food restrictions and the precautions that move around the danger of
cannibal counter-predation and the inversion of perspectives in Amerindian cosmologies. See Viveiros de
Castro, The Relative Native, p. 269, and Cannibal Metaphysics, p. 60. For more on environmental sculpture,
see jorggemennabarreto.com/Enzyme-Magazine; accessed 9 July 2020.
46
Author’s note: This study was financed in part by the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior - Brasil (CAPES) - Finance Code 001.
157

6.2. To bife or not to bife, eis a questão: ontogênese, comporta-mento, hum(an)os e


su(per)jeitos
The subject with its perspective
does not pre-exist its feelings
but creates itself through them.
Alfred North Whitehead

hombre/hambre
Décio Pignatari

Tupi or not tupi, that is the question


Oswald de Andrade

To be or not to be, eis a questão. Será mesmo? Quer dizer, seguramente ela é, só

que para Hamlet e talvez Ofélia, Polônio, o Rei e até mesmo Shakespeare (2005). E para

nós? Será que após tantas camadas de solo e discussão esta questão deveria ser formulada

ainda sobre esses termos?

Ou seja, o que se passa entre o to be e o not to be quando não há mais nenhuma

distinção entre homem-cosmos, entre sociedade-ambiente, entre corpo-mundo? O que

acontece com o ser (e o[s] não ser[es]) quando pensamos-com essas experiências que não

só excedem o humano, como contemplam outras pessoas, outras agências, outras

cri/atividades e todo um campo relacional recheado de potenciais mais-que humanos que

não esgotam ou sobrecodificam as potências da vida?

Pois bem, se recuperamos estas perguntas, especialmente este questionamento

célebre de Hamlet, é justa e precisamente porque elas nos permitem, tanto quanto tudo

que viemos cultivando até agora, lançar questões sobre o próprio modo como formulamos

o problema do comportamento humano que figura, de fato, como um elemento e uma

questão central no contexto pós-transição epidemiológica, demográfica e nutricional.

E isto, sobretudo, frente à emergência e ao alastramento de uma série de doenças

e condições crônico-degenerativas às quais a Saúde deve responder e que alçaram o

comportamento a esse lugar central de objeto privilegiado das práticas em Saúde, que

passaram a sustentar, por sua vez, um novo desafio: o de alterar o comportamento.


158

Foi inclusive neste contexto que as práticas em Educação e Comunicação em

Saúde acederam também a um lugar de destaque na ecologia das práticas em Saúde, já

que foram tomadas como elementos fundamentais para a prevenção ou, ao menos, para o

adiamento do aparecimento de tais doenças e condições. Articulando, assim, questões,

teorias e métodos caros a cada um destes campos, mas cujo fulcro compartilhado é

exatamente o comportamento (Cf. TEIXEIRA, 1997).

Neste mesmo sentido, por mais que tais movimentações tenham começado a

acontecer no início do século XX, ainda permanece presente “a ideia de que a Educação

em Saúde define os objetivos (o sentido da mudança de comportamento) e os conteúdos

apropriados (as “mensagens”)” (TEIXEIRA, 2018, p. 1). Enquanto a Comunicação é, à

sua vez, a responsável por fornecer “as “bases científicas da mudança de

comportamento”, indicando os “meios” apropriados para a transmissão das mensagens,

isto é, aqueles que mais eficazmente produziriam os efeitos esperados” (Id., p. 1).

A rigor, então, essa ecologia de práticas médico-sanitárias se assenta, não por

acaso, em um entendimento sobre o comportamento onde este pode ser alterado a partir

do compartilhamento de informações pertinentes e adequadas que, a princípio, deveriam

senão garantir, ao menos aumentar a adesão dos pacientes ou da população a um

tratamento, à uma prescrição, à uma indicação, ou ainda às próprias normas, condutas e

saberes médico-sanitários.

Entendimento esse que remete a um modelo unilinear e unidimensional que

permanece sendo uma das ferramentas de trabalho mais elementar dos profissionais de

saúde, que usualmente agem a partir de uma perspectiva prescritiva. Tomando como

ponto de partida justamente a ideia de que o que está em questão na mudança de

comportamento é algo tributário da razoabilidade da prescrição e da cientificidade do


159

saber médico-sanitário, bem como o próprio o entendimento de que o comportamento

pode ser heterodeterminado, isto é, que ele pode ser determinado “de fora”.

Contudo, já é sabido que a adoção de uma prática de vida ou de uma mudança de

hábito, tanto quanto a adesão à alguma medida ou estratégia de saúde não diz respeito

única e exclusivamente a esse investimento exterior, a esta heteroregulação. Muito

embora este modelo, por mais que tenha se demonstrado como pouco efetivo ao longo

dos anos, mantenha seu lugar ao sol.

O que não é dizer, ainda assim, que não há nada de novo sob sol. A própria

centralidade da questão do comportamento forçou o campo a pensar, ao longo dos últimos

anos, diferentes formas de se compreender e de se colocar este problema. Cada qual

operando distintos modos de entendimento sobre aquilo que causa a conduta humana e

que determina nosso comportamento. Nutrindo, assim, diversas estratégias educativo-

comunicacionais que suportam as práticas e as investidas médico-sanitárias sobre o

comportamento.

Ao longo, inclusive, da própria história desta problemática, podemos observar

diferentes modos de se compreender e de se abordar a temática da determinação do

comportamento humano e daquilo que causa nossas condutas. Como no caso do já citado

modelo unidirecional de Lasswell, bem como nos modelos dialógico (Cf. FREIRE, 1971)

e estrutural (Cf. MANN et al., 1993) que, cada um à sua maneira, redistribuem a agência

entre os envolvidos nesta problemática. Polinizando sujeitos, alteridades e um novo

diagrama de relações possíveis entre saberes, conhecimentos, indivíduos, instituições e

experiências.

O ponto que nos interessa é, neste sentido, que estes dois últimos modelos não só

apontam, como em grande medida são efetivamente o próprio fruto da emergência – na


160

dupla acepção do termo – da necessidade de uma reorientação das estratégias de

prevenção e de suas estratégias comunicacionais, a exemplo daquilo que a própria

(...) experiência histórica da epidemia de HIV/AIDS [fez, a saber:] colocou em


crise as práticas transmissionistas e autoritárias do modelo tradicional e abriu
o campo para [esses] dois modelos, sob certos aspectos polares, mas não
opostos, já que entraram em composição, constituindo as bases sobre as quais
se assentavam as melhores práticas de Comunicação e Educação em Saúde no
limiar do século XXI (...) [que] partem da combinação de duas premissas
básicas:
- A da autodeterminação do comportamento, por um lado, e
- A de que dimensões estruturais e coletivas definem o campo de possibilidades
dessa autodeterminação, por outro. (TEIXEIRA, op. cit., p. 8)

Mais do que isso, eles evidenciam a existência de um elemento ético-político que

atravessa cada um destes modelos, que são, ao fim e ao cabo, indissociáveis de um certo

modo de se pensar seja o social, seja o político, seja, no limite, o próprio problema do

governo da vida e da conduta humana.

O que implica toda uma ecologia de poderes que, em nosso caso, como já

explicitamos anteriormente, envolve certos conceitos de sujeito, de humano, de agência,

de consciência, de volição e de intencionalidade, tanto quanto certos pares e esquemas

duais como emissor-receptor, estímulo-resposta e, até mesmo, saúde-doença.

O que nos remete, além do mais, à toda uma multiplicidade de técnicas, táticas e

dispositivos que visam modificar e conduzir a conduta dos homens e que adentram o

campo micropolítico do problema do governo da conduta humana, fazendo florescer um

campo de investimentos sobre o comportamento que atravessam os dois eixos implicados

no conceito de governamentalidade de Foucault:

por um lado, a superfície de contato entre as técnicas de governo que visam a


sujeição dos indivíduos e as maneiras pelas quais estes resistem, não se
deixando governar, (...) criando novas maneiras de governo de si para,
justamente, escapar da sujeição; e, por outro, o campo de interseção em que se
articulam as relações entre essas formas específicas e criativas de governo de
si e os modos de governar os outros que delas podem derivar, modos [estes]
(...) que podem vir a fundar novas técnicas de sujeição” (MARTINS;
PEIXOTO JUNIOR, 2013, p. 255)

É inclusive exatamente no espaço entre o ser conduzido e o conduzir a si mesmo

que emerge uma contra-conduta, um outro polo onde é possível situarmos e


161

problematizarmos as práticas prescritivas do saber-poder biomédico acerca dos

comportamentos e dos modos de vida desejáveis, aceitáveis e saudáveis, inclusive no

tocante à alimentação. Bem como a outros elementos que compõem a existência e a vida

humana, e que remetem a

aspectos de vulnerabilidade, [onde] destacam-se a pobreza; a exclusão de base


racial; a rigidez de papéis e condutas nas relações de gênero; a intolerância à
diversidade, especialmente de opção sexual; o limitado diálogo com as novas
gerações e a consequente incompreensão dos seus valores e projetos; o descaso
com o bem estar das gerações mais idosas e a impressionante desintegração da
sociedade civil no mundo globalizado, gerando uma violência estrutural que
amalgama todos os demais aspectos de vulnerabilidade num perverso
sinergismo (AYRES, 2002, p.12).

Sinergismo este que, numa microfísica do poder (FOUCAULT, 1979a), pode ser

entendido como o próprio produto de um certo diagrama de poder. Ou seja, esses

elementos atravessam condutas que, embora correlatas à práticas, remetem mais à forma

da ação humana enquanto expressão de técnicas de governo micropolítico da vida, e

menos à singularização de um certo modo de relação, como no nosso caso, com a

alimentação.

Um bom exemplo, aliás, que toca essa distinção entre conduta e prática, remete

às práticas ascéticas que, ao longo da história do mundo antigo, configuraram estilísticas

da existência onde a “prática do regime (...) [era uma] arte de vida, bem diferente de um

conjunto de precauções destinadas a evitar doenças ou a acabar de curá-las”

(FOUCAULT, 2003, p. 123, grifo nossos).

De tal modo que o que interessava era a constituição de uma ética de si onde a

dietética operava como uma arte estratégica, uma técnica de existência que “(...) não se

[contentava] em transmitir os conselhos de um médico para um indivíduo que iria aplicá-

los passivamente” (Id., p. 97). Tanto que a dieta “não [era] concebida como uma

obediência nua ao saber do outro; ela deveria ser, por parte do indivíduo, uma prática

refletida de si mesmo e de seu corpo.” (Ibid., p. 97)


162

Todavia, a rigor, em meio à governamentalidade neoliberal (Cf. FOUCAULT,

2008), o poder opera também pelo investimento, pela definição e pelo cuidado do corpo

“como uma unidade bioeconômica, [onde] a função do biopoder é definir a liberdade e a

verdade do indivíduo em termos econômicos e biológicos” (McGUSHIN, 2007, p. 239).

E onde à razão “é dada a tarefa de compreender o corpo nesses termos e estabelecer as

condições nas quais ele pode ser livre [e, por fim, onde] (...) a própria ascese foi absorvida

pela biopolítica (...)” (Id., p 239, grifo nosso).

É frente, pois, a este diagrama biopolítico, onde falamos de uma conduta alimentar

e onde o alimento é colocado em meio a uma profusão de signos, enunciados, imagens e

discursos atravessados pelo biopoder, que podemos também situar a transformação

contemporânea da alimentação em uma problemática funcional, prescritiva e terapêutica

(Cf. COSTA, 2010) que compõe a nova seara de intervenções do saber-poder biomédico

sobre a vida.

O que nos remete também, em termos contra-conductuais, à própria emergência

de condições para se pensar criticamente a alimentação e a determinação da conduta

alimentar para além do discurso médico-científico da promoção da saúde e da

alimentação saudável (Cf. KRAEMER et al., 2014. Discursos estes que determinam a

prática e a conduta de muitos profissionais da Saúde que acabam por ignorar a complexa

natureza da alimentação e as estratégias do biopoder, bem como as técnicas de si e as

práticas de resistência que são, vale lembrarmos, a própria condição do exercício do

poder.

Estratégias estas que, como aludimos anteriormente, engendram um entendimento

meramente biologizante do comer, da fome e da vida, e isto, vale ratificar, frente a um

legítimo esforço de parte dos pensadores do campo para, como também buscamos situar

em outro momento, alargar o campo crítico e problemático da fome, do comer e do viver


163

a partir de um referencial biopolítico (Cf. BOSI; PRADO, 2011; CASTIEL, 1996;

CASTIEL; FERREIRA; MORAES, 2014; KRAEMER et al., op. cit.).

Neste mesmo sentido, somando-se a esta dimensão ético-[bio]política, há também

uma esfera ontológica que atravessa a problemática do comportamento e que remete à

uma série de mudanças na própria compreensão daquilo que causa e determina o

comportamento humano, assim como ao aparecimento de distintas estratégias para se

lidar com esta questão. Estratégias que passam, inclusive, a se debruçar sobre toda essa

dimensão capital e subexplorada da problemática do comportamento: a sua dimensão

ontológica.

Somando-se, assim, à determinação da conduta a partir de uma perspectiva da

governamentalidade e de uma microfísica do poder, a problemática do comportamento

ganha novos contornos que, para além do referencial foucaultiano das técnicas de governo

da conduta humana e da emergência de contra-condutas, debruçam-se sobre a

problemática da criação de comportamentos. Com destaque para o referencial proposto

por Cyrino e Teixeira (2017) em diálogo com Lévy (1996) e que diz respeito ao

funcionamento de um motor ontológico relativo ao que nomeiam como quadrivium

ontológico.

Não por acaso, aliás, o esquema do quadrívio ontológico convoca, sustenta e opera

um ferramental conceitual que situa a própria problemática do comportamento e a sua

discussão em uma ontologia do comportamento. O que cria condições para olharmos para

diferentes condutas, práticas e perspectivas a partir da diferença entre a efetiva

determinação heteronômica de uma conduta e a criação de comportamentos e práticas.

Como bem nos mostram Cyrino e Teixeira, o problema da determinação do

comportamento usualmente baliza-se pela definição de um campo de comportamentos


164

possíveis que podem se realizar (ou não), o que estabelece uma relação íntima entre dois

elementos do quadrívio: o possível e o real.

Relação esta que se situa, portanto, na ordem do facultativo e que se move por

meio de algo que vem fundamentalmente de fora. Ou seja, de variáveis que podem

aumentar ou diminuir as chances, as probabilidades de realização de um comportamento,

como uma informação, um conhecimento, um dado, uma prescrição, etc. Justamente

porque nesta perspectiva:

não há nenhuma diferença de natureza entre as ações possíveis e as ações


realizadas (ou simplesmente ações reais): ambas existem e são claramente
verificáveis, a única diferença é que a ação possível (ainda) não se realizou,
mas não deixa de existir enquanto possibilidade. Tais ações são, ademais,
passíveis de serem estudadas em suas “condições de possibilidade”, isto é,
buscando-se o reconhecimento de todas as variáveis que possam aumentar ou
diminuir as chances de uma realização. (CYRINO; TEIXEIRA, op. cit., p. 15)

O deslizamento proposto por Cyrino e Teixeira implica, assim, a própria

compreensão da relação entre saber e ação a partir de um outro ponto de vista. Quer dizer

no sentido de um deslocamento do binômio informação-comportamento para uma

articulação que se dá em outros termos, ou melhor, em outra relação: entre problema-

saber-ação.

O que coloca em questão as próprias ideias de vontade, de volição, de livre-

arbítrio, isto é, a própria enunciação e o próprio entendimento de que a realização de um

comportamento é tributária fundamentalmente de uma relação entre saber e poder, e que

essa realização se dá em meio à um campo de possibilidades onde escolhe-se ou não

realizar tal ou qual comportamento. E, não por acaso,

[d]esse ponto de vista, é compreensível que o médico se exaspere com a no-


compliance de seu paciente. O profissional reconhece o conjunto de ações
prescritas (que são competências não apenas requeridas, mas, quase sempre, já
adquiridas) como ações sempre possíveis de se realizar e que só não se
realizam por uma falta de vontade da parte do paciente: ele sabe fazer, portanto,
se não faz, é porque não quer. E, de fato, se todo esquema compreensivo de
que se dispõe para interpretar a ação humana é aquele que vai de uma ação
possível (uma possibilidade de ação) a uma ação realizada, tudo se resume à
intervenção da vontade, à autodeliberação de cada um em realizá-la. O velho
esquema: conhecimento + vontade = mudança de comportamento. É assim que
165

as coisas funcionam, segundo a visão dominante entre os médicos e outros


profissionais de saúde. (Id., p. 14)

Os autores buscam dar conta, então, da diferença entre comportamentos possíveis

e a invenção de comportamentos. Ou seja, da diferença entre comportamentos adquiridos

e realizados pelo contato com um polo emissor de conhecimentos técnico-científicos

(como profissionais e serviços de Saúde, encontros clínicos-assistenciais e estratégias de

Educação e Comunicação em Saúde) e comportamentos que são criados, ancorados e

orientados pela solução de problemas colocados à existência concreta de um sujeito.

O que é dizer que, frente à experiência singular de se viver em ato, em meio a

condições de [im]possibilidade, o que está em questão é menos educar a fim de modificar

comportamentos pelo conhecimento, e mais de apoiar o “processo de criação de

competências (cognitivas, técnicas, existenciais e comunicacionais) [e comportamentos]

singulares” (Ibid., p. 20).

O que remete ao próprio fato de que, ao partir da ideia de que um

comportamento/competência não pode ser “adquirido” ou vir “de fora”, adentramos em

uma esfera que é essencialmente criativa, pois um comportamento trata, na perspectiva

destes autores, efetivamente de uma criação, de uma invenção singular de um sujeito, o

que ressoa elementos que trouxemos anteriormente em nossas discussões.

