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Casas Pardas

M aria Velho da Costa

Publicado em Portugal p or
Assírio & Alvim
www.assirio.p t

© M aria Velho da Costa


Prefácio © M anuel Gusmão
© Porto Editora, 2013

Na cap a: Ut Volent, p intura de M enez

1.ª edição em p ap el na Assírio & Alvim: Agosto de 2013

Assírio & Alvim é uma chancela da


Porto Editora, Lda.
PREFÁCIO

CASAS PARDAS — A ARTE DA POLIFONIA


E O RIGOR DA PAIXÃO: UMA POÉTICA
DA INDIVIDUAÇÃO HISTÓRICA
Dedicatória

«o mau é cada um ao seu, quem não gosta do que


há devia ser do toma lá, dá cá.»
II Casa de Elisa

Casas Pardas, quando saiu, teve o merecimento e a fortuna de ser


lido por Maria Alzira Seixo, Margarida Barahona e Luís de Sousa
Costa. Das duas primeiras leituras, tenho rasto escrito (nas revistas
Colóquio / Letras e Abril) que, no que agora escrevo, se prolonga. Há
depois rastos orais, conversas, por exemplo, com a Elvira Nereu ou o
Carlos Aboim, com o Joaquim Brás, o José Garibaldi ou o Mário de
Carvalho. Por aí se tece ainda a leitura que é aqui assinada com um
singular que, também, só o pode ser por se inscrever nesse plural de
vozes. Permite que inscreva ainda o nome da Lala, filha do Dinis e
também do Alentejo.
Um romance nos idos de 1977

«Uma história deve ser em si uma invectiva sem


ter que rematar com a língua de fora. Mas
temam-se, ó seus portugueses, de não estar sós
com os elementos simples, de não amar ao menos
uma vez terrivelmente, pelas páscoas. Esta zona
da geografia que parece limítrofe, praia chã de
lota modesta, exige muito dos peitos. Prova é que
está cheia de poetas fechados.»
V Casa de Elisa

A várias vozes e de vários lugares se tem falado de uma eclosão do


romance ou da ficção narrativa portuguesa nestes anos que vêm vindo
após o 25 de Abril de 1974.
Maria Alzira Seixo, apreciando os dez últimos anos de ficção,
enumerou em síntese os traços daquilo que considerou ter começado a
ser «um outro tipo de expansão da escrita»1. É certo que alguns desses
traços, que elementos de renovação e de preparação dessa eclosão vêm
de antes, como o notou Eduardo Lourenço, ao pensar o que de
libertação se processa na obra de alguns autores que são mulheres2.
Mas é inegável que se trata de um fenómeno global, de uma eclosão.
É, na ficção, uma qualitativamente nova diversidade múltipla, que
se expande, acompanhando de maneiras várias o complexo,
contraditório, ameaçado e resistente processo de libertação social,
política e cultural desta zona da geografia de várias formas limítrofe, o
entretecimento conflitual do acender e apagar (ou da aparência disso)
de novos (e velhos, ou não tão novos) horizontes.
Se a revolução portuguesa no seu fluxo e através mesmo dos seus
refluxos é a irrupção irrecusável de gentes inúmeras na cena política, a
irrupção de uma fala tacteante e truculenta, construção de uma voz
múltipla e abertura de um violento diálogo, numa aceleração e
distensão que exibem a evidência de que é história, mesmo nas suas
denegações, aquilo que vivemos; no ritmo e modo outro, específico da
ficção, é também a libertação do contar, a profusão dos modos de
narrar e das histórias, a proliferação das escritas falantes e das falas
individuando-se.
Não é só, mas também, «a proliferação de novos ficcionistas» e dos
modos do diálogo e da ruptura com os grandes, vindos de antes; é a
multiplicação dos autores-mulheres por onde vêm às linguagens
literárias significativas diferenças. Mas é também uma real diversidade
de escritas e de poéticas, uma diversidade estética, compositiva,
estilística e temática; a invenção, redescoberta e miscigenação de sub-
géneros romanescos; a desenvoltura na diversificação das referências
culturais e na utilização das técnicas literárias. E, trabalhando nisto
tudo, mais visivelmente nuns casos do que noutros, uma operação de
poética, uma estratégia, não necessariamente prévia, trabalha. A de uma
aguda, empenhada, subtil e aberta procura das figuras ou dos gestos
figurais de uma «identidade nacional», como algo em construção
urgente e combativa, certamente complexa e mesmo contraditória, —
uma gestualidade eminentemente histórica.
Tudo isto porque creio ser necessário dizer, lembrar, aqui — esta
eclosão tem sido notada e tem tido os seus factores e reflexos
publicitários e comerciais, em termos de mercado, sobretudo a partir
dos anos 80 — que Casas Pardas é seguramente, no mínimo, um dos
maiores romances do período inicial desta eclosão, e um daqueles em
que várias das encruzilhadas desta modernidade se deixam ver em
acentuada filigrana, se cruzam e se constelam de uma forma
poderosamente singular.

1 In Colóquio / Letras, 78, M arço de 1984.


2 In «Envoi et Adieu à M adeleine», L’Enseignement et l’expansion de la Littérature Française au Portugal, Fondation
Calouste Gulbenkian, Paris, 1984, p p . 237-247.
Princípios de construção:
As casas e seus títulos, os nomes
e os pronomes pessoais.

«É noite. Este capítulo é nocturno como tereis


decifrado já pela sequência algo rígida da
sucessão aqui dos dias e das noites. A literatura
moderna serve para demonstrar a irrelevância da
evidenciação de processos de mostrar.»
V Casa de Elisa

A mais visível e evidente organização do romance é em cinco


sequências de «casas». As duas primeiras e as duas últimas são
constituídas por três «casas», a sequência central, «a terça casa», é um
fingimento de texto dramático, organizado já não em três capítulos mas
em três actos. Cada «casa» é designada por um algarismo, que indica a
sequência em que está incluída (I, II, IV e V), pelo nome próprio da
personagem que a «ocupa», e por um título, que é o nome próprio do
texto que constitui a casa.
Maria Alzira Seixo mostrou já a polissemia desses títulos, o modo
como são atravessados por «um complexo intrincado significativo».
Insistamos em que cada palavra ou sintagma titular é multipla e
diversamente reinvestido semanticamente pelo texto do capítulo, que de
diversas formas integra reescritas dessas palavras ou sintagmas. Anote-
se apenas que a I casa se intitula Vaga (casa de Elisa) e a última Atrium
(casa de Elvira). Vaga é, entretanto, também o título do terceiro e
último bloco narrativo do romance anterior de Maria Velho da Costa,
Maina Mendes. O eco é de várias formas significativo. Significativo
dos modos como a coerência do percurso literário se constrói,
significativo dos fios que unem, nas suas claras diferenças, os dois
romances. Articulação possível e aliciante entre Matilde, a filha amada
pelo pai, a filha que cumpriu separação (até política), e que estando
longe anuncia o regresso, e Elisa. Como entre a avó Maina, a Muda, e a
bisavó Elisa, a Douda. Como entre a mudez rebelde de Maina, a
procura de escrita de Elisa e a exiguidade de palavras de Elvira. Nesse
último bloco do primeiro romance, vaga pode-se dizer da casa onde
Matilde ainda não voltou, onde o seu pai se suicidou já, da casa onde a
avó Maina trabalha e espera. Vaga quer dizer a suspensão, na qual
termina esse romance. Como, aqui, em Casas Pardas, vaga está a casa
de Elisa, no sentido em que esta está em suspenso, no sentido em que
Elisa não ocupou ainda decisivamente a que deverá ser a sua casa, casa
a descobrir, a habitar, a assumir, para lá da consumação da separação.
Atrium é, por sua vez, o título do primeiro (e último) capítulo de
Elvira na sua nova casa, e diz esse lugar como o do início de uma nova
habitação.
Entre uma casa Vaga e uma casa Atrium se move este romance,
entre o seu início e fim; entre uma abertura em suspenso e um final de
abertura: Vaga e Atrium, dialéctica da ainda ausência e da promessa de
presença, ambos lugares para dizer um movimento e os seus modos;
gestos, figurações, apelos ao movimento.
A sucessão das sequências acompanha, como o próprio texto da
primeira casa da última sequência o exibe (passagem citada em
epígrafe), a sucessão dos dias e das noites: I — manhã, II — entardecer
e noite, / «terça casa» — noite /, IV — manhã, V — noite (a V Casa de
Elvira é de manhã à noite). Na primeira, segunda e quarta sequência, a
sucessão das casas, repete a ordem dos nomes próprios das
personagens: Elisa, Elvira, Mary; e organiza-se segundo o paradigma
dos pronomes pessoais Eu (Elisa), Tu (Elvira), Ela (Mary). O papel
organizador da sequência dos pronomes pessoais (como o mostrou
Margarida Barahona) evidencia-se pelo facto de, na última sequência,
se alterar a ordem nominal das casas, mantendo-se, entretanto, invertida
agora, a ordem dos pronomes pessoais. Assim: Elisa — ela, Mary —
tu, Elvira — eu. A sequência e o livro fecham assim sobre a nova casa
de Elvira que diz eu.
«A terça casa», por sua vez, imitação de «teatro», sequência
central, é a única em que as três personagens das casas se reúnem, se
encontram num espaço, numa casa. Note-se entretanto que tal encontro
só se dá nos actos terminais, no primeiro e no terceiro, que são os actos
na cozinha, enquanto o do meio é na sala de jantar e aí apenas se
encontram, com outras personagens, Elisa e Mary. Pelo próprio efeito
de o texto se distribuir em «falas», todas estas personagens dizem eu,
são invocadas pelo tu (ou forma correspondente) e são referidas na 3.ª
pessoa.

As Casas

O que é cada uma destas casas?


Desde logo, um capítulo, parte orgânica de um texto narrativo. A
sua designação titular, o facto de serem centrados numa personagem, o
rigor da sua distribuição, posição e sequência (o que inclui as
alterações na última sequência) fazem deles capítulos especiais, com
uma autonomia relativa maior do que tradicionalmente, uma acentuada
rendibilidade combinatória, uma múltipla produtividade semântica.
Repare-se tão-só que a simples organização das casas-capítulos em
grupos de três unidades fortemente distintas e as regras da sua
distribuição sequencial complicam, transformando-o, o modelo de uma
aventura linear. Acabaremos por ter três aventuras complexas e os
gestos e movimentos de uma outra, que através daquelas se tece.
Numa casa destas, pode viajar-se de automóvel e ir jantar fora, ou
ir à praça, ou deambular pela cidade, ficar em casa, morrer, ou mudar
de casa. Numa casa, podem vir ecoar as histórias de outras casas, os
projectos de uma outra casa. Cada uma destas casas é o espaço dos
gestos de um corpo individual e social, de um corpo feminino; é um
momento da relação de uma personagem com o(s) seu(s) nome(s), a
modulação da «trajectória do seu corpo que fala sobre a porção de
terra que lhe coube», fulguração de um «destino», de um processo de
individuação (ou, no caso de Mary, do processo da frustração dessa
individuação). Nesse sentido, trata-se também das casas astrológicas de
que fala Maria Alzira Seixo. Mas ainda, deslocadamente, das moradas
de Teresa de Jesús, já não como aposentos do «castelo todo de
diamante e mui claro cristal» que é «a nossa alma», mas lugares de uma
outra experiência fundamental. Assim, a última frase da última casa de
Elisa é a versão, em contexto e modo irónico, de uma frase do final do
primeiro capítulo das «Moradas Primeiras» do livro de Teresa de
Jesús: «Agarra-te bem que inda agora vamos a entrar» reescreve
«Harto hace en haber entrado», e situa esse momento final de Elisa,
como apenas a fase de abertura de um processo (um atrium).
Assim, estas casas são ainda lugares habitados ou, mais
rigorosamente, em processo de habitação, desabitação ou mudança de
vida — geografia humana. Lugares de um espaço individual e familiar,
social, histórico e nacional: «casas pardas». Espaço multiplamente
clivado, diverso, atravessado entretanto pelo desejo e a necessidade
dos seus habitantes se decifrarem «como gente, nação ou tribo». Cada
lugar destes é, depois, um lugar compósito, feito das suas divisões e
dos seus valores sociais e culturais, dos seus valores simbólicos. É
ver-se como nas várias casas se jogam as suas partes: as míticas
cozinhas, as diversas casas de banho, os quartos de criança, do amor,
da solidão, do espectáculo da morte, e do suicídio, as salas de trabalho
ou dos jantares rituais, o pátio do «monte» ou o pátio da comunidade de
bairro, etc., etc..
As casas não são transparentes: em cada uma há sempre a relação
com outra ou outras, nomeadamente casas no passado e na província,
porque estas, as presentes, são em (de) Lisboa. E nessas relações, num
sistema de ecos e imagens, comparecem as famílias e os seus dramas,
os fantasmas do desejo, as invocações da preferência, os lutos das
ofensas e desamores, a memória das provas.
Radicadas num solo, ancoradas na cidade, as casas não são fixas
nem imutáveis, são lugares de movimento, de trânsito, de pequenas e
maiores mudanças, de transformações. Uma casa é como se verá um
lugar que se pode ir mudando, transformando por dentro (como a de
Elisa); pode ser uma casa que se abandona (a de D. Marieta, por
Elvira, ou a de Mary, por Elisa), como um lugar para onde se pode ir,
onde se pode chegar (como a nova casa de Elvira: mudar de casa —
mudar de vida). Pode ser o casulo poroso ao mundo, onde o bicho
desenovelando-se, tenso e atento, se metamorfoseia (a de Elisa); mas
também pode ser essa cápsula onde (de que) alguém morre, se dá
morte, essa cápsula espacial por onde alguém regressa, morto, à
indiferenciação (a de Mary), único gesto ainda possível de impugnar a
desolada habitação imposta.
Casas fazem-nas as cidades, que delas se fazem também. E fá-las o
seu habitante íntimo. Se as não fizerem as cidades, como as fará ele?
como será a cidade? Mas se ele as não fizer, que serão as cidades
senão «sepulcros branqueados».
Uma casa é um lugar no(s) tempo(s), um lugar social e histórico de
individuação. A construção por casas é um dos gestos da construção
antropológica em Casas Pardas.

Os Nomes

A propósito de Lucialima, Margarida Barahona e Silvina


Rodrigues Lopes mostraram o carácter jogado dos nomes próprios na
ficção de Maria Velho da Costa. Casas Pardas exibe essa
funcionalidade múltipla com que a tecitural textual e narrativa investe
tais nomes. Não é tão-só o facto de as moradas se distribuírem pelos
nomes próprios das personagens assim principais; mas sobretudo os
jogos e trabalhos em seu torno, e a própria recorrência, diversa
embora, com que a questão do nome e do chamamento se inscreve ao
longo do livro.
Mais do que fixa, unívoca ou indiferente representação de
indivíduo, o nome é um lugar de investimento e de procura, de trabalho
da significação; mais do que o sinal simples de uma identidade civil, o
nome é atravessado, sub-tendido ou trabalhado pelo movimento de
individuação; o nome é o modo como cada um se procura, como cada
um ouve o chamamento dos outros. O nome torna-se assim uma
inscrição flutuante, lugar do debate da personagem consigo mesma e
lugar de exposição à voz (ao fazer) dos outros.
A relação de cada uma das três personagens com o seu nome é
diferente, e essa é uma das diferenças constitutivas.

ELISA, cuja primeira «casa» está (é) «vaga», e que se move para a
ocupar, para aprender aquilo em que se deve transformar e assumir —
escritora que se procura até ficar representável numa terceira pessoa
narrativa — é a que mais evidente e exibidamente trabalha o seu nome.
Personagem de palavras, personagem em «espera explicativa», pode
ouvir o seu nome como vazio («chamarem-me pelo nada do meu nome
próprio»), e por isso o seu trabalho é aqui o das tentativas de re-
motivação do nome, o da variante procura da fundação do seu próprio
nome, de forma a reduzir-lhe o arbitrário linguístico, a
convencionalidade familiar e social. Que esse como que sinal se motive
linguisticamente pela deformação paronímica, pela invenção de uma
etimologia, pela associação com nomes comuns, pelo jogo de palavras,
são os gestos de uma procura de dizer-se, de procurar-se um sentido,
significações que sejam vivíveis. Os seus «trabalhos de casa»,
copiando textos alheios ou fazendo as suas redacções, na sua II casa,
são explicitamente referidos como «a destinação de quem copia a
dúvida da identidade própria». A procura da motivação do nome
próprio é duplamente a experiência dessa dúvida sobre a identidade e o
traçado da sua procura por aproximações sucessivas, trabalho de
individuação. Trabalho que começa logo na primeira casa, onde estão
já formas várias do nome, e algumas delas, proferidas por diferentes
personagens: Maria Elisa, Elisa, Elisinha, Zizi, Zizinha; e onde os
primeiros gestos de motivação surgem: «Elisadédala», construtora de
labirintos; «Zizieuropa», continente à espera de que a parte que
touro(?). Tais gestos repetem-se, duplos ou mesmo triplos, na II, na IV e
na V casas: «Elisa Elisão / A Lusa Alusão»; «Elisa quer dizer o quê, a
eleita ou a elidida, suprimida? A elisão evita o hiato. A eleição evita a
bruteza clara, é a evitação do argumento da força? Dilecta, a que
deleita, para que fim? Estava a pensar no meu nome quando […]»;
«Considerou ainda nessa noite a proximidade de raiz semântica do seu
nome ao de Electra, a que atrai pela pertinácia do seu clamor de
reparação e ao de elektron, em grego o âmbar amarelo, esse cálculo de
petrificada resina translúcida, seiva volvida coriácea que atrai
partículas leves se insistentemente friccionada, quente, tida em mãos
que indaguem, rara, achável na orla de mares nórdicos contendo por
vezes um pequeno insecto incorrupto, suspenso morto.»
Todos estes gestos operam uma espécie de re-semantização do
nome próprio que funciona em dois movimentos; por um lado, a
caracterização da personagem enquanto processo de individuação
singular, por outro, o processo, interiorizado naquele, da sua
determinação familiar, mítica mas também social e histórica.
A determinação familiar faz-se, também, de duas formas: por um
lado, a ligação expressa com o nome da «bisavó Elisa, a Douda», a que
se pode atribuir ecos da personagem de Maina Mendes, a Muda (do
romance com aquele nome); por outro lado, a verosimilhança que as
alusões ao drama familiar de Elisa concedem à relação estabelecida
com a personagem mítico-literária de Electra. Elisa é de facto uma
espécie de Electra, marcada pela preferência do Pai e pela grande
imprecação que pede justiça. Electra é aliás o topos que permite
também simbolizar aquilo que o romance constrói como sendo um dos
aspectos da unidade complexa do trajecto de Elisa, a unidade entre o
drama familiar e o drama sócio-histórico, o drama político. E nesse
sentido, ainda, esta é uma maneira de o romance «provar» a tese de
Elisa: «as pessoas são na vida política o que são na vida pessoal».
Essa última componente daquela unidade manifesta-se, nos próprios
jogos sobre o nome da personagem, que o tornam uma questão nacional
e uma questão histórica, de classe. Elisa é «a lusa alusão», a portuguesa
(«É portuguesa, está doente? Sou portuguesa, posso vir a estar doente,
donde é que você vem?»); a que toma para si, como questão sua, a
resolver, a da sua nacionalidade, a lusitanidade do bairro, da cidade
(«Mas Elisa está obcecada com a sua nacionalidade por resolver.») E:
«Isto é uma abertura insuportável e eu não me chamo marcelisa, a lisa
deste Março. Estou contaminada de verve pseudoliberalizante, espécie
de delírio de preso em cadeia com ar condicionado, lawn e lavandaria
mecânica. É Março, embora, e alguma primavera urgiria, um destes
anos.» É a referência histórica levada à minúcia da alusão à conjuntura
política. Mas é, também, pela inscrição do gesto de demarcação, que
figura a posição nessa conjuntura, e do gesto que diz o desejo de futuro,
a operação de mostrar o ético e o político como constituintes da
individuação, de tal forma acentuados, que atingem a determinação do
nome próprio.

MARY sofre o(s) seu(s) nome(s). Eles são as suas marcas,


imposições dos outros que nenhuma vida própria, activamente,
trabalha: Maria das Dores, Mimi, Mary.
O nome inglês, que a designa em título de casa, diz a banal
pedanteria, socialmente marcada, que a «desnacionaliza» e
«brandamente» a irrealiza e anula, lhe faz um lugar estreito, entre nomes
de produtos, de objectos, dos sinais exteriores de um «status social» em
que se desabita.
O livro exibe expressamente esse funcionamento dos nomes:
[Elisa] «— Você crismou-a em inglês e chamou-lhe
irremediavelmente parva.
[Frederico] — A Mimi já era parva».
A resposta de Frederico atesta o irremediável da violência imposta
«pelos nomes», pelos chamamentos, a Mary. O diminutivo que não se
«ultrapassa», senão em inglês, é já essa condenação, essa destinação
sofrida, pelo menos, dito como o diz Frederico. Entretanto, no capítulo
encerrado na infância, a casa post-mortem, onde fora possível a
preferência, esse diminutivo fora apenas o nome de uma criança, dito
por quem a preferia, a criada Rosa. Um dos gestos que mostra como o
mesmo nome é um nome diferente, segundo quem o diz, como o diz e
como é ouvido; que revela o próprio nome sobredeterminado pelo
chamamento.
O nome de baptismo é aquele que Mary pode reivindicar, perto do
suicídio, num momento de assomo de perdido desgosto e de esboçada
assunção da identidade própria, por outrem estranhada:
«— Era só para saber se a menina se sente bem, minha querida,
achei-a tão e, baixo no carro,
— Vá à merda, seu lula chocha.
— Desculpe, Elisa, enganei-me no número, eu,
— O meu nome é Maria das Dores.»
Insistente crueldade esta — que o assomo de raiva faz que a
confundam com a irmã.
Mas mesmo esse nome primeiro traz já ironicamente a sua marca
destinadora, imposição como que inelutável, como o comenta uma
personagem fugaz, no mesmo capítulo encerrado na infância: «É Maria
das Dores, Raio de nome mais triste que lhe haveram de pôr à gaiata,»

A actividade sobre o nome é ainda diferente em ELVIRA. Esta é a


personagem em que mais nitidamente o trabalho da individuação se
cumpre, sobretudo, sob o nome; aquela onde o relativismo da nomeação
é mais exposto. A individuação é aqui coisa de gestos, de cumprimento
de tarefas, de eficácia e gozo do corpo, de afectos simples, de assunção
da família (a que se herda e a que se produz).
Mas, Elvira sofre que o pai lhe não dê o nome. Um dos traços da
decrepitude deste, juntamente com o não conter as excreções e com a
dificuldade em mover-se, é o trocar os nomes (e logo as pessoas).
Repetidamente, nas suas casas, se diz essa tristeza de que o pai não
nomeie certo: «Ai és tu, mas não diz o teu nome.» Disso se queixa a
Estela, mas essa, o anjo operário da anunciação (a que anuncia a
mudança de casa) lhe vem a resposta: «que mais dá um nome [?]».
Elvira é o lugar da relativização do nome próprio, sinal indiferente do
que de individuação se trabalha. Mas ela reage à troca dos nomes, tem
o seu por nome seu: «mas eu não sou Maria, homem, Deixá-lo, é como
se fosses e este é que é o meu sentir» — está o homem dela dando-lhe
um cravo de papel com uns versos onde esse nome outro está escrito; e
assim a invoca, deslocadamente, mas invocando-a de facto como
preferida, como presença tutelar do seu universo masculino. Ou seja,
embora com outro nome, é a ela que ele chama.
Que o nome se relativize, que pareça indiferente e entretanto
assumidamente próprio, que, aqui, seja tranquila a habitação do nome é,
por um lado, a exibição desse trabalho inferior aos nomes que funda a
individuação, mas é também sinal da exiguidade de palavras e do valor
do uso e jogo delas, a que socialmente Elvira é obrigada. Atenção,
pois, à valorização precipitada disso; releiam o discurso de Elvira ao
falante em seu nome.
Repare-se ainda no valor, aqui, do diminutivo «Vira» — é o da
família aceite e o da amiga solidária; não a imposição de uma
menoridade como em Mary.

