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Casas Pardas Maria Velho Da Costa PDF
Casas Pardas Maria Velho Da Costa PDF
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Assírio & Alvim
www.assirio.p t
As Casas
Os Nomes
ELISA, cuja primeira «casa» está (é) «vaga», e que se move para a
ocupar, para aprender aquilo em que se deve transformar e assumir —
escritora que se procura até ficar representável numa terceira pessoa
narrativa — é a que mais evidente e exibidamente trabalha o seu nome.
Personagem de palavras, personagem em «espera explicativa», pode
ouvir o seu nome como vazio («chamarem-me pelo nada do meu nome
próprio»), e por isso o seu trabalho é aqui o das tentativas de re-
motivação do nome, o da variante procura da fundação do seu próprio
nome, de forma a reduzir-lhe o arbitrário linguístico, a
convencionalidade familiar e social. Que esse como que sinal se motive
linguisticamente pela deformação paronímica, pela invenção de uma
etimologia, pela associação com nomes comuns, pelo jogo de palavras,
são os gestos de uma procura de dizer-se, de procurar-se um sentido,
significações que sejam vivíveis. Os seus «trabalhos de casa»,
copiando textos alheios ou fazendo as suas redacções, na sua II casa,
são explicitamente referidos como «a destinação de quem copia a
dúvida da identidade própria». A procura da motivação do nome
próprio é duplamente a experiência dessa dúvida sobre a identidade e o
traçado da sua procura por aproximações sucessivas, trabalho de
individuação. Trabalho que começa logo na primeira casa, onde estão
já formas várias do nome, e algumas delas, proferidas por diferentes
personagens: Maria Elisa, Elisa, Elisinha, Zizi, Zizinha; e onde os
primeiros gestos de motivação surgem: «Elisadédala», construtora de
labirintos; «Zizieuropa», continente à espera de que a parte que
touro(?). Tais gestos repetem-se, duplos ou mesmo triplos, na II, na IV e
na V casas: «Elisa Elisão / A Lusa Alusão»; «Elisa quer dizer o quê, a
eleita ou a elidida, suprimida? A elisão evita o hiato. A eleição evita a
bruteza clara, é a evitação do argumento da força? Dilecta, a que
deleita, para que fim? Estava a pensar no meu nome quando […]»;
«Considerou ainda nessa noite a proximidade de raiz semântica do seu
nome ao de Electra, a que atrai pela pertinácia do seu clamor de
reparação e ao de elektron, em grego o âmbar amarelo, esse cálculo de
petrificada resina translúcida, seiva volvida coriácea que atrai
partículas leves se insistentemente friccionada, quente, tida em mãos
que indaguem, rara, achável na orla de mares nórdicos contendo por
vezes um pequeno insecto incorrupto, suspenso morto.»
Todos estes gestos operam uma espécie de re-semantização do
nome próprio que funciona em dois movimentos; por um lado, a
caracterização da personagem enquanto processo de individuação
singular, por outro, o processo, interiorizado naquele, da sua
determinação familiar, mítica mas também social e histórica.
A determinação familiar faz-se, também, de duas formas: por um
lado, a ligação expressa com o nome da «bisavó Elisa, a Douda», a que
se pode atribuir ecos da personagem de Maina Mendes, a Muda (do
romance com aquele nome); por outro lado, a verosimilhança que as
alusões ao drama familiar de Elisa concedem à relação estabelecida
com a personagem mítico-literária de Electra. Elisa é de facto uma
espécie de Electra, marcada pela preferência do Pai e pela grande
imprecação que pede justiça. Electra é aliás o topos que permite
também simbolizar aquilo que o romance constrói como sendo um dos
aspectos da unidade complexa do trajecto de Elisa, a unidade entre o
drama familiar e o drama sócio-histórico, o drama político. E nesse
sentido, ainda, esta é uma maneira de o romance «provar» a tese de
Elisa: «as pessoas são na vida política o que são na vida pessoal».
Essa última componente daquela unidade manifesta-se, nos próprios
jogos sobre o nome da personagem, que o tornam uma questão nacional
e uma questão histórica, de classe. Elisa é «a lusa alusão», a portuguesa
(«É portuguesa, está doente? Sou portuguesa, posso vir a estar doente,
donde é que você vem?»); a que toma para si, como questão sua, a
resolver, a da sua nacionalidade, a lusitanidade do bairro, da cidade
(«Mas Elisa está obcecada com a sua nacionalidade por resolver.») E:
«Isto é uma abertura insuportável e eu não me chamo marcelisa, a lisa
deste Março. Estou contaminada de verve pseudoliberalizante, espécie
de delírio de preso em cadeia com ar condicionado, lawn e lavandaria
mecânica. É Março, embora, e alguma primavera urgiria, um destes
anos.» É a referência histórica levada à minúcia da alusão à conjuntura
política. Mas é, também, pela inscrição do gesto de demarcação, que
figura a posição nessa conjuntura, e do gesto que diz o desejo de futuro,
a operação de mostrar o ético e o político como constituintes da
individuação, de tal forma acentuados, que atingem a determinação do
nome próprio.
Os Pronomes Pessoais
ELVIRA tinha sido invocada pelo Tu ao longo das suas três primeiras
casas, gesto que mostrava já a sua particular posição no livro,
movimento de uma interlocução veemente, retoricamente poderosa, e
tão estranhável que merece uma explicitação, na sua II Casa: «DE
EXPLICITACIONE GENTILE / Porque dizes tu, Tu, a criatura que se lhe
disseras o que dizes tu não te entendera?, dirão-me os que me dizem tu
ao que diz eu. […]». Explicitação que é um momento admirável de
ostentação da inverosimilhança da interlocução e de imposição da
significação dessa interlocução: movimento de preferência, de
homenagem e de apelo, movimento que constitui intimamente a voz que
neste livro escreve, o sujeito que nele se constrói. Elvira é (com
Angelo) a figura polar do Outro que permite a constituição do sujeito: o
outro nacional, o outro de classe, o outro da escassez de palavra
imposta, o «desmunido de verbo» que sob o nome se individua. O outro
que, pelo seu estatuto social e histórico, comunica com Angelo, com
Rosa, com Osório (do texto «Amor à Pátria»). O Outro cujo movimento
de individuação é necessário a que se cumpra o do sujeito, e que
ocorre, no sistema do livro, acompanhando o movimento de Elvira.
Elvira assume o eu, toma finalmente a palavra na sua última casa
que é também, sintomaticamente, a última do livro, devido à alteração
da ordem dos nomes, submetida, lembremo-lo, à inversão da ordem dos
pronomes.
A mudança do pronome é no conjunto das alterações pronominais o
único caso da reversibilidade do tu em eu, construindo assim a situação
de diálogo que figura o intenso dialogismo do romance. Tal figuração
do diálogo, em que a personagem assume o eu, é de tal forma marcada
que, nesta casa, a personagem interpela o discurso do livro em que se
faz e que a faz, o que é manifestamente um movimento de «resposta» à
«Explicitacione Gentile» da II Casa, na qual era o discurso do livro que
se autojustificava em diálogo com os leitores prováveis e a própria
personagem. No momento do tu, a voz do livro interpelava assim
aquela a quem dizia tu; agora a voz que diz eu (a da personagem que a
ele acede) interpela aquela outra que lhe dizia tu (e esse era já um
momento na estratégia de construir a sua individuação). Fá-lo no
discurso que dirige «ao falante em meu nome» (aquele que lhe dizia tu)
o que é uma maneira de a voz narrativa dar a ler a sua interpelação pelo
tu, como o modo de ser interpelada e posta em movimento precisamente
por aquela que invocava e a quem agora dá a palavra. Ou seja, a
interpelação de Elvira é já uma resposta à interpelação que parte de
Elvira, ainda sem a palavra. A voz de palavras do livro é o movimento
interpelador e promotor da interpelação veemente daquela que só
possui palavras muito estritas para ver-se ou haver-se visto. Esse
admirável discurso dirigido por Elvira à «criatura que [lhe fala]
sublime», discurso oscilante entre «Eu quero dizer» e «Eu nem sei
dizer-vos que», é o discurso da assunção própria, individual e social,
da denúncia e da exigência, da invectiva e da carta de direitos. Carta
insurrecta e liberta, texto constitucional e fundador. Interlocução
desatada, nela se lê como na «Explicitacione Gentile» que o diálogo,
não é tão-só a dois, mas a três ou mais (e aí se vê que cabe a 3.ª
pessoa). Falando à voz que no livro a fala, Elvira fala também aos que
a condicionam à exiguidade de palavras, dores e prazeres do corpo e
do espírito; a quem leia. E compreende-se que a voz narrativa que a faz
falar, não só a converte em interlocutor, mas abre-lhe também a fala aos
outros interlocutores. Eu e você, por exemplo.
O discurso de Elvira responde clara e insistentemente ao que,
noutra casa dessa mesma última sequência, se diz que Elisa aprende,
decide, formula:
Elvira diz: «É apenas por dentro dos meus gestos executando-os
que o falante em meu nome poderá alcançar a tremenda injustiça que me
é feita na exiguidade dos ditos para os reflectir». Está sancionando a
busca de Elisa que se interroga: «Que saberei das mulheres se não
lavar, fritar, esfregar?».
Elisa escreve: «Darás a mão ao desmunido de verbo mais próximo,
o mutilado da boca, ventriloquentemente» e Elvira responde com o seu
discurso, e dizendo «Eu, Elvira, pela graça de Deus e dos homens».
«Elisa busca a resposta a forjar-se nos olhos dos vivos, criar como
retorquir, narrar para que eles narrem». Elvira responderá narrando e
dizendo: «Poderíamos, enfim, ser mais os poetas nados e criados, se
não te temeras tanto da corporalidade extrema de toda a mutação,
mudança que valha».
«Elisa deseja que a fulguração oculta more na cozinha de cada um»,
e Elvira responde «Ouvirei então aqueles que não disserem, A cada um
segundo os seus dotes e hábitos, julgando que estão a falar de
necessidades eternas. Quem poluiu o direito do meu espírito a vaguear
face a uma rosa da variegada profusão dos seus lugares e matizes?
Quem usurpou pela fadiga dos nomes a que não tive acesso o meu
direito a dizê-la que toda a rosa a rosa?» Elvira insiste: «Eu nem sei
dizer-vos que, querendo o tudo, ainda não sei escolher dos resíduos
esmoleres quais os detritos a devolver-vos».
Na última casa de Elvira, faz-se aquilo que Elvira busca fazer,
agora sob a forma da fundação e da apoteose; porque aí se sanciona o
desejo da voz narrativa, em que o assumido eu é, ao mesmo tempo, o de
uma persona, figura da ficção poética, e o de uma individuação
triunfante, mesmo que precária e em aberto.
Digamos que a assunção de Elvira é factor, condição e obra daquilo
em que Elisa se transforma. Porque aqui se consuma sob a forma mais
visível, na ordem e na lógica do livro, a mudança de casa — mudança
de vida; porque aqui culmina a reversibilidade e, mais do que isso, a
multipolaridade dialógica; porque aqui se completa, aberto, o dever
falar que é um motor de poética.
O «diálogo» de Elisa e Elvira, que pressupõe a convocação de
outros interlocutores, feito pela voz do livro, é precisamente
constitutivo, interno, e fundador dessa voz.
Adeus Elisa.
Adeus Frederico.»
«Terá que decifrar que é gente e que é nação ou tribo mais que um
modo de dizer-se singular e passar anulada, que é um par mais que
lugar de acariciar-se preferentemente, a danação, terá que,»
1.
3.
Dezembro 85-Janeiro 86
Manuel Gusmão
oh deixai de edificar
tantas câmaras pintadas
mui lavradas e doiradas
que é gastar sem prestar
alabardas, alabardas
espingardas, espingardas
não queirais ser genoeses
senão muito portugueses
e morar em casas pardas
Gil Vicente, Auto da Lusitânia
I
CASA DE ELISA
VAGA
Que lindo dia, que lindo dia, margaridinhas de olho de oiro
palmeirando mínimas os canteiros na berma da rua, tráfego, gentes, tudo
vestido de roupa lavada, do bruto azul das nove, pressa limpa, pressa
boa, deixai-me em paz e ao meu passo manso, cabeça azoada de vozes
de toda a noite fechada a ver se aprendo, leixai toda a esperança de
onde vos tendes lavado e para onde ides, fugidos, correntes e
determinados, ganhá-lo, ganhá-lo — ganho, se o houver para mim, será
aqui nesta clareza do não ter cegado de saltos de retina entre as noites
cerradas,
Era já noite cerrada dizia o filho prà mãe debaixo daquela arcada
passava-se a noite bem, Canta o resto, canta, Lala, Agora, Zizinha,
deixe-me as fitas do avental, credo, que seca, olhe a sua mãezinha que
vem lá, O pai deixa,
— Ouve, são cinco da matina, esta merda sem horas não é vida para
meninas, porque é que não voltas para casa da tua irmã, a gaja é chata?
disse o Lúcio.
— O que é que tu disseste à miúda? fala mais alto, não se ouve nada
com esta jigajoga aos berros,
— Eles, gostam muito de si, Elisinha, mas são feitios, os copos, é como
eu, que se pudesse também não andava nisto,
— Eu amo-te Elisa, tu és bruxa, não vês que ele é um garoto, um
garotão mimado,
— Nunca mais te trago a esta espelunca, nunca mais, porra,
Que lindo dia, que azul de respirar, que dia. Que alívio. Assim vai o
mundo, escapei Eu.
que lindo dia nas totais ruas da manhã, este azul de metileno e Eu a
passar navegada por ele, com olhos de hasch natural ou se calhar no
antigamente parisíaco absinto, em suma, olhos de oco em estômago e
noite à vela, olhos de mística por desleixo ou curiosidade, nunca nada
foi previsto, esteve-me tudo feito, não sei fazer muita força,
há vazios, ausências, e então dou por mim. Mim é então o que dá por
me dar por mim? Sou maior, faço vinte e dois anos, cumpro. Que
cumpro? A experimentação ad nauseam, Sartre maça-me muito, da
pequenez da licença? desta licença? A que costumes ater-me?
que lindo, lindo, ácido, claro, enchavelhado de luz para mim, dia,
chamo-me Elisadédala, ou, tendo em conta o estoirar do dia,
Zizieuropa, a cavalgar cachação de boi de abate. Am I going mad, with
God on my side1, ó Bob de cá?
vacilo
a mulher pára e se Eu precisasse deveras já de ser enxugada caía aqui
nas pedrinhas da calçada aos pés das mãos dela, cheias como disse de
sacos plástico,
mas isto não são horas de ser a classe operária e tudo o que é humano
me vai ser muito estranho, a agonia passa se me assento, sei muito bem
não cair na rua, pode-se aqui deambular ainda sem quebra, era em
pequena que Eu vomitava e caía muito, houve tantas solicitudes, it takes
all words to make a kind,2 sai um sorriso para a senhora do Espigueiro,
quando estou nisto fico muito religiosa e falo inglês, well, I’ll be
damned,3 ce n’est pas pourtant le désespoir, os bancos da avenida,
cornadura volutuosa do parar duro, estão perto.
Dou pelo ruído dos carros, cada vez mais, numa brutidão que jorra a
cada luz verde. E agora esta gaja tão, tão bem vestida e pintada. Está
muito mais vestida que ela mesma, carrega a farpela amarelo tourada
como um halo dentro do qual é melhor não mexer muito para não
desmanchar, o olho todo sol e sombra, irisante, bonito e claro como um
ovo estrelado magro, um passo pede licença sinuosa ao outro, um
flamingo filmado em câmara lenta. Já viu que a vi e despacha-me e
volta a ver. Sei muito bem que estou com roupas intermédias e usadas
gastamente, nem chique deste nem do outro, nem antes pelo contrário,
bota velha mas jourdan e não trago mostruário de colares, olheiras
como de droga mas olhos da mais primeira comunhão, tenho uma
córnea sólida. Odeio-a, excepto pela vacilação que lhe causo e é
sempre por aí que me apanham as almas cromadas a amarelo e sapato
de verniz. Fico logo sem saber se são menos o que parecem mais, ou
mais o que menos parecem porque ninguém as chama. Passou, passou.
Virou-se uma vez mas era mesmo para as botas. Naquelas casas é
preciso só ver o que se reconhece. Porra de botas. Será que para andar
deveras ao que ando só descalça e com um funil na cabeça e badalo de
contágio? Ou com umas chinelinhas de Viana e uma maxi de folhos?
como se calça uma pessoa que vai escrever pelas ruas, que vai
principalmente isso, uma pessoa fêmea? Com os sapatos da Agustina
que devem ser o que de mais parecido se faz em calçado no Porto com
o que de mais parecido se fazia em calçado no Porto? Como os da Irene
Lisboa, saldos da secção do Grandella nos anos trinta, se a havia?
Como a Virgínia Woolf, os mais feios da melhor loja, duas vezes ao
ano, por atacado, como os da Gertrud Stein, duas fivelas de strass sem
sola? Deus dos sapatos, como isto me está tudo a ir depressa na cabeça,
ou lá onde quer que é, que é também uma fala. Vejo o prédio da
Equitativa ficar todo enevoado e sei que estou a chorar discretamente
de pura frivolidade mansa. Se Eu escrever, então terei a certeza que a
escrita é também uma coisa frívola como um sapato pensado. Até lá
tenho que me comover por não saber o que hei-de calçar-lhes. Se Eu um
dia souber que toda a arte, mesmo a séria como um raio, participa da
mesma realidade equívoca que faz que o coração humano deseje
miríades de formas de sapatos, hei-de denunciar isso mesmo e então
não haverá mais doidos ou santos necessários sobre a terra e ainda
menos artistas. Acho que era isso que Eu queria, se escrevesse — que o
que tenha que ser perguntado aos ares não o seja na terrível solidão
dum sapato velho desirmanado na profusão dos calçados. E se um dia
escrever vou ter que ter cuidado com as imagens baratas, com tudo o
que é barato e se passa ao lado. Toda a gente quer algo que ao menos
imite o,
custoso.
Sei muito bem que era preciso um acto de força para reunir isto tudo.
Ou duma tão perfeita atenção que Eu pudesse ser como um espelho
passável, as criaturas punham-se-me nos olhos e Eu deixava-as passar
através para um mundo onde tudo estava passando-se aceitando e Eu só
tinha que estar assim, sentada num banco da Avenida, desta, desta terra,
a sorver o mundo todo pelos olhos para o lado de cá do de lá. Tenho
frio. Ouço melhor o sussurro do ventinho fino nas folhas,
Levanto-me, pela cor deve ir para as dez, um frio nos sovacos uma
vagueza, sento outra vez, tontura, foi depressa de mais, tenho o ânimo
alado, sempre pronta para o lado do ar, há que aprender a manejar este
feixe de coisas dúcteis mas inesperadamente ponderáveis, o corpo, que
às vezes me leva o que em mim fala, outras o puxo como papagaio
alteado à contravento, outras o todo uma só vibração, corda de vida
viva e isso é rectilíneo e dócil como o voo, musical acho. Levanta
agora debilzinho, posto em marcha não há azar, há na canseira andante
uma autonomia das pernas. Se não passo depressa o trânsito engole-me,
que força tem o não dormir, os carros parados enquanto Eu passo
parecem o monstro agachado de muitas cabeças que deveras são, o
monstro com que se coabita nas cidades e às vezes se lhe vai no ventre,
levado à mercê do choque, da aglutinação do osso e do metal. O Lúcio
chama-lhes popós, espécie de consagração do menino tímido e pedestre
que se mantém aos quarenta, sem privilégios, caracóis pretos.
Atravesso a rua com uma grande paciência e um meio sorrir a Lúcio em
mente, forjando-lhe loas, rosa preta do donde nunca poderei vir,
debaixo da amargura tão chá e às vezes reles, a indecomposta
esperança, cândida limpeza só à espera e há-de morrer assim, manguito
brando na mão, beijo húmido no olho que luz, dizendo à morte, É o
costume, lavado Lúcio que te usei de São Jorge para o dragão do
trânsito, Eu cavalgadura do pensar-te já agora cá do outro lado, pronta
para outra arrancada mais delgada de volta à Alexandre Herculano, as
coisas que Eu fazia a esta malta dos copos se tivesse tripas de
misericórdia tónica maiores que as da cerveja. E é agora a evocação da
fala de Luigi invocando-me que me trava os ímpetos de regeneração
parva, Zizi aérea, tinta nas veias, manitas de plátano, virginiña loba.
Acho que ninguém me estima com tão desrespeitoso gáudio, o único que
mastiga palavras e o sumo lhe escorre pelos queixos,
que agora debaixo dos meus pés, é debaixo dos meus pés que a cidade
muge um só ronco indistinto, há um cântico dela a trepar-me pelas
pernas que pus de pé, estas artérias abrem-se já para uma grande luz
que é o que está por debaixo deste chão onde avanço, já à beira
passeio, cromados, cadeiras metálicas já expostas à rua onde se sorvem
bicas e espraiam as folhas largas do oficioso da manhã, vidros de
montras, a ordenação das novas edições cintadas, das janelas e sacadas
desertas até ao alto repicam fios de sol, o som das buzinas trombeta,
clarineta, as copas das árvores mais baixas incrustadas numa aberta de
terra nem bulem por aí acima, redondas no gostoso pedaço de húmus nu
que lhes é feito aos pés, os jarros novos de pitinho amarelo ao alto nos
canteiros de rua, inodoros, que coisa me jorrou da passagem de rua e
dos amigos sentidos, que lindo dia, minha cidade minha desenhada no
ar como que sólido suspenso, esfera compacta e transparente onde tudo
se ordena vivo e amável, que finíssima agulha de alegria respiro, os
prédios chochos devolutos à batida de velhas máquinas e notários
volvidos coisa quieta e promissora, vidrada ou verdosa ou azul velho,
oiro o pardo, tão ali, tão tudo belo só por sendo, que lindo dia,
— Tááá? Ziza?
— Mary?
— Olá, minha querida, mas que péssima voz com que a menina está,
olhe telefonei-lhe porque estou com uma neura horrível e precisava que
a menina me emprestasse os seus sapatos pretos.
— Quais?
— Oh Ziza, pelo amor de Deus não se faça pateta, os com a fivela
branca que nós lhe trouxemos.
— Hum. Depende.
— Acho incrível, Ziza, essas brincadeiras, eu já estou o mais enervada
que há, estou atrasadíssima para ir lavar a cabeça, vou-lhos lá buscar
às seis. Olhe, a mãe, lembra-se que faz um ano que a mãe,
— Não, não me lembrava mas porque é que estás a chorar, Mimi?
— Não posso mais com isto tudo, logo digo-lhe, é horrível.
Lá isso, mana. Nunca trato a minha irmã por tu senão em Nome da Mãe,
Dizia-te eu que a gente não deve gostar dos pobrezinhos valentes para
os deixar no mesmo sítio. Ou que as pessoas são na vida política o que
são na vida pessoal. Quem se aldraba na uma aldraba na outra. Por
isso, em meio do aquário e fossa de putas e chulos e perdidinhos de
leituras já ordeiramente malditas onde me levas para eu ver e passar o
impacto de ser vista, não difere muito do que fôramos da nossa idade
normais nas boîtes e noites de viagem onde apenas os limiares da
tolerância são ainda, apenas, mais normais e o indizível apenas, oh tão
apenas, mais corriqueiramente mal dito, mal feito. Prossigo a minha
ponte de inconformidade que desgraçadamente não me leva a ti, ó
Preferido, por cima de dois pilares esses já assentes e perfeitamente
irromânticos apesar da lancinância da nossa proximidade ou deste
aguado derramamento das minhas cartas que te têm por Pronome certo,
os dois pilares do templo de uma interdição tão perfeita que só se lá
pode entrar orando para um depois que não nos diz respeito (excepto
pelo trabalho? excepto pelo trabalho? qual trabalho?). Pilar um: os
ricos não se amam, na melhor das hipóteses comem-se vivos. Pilar
dois: o homem e a mulher não se amam, na melhor das hipóteses não
desistem de se matar um ao outro Tal Qual São. E os pobres? Na
melhor das hipóteses amparam-se secretos até ao fim. Há casais deles
que morrem calados, as caras semelhadas por uma transmigação de
traços misteriosa. Ah que desvantagem ter um fim de adolescência tão
verboso e sabido. Vou finalmente contar-te uma história de família
vigorosamente escabrosa. Quando o meu pai
Badalo de telefone volta a apelar
para a razão de estado, deste
estado.