Bem como evidencia que um dos pontos centrais desta discussão é justamente que

competências e comportamentos não existem previamente à sua manifestação: eles “não

exist[em] na latência de um conjunto de ações possíveis” (Id. ibid., p. 14). O que alimenta,

por sua vez, o próprio fato de que um comportamento, uma conduta, uma prática, uma

competência, uma estratégia de autocuidado, de cuidado de si (Cf. FOUCAULT, 1985) é

atualizado em referência a um campo problemático virtual ao qual precisa ser

reconduzido (Cf. DELEUZE, 1996).


166

Ao deslizarem, assim, de uma ideia de realização em favor de uma ideia de

atualização, Cyrino e Teixeira nos deslocam da ordem do facultativo para a ordem do

necessário e do atual. Especialmente porque a invenção comportamentos e a criação de

competências

não guardam com seus condicionantes uma relação de possibilidade, mas uma
relação de necessidade. Pode se dizer que sua manifestação obedece a uma
imposição vital. Não dependem mais do arbítrio de alguém que, em dadas
condições de possibilidade, possa escolher realizá-la ou não, mas se
manifestam em ato como exigências vitais atravessando o que se poderia
chamar das “condições de impossibilidade” que se colocam para a existência
de cada um. (op. cit., p. 15)

Tomemos como exemplo as práticas alimentares que envolvem o diabetes, uma

condição de saúde frente à qual necessariamente inventa-se um saber-ser diabético que

se traduz em uma estratégia de autocuidado, de cuidado-de-si e, mais precisamente, em

um saber-comer que se atualiza em uma prática alimentar.

E que é, finalmente, a criação de uma solução para um problema que emerge da

experiência singular de se viver com uma dada condição de saúde (Cf. CYRINO, 2009),

como no caso específico da diabetes. Até porque

[foi] quando nos interrogamos a respeito de quais são, afinal de contas, os


problemas que enfrentam [os diabéticos], descobrimos que, em grande parte,
aquilo que se coloca como solução para os problemas dos diabéticos segundo
a concepção dos médicos, se reconfigura como uma parte importante do
campo problemático efetivo dos diabéticos. Em síntese: a solução dos
problemas posta por um é o começo do campo problemático vivido pelo outro.
A dieta hipocalórica, indicada por um como solução para o problema
(hiperglicemia), é para o outro, na verdade, o começo do problema que
realmente deverá ser resolvido (fazer uma dieta hipocalórica em dadas
condições de vida). (Id., p. 15, grifos nossos)

O fazer, neste sentido, não só não está desconectado das condições de vida, como

efetivamente envolve uma série de saberes da experiência que são tributários das

restrições, desafios e constrangimentos do próprio cotidiano ao perseverar da existência.

De tal modo que problemas são tudo, menos abstratos, tanto que

entre a ação efetiva [de um comportamento, de uma competência] e um suposto


estado “prévio”, em que residiria sua suposta “latência”, há uma absoluta
diferença de natureza: ela simplesmente não existia antes de se manifestar em
ato (por isso preferimos, ao invés de dizer que se realiza, dizer que se atualiza).
167

“Antes” dela não podemos verificar nada que tenha existência, mas, quando
muito, que se verifica enquanto potência. Esse “antes” só pode ser concebido
como “pura potência”. Essa, entretanto, sequer pode ser concebida como
“anterioridade” e, por isso, sua relação com o manifesto é da ordem do
necessário e do atual. O não manifesto não existe! (Ibid., p. 15)

A potência, assim, seguem os autores, “se confunde com a existência, já que é

potência de existir (...) [tanto que o] que existe em ato expressa imediatamente uma

potência” (Id. ibid., p. 16), expressando-se singularmente “como a solução encontrada ao

atravessar as “condições de impossibilidade” que se colocam para o existir”.” (op. cit., p.

16)

O que nos enraíza, efetivamente, em uma discussão declaradamente filosófica e

que aponta para o que Cyrino e Teixeira aventam como uma “ontologia da ação humana”,

que é correlata à uma “ontologia das competências”. Ontologias essas que evidenciam

como há, no fim das contas, “toda [um]a gama de relações inextricáveis entre esses quatro

modos de ser: possível, real, virtual e atual” (Id., p. 16), e que compõem o quadrívio

ontológico.

Introduzido pelo diálogo com Lévy, é por meio dele que os autores não só põem

esta máquina ontológica para funcionar, como aprofundam as diferenças entre estes

distintos modos de ser e suas passagens correlatas – a potencialização, a realização, a

virtualização e a atualização –, onde de fato

[r]eal, possível, atual e virtual são quatro modos de ser diferentes, mas quase
sempre operando juntos em cada fenômeno concreto que se pode analisar.
[Afinal, t]oda situação viva faz funcionar uma espécie de motor ontológico a
quatro tempos e portanto jamais deve ser ‘guardada’ em bloco num dos quatro
compartimentos.” (Ibid., pp. 141-142)

Em meio, assim, à problemática do latente (correlata ao possível e ao virtual) e do

manifesto (correlato, por sua vez, ao real e ao atual), o que nos leva a convocar e situar

esta discussão, tanto quanto as proposições foucaultianas que atravessam a problemática

da conduta humana, é que elas permitem que evidenciemos duas dimensões constitutivas
168

e fundamentais da problemática do comportamento, a saber, uma dimensão ontológica e

uma dimensão política.

E, com efeito, seguindo nesse mesmo sentido, há sempre que se considerar “as

condições objetivas de que dispõe [o sujeito] para transformar suas práticas” (AYRES,

2009, p. 449), que são determinadas também “pelo lugar que ocupa o indivíduo

socialmente, [o que compõe] seu modo de vida e o acesso que dispõe junto às redes de

cuidado e proteção social” (CYRINO; TEIXEIRA, op. cit., p. 199), bem como a sua

perplicação com determinantes estruturais, coletivos, institucionais que vão afetar a sua

existência e a própria produção de seu comportamento.

No entanto, e este é o ponto no qual queríamos chegar, nós consideramos que as

inflexões contemporâneas acerca do entendimento do comportamento humano se

relacionam também às inflexões nos movimentos do próprio capitalismo que, como

mostra Massumi (2015a, 2016, 2018), já não se sustenta mais na distinção entre as esferas

da produção e da circulação, e sim na criação de condições para que os seus produtos e

formas de vida emerjam.

O que quer dizer, em outras palavras, que o capitalismo aprendeu a valorizar as

matrizes de emergência. De modo que na contemporaneidade importa menos o latente ou

o manifesto porque o capital toma corpo de maneira sempre emergente. Ele opera não

mais apenas na lida com elementos cristalizados, atualizados, sedimentados e

individuados – tais como mercadorias, sujeitos e comportamentos –, mas

fundamentalmente em um nível infracorpóreo, ou seja, no nível do potencial imanente à

existência.

O que nos interessa é, portanto, que no processo do capitalismo, definido pela

própria captura dos potenciais tendenciais que revolvem no mundo, estamos diretamente

em relação com a “atividade formativa, ainda não completamente canalizada para assumir
169

determinada forma.” (MASSUMI, 2016, p. 26) E ao considerarmos essa inflexão no

processo do capitalismo, abrimos caminho para exploramos uma outra inflexão, correlata

a ela, e que diz respeito à problemática do comportamento humano.

Inflexão essa que é terra fértil para pensarmos como estes processos manipulam

não só as condições de (im)possibilidade, mas direta e continuamente os próprios

potenciais de afloramento da vida. Precisamente no nível onde os potenciais de

emergência são encontrados, isto é, em um infranível: em um nível onde o que está em

questão é o próprio engendramento de uma determinada existência, de um determinado

comportamento. De algo, em suma, prefigurado no influxo de um potencial cuja forma é,

como dissemos, ainda indefinida.

Esta modulação, esta manipulação é, não por acaso, o que constitui uma forma

extrema de poder que Massumi (2015a), ressoando a analítica do poder foucaultiana,

nomeia como ontopoder: o poder de fazer ser, de engendrar, de domar a transformação

qualitativa.

Convocamos tal discussão, deste modo, porque as inflexões que ocorreram no

capitalismo dizem respeito ao fato de que o próprio processo capitalista fez de si mesmo

um ontopoder. E, nesta mesma direção, o modo como o ontopoder do capitalismo se

estende à produção dos indivíduos e às formas de vida do capital relaciona-se seja aos

meios de acessar de maneira produtiva as matrizes de emergência, os níveis

infraindividuais (lá onde um hábito, um comportamento, uma prática, senão uma vida

ainda estão por emergir). Seja, a rigor, o da intervenção, tanto quanto o da própria

produção dos micromovimentos formativos do indivíduo emergente, isto é, da formação

de seus desejos, de suas tendências, de suas fomes e de seus apetites.

Esta problemática ontopolítica evidencia também um desencontro, um

descompasso fundamental entre esse regime de ontopoder e a própria noção de


170

individualidade. Noção essa que se atrela, entre tantas outras coisas, a noções e conceitos

como os de sujeito, de corpo e de identidade, todos estes relacionados, por sua vez, ao

mecanismo da representação e a uma certa teoria social que baseia-se na oposição entre

“macro” e “micro”, entre “geral” e “particular”, entre “sociedade” e “indivíduo”, etc. (Cf.

LATOUR et al., 2012).

E por que me refiro a este mecanismo e a esta oposição? Justa e precisamente

porque este mecanismo da representação é, no contexto do exercício do ontopoder,

absolutamente obsoleto, já que ele necessita de uma identidade estável em ambas as

escalas: infra e transindividual. Enquanto o capitalismo, por sua vez, atua exatamente

neste

ponto onde o indivíduo está emergentemente dividido entre as inflexões


potenciais dos seus próprios movimentos autoformativos (...) [, emparelhando]
diretamente esse nível infraindividual com o nível transindividual (...)[. De tal
forma que e]le se revigora com os efeitos da retroalimentação entre os níveis
“infra-” e os transindividuais de modo a contornar tranquilamente o nível
intermediário do indivíduo supostamente autônomo. (MASSUMI, op. cit., p.
11)

Nível este onde usualmente encontramos situada a discussão sobre o

comportamento que tornar-se também uma questão espinhosa nesta perspectiva

ontopolítica, já que o próprio

nível da pessoa – no qual gostamos de pensar que funcionamos – se vê reduzido


a um mecanismo de dobradiça através do qual o “infra-” e o “trans-” se
comunicam: um “modelo de realização” do capital global miniaturizado,
ampliado para caber nos contornos do corpo humano (ou melhor, o padrão dos
movimentos do corpo todo indexando o fluxo de um quantum de devir-capital-
humano). O nível transindividual é, em seu horizonte mais amplo, a rede
mundial integrada de movimentos qualitativamente transformacionais cujas
complexidade e contingência escapam não só ao controle humano individual,
mas ao domínio de todo e qualquer Estado-nação individual. (Id., p. 12)

E se falávamos anteriormente de um motor ontológico, a questão agora é

exatamente que o próprio capitalismo aprendeu a se motorizar de um modo que é

imanente aos seus movimentos, operando a sua própria máquina ontogenética, que bebe

diretamente no nível imanente em que os potenciais de emergência são encontrados.


171

A exemplo dos mercados financeiros, que são a epítome de uma mais-valia de

fluxo, onde:

[n]esse nível, a mais-valia é produzida ao alavancar movimentos do capital, ao


jogar com a rotatividade, ao tocar no compasso das transações, ao predizer as
tendências sem qualquer necessidade de um produto concretizado emergir –
isto é, puramente através de produtos abstratos, de segunda ordem, como os
derivativos e os swaps de crédito. Foi rumo a esse curto-circuito de produção
que o centro de gravidade da economia se moveu, como que em busca de uma
alma – como se o espírito do capitalismo se esforçasse para se livrar do corpo
da produção. (Ibid., p. 6, grifos nossos)

E é em meio a essa abstração do capital, quer dizer, de sua auto-abstração, que nos

vemos situados em um mo[vi]mento onde, não por acaso,

[o] valor do setor financeiro é, agora, muitas vezes maior que o do setor
manufatureiro nas economias desenvolvidas. [E a]inda que a autoabstração
nunca possa ser completa, e que a articulação dos mercados financeiros com a
economia dita “real” não possa ser eliminada, é extremamente significativo
que o equilíbrio tenha mudado, e que o esforço do capital para levitar a si
mesmo da esfera da produção concreta tenha assumido o primeiro plano. (Id.
ibid., p. 7, grifo nosso)

Somando-se a essa mudança de equilíbrio, um outro exemplo de como o

capitalismo aprendeu a valorizar as matrizes de emergência é a biotecnologia.

Especificamente porque ela, diferentemente dos mercados financeiros, “não abstrai o

corpo fora. Ela o abstrai na existência. Ela desce até o nível vital da matéria emergente,

o gene, a fim de manipular os potenciais de reafloramento da vida.” (MASSUMI, op.

cit., p. 8, grifos nossos) Ela opera, assim, em um nível infracorpóreo, de tal maneira que

as “[r]ecorporificações biotecnológicas (...) são mais cultivadas do que manufaturadas -

elas não são fabricadas em si, mas fabricadas para assumir uma forma através da

manipulação dos modos como os potenciais expressam a si mesmos.” (Ibid., p. 8, grifos

nossos)

E se convocamos estes exemplos é porque eles evidenciam que o que está em

questão neste infranível é precisamente o devir, o próprio processo de devir do ser, sua

ontogênese, ou seja, o nível infracorpóreo do potencial que é imanente à existência e que,

em fluxo, não carece do sujeito, da pessoa ou do indivíduo para operar.


172

Ao debruçar-se sobre a própria atividade formativa, o ontopoder se ocupa assim

de micromovimentos em formação, modulando a tomada-de-determinada-forma daquilo

que ainda não está completamente formado e que remete ao que Massumi nomeia como

atividade nua, que “[n]o que diz respeito ao infra-humano, (...) são os altos e baixos do

desejo, tendência, medo, esperança, interesse pessoal, simpatia, tensionamentos por ação

e aliviamentos em relações”. (op. cit., p. 11)

Neste campo de vida germinal, portanto, to be or not to be is not the question ou

melhor, ser ou não ser é a falsa questão, o falso problema, porque o ser não é uma métrica,

um elemento, uma substância ou qualquer coisa que pré-exista a estes micromovimentos

formativos. No mesmo sentido em que a vida não existe em si mesma, de uma tal maneira

que “[m]ais do que (...) qualquer em-si das coisas, estamos falando do de-si do mundo: a

entrega-de-si do potencial do mundo; o movimento partitivo, parturicional da atividade

formativa.” (Id., p. 26)

Em meio a esta nova ecologia do poder, o que está em jogo é, portanto, não a

transformação do indivíduo, mas a própria trans-formação dividual-ecológica. Quer

dizer, está em jogo um processo transversal que opera em níveis trans e infraindividuais

e que nos abre, ainda, para uma multiplicidade de tendências que não podem ser reduzidas

às relações e ao processo capitalista em si. Visto que há

(...) uma superabundância de potenciais imanentes ao campo do capitalismo,


mas que não estão dentro do seu sistema. Há sempre um excesso de atividade
em andamento que não foi mobilizado à ação. Há sempre um excesso de
potenciais (puissances) se insinuando, mas que ainda não foram canalizados
para o exercício dos poderes (pouvoirs). (Ibid., p. 27)

O que não quer dizer, entretanto, que essa dimensão deva ser desconsiderada, pelo

contrário. Tomemos como exemplo o trabalho do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas

em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (NUPENS/FSP), que tem se

debruçado sobre os modos pelos quais o processo capitalista, em especial as indústrias


173

alimentícias, adentraram e reconfiguraram (o campo d)a alimentação e (d)a nutrição a

partir da criação e da proliferação daquilo que Monteiro (Cf. MONTEIRO, 2009;

MONTEIRO et al., 2000, 2010, 2011, 2013; MOUBARAC et al., 2014) nomeou como

alimentos ultraprocessados.

Alimentos estes que, em meio aos deslocamentos do limite imanente do

capitalismo, possuem, não por acaso, uma relação íntima com o próprio processo

capitalista que, virtualmente em toda a parte, cria uma ecologia de práticas – alimentares,

de consumo, de propaganda, de marketing, de manufatura, de plantio, etc. – que está

absolutamente embebida nesta captura dos potenciais tendenciais da vida. O que

corrobora a

(...) ideia de que, num certo grau, tudo está incluído no campo capitalista[. E]
a ideia de que há graus de inclusão, mais do que um simples dentro e fora,
possibilita trabalhar com essa cumplicidade, mais do que simplesmente
moralizá-la. Trabalhar com isso – ou melhor, brincar nisso. Brincar disso.
Brincar com isso. Fazer jogo-duplo com isso. A duplicidade processual é uma
ferramenta ontopoderosa (...): é o conjunto difuso de capacidades que um
divíduo tem para pertencer genuinamente a dois conjuntos ao mesmo tempo,
mas não da mesma maneira – e sim com tendências divergentes simultâneas
em cooperação. A prática da duplicidade processual é um modo – limitado pela
necessidade, é bem verdade — de prolongar a “esquize” da atividade nua no
panorama institucional; um modo de conservar uma influência sobre o
potencial, de continuarem em movimento com um quantum de devir.
(MASSUMI, op. cit, p. 30, grifos nossos)

O modo, então, como essa ecologia de poderes gira em torno da ontogênese não

só nos lança em problemas que são efetivamente metafísicos, como evidenciam esta

radicalização do governo do vivo em seu próprio processo de emergência, em uma

dimensão formativa, afetiva e não-cognitiva. De tal modo que a própria prática do

ontopoder é baseada mais em eventos e acontecimentos do que em identidade e

indivíduos, na justa medida em o “que se perfila é um futuro potencial, por meio da

extrapolação de uma curva de movimento” (MASSUMI, 2015a, p. 228, tradução nossa):

uma metafísica do devir.


174

Esta ação ontogenética envolve, assim, não uma comunicação que se presta a

passar uma mensagem, mas uma ativação que irá produzir uma nova modulação sob(re)

algo que nunca aconteceu antes: um processo de ontogênese. O que é dizer, em outros

termos, que o problema não é o da relação de um sujeito da cognição com um evento

externo, mas efetivamente o problema das relações internas imanentes à constituição do

presente que dão origem a uma ocasião da experiência.