Os nomes são em Casas Pardas um dos modos de construir na sua


diferença as personagens, de definir a sua construção narrativa, os
nomes são plenamente objectos do trabalho da escrita, instrumentos
narrativos, gestos de poética.
E valerá a pena, então, reparar como, neste jogo de investimento
dos nome literários, se aproximam os nomes de ELIsA e de ELvIrA, e
se distingue o de Mary. Por aí passa também a construção verbal dos
valores semânticos e ideológicos.

Os Pronomes Pessoais

«porque a minha pátria nem será já a língua


portuguesa.
(…)
A minha pátria são os pronomes dolorosamente
pessoais.»
V Casa de Elisa

Entre estas duas frases, exercícios de escrita de Elisa, na sua última


casa, gestos pelos quais a escrita do romance se auto-refere, joga-se
algo de fundamental da estratégia discursiva deste livro (e também da
sua historicidade). Joga-se o intenso compromisso entre a vida verbal-
literária e a vida intersubjectiva e histórica que naquela se investe,
produtiva e transformada. Desenha-se o território da obra e da
subjectividade não no quadro da língua como sistema abstracto e
transcendente, mas no quadro do sistema polifónico do discurso. A
«pátria» não será já um tesouro comum, mas o terreno móvel de
interlocuções, de preferências, de unidades complexas, da unidade do
distinto diferente.
Gestos polares da polifonia intersubjectiva, os pronomes pessoais
organizam, como se viu, a distribuição das casas nas sequências do
livro, e é a alteração da relação entre o nome da personagem e a pessoa
pronominal, na qual é dita, que constitui a grande operação, que na
última sequência fecha, em movimento, a construção das personagens.
O sentido da alteração (diferente em cada uma) é um dos gestos que
simbolicamente diz o trajecto das personagens e a orientação da escrita
sobre elas:
Elisa: de eu passa a ela
Mary: ela — tu (a mudança verifica-se logo no último longo parágrafo
da IV casa de Mary)
Elvira: tu — eu
Assim:
ELISA diz ostensivamente Eu e, na primeira Casa, mesmo
maiusculadamente. Singularmente, esta ostensão da primeira pessoa dá-
se em casa Vaga, em personagem que aprende para escritora, e em
percurso de dúvida e procura da identidade própria. Percurso que é o
de uma aprendizagem da escrita, não como aprendizagem técnica — a
personagem exibe desde o início consciência de uma desenvoltura
verbal (retórica) à procura de emprego —, mas como aprendizagem de
vida, ou seja da grande e necessária razão de escrever. Percurso que é
também o da consumação da separação familiar (e de classe), do
recolhimento solitário e de encontro com o Outro — o encontro com o
escravo-liberto príncipe: O Negro. Libertada pelo liberto, é a seguir a
esse encontro, questão de Eros, de nacionalidade e de natureza
terrestre, que Elisa pode assumir-se como (europeia) portuguesa e
como aquela na qual se trata também de mudar a «natureza da terra»,
porque «a nossa natureza é da terra».
Personagem de autora, aí chegada, personagem que escreve, poderá
então ser dita na 3.ª pessoa. A passagem do eu ao ela com que se
constrói revela que quem diz «eu» é uma personagem. Sendo embora
uma personagem escritora, compreende-se então mais claramente que é
a personagem de um livro e não imediatamente a figuração do seu
autor. Ou seja, não é confundível com a pessoa da escritora que este
livro escreveu.
Ao mesmo tempo, a substituição do eu por esta terceira pessoa diz
exemplarmente o processo pelo qual o EU de autor se «esconde», se
transforma nesse «insecto incorruptível, suspenso morto», na escrita e
no objecto ideal que ela cria: o texto. Mas ilumina também esse
processo como um trabalho de individuação que se dá num entre-
sujeitos, dividido e social, coisa produzida e trabalho de a produzir,
socializado texto.
MARY é longamente narrada na 3.ª pessoa. E esse é um dos
processos, um dos funcionamentos que determina as suas casas e faz a
distância da personagem à voz que a faz e à difícil voz própria. O ela
ajuda a fazer de Mary uma espécie de «não-pessoa».
Émile Benveniste considerou que as expressões da pessoa verbal
são organizadas, no seu conjunto, por duas correlações constantes: «I. a
correlação de personalidade opondo as pessoas eu/tu à não-pessoa ele;
II. a correlação de subjectividade, interior à precedente e opondo eu a
tu». Benveniste recusa assim que a «3.ª pessoa» tenha a marca
linguística de pessoa. Ela não teria a unicidade específica, nem a
reversibilidade de eu e tu. A «3.ª pessoa», que é «a única pela qual se
pode predicar verbalmente uma coisa», teria por característica e por
funções constantes «representar um invariante não-pessoal e nada mais
que isso».
Pode evidentemente criticar-se a análise de Benveniste, como o faz
por exemplo Catherine Kerbrat-Orecchioni, que recusa nomeadamente
que a forma da «3.ª pessoa» tenha por função representar a não-pessoa.
O que interessa aqui é mostrar que, em Casas Pardas, o ela conferido a
Mary parece poder ser lido, num sentido metafórico, como
precisamente construindo-a num juízo de não-pessoa; mas a própria
passagem ao tu, com a consequente invocação da personagem, apaga
aquele juízo e parece mesmo poder exigir a anulação daquela
possibilidade.
Referida na 3.ª pessoa, Mary parece ser, de facto, construída e
contada pela distância da voz narrativa em relação a ela e pela
distância, nela, entre os seus gestos e movimentos e a possibilidade de
uma voz própria, de uma voz correspondente à de outros. Esse é no
romance o tempo em que Mary não é de facto sujeito ou objecto de
preferência viva. Ao contrário de Elisa, que pode dizer que muito amou
e foi amada já, de Elisa, que o pai preferiu e que da mãe se afastou,
Mary tem distante o seu corpo, perdida a unidade do espírito, vagueia
desamada e aquosa, sofrendo a não preferência do pai, e sem
preferência que possa ou preferência viva que a provoque. Mary — 3.ª
pessoa arrasta-se por entre vozes que, mesmo que a nomeiem e a
invoquem, não a movem. Sob a 3.ª pessoa, Mary está ausente do
diálogo constitutivo. «A terça casa», lugar exemplar da dramatização
intensa e declamatória de vários fios da narrativa, exibe essa solidão
de Mary à beira do desmoronamento: a história que conta
sistematicamente interrompida e sem ser ouvida, e o bloco seguido do
seu desamparado discurso de vítima de injustiça e humilhação, discurso
da impossibilidade e da injustiça de viver sem se ser preferido por
ninguém que viva. Estes dois discursos mostram como, para além de
não poder ser interlocutor de diálogo vivo, Mary não pode já sê-lo do
diálogo convencional e pobremente ritualizado dos seus pares sociais;
e este é o traço de humanidade que lhe é concedido, quando o seu
discurso está já invadido pelo trabalho da morte: «Era isto que eu
queria dizer. Que tenho muita pena e que acho que não se deve viver
assim.» Só Elisa de alguma forma a ouve e lhe responde, invocando-a
no que é já uma espécie de adeus triste e impotente: «Ó espécie de
Marylinda». A «resposta» do marido é um gesto mais de infantilização
imposta à personagem, infantilização que aquela-que-vai-morrer sofre
tragicamente: «Não quero ir para a cama».
O tu dado a Mary, no final da IV casa, quando se trata de «contar» o
seu suicídio. Singular eficácia narrativa e simbólica: é-lhe dado o tu
quando ela definitivamente se ausenta; sinal ainda de que esse
ausentar-se (esse suicídio) é o único gesto de vida que lhe é consentido.
E que o momento em que executa o único gesto de preferência que
verdadeiramente faz é o momento em que se torna invocável, pessoa
viva, entretanto morrendo. E assim o tu é um gesto de piedade
irremediável e uma homenagem fúnebre. De qualquer modo, esse gesto
da escrita constitui-a em pessoa, mesmo que reduzida, no momento em
que vai morrer.
Especial elogio fúnebre porque não são as virtudes humanas de
quem morreu que se elogia, mas a radical possibilidade e direito à
preferência de qualquer humano que se enuncia.
O tu que atravessa toda a V casa é também multiplamente
significativo. Amplificando o tu da criada Rosa (Rosa Rosae) é o gesto
da preferência passada de que Mary foi objecto; mas essa preferência
deu-se e morreu (Rosa morre, como a de William Blake, (re)diz o
texto), numa casa inteiramente encerrada no passado: esta é a única
casa (capítulo) do romance que se passa toda no passado, casa da
ternura e da preferência, dada por servidor, casa do oiro enterrado,
casa para a qual não houve regresso («mas nunca mais te lembraste, ou
te lembraram, e depois»). Este tu, também de homenagem póstuma,
mostra, entretanto, que não há exclusão definitiva ou fatal na 3.ª pessoa,
mostra Mary como a individuação reprimida e não como pura ausência
de individuação — e nisso vai uma antropologia e uma moral. A
construção de Mary não é o gesto de uma «sociologia vulgar». Por estas
modulações da escrita narrativa, Mary não é o momento de repouso de
um texto intenso e veemente, antes uma das formas da veemência
rigorosa.

ELVIRA tinha sido invocada pelo Tu ao longo das suas três primeiras
casas, gesto que mostrava já a sua particular posição no livro,
movimento de uma interlocução veemente, retoricamente poderosa, e
tão estranhável que merece uma explicitação, na sua II Casa: «DE
EXPLICITACIONE GENTILE / Porque dizes tu, Tu, a criatura que se lhe
disseras o que dizes tu não te entendera?, dirão-me os que me dizem tu
ao que diz eu. […]». Explicitação que é um momento admirável de
ostentação da inverosimilhança da interlocução e de imposição da
significação dessa interlocução: movimento de preferência, de
homenagem e de apelo, movimento que constitui intimamente a voz que
neste livro escreve, o sujeito que nele se constrói. Elvira é (com
Angelo) a figura polar do Outro que permite a constituição do sujeito: o
outro nacional, o outro de classe, o outro da escassez de palavra
imposta, o «desmunido de verbo» que sob o nome se individua. O outro
que, pelo seu estatuto social e histórico, comunica com Angelo, com
Rosa, com Osório (do texto «Amor à Pátria»). O Outro cujo movimento
de individuação é necessário a que se cumpra o do sujeito, e que
ocorre, no sistema do livro, acompanhando o movimento de Elvira.
Elvira assume o eu, toma finalmente a palavra na sua última casa
que é também, sintomaticamente, a última do livro, devido à alteração
da ordem dos nomes, submetida, lembremo-lo, à inversão da ordem dos
pronomes.
A mudança do pronome é no conjunto das alterações pronominais o
único caso da reversibilidade do tu em eu, construindo assim a situação
de diálogo que figura o intenso dialogismo do romance. Tal figuração
do diálogo, em que a personagem assume o eu, é de tal forma marcada
que, nesta casa, a personagem interpela o discurso do livro em que se
faz e que a faz, o que é manifestamente um movimento de «resposta» à
«Explicitacione Gentile» da II Casa, na qual era o discurso do livro que
se autojustificava em diálogo com os leitores prováveis e a própria
personagem. No momento do tu, a voz do livro interpelava assim
aquela a quem dizia tu; agora a voz que diz eu (a da personagem que a
ele acede) interpela aquela outra que lhe dizia tu (e esse era já um
momento na estratégia de construir a sua individuação). Fá-lo no
discurso que dirige «ao falante em meu nome» (aquele que lhe dizia tu)
o que é uma maneira de a voz narrativa dar a ler a sua interpelação pelo
tu, como o modo de ser interpelada e posta em movimento precisamente
por aquela que invocava e a quem agora dá a palavra. Ou seja, a
interpelação de Elvira é já uma resposta à interpelação que parte de
Elvira, ainda sem a palavra. A voz de palavras do livro é o movimento
interpelador e promotor da interpelação veemente daquela que só
possui palavras muito estritas para ver-se ou haver-se visto. Esse
admirável discurso dirigido por Elvira à «criatura que [lhe fala]
sublime», discurso oscilante entre «Eu quero dizer» e «Eu nem sei
dizer-vos que», é o discurso da assunção própria, individual e social,
da denúncia e da exigência, da invectiva e da carta de direitos. Carta
insurrecta e liberta, texto constitucional e fundador. Interlocução
desatada, nela se lê como na «Explicitacione Gentile» que o diálogo,
não é tão-só a dois, mas a três ou mais (e aí se vê que cabe a 3.ª
pessoa). Falando à voz que no livro a fala, Elvira fala também aos que
a condicionam à exiguidade de palavras, dores e prazeres do corpo e
do espírito; a quem leia. E compreende-se que a voz narrativa que a faz
falar, não só a converte em interlocutor, mas abre-lhe também a fala aos
outros interlocutores. Eu e você, por exemplo.
O discurso de Elvira responde clara e insistentemente ao que,
noutra casa dessa mesma última sequência, se diz que Elisa aprende,
decide, formula:
Elvira diz: «É apenas por dentro dos meus gestos executando-os
que o falante em meu nome poderá alcançar a tremenda injustiça que me
é feita na exiguidade dos ditos para os reflectir». Está sancionando a
busca de Elisa que se interroga: «Que saberei das mulheres se não
lavar, fritar, esfregar?».
Elisa escreve: «Darás a mão ao desmunido de verbo mais próximo,
o mutilado da boca, ventriloquentemente» e Elvira responde com o seu
discurso, e dizendo «Eu, Elvira, pela graça de Deus e dos homens».
«Elisa busca a resposta a forjar-se nos olhos dos vivos, criar como
retorquir, narrar para que eles narrem». Elvira responderá narrando e
dizendo: «Poderíamos, enfim, ser mais os poetas nados e criados, se
não te temeras tanto da corporalidade extrema de toda a mutação,
mudança que valha».
«Elisa deseja que a fulguração oculta more na cozinha de cada um»,
e Elvira responde «Ouvirei então aqueles que não disserem, A cada um
segundo os seus dotes e hábitos, julgando que estão a falar de
necessidades eternas. Quem poluiu o direito do meu espírito a vaguear
face a uma rosa da variegada profusão dos seus lugares e matizes?
Quem usurpou pela fadiga dos nomes a que não tive acesso o meu
direito a dizê-la que toda a rosa a rosa?» Elvira insiste: «Eu nem sei
dizer-vos que, querendo o tudo, ainda não sei escolher dos resíduos
esmoleres quais os detritos a devolver-vos».
Na última casa de Elvira, faz-se aquilo que Elvira busca fazer,
agora sob a forma da fundação e da apoteose; porque aí se sanciona o
desejo da voz narrativa, em que o assumido eu é, ao mesmo tempo, o de
uma persona, figura da ficção poética, e o de uma individuação
triunfante, mesmo que precária e em aberto.
Digamos que a assunção de Elvira é factor, condição e obra daquilo
em que Elisa se transforma. Porque aqui se consuma sob a forma mais
visível, na ordem e na lógica do livro, a mudança de casa — mudança
de vida; porque aqui culmina a reversibilidade e, mais do que isso, a
multipolaridade dialógica; porque aqui se completa, aberto, o dever
falar que é um motor de poética.
O «diálogo» de Elisa e Elvira, que pressupõe a convocação de
outros interlocutores, feito pela voz do livro, é precisamente
constitutivo, interno, e fundador dessa voz.

Lendo Casas Pardas como uma superfície plana e aceitando, por


momentos, as ilusões da ficção narrativa que aí se tece, poderíamos ser
levados a admitir que é Elisa quem diz eu (de si) e se esconde na 3.ª
pessoa da sua última casa, que é ela quem diz tu a Elvira e conta de
Mary na 3.ª pessoa para depois lhe dizer tu, ao dizer-lhe adeus. O facto
de Elisa andar a aprender para escritora favorece a ilusão: Casas
Pardas seria o livro que Elisa escreveu depois de ter chegado ao que
chegou na sua última casa, o livro em que Elisa conta como chegou a
poder escrevê-lo. Se mais não bastasse, porém, os exibidos modos da
construção narrativa, a passagem da 1.ª à 3.ª pessoa em relação a Elisa,
mostram que não é bem assim. Mostram que Elisa, Mary e Elvira são
todas elas personagens de um livro cujo sujeito emerge da construção
de todas elas. O jogo com os pronomes, no seu conjunto, situa a ilusão
como imagem produzida, como construção; revela a constituição da
subjectividade narrativa como um processo intensamente dialógico,
onde as diferentes atribuições e alterações pronominais são gestos de
um mesmo projecto, estratégia e paixão.
A arte da polifonia

«Há mais vagas, há mais vagas que a saliva de


uma só língua, há que acumular os sucos, cumulá-
los.»

«Que língua falaremos um dia?


Um dia falaremos todos a mesma língua.
Que línguas estarão mais mortas então, nesse
corpo único?
Que pena dessas, se sabedes novas»

«Darás a mão ao desmunido de verbo mais


próximo, o mutilado da boca, ventriloquentemente
serás desgracioso e agitará então os beiços em
teu nome, Daqui falamos, é o crioulo galáctico,
Senhor.»
V Casa de Elisa

A distribuição ordenada das casas pelas personagens e pelos


pronomes pessoais e as transformações dessa distribuição e dessa
ordem, assim como a diferença de «A Terça Casa», são gestos de uma
plurivocalidade que se prolonga, sob outras formas, atravessando cada
casa, e constituindo no livro uma intensa polifonia.
Chamo polifonia ao dialogismo, à multiplicidade de registos
discursivos, característica constitutiva da escrita deste romance, onde
adquire uma funcionalidade também ela múltipla.
Maria Alzira Seixo referiu já esta multiplicidade como estratégia de
«proliferação de significações», cujos processos e consequências
enumerou e descreveu, mostrando como excede a produção
convencionalizada do sentido.
Essa multiplicidade é desde logo, de uma forma algo emblemática,
mas também significativa de uma tensão utópica, a da reunião das
línguas que mais ou menos intensamente ecoam no texto. E são várias: o
espanhol, o francês, o inglês, o alemão, o russo, o italiano, o grego, o
crioulo da Guiné ou de Cabo Verde. É uma espécie de movimento para
o «crioulo galáctico» (que tem neste século, a sua realização exemplar
em James Joyce). É claro que é a língua portuguesa que é profusamente
trabalhada neste livro, mas aqueles ecos não são por isso menos
significativos, nem decorativos, antes dão sinais da abertura de uma
língua à audição de outras; ou seja, de outros povos, de outras histórias.
Desejo de uma Internacional de povos.
A multiplicidade é também dada na citação e na deformação de
títulos de livros, de frases e versos, de provérbios e slogans. A
nomeação de autores, no corpo do texto ou em nota de pé de página, é
tão-só um sinal mais evidente dessa intertextualidade mais ampla, pela
qual aqueles textos são jogados como materiais de construção ou como
lugares de comunicação entre personagens, lugares habitados. Desta
acumulação de citações se deve aproximar a dramatização de
sociolectos, de falares e linguagens de grupo social mais ou menos
extenso, como, por exemplo, a imitação que opera no «Monólogo do
soldado quando cão» em «Ó da Barca», no «Monólogo da Vaqueiro»
como no «Monólogo da Mofina», como no discurso dos casais que
jantam em «A Terça Casa»; assim como a imitação de linguagens de
«género», a dos conselhos femininos, da série das «Maquillage», ou
das receitas de cozinha.
Múltiplos são os modos e os géneros de discurso que se sucedem,
cruzam, cortam e mesmo comentam: o épico, o lírico e o dramático; a
crónica, o conto popular, a lenda ou o conto infantil; farsa e sátira; ode
e elegia; oração e imprecação, elogio e invectiva. De um sem-número
de registos se faz o discurso. Múltiplos os processos estilísticos e
retóricos, transfrásicos e internos à frase, internos à palavra, jogando os
sons e os fonemas, na proliferação das significações, desregramento
criador, dar a ler «literalmente e em todos os sentidos» (Rimbaud).
Polifonia é o diálogo do erudito e do popular; é o diálogo em que
participam três ou mais vozes. Por exemplo, ao nível da frase, da sua
tipografia. Entende-se que, na linguagem escrita, um período, uma frase
completa tem um só sujeito que a diz. Aqui, o continuum frásico entre
dois pontos finais, pode ter mais do que um enunciador. Apenas
vírgulas, com maiúsculas sucedendo-lhe, separam as falas dos vários
que cabem no período (num processo, aliás, que José Saramago usará e
desenvolverá sistematicamente). Por exemplo:
«A Rosa estava muito doente, minha querida, mas há-de se pôr boa
e voltar, mon petit, Coma, coma a sua papa, só mais esta pelo papá, A
menina sentiu-se muito, minha senhora, mas é natural era ela que —»
O que se regista é, num bloco, a cumulação de várias vozes. O
processo pode desempenhar várias funções, mas é desde logo um sinal
da plurivocalidade trazida ao nível do período e da frase.
Plurivocalidade que cresce, múltipla, ao nível do parágrafo, dos
segmentos de texto, da montagem dos textos dentro do capítulo, do
livro.
Esta multiplicidade polifónica tem pelo menos três funções poéticas
e de poética:
— mostrar o discurso como actividade plurivocal no interior de
uma única voz; mostrar como a individuação de uma voz se tece de uma
inúmera audição de várias outras; como o discurso literário potencia a
socialidade individuante da linguagem humana;
— mostrar a dramatização da linguagem, do discurso, como drama
de linguagens diversas que se acumulam, cruzam, chocam, combatem,
ironizam, questionam, em suma, dialogam, aqui, numa «irregularidade
mais harmónica». E mostrar essa multiplicidade como resposta e
homengem à diversidade sensível do mundo e da cultura;
— de exigir como direito comum e individual a sumptuosidade; de
a propor não como adereço ou marca de classe, mas como inalienável
apoteose da trabalhada individuação social.
Assim seja, que a isso também andamos, camaradas.
É por isso que é sumptuosa Elvira a descascar uma cebola, Elvira,
opressa e oprimida, na sua casa «Lacrimosa»; é por isso que é
sumptuosa a «surpreendente matéria essa do sal», o encontro com
Angelo, a aparição de Estela, a exposição de Elisa à Lua, no final da
sua última casa, «o baptizo» da nova casa de Elvira, por muito
diferentes que possam ser tais textos.
Por isso, também, é sumptuoso este livro.
Plurivocalidade e individuação.
A «cena» da história.

«Olhe, parece que vão hoje homens para a lua,


não vai ver? já pensou o espanto do tempo em que
vivemos, apesar de tudo,
Nós não vivemos no mesmo tempo.

Adeus Elisa.
Adeus Frederico.»

Mas então que tempo é esse em que ambos vivem tempos


diferentes? Que tempo de diferentes tempos é esse onde ambos
diferentemente vivem? — O tempo histórico.

«Porque onde eu nasci, pátria e casa estava tudo roto.»

«O chão está trémulo, maduro para fissura que se veja.»

«Mas Elisa, nesta ascensão de Março está obcecada com a sua


nacionalidade por resolver.»

«Terá que decifrar que é gente e que é nação ou tribo mais que um
modo de dizer-se singular e passar anulada, que é um par mais que
lugar de acariciar-se preferentemente, a danação, terá que,»

«à espera do princípio do princípio duma outra era sem povos


preteridos ou malditos,»
Margarida Barahona falou de «inscrição das personagens na
História», de como elas «funcionam como lugares possíveis na luta de
classes», de como se lia neste romance a história, e registava que a sua
complexidade «tem a ver com muito do que neste país se passou e se
passa». Honra lhe seja, que falava de um lugar no tempo, onde falar de
história, sobretudo em relação com literatura, cheira a esturro, ou mais
benevolamente, a coisa fora de moda.
Mais ou menos intensa e evidentemente, a relação com a história é
uma dimensão íntima de um texto, e deste em particular. Não é só
questão de referência ao mundo, mas dos materiais verbais, dos gestos
e das operações do próprio texto.

1.