— Ziza?
— Frederico?
— Olá, olhe a sua irmã falou-lhe?
— Falou, estava um bocado para o desatinado, acho que quer os bally
que vocês me trouxeram.
— Os quê?
— Quer que eu lhe empreste sapatos, que a galeria dela hoje não dá
para o luto, espere aí que vou baixar o som.
— A menina só ouve coisas mórbidas.
— Mórbido é o seu tio que não se sabe bem se não será seu pai.
— Não seja besta, Elisa. Sabe onde é que está a Mary?
— A minha irmã chama-se Maria das Dores e está no cabeleireiro. Não
arranja melhor que a sua mulher para uma emergência de tusa?
— Elisa, você está bêbeda? O seu desbragamento de língua ultrapassa,
— Não se amofine mano, são só gargarejos matinais, não me diga que
lhe atrapalha a gravata inglesa, ou é só a telefonista?
— Oiça, se a Mary for aí à tarde diga-lhe que eu afinal vou jantar.
— Que solicitude, Freddy dear, está corno?
— Vá à merda Elisa, isso nem sequer tem charme, é só canalha.
— A verdade sói ser, cá por casa.
— Qual casa?
— A donde você sacou a minha irmã para dentro da mesma.
— A menina está a ficar solteirona azeda ou tem má erva?
— Porque é que não berra de manso com uma das suas cabrinhas de
tetas de plástico, mano, eu só fumo do tabaco que faz cancro.
— Elisa, não tem graça nenhuma, isto é uma crise grave, venha cá jantar
na sexta, a sua irmã, fale à sua irmã.
— Eu não sou a mãe mais nova da minha irmã mais velha.
— Elisa.
— Hum?
— Que disco é que era?
— A Balada de Mathausen.
— Não seja pedante, que é isso?
— A paixão seguindo num campo de concentração, theodorakis, grécia,
coronéis, siemmens, lever, von krupp, quadro superior de olhos verdes,
uma gravata balmain, enarcas e eton, badegodesberg que é a montanha
mágica, marketing, mano, a informática que é o seu ramo, quer que eu
lhe diga onde é que se compra?
— Elisa, você é muito mais snob que a sua irmã e muito mais doente.
— Lá isso, é bem capaz, só tenho uma vantagem.
— Não se casou comigo.
— Boa, mano, mas trabalhosa.
— Era o que eu lhe estava a dizer, vai ter que me provar que é uma
vantagem.
— Adeus mano, você não é o meu inimigo preferido, se a Mary vier
dou-lhe o recado, sem molho.
— Elisa, a menina precisa de descansar, porque é que não vem uns dias
lá para casa?
— Prefiro a morgue, namora-se menos parvamente.
— Que coisa incrível a sua evolução, Elisa.
— mas olhe que é descontínua, atão adeus.
— Adeus Elisa.
— Elisa?
— Estou a escrever-te.
— Como sempre.
— Como como sempre?
— Vou desaparecer por uns tempos.
—
— Que é que disseste?
— Não disse nada.
— Baixa isso
—
— Elisa.
— Hum?
— Elisa.
— Escreve-me, mano, manda-me de lá um postal.
— Qual lá? Acho que não, ambas as coisas.
— Achas que eu tenho que morrer cedo?
— Acho que nos enterras a todos.
— Tens a mania das grandezas posta nisto.
— Não é mania, está provado.
— Disto só tens a quarta classe, ó estudante.
— Elisa, porra, estuporada competição.
— Tu ontem estavas bêbedo.
— E tu não, posso-te acusar disso. Já alguém te disse que te arriscas a
ser uma grandessíssima fraude?
— Não, agradecida.
— Ou morres, ou matas, ou ficas uma fraude de merda.
— Tu também Afonso.
—
— Como diria o meu cunhado isto é uma crise grave.
— Mas eu prefiro-te, tu,
— De modo que vais desaparecer por uns tempos.
— Elisa.
— Dizes o meu nome sem nada dentro.
— Eu não levo nada dentro.
— Levas-te a ti inchado como um balão do nosso sopro.
— Não. Tu escreves-me, tu vais escrever-me, tu vais sempre escrever,
tu,
foi monstruoso ontem, estavas ali a escrever aquilo, estavas só a
escrever aquilo.
— Não, eu nunca me resguardarei nisso, tu, tu,
— É a única coisa que sabes dizer quando,
— Como diria o meu cunhado isto é de facto uma crise grave.
— Merda para o teu cunhado.
— Prova e depois avia.
— Eu a ti era só preferir-te, Elisa.
— É a única coisa que sabes horrivelmente dizer, a única coisa
desligamento de lá.
Diálogo em seco:
Achas pouco, ó Amiga?
Acho, ó Mano, acho.
castíssimo horror.
Tu.
Está lá fora a minha irmã e um lindíssimo dia a apagar-se. Mas não sou
Eu que vou chorar, que a minha irmã se encarrega disso e Eu das vascas
celestes, à mão tosca, exuberando o apalpar de tudo, até da ausência,
cristalizando, cristalizando,
1 Referência à canção do mesmo nome, de Bob Dy lan, anos 60. (N. do T.)
2 Jogo de p alavras que significa São p recisas todas as p alavras p ara fazer uma esp écie, Paráfrase do dito inglês: São
p recisas todas as esp écies p ara fazer um mundo. (N. do T.)
3 Rais me p artam, bem. (N. do T.)
I
CASA DE ELVIRA
EPIFANIA
Tu vais por uma vinha afora, que é vinha grada por todos os lados, pela
tua frente, pelo teu detrás, pelos lados, até perder de vista. Não
entendes aquelas parras largas a secar cobertas da poalha azul do
sulfato, nada as rilhou e as uvas ainda pequenas e inteiriças mas secas,
cachos mindinhos como que de amoras verdes gigantonas mas palha, os
galhos que é uma força, o lenho escuro deles a mal distinguir-se da
negrura das folhas ressequidas, dos bagos secos como semente de
cânhamo. Por cima daquela terra sem água, bocarras pretas a abrir-se
onde o zebrado das fendas é mais profundo, regos finos como os da
palma da mão a abrir trilhos de abismo a abismo. E em cada pedaço
inteiriço da terra barrosa, vermelha, morrões secos a rilharem debaixo
dos teus pés descalços carmesins do pó dela, alevanta-se airoso e
carregado um novo pé de videira. Paras. A que te está à beira trepa, tu
vês. É um escobrejar de gavinhas, todas elas estão a deitar corpo à tua
volta, espigam nem se sabe donde, estás na vinha do Senhor que cresce
e cresce, é já um figueiral à tua beira, medonho, um pé vai-te descer por
este rego que cresce de pretura sem fundo, a terra ronca e o estender
das gavinhas silva. Um galho grande incrustado de pequenas unhas de
milhafre em cada irregularidade do lenho repuxa-te o lenço e o cabelo,
a terra abre-se-te debaixo dos pés, gritas e não te ouves, a tua boca está
aberta mas muda e queda e mais e mais e os olhos e lá fora já clareia
mas o teu homem ainda ronca de levezinho. O menino geme, um bulir
com a voz ainda miúdo. Amandas a trança para detrás das costas já
sentada na cama, os pés no tapete. A água que derramaste ontem a lavar
as partezinhas do menino não secou. Ainda esfria o tempo pela manhã.
O menino tem os olhos abertos. Olha para ti, dá que dá aos braços
ainda cepinhos, ri-se com as gengivas de fora e esperneia, descoberto.
Pões o xaile pelas costas da combinação antes de lhe pegar, chorinca já
os olhos pregados nos teus, o teu homem bufa e entaramela-se a
acordar. Através da parede ouves o velho Hermínio virar-se, roncar de
mais rijo. Pegas no menino, tão molinho e sentas-te na borda da cama, a
cabeça dele a marrar-te com a cara numa aflição muito sisuda, boca
aberta, sem choro. Tiras o peito para fora e ajeita-lo. Ferra-te mas sem
dentes ainda, pica mas por pouco. E ficas-te a esvair-te assim num
grande sossego com o teu homem que acordou e te pôs de manso a mão
no quadril e de manso a deixa ficar enquanto se desestremunha. Está-te
quedinho que tenho hoje muito que lidar, é a tua primeira fala. Não se
houve bulício mais que o da rua, do outro lado. Vais ter tempo de dar a
bucha e o café e de sair para a praça com o casaquinho de malha em
mente para comprar nas alcofas da porta sem que ela te moa, Credo,
Elvirazinha, isso é gastar sem prestar, uma malhazinha tão reles. A tua
mão está cheia de penuginha morna, a cabeça redonda do menino, o
outro braço aninha-o, a fralda ainda quente de mijo. Aí estás, aí.
a parteira soube,
É macho e saiu de touca, menina Elvira, faça força, mulher, para sair o
resto.
A casa pode dizer-se que é grande. Tem até um quintal com três pés de
limoeiro e uma palmeirinha, pés de couve, sebinhas de sardinheira e
uma árvore da borracha que foi presente envasada à Fátima. No tempo,
nabiça, tomate, malmequeres, rosinhas de Santa Teresinha e jarros até
dos amarelos, tudo. D. Marieta e o senhor Hermínio em casaco de
pijama e o teu homem aos Domingos e tu agora, têm tudo muito bem
amanhado. D. Marieta disse, Ai, aí não remexa, menina Elvira, que
estou a guardar para umas violetazinhas. E diz, Tenha paciência, senhor
António, dê-me um jeito aqui na travanca dos periquitos que me está a
emperrar. E disse, menina Elvira, eu hoje vou pôr os lençóis na
máquina, estenda as fraldinhas mais para lá. Com as chinelinhas de casa
na borda do rebordinho de cimento. E diz, Abra, abra mais o
lençolinho, menina Elvira, não, não ponha molas de pau, olhe estas de
plástico. É Assim — tudo organizado. D. Marieta enxota, os velhos de
pedir, os gatos, as moscas, o pulgão da roseira, o encardido dos tachos,
com o que para caso é preciso. E arranca o trevo que medrica a cada
chuvada com uns botins de plástico aperreados ao grosso da barriga da
perna curta, um lencinho de nylon sobre as ondas muito certinhas, da
laca. Depois passa os botins a pano e as meias e põe a enxugar no vão
da cozinha que faz marquise. Ó Elvirazinha, já lhe expliquei que o
alguidar das fraldinhas desfeia a casa de banho, meta-o debaixo do
tanque, sim. Tudo tem o seu sítio. A cozinha é só de armários e
máquinas. D. Marieta, a cabeça redonda de rolos, disse, A menina
Elvirinha, se quiser, paga a electricidade e a água e eu ensino-lhe à
minha vista a serventia da máquina, primeiro tira a maior com o
omozinho e dá uma passagem no tanque. Olhe que também dá para o
cotim, põe-se no mais forte, quer ver. Tu vês. Mas tens medo. Aquilo
tudo embrulhado, à roda à roda. O velho Hermínio, Arranje-se senhor
Hermínio, tenha paciência, isto é uma casa decente, não o posso ver
todo o dia de casaco de pijama. O velho Hermínio diz, Quando é que eu
posso ir para o meu quarto, pago, não pago? ou, Quando é que se come
nesta casa? D. Marieta alevanta colchões, bate almofadas, as janelas
escancaradas zunem por toda a casa ao desamparo das correntes e da
luz abrupta, o teu menino berra a ser mudado para as que se vão
fechando na penumbra, para o quarto de D. Marieta e da Fátima onde tu
ficaste a ver ao pé da cama dela aquela senhora nua que a D. Marieta
limpava e ela disse, É uma pintura de arte. E o teu homem disse que sim
que era. E o menino para o quarto do velho Hermínio que apesar cheira
sempre um pouco a despejos e à naftalina da farda no gavetão da
cómoda. E o senhor Hermínio disse, É minha, foi o que me ficou da
minha falecida. E o menino para a Casa de Estar onde quando não está
o rádio está a televisão ligada, quando não estão os dois. Tantos
barulhos.
À noite, sentam-se lá à roda como para uma boca de fogo. Há ainda
alguns restos dispostos no pano de plástico com flores do tamanho de
coelhos, depois de retirada a toalha e sacudidas as migalhas que
esvoaçam na noite até ao patim de cimento do quintal. D. Marieta faz
isso. Vai depois sentar-se com um gemido de rins, onde leva as mãos,
Ai eu. Ficam a olhar para as coisas no aparelho como para
morrõezinhos de candeia na igreja, a olhar, a olhar. D. Marieta tem os
óculos a descarregar do nariz, Hoje há aquela da Rainha de Inglaterra,
o senhor Hermínio tem um braço apoiado na mesa e diante de um prato
um pouco falhado, o prato dele, com cascas de tangerina com os fiapos
brancos alevantados e alguns gomos com mais caroço cuspidos depois
de lhes moer o sumo. O outro braço deixa a mão sobre o joelho como
se lhe faltasse o cajado a que se ater a serroar diante da pedra do lar. A
Fátima já saiu, levava a saia curta de camurça verde e os sapatos de
lagarto que tu ias caindo. Até logo, Fatinha, não venhas muito tarde,
olha as chaves, filha. O teu homem está sentado do outro lado da mesa,
olha para o chão ao lado dos tacões pesados dela e volta a olhar para o
chão do livro que esteve a abrir com a faca do pão. Olhe que há uma
faquinha para livros que lhe hei-de emprestar, senhor António, com um
cabinho de Sagres no cabo na gavetinha do armário de vitrine. Não
merece a pena, D. Marieta. Ora tudo merece a pena, senão que é que
andamos cá a fazer. Estamos no intervalo. Há uma estantezinha de
madeira pintada de branco que a D. Marieta mandou segar nas pernas
na colchoaria em baixo e onde estão as crónicas femininas arrumadas
por números. Na televisão está uma senhora a deitar fumo de um caldo
Knorr e uma menina a dizer, Mãezinha. Senhor António, e então quando
é que a Elvirazinha sempre faz o exame da quarta? Tens medo. O teu
menino cansou-se e dorme-te nos braços. Depois habitua-se mal,
Elvirazinha, olhe que a minha Fatinha estava ali à beira da gente,
quando tínhamos o estabelecimento, e nem pedir. Apertas o menino à
tua camisola de lã roxa que foste comprar com ela, é as tuas posses. Já
se habituaram. O menino cansou-se, dorme, tens sono, chegas-lhe o
novelo de linha para as rosetas e vês-lhe as voltas da agulha. Eu
ensino-lhe, Elvirazinha.
Andastes por ali atrás dela ou nos teus afazeres novos, sem saberes a
que método ater-te, Olhe que o pano do vim é só este, Elvirazinha. Casa
por casa atravessada pelo temporal dos ares e dos ensinamentos, tantos
barulhos, tarefa por tarefa a que és mandada com um gesto e muitos
ditos que não havia nas casas da tua mãe, cujas socas largavam sempre
um pouco de lama ou merda da galinha ou fiocos de linha ou palha. E
todos iam e vinham, se lhes cortava o cordão e aqueciam as águas, se
embrulhavam em panos amolecidos e adourados pelos anos, para se
lhes dar o peito pela primeira vez, para se velarem, e todos tinham
cheiro e pouco a dizer. Senhor Hermínio cabeceia por cima das cascas
luminosas como cera fresca da tangerina, só está aceso o candeeiro de
cima com os pingentes de vidro, Aí é com o espanador, Elvirazinha. Há
um homem que espirra um líquido de dentro de uma lata para debaixo
dos sovacos. O teu levanta a cabeça para ver. Este é bom? Hei-de
perguntar à Fatinha, senhor António, dá-se bem co o que eu lhe trouxe,
Elvirazinha? Não cheiras. Tens sono.
MONÓLOGO DA VAQUEIRO
Credo, menina Elvira, não vá sair à rua com essas meias tão saloias,
leve estas da Fatinha que ainda estão boas, ela não se importa, Jesus, os
seus pés, olhe eu hei-de-lhe ensinar com um sabonetezinho de pedra-
pomes. À mercearia, Elvirazinha, tudo misturado? vá mas é ao
supermercado e traga-me aquele produtozinho para os azulejos, eu
escrevo-lhe num papelinho. Não vá assim ao leite, Elvirazinha, uma
senhora tem que se respeitar, agora que o senhor António vai ser
promovido, nem tem necessidade. Ceroulas, menina Elvira, credo, eu
até tinha vergonha de passajar isso, ó Fatinha mostra lá aqueles
slipezinhos de cor que o Fernando te pediu para comprares. Ai
Elvirazinha, desculpe, mas eu panos de menstruação só de deitar fora,
mostra aqueles que se seguram à cuequinha Fatinha,
que olhe, Elvirazinha, que eu não quero estar aqui a atazaná-la com isto
mas olhe que o seu paizinho não pode ficar mais que uma semana, tenha
paciência. Eu já disse ontem ao seu marido que é só para as consultas,
tenham paciência. É a casa toda um alvoroço e o quartinho que eu lhe
tenho ajudado a alindar tudo fora do sítio, a perder a graça, que ele não
há arranjo possível tão cheio e olhe que até parece mal o seu paizinho
aqui a dormir com vocês, para mais avariado e se calhar a fazer as
necessidades todas, coitadinho. Que a gente tem que ser para os nossos,
mas eu fiz muito sacrifício para ter esta casa em condições e agora que
já vou tendo com a minha filha uma vida bonita, está uma senhora, e eu
certas coisas,
Mary.
Que chato.
Mais imperativo:
Mary?
Responde:
Hummm, certo, musicado bem.
Demora-se muito?
Não, de todo. Aconteceu-lhe alguma coisa?
Não, esqueci-me da máquina e acho uma chatice usar a do Pequito, que
é péssima.
Péssimo.
Que é que a menina diz?, abra a porta, Mary.
Ah minha querida, se fosse pela sua inteligência que eu não lhe fosse ao
traseiro,
Que porco.
Por inteligência, por que é que não telefona à sua irmã?
A Ziza,
Tem a mesma graça podre do Zé Oom, com a vantagem de não ser
lésbica nem chular os amigos.
Monstro.
Asno é, Bem sei, mas foi premeditado desde criança e não chore, Mary,
senão masturbo-a ou coisa assim
Ah minha querida, arranje um amante que a faça vir-se com duvet, coma
grelhados e caganitas de rato, mas poupe-me a histeria.
Uma pequena onda de aragem entra pela janela corrida, a luz carrega-se
e os vidros batidos, foscos azulam agora todo o aquário onde ela está
com os olhos gordos e vermelhos, de boga. Perdeste para sempre a
maravilhosa unidade, o espelho voltou a embaciar porque ele passou a
ponta dos dedos por água morna, Mary agarra no punho do roupão e
abre um oval imperfeito onde se acha lívida
Mary senta-se na tampa fechada com capa de turco branco e oiro e ocre
da sanita e chora desabaladamente. Chora como quem abala que é o
verbo que a cozinheira usa para quem se vai. Esvai-se a chorar. Ela ali
está naquela posição impensável, em que ela não se pensa nunca e tem
ainda diante dos olhos aquelas mãos escuras dele que foram como o
corpo de um cavalo, um potro de narinas dulcíssimas de suor acre doce
e também os olhos absolutamente sem pupilas de tão escuros, os olhos
do pequeno Simão sob as repas amarelas da franja, A mãe tá tiste, po
pai?, ah e agora por entre as mãos dela mesma tão sempre sem peso,
Não agarro nada, nada, o pequeno olhara-a assim quando ela estava a
tentar um pouco de tecelagem, Mãe o Ximão pó mexê, pó?
Mary soluça altíssimo, dobrada sobre os joelhos, sentada sobre o tripé
da sanita de cano airoso de ampulheta, rosa-velho. Ah, e a memória na
grande derelicção é como fumos sulfídricos,
havia uma fotografia sépia da mãe sentada com elas duas, todas três de
branco, Elisa com o seu sorriso sem olhos, a cara delgadinha, aquela
pele de cera, um pouco de lado apesar de mais baixa e ela, Mary, com o
braço por cima da mãe, a mão já afilada de pré-adolescente, o porte de
sorriso parvo de beldade com retrato, sublinhada, ridícula, onde a mãe
era a só beleza e lonjura massada, os cabelos ondeados a dedo pelo
coiffeur e a nuca a adivinhar-se alta, uma casque exacta, tão
ordenadamente loira que o éclat era de metal frio, a boca fria apesar de
cheia com o seu carmim violáceo, a perna sobriamente traçada de seda
baça com os tornozelos de cavalo fino, quase azuis no sépia do retrato,
como os pulsos, o imenso cabeção de renda macramé sobre o vestido
de marocain de ombros altos, ah, aquele branco era azul-cinza,
Mary chora agora convulsivamente mais baixo como se a mãe lhe desse
as pancadinhas um pouco inertes e ríspidas enquanto ela se lhe aperta
ao pescoço hirto com dois braços ainda pequenos e Elisa está de lado,
vestida, vestida de igual bordado inglês com fitas de veludo passado
ton sur ton, a ver, com os seus imensos olhos aguados como de cega, de
choro raro. E Mary levanta a cabeça cortada do corpo no espelho
manchado e há uma voz só apenas enfadada e um intenso perfume a
nardo, Então Mimi, então petite, e outra voz mais miudinha, onde há um
veio de educadíssima compaixão que não mais ouviu na voz de
qualquer outra criança, das suas crianças, Mana, não chore Mana, quer
que eu lhe empreste o meu ferrinho das bonecas, quer Mana?, uma voz
de cinco anos apenas, ao lado de uma cadeira de verga lavrada, um
verão brumoso, nortenho, um retrato de sépia obscurecido pelo tempo
de álbum, cheio de folhos de bibes, sapatinhos de verniz com
abotuadura de botão, rendas, cabelos muito claros as três, um grande
guarda-sol sobre a auréola de verga e o seu próprio sorriso todo dentes
sem júbilo, testa redonda e boca gorda,
PERSONA
MAQUILLAGE
DO ROSTO
Deve agitar o frasco e aquecê-lo um pouco com as mãos. Depois, com o
frasco na perpendicular, deve desarrolhar a tampa dourada e depositá-
la cuidadosamente na borda do lavatório. Deve derramar seguidamente
algum líquido, não muito, na ponta dos dedos médios e pontuar a cara
com pequeníssimas porções em pontos fulcrais regularmente
distanciados — na testa (3), em cada face (4), na cana do nariz (1), no
queixo (1), sem esquecer o pescoço (4) ou mesmo a abertura do seio e
espáduas no caso de ir vestir algo de decotado. Em seguida deve
espalhar o líquido em movimentos regulares e simétricos,
ascendentemente. Finalmente depois de bem distribuído por toda a pele,
deve retirar o excesso por aplicação de folhas de papel facial
absorvente.
No caso de aplicar rouge, a técnica deve ser a mesma quer aplique stick
ou creme — ou mesmo pó — estirar o produto por forma a estomper a
mancha em direcção às têmporas.
MAQUILLAGE
DOS OLHOS
Deve começar pela aplicação de sombra, ou, caso o careça, pelo stick
para encobrir as olheiras. Cobrir a pálpebra superior com aplicações
ligeiras sucessivas, insistindo na prega frontal, no côncavo do olho no
bordo exterior em direcção à arcada. A aplicação pode fazer-se com os
dedos, se o produto for em creme, ou com a pequena escova
apropriada. A arcada superciliar numa nuance mais clara ou apenas
brilhante, abre extraordinariamente o olhar. O pincel de eyeliner deve
ser em marta, como aliás todos os pincéis de maquillage. Termina-se
com a aplicação de duas camadas de máscara (ou rimmel), deixando
previamente secar bem a primeira.