Afinal, como já dissemos antes, a “ontogênese não pressupõe nenhum sujeito pré-

formado ou campo de consciência em “correlação” com os objetos [dados], mas, ao

contrário, vê os sujeitos e [os] objetos como co-emergentes dos eventos” (Id., p. 271,

tradução nossa). Daí o fato de que o ontopoder, ao invés de canalizar movimentos no

campo de emergência, modula a atividade nua constitutiva deste campo no seu intervalo

de formação.

Agindo, desse modo, na captura de micromovimentos formativos e no mais-que

da vida, em seu excesso qualitativo-afetivo. O que é dizer que o ontopoder se posiciona

em precedência processual sobre o biopoder, “com seus poderes de produção

intensificados: seu poder de produzir a vida, incitando-a a assumir sua própria forma, a

impulsionando a se autoproduzir” (MASSUMI, 2018, p. 64, tradução nossa), inclusive

como capital humano.

Ele é, assim, menos um poder sobre a vida, sobre o vivo, sobre indivíduos e

populações, como é o biopoder, e mais um poder ontogenético. Ou seja, um poder de

emergência, um poder de trazer à existência, um poder de devir: “um poder para a

produção em série de variações pertencentes a uma mesma curva de poder ou tendência.”

(MASSUMI, 2015a., p. 221, tradução nossa).

Com efeito, nesta vasta ecologia de tecnologias de poder, vemos distintas lógicas

operativas em movimento e, no caso do ontopoder, sua lógica operativa é a da preempção,


175

que nos situa em um equilíbrio distinto entre a reprodução sistêmica e o devir. E que é

entendida como um devir que é tão trans-histórico – isto é, não delimitado por um período

de tempo –, quanto não-local – ou seja, não delimitado por limites geográficos –,

prestando-se a produzir aquilo que pretende atuar sobre.

Não por acaso a preempção é um elemento determinante da Doutrina Bush que

emergiu nos EUA após os ataques de 11/09. O que implica, e este é o ponto que nos

interessa por agora, que

“[e]vidências irrefutáveis ou fatos concretos não são necessários” (ncc, 34).


tudo o que é necessário é que faça parte de um “nexo possível” (ncc, 23) que é
de alguma forma até mesmo refutável e inconcreto “relacionado ao”[, por
exemplo] terrorismo. Isso expande a vigilância para cobrir ameaças que ainda
não surgiram totalmente. O perfil tradicional com base no fato de um indivíduo
pertencer a uma categoria predeterminada é substituído por "gerenciamento e
análise de movimento de encontro" (ncc, 58-77). A vigilância busca perceber,
no voo, o que ainda não emergiu completamente, em padrões contínuos de
movimento. (Id., p.228, tradução nossa, grifos nossos)

Esta lógica operativa está, assim, sempre em mutação, polinizando-se por diversos

campos, como no caso da própria Saúde ou ainda dos processos políticos recentes no

Brasil, em especial o golpe de 2016 e o impeachment de Dilma Roussef, tanto quanto a

prisão de Luís Inácio “Lula” da Silva, onde convicção era mais do que o suficiente para

uma condenação e medidas coercitivas preventivas eram tomadas antes que qualquer

acontecimento efetivamente se eventuasse.

Autotransformando-se, então, conforme os obstáculos ou os trampolins que

encontra, a preempção favorece sempre sua própria forma processual, operando em meio

à toda uma eco-lógica preventiva que atua já sob o campo de potenciais. Aproveitando,

no intervalo do processo-em-processo (no in-the-making), toda e qualquer oportunidade

para modular o desdobramento de uma atividade em uma ação-percepção, e isso em meio

aos devires que as compõem, atravessam e ultrapassam, e à própria gênese dos momentos,

das circunstâncias e das formações em que se instalam.


176

A preempção, neste sentido, operacionaliza problemas relativos ao tempo, à

percepção, à ação e à decisão, colocando em questão sua própria natureza constitutiva.

De modo que mesmo

[u]ma ameaça que não ocorre – que não eventua como um perigo atual – ainda
carrega esse poder quase-causal de induzir uma individuação coletiva (...) [em
meio à] uma sintonia afetiva emergente: a individuação complexamente
correlacionada de uma população inteira. No calor de uma individuação
coletiva, o indivíduo vive a si mesmo como parte-sujeito. O coletivo aqui –
“coletivo” em seu significado verdadeiramente processual – não é um
agregado de indivíduos. É uma subjetividade sem sujeito singularmente
múltipla expressando-se por meio de sujeitos-partes em uma sincronia de
correlatos tornar-se-diferentes uns dos outros e do que cada um foi. (Ibid., p.
239, tradução nossa)

Isto posto, ao invés de atribuirmos um privilégio ontológico ao indivíduo já

constituído, radicalizamos a ideia de que “não somos sem um Outro” (AYRES, 2002) e

assumimos, ressoando Simondon (2003), o vivo como teatro de individuação. Pois o

indivíduo vivo é nessa perspectiva da ontogênese um sistema de individuação, um sistema

individuante e um sistema individuando-se:

o indivíduo não é (...) nem substância e nem simples parte do coletivo: o


coletivo intervém como resolução da problemática individual, o que significa
que a base da realidade coletiva já está parcialmente contida no indivíduo sob
a forma da realidade préindividual que permanece associada à realidade
individuada; aquilo que geralmente se considera como relação, devido à
substancialização da realidade individual, é de fato uma dimensão da
individuação através da qual o indivíduo devém: a relação, ao mundo e ao
coletivo, é uma dimensão da individuação da qual participa o indivíduo a partir
da realidade préindividual que se individua etapa por etapa (SIMONDON, op.
cit., p )

O que é dizer que, em meio às inflexões contemporâneas, atua-se menos sobre o

indivíduo ou sobre a população, e mais sobre a própria individuação. Operando, assim,

sobre “uma individuação perpétua que é a própria vida, segundo o modo fundamental do

devir: [onde] o vivo conserva em si uma atividade de individuação permanente.

(SIMONDON, 2003, p. 104)

Ao informar e retroalimentar, assim, o próprio processo de emergência, é

importante observarmos que aquilo que dá consistência ao próprio processo é justamente


177

essa “direção tendencial na qual as formações que o possuem se movem juntas”

(MASSUMI, 2015a, p. 214, tradução nossa).

Donde o próprio fato de que as formações e os elementos atualizados encontram-

se em uma encruzilhada de tendências e é precisamente nisso que consiste a lógica

operativa, a saber, em tendências. De tal modo que o que se governa é:

um campo de expressão tendencial habitado por aparatos para espaçar e tomar


o tempo das variações virtualmente incluídas mutuamente no nó problemático
que está no cerne do processo. O campo de expressão tendencial é ilimitado no
sentido usual. Não tem limites atualizados. Ele é virtualmente delimitado pelo
limite imanente da própria lógica operativa (o feixe de expressões potenciais
que ele inclui mutuamente) e o limite posterior da elaboração de seus casos de
solução (os pontos finais tendenciais pelos quais o desdobramento das
expressões potenciais é orientado). Cada caso de solução envolve uma
multiplicidade de formações heterogêneas. É apenas em meio a essa
heterogeneidade atualizada que a tendência, e sua força abstrata de devir,
podem ser apreendidas. Tente agarrá-la diretamente e ela vai escapulir tão
fantasmagoricamente quanto um efeito Doppler. A tendência só pode ser
capturada no ato, na mistura. (MASSUMI, 2015a, p. 219, tradução nossa)

E, neste mesmo sentido, tendências possuem apenas sujeitos parciais,

precisamente porque, à luz dessa curva de potência e em meio aos meandros e as

involuções do campo de emergência,

[n]ão existe “o” sujeito de qualquer tendência, conceito ou evento histórico. É


da natureza das tendências orientar-se por meio de seu funcionamento. Em
última análise, por meio de sua própria eficiência quase-causal, dobrando-se
sobre si mesma em e por meio de suas expressões reais, elas se sujeitam a suas
próprias variações. Elas fundamentalmente causam a si mesmas. São
subjetividades sem sujeito auto-causadas, cujos elementos abstratos, mas
vigorosamente reais, na verdade se expressam como sujeitos-parciais. (op. cit.,
p. 222 , tradução nossa)

O que é dizer, em outros termos, que qualquer ideia mais geral de um sujeito ou

de uma unidade subjetiva se

assenta miopicamente no topo de uma multiplicidade móvel de sujeitos-


parciais. (...) [Donde “o”] sujeito [o ser] é uma das “fábulas” mais
artimanhosas e obstinadas do nosso “hábito literário” de nos determos em um
futuro longo e em um passado longo (seja “longo” medido em minutos ou
horas de uma sequência intencional de ações, os anos de uma história pessoal,
os séculos de construção de uma nação ou as épocas de uma civilização). Por
essa razão, o conceito de “agência”, com suas conotações de “sujeito-de-uma-
ação”, é evitado assiduamente (...). Ele é substituído por noções mais quase-
178

causais e amigáveis a um campo [no seu sentido físico-químico:]


"desencadear", "catalisar" e "priming"47. (Id., p. 222, tradução nossa)

E, ora, falando em sermos amigáveis a um campo, no sentido de um campo

científico, é importante situarmos que por mais que toda essa discussão ontopolítica

pareça apenas uma hipertrofia filosófico-conceitual, ela não só evidencia em que níveis

essa discussão está sendo cultivada em outras terras como, mais do que isso, ela também

evidencia que devemos ser radicalmente empíricos.

No sentido mesmo de assumir, ressoando as cosmologias e os saberes indígenas

que convocamos anteriormente, o “postulado de que a relacionalidade é um modo de

realidade por si só, e que uma relação pode ser percebida diretamente (mesmo que apenas

informando a imediação de seus efeitos)” (Ibid., p. 219).

O que nos remete não só ao nosso desenho metodológico – que exploraremos a

seguir –, como ao empirismo radical de James (op. cit.), cujo desafio é justamente o de

começar pelo meio, na experiência pura: naquilo que é imanente às relações reais em um

c(a)osmos aonde elas ainda não foram organizadas em termos fixos, como sujeito e

objeto. E onde a experiência ainda está aberta ao seu excesso, ao seu mais-do-que, ao

potencial, de tal modo que o virtual, neste campo de relações, nunca é o oposto do atual,

mas o próprio modo como o atual ressoa além dos limites de sua atualização. (Cf.

MANNING, 2016)

É, pois, neste registro afetivo que contribui para a própria experiência, à beira do

virtual e do atual, que há de se observar, para além de uma distinção entre real e irreal, a

qualidade da experiência emergente por meio de uma lógica da sensação, afinal

[n]ada deve ser admitido como fato (...) exceto o que pode ser experimentado
em algum momento definido por algum experienciador; e para cada
característica de fato já experimentada, um lugar definido deve ser encontrado
em algum lugar no sistema final da realidade. Em outras palavras: tudo o que
é real deve ser experienciado em algum lugar, e todo tipo de coisa

47
Massumi se refere aqui ao priming, isto é, ao processo pelo qual criam-se respostas automáticas ou,
melhor, uma prontidão de conduta, como no caso da educação e do treinamento policial e militar.
179

experienciada deve ser, em algum lugar, real” (JAMES, 1996, p. 160, grifo
nosso)

O que está em jogo, neste sentido, é não um sujeito, mas uma qualidade, uma

sensação, um afeto que produz uma subjetividade em meio a um acontecimento, no

coração de uma experiencia em desdobramento. O que implica em uma noção de

experiência na qual ela não é constituída previamente ao sujeito ou, dito de outra forma,

de uma relação em que o sujeito não é desacoplado da experiência, que poderia ser

isolada, emulada e vendida.

E que remete ao próprio fato de que o capitalismo passou a investir e propagandear

também experiências, que se transformaram em um tipo de produto. Como, por exemplo,

no caso da gastronomia, na recorrente oferta contemporânea de uma experiência

gastronômica tipicamente singular de uma dada parte do globo que é deslocada de toda a

ecologia que a compõe a fim de ser comercializada como um bloco de experiência (pré-

fabricada): como se a experiência de tomar um coco na praia fosse a mesma que tomar

água de coco em uma garrafinha na praça de alimentação de um shopping center, ou como

se o bolo ou qualquer outra receita de nossas avós pudesse ser emulado e vendido em uma

loja especializada.

É a experiencia pura, portanto, a sensação em um campo relacional que produz as

condições e os meios pelos quais algo eventua como uma entidade fractal. E “uma

entidade atual é, ao mesmo tempo, um sujeito experienciando e o superjecto de suas

experiências” (WHITEHEAD, 1978, p. 43, tradução nossa). Que é, por sua vez, o próprio

solo germinal para um novo sujeito que, dipolar ao seu superjecto, ao seu superjeito, é

criado a partir de uma sensação que arrasta o processo para outras composições e

experiências.

Pensemos, por exemplo, no gesto lúdico da criança-tigre que citamos

anteriormente, onde, para além de um reconhecimento, de uma relação entre dois seres
180

pré-constituídos, o que se expressa nesta ocasião não é uma reprodução, mas uma

variação de um tema vital. (Cf. MASSUMI, 2017b).

Na composição transsituacional da experiência nos situamos, pois, no meio, no

entre, isto é, em um modo de análise que é afetivo, ao invés de (con)formal. Quer dizer,

numa perspectiva que não é nem a do tigre, tampouco a da criança, que vê:

a imanência de uma vida. Não “o” tigre: tigretude. As crianças não divisam a
forma do tigre. Elas têm uma visão intuitivamente estética do tigresco como
uma forma dinâmica da vida. É isso que elas transpõem quando brincam de
animal. Não sobre suas próprias formas, mas dentro de seus próprios
movimentos vitais. (...) [Sendo que o] ponto principal é que a criança não se
coloca na forma do tigre, tampouco coloca a forma do tigre em si mesma (o
que, em termos identificatórios, redunda na mesma coisa, a depender se
olhamos do angulo da projeção humana no animal ou da contraprojeção do
animal retornando o gesto identificatório do humano para si mesmo). (...) Na
brincadeira intuitivamente visionaria da criança, o ponto do tigre in-forma o
contraponto do devir-tigre da criança. A relação é imanente. Não é uma
relação de ação-reação, no sentido corrente, que conota uma relação extrínseca.
O que está em jogo é uma relação imanente de modulação. A criança não imita
o tigre a certa distância. A criança é en-tigrada, numa vívida e infinita
proximidade da tigretude. (MASSUMI, 2017b, pp. 156-159, grifos nossos)

De tal modo que, retomando nossa questão do comportamento, o próprio sujeito

é pro/duto de uma individuação em curso, de uma relação de modulação permanente onde

não há como se sedimentar um comportamento. Comportar, então, nessa perspectiva

ontogenética, seria como efetivamente criar uma comporta que reduziria e regularia a

cri/atividade da experiencia, de um processo, finalmente, de uma operação que é

fundamentalmente transdutiva e que corresponde “à existência de relações que emergem

quando o ser préindividual se individua; [exprimindo] a individuação e permit[indo]

pensá-la (...) [como uma noção ao mesmo tempo metafísica e lógica (...) [que] se aplica

à ontogênese e é a própria ontogênese” (SIMONDON, op. cit., p. 113).

O que não é dizer que falar “eu” é um problema. A questão é não perdermos de

vista que o “eu” é, ao fim e ao cabo, ou melhor, no meio e na corda bamba, uma

e(u)cologia. Ele é tanto (agro)floresta quanto ser-tão, pois, tomando emprestadas as

palavras de Guimarães Rosa e adicionando uma pitada de ontogênese a elas: “ser[-]tão é


181

isso: (...) o senhor empurra para trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados.

Ser[-]tão é quando menos se espera” (ROSA, 1982, p. 218), é caminhar como caminha o

mundo: em devir.

É, lembrando ainda de Kazuo Ohno, o próprio dançar da vida, onde o “[e]u dancei

a vida e a vida me ensinou (...) [onde o] eu apenas acompanh[a] a vida”48. E o sujeito,

nesse mesmo sentido, é, ao mesmo tempo, também deserto já que, na perspectiva do butô,

acompanhar a vida começa com o abandono do si do sujeito-butô, com a transformação

do corpo em um deserto, em uma concha vazia para o próprio dançar da vida em sua

cri/atividade, como no caso de Zorbás: “há em mim um diabo que grita, e eu faço o que

ele diz. [E]le diz: Dança, e [o] eu danç[a]”. (KAZANTZAKIS, 1978, p. 42)

É um acompanhar, pois, em puro dinamismo de variações seriais, em reanimações

inventivas onde o sujeito é menos humano e, efetivamente, mais-do-que-humano:

hum(na)o. Como, mais uma vez, no exemplo da criança-tigre, onde:

[n]ão há semelhança entre a forma da criança autoperformando tigrescamente


e a forma visível, corpórea de um tigre. A criança não recebe e reproduz uma
imagem visível do tigre. Em vez disso, a tigretude anima visionariamente a
corporalização da criança, na direção de uma diferenciação. É precisamente
esse processo que é definidor da imagem. Não há algo da ordem de uma
imagem passiva. Não há algo da ordem de uma imagem privadamente recebida
na interioridade do sujeito. Todas as imagens são ativas e suas atividades
ocorrem situacionalmente, ou seja, relacionalmente. O tigresco ruge enquanto
forma dominante dessa situação de brincadeira. Ele carrega um potencial
análogo enquanto oposto ao poder conformativo. O potencial análogo e o
poder da variação integralmente conectada, da mútua inclusão diferencial. A
criança não produz uma correspondência conformativa entre sua própria forma
corporal e a do seu análogo de tigre. Ela empresta entusiasticamente sua
própria corporalidade a in-formação lúdica por meio da forma dominante da
tigretude sob deformação visionária e variação. (MASSUMI, 2017b, p. 157,
grifo nosso)

E pertence, assim, ‘‘à natureza de todo ‘ser’ ser um potencial para todo ‘devir’”

(WHITEHEAD, 1985, p. 45, tradução nossa), “assim como um ser (...) sai de outro”

48
Excerto de entrevista de Kazuo Ohno que integra o documentário “Butoh: piercing the Mask”
(BOLLARD; MOORE; MASSON-SEKINÉ; HIJIKATA, AKA, 1991, DVD vídeo). Disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=paHf7Dfaky4. Acesso em 13/04/2021. Tradução nossa.
182

(OHNO, op. cit., tradução nossa). De tal modo que, nessa poética das relações, segue-se

sucessivamente o processo, onde “tudo no universo coexiste (...) como expressão

singular de todas as coisas no universo” (DA SILVA, 2016, p. 67) e com os quais ela

está emaranhada em camadas de produção de subjetividade e superjectividade: como em

um pote paisagem ou em uma lasanha.