O tempo histórico é, neste romance, múltiplo e de várias formas


inscrito.
Uma série de índices marcam não só o tempo crónico, mas o tempo
da história portuguesa em que se «articulam» as «acções» narradas do
livro. Desde logo, os anos 60 e mais precisamente os meses de
passagem entre 1968 e 1969, entre a morte de Salazar e a «primavera»
(Março) de Marcelo.
«Em Lisboa, nos anos sessenta, num banco da Avenida, Eu». Na
indagação de si, na procura daquilo em que se deverá transformar,
Elisa, na sua I casa, diz o seu Eu no mesmo movimento em que diz o seu
lugar conjuntural e o seu tempo; num movimento de cronotese (o tempo
existe e é neste tempo que eu sou o que quer que seja ser «eu»).
«Os anos sessenta» são hoje, não apenas uma década, uma fracção
do tempo crónico, medida no calendário, mas um particular sócio-mito,
sobretudo para certos utilizadores da expressão. Para determinados
grupos, socialmente heterogéneos, e em particular para certos
intelectuais, na expressão «anos 60», diz-se uma relação com esse
tempo que é ou de uma mais ou menos cultivada «nostalgia», ou de
afectação de uma «superioridade amadurecida». Neste último caso,
trata-se de dar a entender ou de dizer que se curaram dos seus «ideais»
de então, que seriam «ideais ingénuos», propriamente «imaturos»,
seguramente «ultrapassados», supõe-se que pela «história», se em tal
coisa concederem falar. Se tais anos podem ser os da «agitação
estudantil» em Portugal, por adopção cultural cosmopolita são, também,
os da França, Itália, e arredores (o «Maio de 68»), os dos E.U.A. (luta
contra a guerra do Vietnam, cinema, música e etc.) e etc.. Falar nos
«anos 60» é, no discurso da «nostalgia» ou da «maturidade», dizer uma
separação, mesmo que diferente, e diferentemente avaliada e
emocionalizada.
Destes «anos 60», ou dos acontecimentos e ambientes que o mito
trabalha, há, no livro vários ecos: referências precisamente a Maio de
68, a preferências culturais em voga ou emblemáticas (do «Only you» a
Bob Dylan, de Éluard e Aragon a Marienbad de Resnais), a fragmentos
ambientais e de modo de vida. Os sinais que se tornarão lugar-comum
ocorrem singularmente nos diferentes movimentos de separação de
Elisa, no discurso de Frederico ou de outros convivas do jantar na
«terça casa». Ocorrem tolerados, com benévola ironia, afixados como
componentes daquilo que se deve saber em círculos desenvoltos e bem-
pensantes, ou mesmo com alguma irritação impaciente.
Mas não é o «cliché» destes «anos 60» que o romance sobretudo
inscreve; mais fundo que isso, que a sentimentalidade ou o folclore de
uma certa esquerda, trata-se dos ecos, mais ou menos discretos, e
múltiplos, de um tempo de crise; crise de regime, crise nacional,
política e social; da fase da tentativa de manutenção do poder pela
«via» marcelista, dita «liberalizante», do rumor surdo das guerras
coloniais, de lutas estudantis, e mais longinquamente, em surdina, de
lutas nos campos do sul.
Tempo de crise: «pátria e casa (está) tudo roto»; «o chão está
trémulo, maduro para fissura que se veja»; «e trema, trema este chão
eivado de inscrições díspares […] Um solo excessivamente
trespassado dá sinais, fende […].» As metáforas sísmicas multiplicam-
se. Na lógica da unidade entre o drama familiar e o drama sócio-
político (evidenciada mais fortemente pelo «trajecto» de Elisa e na
citação sobre a pátria e a casa ambas rotas), as personagens vivem
também as suas crises próprias.
A própria concentração relativa do espaço de tempo em que a
acção se dá acentua esse carácter de tempo de crise, entretanto vivido
como que ao «ralenti», aparentemente suspenso de algo que se vai
passar, de algo que se espera, se busca, ou sofre; tempo de milimétrica
«dança», evolução sobre terra que vulcão trabalha, emitindo sinais.
Crise de regime, crise de identidade, nacional e pessoal, crise de
poder. Poder, palavra em torno da qual se cruzam temores e anátemas,
fantasmas e desejos, uma cólera persistente. A «terça casa» reúne as
metáforas sísmicas no espectáculo textual do «lustre (que) treme com
grande fragor cada vez que é pronunciada a palavra poder». Sinal que
anuncia o terramoto com que acaba o jantar. Singular apropriação
literária do terramoto da história do mundo em Lisboa no ano de 1969.
Sinal da crise e das fendas que se abrem no chão dos convivas do jantar
na casa central. Sinal novo, porque antes os terramotos não faziam
tremer o chão dos avós de Elisa («A terra deles não tremia» explica a
neta). Sinal, em metáfora, do «terramoto» que virá — o 25 de Abril de
1974.
E, por aqui, embora não só, é um outro tempo que se inscreve no
romance: sobrepondo-se, dizendo o ano de 68-69, é o após Abril de 74
que vem trabalhar a escrita do livro. É que o livro, sabemo-lo, é escrito
já na segunda metade dos anos 70.
Ora, entre o presente da escrita do livro e o passado recente em que
ele «imagina» as histórias que conta, não há apenas o fluxo
calendarizado do tempo crónico, acumulando-se. Há, desde logo, essa
inapagável linha de ruptura do tempo, tempo emergindo, que é esse tal
25 de Abril. É após isso que se escreve e a escrita de alguma forma
conhece esse futuro do passado que conta. A voz narrativa não esquece,
não finge ignorar que escreve a partir desse futuro, desse outro tempo
que é o seu. Esta voz pode, então, ao mesmo tempo clarividente e
economicamente, acentuar, naquele tempo passado de que conta, os
elementos de ligação a esse tempo de onde escreve. Assim os
recebamos nós neste tempo em que lemos. Pode, assim, indicar os
germes desse futuro, sinais da sua preparação, sinais de uma evolução
histórica: nem reconstituição historicista e museológica de um passado,
nem projecção acrónica e identificação imóvel; trata-se, como no livro
se diz, dessa «jogatana com os tempos que é presenciar o que já foi».
Trata-se de uma operação de constituir a cena da história, de revelar,
sob uma das suas formas, o carácter eminentemente dialéctico da
história.
Esta presença, no escrito, do presente da escrita, presença não
neutral, mas sim tomando partido na história, exibe as preferências da
própria escrita (as preferências são gestos vitais da individuação, como
já fomos vendo), e revela-se, por vezes, de uma forma particularmente
ostensiva. Um exemplo apenas. Na V Casa de Mary, num desses textos
incisos que cruzam e descontinuizam o tecido mais tradicionalmente
narrativo, uma voz, a do livro, diz: «Apõe as mãos ao leme da tua
dobragem de águas contrárias, português que te leste ou que vais saber
ler, soletra quão grande ganho é haver perdido ante outros povos a
noção falsa de ser, a assente no imperar — a imprestável à natureza
humana que é de bondade e averiguação do máximo possível — mais
amar, mais saber. Diremos de dentro do peito vermiculado de uma rosa
insistente. E o poder? Diante desse dito se engelham porém as mais
perfeitas e tenazes odoríferas corolas. Nenhum lactante quer mais que o
colo que sacia. A beleza é da ordem da indagação justa dos próprios
meios, não mais do que permita a força humana. Todo o herdeiro é
cortado de si mesmo pela mutilação dos deserdados. Generalidades, ao
lado do discorrer do que pode e do urro do impotente». (É longa a
citação, mas é um só exemplo mais desse disparar em todas as
direcções de que se tece este livro). É muito claro que esta voz, para
além dos seus efeitos de interlocução interna ao livro, toma
directamente como interlocutores os leitores do livro, os seus
contemporâneos e os que virão vindo. Estes interlocutores são
necessariamente posteriores aos acontecimentos narrados, porque só
assim podem conhecer aquilo a que se alude quando se fala no «haver
perdido ante outros povos a noção falsa de ser, a assente no imperar»: a
libertação dos povos colonizados, a chamada «descolonização». E os
leitores que conhecem essa dupla emancipação, a desses povos, e a
nossa, que o texto espantosamente fala.
Mas um outro motivo deste fragmento citado mostra aquilo que em
outros momentos se tece e no tonus da escrita se pode ler: a voz
narrativa não escreve só de após o 25 de Abril de 1974, mas de após o
«25 de Novembro». É, neste fragmento, a frase sob o poder, diante de
cujo dito se diz engelharem «as mais perfeitas e tenazes odoríferas
corolas». Esta última data é também a de uma emergência da questão,
central do poder. Lugar das recriminações, dos desencantos, e da
cólera, como posição moral, de que é necessário ser capaz para se
guardar o que há de insubmissão em todo o acto de fala falante. Aí ecoa
o «Vocês pagam» do texto «Levantamento da cidade de Lisboa» de
Cravo. Essa data é também a da desavença que passou por uma
fronteira errada: ficaram por ela divididos alguns dos que poderiam
estar juntos, como lentamente se veio a confirmar. E por aqui se pode
ler também, embora não só, a insistência neste romance na separação e
na recuperação dela.
Que a voz que já conheceu também o 25 de Novembro venha falar,
(re)construir histórias do tempo em que se ia construindo o 25 de Abril
é uma operação estratégica de homenagem apaixonada, veemente e
exaltada, de exorcismo e de resgate.
É à luz desta múltipla inscrição de diferentes tempos históricos que
vão ganhando os seus contornos mais nítidos muitos dos gestos da
construção narrativa e textual que fomos lendo: desde o título do livro à
organização por casas, nomes e pronomes pessoais, desde o trajecto de
Elisa ao encontro com Angelo e ao tomar a palavra de Elvira.
Este texto, assim, fala a história para falar à história, mais
discretamente mas não menos apaixonadamente do que eu digo. Na sua
«jogatana com os tempos», ele pode então ser relido como uma
metáfora em surdina da revolução portuguesa, do seu fluxo e seus
dramas.
2.

Em livro assim, as ideologias são necessariamente atravessadas,


reescritas, literariamente trabalhadas, encenadas. Algumas notas
apenas.
No trajecto de Elisa, de entre outros lugares, parte-se do saber que
«dentro da casta somos dos que são deixados experimentar até aos
limites da tolerância»; parte-se de «Eu estou a perceber que isto não
pode ser assim […] e que Eu tenho que perceber isso de uma maneira
qualquer dia terrível». Não se gosta do que há e não é no que tal
tolerância permite à casta que se vai achar modo de que outra coisa
haja. Estes são já gestos do percurso de separação familiar, ideológica
e de classe que se enseja. A orientação que se forja pode aproximar-se,
por vezes, desse modo como alguns aristrocratas (não necessariamente
por origem familiar, mas por posição de intelectual) unem a cólera anti-
burguesa e um olhar apaixonado pelos povos, as arraias-miúdas, sede
de uma energia e de uma como que inocência perdida e por haver. Mas
disso se procura desviar Elisa inscrevendo os ditos disso, como forma
de se libertar de repetir isso. «Ora pensa Elisa, mas pelas festas ainda
dançam nas ruas, há concertinas como no tempo do senhor dom Pedro, e
ri-se, da exacta absurdidade histórica». No diálogo da IV Casa de
Mary, entre Frederico e o pai de Elisa e Mary:

«… ah meu filho, recorde as alianças entre a realeza e arraias miúdas


para derrubar intermediários rapaces,
Ah senhor Mestre, com que logro, pois que vós haveis arrecadado os
dobrões e a canela —
(…)
Meu pai, dilapidar uma fortuna e ler os clássicos não é servir ideários
marxistóides, creio.
Oh qu’il est mignon, le petit technocrate, não é servir mas também não
desajuda e desmoraliza-vos muito, ó burguesitos, no que nos imitar
quereis, quem vos odeia com pontaria senão aqueles a quem haveis
tirado a rédea e aqueles que ainda não vos apearam?»

É deste tipo de atitude, que tem consigo muito do prestígio do


decadente aristocrata e do humor, que Elisa procura ainda desviar-se
transcrevendo na sua V Casa um fragmento do Manifesto do Partido
Comunista de Marx e Engels, sobre o «socialismo feudal».
É aliás igualmente significativo que, na sua laboriosa aprendizagem,
seja citado um outro fragmento desses autores, quase ao fim dessa sua
última casa; precisamente o conhecido período do Primeiro Capítulo da
Ideologia Alemã, sobre a linguagem, que, aliás, Maria Alzira Seixo
cita, também, a propósito deste romance: «A linguagem é tão velha
como a consciência — a linguagem é a consciência real prática […]».
Neste seu percurso, Elisa é, então aquela que, entre outras coisas,
aprendeu o que a voz narrativa diz no texto inciso da casa de Mary já
citado: «Todo o herdeiro é cortado de si mesmo pela mutilação dos
deserdados».
O que o livro faz e mostra é isso então: o reunir-se a si mesmo só se
pode contra essa mutilação. Não questão de generosidade ou
filantropia, mas questão de sobrevivência moral, prática, e de exigência
da sumptuosidade comum e individuada. Por aí chegamos também ao
processo da individuação.
Refira-se, ainda, que é, no quadro desta aprendizagem e deste
trajecto que é o de personagens e o do livro que, também, fazendo-as se
faz, que se reescrevem alguns «temas» do marxismo, daqueles que mais
fortemente mobilizam imaginários:
O tema da unidade entre povos oprimidos emancipando-se: «à
espera do princípio do princípio duma era sem povos preteridos ou
malditos».
O da violência (reescrita em veemência) emancipadora:

«Crês então que não há salvação sem violência?


Sem veemência organizada, para os sobreviventes, para os mutantes,
para os povos pobres.
Qual é a diferença entre violência e veemência?
A veemência ri-se, chora, enternece-se com a natureza, hesita, continua
como um amor grande.»

O tema da transformação do mundo:

«É preciso mudar a natureza? também eu lhe disse em braços. Qual, a


nossa natureza?
A natureza da terra.
A nossa natureza é da terra.»

O tema utópico, que o marxismo conceptualiza e historiciza, do fim


da divisão social e histórica entre o trabalho manual e o trabalho
intelectual: «e foi numa madrugada que se lhe revelou quão excelente
preparação para o trabalho manual era aquilo a que convencinou
chamar, operacionalmente, a atenção poética, isto é, a minuciosa visão,
unidade por unidade e relacional, dos objectos em torno. Depois
pensou que o poeta devia ser expulso da cidade por isso — porque era
um escravo que também via das mãos. Mas isso já lhe pareceu um
pouco abusivo».
Não é apenas, nem necessariamente, em fórmulas que tais temas se
tecem, mas em inúmeros gestos que o texto exibe.

3.

Mas a historicidade, a fulguração literária da cena da história não é


só assim, mas também no cerne da construção do livro, a
plurivocalidade como processo estratégico da individuação.
Polifonia, dialogismo e intertextualidade são noções diferentes, e
em ordem decrescente de generalidade, para dizerem diferentes
aspectos desse mesmo fenómeno, reconstruídos em distintos planos de
análise. Reunião conflitual de vozes heterogéneas na construção de uma
voz, de gestos no tecer de um corpo; diálogo contraditório de vozes, do
erudito e do popular, no discurso literário; recorte do texto convocando,
citando, imitando e parodiando, montando outros textos, outros tipos de
discurso.
Tudo isto constrói a voz como radicalmente intersubjectiva.
Intersubjectividade como espaço de individuação da voz narrativa, das
personagens, da leitura, de quem escreve e quem lê. Mas não uma
intersubjectividade abstracta e levitante, último recurso para evitar a
tentação solipsista rondando sempre o idealismo subjectivo, mas
intersubjectividade determinada e determinando-se social e
historicamente (lógica e história: dialéctica; cf. Lenine, o outro
Vladimir do texto).
Nos sinais e gestos cronotéticos do texto, a individuação dá-se a
cena da história como referência, mas não apenas o espaço da
conjuntura, mesmo que decisiva e crítica; o processo da individuação
tem um outro fôlego e dimensão, outro espaço, ainda histórico: o da
longa duração. A individuação enquanto processo social de contrução
histórica dos indivíduos significa que os indivíduos não são uma
natureza imutável e a-histórica, nem um processo exclusivamente
psicológico. Isso se exibe exemplarmente, na unidade da interrogação e
na alteração do pronome relativo, nesta fórmula do «Diário de borco»
de Elisa na sua última Casa: Quem somos, que sou?
A individuação é um processo comunitário. A construção do sujeito
é uma construção na comunidade e de comunidade(s). Tal processo não
é um puro efeito que a comunidade de base (seja qual for a comunidade
que se tome como tal) projecta; mas é um trabalho, uma busca, uma
posição, uma preferência. Aliás, a comunidade não é mítica e
tranquilamente homogénea, mas dividida e heterogénea; não é um dado
fixo, imóvel, mas um processo também.
Não se trata tanto aqui de ser eu aquele que diz «eu», como um
simples utilizador de uma língua que lhe asseguraria já a individuação.
A construção desse eu que diz «eu» é um processo de aplicação e
implicação discursiva, na teia dos usos dos pronomes pessoais e das
linguagens, e nas divisões que o espaço social comunitário estabelece
como campo de aplicação de tais pronomes. A individuação não é um
processo autárcico, de solidão subjectiva, — na câmara íntima do
discurso interior, sabotando a miragem de uma linguagem privada, as
linguagens do mundo trabalham. E o individualismo não é a forma
exclusiva ou superior da individuação; ou, mais claramente, não se
pode confundir com a individuação. É tão-só uma forma histórica (e
socialmente) determinada de individuação e, muitas vezes, mesmo, uma
forma degradada.
A individuação é uma produção histórica, um trabalho da e na
história. E assim a individuação é também de formas diversas um modo
de assumir uma comunidade, diferentes comunidades. A(s)
comunidade(s) que se assume(m) na individuação é(são) a(s) do nós. E
há vários tipos desse pronome pessoal nós, para além do nós
«inclusivo» (eu+tu/vós) e do nós «exclusivo» (eu+ele/ela/eles/elas).
Desde logo, porque multiplamente dividido o espaço comunitário,
desde a distinção de classe a muitas outras.
A assunção comunitária é a escolha, certamente dialecticamente
determinada, de um ou mais tipos de comunidade. Comunidades
enunciativas, sociais, culturais, políticas, éticas, estéticas. Por isso, que
em Casas Pardas de várias formas se faz, a individuação é ao mesmo
tempo movimento de separação e de assunção; mas também de reunião
de comunidades divididas, por exigência de fulguração, de
sumptuosidade, de «irregularidade mas harmónica». Mas aquilo que se
assume não é também já idêntico a si mesmo, porque transformado no
movimento de assumi-lo, feito assumível.
A comunidade, em suma, mostra-o o livro, é um objecto de desejo e
uma comunidade desejante:
«e trema, trema este chão eivado de inscrições díspares, que
sobreponho. Um solo excessivamente trespassado dá sinais, fende em
alto grau na escala de nós.»
A tensão entre arquitectura e fragmento.
O rigor e a paixão

«Se fosses uma árvore que árvore gostavas de


ser?
Assim, de amor, uma araucária com as franças de
verde assim quedas, olha, sem mexer ao vento,
que paz, ou um cedro a estorcer-se enorme para
aqui e para além um tronco assim de largo e
multiplicado de ramas, a irregularidade mas
harmónica, habitadíssimo de ninhos, insectos,
lagartas todas veludas e sardões agachados.
Pareces é uma bétula, toda trémula, cheia de suco
doce.
Assim de fora, assim para não ser, é do eucalipto,
trazido de tão longe, aquela grande avidez que,»
V Casa de Elisa

Este romance combina singularmente dois modos da ficção (e da


poesia) contemporânea, demonstrando a seu modo a não necessária
incompatibilidade desses dois modos distintos.
Por um lado, o carácter evidente e exibido da organização
«arquitectural» do espaço literário, a rigorosa construção compositiva
da macro-sequência e das sequências narrativas, a programação e
exploração de uma combinatória e dos jogos que permite, jogos de
posição e movimento. Por outro lado, a proliferação do diverso, a
estratégia da descontinuidade, do fragmento, da errância e da deriva, a
plurivocidade de uma escrita, polifonia desatada, heteróclita e
sumptuosa diversidade dos «estilos», quase tornada um estilo. No
plano da organização das sequências e dos capítulos, da sua montagem
e movimento, na urdidura dos ecos e dos índices que fazem sistema, o
rigor da construção. No interior de cada capítulo, acentuando a
descontinuidade entre eles, a paixão da frase, os textos incisos —
quase como poemas, o desregramento, a quase desordem das micro-
sequências de que se constrói cada sequência, elementos de uma
estratégia de proliferação das significações; território mais claro da
indecidibilidade textual e interpretativa, onde entretanto todo o acto de
leitura é desafiado, convocado, obrigado a tomar as suas decisões, para
ceder ao «poder das palavras» com que o texto nos põe em movimento,
para poder co-enunciar.
Disse que se «combinam» dois modos, o que talvez possa ser lido
como demasiado «voluntarista». Fale-se, então, de tensão, e
compreenda-se que, nela, a estratégia «construtivista» e a estratégia
«pluralizante» se contaminam, jogam interagem. Dessa tensão que o
texto assume, da qual se faz, resulta que nem a combinatória se esgota,
exaustiva e fechada, nem o desregramento arruína o gesto da
construção. A ordem não é imóvel, fixa ou rígida; o fragmento não é um
expediente retórico para dizer o silêncio e o indizível.
Pelo modo como se manifesta, esta tensão complexifica e exibe a
consciência do fazer literário, não como artesanato aplicado e
insularizado, ensimesmamento em pose, mas como necessidade de
poética, investimento de paixão.
Esta consciência do fazer poético, como gesto de auto-
referencialidade da escrita e como forma de figuração da própria
actividade de enunciação poética, é particularmente evidente nas
épocas de crise ou de transição de um género ou de um sistema
histórico de representação/produção literária, e é recorrente nas
grandes obras de emergência ou de consagração do novo, na literatura
contemporânea. É, então, uma necessidade imposta por aquela crise ou
por esta emergência. Pode é certo banalizar-se e tornar-se um tique
decorativo, ou uma prática de afixação trivial, segundo a moda; mas
pode também, como é o caso em Casas Pardas, ser a necessidade
estratégica de uma escrita.
Então, esta consciência do fazer nada tem a ver com a
meticulosidade burocrática e esteticista de uma combinatória pobre de
aventura, desprovida de «uma grande razão» (Cesariny). Tal
consciência é então compatível com o gozo carnal (material) da prosa,
das linguagens diferentes, da sintaxe e dos jogos da grafia e do som.
Não exclui a necessidade do desconhecido, para o qual não há modelos
(Éluard — «Não há modelo para aquele que procura o que nunca viu»).
Não exclui o que há de necessário jogo, risco, paixão e não-saber no
trabalho e no jogo do inconsciente, da ideologia, e da história.
Aqui, exemplarmente, como em toda a obra artística
tendencialmente, se exibem, na sua unidade problemática, complexa e
contraditória, indissociável e variante, as dimensões de fabrico (faber),
de sabedoria (sapiens) e de jogo (ludens). Estas dimensões são
distintas mas não absolutamente separadas, nem separáveis. Podem, na
historicidade própria da produção e da relação artística, desregular-se,
combinar-se e acentuar-se de formas diferentes; mas a sua unidade é,
pelo menos, uma lei tendencial. Atravessa-as também uma
passionalidade também ela histórica, pulsionalidade e drama,
investimento vital, ético, e/ou ideológico. Mas esta paixão pode
encontrar também o seu rigor, quando não é demagogia nem tique, e
antes produz a sua forma própria, quando investe do interior a razão
poética.
O trabalho da unidade destas dimensões e a sua energia passional
permitem, nas práticas mais intensamente criadoras (transformadoras),
o avanço no desconhecido, o salto ou o clinamen que desvia o
movimento repetido, que produz a saída da repetição e da simples
reprodução de mecanismos anteriores.

UM INSTANTE PARA ATENDER DUAS CHAMADAS TELEFÓNICAS:

É mesmo isso, um pequeno parênteses.