MAQUILLAGE
DA BOCA
tão bonita,
porque a ignomínia cuidada fica bem a Mary, fica-lhe lindamente.
II
CASA DE ELISA
OS TRABALHOS DE CASA:
POTE PODRE
Quando a noite já estava bem caída, pelas seis da tarde, a nossa
heroína, Eu, Eu, disse o meu sobrinho Simão, sentei-me com os livros
ao colo da mesa e fui fazer esta
DE GRAVISSIMA CULPA
Gravissima culpa es la
incorrigibilidad de aquella que no
teme cometer las culpas y rehusa
sufrir la penitencia — que a la hora
del comer, sin manto, vestida de un
escapulario, sobre el qual habra
dos lenguas de pano bermejo y
blanco, delante y detrás, en modo
raro cosidas, en medio el refectorio
coma pan y agua sobre la tierra por
senal, que por el gran vicio de su
lengua en esta manera sea punida y
de ahi sea puesta en la carcel; y si
en algun tiempo fuere librada de la
carcel, no tenga voz ni lugar.1
IX
Eu estou aqui, sentada nesta casa de trevas verdes de mil folhas onde
zinem os veios negros do arbitrário e dos inesperados percalços da
modificação, ou não, porque me empurrou a rede de arrasto para a
porta da cavala que é um peixe tresmalhado, de extrema resistência e
lucidez — Arteiro.
Que aqui estou e a causa desta postura não na sei a menos que seja
levada ainda para mais longes espaços da vossa casa, isto o cais onde
me arribaste, meu pequeno Scott de biblioteca folheada, Bairro Azul e
jaquetão traçado, bota afiambrada e samarra d’Anto. Faço pois a mão
portuguesa que me ataste ao leme da carcaça, copio com verve de
cidades e azedas de serras, tua
, lembrada,
que meu Irmão, o Descoberto, pode desaparecer por uns tempos. Que
minha irmã, a Real, chora de tacanhez debaixo de um piño
irremediavelmente verde, fibroso para o mal, irresinante. Que minha
Mãe, a Estatutária Estultícia onde fui depósita, já lá não está, mas
também nunca lá esteve, que meus Manitos maninhos Muitos, os
marinheiros aventureiros, estão do outro lado da (entre)tela com que me
tapam para não ver o Desfecho à testa do Couraçado. Para eu não ver
que sou vista vendo que assim,
senão acontece mais que uma pequena queda de uma cadeira abaixo ou
de um império, assim, esta cópia está condenada a pré-
maduro
HORS D’OEUVRE
O MALOGRADO
Era o Luigi, já bêbedo, que trazia com ele a Isobel a Magnífica, que
também. Traços salientes outros que halitoses: nasceu no Norte.
Estudou em Coimbra. Há ali qualquer coisa da indolência
conservadeira de Coimbra, do divagar à beira dum rio curto, estreito,
moroso. Os choupos não são uma árvore tónica, Que é que o pai sabe
de Coimbra, pai? Faz gente caseira. E Camões, Pai? Saiu. Luigi também
tem de trânsfuga prestes a fazer malas. Mas foi-se o tempo das arcas
encoiradas com as camisas de seda virgem, os gibões, os alistamentos
precipitados num rol de nau. Quando era pequeno a mãe disse-lhe que,
Tens olhos de cão. Podia ter sido para bem. Não foi. Faz subir um
soufflé de atum com restos de pimentos morrones até à sétima arte. É
grande, claro de pele, escuro de pêlo. Boa saúde de farras, queixumes,
Estou podre. Fértil de talentos dos que requerem extrema inteligência
dos sentidos, histórias: Uma vez a minha mãe estava a dizer, Que fina
que é a prima Dulce, é de facto tão fina, tem umas maneiras tão finas, o
cabelo tão fino, olha de uma maneira tão fina. E a minha avó disse, É
tão fina, tão fina que caga de retrós. Mas ele tem de facto uns lindos
olhos de cantos baixos e respira mal, bucefalamente, quando está
bebido. Faz uma obscuríssima distinção entre a vida de família e a
outra. Só se sabe que tem família. A outra começa ao fim de tarde e
acaba quando cai a manhã do dia seguinte. Lê muito, glosa, vê bem. Só
respeita a sobranceria verdadeira, o que quer dizer que respeita pouca
coisa. Gosto dele? Gosto dele. Bela moldura arte nova, ó debutante,
aposto que a cadela se chamava Fürelise. É, e essa senhora que aí vês
tocava muito bem cravo de cabeceirinha. Quem, a Clitem — está? Hoje
estava em baixo, Luigi. Já não é garoto. Mente ou omite enormidades.
Pode pois parecer deslocar-se em cima de um tapete, com um kaftan de
linho limpo, a ir-se, a ir-se. Tem medo de morrer, ama pouco é espesso,
Gostas de moscatel verde? Já perdeu também, Luigi que vaz que vaz
mas não vaz. Mas que é ganhar?, pergunta sempre quem tiver alminha
lisboeta. Isobel a Magnífica é outra louza. Tem a pele verde, de um
verde sumptuoso, claro e glauco. Vinha quase tão grande como Luigi.
Porte para Miguel, o Angelo cum sibila. Ombros, por exemplo, para
cavalitar Afonso Henriques quando em panos. Mãe para grandes filhos
dela em suma. Tem voz de rapaz mas não mais que os baixos sonoros
da Greta. Um garbo insuperável e dois olhos amarelos com a mesma
placidez pronta de uma leoa com crias. Lisboa dá cabo dela, que é uma
cidade de gente esquiva, ao mais de uma vivacidade pungente, graciosa.
De semelhável em Lisboa a ela, Isobel, só o portal da Sé com menos
estado novo, mais pedra vera, patines, musgos: Quando eu a conheci
estava ela inteiramente nua, coisa de Campo Santo de Génova, a fazer
marmelada abstraidamente com um rapazinho esquecível — tudo isto
em dada sala onde se haviam estado trocando impressões nada digitais
sobre sexo e costumes. Nada de débauche — gente educada, novita.
Coisas da liberalização, escolares, geração decente. Quando a viram
naquilo, começaram todos a despir-se e a continuar a falar que era para
ser como se nada fosse, espécie de educação sueca aos dislates do
sexo-seculorum. Ia não sendo nada, pois, não tivesse eu um certo senso
de fraternidade histérica, cénica, o respeito da cena: de golinha ao
pescoço, comecei de chorar o mais belamente que pude as desgraças do
mundo — lágrimas e mais lágrimas sem abrir pias. Não foi difícil — só
me vinham à ideia criancinhas com tétano, rígidas, um tubo metido na
traqueia, a boca selada, os olhos no pânico, os pezinhos para dentro.
reatando,
SETE AMORES
PARA SETE UNÇÕES
Pai, vai-me buscar hoje? Vou sim, mon petit, mas não entro, todo aquele
cheiro a cera, a halitose de jejuns, a amoníaco de ceroulas por debaixo
das saias, enoja-me, Que disparate, António, as madres são
limpíssimas, Então é da alma, ma chère.
Batem-me à porta.
Tenho muito mais sorte que o Régio.
Ninguéns me deixam sozinha.
Diante de coisa nenhuma.
Mas limpa os pés, meu amor.
Continuamos:
Que pelo sonho é que vamos:
Ó Sebastião come pouco:
Canso-me muito e todos dizem que eu não faço nada. Excepto a Sara
que diz, Anda a chocá-la. O que, curiosamente, assim foi feito, de facto
— Lê isto Maria Elisa, Que achas disto, Maria Elisa, e eu ia de
Invenção de Junho para a retrete, de Luar de Agosto para a praia, de
Ulisses para debaixo dos pinhais, de Sexus para a mesa, de Mulher
Fatal para a cama.
Pai, Pai, porque me inscreveste no lenho onde tudo deve ter o Seu
nome?,
oh sezões, oh Castela
qual alma é sem pustela?
Bem me pareceu:
numa condessinha
segundo se diz
muito pequenina
eu vim de Paris
foi talvez em França
onde eu aprendi
logo de criança
a dizer merci
Oh, qu’elle est mignogne, la petite, com dois anos, que amor. Maria do
Carmo, nunca mais me ponha a pequena a fazer essa figura
completamente parva diante das peruas das suas tias.
MONÓLOGO DA MOFINA
Ai Zizinha, desculpe vir a esta hora, sem avisar nem nada, mas estou
aqui numa grande aflição e ainda tenho que ver se faço hoje algum, nem
sei como que eles não me deixam entrar no Salero, Isto é um potezinho
de azeite e uma chouriça que eu fui hoje ver o meu menino e a minha
mãezinha tinha trazido assim uns primores lá da terra, deixe que eu
ponho na cozinha que ele vem a largar um bocadinho, mas não é do pote
que eu esse trouxe-o ao alto dentro do saco, Isto é uma maravilhazinha
de um azeite, não é para o gabar, bem sei que a Zizinha pouco come em
casa, mas para uma gracinha, um bacalhauzinho assado, Pois é o
seguinte, ai nem merece a pena sentar-me que inda tenho que ir se
calhar sujeitar-me ao enxovalho da Gomes Freire onde andam aquelas
galdérias que nem têm poiso certo, que noutro dia deixaram lá uma
cheiinha de sangue e com a carteira toda esfrangalhada, Foi, foi foi
depois daquela questão com o Olímpio, ah pois foi, foi já depois da
Zizinha ter saído naquele estado que eu até disse para o Lúcio, Vocês
nem a deviam trazer para um sítio destes, uma menina nova, tão fina,
Note que eu sei muito bem distinguir, tive princípios e ainda hoje, gosto
de fazer o meu trabalho bem feito, mas lá porcarias é que não, só o
natural, E então, foi por causa de umas cervejas, que eu até pouco bebi,
Levantei-me para dançar com um rapaz que até é cliente da casa, já
tinha as coisinhas encaminhadas na mesa, Quando voltei, tinham saído à
má fila, aqueles cevados, armou-se para lá um burburinho, o Olímpio
teimava que a despesa corria por mim, inda era uma porção de garrafas,
mais aquela cadela da Lucinda, Ó Sirena, eu bem vi que foste tu que
pediste prà mesa, Ó sua grandessíssima cabra, disse-lhe eu, dadonde é
que você me conhece, o meu nome é Carminha, ouviu, Que eu à Lucinda
nunca lhe dei confiança, sabe, ora não sabe, aquela que andava com a
racha na saia até ao meio da perna que aquilo já nem se usa, sim, que se
põe com liberdades, a perna aberta por debaixo das mesas, ali à vista
de todos, que diz que ela no Cais Sodré já não fazia nada, já a tiravam
pela pinta, até queixa de carteirista, sim que eu, a Zizinha sabe, tenho lá
a minha fichazinha em ordem, mas lá cadastro, E então saltou o Idílio,
aquele da Trafaria, por mim, foram mesas, cadeiras, uma data de copos,
olhe, até polícia meteu, que eles vêm logo mal lhes cheira, a esquadra é
logo ali, Com queixa e tudo, pois, uma vergonha e agora o Olímpio
cortou-me a entrada e é por isso que eu venho cá à Zizinha, para ver se
me podia adiantar uma notazinha que vence amanhã a renda do quarto e
então é que eu estava aviada, com a má vontade com que ela já me anda
e as despesas do menino sempre a mais e se por acaso tenho que fazer
outro desmancho que eu ando com umas faltazinhas, ai Deus Nosso
Senhor lho acrescente, que eu sou crente, atenho-me muito à virgem,
trago aqui esta medalhinha, quer ver?, Ai ó Zizinha posso ir ali dentro
fazer um chichizinho, que eu venho lavadinha por baixo, tomei inda hoje
banho de banheira,
Ai, Zizinha, a Zizinha conhece uma tal Fátima que parece que anda
agora aí muito na berra, não, credo, Zizinha, parece que é uma pequena
da alta, aquilo começa a tarde no Procópio e sempre acompanhada, tem
muitas amigas bichas, diz que aquilo é um primor de bem arreada, É
que foi lá ao Salero um rapaz, parece que ele é fotógrafo, que a ouviu
falar muito da sua mana e de si, pelos nomes, pois, conhece-les as
voltas da vida todas, até do mau fim do seu paizinho, até coisas que eu
nem sabia, que sabe que o Afonsozinho foi sempre muito bom para
mim, tem-me valido muito, mas lá certas conversas não tem e é o bem
que ele faz, A Zizinha desculpe, vê-se logo que tem outros princípios,
não quer saber disto para nada, mas olhe que é alguém que tem fio lá
para casa da sua mana, por onde o ata não sei, Que ela anda na vida
tanto como eu isso lhe garanto, são outras esferas, pois, tivesse eu
menos anos, Bem, vou-me à vida, assim vou mais descansada, que eu
com os nervos parece que tenho cheiro, é um castigo, assim amanhã
sempre vou a uma matinezinha, não me leve a mal que eu a si sou-lhe
franca, coitadinha, assim sozinha, sem beber, sem nada, gosto muito
daquele, o Bronson, que ele já está um bocado velhadas mas eu
também, Credo, já viu tão escura que se pôs a noite.
Digo eu, depois de cair o pano da porta, Tio Guilherme (The Shakes),
Como é que se pode traduzir uma coisa destas intraiçoeiramente?
Deve? Pergunta ao teu primo dado que o
TELEFONE
toca:
Desligamento,
Se não tiveres medo das tuas sombras elas vêm-te comer à mão. Comer
o quê, Mestre? Dá-lhes um pouco da carne dos teus ossos, acabam por
se comer umas às outras. Não virão mais, Mestre?, Sempre, sempre
mais, de todalas tuas parte mundanais, ao fim de uns anos são como
anhos do teu aprisco. E isso mata, Mestre? a longo prazo, tudo mata,
pastora.
Não é isso mulher, também mos fechastes à minha mãe, estou mas é aqui
derreado, hoje estive três horas metido na carrinha com os cabritos dos
estudantes a berrar à volta, ele era curtas e compridas e um até acertou
no tejadilho com uma pedrada que parecia que era no dentro dos ossos
da cabeça e depois o nosso tenente inda deu ordens para a gente
avançar e chateei-me de agora a malta ir malhar num estendal de putos
todos a pirarem-se por aquela erva afora e mais os matorrais à volta,
com os cães que pareciam danados, um até abocanhou uma cachopa na
cara, uma raparigaça, o que lhe valeu foi os cabelos senão levava-lhe
metade, a empeçarem uns nos outros e os mais afoitos a fazerem-se à
gente, a açularem de longe, rais parta, que o nosso comandante já nos
tinha avisado que a manutenção da ordem mais isto mais aquilo, porra,
malfeitores e passadores da raia inda vá que não vá, que eu não gosto
de andar a meter chumbo em ninguém, fiz muita patrulha debaixo da
neve do posto aos cabeços da serra, alembras-te?, mas parece que os
gajos o que não querem é ir para a guerra, também eu não, olha que
porra, prometem uma catrefa de coisas à gente, que a guarda isto, que a
guarda aquilo, que dão escola, que dão cantina, que a vida de posto
sempre é mais certa do que andar a semear uma para arrecadar quatro
com a enxada nas unhas, que escusa um gajo de ir malhar com os
costados à França, e vai-se a ver é uma miséria dum vencimento e
agora para andar a cobrir os camaradas a atiçar os cães às canelas dos
ganapos, São assim cachopos?, Ganapos como o teu irmão Abílio,
mulher, que alguns parecem mais, aquilo andam cabelentos e barbudos
a mais não, mas lá estudos têm, prova é que chega a Mafra vão logo de
graduados, quando não amandam com eles para Penamacor de raso,
depois a gente desabafar com os camaradas tá quieto, que a mor parte é
uma cambada de bufos, sempre a meter no cu do nosso primeiro, que
ele já esteve no Ultramar, parece que ganhou lá umas boas postas e olha
que aquilo não foi só da comissão, e diz que pretos e estudantes é tudo
a mesma choldra, que é gado para abater, só querem é mândria, mas eu
não me conformo, carago, farto-me de moer o juízo e o corpo a ver se
me aceitam para o curso de sargentos, eles rezam-me que a ordem é
assim, que a ordem é assado, nunca faltei a uma formatura, nem no dia
em que tu pariste o menino, ele é engolir febres, ele é aceitar trocas de
folgas com camaradas, tenho uma folha que se pode lamber, o nosso
comandante sempre a regougar que vou longe, nunca ninguém me
apanhou verdete num botão, nunca faltei à verdade, mas rais parta a
vida que quanto mais abro os olhos mais nojo me dá, que ele há oficiais
e tudo que dizem que isto tem que levar uma volta, ó se tem, eu moita,
Uma volta, homem? Pois rapariga, eu tenho que ver se te puxo, agora
em aprendendo a ler vais ver, que tu és acanhada mas tens boa cabeça,
isto não há-de haver sempre uns a comer e outros a ser comidos, quem
não pode arreia, carago, Eles são filhos de ricos? Quem? Os
estudantes? Muitos são, mas eu seja ceguinho se não hei-de lá pôr o
nosso, nem que eu tenha de engolir cobras ouviste, a ti que não te falte,
mas eu, nem que tenha que lamber o cuspo das calçadas se o menino
não há-de abrir os olhos e ter uma enxada de prata para fender a noz do
mundo, raios, não há nada pior que um homem não saber ao que anda,
de chapéu na mão a pedir um encosto, a carregar na família se cai de
borco, a limpar a merda dos que nem se agacham para a cagar, a abrir
os carreiros por onde malham os cabrões que a sabem toda sem trilhar
um pintelho do cu,
Jesus, homem, que nunca te ouvi esses modos desbocados, Ah cachopa,
se não fora o bem que te quero e ao menino, não te benzas aqui que não
é nenhuma igreja, Ó homem, e logo hoje que vem aí o meu pai nesta
desgraça, Olha que também há-de ser por isso, uma viga dum homem
que lidou toda a vida, que era dele agora se não fôramos a gente, olha a
tua irmã Lídia, se mexe a cornadura de um dedo para o receber, Está lá
com os patrões, António, E atão, deitar vinho em copos finos e pintar as
unhas alguma vez foi trabalho, mulher?, Cuida dos meninos, António,
Ora, a última vez que lá fui buscar-te estava a velha a dar-lhes o comer,
Estaria a abrir as camas, foi pela noitinha, Hás-de ver a cama que ela
se está a fazer, hás-de.
Vem aí o teu pai, põe o talher na mesa, Elvira, Ó Abílio, vai-me ali à da
D. Eulália buscar um pezinho de hortelã que a nossa anda esmorecida,
Ó Cidália, atiça-me o lume, alma do diabo, que as batatas não cozem,
fechaste a travança dos coelhos, Elvira?, Vem aí o vosso pai, toca a
lidar, alminhas de Deus, fizeste os trabalhos, Abílio?, Vem aí o vosso
pai,
não segura nada nelas, trémulas, o homem que o trouxe de carrego dos
degraus abaixo em meio aqueles urros e bafos da máquina e repelões de
gente, por pouco não davas com eles, diz, Poça, isto é que ele pesa, ó
compadre já tem aqui a sua gente. A Gina diz, Ai Vira, isto é que foi um
calvário, e baixa a voz, Até borradinho ele vem, que eu não no pude
lavar. As mão estão de borco no ar uma ao lado da outra, um mexer de
fim de ave degolada, saliva um pouco borbulhosamente dos cantos da
boca. Não andou ainda.
Ó DA BARCA
VÉSPERAS
ao universo.2
Porque elas falam. São as outras. Tu podes ouvir com muita exactidão o
que elas dizem. Mas tu não podes entender. Palavra por palavra tu
podes escutar. Tu estarás à beira delas como se atrás de uma parede. Se
escutasses a uma porta ouvirias melhor. Porque elas sabem escutar às
portas. Se tu tiveres na mão um livro, como quem atende a outra coisa,
tu podes escutar e entender. Porque elas podem ter livros na mão. Na
tua mão esquerda, qual orbe a elas intangível, tu tens uma cebola com
toda a sua espessura de capas sob capas de carne de água, seu labirinto
de veios olorosos, esfera armilar que outras e sempre mais encerra,
pequena lua axilar que adere aos dedos e semelha o cheiro do corpo
que a dispõe curvado sobre a terra e depois, avolumado o seu nutriente
enigma, a arranca puxando-lhe a verde cabeleira inútil. A cebola existe
à tua mão esquerda na indestrutível resistência da matéria orgânica à
inorgânica, mas ainda na indefectível misteriosa aliança das suas
trocas. À tua mão direita está a faca que vem do sílex lavrado por
pancadas secas, reflectidas e também da domação do fogo. Podes abrir
a cebola com a faca, cumprindo assim antiquíssimos modos de
decifração dos dentros: acharás que o interior das duas calotes
separadas numa só incisão de face a face, sob a palha da primeira capa,
a mais rica de cor, a mais capaz de reflectir a luz, mas seca,
incomestível, acharás estrias muito semelháveis às que singularmente
demarcam a insemelhança da polpa dos teus dedos com qualquer outra.
Mas é preciso aproximar a vista, vesgar. Sofrer a perplexidade de uma
indagação in extremis, próxima até doer. O juízo suspenso face à
proliferação de similitudes, camadas de sentidos, falas. Tu não falas.
Só o teu acto de cindir a cebola, esse ceptro da manipulação da faca, a
contundência laboral, diz:
Tu que picas uma cebola para adiantar para amanhã e fendes as vagens
de feijão na longitudinal exacta e te dás ao processo de eviscerar
pequenas carpas de mar, carapaus. Senhor Hermínio há muito que se
deitou para não ver e não ser visto daquilo. D. Marieta disse, Ai credo,
vou-me deitar, Fatinha, estou extenuada com isto tudo, a televisão já
deu o hino e a bandeira, se Deus quiser.
AS MENINAS EXEMPLARES3
Elas falam, Fatinha não saiu hoje, Chegaram os ingleses, filha, estás
incomodadinha, estás?, Lídia não tem horas de entrada:
LÍDIA
que eu tenho aprendido muito
com ela, lá isso, já vai para
três anos que me disseram na
agência, era eu uma lorpa e
tinha sido posta fora por causa
de uma cabra reles, essa sim
que era reles, que vivia ali num
andar comprado com
empréstimo da caixa em Paço
de Arcos, eu quase nem tinha
quarto, cabia lá o divã e as
minhas roupas detrás de um
cortinado no desvão, aquilo a
dar para umas traseiras cheias
de entulho, só se viam homens
ordinários ou pretos, à hora da
comida a tirarem feijão frade e
cachucho de dentro de latas em
cima de caixotes, a pegarem na
garrafa para a janela e a
dizerem, Pscht, ó menina, é
servida?, e todo o dia aquela
cega-rega das máquinas. E
então ela, era só ela mais o
marido e os dois miúdos, mas
eu é que deitava mão a tudo,
que ela saía para o emprego,
muito mal pintada, ainda
estavam a pagar a prestação do
carro, e eu é que dava o comer,
FÁTIMA
O pequeno-almoço?
LÍDIA
Pois, que o almoço comiam na
escola, uma escola que aquilo
era um nojo, vinham-me de lá
os miúdos todos sujos, todos
escalavrados, eu é que fazia
tudo e ó Lídia as-sim, e ó Lídia
assado, a mesa aquilo era a
trouxe-mouxe, nem
guardanapos de pano, era só
papel, que ela dizia que era
para me poupar e meteu
máquina e tudo, mas era mui-to
ordinária, aquilo até metia nojo
à noite, com os rolos me-tidos
no cabelo e as meias enroladas
até ao joelho,
FÁTIMA
Usava meias?
LÍDIA
Usava meias, pois, e uma cinta
já muito deslassada que era
sempre a mesma, eu fartava-me
de ir ao sapateiro pôr meias
solas nos sapatos dele e dela e
ainda por cima sempre com
desconfianças por causa do
marido,
FÁTIMA
Mas tu andavas com ele?