183

6.3. Interlú[r]i[c]o II: In-between hunger and appetite49 – food for thought in the
act50
What is more important (...) is not so much to
defend a culture whose existence has never kept a
man from going hungry, as to extract, from what is
called culture, ideas whose compelling force is
identical with that of hunger.
Antonin Artaud

Thanks to art, instead of seeing a single world, our


own, we see it multiply (...).
Gilles Deleuze

For me powerful is the one who discovers


the insignificances (of the world and ours).
For this little sentence they praised me as an imbecile.
I was thrilled. I'm weak for compliments.
Manoel de Barros

Food production and food consumption concentrate on themselves a series of

questions that feed our contemporaneity, nourishing even what became known as the

Anthropocene, an informal geologic chronological term that, in its multiple iterations as

a concept, marks the evidence and the extent of human activities that have had a

significant global impact on the Earth’s ecosystems.

Not by chance, agribusiness, monoculture and livestock farming are some of the

human activities that most affect and transform the planet, and their implications can be

seen all around the globe, being deforestation, biodiversity decrease, water pollution, and

49
Esse sub(e)estrato foi publicado originalmente em Inflexions, popfab, número 11, disponível em
http://www.inflexions.org/popfab/pdfs/alexis.pdf. Acesso em 12/02/2021.
50
Resonating the idea that no one writes alone, this composition is a welling ecology and it was fertilized
throughout the minor movements and Farm for Social Dreaming celebrations held by the SenseLab in São
Paulo (Brazil) in April 2019, specially through the encounters with Brian Massumi, Andrew Goodman,
Tessa Laird, Branca Cabral, Halbe Kuipers, Sebastian Wiedemann, Meline Costa, Ana Dupas, Nathalia
Favaro, Suely Rolnik and Thomi Kunze, who between other senselabbers, partners and friends, have taught
us that we never dream, think, cook or eat alone. Many thanks to all of you. Besides that, it is important to
mention that a first version of this writing was presented in the session Food in the Anthropocene as part
of the programme of the international conference Art in the Anthropocene, held at Trinity College (Dublin,
Ireland) in June 2019, and also to situate that it has been cultivated in the research Powers of hunger, powers
of life: a cartography of the food practices expressed in social networks, developed under the supervision
of Prof. MD Ph.D. Ricardo Rodrigues Teixeira in the Postgraduate Program in Collective Health of the
School of Medicine of the University of São Paulo (Brazil) and in collaboration with Prof. Ph.D. Erin
Manning and Prof. Ph.D. Jorge Menna Barreto. This study is financed in part by the Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Finance Code 001.
184

soil exhaustion the most common ones, especially in Brazil, where we can also see the

rising violence against indigenous peoples and traditional communities in the last years51.

In strict relation to those questions emerged Restauro – or Restoration –, a

proposition from the Brazilian artist Jorge Menna Barreto for the 32nd São Paulo Art

Biennial – Live Uncertainty, 2016 – that, for the first time, integrated the restaurant of the

Biennial Pavilion in Ibirapuera Park to the curatorial frame of the exhibition, which made

Restoration to born as a hybrid project: artwork-restaurant, restaurant-artwork.

Through themes such as multispecies assemblages, land art, plant-based food and

food activism, the project investigated the possible relations between agroecology and

site- specific practices in art, formulating not only questions about the construction of our

eating habits and their relationship with the environment, with climate and with life on

the planet, but also proposing an awakening to the uses of land and the consequences of

our food choices.

Not surprisingly, the verve of the work was what the artist named as

environmental sculpture, a concept that deals with both a redesign of our digestive system

– proposing its beginning not in the mouth, but on the land –, as well as a slippage of its

function: the digestive system as a sculptural tool of the landscape.

In addressing the issue of food beyond the idea of personal taste, Menna Barreto

aimed at highlighting the relationship that food has with the environmental impact it

generates, and in this very sense, restoration was another theme of the project, even

because, as the artist showed52, the word regeneration is etymologically close to

51
See Violence against Indigenous Peoples in Brazil – Data for 2017, a report by the Indigenist Missionary
Council (Conselho Indigenista Missionário - Cimi). Available at https://cimi.org.br/wp-
content/uploads/2018/12/Report-Violence-against-the- Indigenous-Peoples-in-Brazil_2017-Cimi.pdf. See
also https://theintercept.com/2019/02/16/brazil-bolsonaro-indigenous-land/. Both accessed on June 11,
2019.
52
See https://www.youtube.com/watch?v=IXvj_x0qs7U&t=3s. Accessed on June 9, 2019.
185

restoration, which in its turn serves as the basis for restaurant, precisely the place where

we go to restore ourselves, to recharge our energies.

Restauro, however, proposed a leap of scale in the activity of restoration,

extrapolating the level of the individual restoration to, through the hunger of the public

that participated in the artwork, favor the restoration of the soil, of biodiversity, of forests,

of rivers, as well of fairer relations between producers and consumers through principles

of alter-economies and of agroecology.

In addition to the fact that the project was already itself a relational soup – as it

involved a series of institutions and individuals that collaborated with it and that made

the proposition feasible, principally in the proportions that it engaged in that occasion –,

the protagonism that agroecology assumed flourished in the way that Restoration dealt

with its supply, which came mostly from a network of agroforestry farmers, who shared

with us the role of a sculptor, not only of the landscape but also of the forest.

Agroforestry systems, we must add, can be understood as multispecies

assemblages that count with human presence, including it as a catalyst for forest

processes, since humans play a intertwining role in the relationship between species,

composing with their qualities and tendencies, and articulating, from a sustainable forest

managing perspective, the way that they relate inside its creative system, which leads to

a technique for food production that benefits humans and all living beings of the forest,

as well as its surroundings through processes of regeneration and fertilization of the soil,

the water, the ecology of the region, and even other things, like local economies.

Well, by summoning the idea of site-specificity Menna Barreto not only proposed

to think the sculpturability implied in the act of eating – considering that what we eat

define the landscape where we live –, but took another step: rather than simply

recognizing the impact and the responsibility of our eating habits on the landscape,
186

Restauro pollinated a way in which we can add a degree of intentionality to them, so that

the impact is not simply a resultant, but a goal that implies an active modeling of the

planet through the perspective of agroecology and of ecogastronomy, which sow an

ethical-political relationship with our food practices.

If we talk about politics then is because Restoration not only understood the act

of eating as a political act, but also because it emerged as a proposal of political activism,

more specifically of food activism, which is nourished by deep ecological motivations,

promoting the politicization of taste and an awareness of the environmental impacts of

our eating practices.

Our interest, though, is to take this assemblage, this agencement and think-move

with Restauro, thinking-feeling with the concept of environmental sculpture in order to

fabulate what, indeed, dance and play between hunger and appetite.

If we take the concept of Amerindian perspectivism (VIVEIROS DE CASTRO,

1996, 1998), for instance, maybe we can start to perceive not just this movements, but the

possibility of cultivating this political dimension in another terms, maybe still strange to

our tastes.

This concept deals with a widespread notion in Amerindian thoughts in which the

world is populated by a multitude of other subjects, in the very sense that "there are many

more societies (and therefore also humans) between heaven and Earth than have been

dreamt by our philosophy and anthropology" (DANOWSKI; VIVEIROS DE CASTRO,

2017, p. 94), so that what we would call natural world is for Amerindian epistemologies

a society of connected societies where other species are also subjects and peoples.

By setting no absolute difference in status between society and environment, as if

the first was the subject and the second the object, Amerindian perspectivism not only

radicalizes the assertion that everything is political, but also reverses the classical
187

Cartesian postulate, stating that if something exists, it thinks; and that what we call

environment refers to a cosmopoliteia, to an international arena where all the existent is

fundamentally seen as human, so that the very humanity is at the same time a universal

condition and a self-referential perspective as the humanity of each species is always at

stake due to this deictic game of perspectives.

This implies the fact that the point of view of the “I-subject”, of the "I-human"

cannot be exercised simultaneously in the encounter, in the confrontation between two

species, in such a way that the humanity of one species is imposed on that of the other,

and usually the latter ends up being devoured in this metaphysics of predation, where:

humans will under normal conditions see humans as humans and animals as
animals (...). Predatory animals and spirits, for their part, see humans as prey,
while prey see humans as spirits or predators (...). ‘The human being sees
himself as what he is. The loon, the snake, the jaguar, and The Mother of
Smallpox, however, see him as a tapir or a pecari to be killed’ (…) In seeing
us as nonhumans, animals and spirits regard themselves (their own species) as
human: they perceive themselves as or become anthropomorphic beings when
they are in their houses or villages, and apprehend their behavior and
characteristics through a cultural form [which means that]: they perceive their
food as human food – jaguars see blood as manioc beer, vultures see the worms
in rotten meat as grilled fish – and their corporeal attributes (coats, feathers,
claws, beaks) as finery or cultural instruments, and they even organize their
social systems as human institutions, are with chiefs, shamans, exogamous
moieties and rituals. (VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p. 76)

Thereby, if we add this personhood and this perspectiveness to our conceptual

menu, imminently we cannot think of food and eating in the same manner, especially

considering not just the way that humans see animals, spirits and other actants in the

Amerindian cosmos, but mainly because every difference is political in this multiverse,

precisely because every relation is social.

Which is not a simple logical possibility, but an ontological potentiality where

“there is scarcely an existent that could not be defined in terms of its relative position on

a scale of predatory power” (Id., p. 57), and the positions of predator and prey implicate

other collectives and personal multiplicities in this interspecies perspectivism, in this

ontological multinaturalism and in this cannibal alterity.


188

Nourished then by this ontological potentiality, we can germinate tendencies of

eating in which we extrapolate the common understanding of it as an anthropocentric-

biopolitical problem, and also the recurrent idea of hunger as a physiological problem that

comprises the individual body and, at its limit, the human species.

This seasoning spices an ontological dimension of eating, a dimension where it is

not only an ethical-political act, an act of resistance but, more than that, it is a

cosmopolitical act of resistance, in such a way that we can fabulate how an eater is also a

kind of cosmopolitical diplomat, in the sense that our food practices put us in the center

of an arena where all the multiplicity of beings strives to persevere into existence, and

where the “shocks, [the] appropriations of parts, the transformations of relations, the

compositions to infinity (...)” (Deleuze 2009: 242-243) blossom.

Hence, the very possibility of producing a more potent body involves the capacity

to, if we remember Spinoza, establish relations of composition with other bodies, with

other beings and also to avoid relations which may break down our own singular relations,

as the Yanomami shaman Davi Kopenawa narrates in The Falling Sky while he tells us

about his initiation process to become a shaman:

At first, I really suffered from the hunger, to the point of crying! But that’s the
way it is, you cannot see the xapiri [the spirits of the forest] and become a
shaman by dozing with your stomach full of game and manioc. (…) The xapiri
were constantly dancing around me, and it was they who were feeding me. By
becoming other, I was starting to eat an invisible food that they placed in my
mouth while I was asleep. In my dream, they repeated: “Eat, this is our food!”
(…) Then I could smell the scent of their annatto body paint and magic plants
spreading around me. I was very weak but in my sleep, I happily ate what they
brought to me. (…) Bit by bit, the wasp spirits and the xaki bee spirits devoured
all the fat in my body. There was nearly nothing left of my flesh (…) All traces
of food and rotten game had disappeared from my insides. The xapiri had
weakened me with hunger and thirst. They had made me much thinner. I had
become clean and sweet-scented like I was supposed to be. It is so. Yet I did
not feel badly at all for I truly wanted to become a shaman! It is so. To receive
the spirits of the elder who give us the yãkoana, we must have an empty
stomach. At the beginning, its powder must be our only food. Once our insides
are truly cleaned out, the xapiri can finally come to us. (KOPENAWA;
ALBERT, 2013, pp. 81-82)
189

So, as we can note, hunger in this vibratory field appears as a technique that not

just shifts ontologies and modes of existence toward a collective milieu, but flowers

potentials, dancing with Kopenawa’s appetite to become a shaman, opening up a different

problematic field: the one of becoming, of becoming other.

That is to say that hunger has less to do with feeding the biological body, but

rather, mainly to ontogenesis, in the very sense that, as Andrew Goodman well observes:

the motivation of the Shaman (…) is not a perspective owned by her


[/him/it/...], but an environmental appetite that passes through her [/him/it/...]
– [it] is a collective conditioning, [it is] the addition of new planes of potential,
newly layered dimensions of relationality (…) in a state of transition as their
sense of their own body fluctuates and shifts to something well beyond the
human: not exactly a becoming-plant, but more an intense bodyplant
individuation. (2019, p. 9)

This is an idea that takes us back to the vegetable promiscuity held by Restoration

with the notion of forestness, that tried to address a certain force, a certain quality of

relations within this bodyplant individuations that was transversal to the environmental

appetite that the artwork cultivated and that was determinant to it, especially to its

educational approach, which attempted to invent techniques to work not via human

mediation and human discourses, but through a sort of molecular politics where art is a

technique, a way, an “intuitive process for activating the relational composition that is

life-living” (MANNING, 2015, p. 51).

Although shifting ontologies in order to include other humans, other subjects,

other species already arouses a certain appetite from many thinkers, this proposition was

trying precisely to take the human discourse away from the center of the discussion, and

this spurs us to a fabulation about what else hunger could be if we refuse any categorical

distinctions between human and nonhuman and if we try to include in the mix the

nonhumanness that is in all of us.

Of course that in Restauro there was a tendency to a typical sense of hunger

crossing its daily routine as a food service provider – as it was, after all, the restaurant of
190

the Biennial –, and clearly it was something that we had to deal and to learn to compose

with as, to remember Spinoza again, an encounter with a typical hungry person could

unfold as a bad encounter, involving a certain hangerness.

However, what we really want to bring to the table is a subterranean quality, a

minor tendency that pointed out to a different understanding of hunger: a hunger for

commons, a hunger for compositions, a hunger for socialities, a hunger for relationality,

a hunger for something that was not given, an appetite for novelty we might say.

And that resonates what Erin Manning calls artfulness: “the world’s capacity to

make felt the force of a welling ecology (…) [that is not] a general fact [but] an intensive

singularity, an opening onto an outside that affects each aspect of experience but cannot

be captured as such.” (2015, p. 64)

When there is artfulness, Manning adds, it is because conditions have been created

that enable new openings for experience in the making, new conditions, new possibilities,

even because, as well as ecologies, “artfulness is always more than human.”53 (Id., p. 72)

Which is not to say that we want to exclude it. When we talk about Restoration

we are talking also about the human, but through an ecology of existence in which it is

more likely a relay, an entertainer (Cf. GOODMAN; MANNING, 2012) or, to phrase it

in different terms, in a way where there is no need to make the experience all about the

human, neither to colonize and organize the powers of life from the perspectives of our

stomachs and tastes.

53
As in Always More Than One (2013) and The Minor Gesture (2016), Manning toggles between more-
than-human and more-than human. For her the more-than-human is “a way of making operative ways of
thinking the nonhuman without excising the force of human complicity from these worldings” (2016, p.
244). The more-than human, by its turn, focuses on the dimension of the human, “emphasizing that the
category of the human is always modulated and affected by the more-than” (Id., p. 245). It is also important
to situate that the author develops the concept of speciation to account for the intercession of the more-than
in what it means to be human.
191

Those perspectives – of the human, of the biological, of the senses – organize our

bodies, our hungers, our appetites and also the novelties of life in a choreography that

frames the qualities of experience in such a way that, as in certain parts of a dense forest,

there is little sunlight for novelty to emerge.

In this same sense, considering the fact that in contemporaneity the very field of

emergence is at the core of the investments of what Brian Massumi (2015a) defines as

ontopower – a power that acts at the level of the production of a form of life, precisely in

its field of emergence – the problems around eating and hunger are coined in misleading

and poor ways that engender questions like "what will be the future of food and eating?",

a masked manner to ask “what will be the future of humanity?”.

And we say this justly because they are formulated in modes that continuously

reset human centrality, calling the attention to some kind of new stage in human

development where the very mankind is threatened by the end of the world.