Na II Casa de Elisa, a habitante recebe de França um telefonema
que se inicia por um «Ne quittez pas, madame» e que se passa entre
«Primo» e «Prima», que tal como se tratam, embora o primo lhe chame
também «hermana». Lugar, como outros no livro, de desenvolta
linguagem, ágil e brincada, mas também de acentuada cumplicidade.
Permita-se-me que cite, então, uma outra chamada telefónica, esta
de França para Lisboa, que começa com «(‘Ne quittez pas.’)» e que se
passa entre homem e mulher que se tratam por «hermano» e «hermana».
Passa-se isto num romance português, posterior a Casas Pardas —
Square Tolstoi, de Nuno Bragança. (Pode ler-se nas páginas 44 e 45 da
1.ª edição, Assírio & Alvim, 1981).
Se atendermos estas duas chamadas, veremos como se respondem,
guardando cada uma a especificidade das escritas dos dois livros:
diálogo de escritas distintas. Só escritas?
Em 1969, publicaram Maria Velho da Costa e Nuno Bragança os
que eram os seus primeiros romances: Maina Mendes e A Noite e o
Riso. De forma acentuadamente diferente, eram ambos romances
singularmente novos. Os romances posteriores de um e outro, foram
tecendo essa singularidade, de forma diferente narrando histórias da
história.
Porquê este parênteses?
— Para insinuar de passagem a suspeita de que Square Tolstoi
mostra como em Casas Pardas essa conversa telefónica é no tecido da
ficção, e não necessariamente acontecida, um sinal de irrupção, no
texto, da vida do seu autor. De como no texto se insinua um jogo
privado. Já os retratos de amigos que são as «Cantigas de amigos
amados» em Cravo de Maria Velho da Costa jogam esse jogo em
público. Ele mesmo por várias vezes se pressente em Casas Pardas,
como na literatura libertina, diz-me o Fernando Guerreiro a quem falo
disto.
— E também para uma homenagem.
A cebola e a rosa. Envoi

«Mas é preciso aproximar a vista, vesgar. Sofrer a


perplexidade de uma indagação in extremis,
próxima até doer. O juízo suspenso face à
proliferação de similitudes, camadas de sentidos,
falas. Tu não falas. Só o teu acto de cindir a
cebola, esse ceptro da manipulação da faca, a
contundência laboral, diz:»
II Casa de Elvira

Na II Casa de Elvira, após a transcrição da versão portuguesa da


última parte do «Poema Póstumo» de Maiakowski, num fragmento em
que se traça a diferença de Elvira, escreve-se espantosamente a
operação de descascar uma cebola. Operação de Elvira invocada no
Tu, um daqueles gestos, com instrumentos simples sobre matérias
simples, que ao longo do livro caracterizam a íntima convivência
material de um corpo e seu espírito com as coisas e os elementos,
fazendo o sumptuoso e veemente elogio de tais trocas. Operação de
Elvira, e obviamente da escrita que a encena e assim re-constitui seu
dote, o descascar da cebola diz também o jogo da escrita e da leitura.
Não jogo terminado. Jogo de «juízo suspenso face à proliferação».
Neste prefácio, entre decisões e suspensões, ajuiza-se. Mas o discurso
fica ainda e sempre suspenso. Suspenso deste e de outros livros, de
outros gestos, de outros tempos e outras gentes.
Só dizer que, na tensão do livro, o trabalho de manipular faca e
cebola e a proliferação das capas sob capas da cebola se unem com
outra figura, numa unidade que não pode ser perdida, porque se
manifesta já na escrita do descascar da cebola. Essa outra figura, esse
outro termo da figuração estratégica, é a profusão da rosa, e o vaguear
do espírito face a ela, o direito, como vimos, a dizê-la. Um outro livro
de Maria Velho da Costa diz, faz essa figura: Da Rosa Fixa. Em Casas
Pardas, tendes o espectáculo da unidade da cebola e da rosa, e da
contradição que voa no seu centro e a faz mover-se. Dito de outro
modo:

A rosa é o sonho de uma cebola


como ela espessa só que aérea.

Das raízes do seu sonho guarda —


memória com que tacteia os ares
— a gravidade que a ergue intensa,
explodindo sempre, nos céus sobrepostos
de um século
instantâneo.

Espessa como a outra de suas capas


sobre capas, mas mais leve
como uma mina voadora sempre prestes
a proferir seus sentidos, seus cheiros,
seus olhos secos
brilhantes

Como pálpebras as suas asas membranosas


abrem e fecham sobre o pavio luminoso, o
tição ardente e odorífero, o olho escuro e fulgurante
do rio vertical, da neve mais espessa, da
lua oculta. De um sol subterrâneo ascende
em volúpia espiral, o oiro em chamas, a planta de lume.

Não a abre a faca para a decifração dos dentros


mas a mesma mão a faz passar de céu para céu,
retesando e distendendo o mar como
uma lua vermelha: a revolução da rosa
voando de avião as paisagens que mudam de lugar,
uma fala mínima à superfície da terra.

A mão imaginante isso faz, como a do outro,


o Bento, sobre o torno; os dez mil
dedos da linguagem; a mão que te
dobra o flanco, por montes e vales, e te bate
o coração até que o ar falta
e contudo respiras

as ravinas rochosas, as praias areentas


as florestas insistentes, o mundo

«AGARRA-TE BEM QUE INDA AGORA VAMOS A ENTRAR.»

Dezembro 85-Janeiro 86
Manuel Gusmão
oh deixai de edificar
tantas câmaras pintadas
mui lavradas e doiradas
que é gastar sem prestar
alabardas, alabardas
espingardas, espingardas
não queirais ser genoeses
senão muito portugueses
e morar em casas pardas
Gil Vicente, Auto da Lusitânia
I
CASA DE ELISA
VAGA
Que lindo dia, que lindo dia, margaridinhas de olho de oiro
palmeirando mínimas os canteiros na berma da rua, tráfego, gentes, tudo
vestido de roupa lavada, do bruto azul das nove, pressa limpa, pressa
boa, deixai-me em paz e ao meu passo manso, cabeça azoada de vozes
de toda a noite fechada a ver se aprendo, leixai toda a esperança de
onde vos tendes lavado e para onde ides, fugidos, correntes e
determinados, ganhá-lo, ganhá-lo — ganho, se o houver para mim, será
aqui nesta clareza do não ter cegado de saltos de retina entre as noites
cerradas,

Era já noite cerrada dizia o filho prà mãe debaixo daquela arcada
passava-se a noite bem, Canta o resto, canta, Lala, Agora, Zizinha,
deixe-me as fitas do avental, credo, que seca, olhe a sua mãezinha que
vem lá, O pai deixa,

e esta ovação clara do dia passar passando, passo leve e ar já quente,


tudo tão de recorte contra azul, o peito aliviado, a vista ardente a ver o
exactíssimo contorno de tudo, prédios, este rosa de tinta esgarçada com
varandas, verde aquele pintado agora, e os eléctricos que são a cor da
cidade que agride, amarela a tinir a esta minha hora visionária do
visível, carregadora ambulante do sétimo sentido que é o ouvido-dizer,
Há um carro de bois que atravessa a cidade com hortaliça todas as
madrugadas, há, disse o Amigo.

Na janela aberta do eléctrico uma mocinha dactilógrafa acama a


madeixa do cabelo para que vire assim e contempla como Eu o cão
farfalho de repas à trela da criada ao talho, a camioneta cheia de
cabecinhas morosas de crianças quietas da associação de pais
automáticos das crianças autistas, pode-se inabusivamente sempre
escrever o que se lê? o que é que é relevante?, tudo tem nas ardências
dos meus globos de olhos tantíssimo relevo matinal de Eu ter ainda esta
noite escapado,

— Ouve, são cinco da matina, esta merda sem horas não é vida para
meninas, porque é que não voltas para casa da tua irmã, a gaja é chata?
disse o Lúcio.
— O que é que tu disseste à miúda? fala mais alto, não se ouve nada
com esta jigajoga aos berros,

Uó Gina, Ononly you, e a cor vermelho escuro de lâmpada de anginas


ou era candeeiro de abat-jour que estremecia dos arranques do
contrabaixo e pulos do marítimo e da que tinha melenas secas amarelas
a fazerem canudos pegados na malha prateada, distraída, alheia à
comoção dos próprios peitos. A base das garrafas estacava de rijo nos
tampos, os pés arredavam grumos de serradura húmida, bochechas e
sobrolhos desconformavam-se do apoio da mão enfrentando renques de
oito, dez imperiais lastradas de espuma e as capas translúcidas dos
tremoços comidos, emanações ázimas todas até da latrina comum de
onde eles saíam a enxugar testas com o lenço amassado, elas a ajeitar o
alfinete de strass sobre a racha do peito. A Sirena, do outro lado da
mesa tinha ouvido com unção muito aprobatória, muito reticente,

— Lá isso, ó Luciozinho, mas também ninguém a desrespeita, não é


Zizinha?, ainda havemos de ficar todos nos livros quando ela for
escritora,

e punha-me a mão gorda com o anel de lacinho de oiro e pedra azul em


cima da que Eu tinha à beira maço de filtro, Credo, está geladinha,
Zizinha, amor para sempre,
— Mas que é que ele disse?
— Disse que ela não tem nada que vir aqui cheirar que ainda lhe entra a
merda pelas ventinhas de égua,

agastado do gesto de Sirena e da demora da décima garrafa e do


protectorado rapace do Amigo, não menos grosso, disse o Lúcio. Dei
conta que estava entre a maçada e o susto, como em bicha em estação
de correio de portas volantes. Os platters lá seguiam no estacado do
Ononly you e Eu disse, Parecem bosquímanos, o que felizmente
ninguém ouviu. E fui-me embora depressa, quatro horas depois,
deambulante,

e desço até ao Rato já e aí a proliferação, zona cruzada, talhadas de


passeio, de rua, de calhas de eléctrico e imprevisíveis semáforos, o
Rato à roda viva, ou Eu? Que noite, Que obscuros. Que Rato. Mais três
anos atrás e a voz melada, mellow yellow, tulisses, as coisas que Eu já
vi não sei dizer, tios Guilhermes, shakes pear, pêra tremente e tel quel,
do platter, e Eu teria entretido com esse Só Tu os meus humores de
amores. E — mas agora. Que noite. Que Rato. Mal sabereis, meus mal
amados cérberos, vagos ânimos brandos, que, a Sirena,

— Eles, gostam muito de si, Elisinha, mas são feitios, os copos, é como
eu, que se pudesse também não andava nisto,
— Eu amo-te Elisa, tu és bruxa, não vês que ele é um garoto, um
garotão mimado,
— Nunca mais te trago a esta espelunca, nunca mais, porra,

Mal sabereis, ou acaso de mais, lúcios e feros preferidos, que Eu já


vou tendo palavras para vos amar apenas como se mortos todos, a
agitar asas residuais em pranchas espetados pelo abdómen, e até o mais
Amigo que cambaleia a cara de menino entumescida ao balcão, um
sapato a riscar a serradura do vómito do Assistente de Realização, ah,
o Amigo esse caminha já para a mais casta e bondosa das memórias
malignas e Eu, que vos estou como carpa em aquário, a entranha
esganada de frio, vos já digo que isto não fica assim, ainda que não seja
nas vossas pessoas, pequenas peçonhas noctívagas, melgas de outro
alvor,

EU — Chamo-me Maria Elisa.


SIRENA — Ai filha, tão mal encaradinha que está para um nome tão
lindo.
ASSISTENTE DE REALIZAÇÃO — Je m’appelle Ferdinand.
EU — Porra, tão fácil.
LÚCIO — Pensavas que isto era difícil só por ser barato e reles? Difícil
é o antes e o depois. Mas eu amo-te e tu não vês. É o costume, é tudo
fácil.
A SIRENA — Ai filhinha, não ligue que eles estão é grossos.
O ASSISTENTE DE REALIZAÇÃO (a fazer lindíssimo sorriso na cara de
peixe de rocha, cara de Bocage) — Atão, mana, hoje não há
musselinas?
O CHULO (lá do fundo, para não haver misturas) — Uó Gina!
LUIGI (personagem sempre na mesa ao lado) — Não lixem a cabeça à
miúda, que é de vidro e mija estreito.
O AMIGO — Porque é que eu te trago para esta merda?
A SIRENA — Vidro a sua tia, coitadinha da pequena.
CORO DA MESA DO LADO (onde também há um JORNALISTA e/ou uma
ESTUDANTE DE LETRAS) — E casou-se,

um aquário de água sanguínea, peixes já disse lívidos, que dançam, e


assim, debaixo desta indefinição, de sob águas, nenhuma mancha nas
fórmicas ou nódoa de vinho nas ancas de rebolo é visível, nitidamente
canalha, só vagaroso, vagaroso tudo como debaixo de água. Eu hei-de
ver-vos sempre,
— Ó Zizinha, atão está a chorar?
— É o costume, é o mijar de cima, toma, assoa-te,

Benvinda é a comiseração do Lúcio, cidadão dos aliados adiados.

Que lindo dia, que azul de respirar, que dia. Que alívio. Assim vai o
mundo, escapei Eu.

E passo por um lugar desses assupermercados, um rés do chão


profundo, recendente, rico, cerejas do Douro novas, as bagas lisamente
vidradas em rosa, branco nata e vermelho vivo, milhares de lindas, e ao
lado caixas de pêssegos ainda pequenos, pálidos, só os grandes terão a
majestade toda, mas estes são já pêssegos dos lisos na boca, é já tão
quase verão e o mais verde dos verdes ao pé, que é o dos pimentos, e
dezenas de garrafas das grandes de laranjada e encostas de pão saloio
de crosta clara e os frangos na montra em fila dourada como um aquário
quente, outro, ou estão-me a crescer olhos de boga, a girarem no espeto,
devagarzinho e, à pendura, os ananases escamados de fogo, coroa
verde, e o perfume que faz um halo à volta da cabeça de gola grossa em
orla, mechas curtas desta tipa que vem aí, o busto a baloiçar com tanta
doçura, que fêmea é este lugar fruteiro, articulado de frascos e pastas
boas de sabor nos seus sítios de espécie, que fome, que lindo dia, à
beira deste buraco de abundância, trópico fresco.

Tenho fome. A pata ao bolso, pós bicas, tabaco e imperial amolecidas


em mãos, não dá para um rissol. Sacar mais à mana Mary, Maria das
Dores, ao banco, maria, marias. Maria Maria vê se te avias, Maria
Maria vê se te avias, estugo o passo para o pão de casa, agora fica-me
esta no ouvido à guisa de marcha, percebo e oiço tudo finíssimo como
morcega que debanda cega a arrecadar-se na trave podre de patas ao
alto, digerindo chupões da noite a incautos convictos,
O ASSISTENTE DE REALIZAÇÃO — Ó filha, tanto fumo, poucos copos e a
noite a ver, ou és uma borrada ou andas noutra,

que lindo dia nas totais ruas da manhã, este azul de metileno e Eu a
passar navegada por ele, com olhos de hasch natural ou se calhar no
antigamente parisíaco absinto, em suma, olhos de oco em estômago e
noite à vela, olhos de mística por desleixo ou curiosidade, nunca nada
foi previsto, esteve-me tudo feito, não sei fazer muita força,

— A sua filha Maria Elisa escreve lindamente, Maria do Carmo.


— Olhe, António, eu queria é que desse mais atenção à educação moral
das pequenas, a idade é,
— Péssima, minha cara amiga, a sua idade é de pedra
— São suas filhas, não são?
— A sua falta de imaginação não permite a dúvida, Maria do Carmo,
estava só a dizer-lhe que a Maria Elisa,

lindamente como do cair de uma saia. Só que possuir uma gama de


advérbios variegada não é nenhuma bênção, nem pelo contrário. Entre a
sala deles e o dancing rasca não há nenhuma diferença nem pelo
contrário. Repito-me mas não sei se endoideça dado que as palavras me
vêm tão corredoiras e de singular, arredio prazer, como pela perfeição
de pelo pé de uma cereja roubada haver, certas manhãs, mundo coeso,
ainda que não haja com quem, excepto excertos de sombras, os lindos
dias, o ácido, claro, enchavelhado de luz para mim, transparente toiro
verde e azul do dia. Se não me ponho a pau, num dia assim ainda
escrevo, um dia, O ar, veramente etéreo, escreve o seu perfeito discurso
aos homens, o da fina brisa na neblina marítima. Há-de haver alguém
então para entremear um, chiça, um espirro, e um, Santinho!, quando Eu
um dia saltitar extasiada os degraus da unção da minha língua perecível
e aguada, que noite,
e então toda a terra há-de ser assim esta crosta florida de coisas e
asfaltos e humidade de pupilas e canteiros e até savanas cristalizadas
no ar translúcido e semexente do universo,

ah, que em pleno quase cruzamento da Alexandre Herculano é como se


fosse ir ter a visão do que vejo, que lindo dia e Eu a passar por ele com
olhos demais, carregados de picos de uma vigília nem sei para quem,
nem sei de nada, esta alma de bramir sem sons nem fúria a deslindação
a par e passo, o júbilo no mesmo sítio da perdição,

há vazios, ausências, e então dou por mim. Mim é então o que dá por
me dar por mim? Sou maior, faço vinte e dois anos, cumpro. Que
cumpro? A experimentação ad nauseam, Sartre maça-me muito, da
pequenez da licença? desta licença? A que costumes ater-me?

Que todos nos carros assentados ou a cruzar-me estugados com a cara


enxaguada de fresco e pozes e cremes, de saber para onde, porra, a paz
que Eu queria, por debaixo deste festejar de passeando transportando
ditos, ocupada em grande lazeira na terra de ninguém entre a treva e a
treva, fretes adiados,

que lindo, lindo, ácido, claro, enchavelhado de luz para mim, dia,
chamo-me Elisadédala, ou, tendo em conta o estoirar do dia,
Zizieuropa, a cavalgar cachação de boi de abate. Am I going mad, with
God on my side1, ó Bob de cá?

Passa-me uma criatura rochosa e bonita como um espigueiro com dois


sacos de plástico em cada mão — uma blusa muito branca e tranças e
olhos, como uma ama,

vacilo
a mulher pára e se Eu precisasse deveras já de ser enxugada caía aqui
nas pedrinhas da calçada aos pés das mãos dela, cheias como disse de
sacos plástico,
mas isto não são horas de ser a classe operária e tudo o que é humano
me vai ser muito estranho, a agonia passa se me assento, sei muito bem
não cair na rua, pode-se aqui deambular ainda sem quebra, era em
pequena que Eu vomitava e caía muito, houve tantas solicitudes, it takes
all words to make a kind,2 sai um sorriso para a senhora do Espigueiro,
quando estou nisto fico muito religiosa e falo inglês, well, I’ll be
damned,3 ce n’est pas pourtant le désespoir, os bancos da avenida,
cornadura volutuosa do parar duro, estão perto.

Aqui estou de banco de Avenida, nunca gostei da avenida, acho que


tudo anda por ela furtivo, os casulos dos médicos por detrás das placas
lá para dentro parecem ser para indecências com mortos, passes ricos,
os turistas esgueiram-se e quem se senta desencorajou-se muito ou
questiona com o amante pobre. Ou Eu aqui hoje já não vejo nada, nada
de humano sem ferrete de desolação, nada,

a garrafa partia-se no ombro do Lúcio, ou foi no chão, não oiço o som,


a fazer que era atirada à cabeça mas não era, esta gente bate-se ao lado,
como quem pede licenças e desculpas deveras de bêbedos porque cá
fora já não há a quem,

que aqui vai esta de ralação em punho no punho do saco reles,


tornozelo fino e perna cheia, tão mulher de si, casaco cor de rosa pelos
ombros, tão aflita de atraso ao hospital, ou homem ou prestação ou
quem ou quê. Pega-se, aquele latir de alma, cava buraca em mim. E
para quem o sempre ser assim, arfar de uníssono por quem passa, já
nascida cansada? Logo-logo, a pouco e pouco breve, os outros me
entram de supetão ou manso, os passantes. Eu gasosa e respiratória
deles pelos fundos dum pulmão aberto que me caverna pelo olho
abaixo. É preciso pisar então o que ele pise, esmoer o que ele esmói,
quem venha,

É tudo o que se apequena ou engrandece, nestes estados? Quais estados,


de nação? Primeiro elemento a identificar isto — os significados
entram em variância até à insignificância. Em Lisboa, nos anos
sessenta, num banco da Avenida, Eu. E é tudo que se apequena ou
engrandece? Depende de lá passar, cair, ou ir andando, manco que seja,
parece que. E se muito passas chamam-te crivo ou ralador, utensílios
modestos, que só indo a passar ao sério a perdição gasta pode ser
exemplar, parece que. Carece sofrer a quem se passa, a família, os
amigos, dolorosamente, desistir quando azo disso. Modas não. Mas lá,
corno do banco duro me está dizendo, lá nos outros, nunca foi preciso
deveras este pasmo aéreo do meu olho, esta paixão passageira pelo
agudo vinco aflito de tudo que vai agora na cara da mulher de socos
beras já na passagem de peões, ou foi isso preciso tanto para explodir
aqui mais que um nome, uma família ou a ordenação das fronteiras?
Pareço a rã na fase de novilha tresmalhada que é antes de ir para vaca
arrebentada. E sei agora porque é que estou aqui sentada a mais grelar
por fricção de costado a tinta do banco, depois de uma noite em que
eles, que me acham visita, que Eu não bebo ou mercadejo amores ou
regulares companhias, sei agora o que é que estou a fazer — estou a
perceber que isto não pode ser assim e que Eu tenho que perceber isso
sentada por debaixo de um lindíssimo dia de Lisboa, e que isso toda a
gente percebe, embora alguns digam que é culpa do merceeiro, ou da
modista, ou do patrão, ou da patroa ou do marido que há, o poder é
outra história, ou não? e que Eu tenho que perceber isso de uma maneira
qualquer dia terrível, que não dá para beber, nem para chorar, nem para
coisíssima nenhuma a não ser para não desistir e sem saber de que não,
pausa entre pausas, hiato hiante aliterantemente aliterado, ali tratado
em,
que lindo dia, limpa de companhias sem saber para quem, livre de
atilhos grossos, mas sem saber para quê. Mas que é que Eu vou refazer
da repartição sem ponto da minha vida, que não tenho saúde para
vigorosamente doida, nem candura já que chegue para dar-me cabo?
Que é que Eu vou fazer do passeado amor que lhes tenho a tantos, do
agudo desvelo fiel por tão poucos? E da coisa de nojo que me põe na
desanda mas sempre com o lencinho de alma a acenar ao que tudo,
todos, poderiam ser-me, o quê?

Tudo é afinal novo. Ou há uma maneira de olhar de mim em que tudo é


novo. Tem dias. Isso é por causa do que vais escrever quando um dia
escreveres, dizia ontem-hoje o Lúcio, que ele é dos que acham que o
que se faz de desnaturado é sempre coisa para ser de arte. Sempre é
uma ordem. Começo a saber o que é mexer numa arte por dentro das
guitas do boneco, mas não é a isso ao que eu ando, ou ando a outra
coisa que talvez só lá chegue pela vestimenta disso. Eu queria era.
Outra era? mas qualquer ponto do pontilhado desta me agarra: vejo um
cisne novinho, felpudo como uma bolha morna de vida e já vai sobre a
água com o deslize todo, a cisna com os grandes calos pretos na cara a
lembrar que é bicho furiável, os dois borbotões de carne no focinho a
destoarem de toda aquela tremenda graça num lago destes. Da realidade
não prefiro a humana, mas que outra realidade que a humana é a desta
cisna que se me abeira por hipotética dispensadora de alimentos, Eu?
Olha para mim e Eu olho para ela. Uma vez estava Eu nisto, já tenho
estado nisto, com os macacos. Foi assim: que um mandril me deitou
través grades a mão ao braço onde Eu tinha um amendoim na ponta da
mão, Eu a ver se ele via que Eu o via e ele a disfarçar até que
respondeu, sempre achei que com razão. Não se pode olhar de ver uma
fera presa sem lhe dar direito a dar-nos a cólera ou ao menos o terrível
desejo de mais que toda a curiosidade amante levanta. Parece que.
Hora esta de sentenças titubeantes, o que Eu gosto destas sentenças da
manhã que não teve noite fechada ao sono — amar quem não tem nem
terá o que temos é uma indecência. Não há é regra de cálculo das
probabilidades do comércio com outrem. Excepto a constatação que o
desaire é, Bem feita. Fiquei com um arranhão no braço do cotovelo ao
pulso com crosta para semanas e o meu pai, falecido, disse, A
experiência é a cicatriz de todas as coisas. E a minha falecida mãe
disse, Com a menina nunca estou sossegada. E a criatura assalariada
que me desinfectava disse, É bem feita, Zizi, os bichos não são pessoas.
E Eu disse, E as pessoas não são bichos? E o pai disse, São. E a mãe
disse, Não, porque têm alama. E a assalariada disse, Credo, Zizi. Um
dia destes hei-de ir ao Jardim Zoológico a ver se arranjo doutra
maneira as minhas reminiscências e a família.