LÍDIA
Não, credo, um nojo dum
homem, sem graça nenhuma,
usava mais brilcream que
cabelo.
FÁTIMA
Ai essa é óptima, tu tens uma
graça a contar as coisas,
LÍDIA
Acho que ele era primeiro
oficial num ministério ou coisa
assim. Bem, o que lá vai, lá
vai, mas foi gente que nunca
puxou por mim, nem pouco nem
muito, as revistas que ela
comprava era a crónica,
FÁTIMA
E o elle, agora há muita gente
que compra,
LÍDIA
Isso, só lá de longe em longe e
era mais o marie claire, e
depois um mau gosto para
arranjar a casa, tudo plásticos e
daqueles móveis estilo rústico,
sabe?
FÁTIMA
Ai ó filha, já te disse para me
tratares por tu, que disparate de
mania, olha, e como é que foste
parar à dela?
LÍDIA
Foi pela agência, eu logo que a
vi gostei dela, mesmo uma
senhora, percebes? Naquela
altura ela usava o cabelo
comprido, apanhado assim num
rolo fofo, sabes como é?, sem
laca nem nada, que ela diz que
estraga o cabelo, agora só usa
às vezes um bocadinho para a
noite, lembro-me tão bem,
recebeu-me na saleta, tinha um
vestido de seda azul escuro,
assim macheado, com pintas
brancas, um chemisier que ela
depois me veio a dar e eu já
nem uso, está-se a desfiar um
bocadinho na manga, mandou-
me sentar de uma maneira que
eu disse logo, Não vale a pena,
minha senhora, parecia que já
estava ensinada. Perguntou-me
se eu já tinha estado no serviço
de fora, eu estava parva com a
casa, o hall cá de baixo com os
azulejos azuis, os amarelos
todos a luzir, a escada de
alcatifa na mesma, tudo cheio
de quadros maiores que eu,
estava um bocado à rasca,
FÁTIMA
Ó filha, estavas acanhada, é
natural, uma pessoa habitua-se,
LÍDIA
Pois, foi assim. Agora o que
me vale é ela, sempre a puxar
por mim, Não diga assim, diga
assado, Lídia, se me vê uma
unha sem aparar, que ele no
serviço só quer verniz branco,
chama-me logo a atenção, ao
fim de cinco dias já me está a
perguntar quando é que volto à
cabeleireira, não quer nem uma
malha nem um pêlo nas pernas,
pergunta-me de namoros, diz-
me sempre para não dizer que
estou a servir, ela é que me
empurrou para me ver livre
daquele rapaz que era marçano
passa a vida a dizer que eu
mereço outra coisa,
FÁTIMA
E mereces, filha, eu estou farta
de to dizer, com um corpo
desses, que tu tens um
bocadinho tendência para
engordar,
LÍDIA
Ai, ela diz-me que não, que
isso já não se usa tanto,
FÁTIMA
Ela disse isso?
LÍDIA
Disse, disse, foi no dia dos
meus anos que ela me deu
aquela cinto de cadeiazinha
dourada e o frasquinho de dior
verdadeiro.
FÁTIMA
Ó Lili, ela não será fufa?
LÍDIA
Credo, antes fosse, não, olha,
escusava de andar naquele
estado feita em bêbeda,
desvairada com aquele borra-
botas, aquela lêndia, aquele
cheira-cus da mãezinha que
nem é homem para a arrancar
às unhas do marido, ali a
mamar o bourbon da casa, a
aparecer aos fins de tarde e a
deixar-se ficar para o jantar, o
marido a gozá-lo e a ela,
FÁTIMA
Mas ele bate-lhe?
LÍDIA
Não, mas ora a enche de tudo
ora a enxovalha, sempre foi
assim, trouxe-lhe de Paris uma
capa do balmain verdadeira,
que ela mostrou-me a caixa,
mais uma grande bola de vidro
preto, parece que é do lanvin,
com uma daquelas borlas de
vaporizar perfume à moda
antiga, parece assim um
puxador de borracha forrado de
fio de seda e com uma grande
franja, parece que há poucos,
chama-se arpège, ela diz que
havia um igual no boudoir da
avó,
FÁTIMA
No quê?
LÍDIA
até chorou, no boudoir, e sabe
o que ele lhe disse, ainda com
ela abraçada, disse-lhe assim,
Mas olhe que não é para pôr
por baixo, que arde,
FÁTIMA
E tem razão, perfumes mesmo
por baixo é que nunca, o gajo
deve ter uma certa classe, já
me falaram dele,
LÍDIA
A Fatinha usa desodorizante
por baixo?
FÁTIMA
Às vezes.
LÍDIA
Ela usa um que lhe trazem da
Suécia, diz que o de cá que faz
cancro, e então a irmã, aquele
grande coirão, disse-lhe que o
que faz cancro é o tabaco
inglês que ele usa, que é o
único vício que tem,
FÁTIMA
Quem, o marido,
LÍDIA
Não, o outro.
FÁTIMA
Olha lá, ela já saiu de lá há
muito tempo?
LÍDIA
Quem, a irmã? foi quase a
seguir à morte da mãe, aí uns
seis meses depois. Ficou
herdada e ala, que ela e o
cunhado é como o cão e o gato,
mas ele com ela encolhe-se.
FÁTIMA
Se calhar são amantes.
LÍDIA
Credo, ela é tarada, mas era lá
capaz de fazer isso à irmã, se
visse como ela às vezes
aparece, toda mal enjorcada,
sem maquillage, sem nada, o
cabelo amarrado atrás mas sem
chique nenhum, outras vezes lá
se arreia e parece daqueles
modelos esquisitos, mas nessa
altura tem pinta, não dá é
confiança, parece que tem um
rei na barriga,
FÁTIMA
Se calhar tem tido.
LÍDIA
Agora, quem ensinou da pílula
à irmã foi ela. Até o estupor da
cozinheira se acagaça, que eu
ela a mim, tenho as costas
quentes da outra, o mal desta é
que foi sempre o ai-jesus do
pai, fazia tudo quanto queria,
parece que ele deixou um
primo pôr-se nela aos doze
anos e que foi ele quem a levou
à clínica,
FÁTIMA
Que gente, eu ao menos,
trabalho com gente educada, lá
bebem, lá fazem as suas
noitadas, mas não são gente
para porcarias dessas em casa,
vais ver, quando fores comigo,
a gente diz que tu és secretária
numa firma, até pode ser que te
arranjem uma colocação, assim
empregada numa boutique, ou
numa loja de discos, eu já
estive,
LÍDIA
Bem, eu isso gostava, mas as
despesas devem ser muitas,
uma pessoa tem que ter casa,
mesa, roupa lavada, eu ali
tenho tudo, tenho pena dela e
ela é boa para mim, ainda
ontem que eu a vi chorar e fui-
lhe buscar uma bandejinha com
chá de jasmim feito num bule
bem escaldado, como ela gosta,
ela virou-se para mim e disse,
Deus queira que sejas feliz,
Lídia, até me tratou por tu e
depois foi buscar uma pochette
de noite que ela tem, do saint-
laurent, ainda quase por estrear
e deu-me, que eu nem sei onde
é que vou usar aquilo,
FÁTIMA
Deixa que inda a hás-de estrear
comigo, eu também não hei-de
ficar aqui muito tempo, tenho
pena de deixar a minha mãe,
mas não posso cá trazer
ninguém a casa, quero ver se
monto um atelier, até podíamos
alugar um apartamento as duas,
já me prometeram emprestar o
capital para o investimento,
LÍDIA
A Fatinha não pensa em casar-
se? Tão chique, olhe que não é
para a gabar, mas se tivesse as
coisas dela não fazia pior
figura, ela tem um pijama de
soie sauvage amarelo que até
lhe ficava melhor a si, que é
morena.
FÁTIMA
Casar-me?, Já, que horror, que
mau gosto,
LÍDIA
Mas nunca esteve apaixonada
assim a sério? Eu o que gostei
mais foi daquele rapaz que era
empregado de escritório,
FÁTIMA
Não, eu acho que só era capaz
de me apaixonar por um assim
como o Kennedy, Ou o Onassis
assim homens que têm tudo,
LÍDIA
Credo, mas o Kennedy
mataram-no e o Onassis é tão
feio,
FÁTIMA
Deixá-lo, são vidas cheias de
tudo.
LÍDIA
Isto já vai do destino de cada
um.
FÁTIMA
Ai filha, já estou como um
amigo meu que trabalha na
publicidade, O destino é como
a guitarra, quem tem unhas
toca, quem não tem é tocado.
LÍDIA
A cabra da irmã diz que o
homem da vida dela é o Orson
Welles,
FÁTIMA
Aquele gordo, do cinema?, a
tipa é tarada, se fosse o
Charles Bronson, ou o Steve
McQueen,
LÍDIA
Eu gosto mais do Alain Delon,
FÁTIMA
Ai esse é tão chupadinho e tem
cara de forreta, eu gosto de
homens de mãos largas,
LÍDIA
Havia de ter conhecido o pai
delas, parece que quanto vinha
quanto ia,
FÁTIMA
Mas elas são ricas,
LÍDIA
Porque a criatura deu cabo dele
a tempo,
FÁTIMA
A mãe delas morreu de
desgosto, se calhar,
LÍDIA
Ná, parece que já se consolava
com o genro há uma porrada,
há uns poucos de anos, mas
isso já são zunzuns que eu oiço
lá em baixo no monte ou do
jardineiro quando ele diz, Filha
de cabra sabe encabrar, que eu
da velha não saco nada,
FÁTIMA
Que gente com que tu estás
metida, ao menos os meus
amigos não ofendem as casas,
olha essa pulseira foi ela que ta
deu?
LÍDIA
Foi, é massa mas parece tal
qual marfim, não parece?, se
não fora o peso, e este fiozinho
de prata também, foi pelo natal,
eu comprei-lhe cerejas
cristalizadas, que ela gosta e
uns legozinhos e um ferrinho de
engomar para os meninos,
FÁTIMA
Para os miúdos?
LÍDIA
Pois para os miúdos.
DE EXPLICITACIONE
GENTILE
Mary vai de carro a ser levada rapidamente pela faixa costeira sinuosa,
cuidada, que liga a cidade de Lisboa a essas coisas deliquescentes à
beira da baía de Cascais. Que quietude o ser levada. Tem um vestido de
veludo vermelho negro, um fourreau que só o talhe aguenta, insólita a
matéria e a cor, as mãos vão deslassadas no colo, pôs por primeira vez
os rubis da mãe, morta, afunda-se mais e mais, suspirosa, no não fazer
consentido que é o ir de carro, levada quente, quaisquer as agonias de
antes ou depois de ter ido. Como é que se sente, Mary darling?, José
Oom vai com a mão direita também em quebra lânguida de coxim sobre
o eixo curto das mudanças, guia de afagos lasso no assento baixo, sem
rangências ou verves, Mary põe aí a mão um pouco suada, Ça va, não
devia ter bebido dois whiskies antes de sair, foi um dia péssimo, quase
não almocei, mas sinto-me bem assim um bocado grogue, com você a
guiar, o Frederico é uma estupidez, sempre depressíssima, não sei como
é que não tem desastres todo o tempo, só andava devagar quando
saíamos com a mãe, O Frederico não almoçou consigo?, Que ideia Zé,
sabe lindamente que o Frederico nunca almoça em casa, tem sempre
montes de almoços de trabalho, eu acho óptimo, os pequenos estão no
colégio e a Lídia faz-me imensa companhia enquanto almoço, é
amorosa, só lhe digo que acho que nunca tive uma criada tão espantosa,
Quando é que o Frederico volta?, Deve vir amanhã de avião, não me
diga que está com remorsos de virmos jantar os dois, Pelo amor de
Deus, Mary, a menina sabe que eu a adoro, mas sou amicíssimo do
Frederico e temos vindo sempre em grupo, é um pouco estranho tê-la
assim só para mim, Pois olhe, eu disse ao Frederico que vinha jantar
consigo e ele não se ralou nada,
Acho o seu vestido de veludo um espanto Mary, está linda e esta luz de
velas, a sua pele parece mármore rosa, apetece-lhe lagostins? Ai adoro,
Por um dos tubos que entram pelo nariz afilado ao ponto de parecer tão-
só rectíssima linha, na obscuridade permanente do quarto, passam
ininterruptamente um líquido de cor sanguínea, sem espessura, e
coágulos de ar. Que profunda estranheza, aquela boca desmaiada,
lacerada de pequenas pústulas e estrias de secura, o ruído cavo naquela
garganta onde mesmo a funda marca dita colar de vénus e a pele um
pouco deslassada tão bem se casavam com o oriente das pérolas, com
as vogais baixas, arrastadas, com o cinza negro de dois anos de luto, o
preto e branco, o já violeta claro da última primavera de viúva sóbria,
cuidadíssima. O peito arfa, o ruído que emite é inverosimilmente
grosseiro, aquela aguadilha ferrosa desce do frasco de soro postado
alto até à fenda da narina que começa a cortar-se na comissura, uma
fenda como trilho de navalha entre escamas de pele. A cama articulada
range como um carro de bois ao longe, está um pouco soerguida, os
cabelos estão mortos perdidos o degradé de loiro e brancas, apesar das
fricções de álcool e colónia, do champoo seco. Os braços descarnados
terminam nas mãos para ali abandonadas na mesma lassidão das carnes,
veias altas, azuis, sarda clara, as duas alianças. Há o chio de borracha
das solas de enfermeira no chão plastificado, o cheiro a éteres, e agora
de dejecções ácidas, aquele beiço que treme só de um lado, a mão
esquerda que se vira para cima num vagar de peixe à tona em agonia, o
dentro do braço lacerado onde a veia fugidia é buscada e buscada, a
palma em concha flácida semicerrada agora numa postura que dá susto,
elegante no acto de morrer devagar, Já posso tirar a arrastadeira,
senhora dona Maria do Carmo?, a tremura do lado da cara que significa
sim, o agudizar do ralo em espécie de palavra que significa sim, o
agudizar do ralo em espécie de palavra que significa sim, a errância
pelo quarto de um só dos olhos, o outro palpebrado baixo. E Frederico
diz do lado de fora da porta entreaberta com aquela voz apavorada que
Mary nem conheceu na iminência dos partos, que só conhece agora, nem
no reconhecimento do corpo esfacelado do pai, Posso entrar? Mary
levanta-se vai até à porta, Espera um bocadinho, deram-lhe um clister, e
ele passa logo a uma irritabilidade má, puxa de um cigarro, a cigarreira
não faz ruído no mesmo chão ceroso do interminável corredor vidrado
ao fundo e vêem-se os altos ramos amarelo rubro dos plátanos e as
quedas franças das araucárias, Algaliaram-na. A que horas vem a Maria
Elisa? A Ziza disse que não sabia se vinha hoje, A sua irmã é uma
besta, parece que não sabe que a sua mãe está a morrer.
Mary dança e não está contente. Qualquer coisa mudou, que mudou?
Mary não sabe, dança. Frederico dança melhor. Ao fim e ao cabo é uma
coisa disparatada as pessoas abraçadas a balançar-se. Mary acha-se
parva. Ou não é nada disto que queria. Quando dançava com um vestido
de taffetas changeant que tinha duas laçadas em cada ombro e estavam
os outros a dançar à volta, olhos humildes espiando de vários lados se
estaria disposta para a próxima, tudo era melhor, tudo era tão possível,
a mãe tinha-lhe emprestado a esmeralda, Parece mais velha mas fica-
lhe lindamente, parece a avó Isabel, não acha, António? Falta-lhe
tamanho ou ruindade, ainda não percebi bem, sabe que eu associo
sempre a sua mãe a uma égua carnívora, Maria do Carmo, divirta-se
Mimi, já se despediu da sua irmã? vá lá acima ao quarto, ela pediu-lhe,
Mana, que linda, parece o céu do mar. Que falta a esta Mary, pois?
Olhos que a vejam a ser vista? Mas José, mas a dança? Se ao menos
fosse um tango, por graça, toda a fineza do mundo, Madreselvas en flor,
que me vieran nacer, passa-lhe a memória dos olhos fechados uma
imagem distante dois vultos enlaçados ao longe, longe em perfecção de
uníssono combate uma agulha de prata vivacíssima, onde?, minúsculo
peixe cintilante em que funda treva? Mary pensa que está parva. Não se
aborrece, está inquieta, algo está envenenado, José Oom parece-lhe um
menino de coro com borbulhas a carregá-la como um boneco de palha.
Mas José Oom não tem borbulhas. Dança bem, mas é que não a segura,
embrulha-a. Como guia, como faz gestos no ar ao que diz — é tudo
mole, embrulhado. Está enervada Mary?, com a alegria sorrateira do
alívio, Mary não se lhe está colando, vai ficar tudo na confidência, José
Oom redobra de solicitude, Quer sentar-se, minha querida, o vol-au-
vent já está na mesa. Não me chame querida. Mary, que é que tem, que é
que eu lhe fiz, pode passar à queixa, tudo bem, tudo na mesma, ah não
ter que mudar nada, ganhou, agora é só manter o amuo penalizado até
que ela quebre, Mary quebra sempre, ajusta-lhe a cadeira, senta-se
contristando-se e olha-a nos olhos, magoosamente, com intenção,
pergunta, sinais de dor, José Oom esse jogo ganha sempre, Que é que
tem, darling?
A sua mãe é uma santa, senhora dona Maria das Dores, a resignação
com que ela tem sofrido. Não é só resignação, senhora enfermeira, é
boa educação, repare bem que assiste pela última vez ao sofrimento de
uma verdadeira senhora, Frederico, pelo amor de Deus, acalme-se,
Cale-se Mary, você nunca há-de chegar aos calcanhares da sua mãe,
Felizmente, mano, Que é que você quer dizer com isso, Elisa?, Que a
mãe pisava tão bem, tão bem, que nem via a quem, Você é um monstro,
Elisa, a sua mãe está na agonia, Ora, estamos todos e eu ainda não
acabei o luto do meu pai, Já cá faltava, Não, nunca vos faltou em nada,
O senhor engenheiro desculpe, mas se fizessem todos um pouco menos
de barulho, Qual quê, senhora enfermeira, as pessoas como a minha
mãe devem morrer ao som de salvas de canhão, Zizi, acalme-se, Tão
boa e tão parva, minha pobre mana, Elisa, eu dou-lhe um estalo aqui ao
pé da sua mãe, Meu caro mano, quer que eu me arrepele como se a
minha mãe fosse minha amante?, nunca foi.
Zé, preciso tanto de falar consigo, você sabe que eu não tenho mais
ninguém, depois da morte da mãe, a mãe apoiava-me imenso nos meus
problemas com o Frederico, deu-me sempre óptimos conselhos, para eu
ter paciência, que o Frederico ao fim e ao cabo era um marido óptimo,
adora os pequenos, sempre com imensos presentes para mim, Zé você
sabe que eu gostar imenso de si não resolve as coisas, eu era incapaz de
enganar o Frederico, Sei, minha querida, sei,
diz coisas que eu não entendo, a seguir à morte do pai, as três de luto,
mas a Ziza não falava, deixou de falar à mãe, parecia doida, o
Frederico um dia abanou-a e ela foi buscar uma pistolinha com cabo de
madrepérola que o pai lhe tinha dado, veio pela escada abaixo, nós
tínhamos ficado na sala os três amachucadíssimos, lembro-me
lindamente, estava o Salazar muito trémulo a ler os agradecimentos da
doença e ela parou com a arma apontada para o Frederico e depois
começou a rir-se e disse, Não vale a pena, já não vale a pena, não
passas de um sinapismo de velha, uma colagem de merda, não vale a
pena. Lembro-me lindamente, eu lembro-me de coisas que não percebo,
o Frederico ficou muito pálido, a mãe tremia imenso, levantou-se e
disse, Vá para o quarto, Maria Elisa e a Ziza disse, Madame, o meu pai
ensinou-me a distinguir entre uma cortesã e uma senhora, sente-se. E a
mãe sentou-se no cadeirão de chintz e começou a chorar e a tremer, o
Frederico ainda fez menção de se levantar para ela, mas ela levantou
outra vez a armazinha e havia qualquer coisa nos olhos dela,
Não chore aqui, Mary dear, quer que eu lhe peça mais morangos?
Quero,
LITTLE WOMEN4
a poem here
how come this is the house of undone written
words
unspoken lines of sorrow
no meaning to convey emotion meant to last
no sense no rythm
except the very harsh
of womanhood secluded from compassion
of the distorted wombs a mind would have composed
of crushed babes
undeserved barreness
of hope so shrill
a kingdom would not still it
and love so much unwanted
it can kill
no beauty then
no ripeness of the bonds
from line to line
no crawling law
melodious scheming
no poem here nothing
but a howling silence
mas o que quero dizer é que me sinto infelicíssima, no dia em que nos
casámos, a mãe, Quer café, Mary dear? Ao jantar sabe que não, durmo
pessimamente. Chá, Chá, leve, se faz favor.
CARPAS (I)
Mary sente-se um pouco inchada, ainda bem que tem cinta, regozija-se.
Tem sono. Tem vontade de ir para casa. Quer dançar, Mary? Alguns
pares dançam agora muito devagar, o braço escuro dos homens forma
um ângulo agudo de enlace mole, as mãos lassas em espáduas nuas ou,
sobre seda, crepe, organza já, visíveis de contorno. Na penumbra azul,
aguada, as caras são de gemido, os olhos fechados, tão pegados de
corpo e bordos da cara, os crustáceos continuam a acenar-se de hastes
sem sobressalto, um imenso búzio colado ao vidro ascende agora a sua
massa ventral, opaca, uma mão sem dedos, fria, visco, os peixes abrem
e fecham as suas chagas do lado descompassadamente ao lentíssimo
vaguear vermelho, negro, branco violáceo, das longas franjas. Mary
sente suor na sua pele da mão em mão de José Oom, da têmpora ao
maxilar húmida de outro suor, nas costas da mão espalmada contra a
fazenda escura de grão fino, fresco, não há nada entre a juntura das suas
pernas, a face do púbis, e as dele, onde os troncos se acostam, Vamos
sentar, Zé, estou cansada, vamos embora.
E então o príncipe levou a dama das neves para uma ilha tão longe, tão
longe que só havia pés de tangerina, praias de leite e flores de nardo,
tigres de pêlo azul mansinhos e pavões brancos, e viveram felizes para
sempre.
CARPAS (II)
que desgosto, filha, que desgosto, uma rapariga ainda nova, boa mãe,
boa esposa, boa filha, ah, ela não aguentou a morte do teu pai, E tu,
minha querida Elisa, põe aqui os olhos, filha, não somos nada, de que
serve procurar outros mundos se todos acabamos assim, Mandaste
arranjar o jazigo, minha querida? Está linda, uma santa, vais-lhe deixar
ir o fio e a pérola?, Lembras-te, Maria Eulália, daquela cloche branca
que ela levava no dia do casamento, com uma faixa rosa sobre a anca e
do bouquet de muguet?, nunca vi noiva mais linda que a tua mãe, Maria
das Dores, tão nova ainda, E uma dona de casa, ah, foi a melhor mesa
de Lisboa, E em Sintra, filha, Bem, isso não sei, havia os, Mesmo
assim, filha, que desgosto, não chores mais minha querida, vai, filha,
vai a casa ver os pequenos, vê se tomas alguma coisa, Uma jóia esta
pequena, Reparaste já como a Maria Elisa não chora, Mas olha que
pelo pai, Esta pequena exagera sempre, Tal e qual o António, Maria
Eulália, era um pequeno impossível, A culpa foi da Elisa, sabes bem,
Quem, esta pequena? Não, a mãe do António, Eu sempre achei, Mas,
ah, a disseminação das gélidas adversativas de quem só vê impávido e
lastimosamente comenta coralmente sob a distorsão da máscara, turvas
emissões em acto de júbilo, dum volume inaudito, de voz, gesto,
Mary deitada abre com gestos pesados a gaveta da pequena mesa junto
ao seu lado da cama. Bebeu, picando as pedras de gelo com a ponta da
unha cor de lacre enquanto Lídia lhe escovava o cabelo. Descai pesado
sobre a incrustação de guipure em seda flexível, malha rosa-sépia. O
frasco já só tem cinco pequenas cápsulas. Mary tira duas, pega no novo
copo de bojo crescentemente lavrado, espécie de flûte gorda, copo da
noite sobre fundo de prata onde jaz evanescente licorne, dama
esquissada já sem contornos, prata usada. Um soupçon de cognac
acidula o gole. Cognac com água doutor? Você gosta, potencia,
distende,
REZA DA ELISA
Meu Deus, está aqui nestas mãos este sangue e está aqui nestes pés esta
terra que eu bati com eles. O que fiz está feito. Peço-te, ó Deus, que
faças que debaixo da terra e dos meus pés venham lagartas brancas
comer depressa este pássaro. E que estas lagartas comam até ao último
dos seus ossos e à última das suas tripas e às unhas das suas patas
partidas e ao sangue por onde as suas penas pegam à carne e ao mole
dos seus olhos, até ficarem bem gordas e brancas e ladinas. E que este
pássaro se torne a carne delas no que elas comerem. E que fiquem
fortes e venham até ao cimo da terra ver o sol. E que venha então o
maior gavião que sempre houve e coma delas e da carne deste nelas,
que era pequenino, e das suas patas partidas e das goelas que eu torci
com estas mãos. E que desça sobre a terra com as suas asas do tamanho
do céu e coma os olhos das pessoas que partem estes pássaros. Ámen.