The good news is that, as the indigenous thinker Ailton Krenak would say54, it is

the end of a certain world. A world where the human considers himself suspended and

detached from the environment55 and where:

White people call us [indigenous people] ignorant because we are other people
than they are. But their thought is short and obscure. It does not succeed in
spreading and rising because they prefer to ignore death. They are prey to
dizziness because they constantly eat the meat of their domestic animals who
are sons-in-law of Hayakoari, the tapir-like being who makes people turn
other. They constantly drink cachaça and beer that overheat their chests and
fill them with fumes. This is why their words become so bad and muddled.
(KOPENAWA; ALBERT, op. cit., p. 313)

54
See “Somos índios, resistimos há 500 anos. Fico preocupado é se os brancos vão resistir”.
https://expresso.pt/internacional/2018-10-19-Somos-indios-resistimos-ha- 500-anos.-Fico-preocupado-e-
se-os-brancos-vao-resistir#gs.KsXCCzw. Accessed on June 17, 2019. See also Krenak, 2019; Danowski;
Viveiros de Castro, op. cit.
55
See Kopenawa about ecology: “In the forest, we human beings are the 'ecology.' But it is equally the
xapiri, the game, the trees, the rivers, the fish, the sky, the rain, the wind, and the sun! It is everything that
came into being in the forest, far from the white people: everything that isn’t surrounded by fences yet. The
words of “ecology” are our ancient words, those Omama [the demiurge] gave our ancestors at the beginning
of time. The xapiri have defended the forest since it first came into being. Our ancestors have never
devastated it because they kept the spirits by their side. (...) That is all. We are inhabitants of the forest. We
were born in the middle of the 'ecology' and we grew up in it. We have always heard its voice because it is
the voice of the xapiri who come down from the mountains and hills of the forest.” (op. cit., p. 393)
192

Not by chance, and as we already had the opportunity to taste, politics are

something else for the peoples of the forest. To the Yanomami, for instance:

It is the words of Omama and those of the xapiri that he gave us. These are the
words that we listen to during the time of dream and that we prefer because
they are truly ours. The white people, they do not dream as far as we do. They
sleep a lot but only dream of themselves. Their thought remains blocked, and
they slumber like tapirs or turtles. This is why they are unable to understand
our wor[l]ds. (Id, p. 313)

Therefore, politics in this perspective not just do not privilege body-worlds

separations, but involves the affirmation of multiple multiplicities that dance around at

least three tasty cosmopolitical problems that resonate within each other: the one of

eating, the one of dreaming and the one of listening (Cf. LAIRD, 2018).

And when we talk about resonance it is because their transversality do not resonate

sameness, but produce difference, co-composing multiple worlds that are not individual

and reflexive in each other by common contents and/or forms of life, but resonant in their

affirmative co-creating togetherness that, as Manning also points out about artfulness,

“cleaves experience to produce not a recognizable set of frameworks, but new modes of

knowing, of feeling, of acting”56 and, why not, of eating.

Potentially [n -] one57 in which eating can be understood as a schizo-somatic

practice that listens not just to the sounds of our hungry stomachs, but that fertilizes modes

of living that fructify affective attunements to environmental appetites and an acuteness

to relationality: a hunger for collective dreams, an appetite for becoming-other.

56
Manning, Erin. Interviewed by Brad Evans for Histories of Violence Project – Los Angeles Review of
Books, January 2, 2018. Available at https://lareviewofbooks.org/article/histories-of-violence-
neurodiversity-and-the- policing-of-the-norm/#!. Accessed on 13 June 2019. See also Manning, 2016,
“Artfulness – Emergent Collectivities and Processes of Individuation”.
57
See DELEUZE; GUATTARI, 1987: "The multiple must be made, not by always adding a higher
dimension, but rather in the simplest of ways, by dint of sobriety, with the number of dimensions one
already has available— always n - 1 (the only way the one belongs to the multiple: always subtracted).
Subtract the unique from the multiplicity to be constituted; write at n - 1 dimensions. A system of this kind
could be called a rhizome.” (p. 6)
193

In this sense, the relational field that Restoration opened allowed hunger to exceed

the body-envelope, moving individuation by the alliance with an agroecological practice

that enables the conditions for the emergence of complexity and difference, emphasizing

the potential of dynamic and diverse ecologies with intensive capacities towards a

collectively experiment with flux, an experimentation that not just reminds us of

rewilding (GOODMAN, op. cit.), but that moves experience towards a politics of

immediation, sowing new possibilities of life, as well as different kinds of socialities.

In the other hand, by cultivating processes, possibilities, dimensions and

creativity, and not just a good – we mean, food –, agroforestry aims the flow and the

circulation between things, a self-organizing criticality as Andrew Goodman would say:

“a tuning of the field towards its future differentiation that is felt by the ecology itself –

an immediatory process by which ‘fields of relation agitate and activate to emerge into

collectivities’ (BRUNNER; MANNING; MASSUMI, 2013, p. 136)”. (op. cit., p. 5)

Thus, agroecology is in our perspective, as rewilding, “less about conservation

than returning an ecology to a state where it can immediate” (Id, p. 12), neither of

recovering an existing potential within a piece of land, or a field, but to “a process by

which disparate entities and forces are integrated into a system of relation through the

ongoing negotiations and transformations of energy flows and individuations” (Ibid, p.

7).

In this same sense, to paraphrase Whitehead, appetite begins in wonder and

hereupon:

we need to live first of all (…) to believe that whatever is produced from the
mysterious depths of ourselves need not forever haunt us as an exclusively
digestive concern. (…) if it is important for us to eat first of all, it is even more
important for us not to waste in the sole concern for eating our simple power
of being hungry (ARTAUD, 1958, p. 7) [: the wonder remains.]
194

That is to say that hunger is not an entropic force, but a fruitful and fertile one, in

such a way that the powers of hunger, as a transvaluing gift, move us toward an ecology

of experiences and practices that values its relational emergence, as well as of the

relational emergence of the experience of eating, which, as Menna Barreto stated, begins

not in the mouth, but on the land.

Eating then connects the forces of becoming-other at the level of the process, a

level in which this ecological field – mouth-land-forest – is pointing to potentials that are

not yet fully unfolded in a world in which metabolism is always nascent within potential

politics: metabolization as the fold and the unfold of potentials.

So, to paraphrase Monteiro (2009): the issue is not food, nor nutrients, so much as

process. And in this same sense, resonating Deleuze and Guattari, a food practice “does

not come after the emplacement of the terms and their relations, but actively participates

in the drawing of the lines” (1987, p. 203), in the very sense that environmental sculpting

not just fruits a way to get out of the nutritional-biological loop, but pollinates affective

politics, cultivating these ecological bodyings.

Hereupon, eating wells as a technique of immanence, a technique that surpasses

relations with objects, functions or systems, fertilizing forces for bodies in the making in

a machinic autopoiesis where experience reaccesses its powers of emergence in such a

way that eating not just plays with emergent cosmologies, but flowers as a biogramming

technique for conceiving the potential of collective individuation to produce ecologies of

experience and counterontopowers.

Thus, by enjoying the blurriness of the lines between body and world – not in the

mouth, but on the land –, hunger blossoms as an intercession. It doesn’t start in the body,

but in the middle, in-between, moving “the transindividual nature of the forces at play

and their primary role in the potential individuation of plant, human, image, thought and
195

hybrids of all these components” (GOODMAN, p. 11): we are in hunger, and not hunger

in us.

And with this we try precisely to emphasize the coindividuation that hunger moves

in an eco-logical perspective (Cf. GUATTARI 1995; 2000b), in a vital complex where

forces of becoming resonate the richness of the potential individuations that arouse our

appetite, that is embedded, by its turn, in “a parallel series of collective individuations

that move the ecology forward. To where? Perhaps to a new intensity – new degrees of

differentiation – lived across new planes” (GOODMAN, op. cit., p. 8): rewilding appetite.

Therefore, hunger is not just a biological phenomenon related to a single body,

nor to a population. It involves a transversality, and not a set of ontological-political-

categorical- hierarchical relations – as "predator-prey" or even a “who predates who”

logic –, precisely the ones that we commonly see intensified in restaurants, where the

human- anthropocentric sovereignty is crowned as it ascends to the top of the food chain.

In this very sense, one of the tastiest questions is, as Manning well poses:

what exactly it is that has led us to the certainty we seem to have that the world
can be parsed out into subjects and objects, and how intertwined this assertion
has become with a notion of interactivity that sets itself up (...) as a mediating
interplay between already-existent terms? (2013, p. 220)

If we take hunger then as a transindividual problem, what is at stake is not just a

geography of hunger as Josué de Castro (1952, 2003) stated, but a geophilosophy of

hunger, since it becomes an onto-topological problem and, in this very sense, it is no more

sequestered to the interiority of a biological body, neither it is a phenomenon that regards

subjects and species, but an event that plays with adverbs and speciations58: not life, but

lifeness, not hunger, but hungerness, not appetite, but appetiteness.

58
See “Another Regard” in MANNING, 2013, and also footnote #6.
196

So, if we think in terms of speciations, we start to cross organic and inorganic all

the time: everything is co-composing in a logic of mutual inclusion where everything

singularly contributes, especially because neither human, nor object, nor animal, nor plant

come to experience fully-formed. They edge into experience relationally, disregarding

any possible in-itselfness in favor of worldings:

(…) they are tweakings of emergent tendencies for coalescence within a co-
emergent field of experience. They are neither human nor nonhuman – more
like resonance machines that are activated in the between of the organic and
the inorganic (…) a kind of coming-into-emergence of a welling individuation
that connects as a remarkable point or a point of inflection to a wider field of
experience (…). The singular “speciation” (…) activates the wider field of
relation toward certain tendencies (…) [in a way in which] speciations
converge not through a matrix of identity (“the” animal, “the” human), but
through (…) speeds and slownesses of welling co-constitutive ecologies.
(MANNING apud MASSUMI, 2015b, pp. 122-123)

Hungerness, thereby, pollinates speciations, prehending not an object – food –,

nor a cultural relation – what is edible –, neither a social practice – a food practice –, but

a relational field, fruiting a mode of perception that doesn’t perceive ontologically distinct

categories of beings, and a mode of living that doesn’t move from subjects to objects,

from species to species, from self to self, from self to other, or from self [to] service, but

from dynamic constellation to dynamic constellation, producing worlds and creating a

bodying in a shifting co-composition where eating is an ontocreative practice: the self-

production of being in becoming.

Resonating Brian Massumi, thinking this way:

perhaps allows us to consider how fields of resonance or associated milieus


emerge through the coexistence not of identity structures (the human, the self)
but through ecologies that are as much rhythms as “beings” – different scales
and intensities of time. This may in turn enable us to get beyond identity
politics (as it continues to exist even within politics of affect) and explore the
immanent co-existence of a relational third (…), a radical empiricism without
a preconditioned sense of what the terms of the relation consist of (…). (2015b,
p. 117)

Hungerness, in this sense, is a problem of style: simultaneously real and virtual,

but in an impersonal mode that cultivates movements of correlated differentiation,


197

including all manner of differentiation in potential in such a way that, to remember Ursula

Le Guin and the Frin People, it engenders a collective, social and ecologically generative

force, a set of conditions where the messmate doesn’t share its practice – a particular food

practice –, neither the content – the food –, but the style: a mode of life that nourishes a

collective sensitivity in which the eater is always intertwined and nascent within every

particle and potential of the milieu, that expresses a relational movement that, by its turn,

exceeds the terms of the predator and the prey, and their individual bodyness, in-forming

the speciations that their movement-moving creates: hungerness as the felt quality of a

relational field that is always more-than human.

Meanwhile, this is not to say that there is no human, plant, or animal, nor any

species or structures of identity:

all speciations [all ecologies of expression] do culminate to some degree into


species or categories. The point is not that there is no identity (…) but that the
species is not where the process begins or ends. Our proposition is not to negate
species or identity, but to become aware that the force of collective
individuation happens in the interstices where the ecologies are still in active
transformation. (MANNING apud MASSUMI, 2015b, p. 123)

Thereat, appetiteness creates the stakes of its own adventure, blossoming in “an

ecology of practices that continuously interfolds the inorganic with the organic, shaping

experience in the making” (140). It is, in this sense, preindividual, a virtual contribution

that opens life to its potentials: appetiteness as the virtual force of a process that creates

newness.

Hungerness and appetiteness then, as well as lifeness, are obviously not just about

surviving, but producing potential politics within a style of life care that engage itself in

the vital production of life-living and whose aim is precisely to value and to expand the

force to exist, to cultivate:

a state of (…) relationships of bodies correlated to the passage to a higher level


of power, that is, to a greater “effort to persevere in existence” or even a higher
power to affect and be affected and thus establish compositional relationships
198

with other bodies, corresponding ultimately (…) [to] the possibility of


production of the common (TEIXEIRA, 2015, p. 38) [: a Great Health.]

Thence, appetiteness is always nascent intertwined with a hunger for

[under]commons, feeding a relational third. In this same sense, since each of us is several,

we never eat alone. Even because eating is not an end, but a beginning of a process that

is capable of keeping difference alive as, to remember John Cage: “not one sound fears

the silence that extinguishes it. And no silence exists that is not pregnant with sound”

(1969, p. 98).

Appetiteness, thus, nourishes not just polyrhythms, but a problem of intervals, of

exploring the immanent co-existence of a relational third within an event-constellation: a

question of feeding an inflexion, an in-between, of cultivating a site of cosmogenesis.

The question that remains for now, though, is not exactly “what moves between

hunger and appetite?” – regardless the fact that Whitehead spurs us to think that “life is

in the intervals between things - in the way things relate, in the way they come together

in events under the dominant tendency towards the generation of new forms, or

ontogenesis” (MASSUMI, 2015b, p. 127) –, but above all, to ask: what is to experiment

with cooking food for thought in the act?

Far from answering this question, this composition is a way of playing with its

whatness, a way of experimentally think-across-and-with the idea that every practice, like

environmental sculpting, is a mode of thought already in the act, and a thought, we might

add,

is a tremendous mode of excitement. Like a stone thrown into a pond, it


disturbs the whole surface of our being. But this image is inadequate. For we
should conceive the ripples as effective in the creation of the plunge of the
stone into the water. The ripples release the thought, and the thought augments
and distorts the ripples. In order to understand the essence of thought we must
study its relations to the ripples amid which it emerges. (WHITEHEAD, 1968,
p. 36)
199

That is to say that our proposition aims to offer, by the alliance with speculative

pragmatism, an environment for experimentation with the problems that gravitate around

food and eating by serving a new handful of ingredients, a different set of conditions

where we not just don’t define the concepts of hunger and appetite by their usual

biological-biomedical-nutriticeutical framework, but we try to experiment and taste the

implications of beginning in the middle, in-between.

By doing this, perhaps we may research-create a lure for a thinking-feeling that

moves through new textures of knowledge, through affective attunements, through

nonhumaness, through togetherness, through ecologies of expression, through collective

dreams and fields of inquiry that fruit in the in-betweeness of the potentials, of the affects,

of the minor gestures, of the empirical content and of the more-than of art, of indigenous

modes of existence, of neurodiverse modes of perception, of agroecology, of process

philosophy, of cosmopolitcs, of the medicine of the body without organs; which, in all of

their inventiveness, not solely create events, but allow relations to emerge differently,

changing the quality of processes, fabulating healths, hungers, peoples, appetites, politics

and worlds to come.

Betw(in) hunger and appetite: mind the interval.


200

7. Metodologia

7.1. Refazenda: contra-metodologi(c)as

The birth of a methodology is in its essence


the discovery of a dodge to live.
Alfred North Whitehead

Pensar é para mim estar à escuta da vida.


Gilles Deleuze

Abacateiro / sabes ao que estou me referindo /


Porque todo tamarindo tem / O seu agosto azedo
Gilberto Gil

Pois bem, posto tudo isto, se deixamos para apresentar nossa metodologia apenas

após este longo percurso, foi precisamente porque nosso desenho metodológico é

tributário dos deslocamentos e deslizamentos que empoamos e desenvolvemos ao longo

de nossa escritura. Escritura essa que, ao fim e ao cabo, partiu de uma questão muito clara

e de forte cunho metodo-lógico: a de como colocar um problema.

E se o que está em jogo no empirismo radical (JAMES, op. cit.) que nos alimenta

é justamente a capacidade, tanto quanto as condições de se produzir uma diferença entre

uma ocasião da experiência e o fluxo de uma iteração relacional, não podemos deixar de

considerar como a própria questão do método está completamente alinha(va)da à

problemática dos modos de existência pois, “de fato a arte da vida é, primeiramente, estar

vivo, segundo, viver de um jeito satisfatório e, terceiro, alcançar uma intensificação dessa

satisfação” (WHITEHEAD, 1929, p. 8).

Inclusive, como bem nos relembra Whitehead (Cf. 1929, p. 19), a própria questão

do “viver melhor” diz respeito a uma problemática que é fundamentalmente

metodológica, seja em termos do questionamento pragmático-especulativo de como criar

condições para se “viver melhor” e “de promover a arte da vida” (Cf. 1929, p. 4); seja

frente ao fato de que “[a]lguns dos maiores desastres da humanidade foram produzidos

pela estreiteza de homens com uma boa metodologia.” (Ibid., p. 8)


201

E se buscamos, assim, situar nossa discussão metodológica nestes termos, é

precisamente porque

[c]ada metodologia tem sua própria história de vida. (...) [E quando o]s maiores
contrastes atingíveis no âmbito do método foram explorados e familiarizados
[e a] satisfação com a repetição desapareceu[, a] vida então enfrenta as últimas
alternativas das quais depende seu destino. Essas últimas alternativas surgem
do caráter do triplo impulso que já mencionei: [v]iver, viver bem, viver melhor.
O nascimento de uma metodologia (...), [e]m seu princípio, (...) satisfaz as
condições imediatas para uma vida boa. Mas a vida boa é instável: a lei da
fadiga é inexorável. Quando qualquer metodologia de vida exauriu as
novidades dentro de seu escopo e jogou com elas até a chegada da fadiga, uma
decisão final determina o destino de uma espécie. Ele pode se estabilizar e
recair para viver; ou pode se libertar e entrar na aventura de viver melhor.
(WHITEHEAD, 1929, pp. 9-10)

Isso no próprio sentido de que, nessa aventura, não há metodologia que esteja

desimplicada de uma certa forma de viver a vida. O que é dizer, finalmente, que nos

situamos e nos encontramos em um solo onde metodologia, epistemologia, ontologia,

cosmologia, metafísica e a própria existência e sua criatividade se imiscuem, se

entrecruzam e se transformam em um campo relacional complexo.

Como se a perspectiva em questão fosse a de uma luneta que opera, na verdade,

como um caleidoscópio, isto é, que opera na própria fractalidade co(i)nstitutiva de um

c(a)osmos operativo, vivo e em fluxos de potencial. De tal forma que cabe à razão

produzir um

acúmulo de entendimento teórico que, em momentos críticos, permite uma


transição para novas metodologias. [Inclusive porque t]ambém as descobertas
do entendimento prático fornecem a matéria-prima necessária para o sucesso
da Razão especulativa.(op. cit., p. 39).