Dou pelo ruído dos carros, cada vez mais, numa brutidão que jorra a
cada luz verde. E agora esta gaja tão, tão bem vestida e pintada. Está
muito mais vestida que ela mesma, carrega a farpela amarelo tourada
como um halo dentro do qual é melhor não mexer muito para não
desmanchar, o olho todo sol e sombra, irisante, bonito e claro como um
ovo estrelado magro, um passo pede licença sinuosa ao outro, um
flamingo filmado em câmara lenta. Já viu que a vi e despacha-me e
volta a ver. Sei muito bem que estou com roupas intermédias e usadas
gastamente, nem chique deste nem do outro, nem antes pelo contrário,
bota velha mas jourdan e não trago mostruário de colares, olheiras
como de droga mas olhos da mais primeira comunhão, tenho uma
córnea sólida. Odeio-a, excepto pela vacilação que lhe causo e é
sempre por aí que me apanham as almas cromadas a amarelo e sapato
de verniz. Fico logo sem saber se são menos o que parecem mais, ou
mais o que menos parecem porque ninguém as chama. Passou, passou.
Virou-se uma vez mas era mesmo para as botas. Naquelas casas é
preciso só ver o que se reconhece. Porra de botas. Será que para andar
deveras ao que ando só descalça e com um funil na cabeça e badalo de
contágio? Ou com umas chinelinhas de Viana e uma maxi de folhos?
como se calça uma pessoa que vai escrever pelas ruas, que vai
principalmente isso, uma pessoa fêmea? Com os sapatos da Agustina
que devem ser o que de mais parecido se faz em calçado no Porto com
o que de mais parecido se fazia em calçado no Porto? Como os da Irene
Lisboa, saldos da secção do Grandella nos anos trinta, se a havia?
Como a Virgínia Woolf, os mais feios da melhor loja, duas vezes ao
ano, por atacado, como os da Gertrud Stein, duas fivelas de strass sem
sola? Deus dos sapatos, como isto me está tudo a ir depressa na cabeça,
ou lá onde quer que é, que é também uma fala. Vejo o prédio da
Equitativa ficar todo enevoado e sei que estou a chorar discretamente
de pura frivolidade mansa. Se Eu escrever, então terei a certeza que a
escrita é também uma coisa frívola como um sapato pensado. Até lá
tenho que me comover por não saber o que hei-de calçar-lhes. Se Eu um
dia souber que toda a arte, mesmo a séria como um raio, participa da
mesma realidade equívoca que faz que o coração humano deseje
miríades de formas de sapatos, hei-de denunciar isso mesmo e então
não haverá mais doidos ou santos necessários sobre a terra e ainda
menos artistas. Acho que era isso que Eu queria, se escrevesse — que o
que tenha que ser perguntado aos ares não o seja na terrível solidão
dum sapato velho desirmanado na profusão dos calçados. E se um dia
escrever vou ter que ter cuidado com as imagens baratas, com tudo o
que é barato e se passa ao lado. Toda a gente quer algo que ao menos
imite o,

Elisa, minha querida, que é que


estás a ler?
Salgari, pai.
Que abominação, minha querida, se
te diverte.

custoso.
Sei muito bem que era preciso um acto de força para reunir isto tudo.
Ou duma tão perfeita atenção que Eu pudesse ser como um espelho
passável, as criaturas punham-se-me nos olhos e Eu deixava-as passar
através para um mundo onde tudo estava passando-se aceitando e Eu só
tinha que estar assim, sentada num banco da Avenida, desta, desta terra,
a sorver o mundo todo pelos olhos para o lado de cá do de lá. Tenho
frio. Ouço melhor o sussurro do ventinho fino nas folhas,

mais moles por detrás, arbustos, palmeiras perenes os plátanos de fim


de Inverno, à frente a berreira e ronco sorvido dos carros contínuos,
entre mim e eles estas pedras da paciência no chão, aresta a acertar
com aresta, britada à mão, milhares de vezes mesmo, quase mesmo
gesto, mas diferente. Foi preciso o calceteiro pôr-se nelas, nas pedras,
o preto no branco pensado, quanto esforço miúdo para redigir um chão
que ninguém sabe, coeso, arestas por aresta, preto no branco, cá vem
um menino no jogo velho português mágico, só pisar as pretas, a pé
coxinho, e nestes pulinhos se reata com a vida a triagem
minuciosamente absurda do calceteiro, muito mais que em olhos de
perito urbanista debuxador a vir decifrar a tiracolo a grafia dos
alpedrados de Lisboa.

Levanto-me, pela cor deve ir para as dez, um frio nos sovacos uma
vagueza, sento outra vez, tontura, foi depressa de mais, tenho o ânimo
alado, sempre pronta para o lado do ar, há que aprender a manejar este
feixe de coisas dúcteis mas inesperadamente ponderáveis, o corpo, que
às vezes me leva o que em mim fala, outras o puxo como papagaio
alteado à contravento, outras o todo uma só vibração, corda de vida
viva e isso é rectilíneo e dócil como o voo, musical acho. Levanta
agora debilzinho, posto em marcha não há azar, há na canseira andante
uma autonomia das pernas. Se não passo depressa o trânsito engole-me,
que força tem o não dormir, os carros parados enquanto Eu passo
parecem o monstro agachado de muitas cabeças que deveras são, o
monstro com que se coabita nas cidades e às vezes se lhe vai no ventre,
levado à mercê do choque, da aglutinação do osso e do metal. O Lúcio
chama-lhes popós, espécie de consagração do menino tímido e pedestre
que se mantém aos quarenta, sem privilégios, caracóis pretos.
Atravesso a rua com uma grande paciência e um meio sorrir a Lúcio em
mente, forjando-lhe loas, rosa preta do donde nunca poderei vir,
debaixo da amargura tão chá e às vezes reles, a indecomposta
esperança, cândida limpeza só à espera e há-de morrer assim, manguito
brando na mão, beijo húmido no olho que luz, dizendo à morte, É o
costume, lavado Lúcio que te usei de São Jorge para o dragão do
trânsito, Eu cavalgadura do pensar-te já agora cá do outro lado, pronta
para outra arrancada mais delgada de volta à Alexandre Herculano, as
coisas que Eu fazia a esta malta dos copos se tivesse tripas de
misericórdia tónica maiores que as da cerveja. E é agora a evocação da
fala de Luigi invocando-me que me trava os ímpetos de regeneração
parva, Zizi aérea, tinta nas veias, manitas de plátano, virginiña loba.
Acho que ninguém me estima com tão desrespeitoso gáudio, o único que
mastiga palavras e o sumo lhe escorre pelos queixos,

Manos? Que ideia, nem os amados de amor. Como nos abandonamos


todos, mas não a atravessar as ruas distantes, lembrados,

que agora debaixo dos meus pés, é debaixo dos meus pés que a cidade
muge um só ronco indistinto, há um cântico dela a trepar-me pelas
pernas que pus de pé, estas artérias abrem-se já para uma grande luz
que é o que está por debaixo deste chão onde avanço, já à beira
passeio, cromados, cadeiras metálicas já expostas à rua onde se sorvem
bicas e espraiam as folhas largas do oficioso da manhã, vidros de
montras, a ordenação das novas edições cintadas, das janelas e sacadas
desertas até ao alto repicam fios de sol, o som das buzinas trombeta,
clarineta, as copas das árvores mais baixas incrustadas numa aberta de
terra nem bulem por aí acima, redondas no gostoso pedaço de húmus nu
que lhes é feito aos pés, os jarros novos de pitinho amarelo ao alto nos
canteiros de rua, inodoros, que coisa me jorrou da passagem de rua e
dos amigos sentidos, que lindo dia, minha cidade minha desenhada no
ar como que sólido suspenso, esfera compacta e transparente onde tudo
se ordena vivo e amável, que finíssima agulha de alegria respiro, os
prédios chochos devolutos à batida de velhas máquinas e notários
volvidos coisa quieta e promissora, vidrada ou verdosa ou azul velho,
oiro o pardo, tão ali, tão tudo belo só por sendo, que lindo dia,

e escrevo que vim para casa, estendendo braço a táxi. Dos


surpreendentes artifícios onde não joga necessidade comum. Que noite.
Que jogatana com os tempos que é presenciar o que já foi. No jornal da
manhã diz que o estado do tempo é estacionário e o do presidente
também. O extase e a estase coabitam no mecanismo que crepita da
própria devastação, ferrugem. Paragem, fagulhas da imprevista fricção.
País com tantos poetas e nenhuma remansosa fluência. A engrenagem
involui continuamente por paragens, mises en marche abruptas. Não
tenho idade para a nacionalidade que me percebo. Quanto à classe,
imperial, também me lavo. Vou tomar um banho quente que me fustigue,
fumigue e escrever assim esta epístola do desamor,

Amigo, ó meu Amigo,

Se a religião é o ópio do povo, a paixão é o ópio da burguesia. Ponto.


Vejo esta frase como um pedaço de matéria fecal bem moldada,
matinalmente regular. Isto é, uma merda. Porque constato que do lugar
onde estou disposta, (a causa dessa disposição não na sei ainda), onde
não é necessário fazer nada, onde não é necessário, em termos de estrita
sobrevivência, estudar nada, qualquer coisa que Eu saiba ou sinta é, de
um outro lugar impraticado onde Eu não estou, mas de cuja existência
começo vivamente a suspeitar, uma merda. Vês tu, atingi a perturbação
de ver a minha vida e noites como a de ontem como um buraco onde
mesmo a pungência da dor e da separação é irrelevante a não ser como
húmus para outra coisa onde ainda não estou. É impossível que a
exasperação dos afectos e dos sentidos dê apenas em tão pouca coisa
quanto vontade de morrer ou de matar abafadamente, em cordura de
bêbedos que perdem a pontaria dos gestos, na impotência dos ditos
lumpen, que escasseiam de potencial de fogo para chegar ao alvo. É
muito difícil agarrar isto e mesmo em termos universitários, de letras:
caríssimo: somos da mesma casta, dentro da casta somos dos que são
deixados experimentar até aos limites da tolerância. Sendo assim, que
sentido tem este combate corpo a corpo, ó Preferido, senão o de —
desejo de voltar ao mesmo. Endogamia, trapézio mas com rede, incesto
faraónico descido à rua em celebração de efemérides afinal dinásticas,
de famílias, nomes conhecidos, como eles dizem, a disseminação da
peste bubónica,

Dando-se o caso que o telefone


toca e Eu atendo que esta carta não
é assim tão importante nem
novidade nenhuma,

— Tááá? Ziza?
— Mary?
— Olá, minha querida, mas que péssima voz com que a menina está,
olhe telefonei-lhe porque estou com uma neura horrível e precisava que
a menina me emprestasse os seus sapatos pretos.
— Quais?
— Oh Ziza, pelo amor de Deus não se faça pateta, os com a fivela
branca que nós lhe trouxemos.
— Hum. Depende.
— Acho incrível, Ziza, essas brincadeiras, eu já estou o mais enervada
que há, estou atrasadíssima para ir lavar a cabeça, vou-lhos lá buscar
às seis. Olhe, a mãe, lembra-se que faz um ano que a mãe,
— Não, não me lembrava mas porque é que estás a chorar, Mimi?
— Não posso mais com isto tudo, logo digo-lhe, é horrível.

Lá isso, mana. Nunca trato a minha irmã por tu senão em Nome da Mãe,

Dizia-te eu que a gente não deve gostar dos pobrezinhos valentes para
os deixar no mesmo sítio. Ou que as pessoas são na vida política o que
são na vida pessoal. Quem se aldraba na uma aldraba na outra. Por
isso, em meio do aquário e fossa de putas e chulos e perdidinhos de
leituras já ordeiramente malditas onde me levas para eu ver e passar o
impacto de ser vista, não difere muito do que fôramos da nossa idade
normais nas boîtes e noites de viagem onde apenas os limiares da
tolerância são ainda, apenas, mais normais e o indizível apenas, oh tão
apenas, mais corriqueiramente mal dito, mal feito. Prossigo a minha
ponte de inconformidade que desgraçadamente não me leva a ti, ó
Preferido, por cima de dois pilares esses já assentes e perfeitamente
irromânticos apesar da lancinância da nossa proximidade ou deste
aguado derramamento das minhas cartas que te têm por Pronome certo,
os dois pilares do templo de uma interdição tão perfeita que só se lá
pode entrar orando para um depois que não nos diz respeito (excepto
pelo trabalho? excepto pelo trabalho? qual trabalho?). Pilar um: os
ricos não se amam, na melhor das hipóteses comem-se vivos. Pilar
dois: o homem e a mulher não se amam, na melhor das hipóteses não
desistem de se matar um ao outro Tal Qual São. E os pobres? Na
melhor das hipóteses amparam-se secretos até ao fim. Há casais deles
que morrem calados, as caras semelhadas por uma transmigação de
traços misteriosa. Ah que desvantagem ter um fim de adolescência tão
verboso e sabido. Vou finalmente contar-te uma história de família
vigorosamente escabrosa. Quando o meu pai
Badalo de telefone volta a apelar
para a razão de estado, deste
estado.

— Ziza?
— Frederico?
— Olá, olhe a sua irmã falou-lhe?
— Falou, estava um bocado para o desatinado, acho que quer os bally
que vocês me trouxeram.
— Os quê?
— Quer que eu lhe empreste sapatos, que a galeria dela hoje não dá
para o luto, espere aí que vou baixar o som.
— A menina só ouve coisas mórbidas.
— Mórbido é o seu tio que não se sabe bem se não será seu pai.
— Não seja besta, Elisa. Sabe onde é que está a Mary?
— A minha irmã chama-se Maria das Dores e está no cabeleireiro. Não
arranja melhor que a sua mulher para uma emergência de tusa?
— Elisa, você está bêbeda? O seu desbragamento de língua ultrapassa,
— Não se amofine mano, são só gargarejos matinais, não me diga que
lhe atrapalha a gravata inglesa, ou é só a telefonista?
— Oiça, se a Mary for aí à tarde diga-lhe que eu afinal vou jantar.
— Que solicitude, Freddy dear, está corno?
— Vá à merda Elisa, isso nem sequer tem charme, é só canalha.
— A verdade sói ser, cá por casa.
— Qual casa?
— A donde você sacou a minha irmã para dentro da mesma.
— A menina está a ficar solteirona azeda ou tem má erva?
— Porque é que não berra de manso com uma das suas cabrinhas de
tetas de plástico, mano, eu só fumo do tabaco que faz cancro.
— Elisa, não tem graça nenhuma, isto é uma crise grave, venha cá jantar
na sexta, a sua irmã, fale à sua irmã.
— Eu não sou a mãe mais nova da minha irmã mais velha.
— Elisa.
— Hum?
— Que disco é que era?
— A Balada de Mathausen.
— Não seja pedante, que é isso?
— A paixão seguindo num campo de concentração, theodorakis, grécia,
coronéis, siemmens, lever, von krupp, quadro superior de olhos verdes,
uma gravata balmain, enarcas e eton, badegodesberg que é a montanha
mágica, marketing, mano, a informática que é o seu ramo, quer que eu
lhe diga onde é que se compra?
— Elisa, você é muito mais snob que a sua irmã e muito mais doente.
— Lá isso, é bem capaz, só tenho uma vantagem.
— Não se casou comigo.
— Boa, mano, mas trabalhosa.
— Era o que eu lhe estava a dizer, vai ter que me provar que é uma
vantagem.
— Adeus mano, você não é o meu inimigo preferido, se a Mary vier
dou-lhe o recado, sem molho.
— Elisa, a menina precisa de descansar, porque é que não vem uns dias
lá para casa?
— Prefiro a morgue, namora-se menos parvamente.
— Que coisa incrível a sua evolução, Elisa.
— mas olhe que é descontínua, atão adeus.
— Adeus Elisa.

Reconsiderando pós telefonema meu cunhado, deixemos, Amigo, as


cenas primevas que elas moem por si. Queria eu dizer que ou vem
qualquer coisa que nos arraste, ou. E nem sequer as artes, porque nos
arriscamos ao bom sucesso, nem sequer as organizações,

que sei eu das organizações senão que temo sejam o lugar da


perpetuação das outras organizações de organizações,
Tenho fome, meu querido, tenho frio e cansaço como uma monja
fustigada pela madrugada sem que nenhum propósito dê tino a esta
espécie de ascese para nada de visível excepto este alinhamento de
traços, sem outro êxtase que não fugidio ou aquele que nos denegamos
com decentíssimo, castíssimo,

mais matinas de telefone:

— Elisa?
— Estou a escrever-te.
— Como sempre.
— Como como sempre?
— Vou desaparecer por uns tempos.

— Que é que disseste?
— Não disse nada.
— Baixa isso

— Elisa.
— Hum?
— Elisa.
— Escreve-me, mano, manda-me de lá um postal.
— Qual lá? Acho que não, ambas as coisas.
— Achas que eu tenho que morrer cedo?
— Acho que nos enterras a todos.
— Tens a mania das grandezas posta nisto.
— Não é mania, está provado.
— Disto só tens a quarta classe, ó estudante.
— Elisa, porra, estuporada competição.
— Tu ontem estavas bêbedo.
— E tu não, posso-te acusar disso. Já alguém te disse que te arriscas a
ser uma grandessíssima fraude?
— Não, agradecida.
— Ou morres, ou matas, ou ficas uma fraude de merda.
— Tu também Afonso.

— Como diria o meu cunhado isto é uma crise grave.
— Mas eu prefiro-te, tu,
— De modo que vais desaparecer por uns tempos.
— Elisa.
— Dizes o meu nome sem nada dentro.
— Eu não levo nada dentro.
— Levas-te a ti inchado como um balão do nosso sopro.
— Não. Tu escreves-me, tu vais escrever-me, tu vais sempre escrever,
tu,
foi monstruoso ontem, estavas ali a escrever aquilo, estavas só a
escrever aquilo.
— Não, eu nunca me resguardarei nisso, tu, tu,
— É a única coisa que sabes dizer quando,
— Como diria o meu cunhado isto é de facto uma crise grave.
— Merda para o teu cunhado.
— Prova e depois avia.
— Eu a ti era só preferir-te, Elisa.
— É a única coisa que sabes horrivelmente dizer, a única coisa

desligamento de lá.

Diálogo em seco:
Achas pouco, ó Amiga?
Acho, ó Mano, acho.

castíssimo horror.

Termino pois esta, desenderaçada, depois de arregaçar-me do chão


onde a marcação impunha que eu me deborcasse a dormir de choro,
desejando-te as maiores felicidades, isto é esperando um dia desejar-
tas deveras, isto é, minha flor de veludo singularíssima e íntima e
preferida que és no mais pensado do teu sentir-me desejando-te que já
nem te deseje, como nesse obscuro domínio do obscuro, e feio de onde
jorra o feto e o texto e o acto de justiça, feio, forte. Mas cedo, ainda é
cedo. Digo de mais.

Tu.

Está lá fora a minha irmã e um lindíssimo dia a apagar-se. Mas não sou
Eu que vou chorar, que a minha irmã se encarrega disso e Eu das vascas
celestes, à mão tosca, exuberando o apalpar de tudo, até da ausência,
cristalizando, cristalizando,

não dar-lhes armas, nomes, nada de legível,

mas não se deve olhar as cidades assim, a maior dor, a vista da


distância, faz estátuas de sal-gema que qualquer água rói, que lindo dia,
abro a porta, está aberto o baile, a minha irmã tem um casaco novo,
— Ena, que chique
— Não seja má, Ziza, tem cá alguém?
— Não, nem Eu.

1 Referência à canção do mesmo nome, de Bob Dy lan, anos 60. (N. do T.)
2 Jogo de p alavras que significa São p recisas todas as p alavras p ara fazer uma esp écie, Paráfrase do dito inglês: São
p recisas todas as esp écies p ara fazer um mundo. (N. do T.)
3 Rais me p artam, bem. (N. do T.)
I
CASA DE ELVIRA
EPIFANIA
Tu vais por uma vinha afora, que é vinha grada por todos os lados, pela
tua frente, pelo teu detrás, pelos lados, até perder de vista. Não
entendes aquelas parras largas a secar cobertas da poalha azul do
sulfato, nada as rilhou e as uvas ainda pequenas e inteiriças mas secas,
cachos mindinhos como que de amoras verdes gigantonas mas palha, os
galhos que é uma força, o lenho escuro deles a mal distinguir-se da
negrura das folhas ressequidas, dos bagos secos como semente de
cânhamo. Por cima daquela terra sem água, bocarras pretas a abrir-se
onde o zebrado das fendas é mais profundo, regos finos como os da
palma da mão a abrir trilhos de abismo a abismo. E em cada pedaço
inteiriço da terra barrosa, vermelha, morrões secos a rilharem debaixo
dos teus pés descalços carmesins do pó dela, alevanta-se airoso e
carregado um novo pé de videira. Paras. A que te está à beira trepa, tu
vês. É um escobrejar de gavinhas, todas elas estão a deitar corpo à tua
volta, espigam nem se sabe donde, estás na vinha do Senhor que cresce
e cresce, é já um figueiral à tua beira, medonho, um pé vai-te descer por
este rego que cresce de pretura sem fundo, a terra ronca e o estender
das gavinhas silva. Um galho grande incrustado de pequenas unhas de
milhafre em cada irregularidade do lenho repuxa-te o lenço e o cabelo,
a terra abre-se-te debaixo dos pés, gritas e não te ouves, a tua boca está
aberta mas muda e queda e mais e mais e os olhos e lá fora já clareia
mas o teu homem ainda ronca de levezinho. O menino geme, um bulir
com a voz ainda miúdo. Amandas a trança para detrás das costas já
sentada na cama, os pés no tapete. A água que derramaste ontem a lavar
as partezinhas do menino não secou. Ainda esfria o tempo pela manhã.
O menino tem os olhos abertos. Olha para ti, dá que dá aos braços
ainda cepinhos, ri-se com as gengivas de fora e esperneia, descoberto.
Pões o xaile pelas costas da combinação antes de lhe pegar, chorinca já
os olhos pregados nos teus, o teu homem bufa e entaramela-se a
acordar. Através da parede ouves o velho Hermínio virar-se, roncar de
mais rijo. Pegas no menino, tão molinho e sentas-te na borda da cama, a
cabeça dele a marrar-te com a cara numa aflição muito sisuda, boca
aberta, sem choro. Tiras o peito para fora e ajeita-lo. Ferra-te mas sem
dentes ainda, pica mas por pouco. E ficas-te a esvair-te assim num
grande sossego com o teu homem que acordou e te pôs de manso a mão
no quadril e de manso a deixa ficar enquanto se desestremunha. Está-te
quedinho que tenho hoje muito que lidar, é a tua primeira fala. Não se
houve bulício mais que o da rua, do outro lado. Vais ter tempo de dar a
bucha e o café e de sair para a praça com o casaquinho de malha em
mente para comprar nas alcofas da porta sem que ela te moa, Credo,
Elvirazinha, isso é gastar sem prestar, uma malhazinha tão reles. A tua
mão está cheia de penuginha morna, a cabeça redonda do menino, o
outro braço aninha-o, a fralda ainda quente de mijo. Aí estás, aí.

EPIFANIA DO TEU MENINO

ao princípio era a esfera. opaca e quente mole. de coagulação sem


vontade acontecida, segura no redondo sem peso. sono de enrolo. das
coisas que se enroscam sobre si. o som perfeito côncavo certo ritmo. e
não havia a luz nem mesmo as trevas. era tudo. como da não distância.
de luz lunar ou sob águas nocturnas. de tenaz como o bolbo branco. não
ver. a mesma opacidade de transparência toda interna do antiquíssimo
ouro. cegueira porém não. o ver de não ter parte mais que o
alastramento do musgo, a precariedade filamentosa do fungo, a
carnação parcelável da medusa. de que saber sabendo? de quem querer
querido? nas águas presas, circundadas de carnes, ondula, tacteia a
duração. nem lei nem nome. está vago. esse pronome.
lentamente se aperta. há um desdobro, sendo da esfera solta ao cerco
um tempo. se inscreve os limiares pelo princípio do menor susto. quem
comanda o desate do enlace agora curto, a rotura do círculo
demarcado? o desprazer do aperto? o invólucro lesado pelo excesso do
contido? a dúvida vem adiante da dor. sem nome (ou pronome) se
distingue por quedo e por movento. começa. lembra? inscrito no
demenos crescente vai lembrar de ser enorme. compara e cresce. o não
antes do nome. a parede de carne desce e sobe e estreita. (o parietal já
foi ossificado). pode doer sem nome. expele. impele para um fito. até
que fura, força, é forçado. escorre abrupto do magma. arqueja inerme
visco e muco. até que brame, vage alto. ainda o mesmo astro desdobra
os minúsculos alvéolos desabitados de ar.