Mimi, é verdade que o caseiro me disse, que a sua irmã matou hoje um
passarinho ferido? A culpa foi minha mãe, eu deixei-a para trás, eu
deixei lá o pássaro.
António, importa-se por uma vez de interromper o que está a ler e dar
atenção à educação da sua filha Maria Elisa?, você está a criar um
monstro,
depois olhas para mim, olhas as tuas mãos, e elas ambas, tão claras, tão
seguras, são as mãos de um soldado a arder em febre, aves a percorrer
o seu novo deserto5,
Fim de tarde. Uma ampla cozinha iluminada muito bem a fortes focos
de luz fluorescente1. Azulejo rosa sépia, grandes placards de madeira
com portadas em persiana e fórmica azul escura. Imensas máquinas
de lavar roupa, de lavar loiça, congeladoras. Um banco. Imenso
fogão de ferro com porta transparente. Bancada corrida à boca de
cena, tendo visíveis as tubagens de lavatórios, pias, nicho de
trituradora. Em cima da bancada, bem ao centro, está um pato
enorme, depenado, tigelas, passador de carnes, mais máquinas,
panos, ovos. À direita, uma mesa de material plástico toda branca, de
um só pé, cadeiras de vidro acrílico. A cozinha é ainda decorada com
grandes tachos de cobre, estanhos, barros. A mesa está posta para as
duas crianças (cor quente). Numa das paredes há um grande poster
com a fotografia de Ernesto Guevara. A cozinha deve ser, de facto, o
mais possível bonita. O encenador é livre para, por exemplo, não
manter a escala dos objectos à dimensão das pessoas, significar toda
a sumptuária cozinha por um soalho inclinado ou móvel de aço
inoxidável, pedir ao cenógrafo que tudo se passe dentro de um forno
em ignição ou no Jardim do Príncipe Real. Tem é que ser cozinha,
s.f.f.
PERSONAGENS
PATO IMPERIAL1
SARA — Arre mula que já não tenho idade para andar com estes
carregos, menina Mimi. No tempo da sua mãezinha que Deus haja
isto era serviço para a ajudanta. Tanto escaninho para tudo nesta
loja de fanqueiros e não há nem o olhinho do cu dum parafuso
onde me caibam batatas pra mais de uma semana.
ELISA — Et exultavit spiritus meus.
MARY — Sempre fazes o pato Sara?
SARA — Olhe ó Mimizinha, isto quem não vê é como quem não sabe,
atão não vê o inocente aqui em cima da bancada?, eu se fosse a si
ia mas era pôr-me decente, a cozinha hoje parece a sopa dos
pobres e olhe que ainda tem os beberetes para preparar, que a
Lídia já lhe arranjou as bandejinhas das bolachas.
ELISA — Querer é poder.
MARY — Estou tão cansada, tão cansada, não sei o que hei-de vestir.
ELISA — Vista o seu vestido branco, fica muito bem com o pato cru.
ELISA — Mary, Mary, quite contrary, where does your garden grow?2
SARA — Não é lá muito tenro. Ganso, ganso é que era outra coisa. E
via-se. Agora estes patos empurrados que nunca conheceram água
a não ser pelo monco abaixo. Ainda me lembro de ter que ir pelo
tanque adentro a agarrar o mais gordo, da gritaria,
ELISA — Ah aquela marreca madrugada que o engenho não deixa durar
pouco.
SARA — Mas não ferravam, iam à morte pela mesma mão que lhes
segava a sêmea. Vá-se arranjar, Mimizinha, olhe as horas, depois
queixe-se se o senhor engenheiro a desfeiteia. A sua mãezinha
estava sempre aprimorada do princípio ao fim, antes de todos,
nem aqui entrava, aqui não, que ela aqui,
ELISA (cortadora) — Chega, Sara, não estás a servir a minha mãe. Vá-
se arranjar mana, eu dou o jantar ao Simão e à Nena.
SARA enxuga as mãos e vem trazer a ELISA uma maçã descascada num
prato, os quartos abertos em coroa.
Entra LÍDIA com as duas crianças pela mão. É alta, bem feita, bom
porte, tem o cabelo escuro e curto, está fardada de cor, bem calçada,
bem penteada. As crianças estão de pijamas e roupões iguais. SIMÃO
vem em passo de marcha, perna aberta. MADALENA traz na mão uma
grande gaiola de grilo, doirada. ELISA recomeça a cantar em surdina,
repetidamente estas estrofes da canção de E.E. Cummings:
I RECITATIVO DE LÍDIA4
ELISA e ELVIRA (em uníssono) — Não peças a quem pediu nem sirvas a
quem serviu.
PANO
II RECITATIVO DE LÍDIA
MARY levanta-se, vacila muito, bebe novo copo até ao fundo, atira-o
para trás das costas, estilhaços, aplausos do CASAL AMIGO I.
DISCURSO DE MARY
BAVAROIS DE CHOCOLATE2
Desfazem-se 250 gramas de chocolate com 250 gramas de
açúcar e uma pouca de água; quando o açúcar estiver bem
derretido, tira-se do lume e juntam-se-lhe quatro gemas e
seis folhas de gelatina derretida e deixa-se arrefecer.
Estando frio, junta-se-lhe meio litro de natas batidas e
mete-se dentro de uma forma com feitios, molhada com
água. Põe-se a gelar um bocado e serve-se.
JOSÉ OOM — A Sara abriu-me a porta, ela sabe que eu adoro bavarois
de chocolate, adoro.
FREDERICO (a ELISA) — Deus os derrete, Deus os junta, Diotima.
ELISA (cansada) — Aqueles que são fecundos segundo o espírito,
Sócrates.
MARY — Quem?
HOMEM CA I — Está óptimo, Mary, parabéns.
FREDERICO (a ELISA) — Minha irmã, nossa viúva.
ELISA — Poça, distraí-me.
MULHER CA I — Lembro-me lindamente da sua mãe fazer este bavarois
com nozes, Mary.
ELISA — Tout est bien qui finit mal. Um dia hei-de escrever um livro
fêmea, todo por dentro.
JOSÉ OOM (inquieto, a boca cheia, ainda não olhou para MARY) — O
quê, o que é que acaba mal?
MULHER CA I — Ó Zé, o menino viu em Paris aquele filme do Bergman,
o Silêncio?
JOSÉ OOM (na mesma) — Ai adorei, só lhe digo.
CORTINA
1 Chata. — N. do T.
2 Isalita. Doces e cozinhados. 25.ª edição.
III ACTO
PARÁBOLA DE LÍDIA1
LÍDIA sai.
LÍDIA volta a sair com uma grande bandeja de prata para o café,
máquina de balões, chávenas, açucareiro alto. SARA suspira
profundamente.
SARA — Ai eu.
ORAÇÃO DE SAPIÊNCIA
SARA — O raio da rapariga parece o porco nas vascas, ora uma destas,
agora cai-me esta enxúndia nos braços.
ELISA — Caiu, caiu a grande Babilónia.
Saem todos excepto ELISA e LÍDIA, MARY vai pelo antebraço de JOSÉ
OOM que graciosamente lho ofereceu. Agarra a ponta da saia. SARA
põe prato para LÍDIA, serve-a também. Senta-se. ELVIRA e SARA
comem. Elisa está sentada à mesma mesa na mesma postura do I ACTO.
PANO
1 Texto inédito de Luís Sousa Costa, p or acaso trazido durante a feitura deste, e admiravelmente op ortuno e cedido. O
acaso não existe.
IV
CASA DE ELISA
ANGELUS
Madrugo. Estão-se a passar coisas raras. Nunca alvores matinais me
arrancaram do sono, quanto mais precipitação de chuvas. Memória do
sismo não é, a cismação matinal — que trema o chão, que ruam as ruas,
não seria a primeira vez nem de má memória o fundar de artérias
citadinas, aquedutos e traça, sobre carbúnculos residuais de sécias e
peraltas. Viva a razão do lume, fendas na crosta, maremotos, como diria
Nero a apagar-se, fulva sua mãe e os leões. Ouço a chuva clamorosa
nos algerozes e telha velha, enxurrada nas ruas em declive da minha
alcandorada urbe, mais pombalina de pombas soltas que de Pombal,
colina incólume. Em batalha campal deveria o narrador ser postado em
ponto alto, donde pudera seguir a movimentação das alas e a emissão
das ordens, junto ao pavilhão dos condestáveis. O escriba era assim
alevantado e só mandado assentar muito depois. Todo o registo escrito
dá ainda sinal dessa reduzidas variâncias de postura. Olha que há quem
lá fosse ao ventre da batalha, dizem-me os coevos do cerco, da perda
de um olho por frechada ou estilhaço de obus, do reino por um cavalo.
Mas isso são modernices. Nisto — nas mais antigas profissões do
mundo — são os princípios que marcam, a argila tablóide, papiros,
peninhas demolhadas.
Olha, parou subitamente de chover. Tenho que ter mais cuidado com o
que desejo, os elementos estão tão soltos. Mas a magia não existe, e Eu
sei lá quanto tempo mais.
something old
and something new
something borrowed
something blue1:
ENUNCIAÇÃO
Havia no solo, para lá do fosso, fardos de palha meio desfeitos e
aglomerados de uma bosta grossa, escura. É uma extensão grande. Ao
parapeito do fosso, onde jaz uma pouca de água verdosa coalhada de
moedas numa margem em declive agudo eriçado de arestas de pedra
britada, pode ver-se o interior do pavilhão, a treva, a nudez, outro
imenso vulto cor de cinza deborcado. Agora este — As orelhas são as
largas do grande elefante africano, os olhos pequenos e lentamente
móveis estão encimados de pêlos espessos, idênticos ao tufo patético
que finda a cauda curta, afuselada. As grandes unhas da pata dianteira
alevantada e algo rósea no joelho, de luz rosa, no esforço de distender a
grande massa de carne rugada e profundíssimos músculos mais e mais
para a frente, as grandes unhas quase negras não ultrapassam a abrupta
delimitação da pata, como tronco pujante decepado raso, pouco abaixo
da articulação ancha. As duas grandes presas serradas cerce, estriadas
de um castanho de folha de queimada, soerguem os beiços sem
espessura, a pequena boca quase coralina, indecisa. Do todo, está
estendida até ao limite máximo a tromba, anelada de rugas, com o seu
tão comovedor terminal fendido, delicadíssimo, afeito à sucção e à
preensão de ramículos, agora trémulo de táctil, a mucosa nua, húmida e
timidamente captadora da mão que a acaricia, a mão belíssima, enorme,
de um negro de lustro de um animal marinho surdindo de águas, azulado
de gelos, os nódulos dos dedos vigorosos mais claros na movimentação
terna, a palma cerra-se branda e quase branca, como ungida de cinzas,
rosa azul-negro de corola recolhida sobre aquela palpitação pedinte do
grande membro do velho animal acariciado pela voz que raspa
afectuosamente pequenos sons guturais e estalidos, pelas unhas claras,
implantadas fundo e curtas que repetem uma fricção compassiva sobre a
bordadura daquela viva fenda em frémito. Foi então que ouvi
distintamente que ele me dizia, Nada temas, Elisa. Encostada a três
metros no mesmo parapeito, assistindo, eu disse então, Como?, e ele
respondeu virando lento a vista de pupila de ónix sobre fundo de
resplandecente branco ácido, quase azul, o sorriso compassivo
mantido. Não disse nada, minha senhora. Acrescentou ao meu esboço
de gesto quase brusco, ao recuo das criaturas de Deus, o paquiderme
restabelecia-se sobre quatro patas, recolhia o sumptuoso instrumento e
alçava-o à sineta que dobrou, quebrada, metal fendido, três vezes — Às
vezes dizemos, dizemos, sem falar. Chamo-me Elisa, o automatismo
veio-me diante dos evidentes sinais da soberania. Era altíssimo,
alongado sem demasiada magreza, os ombros recuados e plenos em
redondo compacto sob o casaco de uma gabardina quase branca, a
nonchalance da perna em igual, o vinco de fio de agulha terminado em
pé sublime, coisas para Cardin ou mesmo Roma, os punhos e peitos da
camisa em seda mole, a mesma divagação de branco, areias e negro na
gravata, mesma cerosidade sem excesso do calçado estreito. As quase
translúcidas asas do nariz baixo, de cana porém firme, soerguiam
ligeiramente junto à junção com as comissuras do sorriso, o rosto
alteava-se em dois malares fortes, duas bossas que rolavam a fronte
excessiva sob a massa crespa e redonda de dois dedos de velo negro na
cabeça, a perfeita lomba da nuca, água nocturna. A luz brilhava em aços
na ancheza dos maxilares, descia até ao pescoço régio de graça e porte,
o interior cinza-azul do pulso na mão estendida ao ar e céus e mim tinha
uma corda nodosa de violenta cicatriz a toda a volta, o renque de
correctíssimos dentes quase translúcidos, a plenitude da boca apenas
irónica desfazendo o gesto como consentindo por caridade a menina
humilde num ritual pateta, Prazer, chamo-me Angelo. Algo mudou
porém na doação das mãos, um reconhecimento do bom. Que ele então
disse, Não tenha medo Elisa. E eu disse, murmuradíssimo, Hare
Krishna. E ele disse como se estivesse comentando o estado do tempo,
Não é bem esse o continente. Mais disse, após sopesar o que eu via
fitando-o, Não tem pupilas para o pálida que está, não quer sentar-se? E
mais logo, É portuguesa, está doente? Sou portuguesa, posso vir a estar
doente, donde é que você vem? O você era tímido, aquilo ou era de
soba ou de embaixada para cima, a realeza. Cape Town, disse ele e
sorriu maligno, mas não me era dirigido a mim, ave coxa, arribante. La
illah ila Allah5, mais disse penseroso; a rótula mansamente sobreposta,
a meia em seda fumada, o tornozelo frágil. Ai u é, acrescentei eu. Se
sabedes novas do meu Amigo, riu-se ele muito comigo e pela primeira
vez tocou-me na testa com os três dedos intermédios da mão direita
dizendo, Malinké, mia senhor fremosa, algures dos arrabais do grande
rio, importa pouca. Ilha? disse eu. Não, floresta basta, o calor húmido
irisa o umbigo dos deuses. — Falas bem português, disse eu.
E disse tu.
— Quando o Pentecostes nasce é para todos. É a língua d’alma.
— A tua mãe?
— Quando a minha mãe estava grávida foi em busca do espírito dos
antigos até à beira dum ribeiro. Na margem estava um crocodilo ainda
novo que lhe disse, Mata-me. A minha mãe pegou numa pedra larga
para o esmagar. A pedra transformou-se num grande mocho branco que
lhe disse, Pousa-me sobre o crocodilo e prosta-te na areia sobre o
ventre até deixares de ouvir o ruído da torrente. A minha mãe assim fez.
Quando tudo estava muito silencioso, abriu os olhos ainda a tempo de
ver dirigir-se à água uma pantera negra que ergueu uma pata e lhe disse
fitando-a com os seus olhos de perpétua zanga, Quando chegares na
tabanca, mata um cabrito e grita até estarem todos os homens e mulheres
grandes reunidos. Não terás dores mas vais parir hoje. Quando a
criança nascer unge-a com o sangue fresco de um cão e com o amarelo
do ovo de uma galinha. Dirás que isso te foi dito pelos antigos que
assim lhe vedaram a pele para grandes feitos. Fá-lo-ás crescer no temor
dos búfalos e dos homens de cabelos longos. Tal é o desejo dos
antigos. E dizendo isto, caminhou para dentro do leito das águas de
novo rumorosas do ribeiro. Foi assim.
— Espécie de Siegfried do mato, are you kidding?
— Quite so, Brunhildezinha, todas as amazonas da Europa adoram
mitos exóticos.
— Mas eu sou uma bajuda6 do Dahomé
— Sabes muito, gazelinha, ao que corres?
— Ce n’es pas juste, je ne t’ai posé que des questions évidentes.
— L’évidence est une qualité de surface7.
— Ah, a Aventura Ambígua, és animista ou islamizado?
— Para quem leu tanto gazela, isso é uma pergunta estúpida. Importa-te
assim tanto situar quem te comove?
— Tu não estavas a comover-me, isso já estava feito, estavas a
impressionar-me com a acumulação de saberes.
— Tens razão, tendo muito a portar-me como um negro greco-romano,
aqui. É o sindroma do escravo.
— Aqui?
— Europa.
— Foste educado aqui?
— Ainda estou a ser educado, lá.
— Eu estou-me a deseducar.
— Muito europeu, estiveste em Maio em sessenta e oito?
— Não, vou estar na terra no ano dois mil, com uma grande grande
araucária a crescer-me dos cabelos.
Aí, ele silenciou, voltou a pesar o peso do ar à nossa volta e disse:
— Desculpa, és a primeira portuguesa que desconfio que sim.
— Há muito ódio, príncipe, entre nós?
— Há muito ódio a príncipes, senhora, e é bem feito.
— Tu disfarças?, que estás aqui a fazer, que querias do elefante?
— Sirvo, procuro servir, fiz-me ponte, creio.
— Os africanos falam preferentemente por metáforas, como eu,
— Os povos primitivos, quem regressa, os,
— Diz, diz,
— Irmãos escuros.
— Tu não me és escuro.
— Ao meu povo sim, a brancos sim.
— Teu povo?
— Nasci lá.
— Lá?
— Lá, debaixo da terra onde não sossegam os restos, onde não há
destrinça exacta entre o raio e a raiva de Deus, onde o espírito mana da
infecção de um espinho, onde a humilhação fez de cada crença um
quisto ambíguo de verdade e mentira, porque os teus perderam o chão,
perderam o chão, perderam-nos o chão,
— Não tenho meus.
— Morres, gazela, morres como os antigos desfeitos em fezes líquidas,
os pés garrotados a caminho das Antilhas largado à força o pilão cheio,
um filho de mama, morres como os que voltam para as minhas terras a
desfazer num dia os feitiços, a decepar num mês as árvores de irã, a
devassar pelos trilhos de mato a traça dos antigos, em dois dias.
— É preciso estar com os rudes, Angelo?
— É preciso estar com os rudes, branca-flor. Queres ver-me ver os
répteis comigo?
— Quero, mas não sei se o que trago vestido,
— Pobre oncinha borralheira, pareces mulher grande sem mezinho e
sem cabras, a pele que se renova é o vestido que há.
Angelo disse:
— Donde vindes, madre, branca e colorida?8
— Do cu dos tempos, senhor preto, do cu dos tempos, onde só entra a
agulha de Deus.
— Tu o disseste, hermana, disse ele.
E deu-lhe uma nota inteira de cem, o que a fez sorrir-se como uma
cobra aberta, ou seria das listas rasgadas como pele seca do avental até
aos pés, do afastar donairoso, de toureira em perigosíssima lide,
terminado o lance.
— Estes nada perdem, nada criam, só transformam pela quase intacta
memória, disse eu.
— Nenhuma produção os corrompe nem avança, apenas trocam,
sujeitos à morte altiva e lenta, mas o Frederico amava-os.
— Quem?, disse eu, noutra.
— O verde que nos queria verdes.9
— Os poetas?
— Os esperançosos de todo o mundo, gazela, unidos.
A casa não era longe, no bairro que se chama Azul e o é, com as suas
varandas de pretensiosas colunas bojudas, as persianas corridas,
pequenas leitarias de vão de escada onde havia tangerinas ou estou em
querer agora que talvez não. No último andar direito, Angelo meteu uma
chave à porta para um pequeno hall interior de bandeiras de porta muito
altas, vedações em caixilho de vidro fosco para outras dependências.
Fixei os arabescos de tapetes persas sobrepostos cobrindo todos os
soalhos e folhagem de plantas em grandes potes de barro cozido,
branco, um pouco por toda a parte. Não havia móveis, creio, mas
espelhos de todas as épocas recobrindo paredes acima e abaixo dos
lambris de madeira, pelo menos onde estive, na que abria para a
marquise. Nem um retrato, nem um óleo, esperei ver máscaras, marfins,
escudos, de filigrana de ráfia, apenas espelhos, redondos, elípticos,
ligeiramente convexos ou grandes plataformas cristalinas, emolduradas
em metais pesadíssimos e preciosos, volutas, enquadramentos de acaju,
de mogno, biselados muito espessos sem moldura, espelhos. Eram
paredes temíveis, nós sombras mínimas ad infinitum, paredes de evitar.
Havia mais, pois, a grande marquise aberta para umas traseiras
desoladas, dezenas de escadas de serviço descendo angulosas e vazias
com as suas plataformas metálicas e picotadas até pátios de cimento
vagos, cordas e cabos metálicos de onde pendiam boas roupas,
húmidas. A corda de Angelo não tinha nada. Os persas ondulavam as
suas cornucópias e pétalas geométricas a vermelho e preto, verdes
sombrios, pontas e fundos de um turquesa ensurdecido, desfibravam por
manchas, franjas desfiavam. Descalcei-me. A minha bolha luzia sob o
quadriculado dos sinais de gaze, toque de câmpanula frágil, caduca. Ele
tinha dito, Espera aqui, e ouvi-o falar, titilações de telefone. Grandes
trepadeiras de folha muito larga, espatulada, ou estreliforme quase
vedavam o vidrado da marquise, o pano de linho alastrado de grandes
manchas ténues, envelhecido, que coava a luz. Recomeçava a chover.
Recostei-me em espécie de coxim, panos, única peça. Quando ele
voltou disse, Um gadget, e ligou sem manivela uma grande grafonola de
campânula. O som veio amplo, correctíssimo, apenas a fanhosidade de
relíquia recuperada imediatamente reconhecida. E foi assim que eu
fechei os olhos e os vi claramente dançar, um mesmo objecto a que se
dava corda, um fim de tarde de ouros e castanhos, ao Norte, cadeiras de
palhinha crua numa outra marquise ampla, ladrilhada largo — o tango
deles, ajustadíssimos, belos, ela tinha um vestido de crepe pérola de
manga com fieira de botõezinhos forrados e chumacinhas nos ombros,
ele estava de fato inteiro assertoado e o cabelo uma só placa lustrada e
justa ao crânio harmónico, a nuca cava, dançavam sem se olhar, ela
numa mímica perfeita e sacudida de cabeça, os tendões do pescoço
hirtos de diva altiva, ele deixando-a tombar pela cinta e cair sobre
coxa, a mão seca, branco-azul-greco sobre os rins dela, dóceis e
crispados como cumpria ao espírito da dança, dominando todo o jogo
como bom cavaleiro o faz de toque de rótula na montada e rédea sóbria,
madreselvas en flor
que me vieran nacer
y en la vieja pared
sorprenderan mi amor
pasados los años
y los desengaños
el primer cariño
que nunca olvidé,
que idade teria eu, dois, três anos? cheirava a tabuleiros de marmelada
recente, ferro de carvão, era tão clara a presença. Abri os olhos e disse
a Angelo.