É, portanto, nessa aventura das ideias que propomos um desenho metodológico

que ressoa a própria proposição whitehediana de criar e experimentar formas de abrir

caminho para possíveis – a lure for feeling – e que remete, convoca e opera em meio a

todos os sub(e)stratos e a todo o terreiro que trabalhamos ao longo de nossas páginas.

Considerando, então, as inúmeras possibilidades de se investigar o objeto plural

que nos interessa – as práticas alimentares – optamos por priorizar seu estudo em meio às
202

tecnologias digitais de comunicação em rede, em específico as redes sociais Facebook,

Instagram e Twitter, que são três das mais utilizadas no Brasil.

Neste sentido, se optamos pelas redes é, em uma primeira medida, porque estamos

em um momento em que vivemos cada vez mais conectados59 e não por acaso as redes

passaram a engendrar um campo de expressão e de socialidade preci(o)so para

investigações as mais diversas. Especialmente porque os perfis disponíveis digitalmente

colocam questões saborosíssimas para a teoria e a pesquisa social, destacadamente porque

[a] experiência de navegar através de perfis disponíveis em plataformas


digitais é tal que quando você se move de uma entidade – a substância – para
a sua rede – os atributos – você não vai do particular para o geral, mas do
particular para os ainda mais particulares” (LATOUR et al, 2015, p.15)

E se dizemos precioso é porque os avanços na Ciência de Dados e as novas

possibilidades de processamento, sistematização e exploração do big data (Cf. KITCHIN,

2014; HELBING et al., 2017) nos permitem mergulhar no caldo produzido pelo

fenômeno sociotécnico das culturas digitais virtuais, onde artefatos tecnológicos e uma

sorte de atores humanos e não-humanos, tais como algoritmos e bots, nutrem uma

infinidade de relações.

Relações estas que ao longo dos últimos anos reconfiguraram os modos de

existência e de relação da humanidade em todas as suas esferas: comunicacional,

cognitiva, simbólica, emocional, afetiva, subjetiva, política, cultural, econômica,

ecológica e, claro, alimentar. Tanto quanto o nosso próprio entendimento do coletivo, pois

o “coletivo” – o que estamos chamando aqui de todo ou totalidade – não se


subsume à junção das partes. Não é uma entidade feita da soma dos cérebros
que as constitui. Não é independente dos agregados. “A sociedade constitui,
sim, um todo, mas um todo surpreendente, à medida que não transcende suas
próprias partes” (LAZZARATO, 2006, p. 43). E [se há uma metáfora, é] (...) a
metáfora da rede como a configuração que conforma a globalidade social, feita
da ação de singularidades [precisamente porque] (...) “[o] todo social é
produzido com a ajuda de uma multiplicidade de singularidades, que agem
umas sobre as outras, aproximando-se cada vez mais, propagando hábitos

59
Para dados sobre a penetração das redes sociais no Brasil, conferir o relatório desenvolvido pelas
empresas We are Social e Hootsuite. Disponível em https://datareportal.com/reports/digital-2019-brazil.
Acesso em 01/03/2019.
203

corporais ou mentais, às vezes lentamente, às vezes com a rapidez da difusão


de uma espécie de contágio viral através da rede formada pelas mônadas” (Id.,
p.43). (MALINI, 2016, p. 4)

Com isso em vista e partindo da aliança com Latour et al. (2012, 2015), o

fundamento epistemológico de nossa proposição de produzir uma cartografia das práticas

alimentares expressas nas redes sociais Facebook, Instagram e Twitter considera as

transformações e as modificações que os perfis que compõem as plataformas digitais

operam na própria definição do que os indivíduos são e, correlativamente, ao modo como

podemos lidar com os agregados sociais,

[u]ltrapassa[ndo] o acento individual dos seus estudos, que apenas valorizam


a autoridade dos perfis em função da popularidade e da difusão de mensagens,
e valorizar um acento coletivo em que é a densidade de relações altamente
conectadas entre os perfis que fazem emergir ricos pontos de vistas coletivos
(...) [sobre um assunto, como, no nosso caso, a alimentação e as práticas
alimentares]. (MALINI, op. cit., p. 5)

O que nos leva um outro motivo pelo qual escolhemos trabalhar com as redes: tais

transformações e modificações nos permitem trabalhar com uma estratégia teórico-

metodológica na qual, ao invés de ter que escolher “saltar de indivíduos a totalidades, do

micro ao macro, [podemos] ocupar diferentes tipos de posições, constantemente

reorganizando a forma como os perfis estão interligados e sobrepostos” (LATOUR et al.,

2015, p. 11). Evitando, assim, uma cisão estruturante entre dois níveis de análise: o nível

micro dos indivíduos e o nível macro dos coletivos e agregados. Cisão esta cuja

consequência (...) é que quase todas as questões levantadas pela teoria social
[passam a ser] enquadradas como uma busca pelo caminho correto que levaria
de um nível para o outro: a investigação deve começar a partir do micro ou a
partir do macro?” (Id., p. 8, grifo nosso)

Nos aproximamos, dessa forma, da microssociologia de Tarde (2007) que, a partir

do conceito de mônada, fornece duas contribuições fundamentais para nossa proposição:

uma que diz respeito ao fato de que uma mônada é um ponto de vista sobre todas as outras

entidades tomadas singularmente (não sendo ela uma parte de um todo). E, outra, que é a
204

proposição de uma teoria social que não se limita ao indivíduo e a atores humanos, mas

sim à mônadas sobrepostas que compartilham atributos detectáveis.

E que, no nosso caso, remetem, à consideração de que uma prática alimentar conta,

em sua singularidade ecológica, com atributos identificáveis, ou seja, com derivações,

motivações e objetivos que, embora diversos e múltiplos, são detectáveis e rastreáveis nas

redes. De tal modo que é possível notarmos, tomando por exemplo as práticas alimentares

veganas, como elas são conectadas em sua variedade por um cerne e uma preocupação

com a vida dos animais e do planeta, mas que, quando postas em contraste, podem diferir

radicalmente ao incorporarem outras problemáticas, como a do feminismo.

Ou ainda, no caso do biohacking, pela preocupação comum de biohackers com o

turbinamento do corpo e sua produtividade, e o contraste existente entre aqueles que o

fazem por meio da associação entre alimentos funcionais, smart foods e nootrópicos e

aqueles que acoplam, literalmente, implantes e próteses a fim de cumprir seus objetivos.

Não nos referiremos aqui, portanto, a diferentes domínios da realidade, mas a

diferentes maneiras de navegarmos por conjuntos de dados (Cf. FRANZOSI, 2004;

MICHEL et al., 2011 apud LATOUR, et al., op. cit.),

onde “específico” e “geral”, “indivíduo” e “ator”, “coletivo” e “sistema” não


são realidades essenciais, mas termos provisórios que dependem da facilidade
com que é possível navegar através de perfis e de envolvê-los dentro de seus
nomes (...)” (LATOUR et al., op. cit., p. 10).

E, não por acaso, ao sugerirmos tal proposição, questionamos a ideia de que

deveríamos “assumir que primeiramente existem simples agentes individuais, e depois

interações, e depois estruturas complexas – ou o contrário (...)” (Id., p.13). O que nos

permite também operar a partir de um outro deslocamento onde, além disso,

(...) nos afastamos do sonho de simulação e previsão e exploramos um outro


caminho, o da descrição (...), [onde] o valor agregado não é mais o poder de
predição (...). [De maneira que, em] vez de tentar simular e prever as ordens
sociais (...), preferimos deixar que os agentes produzam uma dinâmica e então
[recolhemos] os vestígios que suas ações deixaram na medida em que
205

produzem um rico conjunto de dados (GRAUWIN apud LATOUR et al., op.


cit., p. 19)

Sabemos, no entanto, que tal proposição tem limites e fazemos, neste sentido,

nossas palavras as dos autores:

Estamos bem conscientes de que essas bases de dados estão cheias de defeitos,
que elas mesmas incorporam uma definição bastante crua da sociedade, que
são marcadas por fortes assimetrias de poder e, acima de tudo, que elas marcam
apenas um momento passageiro de cruzamento na rastreabilidade das conexões
sociais. Além disso, estamos dolorosamente conscientes das limitações
estreitas que lhes são colocadas pela análise de rede e pelas limitações das
ferramentas de visualização disponíveis hoje. Mas seria uma pena perder esta
oportunidade de explorar uma alternativa tão poderosa capaz de fornecer uma
outra maneira de abordar as ciências sociais de forma empírica e quantitativa
sem perder a sua necessária ênfase nos detalhes. (Ibid., p. 23)

E, de fato, existirão, em meio aos campos de con(i)stituição de práticas, uma

multiplicidade de práticas alimentares que não serão mapeáveis nas redes. Todavia, no

mesmo sentido expresso anteriormente:

não reivindicamos que os perfis digitalmente disponíveis são tão completos e


tão rapidamente acessíveis a ponto de terem dissolvido os dois níveis
[indivíduo – todo], mas sim que já os redistribuíram suficientemente para
oferecer uma excelente ocasião de se observar que esses níveis não são a única
forma óbvia e natural de lidar com a navegação através de conjuntos de dados
sobre entidades consideradas separadamente. (Ibid., p. 11)60

Seguindo nesta direção, nos aliamos à análise perspectivista de rede, uma

suculenta proposição de Malini (2016, 2017) que revelou-se como uma abordagem

teórico-metodológica preci(o)síssima para nossa empreitada, especialmente porque,

ressoando proposições e referenciais que exploramos ao longo de nosso caminhar, ela

fomenta,

[d]o ponto de vista teórico (...) uma reflexão que articula a teoria antropológica
formulada por Eduardo Viveiros de Castro (de onde retiramos os conceitos de
perspectiva e relação); a concepção de Bruno Latour sobre a teoria ator-rede
(de onde retiramos os conceitos de cartografia, grupos, mediadores e
intermediários); e a teoria dos grafos (de onde retiramos o conceito de
clusterização, modularidade, centralidade e densidade). [E, d]o ponto de vista
empírico, (...) apresenta os conceitos de perspectiva espacial e perspectiva
temporal nas análises de redes sociais, a partir da produção de mensagens
escritas e imagens que os perfis fabricam no Twitter, Facebook, Instagram e
Youtube, fornecendo, assim, ao pesquisador pistas para a construção de objetos

60
Como exemplo de um estudo formulado nestes termos, sugerimos ver, inicialmente, o vídeo publicado a
partir do trabalho de Latour et al., 2012: https://medialab.sciencespo.fr/publications/monads/video.html.
Acesso em 17/01/2021.
206

de pesquisas a partir da descoberta do caráter relacional dos dados digitais.


(MALINI, 2016, p. 3)

O que nos lança em uma outra perspectiva sobre os estudos de redes digitais,

perspectiva esta onde toda rede é entendida como uma sobreposição de camadas de rede

que vão adensando relações entre si e se dissociando no tempo, revelando

pontos de vista particulares sobre [um] fenômeno, [e] fornecendo ao


pesquisador uma multiplicidade de grupos de opinião, de julgamento, de
mobilização e de difusão, que não se reduz a nenhum sentido totalizante e
genérico do Uno. (MALINI, 2017, p. 89)

Especialmente porque na contemporaneidade “[o]s fluxos não são mais atribuíveis

a indivíduos do que sobrecodificáveis por significantes coletivos” (DELEUZE;

GUATTARI, 1996, p. 99), expressando-se em agenciamentos coletivos de enunciação. O

que nos dá a oportunidade de, ressoando o panexperiencialismo de Whitehead e as

cosmologias ameríndias multinaturalistas,

[e]m vez de particionar átomos, e daí interações, e em seguida estruturas, (...)


de desenhar mônadas se intersectando, onde alguns atributos em uma lista são
também visíveis na lista de alguma outra entidade. Em vez da estratégia
comum de pesquisa: “vá de simples interações para estruturas mais
complexas” nós queremos aplicar uma estratégia contra-intuitiva: “Comece
com as complexas mônadas sobrepostas e detecte os poucos atributos que elas
compartilham”. (LATOUR et al., op. cit., p. 18)

As redes são, assim, diria Malini (2016, pp. 103-4), partes lado a lado e não um

todo, e nelas afirma-se “uma ontologia fractal dos perfis e seus laços (...) [onde] ‘tudo são

pessoas, ‘pequenas pessoas’, pessoas dentro de pessoas’ (VIVEIROS DE CASTRO,

2007, p. 102)”. De modo que tudo são pontos de vista, perspectivas que correspondem

menos a um perfil individual e mais a um cluster de perfis que produzem uma agência de

rede (Cf. LATOUR, 2007b; LATOUR et al., op. cit.).

Ou, dito de outro modo, a um adensamento de perfis que, numa rede de perfis,

habita uma mesma perspectiva que, ao fim e ao cabo, é um efeito no sujeito, e não sua

propriedade (Cf. DELEUZE, 1976). Sobretudo porque

um perfil existe porque está em relação com o outro (...) [e] resulta de seu
entrelaçamento com outros perfis, fazendo de sua ação na rede sempre uma
207

ação associada para afirmar um conceito, para se distanciar ou para se aglutinar


a dinâmicas mobilizadoras e a conceitos próprios. (MALINI, 2017, p. 89,
grifos nossos)

Não por acaso a proposição de Malini é conhecida também como método das

perspectivas topológicas e temporais, precisamente porque propõe um entendimento de

que a web é constituída por múltiplas perspectividades em rede, tanto topológicas, quanto

temporais: topológicas, pois “toda rede é permeada de perspectivas topológicas de

diferentes módulos associativos de nós que se conectam mais intensamente a outros,

distinguindo-se na rede” (Id., p. 96); e temporais porque “a cada tempo, formam-se

aspectos particulares dos pontos de vista que se constituem no interior da rede (...) [e é]

(...) no tempo [que] molda-se o [seu] desenho final” (Ibid., p. 95).

Nosso desenho metodológico considera, portanto, que as relações sociais revelam,

por meio de agências de rede, os modos como o social se (re)agrega a partir e ao redor de

uma perspectiva. Que é, ainda, aquilo que alimenta tanto a transformação de redes de

perfis em redes sociais, quanto os conceitos e as convicções que fazem os perfis agirem

e se aglutinarem ao redor de pontos de vista.

Pontos de vista estes que são, em si, “princípios, ideias, agregados, visões de

mundos, em suma, (...) cosmologias que organizam, diferem, individualizam e interligam

os seres e se formam num fluxo contínuo de associações e dissociações” (MALINI, 2017,

p. 83, grifo nosso) que está sempre em transformação, contágio e composição. Tal qual

uma ecologia e, no limite, uma pessoa, pois “uma pessoa fractal nunca é uma unidade que

está em relação com um agregado, ou um agregado em relação com uma unidade, mas

sempre uma entidade cujas relações estão integralmente implicadas” (WAGNER, 2011,

p.3).

E isto no sentido mesmo em que uma “perspectiva é menos algo que se tem, [e]

que se possui, e muito mais algo que tem o sujeito, que o possui e o porta, isto é, que o
208

constitui como sujeito” (VIVEIROS DE CASTRO, 2008, p.118). De tal forma que, não

por acaso, o método perspectivista de análise de redes sociais parte da concepção de que

todo perfil se constitui como pessoa. E, por pessoa, tomamos de empréstimo a


definição de Eduardo Viveiros de Castro (1996), para quem pessoa é o “ponto
de vista de sujeito que está falando”. Sua noção de pessoa implica em redes,
uma vez que qualquer pessoa acede a um ponto de vista – que só se produz em
conexão – para se individuar. “Cada pessoa [..] é um nó só de uma vasta trama,
uma singularidade enlaçada em uma rede cuja malha se espalha em diversas
direções e se dobra em múltiplas dimensões (de tempo, de espaço)”
(VIVEIROS DE CASTRO, 2011, p.191). (MALINI, 2016, p. 5)

Deslocamos, assim, o modo pelo qual podemos nos engajar com o estudo das

redes, deslizando, para lembrarmos de nossa discussão ontopolítica, de uma abordagem

centrada e baseada na identidade de sujeitos para uma abordagem que foca na agência de

um perfil. Quer dizer, que foca nas “agências que o tornam sujeito” (VIVEIROS DE

CASTRO, 2011, p.372), sendo agência justamente

os diferentes tipos de relações (tais como compartilhamentos, postagens,


conversas ou marcações) capazes de compor perspectivas em rede (agregados
sociais), que, agindo e se entrelaçando umas sobre as outras, formam a própria
globalidade de redes. Nota-se [ainda] que que essa noção de agência dialoga
diretamente com aquela de Latour (2005), atualizando-a como um conjunto de
relações co-engendradas por perfis (e seus atributos humanos e maquínicos).
(MALINI, 2016, p. 6)

Onde há rede há, portanto, relação e, diz Malini, onde há relação, há rede. De tal

modo que o componente mais elementar nesta nossa perspectiva simétrica é precisamente

a relação, o Outrem como relação. Sobretudo porque

Outrem não é um ponto de vista particular, relativo ao sujeito (o ‘ponto de vista


do outro’ em relação ao meu ponto de vista ou vice-versa), mas a possibilidade
de que haja ponto de vista – ou seja, é o conceito de ponto de vista. Ele é o
ponto de vista que permite que o Eu e o Outro acedam a um ponto de vista”
(VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p.118). (Id., p. 9)

Seguindo neste mesmo sentido, ao entrar em uma rede, “entramos em um

complexo de relações de posse, relações de coprodução, de cooperação, de atração ou

oposição” (LAZZARATO, 2006, p. 49). De forma que a própria densidade de relações

nas redes faz emergir pontos de vista coletivos que dizem respeito menos a um conjunto
209

estável de relações e opiniões homogêneas, e mais a comunidades em iteração e a nós

relacionais informativos. Pois, como dito, um perfil existe

porque está em relação com o Outro (seguidor, amigo, inscrito etc). Um perfil
resulta de seu entrelaçamento com outros perfis (...) [e é] "necessário ser
pensado (desejado, imaginado, fabricado) pelo outro para que a perspectiva
apareça como tal, isto é, como uma perspectiva. O sujeito não é aquele que
pensa (como sujeito) na ausência de outrem; ele é aquele que é pensado (por
outrem e perante este) como sujeito" (VIVEIROS DE CASTRO, 2008, p.119).
(MALINI, op. cit., p. 10)

Entrela(n)çamentos, nós e comunidades que são, inclusive, capazes tanto de

evidenciar comportamentos e práticas sociais diversas, quanto de influir nos sentidos dos

acontecimentos e das práticas sociais. Vide, por exemplo, a própria importância que as

redes e que tais comunidades tiveram seja na Primavera Árabe em 2011, seja nas

manifestações de junho de 2013 no Brasil, seja ainda nas Eleições de 2018 no país e fora

dele. Donde:

[a] cooperação associativa – entre pessoas, entre coisas, entre perfis – são
rastros que retratam visualmente, através dos desenhos de redes, relações de
múltiplas entidades entre si. (...) E a transformação de nossos rastros digitais
em metadados acelera a descoberta das relações incorporadas aos dados
pessoais ou institucionais armazenados em distintos bancos de dados online.
(MALINI, 2016, p. 9)

E, no caso que nos interessa, quer dizer, no caso das redes sociais, essa relação

pode ser:

[1] entre perfis, traçada a partir do compartilhamento, do comentário (ou reply)


e das curtidas em postagens públicas; [2] entre perfis e objetos interativos,
traçada entre perfis e hashtags, perfis e imagens compartilhadas, perfis e links,
perfis e posts curtidos; e [3] entre objetos ou entidades digitais, traçada em
redes de hashtags, de palavras, de links, de imagens, enfim de entidades
textuais ou imagéticas que conformam a linguagem das redes sociais.
(MALINI, 2016, p. 9)

O método perspectivista proposto por Malini constitui-se, finalmente, como um

método de análise de redes voltado a um projeto de cartografia de perspectividades em

rede, precisamente porque ele demonstra, de um lado, que é a adoção de um ponto de

vista que funda o laço entre os perfis; e, do outro, que as perspectivas de rede são pistas

para revelar como os sujeitos – os perfis – se pensam como sujeitos.