(mas o verbo incarnou já no fremir da solitária carne vegetal singulada


inaudível e invisível nas águas sobrevoadas de vapor, no período áureo
das células singulares). nenhuma espécie lembra tudo, mas só esta
esquece.
(esse pequeno rumor da luz a acasalar infímas moléculas, alacremente
só. balir não é menos correspondente. ou a fricção de acopular-se sob o
mesmíssimo astro a lesma com a lesma. quanta inaudibilidade apenas
raramente visível. quando a cria da baleia se acerca do mamilo postado
alto, sob gelos.)
só este feixe de matéria altamente organizada vai emitir nova novidade,
senhor cósmico do bem e do mal? nenhuma fanfarra é demasiada para a
abominação exaltada de um nome (de pequena nascença) qualquer.

a parteira soube,
É macho e saiu de touca, menina Elvira, faça força, mulher, para sair o
resto.

A casa pode dizer-se que é grande. Tem até um quintal com três pés de
limoeiro e uma palmeirinha, pés de couve, sebinhas de sardinheira e
uma árvore da borracha que foi presente envasada à Fátima. No tempo,
nabiça, tomate, malmequeres, rosinhas de Santa Teresinha e jarros até
dos amarelos, tudo. D. Marieta e o senhor Hermínio em casaco de
pijama e o teu homem aos Domingos e tu agora, têm tudo muito bem
amanhado. D. Marieta disse, Ai, aí não remexa, menina Elvira, que
estou a guardar para umas violetazinhas. E diz, Tenha paciência, senhor
António, dê-me um jeito aqui na travanca dos periquitos que me está a
emperrar. E disse, menina Elvira, eu hoje vou pôr os lençóis na
máquina, estenda as fraldinhas mais para lá. Com as chinelinhas de casa
na borda do rebordinho de cimento. E diz, Abra, abra mais o
lençolinho, menina Elvira, não, não ponha molas de pau, olhe estas de
plástico. É Assim — tudo organizado. D. Marieta enxota, os velhos de
pedir, os gatos, as moscas, o pulgão da roseira, o encardido dos tachos,
com o que para caso é preciso. E arranca o trevo que medrica a cada
chuvada com uns botins de plástico aperreados ao grosso da barriga da
perna curta, um lencinho de nylon sobre as ondas muito certinhas, da
laca. Depois passa os botins a pano e as meias e põe a enxugar no vão
da cozinha que faz marquise. Ó Elvirazinha, já lhe expliquei que o
alguidar das fraldinhas desfeia a casa de banho, meta-o debaixo do
tanque, sim. Tudo tem o seu sítio. A cozinha é só de armários e
máquinas. D. Marieta, a cabeça redonda de rolos, disse, A menina
Elvirinha, se quiser, paga a electricidade e a água e eu ensino-lhe à
minha vista a serventia da máquina, primeiro tira a maior com o
omozinho e dá uma passagem no tanque. Olhe que também dá para o
cotim, põe-se no mais forte, quer ver. Tu vês. Mas tens medo. Aquilo
tudo embrulhado, à roda à roda. O velho Hermínio, Arranje-se senhor
Hermínio, tenha paciência, isto é uma casa decente, não o posso ver
todo o dia de casaco de pijama. O velho Hermínio diz, Quando é que eu
posso ir para o meu quarto, pago, não pago? ou, Quando é que se come
nesta casa? D. Marieta alevanta colchões, bate almofadas, as janelas
escancaradas zunem por toda a casa ao desamparo das correntes e da
luz abrupta, o teu menino berra a ser mudado para as que se vão
fechando na penumbra, para o quarto de D. Marieta e da Fátima onde tu
ficaste a ver ao pé da cama dela aquela senhora nua que a D. Marieta
limpava e ela disse, É uma pintura de arte. E o teu homem disse que sim
que era. E o menino para o quarto do velho Hermínio que apesar cheira
sempre um pouco a despejos e à naftalina da farda no gavetão da
cómoda. E o senhor Hermínio disse, É minha, foi o que me ficou da
minha falecida. E o menino para a Casa de Estar onde quando não está
o rádio está a televisão ligada, quando não estão os dois. Tantos
barulhos.
À noite, sentam-se lá à roda como para uma boca de fogo. Há ainda
alguns restos dispostos no pano de plástico com flores do tamanho de
coelhos, depois de retirada a toalha e sacudidas as migalhas que
esvoaçam na noite até ao patim de cimento do quintal. D. Marieta faz
isso. Vai depois sentar-se com um gemido de rins, onde leva as mãos,
Ai eu. Ficam a olhar para as coisas no aparelho como para
morrõezinhos de candeia na igreja, a olhar, a olhar. D. Marieta tem os
óculos a descarregar do nariz, Hoje há aquela da Rainha de Inglaterra,
o senhor Hermínio tem um braço apoiado na mesa e diante de um prato
um pouco falhado, o prato dele, com cascas de tangerina com os fiapos
brancos alevantados e alguns gomos com mais caroço cuspidos depois
de lhes moer o sumo. O outro braço deixa a mão sobre o joelho como
se lhe faltasse o cajado a que se ater a serroar diante da pedra do lar. A
Fátima já saiu, levava a saia curta de camurça verde e os sapatos de
lagarto que tu ias caindo. Até logo, Fatinha, não venhas muito tarde,
olha as chaves, filha. O teu homem está sentado do outro lado da mesa,
olha para o chão ao lado dos tacões pesados dela e volta a olhar para o
chão do livro que esteve a abrir com a faca do pão. Olhe que há uma
faquinha para livros que lhe hei-de emprestar, senhor António, com um
cabinho de Sagres no cabo na gavetinha do armário de vitrine. Não
merece a pena, D. Marieta. Ora tudo merece a pena, senão que é que
andamos cá a fazer. Estamos no intervalo. Há uma estantezinha de
madeira pintada de branco que a D. Marieta mandou segar nas pernas
na colchoaria em baixo e onde estão as crónicas femininas arrumadas
por números. Na televisão está uma senhora a deitar fumo de um caldo
Knorr e uma menina a dizer, Mãezinha. Senhor António, e então quando
é que a Elvirazinha sempre faz o exame da quarta? Tens medo. O teu
menino cansou-se e dorme-te nos braços. Depois habitua-se mal,
Elvirazinha, olhe que a minha Fatinha estava ali à beira da gente,
quando tínhamos o estabelecimento, e nem pedir. Apertas o menino à
tua camisola de lã roxa que foste comprar com ela, é as tuas posses. Já
se habituaram. O menino cansou-se, dorme, tens sono, chegas-lhe o
novelo de linha para as rosetas e vês-lhe as voltas da agulha. Eu
ensino-lhe, Elvirazinha.

Andastes por ali atrás dela ou nos teus afazeres novos, sem saberes a
que método ater-te, Olhe que o pano do vim é só este, Elvirazinha. Casa
por casa atravessada pelo temporal dos ares e dos ensinamentos, tantos
barulhos, tarefa por tarefa a que és mandada com um gesto e muitos
ditos que não havia nas casas da tua mãe, cujas socas largavam sempre
um pouco de lama ou merda da galinha ou fiocos de linha ou palha. E
todos iam e vinham, se lhes cortava o cordão e aqueciam as águas, se
embrulhavam em panos amolecidos e adourados pelos anos, para se
lhes dar o peito pela primeira vez, para se velarem, e todos tinham
cheiro e pouco a dizer. Senhor Hermínio cabeceia por cima das cascas
luminosas como cera fresca da tangerina, só está aceso o candeeiro de
cima com os pingentes de vidro, Aí é com o espanador, Elvirazinha. Há
um homem que espirra um líquido de dentro de uma lata para debaixo
dos sovacos. O teu levanta a cabeça para ver. Este é bom? Hei-de
perguntar à Fatinha, senhor António, dá-se bem co o que eu lhe trouxe,
Elvirazinha? Não cheiras. Tens sono.

MONÓLOGO DA VAQUEIRO

Credo, menina Elvira, não vá sair à rua com essas meias tão saloias,
leve estas da Fatinha que ainda estão boas, ela não se importa, Jesus, os
seus pés, olhe eu hei-de-lhe ensinar com um sabonetezinho de pedra-
pomes. À mercearia, Elvirazinha, tudo misturado? vá mas é ao
supermercado e traga-me aquele produtozinho para os azulejos, eu
escrevo-lhe num papelinho. Não vá assim ao leite, Elvirazinha, uma
senhora tem que se respeitar, agora que o senhor António vai ser
promovido, nem tem necessidade. Ceroulas, menina Elvira, credo, eu
até tinha vergonha de passajar isso, ó Fatinha mostra lá aqueles
slipezinhos de cor que o Fernando te pediu para comprares. Ai
Elvirazinha, desculpe, mas eu panos de menstruação só de deitar fora,
mostra aqueles que se seguram à cuequinha Fatinha,

O velho Hermínio resmunga baixo,


Porcas, a caminho do quarto onde
se fecha. O teu homem diz-te, É
uma pessoa educada, a D. Marieta,
tem outros princípios,

Credo menina Elvira, ó Elvirazinha, com banha de porco? credo isso


faz tão mal. Margarinazinha e bem passadinho na panela de pressão.
Está tão bom, Elvirazinha, ela tem muita mão, senhor António, muita
mão.

Antigamente, quando um pouco de gordura dos rojões lhe escorria pelo


queixo sem que ele desse por isso, da jeropiga fina como lágrima de
cadela parida e depois dos velhos subirem com a vela para poupar o
petróleo, atiçar o lume debaixo do pote e se roçar pelos teus peitos, as
mãos macias de gordura em todos os teus buracos, porque tu dizias, Ai
não, isso não metas,

É preciso saber. Tudo tem um princípio, Elvirazinha. A casa ronca pelo


meio-dia da dança misteriosa e colorida das roupas que se lhe vêem
pelo janelo redondo da máquina sem estraçalhar, do sorvo do aspirador
e do grilar da batedeira, À mão, Elvirinha, credo, nem o menino
engolia, pegue aqui na pega.
Ela está sempre ali, como o motor do depósito, como o malhar do tear,
como o rilhar dos ares da cigarra, de dia, como esse ovo azul de trilo
que o grilo enxerta na noite à beira do buraco onde se acoita. Tantos
barulhos. Tem que haver um princípio.

Pode-se dizer que a casa é grande, cheia de claras superfícies lisas,


cromadas, vidradas, enceradas fulgindo na penumbra protectora que se
abate sobre cada uma delas, todos os dias as coisas tangidas uma por
uma como ovelhas tosquiadas em tempo de um rebanho nédio, nada
envelhece. Fátima vem à meia tarde para mudar de roupa e diz, Olha as
minhas botas, mãe, gostas deste verniz, mãe, não é castanho de mais,
mãe? Mas usa-se, filha, ainda ontem vi uma senhora com um casaco de
tigre com um assim, puseram-te o cremezinho para amaciar as mãos?
Está dado já outro passo para senhora e casaco de tigre, Fátima ainda
está a crescer em graça e esbelteza diante das Manicuras e dos Homens,
levanta-se tarde para não fazer olheiras, diz tu à mãe, vai logo pôr
soutiens transparentes e meias-cuecas de molho, Faz o omo fraquinho,
filha, que eu amanhã já trago o sonasol das sedas, nada assenta, não há
lugares de levedar e ao fim do dia, quando as frestas entreabertas
deixam coar uma luz mais baixa, tudo está no seu lugar como sorriso
paralisado de senhora em andor, D. Marieta faz crochet com os braços
curtos aconchegados aos seios muito grandes, Elvirazinha venha ouvir o
romance, assoa-se a um lencinho de cambraia todos os dias mudado,
Elvirazinha, o cabelo como o desta locutora havia de lhe ficar bem, não
acha, senhor António, porque é que ela não corta a trança, isso já
ninguém usa, credo. Lá isso, diz o teu homem e tu arregalas os olhos,
ele costuma esfregar-se nela e ele, ri-se, Não faças essa cara, mulher,
Lisboa é Lisboa.

Pode-se dizer que a casa é grande, com os seus corredores de estuque e


os tectos lavrados de pequenos florões com margaridas e nardos em
meio relevo, o grande corredor com a passadeira de oleado lavável por
cima do encerado, habitado por grandes ventos frios e aragens paradas,
coisas do ar que há na ermidão penhascosa dos altos carreiros de serra
e também no que já viste suspendido à volta lá no alto dos edifícios
muito altos. O mesmo bafo límpido que sopra da boca do frigorífico
quando se abre e se ilumina na noite da cozinha e se vêem as caixas de
plástico amarelas sob as suas tampas translúcidas a dar com o dentro
dos armários. Nada fermenta. E tu, a mão num tacho de barro por
estrear guardado no malão no quarto que arredas para pôr o divan para
a vinda do velho,

vais pequena e descalça por um carreiro na bouça, com o avental da


escola que tem duas asas folheadas em cada ombro de chita vermelha
às pintas. Tens dois carrapiços de tranças de cada lado da cabeça,
rematados com linha âncora, da grossa de bordar, da vermilhão. Chegas
já a um chão de caruma e areia e borras e restos de parra amarela e
bagas abertas. O teu irmão vem mais atrás, com a cabeça meio rapada
de fresco e o arco que lhe deu a mestra da passagem de ano, a
madrinha. O cheiro ázimo já ali chega. Agachas-te por detrás de um
tonel vazio e mijas à pressa. O teu irmão põe-te o dedo no olho do cu e
tu riste-te a dar-lhe uma murraça falsa que o apanha no meio do
coletinho surrado. Urinaste os pés, estão quentes e entras num grande
júbilo com o teu irmão atrás por um portal de postes de castanho pela
frescura da adega adentro onde no vozear dos vultos e no estrondear
surdo das sombras vermelhas do escuro, onde os cães desnorteiam, não
atinas logo com o teu pai, a quem vens de recado. Achega-se-te enorme,
as pernas com as calças arregaçadas até às coxas cheias de pêlos e
grainhas e arrochos de mosto, todo ele é rubro e escuro e grande, que
grande contentamento e vai perguntar-vos tão a bem, Que andam
vossemecês aqui a cheirar, sacanagem, enquanto a perdigueira toda
emporcalhada se lhe esfrega nos pés nus, de barriga para o ar, a ganir
baixinho e ele diz, coçando-a no entre tetas, Outra a atentar-me. Vieste
depois a correr por entre as medas, atalhando pelo restolho baixo com
o teu irmão a gritar atrás. A cada ferradela de urtiga ou tufo de silva
guinchavas de gozo ufano pisavas, pisavas pelos ares, adejando do teu
caminho os besouros e os varejões alvoroçados, as velhas borboletas
de fim de verão, o ar gordo dos céus baixos arruivados, com o teu
irmão a berrar atrás, Espera Vira, ó Vira, espera. Paraste a ver um
sardão a pôr-se noutro, as caudas a rabiar, os corpinhos frios a arfar
gordos no socalco de um penedo. Os teus olhos incharam por dentro, o
teu peito era como uma bexiga assoprada, o sol já de cabeça a descair
para o lado dos montes mexeu-se três vezes, escuro de sempre escuro
que se podia ver. Levantaste a aldraba tão de rijo que a tua mãe ao ver-
te a cara puxada disse de entre severa e mangação, Credo rapariga,
vens com o fogo no rabo, chega-me mas é lá à de baixo a buscar dois
metros de fita de nastro que hás-de ser tu a pregá-lo, branco, ouviste. E
só aquela fala à costura te estancou daquele arroubo assustador que te
trouxera por cima do chão. E enxuguem-me essas pernas que não era
para virem numa carreira dessas. Foi ela, Senhora. Cala-te fuinha, não
lhe vieras no encalço. E nos gestos com que ela te espevitou as folhas e
serenou com os dedos com cuspo a partição da risca, tu soubeste que
podias, calando e segurando, tudo podias. E o embrulhozinho do nastro
trazido da penumbra essa fresca e azul, cortado no lado lenhoso do
balcão que tinha outro de pedra ensebada dos enchidos e azeite, do
outro lado da balança, o embrulhozinho de papel de seda onde
alastravam as pequenas manchas dos dedos da senhora Benta fez-te vir
muito santinha a dar a salvação como deve de ser por todo o caminho
de volta, o nastro a rescender a bacalhau, a óleo, ao pó que largam as
peças de pano ao rasgar no ar, à humidade dos sacos de burel onde está
o sal, a aveia miúda, ao petróleo do candeeiro já aceso nos fundos.
Passando ao curral a porca deu-te sinal, roncou baixo, um leitãozinho
chiou, chegaste à tua mãe e disseste, Está aqui, Senhora, mais o troco, o
teu coração cheiroso e azul, uma violeta molhada,

que olhe, Elvirazinha, que eu não quero estar aqui a atazaná-la com isto
mas olhe que o seu paizinho não pode ficar mais que uma semana, tenha
paciência. Eu já disse ontem ao seu marido que é só para as consultas,
tenham paciência. É a casa toda um alvoroço e o quartinho que eu lhe
tenho ajudado a alindar tudo fora do sítio, a perder a graça, que ele não
há arranjo possível tão cheio e olhe que até parece mal o seu paizinho
aqui a dormir com vocês, para mais avariado e se calhar a fazer as
necessidades todas, coitadinho. Que a gente tem que ser para os nossos,
mas eu fiz muito sacrifício para ter esta casa em condições e agora que
já vou tendo com a minha filha uma vida bonita, está uma senhora, e eu
certas coisas,

mas movia-se, o sol escuro movia-se então em grandes virações por


cima dos teus carrapitinhos batendo-te na cara como vergastinhas
doidas e o teu irmão te berrava, aos puxos de riso, Espera, Vira, ó Vira,
e a voz se desdobrava pelos montes e vales e esse tempo em todo o seu
profundo esplendor.
Do tanque na varanda. A pedrinha rosada e branca, mica, brilhante na
braçada de sol que a varanda apanha, mesmo por cima dos olhos em
nesga fugida, o fresquinho da água com as peças dentro, as fraldas, a
camisa da farda, as calças de cotim, as tuas cuecas de algodão, tudo por
debaixo do resto de espuma e azulado, porque aos fundos do tanque, a
luz que aquece a trança enrolada, que há-de rebrilhar, lavaste-a e
passaste com água fria, fria, não chega e é como o fundo de um poço
mas de não temer. O tanque lavado de lavar. Aí estás fechada e
tranquila do lado de fora da casa, num dia muito lindo. Só tirar o ralo e
abrir a torneira para água nova, boa de beber, Tu podes beber desta
água, Elvira, não há cá caneiros, para o menino ferve-se. O lencinho de
cambraia vem-te à mão, bordado da madeira, das ilhas, ilhas. Terias
gostado que o menino fosse uma filha? que não, que não. Regalo o
barulho da água, ronhoso bom de esfregar, um rebolar enredado nos
canelos do tanque, pedra que não rapa as mãos, amaciada. Levantas os
olhos, o sorriso meio preso na boca, cieiro de campo e pele fina, o que
avermelha as faces e vês, por cima do grumo de telhas, de encontro à
brancura da luz das nuvens brancas, estiraçadas alto, a cegonha, a meio
caminho do céu que a vês andando. Voado quieto, diferente do das
pombas que filam juntas, mal se vêem do com força que passam tantas.
Esta vai num indo de paciência, tão bonito. Sem moleza, mas voa de
seda e ficas vendo, a mão no toco do sabão amaciado, um seixo mole, o
lenço feito trapinho de nadas na outra, mexer parado da cegonha, tempo
meão, menino dorme lá dentro gordo, limpo, bom poisar este de seguir
o brando seguir da cegonha no céu limpo com cuspezinhos brancos,
fiapos de nadas, as mãos metidas na água a arrepiar os punhos, há
pássaros grandes por cima das cidades.
I
CASA DE MARY
ACQUOSA
Mary caminha a custo um solo ressequidíssimo à sua volta, até perder
de vista. Tem vestida a farda azul escuro de saia macheada, a nefanda
camisa de popelina beige-merda do colégio das freiras. A bainha de um
dos lados, o direito, está pontuda e roça-lhe na perna mais a baixo. A
mãe vai dizer, Mimi, que horror. O corpo é o de agora, disfarçado. O
cabelo vai sujo, sabe que lhe cai em mechas sebosas para a cara. Vai a
andar como se se visse de cima. A terra está quase branca, zebrada de
brechas pretíssimas, largas de um côvado, de que não se vê o fundo.
Mary pensa, Mas não se diz um côvado. Tem que concentrar-se no onde
põe os pés, a passada ou de mais travada ou quase a passar para pulo.
Não passa. Pensa que, Assim a passo miúdo não vou chegar nunca.
Sabe, sem saber onde está, que é nessa direcção que tem que ir, mas
não vai para nada. Vai. O horizonte encurta-se de súbito e fica todo
ocupado ali já por umas asas pretas de um pássaro enorme, sem
feições. Escurece muito. Mary começa a decrescer, a decrescer e tem
tempo de se pôr um avental de folhos bordado em abertos, de casa e
pensar, Sou como a Alice mas não tenho cogumelo para comer. O
pássaro desceu já a barriga por cima da cara dela que respira profundo
o cheio reles das penas, um como mofo. Pensa com desfastio, Ah, é
assim que se morre, coitada da mãe. Ouve então uma voz de homem,
calma, calma, sem nada dentro, distraída voz que está dizendo Perdeste
para sempre a maravilhosa unidade do teu espírito. Chegada a espírito,
a voz fica a ecoar no i como um uivo de sirene e a ir-se, a ir-se, Mary
quer gritar mas tem a boca cheia de penas, sufoca, quer gritar e está
apenas dizendo, Entre, à rapariga de fora que se chama Lídia e que tem
estado a começar a dizer, enquanto bate na porta com o nó de três
dedos, como ela ensinou, e com o outro braço segura a bandeja com o
sumo e o ovo, como ela ensinou, que, São onze horas, minha senhora.
Mary diz no estômago, Zé, my dearest, my own, como um enjoo,
sacode, suspira e senta-se na cama, onde a rapariga lhe depõe,
acertando a lomba na coberta do lado dele, a bandeja de prata com o
ovo, o sumo, a torrada.

Diante do espelho, Mary escova o cabelo, vinte, quarenta e cinco, cem.


