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Defronte o canavial, parado, foi possível ver as fileiras de canas-de-açúcar que antes passavam

velozes compondo bloco único, monolítico. Vãos entre os caules configuravam corredores que
projetavam-se além, ascendendo um morro distante cujo topo era lar de solitária árvore. Entre suas
raízes, haveria de aninhar-me antes da peregrinação.

Entrei andando lentamente. Atrás de mim o carro revirado. Ferro, plástico, espuma e dois corpos
retorcidos. Um deles o mais importante da minha vida. Mais que o meu. Antes no tempo uma
história de cúmplices, rara. Poderia ter olhado para o lado, para o norte de onde viemos, antes de
tomar o canavial, pedido ajuda. Poderia reagir... Teria dado voz a memórias agora silenciadas, teria
me dado trilhões de motivos pelos quais morrer, teria lembrado das galáxias no universo, antes
incontáveis, imensuráveis e agora não mais, análogas às minhas dores. Não o fiz. Não senti.
Caminhei dormente desqualificando as verdes lâminas que saltavam das bainhas e logo logo
açoitar-me-iam a cara e me reconfigurariam.

Os sons pareciam preparados para o colapso: um quase silêncio coberto pelo roçar das folhas no
ar e ruídos de máquina lassa... O estrondo, então, desvelou a realidade que se fez percebida por
mim. Foi impossível. Olhei para trás a tempo do pipoco de um pneu remartelar meus sentidos e
confirmar o desastre. Um demônio incandescente, definitivo e feroz, erguido diante de mim,
desafiando-me a testemunhar o processo através do qual todo aquele carbono combinado ali e ao
longo da minha vida, que compunha o meu amor inteiro, transformar-se em carvão.

Eu corri muito. Navalhas de açúcar riscando minh’alma indolor. Corri muito. Meu fôlego: o bem
mais raro da Terra. Uma pedra imóvel irrompida do caminho sorteou-me o dedão do pé direito,
que quebrou ecoando um estalo. Encontrei-me humilde, de joelhos e boca semiaberta no chão,
mastigando sangue e uma areia pouco especial, pobre e árida como os pés que ali pisavam,
suspenso em devaneio quentinho, suave, gostoso como as papas de aveia que recebia com descaso
aos dias úteis, feitas para mim. Quando finas, acabada a aveia. Quando grossas, esquecidas na
panela. Perfeitas, sempre. Confortáveis, morninhas... Caíra e, quando ergui-me do passado, vi
exposto um osso meu pela primeira vez. Senti alguma dor, mas não muita, não havia espaço. De
pé, calcanhar pronto para apoiar uma marcha morta-viva, mirei o mais longe que pude entre os
colmos magros que balançavam, buscando algo além dali. No céu boiavam nuvens multicoloridas.
Já a tarde também morria. A árvore solitária, enquadrada perfeitamente no topo do cume
enegrecido pela sombra do astro que escondia-se além. Andei muito...

Você poderia perguntar o que vivi ao chegar na árvore. Não saberia dizer tanto. Vivi uma noite
minha, como nunca mais havia sido. Uma noite só minha, antiga, refeita em algo torto. Algo de
uma liberdade asfixiante, indesejada. Imenso paradoxo.

Deitei. Raízes que me abraçaram com carinho fractal.


***

O Sol reivindicava o espaço onde eu me perdera. Tudo ardia e me preenchia do vermelho vivo das
minhas pálpebras cerradas. Luz de estrela. Cotovelo no ar, protegi olhos difíceis de abrir,
enterrados e ressequidos. Virando lento ou morimbundo, me vi oculto sob o pano novo e sujo da
camisa esgarçada. Camisa cara, cor azul marinho, escolhida a dedo por... Pousei a face no chão,
acabanada. Lá do fundo, o olho direito aberto sozinho enquanto o outro ardia, invadido. Lá fora
um horizonte enorme, linear, embaçado e ainda despercebido… Uma memória me fez rir uns três
ou quatro soluços e se foi. Não fui atrás.

***

Dunas e mais dunas. De pé, costas para o Sol, miro o deserto pela primeira vez. Estéril, lindíssimo
como uma folha de papel virgem insemeável. Uma linha perfeita definida pelas cristas das
montanhas de areia, sinuosa qual dragão chinês, une-me ao horizonte. Os ventos que desenharam-
na suspendem e decantam às ordens das pressões do mundo, movendo partículas entre as quais eu
serei, apenas, daqui por diante... Seja ou tenha sido eu o que fosse.

Convido-me a seguir. O caminho existe em companhia do tempo que só vai para frente… Sinto
como se já tivesse sido assim, inflexível. Que pena… A barlavento me toca um sopro tão amigo.
Andando, choro um pouco, sem memórias e sem motivos. Sinto como se já tivesse sido muito
feliz... A sotavento segue a brisa e vão com ela, talvez, pedacinhos de mim... Sinto um vazio maior
que tudo, do tamanho do deserto que me consome…
- Eu respeito você - me vem à boca. Estou pleno de respeito, condescendente.

Muito já andei até aqui. Olho para trás sem esperar nada além e certo estou, diante do deserto
onipresente. Somos, agora, um. Enormes.

Já amorfo, carregado caoticamente meio aos grãos de quartzo, carrego o último desejo, tão
mesquinho: que lembrem de mim!

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