210

De modo que as próprias possibilidades de se cartografar estas perspectividades

se abrem pela sua expressão visual num grafo, dado que “os pontos de vista se apresentam

como força conceitual aglutinadora baseada em relações de afinidade e representadas na

forma de clusters” (op. cit., p. 94). Bem como pelo próprio fato de que a clusterização e

seu lugar na rede pode revelar conceitos distintos acerca daquilo que se propaga em rede,

é exatamente essa cultura dos laços sociais – como ação conjugada de perfis
em rede – que nos interessa e cabe lembrar que as relações, que as agências de
redes são, antes de tudo, relações sociais que revelam os modos de como o
social se reagrega. Contudo, só se é possível se agregar se os perfis forem
agenciados por uma perspectiva. A formação de redes de perfis em redes
sociais depende da ação, mas esta, antes, de uma perspectiva. (Ibid., p. 6)

É nesse sentido, portanto, que alinhados à Malini e ao método perspectivista

buscamos cartografar as perspectivas em redes,

isto é, os conceitos que fazem os perfis (humanos ou não-humanos, mas


pessoas) agirem e se aglutinarem. [Pois se a] “perspectiva é menos algo que se
tem, que se possui, e muito mais algo que tem o sujeito, que o possui e o porta,
isto é, que o constitui como sujeito” (Viveiros de Castro, 2008, p.118).
Compartilhamentos e conversações em redes sociais são rastros digitais dos
pontos de vistas, cuja força num dado acontecimento social depende então da
densidade de relações fabricadas entre os perfis. (op. cit., p. 6)

Nossa investigação remete, assim, à própria tarefa do pesquisador de rede,

partindo da ideia de que é possível tanto compreender as perspectivas inscritas nessas

relações em rede, quanto mapear as interações de humanos e não-humanos. Evidenciando

as camadas de rede que vão inventando e articulando relações entre si, e que vão criando

e demonstrando perspectivas particulares sobre uma questão, um tema, um acontecimento

ou um problema, no nosso caso, as práticas alimentares e a própria alimentação.

Especialmente porque

ter um ponto de vista é (...) assumir uma perspectiva com o outro sobre uma
realidade. Trata-se de atuar dentro de um sentido que é anterior e formador do
tópico frasal publicado por um perfil. Sentido coletivo que reproduz a
experiência de ser perfil, por primeiro capturar e ser o feed de outrem, uma
experiência relacional de estar no entre, que faz os perfis, ao mesmo tempo,
acederem à perspectiva de outrem ao mesmo tempo que a atualizam a partir de
seu sotaque próprio em suas postagens que viralizam essa atualização.
(MALINI, 2016, p. 10)
211

E, neste mesmo sentido, as redes são como campos motorrelacionais onde floresce

uma complexa trama de relações que constitui, ao mesmo tempo, uma espiral de

individuação psíquica e coletiva. O que nos remete imediatamente à própria discussão de

Simondon sobre o método, onde

[o] método consiste [justa e precisamente] em não tentar compor a essência de


uma realidade em meio a uma relação conceitual entre dois termos extremos
preexistentes, e em considerar cada verdadeira relação como tendo classe de
ser. A relação é uma modalidade do ser; ela é simultânea com relação aos
termos dos quais garante a existência. Uma relação deve ser entendida como
relação no ser, relação do ser, maneira de ser e não mera relação entre dois
termos que se poderia conhecer adequadamente por meio de conceitos, porque
eles teriam uma existência efetivamente prévia e separada. (op. cit., pp. 23-24,
grifo nosso)

Mais do que isto, considerando também a dimensão ontopolítica que tanto nos

apetece, as redes sociais, enquanto um campo embebido por completo no processo

capitalista, se tornaram também uma matriz de emergência de produtos, de práticas, bem

como de vetores de subjetivação e de individuação que não preexistem exclusivamente

no mundo.

Exatamente porque ganham forma na e através de sua circulação neste campo

relacional onde fervilham tendências emergentes, tendências em formação, assim como

tendências cristalizadas e/ou capturadas (Cf. DELEUZE; GUATTARI, 1997).

Dizemos isso para reiterar então que, em meio aos fluxos e aos movimentos

transformativos do capitalismo e das sociedades capitalistas contemporâneas, é possível

pensar que os perfis e as redes sociais não representam o social, tampouco que elas são

algo como um modelo ou um duplo do socius. Fundamentalmente porque

(...) esses dois níveis [indivíduo – todo] não correspondem a nenhum domínio
ontológico real (...) [e] eles começam a desaparecer, para serem literalmente
redistribuídos, toda vez que se modifica ou melhora a qualidade de acesso aos
conjuntos de dados, permitindo assim que o observador defina qualquer ator
por sua rede e vice-versa. Isto é exatamente o que a ampliação impressionante
das ferramentas digitais está fazendo com os conceitos de “indivíduo” e de
“todo”. A experiência (cada vez mais comum hoje em dia) de se navegar em
uma tela de elementos para os agregados pode levar os pesquisadores a
concederem menos importância a esses dois pontos finais provisórios.
(LATOUR et al., op. cit., p. 10)
212

Nossa hipótese, assim, é que as redes são, a partir desta perspectiva ontogenética,

uma miríade de matrizes relacionais em ressonância e interferência com o próprio campo

de emergência do capitalismo, onde podemos tanto rastrear e observar os potenciais

emergentes e as tendências germinantes (os sinais fracos), quanto perceber tendências e

micromovimentos formativos em latência, bem como os próprios efeitos que produzem

no mundo ou, melhor, na produção de mundos. No mesmo sentido em que, se o campo

capitalista é repleto de tendências que corporificam e mundificam relações, nas redes

podemos ver estas tendências emergentes se multiplicando e se diferenciando topológica

e temporalmente.

Do mesmo modo em que podemos observar o aparecimento de dispositivos e

aparelhos que, dedicados a capturar tais tendências, estratificam também o próprio campo

da vida, operando em uma base preemptiva que se debruça e atua justamente sob(re) os

níveis trans e infraindividuais que mencionamos anteriormente. Isto é, sobre aquilo que

ainda não emergiu, mas cujo movimento, cuja motorrelacionalidade já desperta o apetite

desta lógica operativa ontopoderosa, a exemplo dos algoritmos de vigilância e de

segurança que compõem as operações de mineração de dados e de trawling em massa

utilizadas pela Agência de Segurança Nacional dos EUA.

O que é dizer, em outros termos, que as redes nos permitem pensar e observar não

só os limites imanentes do capitalismo como também os próprios limites do campo de

expressão e de produção do vivo a partir de uma curadoria destas tendencias e dos rastros

de sua passagem e de sua emergência. Cultivando, inclusive, a hipótese de que as práticas

alimentares expressas nas redes são como coagulações das tendências nesses campos e,

para além de qualquer binarismo, ou seja, para além de qualquer distinção maniqueísta

entre virtual-real, online-offline, dentro-fora, o cardápio teórico-conceitual que


213

convocamos nos possibilita trabalhar não só olhando e analisando os efeitos que estas

tendências produzem no campo de potenciais imanente à criatividade da vida – à

ontogênese –, como também em meio às inflexões do processo capitalista e suas

empreitadas ontogenéticas.

O que nos conecta a própria tarefa ontopolítica de avaliar tendências e de fazer,

por fim, uma curadoria dos rastros de sua passagem, afinal, tendências são modos de se

orientar, de se governar e seus micromovimentos deixam rastros. Rastros estes que,

muitas das vezes, nutrem uma infinidade de operações sob(re) a ontogênese, como por

exemplo, o clickbait – a isca de cliques – e as propagandas personalizadas que, dentre

tantas estratégias da publicidade e do marketing digital, abundam nas redes sociais e se

baseiam exatamente na rastreabilidade de nossos rastros digitais, agora convertidos em

dados acessíveis, mineráveis, manipuláveis e mapeáveis (Cf. LATOUR, 2007a).

Assim sendo, temos seguido as sugestões de Malini (2016, 2017) para identificar

perspectividades topológicas e temporais e, neste sentido, vale ressaltar três aspectos

desse perspectivismo em rede que nutrem a nossa proposição cartográfica:

O primeiro: os pontos de vistas se apresentam como força conceitual


aglutinadora (o ponto de vista), baseada em relações de afinidades,
representadas na forma de clusters, que analisados separadamente operam
discursos, imagens, laços sociais e discussões internos que dão a substância
para o conceito existir e a comunidade prosperar de relações. O segundo:
pontos de vistas estão sempre em uma posição (temporal ou espacial),
possuem uma topologia que os permite se localizar numa relação de
proximidade ou distanciamento, de antagonismo ou de convergência; de
centralidade ou periferia a outras perspectivas em um mapa de relações. E
terceiro: pontos de vistas empreendem dinâmicas de poder, que se traduzem
em disputa pela hegemonia das narrativas sobre fatos, ideias, marcas e
produtos, elegendo seus operadores (perfis) mais influentes, numa tentativa de
neutralização ou de sobreposição da perspectiva alheia. (MALINI, 2017, pp.
91-95)

Cumprimos então, seguindo o método perspectivista (2017, p. 96), as seguintes

etapas de pesquisa: coleta, mineração, visualização, modularização, modelagem e


214

reprocessamento de dados. Sendo que, no momento do depósito deste texto, estamos nas

etapas de coleta e mineração dos dados, feitas a partir da busca das palavras chaves

alimentação, alimentacao, alimentaçao, alimentacão, e das hashtags61 correspondentes

(#alimentação, #alimentacao, #alimentaçao, #alimentacao), sempre em português, e com

o recorte temporal situado entre as 00h00 do dia 01/01/2015 as 23h59 do dia 31/12/2019

(UTC BRT).

Para as redes sociais Facebook e Instagram estamos utilizando o app

CrowdTangle62 para coleta de dados. Desenvolvido pelo próprio Facebook, ele

acompanha publicações públicas, compartilhando dados como: quando algo foi

publicado; o tipo de publicação; a página/conta pública que publicou tal conteúdo, bem

como o grupo onde foi publicado; as iterações ocorridas, incluindo seu número; e as

páginas/perfis/contas públicas que compartilharam uma publicação.

Muito embora o CrowdTangle acompanhe grupos, perfis e contas públicas

influentes nestas redes, contemplando “todos os usuários, perfis e contas verificados,

como políticos, jornalistas, mídia e publishers, celebridades, equipes esportivas e figuras

públicas, entre outros”, é importante situar que as limitações deste aplicativo dizem

respeito ao fato de que ele não acompanha contas privadas e não rastreia os alcances e

impressões de um post e de uma publicação. Deixando de fora, assim, conteúdos

efêmeros, tal como os stories, publicações pagas ou impulsionadas e contas com

restrições de localização ou idade para seu conteúdo.

61
Estes elementos exercem ao menos dois papéis importantes nas redes: enquanto indexam conteúdos –
como posts e tweets –, também criam comunidades e memórias ao agruparem temas e assuntos, permitindo
interações entre atores que estão discutindo o mesmo tema e os mesmos assuntos (Cf. HAACKE et al,
2014). Estes dois papéis são, assim, metodologicamente, elementos chave para que possamos trabalhar com
uma quantidade grande de dados, contribuindo para processos de coleta, extração e mineração, bem como
para seu armazenamento e visualização.
62
Cf. https://crowdtangle.com. Sobre sua política de dados e sua base de dados, que citaremos a seguir:
https://help.crowdtangle.com/pt-BR/articles/4201940-sobre-nos. Acesso em 14/03/2021.
215

De todo modo, como o aplicativo notifica em sua página, o banco de dados do

CrowdTangle inclui, no caso do Facebook, “mais de 5 milhões de Páginas, grupos

públicos e perfis verificados”, incluindo “todas as Páginas do Facebook com mais de 100

mil curtidas”, enquanto no Instagram são “mais de 1,8 milhão de contas públicas,

incluindo todas as contas com mais de 75 mil seguidores, além de todas as contas

verificadas”.

Os conteúdos, é importante situar, estão sendo pesquisados em português e, no

caso do Facebook, com o filtro de região “Brasil” (indisponível para o Instagram). Os

dados, vale dizer também, estão sendo coletados a partir da interface do próprio

CrowdTangle, que dá esta opção ao pesquisador.

Ainda neste quesito, é importante situarmos que os dados relativos ao Facebook

e ao Instagram foram todos extraídos no dia 31/03/2021 e organizados em arquivos .csv

que dividem os datascapes por semestres, indo do dia 01/01 ao dia 30/06 e do dia 01/07

ao 31/12 de cada ano, no intervalo entre 2015 e 2019.

Esta coleta compreendeu, finalmente, um total de 2.731.528 posts e 308.889.294

interações no Facebook e de 677.858 posts e 613.979.844 interações no Instagram,

conforme pode ser visto nas imagens a seguir (a primeira com dados de nossa busca

relativa ao Facebook e a seguinte ao Instagram. Ambas as imagens captadas em

31/03/2021).
216

Figura 12. Interface do CrowdTangle indicando os resultados de nossa pesquisa no Facebook.

Figura 13. Interface do Crowdtangle indicando os resultados de nossa pesquisa no Instagram.


217

Agora, quanto ao Twtitter, neste momento temos um banco de dados que nos foi

ofertado pelo Laboratório de Estudos sobre Imagem e Cultura (UFES), coordenado pelos

Profs. Drs. Fábio Malini, Fabio Gouveia, Patrick Ciarelli e pela Profa. Dra. Adriana Ilha,

que foi o contato inicial com o Laboratório, juntamente com o pesquisador Saulo Sales,

que nos colocaram em contato com o pesquisador Willian Lopes, que recebeu minha

solicitação de coleta de dados em 12/01/2020, compartilhando-os comigo já no dia

seguinte à solicitação.

Criado a partir da busca da tag alimentação no período entre as 00h00 de

31/07/2019 e as 02h04 de 13/02/2020 (UTC), este dataset contém 42.556 tweets

(Apêndice A) e foi a base para o estudo inicial do método perspectivista e da operação do

software Gephi, culminando com o desenvolvimento do protótipo que veremos a seguir.


218

7.2. Proto-tipo: um estudo do método perspectivista de análise de redes sociais

[Y]ou are always already in the thing that


you call for and that calls you.
Jack Halberstam and Fred Moten
and Stephano Harney

[W]hen we listen to music, we must refuse the idea that


music happens only when the musician enters and picks up
an instrument; music is also the anticipation of the
performance and the noises of appreciation it generates and
the speaking that happens through and around it, making it
and loving it, being in it while listening.
Jack Halberstam and Fred Moten
and Stephano Harney

Partindo então do dataset ofertado pelo LABIC, criamos este protótipo que

envolveu, finalmente, a produção de dois grafos. Contudo, antes de irmos a eles, é

importante reforçarmos que as duas primeiras etapas de nosso método – a de Coleta de

Dados e de Mineração de Dados – foram realizadas pelo pesquisador Willian Lopes,

membro do LABIC, por meio da composição entre o Ford, software do LABIC63 que se

conecta diretamente à API Search do Twitter, e o YourTwapperKeeper, software que se

conecta a API Stream do Twitter, capturando qualquer menção a um termo, em nosso

caso, a tag alimentacao.