Muito agradável, vê-lo alevantar-se estalando de eléctrico e ficar todo
encorpado, paradíssimo, à espera. A cara no espelho não tem nada, está
só a fazer aquilo no centro do imenso cubo nacarado, húmido, branco.
Separa-o depois em três mechas mornas e enrola-as com ganchos,
rápido. Ao virar-se para a bolsa dos ganchos, tudo tem sua bolsa, a
luva de crina, a fita das máscaras, o réperage das unhas, repara que o
after-shave está destapado na borda do bidé. Fora do sítio. Mary
começa a acordar. Pelo lado de fora da boca, que é o de onde ela fala,
diz, Que chato, e recoloca o frasco fechado no armário dele ao lado de
toda gama after-shaves, colónias, frascos, tubos, coisas, design manly,
dele. Põe então a touca de duche de plástico ocre da mesma cor de
fundo da cortina onde as gotículas luzem. O elástico começa a estar
ligeiramente deslaçado. A salmão que vai comprar, tom afinal mais
forte, está já queimada, será perfeita. My sweet, Zé, my own, vem-lhe
outra vez quando a água lhe desce quentíssima da nuca às espáduas,
coluna, nádegas, deixar o jorro nos pés um pouco, de novo a nuca, My
love, my own. Fecha. Os toalheiros de vidro incrustados nas suas
campânulas de metal doirado, a transparência, o jogo de frágil à vista
com afinal perfeita solidez, de onde pendem solenes, dobra farta, os
toalhões branco, ocre, oiro, grafia de brocado a formar-lhes no bojo
aberto um medalhão solar. Que bela está Mary molhada diante do
espelho envolta naquela felpa doce, a pele molhada são sempre menos
cinco? dez anos? Sorri, vendo-se com olhos de José, Minha querida,
dearest. Perdeste para sempre a magnífica unidade do teu espírito, Que
estupidez de sonho, diz pela fala à ponta da boca, Que estupidez. Sorri
a José, de José, que a está vendo no espelho com os seus olhos dela a
fazer dele. Vista. Mary abre então os dois painéis laterais do grande
tríptico convexo que é esse, espelho, deixa cair o toalhão e é uma
explosão de imagens dela nua e húmida tendo aos pés os sumptuosos
drapeados da toalha, a cabeça coifada dos grossos rolos de cabelo,
vermelhos-rosa à semitransparência de oiro baço da touca, as costas
também ali multiplicadas no cristal biselado do outro espelho frontal
emoldurado deco, mil Marys saídas de uma concha de chão de
mármore, as múltiplas pedras irisadas dos sais de banho as grandes
floreiras de cerâmica oiro e rosa com os seus querubins de asas de
prata de onde pendem as heras francesas e erguem nuvem os fetos
filiformes, as avencas, se alevantam as espadas com o seu corpo frio de
lagarto debruado de branco mate, o silêncio em riste vivo das plantas,
os bicos de cristal dos imensos frascos com algodões e minúsculos
pães de sabão raro, pequenas esponjas, búzios, as saboneteiras em
forma de grande concha e as argolas estriadas engolidas por
delfinzinhos de oiro e o inverosímil imenso candeeiro de sèvres e
tulipas onduladas, aceso por gosto, mil lâmpadas acesas por gosto de
espelho, a espelho a espelho. Mary erigida do mármore ocre marinho
que não menos a desdobra numa surdina leve, uma bandeja sóbria,
laivos de brancos, sim, como de espuma, sai-lhe da boca em mente o
único grito de júbilo que pode, como é perfeita a sua casa de banho e
ela, multiplicada assim como uma fresca santa despojada num escrínio
sem defeito e tudo, tudo em paz, José Oom dizendo-a desejada por seus
próprios e nenhum, afinal, nenhum risco enquanto ali, o lombo suave
dos frascos lisos bafejados de humidade e o espelho a irisar-se, os
polidos ralos e torneiras de bocarrinha de oiro areados e toda a
harmonia soleníssima, a unidade de seu corpo no espelho com aquelas
cuidadíssimas coisas, o todo o dia belo ao começá-lo.
É preciso começar. Agora está apenas nua diante dos espelhos e vai
desodorizar-se. Desvia a vista. Isso não, os pêlos não, o que quer que
se lhes faça é grotesco, aquelas como que bichezas implantadas ali,
alheias onde tudo é cuidado as fronteiras de pele onde o Sol não toca
guardadas apenas mais claras de longo verão a longo verão, os seios
muito exactamente brancos dos quatro bikinis de mesmo talhe, a cintura
cavada, descida. Tudo bem ainda hoje, o magro nem de mais, a flacidez
da barriga já tão quase nada, cinco anos depois do último parto, os
veios ficados de pele mais branca onde quebrou da distensão do ventre
só visíveis espalmando-a, tudo de um só tom, os mamilos sem uso de
criança, pequenos, sem qualquer grosseria, uma sépia chique, nem
parece carne, ou tudo parece ali vivo de outro modo, acordado o corpo
sem cheiros ainda com as coisas em cores e formas. Mesmo na
desordem que será precária, precária, a rapariga de fora sabe como,
como ela ensinou, sabe mesmo que o dior e o femme e o joy, de
diferentes tamanhos é o um à esquerda do à direita. E ao fim da manhã,
como já, como agora, a cova da mão cheia de ô de lanvin, hoje, a frieza
logo morna no corpo, o cheiro leve-doce, a maciez do mesmo em
ceroso nas axilas, o cheiro do sem cheiro do corpo parecendo outro
corpo, de polpas, de pétalas, o cheio nem já lembrado do corpo, o
horror até do cheiro do acto, péssimo, esse peixe fétido, hálito de furna
de resíduos salitrosos e ouve, estaria já ouvindo e por isso,

Mary.
Que chato.
Mais imperativo:
Mary?
Responde:
Hummm, certo, musicado bem.
Demora-se muito?
Não, de todo. Aconteceu-lhe alguma coisa?
Não, esqueci-me da máquina e acho uma chatice usar a do Pequito, que
é péssima.
Péssimo.
Que é que a menina diz?, abra a porta, Mary.

Mary tira a touca, massada, a humidade ainda um perigo para o cabelo,


veste o roupão, o turco, abre em meio sorriso congelado:

Tire, dear, ou se precisar de mais tempo eu vou tomar um sumo, estou


com uma sede horrorosa.
Discretíssima, minha querida, se eu quisesse sentar-me na pia dizia-lhe.
Beba água, os sumos azedam-lhe a ressaca.

grosso, grosso, como ele empenca


toda a casa de banho, embate nas
coisas, o tripé que sustenta o
cachepot da avenca vacila,
arranjadíssimo embora, o mesmo
cheiro seco do beijo da manhã, pela
ponta da boca, o tweed e o lenço
laçado sob a camisa, a pressa tão
composta, de pássaro de bico
torvo, muito bem sempre, uma
inteireza vestido, tão agradável se
não fora nojento nu, por nu, um pau
noduloso, pelado, a massada, que
saia, que saia, que chato

Sempre vai à Baixa fazer economias?

O armário tilinta de frascos, o


espelho menor deslocou-se alguns
centímetros para fora do lugar, ele
passeia-se contra ele, que saia

Não sei ainda.


Está muito lacónica, está-lhe a subir da cintura para cima.

brutaliza as toalhas que ficam


pendidas em desgraça, mais frascos
vacilam num ruído mau, abre mal
armários, abre tudo mal

um dos roll-ons cai, baque surdo dos novos plásticos macios,


aborrachados, ele levanta-o, Mary sentada na borda da tina enroscada
no turco húmido olha os grandes músculos das coxas, dele, seu próprio
pé dançante de impaciência, tem medo, ah, é preciso pintar a unha
grande, ainda

Acho que vou ter saudades suas, sabe?


Não me mace.
Maço-a eu?, com quê sua cabrinha pasteurizada.
Estúpido, que estúpido.

beijo de propósito salivoso, nó de


dedo duríssimo entre os seios,
fechar o roupão aberto, um nojo,
que se vá.

Divirta-se amanhã, diga ao Sebastião que a traga ou aos Paivas se ele


estiver muito bebido como,
Bebido, o meu,
O seu primo. Como o seu pai. Como você.
O pai não bebia.
Não, mas a sua mãe também não tinha um confessor jesuíta.
Eu não tenho — que estúpido Frederico.

mas a escova, as escovas que ela


lhe deu monogramadas a prata,
cópia, que lindo, a mão seca e
escura do braço alto a brosser a
nuca e o pouco branco das
têmporas, isso ela vê, é de facto um
homem lindo, a mãe dizia, o
Frederico é tão interessante,
coitado,
assim absorto a dizer coisas ao
espelho, Zé, my love, my own, não
deve voltar a tocar-lhe, não deve, o
medo desta carne escura, seca, a
mão de Zé Oom é apenas como uma
rola, uma linda luva mole,
desabitada, branda

Ah minha querida, se fosse pela sua inteligência que eu não lhe fosse ao
traseiro,
Que porco.
Por inteligência, por que é que não telefona à sua irmã?
A Ziza,
Tem a mesma graça podre do Zé Oom, com a vantagem de não ser
lésbica nem chular os amigos.

monstro, monstro, as veias do


pescoço grossas, a envelhecer,
porque se lembra agora, do ódio,
que era naquela cova mais escura
que descansara escondidos os
olhos, há quantos anos, e um
vestido de organza cor de rosa que
chegara a casa engelhado e com
manchas ainda daquelas mesmas
mãos e a mãe,

Onde é que a menina esteve, Mimi?


Deixe a pequena, Maria do Carmo, o menos que lhe pode acontecer
pasmada como é é ser frígida.
Que monstro, António, o senhor não é pai.
Você é que sabe, mon choux.

Monstro.

A minha irmã tem problemas.


Não repita frases asnas, Mary.

Asno é, Bem sei, mas foi premeditado desde criança e não chore, Mary,
senão masturbo-a ou coisa assim

beijo na boca, o cheiro a espuma de


café, queimado, cheiro de uma
antiquíssima doçura, onde?, as
mãos cheias de um pedaço da sua
anca, e se ele a tem ali? Mas o
sorriso, tão mau, pequeno Simão
igual com a orelha do cão nos
dentes a ganir até arremedar de
morder, Mary abre a boca até
lamber-lhe não menos que à mesma
a mesma língua e como que uiva
dentro, José, my own, mas é de
facto aquela mesma língua,
Não se desequilibre da borda abaixo. Pensa na sua mãe, Mary, uma
senhora não se estatela nem fornica na tina,
Sei lá onde é que a mãe,
Bravo, que brio, é o seu mal, pergunte ao seu louva-a-deus que deve ter
uma pilinha para senhoras, formato espírito de pomba.
Porco, odeio-o, estupor, Está linda, minha querida, pode continuar com
as suas fondues de queijo facial dado que não a derreto alhures
senão d’alma, Estupor, estupor, estupor,
Estupor,

Ah minha querida, arranje um amante que a faça vir-se com duvet, coma
grelhados e caganitas de rato, mas poupe-me a histeria.

Sai. Nem bate com a porta. Mas


Mary não ouve passos. Ele está ali.
Horror. Monstro.

Uma pequena onda de aragem entra pela janela corrida, a luz carrega-se
e os vidros batidos, foscos azulam agora todo o aquário onde ela está
com os olhos gordos e vermelhos, de boga. Perdeste para sempre a
maravilhosa unidade, o espelho voltou a embaciar porque ele passou a
ponta dos dedos por água morna, Mary agarra no punho do roupão e
abre um oval imperfeito onde se acha lívida

como uma santa.

E ele está ainda detrás da porta,


Monstro,

Não se assuste, amor, é só dizer-lhe que veja o óleo do morris,

Sumidamente, Mary recupera-se,


segura-se:
Vi ontem.

E já agora, pinte-se mais, hoje. Está com cara de menstruada virgem.


Porco.
A sua mãe teria dito, Saia. Pergunte à sua irmã que não sabe dizer outra
coisa e a propósito,
Estupor, deixe-me.
Or love me. Detesto falar contra portas, see you tonight, love.

Mary senta-se na tampa fechada com capa de turco branco e oiro e ocre
da sanita e chora desabaladamente. Chora como quem abala que é o
verbo que a cozinheira usa para quem se vai. Esvai-se a chorar. Ela ali
está naquela posição impensável, em que ela não se pensa nunca e tem
ainda diante dos olhos aquelas mãos escuras dele que foram como o
corpo de um cavalo, um potro de narinas dulcíssimas de suor acre doce
e também os olhos absolutamente sem pupilas de tão escuros, os olhos
do pequeno Simão sob as repas amarelas da franja, A mãe tá tiste, po
pai?, ah e agora por entre as mãos dela mesma tão sempre sem peso,
Não agarro nada, nada, o pequeno olhara-a assim quando ela estava a
tentar um pouco de tecelagem, Mãe o Ximão pó mexê, pó?
Mary soluça altíssimo, dobrada sobre os joelhos, sentada sobre o tripé
da sanita de cano airoso de ampulheta, rosa-velho. Ah, e a memória na
grande derelicção é como fumos sulfídricos,
havia uma fotografia sépia da mãe sentada com elas duas, todas três de
branco, Elisa com o seu sorriso sem olhos, a cara delgadinha, aquela
pele de cera, um pouco de lado apesar de mais baixa e ela, Mary, com o
braço por cima da mãe, a mão já afilada de pré-adolescente, o porte de
sorriso parvo de beldade com retrato, sublinhada, ridícula, onde a mãe
era a só beleza e lonjura massada, os cabelos ondeados a dedo pelo
coiffeur e a nuca a adivinhar-se alta, uma casque exacta, tão
ordenadamente loira que o éclat era de metal frio, a boca fria apesar de
cheia com o seu carmim violáceo, a perna sobriamente traçada de seda
baça com os tornozelos de cavalo fino, quase azuis no sépia do retrato,
como os pulsos, o imenso cabeção de renda macramé sobre o vestido
de marocain de ombros altos, ah, aquele branco era azul-cinza,

Mary chora agora convulsivamente mais baixo como se a mãe lhe desse
as pancadinhas um pouco inertes e ríspidas enquanto ela se lhe aperta
ao pescoço hirto com dois braços ainda pequenos e Elisa está de lado,
vestida, vestida de igual bordado inglês com fitas de veludo passado
ton sur ton, a ver, com os seus imensos olhos aguados como de cega, de
choro raro. E Mary levanta a cabeça cortada do corpo no espelho
manchado e há uma voz só apenas enfadada e um intenso perfume a
nardo, Então Mimi, então petite, e outra voz mais miudinha, onde há um
veio de educadíssima compaixão que não mais ouviu na voz de
qualquer outra criança, das suas crianças, Mana, não chore Mana, quer
que eu lhe empreste o meu ferrinho das bonecas, quer Mana?, uma voz
de cinco anos apenas, ao lado de uma cadeira de verga lavrada, um
verão brumoso, nortenho, um retrato de sépia obscurecido pelo tempo
de álbum, cheio de folhos de bibes, sapatinhos de verniz com
abotuadura de botão, rendas, cabelos muito claros as três, um grande
guarda-sol sobre a auréola de verga e o seu próprio sorriso todo dentes
sem júbilo, testa redonda e boca gorda,

como Mary chora sentada sem qualquer decoro, Zé my love, my own,


estupidamente, Então petite, Perdeste para sempre a maravilhosa
unidade, sem saber de quê, não há nada de novo afinal, já só estremece,
não chora mais, soluça os últimos soluços. Tem vontade de urinar. Abre
a tampa, levanta as saias do roupão e senta-se, assoa-se a um kleenex
com um grande último suspiro os olhos já nos olhos perros e na cara
com manchas, pequenos espasmos já distanciados e irregulares na glote
e peito, consolador o defluxo morno da urina abundante pelos bordos
de dentro de baixo, Quem mais chora menos mija, não é nada verdade,
vai ter que pôr compressas frias na cara e uma máscara, já escolhe
qual, o gel verde, já vê bem onde tudo se passa, a doce penumbra
crescente que vai chover, a airosidade das grandes folhas de novo
quedas e a sua própria longuíssima abertura de colo, os ombros
redondos ovos ocres intactos para olhos de outras mãos, my love, my
own, Zé, meu querido, que horror que foi hoje, Mary, Mary, seu nome
de outra boca,

PERSONA

Tacteante, vago terreno onde se intenta a dissolução abrasiva da


irregularidade da face, de onde se desincrusta o que de rosto humano,
habilíssimo espelho imperecível em cada nascituro renovado, possa
não ser lisura pétrea, iridescência impassível à erosão. Fito da erecção
da consciência no perdido olhar de quem olha aterrado da elisão
possível de si mesmo ali contradita — o liso local especular da amada
amante. De outra coisa dá sinal fazer saltar o seixo sobre a orla
marítima ou o culto da pérola, a emissão da Vénus intacta das espumas?
Eis o que é servido por um coágulo de massa translúcida, agrumado
sobre um septo nasal, derivações de hidromel ou caldo de algas de que
há sinal em outras transcrições. É necessário resserrar os poros e
refazer a unidade do grão, pétrea, da pele jovem. São lugares de incisão
durável que a espécie se desmente, se verifica, por costumes. Mary
composta dignamente no cadeirão de espaldar lacado a branco, ou será
knoll, da grande sala de águas, aguarda. São vinte minutos. A alma não
se maça obedecendo. Refaz-se. O seu espírito está ocupado pela grande
vaguidão dos espaços que deve preencher os espaços de vigília
daquele que se determina a espinhosa via sacra. O que ela faz é tão
abdicado qual noite obscura e insofrida. Da ordem da totalidade do não
fazer, da invisualidade do que apenas verá o ser visto. Onde tudo isto
se passa não há um nome. Esta criança chamou-se Maria das Dores.
Esta mulher tem na cara uma massa espessa e verde cuja composição
química decorre do Inefável Desconhecido que há. Se esta terceira
pessoa fora melodramatizável pessoa Quem, ledor, como lhe diríamos
contentados que a via mais curta para a calcificação do rosto sem
nomes é a cremação das carnes por napalm. Amaldiçoamos porém os
que reinam nos céus flamejantes da inimportância do outro porque deles
são os podres de espírito. Eles divagam no lugar de Mary. E a pele do
macro rosto se define em toda a sua cruenta opacidade. O cristalino não
advém necessariamente do translúcido. Rever produção de vidros
cristais, decantação de detritos, carbonos puros. Ou a longa
manufactura de espelhos, estagnação de águas, domínio dos metais por
batimento. Quando Mary não faz ou não evoca ocorre pois, dizendo-a,
algum outro dizer, capaz de esdrúxulo. Nos vazios dela, bela, da mulher
coberta, selada, se enxerta outra coisa. Nesse silêncio sideral como de
feto ou feto suspenso no trópico invisível ou no útero invisível,
ensimesmado, ressalta tão-somente a petulância do que transmite um
conhecimento impreciso como se soubesse. E, por um segundo salto do
exercício, inapetecível, o orgulho agitadamente sardónico do que ama
— nomear. Na cidade de Lisboa, o tempo da máscara da beleza de
Mary, Maria das Dores, Mimi, expirou.

A pele está agora muito lisa, os poros resserraram expulsando a ínfima


imundície. No espelho como essa operação resulta imensa
transfiguração, A minha cara parece jade branco, vidro coalhado. Mary
não há-de dizer nunca, A minha cara parece pele, a pele nua do focinho
de um animal peculiar que perdeu quase toda a pelagem. Mary não diz,
a testa encostada ao vidro do espelho, Mary fecha os olhos. O dia
cerrou mais e mais, todos os oiros da casa de banho perderam lustro, as
sombras a demudar em azul noite, vai chover, não sabe o que há-de
vestir, Mary, Botas, para a noite vou buscar os sapatos da Ziza, está tão
triste, Mary, tudo dizes, está na saleta onde lhes servem o lanche no
tabuleiro das meninas onde estão pintadas três senhoras de chapéus de
véu tomando chá com um senhor de casacão traçado, um terraço sobre,
Roma?, o açucareiro de prata tem uma pega com um cão deitado,
Zizinha, Ziza, a que veio a ser o grave nome de Elisa, Elisa, que ele
nomeou por último, tem uma larga fita de veludo branco a segurar em
transversal o cabelo, a dela é verde, pentearam-nas depois do colégio
enquanto lavavam as mãos, ah era dia de notas, chovia, eles estão na
sala grande ao lado, vêem-se os sapatos preto e branco dele, picotados,
ouve-se o restolhar do jornal, o tinir do tricot da mãe, e ele está
dizendo, A Mimi, coitada, não é de facto muito inteligente, Você sempre
teve má vontade contra a pequena mais velha, esquece-se dos anos, é
inacreditável como nem disfarça a sua preferência pela Maria Elisa, a
Mimi é muitíssimo mais bonita, sempre foi um pouco lenta e está numa
idade péssima, A minha filha Maria Elisa é uma mulher interessante,
Maria do Carmo, na sua família há apenas mulheres bonitas e, tirando
você, chère, sem raça, A sua filha Maria Elisa tem sete anos, António, é
ridículo, Ridículas são as mulheres que não preferem o pai, Maria do
Carmo, ridículas e irremediavelmente estúpidas,

Irremediavelmente estúpida, Mary volta a olhar-se no espelho onde a


testa deixou uma marca como de um polegar de gigante,
Irremediavelmente estúpida, os olhos estão outra vez cheios de um
debrum de água pelas margens de dentro, Não vou chorar outra vez, já
chove,

MAQUILLAGE
DO ROSTO
Deve agitar o frasco e aquecê-lo um pouco com as mãos. Depois, com o
frasco na perpendicular, deve desarrolhar a tampa dourada e depositá-
la cuidadosamente na borda do lavatório. Deve derramar seguidamente
algum líquido, não muito, na ponta dos dedos médios e pontuar a cara
com pequeníssimas porções em pontos fulcrais regularmente
distanciados — na testa (3), em cada face (4), na cana do nariz (1), no
queixo (1), sem esquecer o pescoço (4) ou mesmo a abertura do seio e
espáduas no caso de ir vestir algo de decotado. Em seguida deve
espalhar o líquido em movimentos regulares e simétricos,
ascendentemente. Finalmente depois de bem distribuído por toda a pele,
deve retirar o excesso por aplicação de folhas de papel facial
absorvente.
No caso de aplicar rouge, a técnica deve ser a mesma quer aplique stick
ou creme — ou mesmo pó — estirar o produto por forma a estomper a
mancha em direcção às têmporas.

MAQUILLAGE
DOS OLHOS

Deve começar pela aplicação de sombra, ou, caso o careça, pelo stick
para encobrir as olheiras. Cobrir a pálpebra superior com aplicações
ligeiras sucessivas, insistindo na prega frontal, no côncavo do olho no
bordo exterior em direcção à arcada. A aplicação pode fazer-se com os
dedos, se o produto for em creme, ou com a pequena escova
apropriada. A arcada superciliar numa nuance mais clara ou apenas
brilhante, abre extraordinariamente o olhar. O pincel de eyeliner deve
ser em marta, como aliás todos os pincéis de maquillage. Termina-se
com a aplicação de duas camadas de máscara (ou rimmel), deixando
previamente secar bem a primeira.
MAQUILLAGE
DA BOCA

Devem seguir-se com o lápis os contornos da boca, corrigindo apenas


ligeiramente alguma irregularidade (ou insatisfações). Preenchem-se
seguidamente os dois lábios com um pincel próprio. Devem possuir-se
tantos pincéis quantas tonalidades de bâton, ou lavar cuidadosamente
após cada aplicação, com uma solução leve de um produto para lãs.

A maquillage deve terminar pela aplicação com pincel de um pó no


mesmo tom da base ou translúcido ou iridescente cujo excesso se
deverá retirar com uma escova de rosto.

Não esquecer que toda a maquillage deve iniciar-se pela limpeza


escrupulosa da pele, seguida da aplicação de uma boa base pré-
maquillage,
Como vermes, como vermes na carne da cara, dos olhos, dos peitos,
sim peitos, de Mary, as injunções, a memória. Mary aperta o roupão e
pensa olhando o espelho, a cara radiosa, a porta ainda fechada no
trinco, Bebo qualquer coisa, saio antes dos pequenos virem, oh Zé, my
love, my own, Jesus salvai-me ou eu morro disto tudo, por fora disto
tudo, não posso mais, Perdeste para sempre a maravilhosa unidade
irremediavelmente estúpida, Não sei o que hei-de vestir,

tão bonita,
porque a ignomínia cuidada fica bem a Mary, fica-lhe lindamente.
II
CASA DE ELISA
OS TRABALHOS DE CASA:
POTE PODRE
Quando a noite já estava bem caída, pelas seis da tarde, a nossa
heroína, Eu, Eu, disse o meu sobrinho Simão, sentei-me com os livros
ao colo da mesa e fui fazer esta

DE GRAVISSIMA CULPA

Gravissima culpa es la
incorrigibilidad de aquella que no
teme cometer las culpas y rehusa
sufrir la penitencia — que a la hora
del comer, sin manto, vestida de un
escapulario, sobre el qual habra
dos lenguas de pano bermejo y
blanco, delante y detrás, en modo
raro cosidas, en medio el refectorio
coma pan y agua sobre la tierra por
senal, que por el gran vicio de su
lengua en esta manera sea punida y
de ahi sea puesta en la carcel; y si
en algun tiempo fuere librada de la
carcel, no tenga voz ni lugar.1
IX

Look at me now and here I am


And with it all it is not preparation,
They make it never breathless
without breath
And sometimes in a little while they
wait
Without its leaving
It is mine to sit and carefully to be
thougth through
Let it be that it is said let me alone,
You alone have a way to think and
swim,
Leave it as well
And noises have no other.
It is in their refrain that they sing me
It just can happen so.2

Ecce doninha in lura, Ophelia inaufragada. Salva-Erro. Sim, sim, sim,


eu vou-me explicar que essa é a destinação de quem copia a dúvida da
identidade própria: Eu escrevo para tecer um estandarte de confraria
franjado, um sudário inconsútil, uma cota de armas fendida a montante e
a jusante, myo Cid, roupinhas: Porque onde eu nasci, pátria e casa,
estava tudo roto. Dizem-me os jornais, que poucos leio de Pavia ao fio
de Roma, A Cadeira, a Cabeça Sentada, que temos para este ano um
mesmo ditador novo E depois? Agonizou com o outro a minha culpa
dos meus mortos me esperarem uma saída, das minhas mortas me
esperarem uma entrada debutada? E depois? O ditador morreu, eu devia
estar com as bem casadas ou com as universitárias e estou suspensa
como uma sentença que o país se não deu depois da morte dele, velho.
Bestas, que não vêem que eu sou da mesma ordem do acidente que faz
subir ao poleiro ou cair da cadeira abaixo, o acidente de mobiliário ou
visceral, cardiovascular ou outro. Previsível. Ouviria vozes, se fosse
donzela ou menopáusica. Assim, só sei que sou eu que as faço, fosso.