— Acho que eles se amavam.
— Não é possível, não teria sido possível, aqui,
vieja pared
del arrabal
tu sombra fue
mi compañera
y todos los años
tus flores renacen
porque ya no muere
mi primer amor.
Então, pela primeira vez tive um grande medo e ele viu. E ajoelhado à
minha beira, com uma taça cheia de avelãs nas duas mãos, numa
reverência profunda, disse, Nada temas, Elisa.
Uma mulher de voz madura, muito aguda, cantava sobre um fundo de
Kora a louvação La illah ila Allah, Donde, donde, é isto?, Guiné,
gazela, os grandes restos do Mali, também descemos sobre a mesma
carne, tribos contra tribos, mas os antigos velam nas fibras da piteira,
sob a casaca dos répteis na orla dos grandes rios. A voz atingia a
crescente rispidez do grito e eu peguei-lhe o mais humildemente na
fímbria do pano fino como cambraia e toquei com ela a minha boca
descida, a minha testa fria, no espaço entre os dois olhos. Vi então que
não só os pulsos estavam marcados de lacerações profundas a toda a
volta, como também os dois tornozelos nus de tendões finos, ossos
altos. Prostrada ainda, perguntei-lhe, Quem te feriu? e ele recitou assim
com as pontas dos dedos no meu queixo e os olhos sérios nestes, como
quem se dói, Sublimes excoriations d’une chair fraternelle et jusqu’aux
feux rebelles de mille villages fouettés, arènes.11 Depois perguntou-me,
— Tu que queres, menina?
E eu falei como uma rainhola em começo de carreira:
Mas, à uma da manhã de uma noite limpa, não me aflige nada o poder
estar doida. Nunca contarei a verdade de factos inverosímeis. Carece,
nestas partes do mundo, suportar a inverosimilhança calada até que
mais realidade, a exercitada silente, faça luz. Passo a pulseira ao pulso
esquerdo, a mão que firma o espaço, vago, onde inscrever. Oiço, Bach,
Posso-te pegar na cabeça?,
1 Algo velho, algo novo, algo emp restado, algo azul. Tradição a ter em conta no ataviar de noivas na cultura anglo-
saxónica.
2 Referência ao romance de Aquilino Ribeiro, Quando os Lobos Uivam.
3 Referência óbvia.
4 Referência menos óbvia.
5 Deus é o único Deus. Guiné.
6 Rap ariga em crioulo da Guiné Portuguesa.
7 Referência a L’Aventure Ambiguë, romance do Sheik Hamidou Kane. Senegal.
8 Paráfrase do Conde de Vimioso, Cancioneiro de Resende.
9 Referência a F. Garcia Lorca.
10 Birago Dio. Incantation. Senegal.
11 Aimé Césaire. Patience des Signes. Antilhas.
12 A vinda é doce, a ida dói, mas quem não p arte não tem regresso. Crioulo. Cabo Verde.
13 Corsino Fortes. Pão & Fonema. Cabo Verde.
14 Partida. Crioulo. Cabo Verde.
15 Foras tu comigo e eu caminharia p ara a minha morte e rep ouso na alegria. Ah quão doce seria meu fim foras tu a
fechar-me com tuas mãos, belas, os olhos fiéis. Stolzel. Do Livro de Notas p ara Ana M adalena Bach (1725).
IV
CASA DE ELVIRA
STELLA
Tudo, tudo mudou, não é só o vires caminho da praça derrancada dos
braços desafeitos a um tão grande peso, tê-lo seguro com um e lavar-lhe
a cara, os peitos e os antebraços grisalhos com o outro, cortar-lhe as
unhas sarrentas assentado na pia, lavar-lhe as partes no bidé com ele a
desviar a cara, a dizer, Deixa, deixa isso, rapariga. Tem mais tino, hoje.
O teu homem disse, Pelas onze volto cá, faço-lhe a barba e ala para a
consulta, ouviu, meu pai? E ele disse, com um meio de riso por entre os
pêlos pigarços espetadiços, Seja, homem, cá estou. Pôs-se de atalaia à
rua firmado no parapeito enquanto davas de mamar ao menino, uma
fralda por cima. O menino, desacostumado, tirou-a ao chão, uma, três
vezes. Depois hesitando entre berrar e sugar, calou-se com os olhinhos
a meio fechar de gula, o punha cerrado na tua mão, o cenho ainda a
protestar mas lá foi, os dois únicos dentes debaixo a rilhar-te o mamilo.
Tudo mudou. D. Marieta pela manhã entrou na cozinha. Tinhas a
cafeteira ao lume, e alguidar para as águas aos pés. Ela disse, Olhe
menina Elvira, não tem precisão de o estar a lavar no quarto que me
derrama a água e mancha o soalho todo, incomoda-me a Fatinha que
inda está a descansar. Sirva-se da casa de banho, desde que deixe tudo
em ordem. Depois, deu um puxão aos virados do robe acolchoado com
botões de massa irisada e flores mindinhas, roxas de olho rosa em
fundo branco, gorda, gorda e começou a lidar com a torradeira eléctrica
muito sacudida, a meter a ficha baixa gemendo, Ai hoje o meu fígado
está de todo, hei-de mandar pôr uma ficha por cima do frigorífico para
a batedeira. Era a trégua seca. O teu homem já tinha saído, repetindo
com força, atarantado mas firme daquele novo peso, a ter que ater-te do
desamparo em que te vira nas vésperas, pelo meio das noites de
levante, sussurradamente alvoroçadas a amparar o velho em vigília,
Logo pelas onze e meia estou cá com a guia, já pedi dispensa, faço-le a
barba e ala, queres que to ajude a lavar? Não, ele hoje está
melhorzinho, não merece a pena atrasares-te, disseste com a voz
vibrante onde já só estava uma raspazinha de medo, da coragem
disseste, Eu posso, não viste como ele já se alevantou? D. Marieta
disse, Vamos lá a ver o que diz o médico, isto é para internamento com
certeza, a minha madrinha também lhe deu assim, mas pouco tempo
incomodou, coitadinha, para o fim já nem podia sentir os cãezinhos que
era a grande estimação dela e eram de raça, uns pekinois daqueles de
nariz chato, maus que eu sei lá, credo, o que eu passei. Mas valeu a
pena, ó D. Marieta, disse o teu homem antes de sair, Que é que o senhor
António quer dizer com isso, ora essa?, Nada, D. Marieta, nada,
Sacrifiquei-me muito, lá isso sacrifiquei, a lavá-la, a pegar-lhe a peso,
mas olhe que não foi de mais para a estimação em que ela me tinha,
coitadinha, aquilo foi uma mãe para mim e mesmo na doença sempre
tão fina, comia as bolachas araruta molhadas no chá, era só o que ela
comia e umas colherezinhas de maizena, sempre com uns modos, nunca
se lhe ouviu um desbocamento, Atão até logo, D. Marieta, Vai levá-lo
hoje ao hospital, não vai senhor António? Estou cá pelas onze, A ver se
esta desgraça se resolve. À porta ele disse, baixo, Grandessíssimo
coirão, e, tal como ele esperava, até já te riste. E ele então apertou-te
um peito de rijo e disse, Havemos de sair desta enrascada, mulher, vais
ver que o velhote arriba e ainda o havemos de ver de sacho nas unhas.
Nem tu nem ele criam que assim fosse, mas ele desceu a escada e era a
luz dos teus olhos, viga da consolação. O menino estranhado da
presença do avô ao fundo do quarto berrava, agarrou-se-te com gana, os
olhinhos postos no intruso, o velho mostrara os cinco dentes
descarnados, picados de tabaco de onça. Ele deixara-lhe enroladas
umas quantas pitas, Aqui tem meu pai, de vício está aviado até que eu
venha, lá pelas onze, faço-le a barba e ala para a consulta, e ele tornou-
lhe muito certinho, Bem hajas, mas não lhe pôs o nome. O menino
espreita-o agora mais afeito da sacada do teu ombro, ainda beiça
fincado ao teu pescoço, É o teu avô, filho, atão não vês que é o
avozinho? E o velho diz, Amanhã hei-de ir à do Hermínio buscar-lhe
uma cega-rega, olá se hei-de, Ao Hermínio não, meu pai, a gente
estamos em Lisboa, mas havemos de ir lá pela Páscoa com o menino à
Cidália, vossemecê há-de-se pôr bom, que vossemecê ainda não o
conhecia, é um lindo menino, pois não é, meu pai?, é o teu avô,
Toninho, chama-se como o pai, vossemecê não acha que le dá ares?
Toninho, Toninho, Abílio é que havia de ser, Ora, meu pai, Abílio já
vossemecê tem um, fica para a próxima. E ele diz, do assento do divã
por fazer, a arquejar na pieira da tosse, De quem é, o cachopo? É o seu
neto, meu pai, tornas-lhe tu, esmorecida, e pões-te a alinhar o quarto,
deitaste os lençóis e os cobertores abaixo na tua cama, hoje não há
manchas frescas daqueles leites do corpo que tu escondias antes de
lavar, com os nervos esqueceste-te de tomar a pílula, talvez que ainda
vá a tempo, senão amanhã estás outra vez a sangrar e inda foi há tão
pocachinhos dias. Vais disfarçada tomá-la à torneira que ela assim não
te mói como te moía ao princípio. Ó Elvirazinha, que desleixo, credo,
isso assim ainda lhe faz mal, se eu soubesse a Fatinha nem lhe tinha
dito, credo, custa alguma coisa. Mas custava, todas as noites espetar a
unha naquela pratinha de chocolate e mica estranha aos dedos, aquela
baga engoli-la todos os dias, custava. O teu homem dizia, Tomaste-a
hoje?, senão tenho que botar fora. E tu tomavas. Talvez que ainda vás a
tempo, é manhã cedo, pelas oito. Voltas, bates o colchão, melhor não
abrir a janela que está por detrás das costas do teu pai. Deixá-lo, arejas
logo. Puxas os lençóis, fazes a dobra de entalar como ela te ensinou,
Nos hospitais é assim, Elvirazinha, faz-se assim uma prega para ficar
mais liso, dura mais, foi a enfermeira da minha madrinha que me
ensinou, coitadinha. Lídia vinha e ria-se, Na casa da minha senhora não
são de engomar, Isso hão-de ser caríssimos, ó menina Lídia, Fatinha,
hás-de-me ver se há na Baixa, ai filha, só o não ter que engomar. Os
cobertores, a colcha de crochet branco que ela te ensinou tantos meses
as rosetas, de entremeio com as lãzinhas do menino, a dobra bem
entalada por debaixo da travesseira. Puxas o teu pai do divã para a tua
cama feita, ele parece acordar, diz, Que é, que é que tu queres
mostrenga?, segura-se e diz, Ai és tu, mas não diz o teu nome. O menino
está acordado, dá aos pezinhos, palra e gorjeia mirando-te o lidar. Com
um grande esforço de ranger, os dentes aperreados, fechas o divã com a
cama feita dentro e encostas ao vão da janela. Deitas o menino ao lado
do velho sentado na tua cama e dizes, Tenha mão nele, meu pai, por
dizer, e recomeças com os lençolinhos pequenos que têm patas a cheio
na bordadura da bainha. O velho canta-lhe, Lá vai uma lá vão duas, três
pombinhas avoar, uma é minha, outra é tua, outra é de quem na apanhar,
com voz roufenha mas certinha da música de cantador antigo, o menino
dobra o riso, pedala, agarra-lhe os dedos, o velho diz, desdentado, o
ralo no peito mais fundo de gosto, Ah ganapo do diabo, ah ganapinho,
queres uma codinha para rilhar, queres? E tu rindo também voltas a pô-
lo na alcofa de folho e dizes, Não mo esteja a espertar, meu pai, que eu
agora tenho de ir à praça. E mais dizes enquanto o deitas, protestante
sem muita gana, o sono a vir, Para o mês que vem já hás-de ter uma
caminha, já quase não cabe, e o velho assevera-te, com muito tino,
Atão, agora é que ele tem que medrar. Mas não te dá nenhum sinal
quando lhe dizes, Eu não me demoro, meu pai, vou pelo almoço.
Encolhida, sais e pedes-lhe que deite um olho ao quarto, por eles. Ela
responde-te, Olhe que eu não posso garantir, menina Elvira, que hoje é
dia de mulher a dias, veja se não demora, podia ter ido ontem, O
frigorífico estava muito cheio, D. Marieta, Então vá, mas veja então se
não demora, que eu tenho a minha vida. E tu desces a escada, as ruas,
com o coração à boca, esgueirando-te de todos, saindo para fora dos
passeios a passo estugado sem ir de carreira que parece mal. Tudo,
tudo mudou,
do sal, que demais não será jamais louvada em terras estas de largas
costas salineiras. Atentai ora pois de suas propriedades a todos os
outros mantimentos se acomoda, dando reforço a sua ancheza de fibras
ricas, novidade à humilde baga insípida, tremoço, pevide. Exaltando
das carnes só seu espírito, pondo nos pães sua só esperteza de travo.
Assim, até longínquas dobras arenosas e sob a ríspida corola da
tamareira, inscrevem esses cristais a sua traça marítima, sulcando o
palato dos homens e suas bestas da irisação das espumas, capilar
periculosidade das medusas, as sápidas memórias. O açúcar seda,
satisfaz, é a outra primícia. O sal das águas largas é porém matriz do
rastejar primeiro para os elementos altos — o fogo, o ar. Sobre terras,
pântanos insípidos. A seco porém e em sua só inteireza abrasiva, quem
no estima ou sequer o rigor lhe suporta? Vede que só os mais rudes
animais capazes de íngreme, migrantes, cabras, crianças secas, gente da
sede crónica. Este é o que reserva as águas no seu posto móvel e lacera
os insondáveis rins. Entre nós, salineiros por piscatórias águas e
deslocação de urbes sóbrias suspensas sobre rias — o sal está onde a
fermentação dos mostos, a preservação das carnes, dar têmpera. Ora
pois — que vícios contrapor a tais virtudes? Que malefícios prevenir a
tão indúctil bem, sacramento de sageza sobre o beiço do neófito? Os há,
porém, — o sal incha ou resserra. Mulher prenha e víscera velha devem
aprender-se de temê-lo. Assim o sal semelha a mão que salga — se
pouca é desuso triste ao paladar; o excesso, o abuso da aspersão, mata,
queima quem dele farta. Que pois devemos face à mão que o sal
empunha, ocupa, penetrada da vitral acridez até palpos de língua,
curtiduras de feições e mechas de cabelo? Que tento tenha em bem
salgar as gordas coisas a que desinchem ou cessem putridez avançada,
que não consinta sejam retidas de salmoura estática as que sustentam e
sempre foram limpas, que não abrase os verdes, a tenrez. Indes que tal
mister de salinar, modular o tónico, o adstringente, a todos nos
concerna, tão salgada nação, ousar de seu administrar a boa conta. Da
arte de salgar contra o pútrido toda a mão lusa devia ter mesura. Porém,
salvo nos grandes peixes espatuláveis e nas veras colinas desta matéria
dada — salinas — é a mulher que mede e de sua mestria nisso sabereis
destino de sua casa e gerações: É temer-se da escassa e da mão solta.
Dependendo sobre que carne e bocas modula o exercício da aspersão
dos cálculos mínimos, o unguento pisado com alho e especiarias. Ora
pois, senhora de salgar, deusa da pedra dúctil e solúvel, não haverá de
vosso assento uma tão-só palavra sobre quem o sonega ou o abusa? Ora
pois, mão mestra da alquimia dele, mentora do gado parco que o tem
por numinoso bem, onde está o cajado que de direito fronteira teu
cabreiro redil? Se o reino é doutro mundo, o sal é deste, gema incisa,
vitral soluto, sobre as línguas inermes, as calotes gélidas, extremas.
Louvemos ainda os que se habitam dos cristais lacerantes, sapidez
tónica, havendo-os consubstanciado ao ânimo íntimo pela rareza da
expulsão dele, sal, lágrimas raras,
Ó santinha, não se rale, atão ela faz mais que a sua obrigação em ter lá
o velhote? vocês não lhe pagam o quarto? Grandessíssima cabra, isso
brada aos céus, Havia de ser comigo, Ó Leocádia anda cá ouvir esta,
Nem que eu lhe partisse a loiça toda nos cornos depois que se fosse
queixar à esquadra, Olha o estupor, coitadinha da criatura, já não há
respeito pela doença, mande-ma cá que eu dou-lhe com uma chaputa nas
trombas, a fazer-se fina, o coirão, Ó santinha, não se aflija, cante-lhe de
alto, que o seu homem é farda, Olhe, tenho aqui umas sardazinhas
frescas que é um regalo e leve esta postazinha do alto que é oferta para
o velhote, grandessíssima cabra, havia de ser comigo, e as melhoras do
seu paizinho, santinha, Coitadinha, ela é mas é branda, a outra caga-lhe
em cima, um desenxovalho duma rapariga,
Tinham cevado o porco há dois dias, a tua mãe andava com os braços
cheios de carolos de unto e colorau, as unhas estavam negras do sangue
coalhado das morcelas, tinhas ido ajudar a segurar no grande traseiro
do bicho que pinchava sangue do cachaço para uma gamela. Assim era
ainda aquela carnificina todos os anos, só este te deixaram pôr as duas
mãos com força no estertorar dos quartos trementes de onde saíam
pedaços de uma merda em pastas, uma mija negra. Fincavas as unhas
nas dobras de pele clara com os pêlos rijos, cerravas os dentes no
mesmo prazer que os acometia a todos, nessa noite já haveria
torresmos, nacos de febras estrugidos sobre brasas de fumo de azinho.
Ora foras por mais sal, pontas de orelhas e pés cascudos despontavam
chamuscados da salgadeira, era o cair da noite, hora de mandados.
Numa sarça adiante luziram-te dois olhos pequenos, depois um pincho
trôpego, o bicho caiu-te de borco quase aos pés. Era um gineto
pequeno, os chifrinhos de pêlo branco estremeciam na aragem, os olhos
agora fechados, no lusco-fusco, Para que me vens tu arrenegar com
isso, rapariga, isso é bicho bravio, ora uma destas, aventa-me isso
daqui para fora, o bicho já está morto, Deixa lá a cachopinha entreter-
se, mulher, também não é boca que esbarronde a bolsa, deita-o além
cima duma pouca de cinza do lar, Vira, vai buscar a chucha moída do
teu irmão, a que ele aventou, faz-se-le um buraco, aquece aí um dedal
de leite na púcara, o bicho está vivo, dá-te graça? pois também a mim.
Criou-se a pontas de leite, a petinga, a raspas de carne salobrada, até
sopas de vinho. Ao primeiro tolhia-se no canto da casa onde pior
alumiasse, escondia-se atrás de potes e arcas, dormia-te numa rosca de
pêlo morno entre ti e o Abílio, que o judiava e a quem davas lambadas.
Bufava com uns grandes dentes finos maiores que os dos gatos e as
orelhas aguçadas recolhidas, lambia-te de unto com a língua de lixa aos
cantos da boca e as buracas do nariz. Um dia, estralhaçou um pinto
pedrês. A tua mãe disse, Rais parta o enguiço, hão-de-se me ir as
galinhas todas. E o teu pai disse, É tempo. E foste com ele pô-lo para lá
do Ervedal, num matorral ermo. O teu pai disse, Há-de-se amanhar, e
trouxe-te de carrego até ao terreiro da casa, escarranchada à cinta,
assoou-te. Foi a última vez que te deu colo. Já pesavas.
— Ora então sente-se lá, senhor Carreiras, então o senhor que idade
tem?
— Não merece a pena, não estou derreado.
— Sente-se homem, isso, que é para a gente ter aqui uma conversa, está
aqui em boa companhia, com a sua filha e o seu genro, ora então
quantos anos conta?
— Ahn, que é que ele disse?
— Estava a perguntar-lhe a idade, quantos anos tem vossemecê, meu
pai.
— Ora, eu já sou velho como os trapos, velho e relho.
— Que idade tem ele?
— Há-de ir pelos setenta, meu major.
— Bom, então não é tão velho como isso, ó senhor Carreiras.
— Isso fora os que mamei.
— Ora vamos lá saber, então gosta de estar cá em Lisboa com a sua
gente?
— Ahn?
— A sua gente, com a sua filha e o seu genro, se gosta de estar cá em
Lisboa?
— Já vi a Avenida, sim senhor, e fui de passeio ao Parque, havia lá
umas belas carvalhas, sim senhor.
— Isso foi da outra vez, meu pai, inda a nossa mãe era viva.
— Mas gosta de cá estar, com a sua gente?
— Pois muito belo, sim senhor.
— Ele não ouviu, isto complica a coisa. Oiça cá, senhor Carreiras, e
quando é que veio lá da sua terra?
— Vai para uns anos, sim senhor, que eu aqui em Braga,
— Mas então não foi agora que o senhor veio para casa da sua filha?
— Ná, eles são bons para mim, sim senhor, mas eu tenho que lá voltar à
terra, tenho lá umas cepazinhas e ele agora é que é dar-les e por via
dumas águas,
— Mas então oiça lá, teve lá alguma pega com alguns vizinhos, é isso?
— Tudo coldra, isto é tudo uma choldra.
— Bem, deixe lá isso e olhe, lembra-se do que comeu hoje pela manhã?
— Pelo almoço foi umas cabeças de bacalhau com grão e pão de milho.
— Ó meu pai, mas vossemecê ainda não almoçou, foi uma caneca de
café e pão com manteiga, senhor doutor.
— Olhe, ó senhor Carreiras, vamos lá a ver, então quantos filhos é que
o senhor tem?
— Filhos, filhos, tenho estes que aqui estão, mais um pequerruchinho
que está lá em casa.
— Não tem mais filhos?
— São estes, são estes e mais esse.
— É o neto, senhor doutor, a gente somos quatro irmãos.
— Não se aflija, isto é próprio da doença, ele há-de estar umas vezes
mais confuso que outras.
— Ele varou do juízo, senhor doutor?
— Não é bem isso, isto é tudo do mesmo mal, as pernas, estas ideias,
as veias cansam-se e o sangue não chega bem à cabeça.
— Vossa Excelência é de parecer que ele inda pode voltar para a terra,
meu major?
— Se tiver lá quem o cuide bem.