O material que recebemos contempla, então, uma série de arquivos produzidos

pelo Ford após o procedimento de Mineração, denominado neste software como Parse,

e que gera uma série de arquivos:

topfavorites.csv (os tweets mais favoritados e o valor de sua frequência),


tophashtags.csv (as hashtags mais frequentes e o valor de sua frequência),
topmediaurl.csv (os links nativos do twitter de imagens, videos e gifs e o valor
de sua frequência), top_retweets.csv (os RTs mais frequentes e o valor de sua
frequência), toptweets.csv (os tweets mais frequentes e o valor de sua
frequência), top_url.csv (os links mais populares e o valor de sua frequência),
top_words.csv (as palavras mais populares e o valor de sua frequência),
tweets_by_date.csv (o número de tweets por dia ou hora ou minuto e o valor
de sua frequência), tweets_lang.csv (os idiomas mais populares e o valor de
sua frequência), tweets_source.csv (os dispositivos mais populares e o valor de
sua frequência), tweets_type.csv (a quantidade de RTs, Menções e Replies),
tweets_with_links.csv (todos os tweets com links), user_activity.csv (os
usuários que mais publicaram tweets e o valor de sua frequência),
users_by_date.csv (número de usuários por dia ou hora ou minuto),

63
Cf. http://www.github.com/ufeslabic. Acesso em 13/03/2021.
219

users_influence.csv (os usuários mais influentes), users_location.csv (a


localização geográfica dos usuários que tuitaram), users_mentions.csv (os
usuários mais mencionados e o valor de sua frequência), users.csv (todos os
usuários únicos que participaram), wordcloud_hashtag (arquivo para plotagem
de hashtags), wordcloud_word.txt (arquivo para plotagem de nuvem de
palavras), wordsbydate.csv (palavras mais frequentes em cada um dos dias).
(MALINI, 2016, pp. 13-14)

Além deste conjunto de estatísticas, o Parse também produz uma série de arquivos

para grafos, que podem ser plotados em softwares específicos (como o já mencionado

Gephi), e que compreendem arquivos como: “networks_ATs.gdf (todas as relações de

comentários), networks_MTs.gdf (todas as relações de menção), network_RTs.gdf (todas

as relações de Retweets), networks.gdf (todas as relações conjuntamente)” (Id., p. 14)

Dentre os arquivos recebidos, utilizamos os arquivos network_hashtags.gdf e

network_RTs.gdf para operarmos a terceira etapa do método perspectivista – a

Visualização dos Dados –, plotando estes arquivos no software Gephi que, lembremos,

nos permite criar, manipular e visualizar grafos.

Em ambos os casos utilizamos a mesma estratégia: carregamos os arquivos

separadamente no Gephi e em cada um deles aplicamos o algoritmo de Modularidade

presente no software, separando através do atributo cor aquilo que a teoria dos grafos

denomina como clusters e que são, diria Malini, os argumentos associativos de uma rede,

isto é, nós densamente conectados: perspectividades, grupos comuns, estruturas de

afinidades.64

Considerando, pois, que um grafo é uma representação gráfica de uma rede

iterativa, a operação seguinte foi exatamente sobre o layout do grafo a partir do algoritmo

Force Atlas 2, também presente no Gephi, que permite que o grafo ganhe uma forma de

rede em função de uma lógica algorítmica que se baseia na atração dos pontos que se

relacionam mais e na dispersão daqueles que se relacionam menos.

64
Para mais, cf. http://www.labic.net/publicacao/introducao-a-teoria-dos-grafos-e-visualizacao-de-redes-
sociais-slides/. Acesso em 04/04/2021.
220

Atribuímos, em seguida, valores de grau a cada um dos nós através da estatística

Weighted Degree, optando por visualizar destacadamente os com maior taxa de grau de

peso médio de entrada (Weithed In Degree). Lembrando que nós são aquilo que

representa o nome dos perfis e as hashtags, e arestas as linhas que revelam as ações dos

perfis (como compartilhamento, RTs, e comentários, ATs).

O primeiro grafo, portanto, é relativo à rede de hashtags ligadas à hashtag

#alimentacao, que é excluída no início da plotagem do grafo afim de melhorar a

visualização dos clusters, já que todas as outras hashtags estão forçosamente conectadas

a ela e isso acaba por poluir a imagem, dificultando a identificação dos clusters.

Figura 14. Rede de hashtags que se articulam ao redor da hashtag #alimentacao no Twitter entre as 00h00 de
31/07/2019 e as 02h04 de 13/02/2020 (UTC).
221

O segundo grafo, por sua vez, é relativo à rede de republicações, de retweets

ligados à hashtag #alimentacao, com destaque para os nomes dos perfis que ativamente

se engajaram na discussão sobre alimentação no Twitter ao longo do período indicado.

Figura 15. Rede de RTs ligados â hashtag #alimentacao no Twitter entre as 00h00 de
31/07/2019 e as 02h04 de 13/02/2020 (UTC).

Pois bem, distantes de uma verticalização ou de um mergulho analítico nos dados

neste momento de nossa pesquisa, optamos por incluir este breve protótipo e estes grafos

no Exame de Qualificação justa e precisamente porque eles demonstram, por um lado, a

nossa proposição teórico-metodológica em operação e, por outro, porque eles também

evidenciam a materialidade do que viemos discutindo anteriormente.

Isto é, essa ideia de um perspectivismo em rede e a formação das perspectivas

clusterizadas na rede, o que podemos observar em ambas as imagens, onde os perfis se


222

posicionam em territórios distintos na globalidade da rede, formando diferentes clusters

ou agrupamentos em iteração.

No caso da Figura 01, por exemplo, podemos ver destacadamente, a partir da

utilização de um filtro de Modularidade, ao menos 7 perspectividades distintas em um

total de 93 agrupamentos diversos, conforme o relatório de modularidade ofertado pelo

algoritmo de modularidade presente no Gephi (Apêndice B).

Figura 16. Clusters destacados na rede de hashtags ligadas â hashtag #alimentacao no Twitter.

Agora, no caso da Figura 02, é possível identificarmos, utilizando a mesma

estratégia, ao menos 6 clusters diferentes, cada uma representando uma perspectividade

sobre o tema da alimentação e que conta com alguns perfis em destaque dada a sua medida
223

de Grau que, combinada à sua atividade de publicação, demonstram o seu grau de

participação e engajamento acerca de uma temática na rede.

E isto, ainda no caso específico da Figura 02, em meio a cerca de 2393

comunidades em iteração que, conforme indica o relatório de modularidade deste grafo

(Apêndice C), se formam ao redor deste tema, cada uma delas com suas características

singulares e suas especificidades.

Figura 17. Clusters destacados na rede de RTs ligados â hashtag #alimentacao no Twitter.
224

E se dissemos cerca é precisamente porque um de nossos próximos passos é a

limpeza e a organização dos dados coletados e minerados em todas as redes a fim de

melhorarmos a visualização de nossos grafos e a nossa própria análise.

De todo modo, trazemos estes dois exemplos de grafos porque eles também

demonstram uma das hipóteses que compõe o nosso método, a saber, a de que “toda rede

é permeada de perspectividades topológicas, de diferentes módulos associativos, de nós

que se conectam mais intensamente a outros, distinguindo-se de outros na rede, o que faz

com que sua posição seja distinta de outros agrupamentos” (MALINI, 2016, p. 13).

Tais agrupamentos visíveis em nossos grafos revelam, assim, as perspectivas

topológicas que interpretam, cada qual à sua maneira e a partir de suas afinidades, a

alimentação. Evidenciando pontos de vista diferentes sobre tal assunto, bem como uma

certa ecologia semântico-prática que se expressa em cada um deles e que poderemos

acessar a partir de nossos próximos passos: a modularização, a modelagem e o

reprocessamento de dados.
225

8. Considerações pró/visórias e plano de trabalho

Considerando, portanto, os passos que compõem o método perspectivista, nossos

próximos passos de modularização, modelagem e reprocessamento de dados somam-se à

mineração dos dados já coletados no Facebook e no Instagram, e a coleta e a mineração

dos dados do Twitter no mesmo período utilizado em nossa coleta no Facebook e no

Instagram – da 00h00 do dia 01/01/2015 às 23h59 do dia 31/12/2019 –, e a partir da

mesma estratégia de pesquisa, da mesma forma de organização dos dados e da oferta do

LABIC após nova solicitação de coleta de dados a ser realizada após o depósito do Exame

de Qualificação.

Com a coleta e a mineração feitas, com os bancos de dados consolidados, limpos

e devidamente organizados e sistematizados por redes sociais em arquivos próprios para

a operação do método perspectivista – como arquivos .csv e .gdf com os nós e a as arestas

devidamente formatados –, seguiremos operando concomitantemente as etapas de

Visualização e Modularização (que pudemos observar em nosso protótipo), cujo objetivo

é, primeiro, a identificação dos clusters numa dada rede no Gephi a partir das diferentes

cores características de cada módulo associativo presente no grafo (como vimos nas

figuras 14, 15, 16 e 17).

Separaremos, então, por meio do algoritmo de Modularidade, os clusters e

identificaremos o nome dos usuários pertencentes a cada um deles, passando assim à fase

de Modelagem, que é quando as publicações/comentários são rotulados, a fim de se

calcular o volume de publicações/comentários que um rótulo/assunto possui em nossos

datasets.

Na sequência, ainda no Gephi, exportaremos os nomes desses usuários, separados

por cluster, através do "Laboratório de Dados" do software, salvando um arquivo -


226

"usernames.csv" – que conterá uma lista de usuários (usernames.csv) distinta para cada

módulo associativo, em cada rede social.

Feito isto, chegaremos à nossa última fase, a de Reprocessamento de Dados, onde

juntaremos o arquivo "usernames.csv" com os arquivos que contém as publicações e

comentários – como o "tweets.csv", que mencionamos anteriormente –, identificando as

publicações dos usuários contidos em cada cluster, usando para isso softwares e scripts

como o citado Ford, que gerarão os mesmos arquivos ou arquivos similares aos citados

antes quando falávamos da fase de Mineração.

Os arquivos gerados estarão, no entanto, customizados em função da lista de

usuários contida no arquivo “usernames.csv”, o que nos dará a oportunidade de identificar

as características próprias de cada cluster ou, mais precisamente, as perspectivas – esses

“conjunto[s] próprio[s] de vocabulário[s], significações, relações, mediadores, etc”

(MALINI, 2016, p. 17).

Permitindo, assim, a descrição e análise destes módulos associativos, de seus

campos problemáticos e das ecologias de práticas que movem e convocam, contemplando

nosso objetivo secundário e a produção de múltiplos grafos a partir das periodizações que

indicamos anteriormente a fim de identificarmos também, além das perspectivas

topológicas, as perspectivas temporais que compõem nosso método.

Caso necessário, ao longo deste período serão reajustadas as técnicas e os

instrumentos para realização de nossa cartografia, em especial a mineração e

sistematização dos dados, para que sigamos com a sua feitura. Do mesmo modo em que

as recomendações obtidas no Exame de Qualificação servirão para enriquecermos e

afinarmos não só a pesquisa e a metodologia, como também nossa discussão e nossas

análises.
227

Vale ressaltarmos, inclusive, que nossas análises não estarão desconectadas dos

deslocamentos epistemológicos-ontológicos-políticos-metafísicos-cosmológicos que

cultivamos ao longo de nossa escritura. O que não só remete diretamente ao nosso

primeiro objetivo, como à própria analítica que buscamos germinar e compartilhar.

De tal modo que as nossas análises serão nutridas por esta perspectiva

ontogenética que toma o humano como humo, ou seja, que o toma como uma

pla(n)taforma de relações, como o próprio produto de uma mais-valia relacional.

Buscando, assim, situar vetores que atuam sobre esses campos relacionais e essas

ecologias, investindo sob(re) essas relações, suas condições e, no limite, sob(re) o próprio

entendimento do que é o humano e sua ontogênese.

O que alimenta, portanto, um modo de análise-investigação-experimentação-

pensamento-criação que não responde à uma necessidade de organizar o imensurável da

experiência, mas sim à própria necessidade de, ao invés de situar e de posicionar os termos

de uma relação anteriormente a ela mesma em categorias pré-constituídas, cuidar e de

valorizar essa dimensão do potencial ontocriativo da vida, dando conta não só dos termos

que compõem uma relação e de sua análise, mas daquilo que emerge transversalmente

entre eles e os transforma ontogeneticamente.

O que é dizer, de uma outra maneira, já à guisa de encerramento, que nossa

pensensação, ressoando em muitos sentidos a cosmopolítica de Stengers (2018), busca

apresentar uma “proposição cujo desafio não é o de dizer o que ela é, nem de dizer o que

ela deve ser, mas de fazer pensar” (p. 443). Uma proposição que, no limite, “não requer

outra verificação senão esta: a forma como ela terá “desacelerado” os raciocínios cria[ndo

uma outra ritmologia, um]a ocasião de uma sensibilidade um pouco diferente no que

concerne aos problemas e situações que nos mobilizam” (Id., p. 443).


228

Problemas e situações esses que, seja o comportamento, seja a ontogênese, seja a

alimentação e tantas outras questões pelas quais passamos, estão embebidos, em nosso

caso, não só em uma aposta [est]ético-[cosmo]política, como havíamos enunciado

inicialmente, mas efetivamente na abertura de uma clareira, isto é, na criação de uma terra

fértil onde possamos germinar uma perspectiva que, para além do nosso entendimento

mais usual de política e de saúde, cultiva uma cosmopolítica da saúde, uma ter(r)apêutica,

situando-a em agenciamento que é, finalmente, cosmosociotécnico.

Cronograma de Execução

Atividade/Semestre Maio- Julho- Set- Nov- Jan- Mar-


Junho Ago Out Dez Fev Abr
2021 2021 2021 2021 2022 2022
Ajuste de técnicas e instrumentos para
realização dos estudos baseados na análise
perspectiva de rede, bem como análise do
retorno crítico do Exame de Qualificação.
Coleta e mineração dos dados do Twitter, e
mineração dos dados do Facebook e do
Instagram.
Organização, limpeza e tratamento dos dados
minerados.
Visualização e Modularização
Modelagem
Reprocessamento dos dados
Realização das análises e da discussão crítica
dos resultados.
Elaboração das sínteses descritivas,
analíticas e teóricas.
Redação final, finalização da tese e depósito.
229

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Worlds. Chicago: HAU Books, 2015b.

WAGNER R. The Invention of Culture. Chicago: The University of Chicago Press, 1981.

WEIR JAQ. Da ‘virada ontológica’ ao Tempo de Volta do Nós. 2021. Disponível em


https://amazonialatitude.com/2021/04/06/da-virada-ontologica-ao-tempo-de-volta-do-
nos/. Acesso em 10/04/2021.

WHITEHEAD AN. Modes of Thought. New York: Free Press, 1968.

WHITEHEAD AN. Process and Reality. New York: Free Press, 1978.

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University Press, 1985.

WHITEHEAD AN. O Conceito de Natureza. Trad. Júlio B. Fischer. São Paulo: Martins
Fontes, 1994.
244

ZOURABICHVILI F. O vocabulário de Gilles Deleuze. Trad. André Telles. Rio de


Janeiro: Relume Dumará, 2004.

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MENNA BARRETO J. (Ativação da obra) Jorge Menna Barreto: Restauro [vídeo].


Brasil, YouTube, 2016. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=IXvj_x0qs7U. Acesso em 26/01/2018.

MILONOPOULOS A. Quando ‘coletivo’ quer dizer outra coisa: notas tentaculares sobre
ecologia, comportamento e (des)humanização da saúde [vídeo]. Brasil: Youtube; 2020.
Disponível em: youtu.be/lHtqHnArDDk.

SEBESTIK M. Écoute [vídeo]. França: Centre Georges Pompidou; JBA Production; La


Sept; Mikros Image; Sacern, 1992. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=ATr80Ra5yBI.
245

Apêndice A – Log da coleta de dados do Twitter

Registro da coleta de dados do Twitter para o dataset utilizado em nosso proto-tipo.


Compartilhado pelo pesquisador do LABIC Willian Lopes em 13/01/2020.

Removing null bytes...


-3 local time zone set.
Up-to-date tweets dataset found.
Parsing tweets...
Read 43184 total lines.
627 duplicate tweets.
42556 valid lines.

Tweets: 42555 from 35871 users.


Original: 3834 from 3404 users.
Users: 36894 senders and receivers.

Countries: 9 (top: Brasil).


Dialogue: 0.51 global.
Emojis: 132 from 2286 tweets.
Favorited: 749527 (3803.04/tweet).
Geocodes: 8 (0 from GeoNames).
Hashtags: 554 from 1846 tweets.
Languages: 2 (top: PT).
Media: 1070 from 2282 tweets.
Places: 143 from 312 tweets.
Retweeted: 190084 (964.47/tweet).
Sentiment: 0.40 global.
Sources: 81 (top: Twitter for Android).
URLs: 971 from 2960 tweets.
Words: 15116 approximately.

Retweets: 37336 from 31666 senders to 2624 receivers.


Quotes: 370 from 345 senders to 315 receivers.
@-messages: 1015 from 924 senders to 891 receivers.
Mentions: 19687 from 14774 senders to 1656 receivers.
Interactions: 58038 from 32924 senders to 3955 receivers.

Top words: alimentacao, saudavel, praca, saude, agua.


Top hashtags: #g1, #maislidas, #argentina, #selmaarruda, #psl.
Top users: @jean69969076, @brunaobarreto, @belinhapoodlebr, @movimentodirei3,
@cncomusic.
Top URL: https://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2019/04/16/justica-manda-bloquear-r-
100-mil-do-deputado-felipe-francischini-por-gastos-com-alimentacao.ghtml.
Top retweet: "INFORMAO TIL: a mao nao cai quando vc recolhe a sua bandeja na praca
de alimentacao do shopping.".
Top favorite: "BOA NOITE MEU CONSAGRADO, LHE DESEJO: . * . . * .
UMA VAGA DE * * . EMPREGO . * . + . * . * COM A CARTEIRA
ASSINADA + TICKET ALIMENTAO E VALE TRANSPORTE . *".
246

Time span: 197.09 days.


Frequency: 215.92 tweets/day.
Oldest ID: 1156353830780641282.
Newest ID: 1227775582144024576.
Since: Wed Jul 31 00:00:11 2019 UTC.
Until: Thu Feb 13 02:04:44 2020 UTC.
247

Apêndice B – Relatório de Modularidade do Gephi I: HTs


248

Apêndice C – Relatório de Modularidade do Gephi II: RTs

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