— Isto é tudo uma choldra, queriam eles cortar-me a água e eu então,
TROMBETEIRA
fuga: foram vinte milénios para
chegar a esta utensilhagem e ainda é
pouco
Ó menina Elvira, olhe que estão a bater à porta, vá lá abrir que eu estou
a tirar os rolos e a mulher a dias foi ao pão, credo, sou eu que tenho que
fazer tudo nesta casa, se calhar é para si,
Ó Estela, olha a Estela, entra Estela, Ai cá dei com o andar, tás boa
Vira, tás boa, pois, tomaste corpo com o casamento, Ó Estela, tás mais
gorda, rapariga, ai que alegrão, Foi a Gina que me disse que tu agora,
Quem é, ó menina Elvira? É uma rapariga da minha criação, Dona
Marieta, é a dona da casa, ó Estela, anda ali para o quarto, vais ver o
menino e o meu pai, A Gina já me disse do teu pai, desta ralação em
que tu estás, a gente só se vê nas bodas e nas desgraças, eu hoje larguei
mais cedo, olha o tio Abílio, És tu, Cidália? Não senhora, meu pai, atão
vossemecê não vê?, é a Estela do ti Domingos, olhe aqui a Estela, Hum,
Sou eu ti Abílio, És a Cidália, bem vejo, toma aqui assento, Ele não
conhece a gente, Deixa, deixa Vira, não te apoquentes, que mais dá um
nome, ai que lindo que é o teu menino, mulher, mesmo lindo, é a tua
cara, Ná, olha que não, puxa mais ao António, Tu é que puxas a ele
rapariga, estás tal qual na mesma, Abençoada boda, Que é que
vossemecê, disse, meu pai? Abençoada boda a do rei Salomão, ó Dália,
Ó meu pai, a nossa mãe já lá está no descanso, eu sou a sua Elvira, esta
é a Estela. Abençoada boda, digo-to eu, Deixa Vira, ele lá sabe,
pois eu vinha cá por causa de dois quartos que lá estão para alugar lá
no pátio e quando a Gina me contou do teu pai eu fiz logo tenção de vir
que tu sabes que agora já vai para meio ano que eu estou na fábrica e a
gente,
onde estou eu, onde estou eu, para quê, porquê, para quem, menina
nunca, Menina-Nuca, chamava-lhe então o tolinho da herdade no ano
em que a mãe estava de esperanças, ela tinha sandálias inglesas, de sola
de cauchu mole no calor, com abertos em forma de pétala de flor ou dos
abertos na cassa aberta, a inglesa. Havia, afeitos os olhos ao escuro,
uma escrevaninha alta onde estava um tinteiro ainda manchado por
dentro com borras secas de tinta negra e um mata-borrão colado no
tampo aberto carregado de assinaturas ao invés, como num espelho,
cheirava a mofo, a flores secas, ao adocicado de livros e livros velhos
amarelecidos por dentro, carcomidos pela bicheza de corpo anelado e
translúcido que se escapava por dentro da fina serradura de papel
perfurado de túneis mínimos e caía no chão negro de velhas ceras
naquele quarto quase sempre fechado, havia na parede um retrato em
moldura oval de uma senhora sentada com um fato com ruches no peito
e gola barbeada, um luzir baço nas pregas que deviam ser de gorgorão
até aos pés e o cabelo descia em dois bandós baixos, enfunava de um
rolo na nuca apanhado com um trança grossa sobre o alto da cabeça, os
cortinados de renda espessa estavam pendentes de varões finos de latão
amarelo enegrecido pela humidade e tempo, uma caixinha com uma
pintura de gôndolas estaladas abria-se para um recheio de engenho de
rodízios e buracos de chave de corda e não fazia qualquer ruído salvo o
das traves a estalar dentro do grande guarda-fato cujas portas rangiam
abrindo para vestidos e vestidos rematados de pedaços de renda e
cordão de seda, folhos que seguiam ascendendo da fímbria da frente
devastados de traça até a laçadas desfeitas sobre onde devia ser a
nádega, sombrinhas de cabo de esmalte e carapeta de massa fendidas,
fitas de taffetas escocês com franjas finíssimas e esboroáveis como pó
de talco, nas extremidades, nas fendas redondas ratadas a meio. Havia
um gavetão pesadíssimo de duas maçanetas de chifre a que um corpo
pequeno há que puxar ora uma ora outra e que aberto desvenda às mãos
uma profusão de frasquinhos estreitos de rolha de vidro, relíquias com
o ossinho colado numa legenda indecifrável, fivelas de strass e prata e
abotoadeiras de luva, de botina, escovas de dentes como seara
saraivada em engaste de casquinha com motivos florais, copinhos de
bebé monogramados num cursivo alto, maços de cartas com fitas azul
pervinca mortiço de onde se desprendem pétalas de amores-perfeitos,
coroas de cabeças de zínias, perpétuas, luvas de canhão desirmanadas,
os dedos cavernosos nas pontas, leques de osso ou fatia de marfim
descolados nos seus fitilhos de seda, caderninhos de baile inteiramente
deslavados de letras,
o táxi trava que uma cega é ajudada a atravessar a rua por um homem
que ainda usa chapéu e alfinete de gravata com pérola,
havia um espelho também oval onde ao fundo surdia como ponto sépia
na penumbra o pequeno retrato e a cabeça, só a cabeça dela, Mimi, com
um laço de veludo azul-negro no cabelo como halo luminoso à cara, no
escuro à contraluz,
Mas a senhora tem que comer qualquer coisa, um chá, uma fatia de
fiambre, um sumo de alperce, eu levo-lhe ao quarto, Talvez, talvez,
arranje-me um banho, Lídia, A senhora come primeiro?, Depois,
depois, um banho morno, com sais, Rochas, minha senhora?, Não, não,
qualquer coisa que cheire a nardo, forte, doce, veja você, Sim, minha
senhora, a senhora sente-se mal?, Não, não, deixe-me só, Lídia, arranje
o banho,
e então o pai despediu-se dela e disse, Vou uns dias ao Porto, Mimi,
vim cá para dar um beijo ao pequenos e beijou-a nas duas faces e
quando ele ia a sair, a pequena Madalena veio com a sua carinha de
Elisa sombria em camisa de noite comprida, fugida da cama, ao cimo
da escada e gritou na sua fala explicada de mais, Avô, avô, e ele tinha
as grandes rugas dos lados da boca mais dentro que nunca debaixo dos
olhos tão claros que à luz do hall pareciam amarelos e disse sem sorrir
para o alto da escada, Que é meu Lili Roxo?, como ele lhe chamava, e
Madalena disse, gritando ainda agarrada ao corrimão enquanto Sara a
puxava de manso, Não vá avô, não vá, meu amor de avô, e ele disse
virando-lhes as costas a todos, Até logo, minha querida, até logo,
mas a ela, ele nunca a ouvia, nem já havia que lhe dizer, Elisa com onze
anos precoces não podia puxá-la ao pai, a mãe dizia, Isso são coisas do
seu pai e da Maria Elisa, Mimi, já arranjou as suas unhas? Que é que
vai levar a casa dos Arouca?, a sua pele está péssima esta semana, tem
posto o adstringente?,
e a pele dele tinha na cabeça, por debaixo do lenço de seda branca com
que a mãe lha cobriu sem uma lágrima, as duas alianças já na mão
esquerda e o anel de pérola barroca ainda posto, um sulco fundo que
lhe rasgava a cara até ao canto da boca, o cabelo impossível de
desgrumar de sangue seco havia sido cortado por mechas irregulares, a
mãe insistira na barba, o barbeiro tremiam-lhe as mãos, à mãe não, até
cair contra um dos bordos de talha dourada do plinto um pouco abaixo
dos sapatos de polimento dele que lhe tinham calçado custosamente nos
pés inchados e rígidos, na perna fracturada, e foi Frederico que a
agarrou e a levou para o grande quarto Império, os cabelos loiros e
lacados, inaturalmente fixos naquela cabeça pendida inerte, que
baloiçava enquanto ele no trajecto por corredores com ela atrás a
morder os dedos, lhe desviava o corpo de obstáculos e baloiçava,
baloiçando até que o mundo pare de bater neste peito solto de soutien,
num ventre lasso onde não está nada, nada, Quando os meninos vierem,
Lídia, diga que a mãe está doente, que não façam barulho, a Sara que
lhes dê o lanche, eu não estou para ninguém,
Minha senhora, está lá em baixo o senhor José Oom, Que chato, diga-
lhe que eu não estou bem, uma dor de cabeça horrível, eu depois
telefono, Minha senhora, o senhor diz que é muito urgente, Olha manda-
o à merda Lídia, traga-me outro scotch com água lisa, A senhora não
prefere um chá de jasmim leve? Traga-me o chá e o whisky e que não
me chateiem, Desculpe minha senhora mas eu não posso ver a senhora
assim, a senhora quer que eu traga o telefone para falar ao senhor
engenheiro?, O senhor engenheiro tem uma porca entalada no cu, Lídia,
deixa-o morrer de parto, Credo, eu nunca vi a senhora assim, quer que
eu chame o médico? Vai, Lídia, vai ao teu serviço, ao teu serviço,
manda-os à merda a todos,
e ele dizia para o pai, O pai desculpe-me, eu não tenho nada com isso a
não ser no que possa vir a atingir a Mary, mas não lhe parece que a
cortiça este ano, com os shares deste ano,
Oiça, meu amigo, sou bisneto de morgadio frustrado, sou neto de
liberais frustrados,
Lá está o pai —
Sou filho de republicanos frustrados, fui sidonista, verduras, li o Pessoa
e o Almada,
Está a fazer o texto para o who’s who?
Além de sogro de um genro engraxado sou administrador nominal e
principalmente frustrado,
E frustrante pelo menos no que toca à aplicação do que tem, a Bolsa,
Acomode-se, meu caro, a sua família tem bens investidos na indústria, a
minha tem as graças da decadência, pague o preço da aisance no mundo
dos seus filhos ainda que lhe saiam tarados ou acabem maltrapilhos,
O pai desculpe, só me interessa o que possa prejudicar a Mary,
Ora, meu caro, a Mary foi prejudicada à nascença, a mãe dela parece-
se muito consigo, é de uma self-made family,
Lá porque a mãe tem mais senso comum —
Tem principalmente o senso posto em que o que tem não seja comum
aos outros, não partilha nem esbanja, most common, isto é, ordinária,
meu caro,
O pai é extremamente snob, casou-se com ela, não casou?
Nunca ouviu falar em luta de classes, meu amigo?, às vezes calha ser
corpo a corpo.
Classes?, pensei que isso fosse uma coisa organizada, senhor meu pai,
entre pobres e ricos,
Isso é no Evangelho, ah meu filho, recorde as alianças entre a realeza e
arraias miúdas para derrubar intermediários rapaces,
Ah senhor Mestre, com que logro, pois que vós haveis arrecadado os
dobrões e a canela —
Como folgo em ver-vos arrufado senhor duque recente, parece que nos
entendemos,
Meu pai, dilapidar uma fortuna e ler os clássicos não é servir ideários
marxistóides, creio.
Oh qu’il est mignon, le petit technocrate, não é servir mas também não
desajuda e desmoraliza-vos muito, ó burguesitos, no que nos imitar
quereis, quem vos odeia com pontaria senão aqueles a quem haveis
tirado a rédea e aqueles que ainda não vos apearam?
Curiosa teoria, meu pai, a isso chamam eles colaboração de classes.
Sim, sim, se os fantasmas ferozes forem classe,
Eu não temo fantasmas, meu pai,
Isso é verdade, Frederico, mas olhe que a sua gravata é pirosíssima.
Como pai?, é do leonard, comprei-a na via veneto,
Não se agarre ao no como o enforcado do tarot, meu caro genro, vê
como os fantasmas são temíveis?, temo-vos suspensos por um fio, um
nó de gravata, a basbaquice de querer ter tão boa mesa e biblioteca
quando o senhor de Malraux —
O Malraux não é de.
Essa é melhor que a da gravata, mas não se preocupe, meu caro, a achá-
lo profundamente risível na Europa já só o senhor de Gaulle, o senhor
de Kruschev e o senhor de Cohn-Bendit e não sei se terão tempo para
se rir juntos.
Mary, vamos embora, o seu pai está insuportável hoje, Elisa, não
percebo de que é que se está a rir, esta conversa não tem graça
nenhuma, o seu pai está a brincar aos anarquistas d’annunzianos, isto é
Almada de quarta, não tem graça nenhuma,
Tem, ó se tem, Freddy dear, que para Barreiro de primeira ainda é
cedo.
Num momento em que apesar de tudo se caminha para uma
liberalização, há maior preocupação de uma política social justa, este
tipo de discurso é dissolvente, Elisa, e a menina sabe que —
Eu e o pai somos um, Freddy, você só já promete ser alguém e já não
lhe passa.
Mas que é que se passa nesta casa, estão todos aos gritos, ouvia-se lá
em cima, o pessoal a ouvir, porque é que a menina está a chorar, Mary,
o que é isto?
Nada, Maria do Carmo, só o seu querido genro é que gritou por causa
da gravata, assusta-se muito com o avanço do proletariado —
Do quê?
Não faça caso, mãe, o pai e a Elisa são totalmente irresponsáveis.
E então a Elisa pôs-se de pé entre o pai e o Frederico e disse, Um dia
eu ganharei o pão com o suor do meu rosto,
E Elisa disse,
A mãe tem tão bom gosto tão bom gosto que só já tem isso.
Maria Elisa não seja impertinente —
Maria do Carmo, a sua filha pôs-lhe o dedo na ferida que você não tem,
Agarra-se num livro que se ache que tem que ser aquele. Fecham-se os
olhos sem pensar em nada. Abre-se no sítio onde se sinta que tem
mesmo que ser. Lê-se. Dá sempre certo.
Quem é que lhe ensinou isso, Zizi?. Foi o pai, Dá certo para quê?, Para
a gente se sentir no meio do mundo, vivos, A menina faz isso muitas
vezes? Não, senão estraga-se, só quando é muito preciso é que vale,
Não acha que é pecado?, Não seja parva, Mimi, parece as madres:
O sol estava a pino. Era meio dia. Os pés faziam no saibro das áleas
entre jazigos e campas engalanadas de pietas e baixos-relevos, um
tumulto rilhado, surdo, e sussurros. Que grande funeral, ia cochichando
Sara, fungona e extasiada da luzida companhia. Tinham-se esquecido do
chapéu de abas de piquê de Simão. Sara fez com o lenço branco de
barra preta do luto recente da irmã, dela, uma protecção. Foi assim:
atou um nó em cada uma das quatro pontas e enfiou-o na cabeça de
Simão, que ficou parecendo sócio de nascença em tarde de estádio da
Luz. Estava muito calor, fora de tempo. Os cangalheiros enxugavam-se
debaixo do peso da urna. Era muito grande, com entalhes e florões
dourados. Os cravos vermelhos, brancos, brancos debruados a
ciclâmen, e as pontas de gladíolos nas coroas aguentavam bem. As
rosas não. Caíam pétalas sobre grandes fitas de moiré violeta de franjas
e letras douradas. O buço descolorado das senhoras perlava-se,
enrubesciam ritmicamente mais, afrontadas, as de meia idade.
Frederico trazia o espinha miúda antracite, tinha dado ao porteiro da
empresa o do outro luto, também completo. Elas duas, Mary e Elisa,
tinham ainda muito luto, o preto não se desusava tanto assim. Elisa
caminhava um pouco aparte do grosso dos acompanhantes, quase em
cima das valetas cavadas, empedradas. Mary sentia o braço despegado,
sem apoio do de Frederico, porque ele ia teso como um morto. Era tudo
muito indolor, pasmado, a luz forte, os fatos pretos. O jazigo já estava
aberto, a cancelinha, a porta baixa, Os dois homens saíram cá para
baixo e disseram que a urna era maior uns dois dedos que a plataforma.
Frederico sugeriu que se picasse que depois se veria. As senhoras e
senhores de mais idade, tias e tios, abrigavam-se à sombra ou de
arvoredo ou de outras construções funéreas. De arvoredo era difícil,
dada a exiguidade em pleno zénite da sombra de ciprestes. Algumas
sentavam-se sob bustos e lápides, abanavam-se de estampas de missal
ou pagelas de entes queridos, os dois pés compostos juntos e a saia
estirada sobre o joelho cambão, em degrauzinhos, em portaizinhos ao
fim e ao cabo familiares. Traziam as mantilhas de tamanho médio,
chapéu as mais idosas. Os adolescentes conversavam nos seus fatos
inteiros de flanela escura, de festas, e elas nas suas saias pregueadas ou
evasées, de lutos, meios lutos, missas por almas. Ou blasers de
uniformes. Elisa sorria aux anges, debaixo de um cachão de glícinias
longe, escandalosamente. As picaretas picavam. Simão observava de
perto, a cabeça de lado para dentro do portalinho e dizia de oras
enquanto para fora no seu desvio de fala inábil, bracarense, Ó pai, xá
debe echtar, num debe pai?, a cabecinha de benfiquista com garrafão,
calção pintudo de public school a dar pela rótula gorda, já
emporcalhada. Sara comentava, chorando e rindo, Coitadinho.
Madalena foi dar a mão a Elisa, que se agachou para lhe ouvir o
segredo. Depois a urna coube, deu-se a volta à chave do jazigo. Nesse
dia o almoço foi canja e galinha corada, que era sempre quando havia
lutos. Elisa comeu bem, e Simão, divididas as moelas entre os dois e os
pequenos ovos por formar. Elisa fez uma sande da carne mais escura de
uma coxa para Madalena que olhava para tudo e todos perplexa,
consternada a toda a novidade, como havia passado a ser depois do avô
morto, Como Nena, Não tenho fome, pai, A Nena é pisco, a Nena é
pisco, E que bicho é o Simão? Gabião, tia, Ximão é gabião, gabião,
bão, bão, Cale-se Simão, A abó num morre mais bezes, pai, não? Sara,
leve os meninos para cima, O Ximão num qué i pa xima, num qué i pa
xima, num qué i, num qué,
Eu não tenho sabedoria, eu não tenho ciência, eu não sou a filha dos
caldeus, é fora de mim que está tudo, não é justo, não é justo, e eles
descem dos céus a arrancar com bico recurvo grandes postas do meu
fígado, perdi para sempre a maravilhosa unidade, a mulher do baloiço
sorri-se agora mais e mais de mim na cara sem carne e os seus cabelos
estão pegados à caveira em mechas reles, mortas, compridíssimas
felpas paradas no ar sem viço, eu grito,
A senhora chamou? Olha Lídia, eu agora vou dormir que parece que
estou um bocado bêbeda, vou dormir até logo, que ninguém me acorde,
ouviste? A senhora não quer que eu chame a menina Elisa? Não, a
minha irmã tem mais que fazer que aturar velhas bêbedas, Credo, minha
senhora, a senhora, inda não tem trinta anos, a senhora anda mas é
desgostosa, Velhas bêbedas isto é uma casa de velhas bêbedas, vai, vai
Lídia, deixa-me dormir,
Que ninguém te acorde, pois, Mary, Mimi, Maria das Dores, os tempo
estão maduros para o teu grande sono. Agora levantas-te e vacilas até à
cama. O corpo ondula-te, as paredes movimentam-se como entranhas de
tonel iluminadas vivacíssimo, mas há uma grande e serena
determinação de depor o teu espírito e a proliferação das suas vozes,
não é verdade que hajas perdido para sempre o lugar onde inscreveres
a singularidade da tua passagem. Arrastaste-te de nádegas sobre a
cama, os pés no chão até lhe chegares ao topo, a cabeça vacila-te, e os
olhos vesgam-te, mas vês, mas sabes, mas ouves, Frederico, vem aí a
pequena, isto é uma monstruosidade, Eu amo-a, eu amo-a, eu morria por
si, Maria do Carmo, É uma loucura, uma loucura, eu podia ser sua mãe,
Eu amo-a, mãe, filha, contra Deus e contra o diabo, eu amo-a,
Frederico, a pequena, o desgosto da pequena, que monstruosidade, olá
minha querida, sempre comprou a carteira?, deixe ver, ah é uma beleza,
veja os forros de agneau, Frederico, Tu viste, tu vês, Mary, ele está de
joelhos e abraça-a pela cintura e tem os olhos pisados, o teu vestido é
negro e o dela, sobes, sobes ao teu quarto e não pensas em nada, não
pensas em nada, tiras os papéis de seda de dentro da carteira, desfazes
invólucros volvidos misteriosos pela multiplicidade, desvendas e situas
objectos, superfícies opacas dentro de superfícies opacas, desde
criança que há entre ti e o que te circunda uma venda, uma fossa de
grande silêncio e cegueira eriçada de objectos, de gente desviada, e
agora puseram-se todos a falar e a mover ao mesmo tempo, nesgas de
frases, feições, claríssimas, arestas residuais de gestos e tempos onde
nunca espiaste, onde desviaste a vista soterrada no susto, aquela
criadinha de quinze anos que chora escorregando pela parede do teu
quarto abaixo com a cara no avental depois de despedida, Ai menina
Mimi, diga à sua mãezinha que não foi por mal, e tu fugiste, este
pássaro estropiado que a virgem a quem rezas sem o ver vai abandonar
num ninho falso, Simão de meses os braços estendidos para ti em pranto
do colo de uma outra mulher que se afasta, todos estão iluminados a
branco como o teu próprio rosto que ora vês em fim de anestesia sob
um foco implacável, o teu braço oscila mole como um colo de cisne
velho até achar o puxador da gaveta, alguém arde em chamas
irrompendo do crânio e das dobras de uma túnica sentado sobre o chão,
vês esses olhos nos teus volvendo-se tição, a consumpção dos
sobrolhos e cabelos, abres o frasco, engoles as primeiras, as últimas
são já mastigadas numa bola ácida onde amolecem as cápsulas
gelatinosas, engoles pedaços desse magma com goles de água e álcool,
trincas gelo e pó e arestas de mica amolecente, ouves ao longe a voz do
teu filho que berra num dos seus acessos de cólera espojado pelo chão
que esmurra como novilho a fazer cascos, terreno à investida, não é teu
filho, nunca tiveste filhos nem marido, compões as pernas, buscas o
exacto centro harmónico dessa jazida, primeiro a orla da camisa,
depois as dobras do roupão, como são claros de exauridos de sangue
pela água morna os pés ungidos, fazes o alabastro, demasiado tardia
encomenda régia, fechas os olhos, a náusea tão profunda como se
rolasses em queda livre em vácuo, teu pai ainda diz, A Mimi é cobarde,
tua mãe ainda insiste, distraída, Pauvre petite, e tu sorris com sorriso
este sim teu, já pétreo, e todos os vermes da criação não poderão
descarná-lo, cruzas as mãos sobre o peito e as dobras minuciosamente
compostas pela mão que vacila, crias, desenhas-te, ajustas ainda
volutas de cabelo a que caiam bem sobre a travesseira coberta, pele
que empalideça, sobrepões deitadas as mãos sobre o peito a que
rigidifiquem doces, uma delicada poldra branca de olhos de anémona
rosa, narinas de begónia húmida, passa ao longe em prados que a pouco
e pouco te aquietam, reconheces, a crina solta e alta de asa singular ou
orla de onda em galope tão largo, lento, os que não vão morrer te
saúdam, que poderemos fazer com teu inumerável espólio de sapatos2
agora ténues fauces longe, ululantes longe, cada vez mais longe da
carreira serena desta poldra suavíssima, unicorne?
Mas que raio de paleio de pega velha e amestrada é este, se não é assim
que se lhe pega ainda menos é assim que se lhe torna porque se lhe vai
deixar, a última tanga não há-de ser coletinho barroqueiro, por força.
Donc, mas também, On ne se déchaine pas comme ça, les règles devant
la foule, petite. Chega aqui e diz-se — Se cá não se traduz o francês é
porque foi cá tão dominante que se espalhou tanto como a sífilis, na
geração anterior e sequelas. A propósito, meu nome é legião, diria
qualquer demoninhado portuga, recusando-se a entrar poliglota para
dentro da vara dos porcos a despenhar definitivamente, lá pelo
evangelho ser novo. Palavrinha, pensa bem, ó cidadão — tudo quanto
digas, ou já está escrito ou pode ficá-lo. E esta? Uma história deve ser
em si uma invectiva sem ter que rematar com a língua de fora. Mas
temam-se, ó seus portugueses, de não estar sós com os elementos
simples, de não amar ao menos uma vez terrivelmente, pelas páscoas.
Esta zona da geografia que parece limítrofe, praia chã de lota modesta,
exige muito dos peitos. Prova é que está cheia de poetas fechados. Fica
dito, por exemplo, que Elisa preferia Salazar ao Marcelo, questão de
estilística, tendo vómito a ambas. Salazar era de um tiro na nuca,
Marcelo só chupando-lhe a linfa dos tutanos por um tubinho de análise
de urinas, cuspido o chilro ao lado como babugem de rata infectada.
Coisa para peritos persistentes, porque haveria sempre mais. É que
tudo isto tem muito a ver com o poder e seus diversos nojos (lutos
renovados).
Quanto a Elisa, ah, Elisa está em casa. É noite. Este capítulo é nocturno
como tereis decifrado já pela sequência algo rígida da sucessão aqui
dos dias e das noites. A literatura moderna serve para demonstrar a
irrelevância da evidenciação de processos de mostrar. O sexo não
morre por arregaçada a saia, quando muito constipa-se, obnubila-se,
tosse para onde não deve. Consta mesmo que a libertinagem é a última
fase do puritanismo avançado. Lá por estar tudo misturado não é
necessário misturar mais tudo, ou então deixara-vos estar, ó
moderníssimos transeuntes, sob pélvis da mãe. Ela não deixa,
volveriam, no fundo ufanos. Quem não gosta de ter uma mãe decente,
mesmo se o objectivo mor da vida seja a agudeza da vista e a lassidão
dos membros e dos costumes, o generazione sfortunata1, cheia de
maldades átonas. E agora é que é dar-lhe no obscuro, toma lá o escopo,
ó martelo. E se não pudesses pôr a tua boneca de lado depois de ver-
lhe as tripas de fioco e a gaita do apito chorão à mostra? E se o teu pião
ratado no fio insistira em pedir-te a mão, a mão, a mão de giro, tu já
artrítico?
Ela vai por um grande descampado tão seco que a terra está branca,
torrões duríssimos esboroáveis na borda de fendas negras a que não se
vê o fundo e é assim até perder de vista. Ela caminha tranquila pouco
pensando aonde pôr os pés pois que os olhos lhe vêem mais que aquilo
que atentamente atenta ver — o quê para lá do horizonte. Assim ladeia
e transpõe de salto, naturalmente hábil, fissuras que fora do sonho
haveria que cuidadosamente evitar por abissais. Não se apressa. Por
aquele terreno afora, que a haver fendido assim denota haver sido
outrora pasto de águas abruptamente seco, ela vai como de passeio por
entre verduras, a passada quase imponderável, pulada largo, como se
levara apensas às costas dois pares de asas de nervuras transparentes,
de libélula. Leva a mão ao ombro e sente-lhes a ligeira viscosidade
vibrátil e sorri, Bem, bem, só as pontas dos dedos dos pés vão já por
sobre o chão. Não dá para voar mas é uma delicada lembrança. O
horizonte começa a curvar muito, as fendas estreitam, água borbulha-
lhes dentro. Elisa pisa agora sobre areia molhada, o cimo de uma duna
compacta, os dois dedões dos pés nus aflorando maciços de chorão
florido de rosa e amarelo. É a orla do mar, extensa praia limitada por
névoa descida em hemiciclo, mar calmo e cinza, céu ameno e cinza e
um eco de voz límpida entre o canto e o grito sem urgência, que vem
das águas, das movediças neblinas. Os músculos transparentes que
sustentam as asas de Elisa e o seu peso palpitam, as grossas cordas de
sangue roxo e vermelho inchadas, as quatro asas rufam levemente
suportanto-a aflorando o chão sem esforço, ao cimo da duna. Elisa
acorda sorrindo e dizendo, Bem, bem, a minha bolha secou, coisa que
já havia constatado na véspera, já ali está há três dias descalça ou de
sandálias, Elisa em casa acorda feliz e vê do ângulo de chão onde
adormeceu que o céu agora a escurecer tem laivos de rosa, vem aí o
tempo quente, um dia de esplendores, a irrupção talvez finalmente tenaz
da Primavera, Bem, bem, esta passagem está acabada. Não está certa de
ter reflectido muito durante estes dias, ou antes, que seja aquele estar
que se use com propriedade chamar reflectir. Não atendeu telefones ou
portas e folheou livros. Foi trespassada de imagens. Os períodos de
sono e vigília assumiram um ritmo abrupto que por nenhuma forma
contrariou. Disse à senhora Lúcia que não precisava dela durante uma
semana, não sabia se mais. A sua atenção aos objectos, incluindo os
próprios pés e as mãos em movimento, as feições no espelho e as
gravuras ou caracteres impressos, agudizou-se muito. Por toda a casa se
precisaram contornos, a orelha escassa de sumaúma de uma almofada, a
aresta de um retrato, o prego amarelo de um puxador de porta. Os
filamentos de uma lâmpada eléctrica ligada pareceram-lhe muito
surpreendentes, bem como as exactas meias luas das unhas que só lhe
existiam no polegar e indicador de cada mão. Tudo o que leu lhe
pareceu minuciosamente concertado como um oráculo coerente, embora
não haja tecido congeminações sobre que sujeito a orava assim ou se o
devia sequer distinguir de si própria. Punha batatas a cozer com casca
que depois despia por laivos largos com muito gosto, lavava a loiça, a
frigideira com as suas traças de gordura alta que era necessário raspar
com escovilhão e jacto de água e em seguida passar de esponja, a face
áspera, a face doce, entendeu que as águas bem quentes e correntes
apressavam e beneficiavam os resultados da tarefa, congeminou por
tentativa e erro processos metodológicos e crescentemente mais
correctos para arrumar pratos, dobrar os cantos de cobertores,
acomodar escovas. Isto podia passar-se às quatro da manhã e foi numa
madrugada que se lhe revelou quão excelente preparação para o
trabalho manual era aquilo a que convencionou chamar,
operacionalmente, a atenção poética, isto é, a minuciosa visão, unidade
por unidade e relacional, dos objectos em torno. Depois pensou que o
poeta devia ser expulso da cidade por isso — porque era um escravo
que também via das mãos. Mas isso já lhe pareceu um pouco abusivo.
Considerou então que agora já pouco mais lhe faltava que a
aprendizagem da normalidade e ratificou a sua intenção de matricular-
se na universidade, fazer estudos sérios e imiscuir-se na vida de
colectivos muito grandes, estando lá, Sempre é um princípio. Percebia
que estava passando por este transe afinal muito serena porque tinha
sido muito amada e tinha amado e que para quem assim é e lhe foi feito,
havendo sobrevivido à separação, tudo, tudo pode sempre recomeçar.
Não tinha porém pressa de reencontrar nem o Amigo nem os amigos.
Cristalizava algo e precisava de ocultação, estar nos fundos, parecia-
lhe. Entendia também, servindo-se para isso da inteligente parcimónia
com que polvilhava de joelhos o mosaico da casa de banho com
detergente e o passava depois com pano absorvente nem demasiado
húmido nem demasiado espremido para dentro do balde, que toda
aquela muito plena acalmia dos sentidos em relação às pessoas, toda
aquela acuidade agravada da percepção das coisas, decorria de um
imenso desgosto adiado, de uma fecunda acumulação de lutos
necessários, que iriam permear toda a sua vida, mas não de modo
excessivamente sentido como injusto, aterrador ou insuportável. Elisa
podia amar e suspender temporariamente o tino comum e o julgamento,
a confiança crescia-lhe com a capacidade de prazer e discernimento,
amadurecia para dentro daquela infância onde afinal quase tudo lhe fora
estimulado, quase tudo lhe fora permitido, os mortos eram afinal
acidentados de um percurso único, os seus mortos, todos os mortos, ela
não desistiria desses rostos resplandecentes de sorrisos e buscá-los-ia
no espelho, na rua, no maior número possível. Sim, o número dos
benditos contava. Mas isso achava Elisa que entenderia escrevendo ou
outra coisa igualmente solitária como gritar na rua depois dos vinte
anos, Sim, sim, nascemos para a alegria. Porém, não escreveu muito,
tirante algumas reflexões sobre o uso e a diversidade das línguas, que
anotou em bloco logo ali nomeado canhenho, pensando enquanto
escrevia assim, Estes estádios da consciência buscam o arcaico na
forma de dizer e a diversidade dos nomes para o mesmo objecto —
como o olho da mosca, eficazmente poliédrico e móvel, está em tudo.
Também escreveu por exemplo assim, depois de um sono súbito, com
um pano do pó na mão, que durou do meio dia solar às três da tarde:
All is all
flower of contentment
come closer,
Porquê o inglês como segunda língua? Porque era a língua oculta que eu
ia desvendando enquanto eles todos falavam francês à volta dos cimos
da minha cabeça, Fais attention à la bonne, mon cher, Faites attention
aux petites, chère. Porque foram os ingleses que inventaram o vinho do
Porto e o Fernando Pessoa, sem querer? Até ao sétimo ano de latim
sempre pensei que, O tempora, o mores, queria dizer, Ó testas, ó Mais.
Ou talvez porque era então, mais que nenhuma outra, a outra língua,
porque a minha pátria nem será já a língua portuguesa.
Mas os tesouros, os tesouros da origem, o barulhinho de primeiro
regato (regaço?) que fazem:
lentilha escapulário
aspidista algália
benzedura caniçal
almejar melancia
roseiral alpendre
estrelícia arvéola
nafta mágoa e mácula
Vou lavar duas camisas. Sempre é um princípio, lorpa. A que vai ser
escritora em português esvai-se da evidência do que ignora.
Eram as coisas assim que Elisa escrevia nesses dias. Podia sentar-se
também durante longos minutos contemplando a pele nova, ainda
rosada, que lhe nascera no calcanhar. Pensava então, Depois de todas
estas reparações, terei ainda algum dia alguma coisa a dizer por
escrito?, e duvidava muito, tal era o prazer que retirava da habilidade
gestual na execução de tarefas manuais que desconhecia, tendo
descoberto por seus próprios meios a temperatura a que um ovo se
estrela sem queimar-lhe a clara nos bordos, sem ficar-se com a gema
coagulada em visco incolor como ranho de gripe recente. Não lhe
ocorria sequer pensar que podia estar demente, tal a veemência de dor
com que a acometiam imagens e sensações do seu corpo no colo ossudo
do pai, tão longe, das lágrimas misturadas no quente das duas faces no
escuro, dela e do Amigo, ou destas duas mãos negras circundando-lhe a
nuca tão compadecidas no adeus, as polpas de polegar no afiado do
queixo, a saudade do par. Tanto quanto sabia, não é das coisas assim
que os doidos se doem, mas do desaparecimento de tudo. Elisa
exercitava-se na manipulação conservadora das coisas, retirava das
plantas as hastes e as folhas que apodreciam, humedecia-as, espalhava
aquele sargaço pelos vasos. Em três dias, as plantas procuravam a luz
sob os seus olhos, mais túrgidas e viçosas, era-lhe quase possível
escutar o imperceptível ranger das fibras respondendo a aflorar de
dedos mornos, subtis trocas energéticas. Sabendo acaso
prematuramente quase tudo da perdição terna com o outro, ela não ia
morrer, afinal. E mais lhe parecia que agora era questão de esfregão de
palha de aço, cadernos de apontamentos escolares, agenda de encontros
memorizada, cabaz de compras, ficheiro de leituras, coisas assim
simples. Do resto ela sabia algo mais que o comum, parecia que isso
teria a ver com escrevê-lo ou falar disso, mas de um outro quotidiano
mais forte. Olhando para o espelho com o cabelo húmido frisando
comprido por debaixo da toalha acrescentava ainda que era já mulher e
que sim, sim, também isso se veria depois, da diferença de solidões, de
gestos milenares. Estava carecendo de ser perfeita em mais matérias.
Que saberei das mulheres se não lavar, fritar, esfregar? E escrevia
então assim em espécie de diário de bordo, só não sabia de que
embarcação ou viagem e que por isso chamou, de
DIÁRIO DE BORCO
Vejo cada vez mais com certeza que existe entre as combinações de
objectos e seus destinos e aqueles que os possuem ou manipulam mais,
uma unidade, uma univocidade. Há criaturas que suscitam à sua volta a
ordem e a duração, outras a proliferação e a graça mórbida, outros a
abundância mas estática, outros a escassez, mas tónica. Outros parecem
rodear-se de cacos de caos, o sórdido, outros a abundância
tropicalmente ordenada, a ardorosa fecundidade. Como decifrar estas
tecituras e as suas margens de demarcação, ver pelo modo como alguém
arruma à noite a sua roupa ou descasca um nabo ou limpa o ranho a uma
criança ou enfia um prego, que mundo sairá das suas mãos, uma
desordem sulfurosa, ávida, uma ordem esterilizadora, letal, uma
desordem leve, lúdica, uma ordem de paz e esforço ameno, humano?
Etnias, costumes? Um montanhês nortenho deixa que a sua casa se cubra
de sarros que a grudem sob as neves, um alentejano ordena os seus
brancos e ama as pausas entre tarefas, coisas, afectos, pondera no liso,
um cigano consente que a pele se lhe vende e o cabelo cobreje e os seus
tachos fumegam gerações de refogo, e dança, dança compactamente, um
negro varre e ordena até a mais informe das suas esteiras, lava infindas
vezes seus meninos e trapos num oco de cabaça, moroso mas fiel ao
ritmo das conspurcações possíveis, em torno a árabes e indianos toda a
realidade fermenta, antiquissimamente prolixa, e os japoneses
estarrecem as flores e movem-se rapidamente pelo mundo, na ponta dos
dedos. Acautelar-se de quem e achegar-se a quem? Temer-se dos que
não dançam porque não sabem onde fica a terra? Dos que não
contemplam? Dos que têm mãos como pinças incansavelmente
esfregadas? Das garras infectadas? Ou de nada, de nada, confiar na
ordenação final onde haverá lugar? Quem somos, que sou?
Adeus Elisa.
Adeus Frederico.
Olhe, parece que vão hoje homens para a lua, não vai ver? já pensou o
espanto do tempo em que vivemos, apesar de tudo,
Nós não vivemos no mesmo tempo.
Adeus Elisa.
Adeus Frederico.
LÍNGUA PÁTRIA
EU KALUPTOS10
Mas algo mais está acontecendo com Elisa que lhe faz perder o sentido
da extrema complexidade das coisas humanas. Ou galgá-lo de uma
pernada, como outrora o intruso do boné que outro não haverá sido,
acaso, quem sabe destas coisas?, outro ser que não o terno visitador
nela das coisas presas que a habitam. Parece-lhe que há-de haver uma
receita próxima e simples como uma só palavra. É muito ignoto o que
procura, mas complicado não. Olha os seus livros, estende a mão no
jogo antiquíssimo do escrito do Sagrado Acaso, são suas as maiúsculas
e assim lhe sai, dando Prazer, ainda sua a maiúscula,
prova que não estava doida é que se riu sozinha voltando para dentro a
comer uma bucha e acrescentando, De Barcelos. Continuou depois
fazendo o que lhe parecia ser estudar pela noite fora, aplicadamente, o
programado,
E então, uma outra vez a pequena Elisa adormece dentro do seu corpo
de adolescência a um tempo lenta e precoce, adormece porque não está
de facto a preparar nenhum exame mas a modular a trajectória do seu
corpo que fala sobre a porção de terra que lhe coube, como um
exercício que se desejaria exemplar de maleabilidade e atenção. Tem
agora os cabelos quase pretos espalhados sobre a cara de feições
agudas e fechados os olhos sobre a íris cuja coloração é variável por
luminosidades ou humor. Dorme no chão porque este seu tempo, cuja
duração não é previsível exactamente, muito se assemelha a uma
campanha. E como dizem que os sentidos no dormir muito nos dão sinal
mais ou menos legível das nossas esperanças e lembranças, sonha ela
que é já madrugada e que vozes a estão chamando das palhas a que vá
avisar o rei, tolhido no pouco território que resta, de que as povoações
estão a dispersar de grandes coisas e que ela, que só sabe avisar, veio
em nome delas, das vozes. Repara então que vai cavalgando por uma
floresta musguenta e cheia de míscaros em cima da lebre vagarosa mas
muito macia nas pernas por debaixo do bibe e das saias. Agarrando-se
afectuosamente ao cachaço da lebre e mal tocando com os pés no chão
suspira, Este continente tem uns mitos um bocado parvos. E a lebre
responde num pincho suavíssimo, curiosamente com a mesma voz que a
da freira da portaria, Agarra-te bem que inda agora vamos a entrar.
ROSA ROSAE
DE PROFUNDIS
A Rosa estava muito doente, minha querida, mas há-de se pôr boa e
voltar, mon petit, Coma, coma a sua papa, só mais esta pelo papá, A
menina sentiu-se muito, minha senhora, mas é natural era ela que —
O quarto que a gente teve alugado durante um ano aquase está desfeito e
suspiro atando sobre a rede de arame do chão da cama o último pedaço
do novelo de corda rala que ele me trouxe na trouxa onde estão as
roupas de cama mais rudes, os cobertores de papa e fioco, o colchão da
cesta do menino que vai ao colo e engatinha ensarilhando-me os pés. O
meu pai está sentado na cadeira à beira da janela com a boina posta à
banda, a que o meu lhe ofertou, a bengala de pau de nogueira com a
rolha de borracha em baixo onde ele descansa as duas mãos, contente
como um rendeiro de aforros. Ali está desde que o ajudei a aprontar,
tirados da cama pelas seis para começar de acabar o enfardar do que
não teve cabimento nas duas malas e baú, que também as atei porque
ficaram a abrir bocas e não fechavam no trinco apesar do meu se lhes
assentar em cima com o peso todo. Já clareava e quando a gente
escancarou a janela o meu pai disse, Cheira a merda do mar e águas
fundas, mas isto está mimoso como a Póvoa. O menino ora bate palmas,
ora guincha de rijo, atrapalhou-me o lidar, mas o meu pai às tantas
pegou-lhe, eu ainda fui a deitar a mão mas avisei-me que dali não vinha
mal, antes pelo contrário, assentado como está. Quanto mais me deita a
mão que pode ao que me vê lidar, mais parece ganhar alento e
destolher-se, ao menos do entendimento e das mãos, que o passinho
segue-lhe peado e não nos acerta com as voltas dos nomes a cada um.
Mas deixá-lo. Nunca mais se descuidou nem nas roupas nem na cama e
só é preciso ajudá-lo ao Domingo na tina, quando muda a roupa, tem
sido o meu. Ela desde que sabe que a gente está de abalada, pouco mói,
entrombada. Se me apanho lá Deus seja louvado e com um nichozinho
para um fogão de três bocas só para a gente com chaminé e tudo, só a
serventia da pia que fica para as traseiras e da tina é que é para todos,
mas a gente vai pôr um lavatório de pé nos quartos e hei-de arranjar
uma celha de plástico para o do meu pai, que tem dado sentido a tudo e
ainda ontem perguntou ao meu, Olha lá, este relógio aí num penhorista
ainda dava qualquer coisa, ó não? Só com os nomes é que não nos atina
e tudo lhe passa da ideia, tirando o que tem muita lonjura de anos que
isso parece que foi ontem, contos e cantigas e passagens da nossa vida
assim no miudinho que nem eu sei já. Chama de Abílio o menino, a mim
é conforme, o da minha mãe, o de uma irmã que ele teve, ao meu nem
sei quem ele nomeia, gente da criação dele, falecidos. Mas que mais dá
os nomes, diz a Estela e bem, A Estela. Ah o nome de um amigo de
peito até alegra o coração a gente largá-lo da boca. Tem sido mais que
uma irmã, veio-me para aqui ontem ajudar-me a embrulhar a loiça e o
talher para dentro das cestas, trouxe-me uma molhada de jornais. Ela
debandou para o quarto que eu da Fátima já fiz ontem as despedidas. A
gente pouca bulha fez que também não é grande trem. Se a gente tiver
sorte e o meu pai se manter assim na mesma, hei-de comprar uma
panelazinha de pressão como a dela e mais duas sertãs, que o menino
começa-me a querer comer, ontem rilhou uma batata frita inteira que eu
lhe dei e umas raspas de isca que eu moí da minha boca. E hoje de noite
foi um sossego, nem o meu pai deu sinal e o meu todo animado, com
espertina, Vais ver, vais ver, não são luxos, mas é tudo boa gente. Eu sei
que lhe custou, que a casa aqui tem outros cómodos, outra apresentação,
mas lá até depois a gente pode pôr o menino no outro quarto quando for
num aninho ou assim, que diz que não é bom estar com a gente, como a
porta abre, se o havíamos de alugar mais tarde fazemo-lo agora, o meu
pai a continuar assim nem é mau de aturar e até me deita um olho no
menino, vamos a ver se a Lídia continua a dar a ajuda, que ela amansou
muito depois daquela desgraça e a Elisinha também me disse para eu lá
ir, se me visse aflita, louvado seja Deus,
Eu, Elvira, pela graça de Deus e dos homens, que não distingo, vejo
agora que a carrinha que o meu homem apalavrou chega agora lá em
baixo à rua esvaziada da aura dos artistas para me levar daqui ao pátio
que é onde vamos morar. Se aqui é mais alto, cheira finamente a mar, lá
em baixo, que é mais perto, há-de cheirar muito mais,
se sabedes novas do meu amigo é que venho perguntar que arte levou
meu amigo há-de a noite encarcerar dentro de fel e vinagre sua boca há-
de fechar com sete chaves de prata e fechaduras de neve que arte levou
meu amigo há-de a febre devorar se sabedes novas do meu amigo é que
venho perguntar2,
Sossego dentro da tristeza da toada. Dou o peito. Agora toca os
vampiros e a Tina que está ali a ver diz que é do Zeca Afonso, mas isso
eu sei, que elas lá não gostavam muito, enchem as tulhas bebem vinho
novo dançam de roda no pinhal do rei. Na mesa de armar que a gente
comprou, aberta no quarto do meu pai onde também já está a cama feita
e a máquina de costura, deponho agora dois pratos e o talher, o menino
reina com os pés com a Tina a abanar-lhe a alcofa. A batata ferve no
meu lume dentro da panela de pressão que a dona Mariana me
emprestou com a sua voz de cantares, Que a gente temos de ser uns para
os outros. E mais me dispensou uma cabeça de alho maior que nabo,
dois pés de rábano, uma alface das dela arrebicada com um cravo
verde gigantão e um cheirinho de coentro que ela diz que o menino já
está em tempo de açorda com os temperos todos. Da chaminé dela
pendem chouriças de sangue, linguiça, paiozinhos curtos, parece a
cozinha da minha gente, mas branca, com um asseio que levanta a vista
e o coração. Louvado seja Deus que cheguei em bem e penduro na
parede o retrato de boda dos meus pais, ela em pé de arrecadas e
quatro voltas de cordão com a cabeça coberta, e ele sentado de colete e
cadeia de relógio e o bigode farto, revirado. Cheguei. Pela tardinha hei-
de regar as minhas sardinheiras à porta, juntar para uns vasos de ervilha
de cheiro pendidos do beiral, uma ou duas frangas que não estorvam
presas pela pata ou ali para os terrenos da dona Mariana. Já chorou de
o filho estar para a guerra e eu disse-lhe que havia de vir em bem com
aqueles aleijadinhos do hospital atravessados em mente. O meu é que
sabe. A mercearia é farta e a peixaria a dois passos. Vou-me ao pão.
Linda coisa é este terreiro arredado numa cidade assim tão grande. Que
ele vem logo e há-de estar tudo num brinco. Sempre é mais tempo de
eléctrico, mas deixá-lo, farda na plataforma não paga. A rádio está
quase a dar o romance. Deixá-lo. A cachopinha lida-me com o menino
assentado na coberta no chão semeado de sal do pátio, perguntei-lhe,
Atão tu não vais à escola?, e a dona Mariana fez-me sinal que ela é
lenta da cabeça. O meu pai está a contar o caso do corte das águas ao
vizinho reformado que lhe ofereceu do três vintes nos dedos que
também tremem, os cachopos malham na bola de meia que fazem içar
aos peitos, Remata pá, ganda nabo. Saio com o saquitel do pão
engelhado da trouxa mas limpo, meu coração achou por agora lugar
onde medrar, pousar em paz, sempre hei-de fazer a vontade ao meu e
seguir a cartilha aos serões. As portadas da casa da Estela estão
fechadas que ela deixa o menino na creche e larga pelas seis. Vou-me
pois ao pão. Na rádio toca agora aquela dos Beatles que o meu diz a
rir-se que é a do sargento Pimenta, os canários aquietados trilam alto,
gorjeiam delicado, É pá, passa, pá, este gajo, tem a mania, pá,