Eu estou aqui, sentada nesta casa de trevas verdes de mil folhas onde
zinem os veios negros do arbitrário e dos inesperados percalços da
modificação, ou não, porque me empurrou a rede de arrasto para a
porta da cavala que é um peixe tresmalhado, de extrema resistência e
lucidez — Arteiro.

Sim, sim, tenho gira-discos e um frigidaire pequeno, faço exercícios


como um exército folgado desflorando santas margaridas, não vejo
quem morre, não vejo quem vive, espreito as notícias de desastres e
destinos singularíssimos através de um periscópio feito de uma artéria
venosa e de um pífaro de cana e de um cheque à ordem, já conheço
prostitutas, conheci éguas, sou bem tratada pelos carteiristas de rua e
pelas vendedeiras de pentes, porque tenho a esquiva altiviva no formato
das unhas e na implantação da cabeça. E depois? Nunca conheci um
operário da Outra Banda, ó Pai da Vida, e se conhecesse, e se ele me
fornicasse à bruta com o fato-macaco à meia perna e dedadas de óleo
na minha boca, e eu à espera, e se ele me respeitasse girando nas mãos
a boina com caliça e massa mole, e eu à espera, e se ele me dissesse, A
união faz a força, e eu à espera, e se eu não o traísse se eles me
batessem e isso é afinal tão possível tendo os meus rins e espinha tesa e
os olhos treinados para o orgulho dinástico diante da violência e da
morte e se ele me dissesse então, Camarada menina, Menina Camarada,
dê aqui uma ajudinha a entender de que é que estamos à espera. Então é
que eu tinha que dizer, Camarada menino, Menino Camarada, o mau é
cada um ao seu, quem não gosta do que há devia ser do toma lá, dá cá.

Mas qual quê. A partir de idade certa a minha punição veio de si —


impunidade e clausurinha num prelo de prata. Espécie de Coutada. De
unicorninhos. Bichinhos que só vêm à mão de quem andar ao
pergaminho. Numerus clausus de alta escola. Eu podia dizer a meu pai a
caminho do conselho de administração, a caminho do enfarte que não
lhe veio a tempo, Mas para que é que vai, oiça esta do Ezra Pound,
Nothing matters but the quality of the affection — in the end — that has
carved the trace in the mind dove sta memoria3, oiça esta do Carlos de
Oliveira, Quem vive nas mansardas tem: a) o orvalho mais cedo4, Mas
para que é que vai se está farto?, The quality of the affection?, dizia ele
a enxugar a boca ao guardanapo monogramado, O orvalho mais cedo?,
dizia ele conferindo pela cortina e pelo ultra-flat se o chauffeur já
estava à porta, Sim, sim, minha querida, mas é tarde, é tarde, todas as
tuas maravilhas devem passar pelo passamento de um velho coelho
atrasado. E vinha-me à noite com pequenos concertos para cravo e a
Capitale de la Douleur. Na manhã seguinte, eu recitava, La nuit les yeux
les plus confiants nient, Jusqu’à l’épuisement, La nuit sans une paille,
Le regard fixe dans une solitude d’encre. Char? dizia ele em vez de
dizer, Estude, ou, Divirta-se, ou, Vá lavar as mãos. Ele dizia tu só ao
mim de Mim. Ou, citando-se de uma juventude onde há-de haver havido
chapéus de palhinha e orlas de saia flácida sobre a anca descaída à
meia coxa, olhos de Pola Neri sob um fitilho na testa, Un jour El(i)sa
mes rêves monteron à des lèvres, Qui n’auront plu le mal étrange de ce
temps. Aragon, pai? dizia eu, e o seu dia começava com esse sorriso. E
depois? Mas para que é que foi, Pai,

Que aqui estou e a causa desta postura não na sei a menos que seja
levada ainda para mais longes espaços da vossa casa, isto o cais onde
me arribaste, meu pequeno Scott de biblioteca folheada, Bairro Azul e
jaquetão traçado, bota afiambrada e samarra d’Anto. Faço pois a mão
portuguesa que me ataste ao leme da carcaça, copio com verve de
cidades e azedas de serras, tua

, lembrada,

que meu Irmão, o Descoberto, pode desaparecer por uns tempos. Que
minha irmã, a Real, chora de tacanhez debaixo de um piño
irremediavelmente verde, fibroso para o mal, irresinante. Que minha
Mãe, a Estatutária Estultícia onde fui depósita, já lá não está, mas
também nunca lá esteve, que meus Manitos maninhos Muitos, os
marinheiros aventureiros, estão do outro lado da (entre)tela com que me
tapam para não ver o Desfecho à testa do Couraçado. Para eu não ver
que sou vista vendo que assim,

senão acontece mais que uma pequena queda de uma cadeira abaixo ou
de um império, assim, esta cópia está condenada a pré-
maduro

HORS D’OEUVRE

Não é que eu me rale, sempre amei


mais o Divertimento e a mais Vida
que a Vidinha. Sara dixit melior (a
scholar is a scholar is a scholar,
tenho o sétimo, céus, ano):
— Não é por nada Zizinha, mas ir
alugar casa tendo a casa dos seus
paizinhos, da sua mana, mas vem a
dar ao mesmo, é um desperdício, é
o que é, um desperdício.

São sete horas da noite — já sobre o mais velho bairro da cidade.


Quem me cozinha? Já conto. Intempestivamente, como uma guinada
desentérica — où êtes vous mon amour perdu? A dama de Marienbad
não pode ter nome certo senão fora, para lá do parque. Quem cozinha e
apanha ali os cacos do chão da emoção (in vitro)? Por vezes, sempre, o
único lado exterior de um dado espaço é a memória desatinada, a
câmara (quarto minguante) doida, infixa, o pânico da treva que
desaustina o olhar de brecha a brecha, luminosas.
Tenho mulher a dias, para as sobras destas noites, literalmente. Mas
também, inda sou damizela,

A fita amarela que trazes pendurada ao pescoço desde que me conheço,


Cesariny, filha? Disparate pai, António cumá ti, Maria cumá eu, Lisboa
cuma nós. Lembro-me mal desse sorriso.

Da compulsividade do registo. Espécie de Barragem contra a Voz


Passiva. Ela abandona-se, é o contrário de, Ela é abandonada. Ou se é
caso de vingança, como diz a mestra, também posso, enquanto passa nas
ameias, e na deglutição e digestão televisiva dos serões em família dos
jantares do meu bairro, digo que posso, in(com)paravelmente, refazer-
me,
CRÓNICA DO CRUZADO OSBERNO

Esta nossa actividade fatigava


muito os inimigos. Os normandos,
os ingleses e os que com eles
estavam, começaram a fazer uma
torre móvel de oitenta e três pés de
altura, e os coloneneses e
flamengos, para derrubarem a
muralha, começaram a cavar uma
mina em frente da parte mais
saliente do castelo, obra essa
admirável que tinha cinco entradas,
prolongada por cerca de quarenta
côvados, com a mesma largura da
frente, e que eles concluíram em
menos de um mês. Mas a fome e a
pestilência dos cadáveres afligia os
inimigos penosamente: faltava-lhes
já na parte inferior da cidade o
lugar para a sepultura dos mortos, e
vinham apanhar junto aos muros, e
levavam para comer, os restos
imundos que das nossas naus se
deitavam à água. Deu-se por isso
este caso engraçado. Alguns
flamengos que vigiavam por entre
as ruínas das casas, tendo comido
figos, deixaram ali depois de fartos,
uma porção deles. Quatro mouros,
tendo-os visto, às ocultas e pé ante
pé, logo vieram como pássaros ao
isco. Os flamengos que os tinham
observado, espalharam então
muitas vezes os sobejos por
diferentes lugares, para os
engodarem. Por fim, tendo
estendido redes nos lugares do
costume, apanharam três mouros
presos nessas redes, o que nos foi
motivo de grande riso.

Minado já o muro e lançado o fogo


na mesma noite à madeira aí
acumulada, de madrugada, desabou
a muralha numa extensão de quase
trinta côvados. E então ouvimos os
mouros que vigiavam de sentinela
nos adarves, chamar
angustiosamente os seus a que
viessem pôr termo aos seus longos
sofrimentos, e dividir o seu último
dia entre estes e a morte de que
receberiam grande conforto se, sem
a temer, cada um deles se trocasse
por um dos nossos, já que era fatal
terem de ir donde não era
necessário voltar. A vida em parte
alguma se podia dizer breve quando
acabara bem, pois que durara o que
devia e não o que podia durar. E
esta era a única condição que lhes
tinha sido imposta: não se
importarem por quanto tempo, mas
quão bem a tivessem vivido.5

O MALOGRADO

Na corrida de sacos era o único


que tinha um pé solto, mas prótese,
pé maroto. Como cara era a que lhe
tinham posto de bem amado logo-
logo e não pudera entretanto
refazer-se outra. Era assim sempre
depois por desleixar-se no antes.
Era quase. Montou-se um dia num
cavalo e desentendeu que o formato
das coxas e dos punhos, traves,
guantes, genes, sobremesas certas, é
que o tinham posto lá. A injustiça
vem de nascer. Em tudo o que ele
se punha era assim — da raça do
que em que fora posto, eterno pinto
remansoso de o ser de pedrez
laureada e buliceiro da proteína
insossa garantida. Assentou praça
em casa e assentou a casa na praça.
Assim topava a tudo o amor da
pátria e dos pobres, pegas, tinto na
rua, sangue no casaco, fiambre em
casa, botija na cama. Como não lhe
fora feito se não fazia. Podia ser
pior? Podia. Pode-se nascer outra
vez? Pode, mas tem que se lhe dar
uma grande volta. Saber, ele sabia,
de assistir e pena, só de
emprestada. Doíam-lhe bastante os
poetas mortos ou em vias de
dissolver-se e o surpreendente
efeito na calçada dos que lhe
tropeçavam no encalço — porque
os amados geram o amor — é a
outra injustiça. Como disse, corria
emprestado. Quando só, era muito
aconchegado dentro da sua pele e
bom juiz de fora, dos perigos. Que
se saiba só perdeu uma vez — foi
quando viu casca nova, mosqueada,
o ovo de cobra-víbora a abrir com
plumas. Parou muito, desalvorou a
tempo. Denegava muito por causa
de insistirem, donde existir assim
como eu digo assim-assim. Dizia-se
aos meninos naquele tempo, Come
a sopa que senão levas. Ele não
comia e não levava. Parecia o
impossível trespasse da história
dos bibes finos. Dado que comer a
sopa não é ser saciado, os outros
contemplavam o bem que ele comia
o resto. Às vezes parecia quase que
ia deixar estes maus momentos.
Modulava-se. Mas chamava a que
viessem ver e antes de ir estar já
lhe diziam que parecia o que não
estava. As castas queimam. Quando
morreu puseram-lhe assim, AQUI
JAZ QUEM SE SAFOU TANTO QUE
AGORA JÁ NÃO TEM SAFA6
Já percebi de onde é que se põe quem é escritor — põe-se de um sítio
de donde dá a ver a um voyeur muito parecido com o próprio, mas
muito maior. Ser espécie de Polegarzinho a escrever no chão de palma
de mão de ogre que se não gostar esborracha. Escritor bera é o que
julgue que ogre não come gente. Come.

ah, que esta não é só de


castigo. Batem-me à porta
indelével, levelmente e eu depois
comento este texto se a neve não
cair e a neve não cai assim:

Era o Luigi, já bêbedo, que trazia com ele a Isobel a Magnífica, que
também. Traços salientes outros que halitoses: nasceu no Norte.
Estudou em Coimbra. Há ali qualquer coisa da indolência
conservadeira de Coimbra, do divagar à beira dum rio curto, estreito,
moroso. Os choupos não são uma árvore tónica, Que é que o pai sabe
de Coimbra, pai? Faz gente caseira. E Camões, Pai? Saiu. Luigi também
tem de trânsfuga prestes a fazer malas. Mas foi-se o tempo das arcas
encoiradas com as camisas de seda virgem, os gibões, os alistamentos
precipitados num rol de nau. Quando era pequeno a mãe disse-lhe que,
Tens olhos de cão. Podia ter sido para bem. Não foi. Faz subir um
soufflé de atum com restos de pimentos morrones até à sétima arte. É
grande, claro de pele, escuro de pêlo. Boa saúde de farras, queixumes,
Estou podre. Fértil de talentos dos que requerem extrema inteligência
dos sentidos, histórias: Uma vez a minha mãe estava a dizer, Que fina
que é a prima Dulce, é de facto tão fina, tem umas maneiras tão finas, o
cabelo tão fino, olha de uma maneira tão fina. E a minha avó disse, É
tão fina, tão fina que caga de retrós. Mas ele tem de facto uns lindos
olhos de cantos baixos e respira mal, bucefalamente, quando está
bebido. Faz uma obscuríssima distinção entre a vida de família e a
outra. Só se sabe que tem família. A outra começa ao fim de tarde e
acaba quando cai a manhã do dia seguinte. Lê muito, glosa, vê bem. Só
respeita a sobranceria verdadeira, o que quer dizer que respeita pouca
coisa. Gosto dele? Gosto dele. Bela moldura arte nova, ó debutante,
aposto que a cadela se chamava Fürelise. É, e essa senhora que aí vês
tocava muito bem cravo de cabeceirinha. Quem, a Clitem — está? Hoje
estava em baixo, Luigi. Já não é garoto. Mente ou omite enormidades.
Pode pois parecer deslocar-se em cima de um tapete, com um kaftan de
linho limpo, a ir-se, a ir-se. Tem medo de morrer, ama pouco é espesso,
Gostas de moscatel verde? Já perdeu também, Luigi que vaz que vaz
mas não vaz. Mas que é ganhar?, pergunta sempre quem tiver alminha
lisboeta. Isobel a Magnífica é outra louza. Tem a pele verde, de um
verde sumptuoso, claro e glauco. Vinha quase tão grande como Luigi.
Porte para Miguel, o Angelo cum sibila. Ombros, por exemplo, para
cavalitar Afonso Henriques quando em panos. Mãe para grandes filhos
dela em suma. Tem voz de rapaz mas não mais que os baixos sonoros
da Greta. Um garbo insuperável e dois olhos amarelos com a mesma
placidez pronta de uma leoa com crias. Lisboa dá cabo dela, que é uma
cidade de gente esquiva, ao mais de uma vivacidade pungente, graciosa.
De semelhável em Lisboa a ela, Isobel, só o portal da Sé com menos
estado novo, mais pedra vera, patines, musgos: Quando eu a conheci
estava ela inteiramente nua, coisa de Campo Santo de Génova, a fazer
marmelada abstraidamente com um rapazinho esquecível — tudo isto
em dada sala onde se haviam estado trocando impressões nada digitais
sobre sexo e costumes. Nada de débauche — gente educada, novita.
Coisas da liberalização, escolares, geração decente. Quando a viram
naquilo, começaram todos a despir-se e a continuar a falar que era para
ser como se nada fosse, espécie de educação sueca aos dislates do
sexo-seculorum. Ia não sendo nada, pois, não tivesse eu um certo senso
de fraternidade histérica, cénica, o respeito da cena: de golinha ao
pescoço, comecei de chorar o mais belamente que pude as desgraças do
mundo — lágrimas e mais lágrimas sem abrir pias. Não foi difícil — só
me vinham à ideia criancinhas com tétano, rígidas, um tubo metido na
traqueia, a boca selada, os olhos no pânico, os pezinhos para dentro.

Começaram quase todos a ir à sua vida a abotoar as braguilhas, a


acompanhar-se à porta com as perninhas entre o rabo ocluso. Isobel
sentou-se-me aos pés a ver a debandada, sempre é mais nova,
enroscada pudorosa na minha capa qual madalena a acompanhar a
senhora ao Sepulchro. O Anjo veio e disse-nos, Porra, manas, ainda
bem que vocês refizeram o gesto. Ficamos cerimoniosas amigas,
Desculpa lá pá, eu estava um bocado bêbeda, Não tem importância,
olha que não foi nada feio. Consta que é lésbica, deve ter dado uma
mãozinha a alguns linfatismos. É tão antigamente bela que só um
príncipe preto, rosa rara, é que a podia trazer ao peito.

Pois estes dois, que nem se gramam muito, vieram cá vacilantes,


suponho que a tomar voo do janelo da torre do tombo adiado. Comeram
um muito pouco, Luigi mijou cataratamente que se ouvisse, café ardido
e andor para o fado. Espero que eduque. Arquive-se.

Aqui trabalha-se pois numa galeria


de retratos. Livrai-nos, ó Mestre e
ó ar do tempo, da desenvoltura
retrateira,

reatando,

Posso contar histórias, posso lembrar-me, a quem é que eu vou culpar


deste pousio nas desordens?, eu não devia ter as imagens tão
isoladamente engastadas, falta-me o percebimento do tecido, vou por
brechas de luz, já disse, os ratados da malha. Mas se esbarro por ter
perdido não só a sucessão do factual como a percepção do deveras
maligno — a minha infância foi povoada de tenebrosos contos escuros,
jardins de cuecas abaixo, sevícias, de aparos de caneta, rumores de
saias de bruxa e santas ao alto de paredes nocturnas, pancadinhas
discretas de sucessão ordenada nas bandeiras de porta chamando na
treva por mim, a respiração fechada, o peito aos galopes centauros de
asas pretas, teatrinhos de papel e beijos nas bocas — quem não? —
então só me resta o que de facto ainda maravilha e a compungida ou
ungida de júbilo, memória. Perdi para sempre a gloriosa chave dos
Luminosos Enganos, dos Ódios Pertinazes. Sei porque é assim, suspeito
— a Palavra, o Prazer, a Ternura estão-me no mesmo papo, todos os
meus sucos circulam apenas por leves mutações de coloração e odor,
meras oscilações de sangue ao vapor quente, da goma vaginal ao cuspo
sobre as línguas amadas ou na dobra das cartas. Se sangro coagulo
breve, se bebo o indevido, mijo logo. Perdi para sempre a maravilhosa
Discrepância do meu Corpo. E ou tenho muita saúde ou vou para doida
e nada disso é muito normal. Sei o que sabem os velhos felizes e não
tenho a idade. Só me resta todo o desconhecido e a inefável memória
dos infernos, estou condenada a uma pureza muito átona e temerata, até
que grande novo sismo me arroje, marco passos em volta, ó poeta todo
Herberto, já não tenho lugar para o Escândalo:

porque eu estou pequena e diante de uma carteira das que levantam a


tampa para entalar dedos de crianças em susto. Pela janela via-se o
arquear dos grandes lombos sáurios dos braços de plátanos, com as
suas cascas quase moles que abriam beiços no tempo às incisões do
nome próprio a navalhinha suíça. As folhas resplandeciam de verde
amarelo, de rumorejo de manhã, trilos agudos de pardalejos novos que
se apanham à mão e morreram numa pequena caixa de sapatos,
rodeados de gema de ovo cozido e de miolo de pão, as patinhas gélidas
quando eu acordava. Ela tinha por boca uma fenda branquial ladeada
por duas bolsas de pele de barriga velha, deslassada, sobre o cabeção
em forma de meia hóstia gigantesca onde estava a braços o cristo na
cruz. Debaixo do pano branco que estirava a testa, debaixo do véu preto
até à anca onde tilintavam as chaves sem dente das zonas clausuradas,
possíveis de violar com um simples cu de lápis, impossíveis de violar
de terror sacro, lá estavam os olhos que não como de gente, a pura
espiação. Eram da ordem do estremecimento mínimo da aranha ao
primeiro adejar ainda incrédulo da mosca mal pegada, como os de
babuíno às grades que aceita fitar olhos com banana em mãos, não há
maior escuro ódio impessoal — um felino intenta na presa afinal com
um grande prenúncio de júbilo, a dentição toda exposta de um cão que
rosna, o lobo que se eriça em silêncio, o cavalo que escarva os ares na
tua dianteira são afinal tão dispostos ao pacto, um pedaço de carne, um
osso do teu fogo, um dito brando repetido, um nome, Levante-se, Maria
Elisa. Ela queria a minha alma. Pai, ajuda-me neste problema, Uma
torneira verte por hora um litro e meio de água — Diga em decilitros
qual a quantidade de água vertida num quarto de hora. Que seca, pobre
querida, eu também detestava isto, é rápido, queres ver? Mas eu estava
pequena diante duma carteira das que levantam a tampa todas as
semanas à cata de bilhetinhos doces, paus de chocolate, pequenas
histórias até de fadas, negadas: Quero saber quem copiou os problemas.
O meu coração bate como tonel derrubado em ladeira, eu estou de pé,
eu digo, Eu pedi ajuda ao Pai. O mundo girou três vezes vermelho antes
de acabar aquele silêncio onde me estremeciam as asas. Uma por uma
ela perguntou-lhes, A menina acha que a Maria Elisa copiou?, e a
menina? Nenhuma teve lá os olhos em mim ou nela na sucessão dos
sumidos nãos. Todas tinham pais e irmãos sabedores de torneiras, só eu
aquele perverso vício da minuciosa transparência. Sabia lá os monstros
que convocava, Vai ter negativa e bom em comportamento por ter dito a
verdade. Terá masturbado a ranger os dentes a minha vulva que então
nem eu tocava, rodeada nessa noite dos demónios que ululam nos
sonhos dos carrascos que o excesso de inocência sempre inventa?
Eu sei, minha querida, é injusto, tu
nunca mentes, Mas Zizi porque é
que a menina não se calou também,
pedir ajuda não é copiar, Cale-se
Maria do Carmo, a pequena está no
seu colégio e no da sua filha Mimi
para aprender o desprezo, nada
mais, O Senhor é um maçon, é o
que é, porque é que não manda a
pequena para o liceu, para a escola
da esquina, para a Rússia?, Na
escola da esquina sabe-se pouco do
país onde você mora, Maria do
Carmo, e é pena, a Rússia era mais
perto e quiçá mais bonito,
Bolchevista, Não chores Elisa,
querida, a tua mãe está com
problemas da idade, De idade, eu?,
tenho trinta e nove anos, António,
Mas parece indecentemente menos,
minha cara amiga, já comparou com
a sua caseira?

Tão forte é a dor da exposição na roda, não desisti, mas hoje só


exponho (a)bruptamente, os insectos recuam ao jacto, perdi a suscitação
do pequeno maligno sobre mim, o meu próprio escândalo humilhado,
não expio mais assim. Revelo com a maior arrogância que posso quem
me ajudou nos problemas. Perdi culpas. A vitimação que haja
de haver torna-se muito mais complexa.
Ah, mas as redacções, seladas a grande lápis grosso eram sempre
lidas em voz alta nesse mesmo lugar de estupro e massacre dos signos
algébricos e das torneiras pingolejantes, Abençoai Senhor o alimento
que vamos tomar a fim de poder manter-nos ao vosso Santo Serviço.
Ah, não, isso era na grande sala de comer em silêncio sob os lambris de
carvalho ruivo-mogno, sob as pedradas ímpias que abatiam para
sempre o pequeno S. Tarcísio de túnica e sandálias trepadeiras com a
sua Santíssima Carga Eucarística,

Mostra-me o que levas aí,


Capuchinha Encarnada, São bolos
para a minha avozinha. Ó Lala, o
lobo comeu mesmo a avó? Não
credo, Zizinha, as histórias são um
supor,

lido em voz alta após o fragor de cento e cinquenta cadeiras arrastadas


com veemência, sussurros, vibração de copos e talheres. Madre Joana
lia em pé, edificava. Podia-se falar às quartas e sábados, quem lá
ficasse, por internato completo ou muito má semana de torneiras,
hipotenusas, fauna de Madagáscar, papado de Alxandre IV ou
malcriadez. Sete anos e mais três de jacobinismo sacro, turíbulos de
oiro e arroz de bacalhau meses, cotovelos junto ao tronco a deglutir em
cochichos, cacanhos secos nos azulejos de cubículos de sanita, brocado
vermelho nas salas de visitas, rede de tabuinhas na entrada de onde não
passavam nem os pais machos nem os seus fâmulos desbarretados, ou
sequer avós de polainitos e feltro de aba rija, debrum de gorgorão, no
Inverno.
Segue, pois, escritos sentados agorinha calada para nossa edificação:

SETE AMORES
PARA SETE UNÇÕES

Pai, vai-me buscar hoje? Vou sim, mon petit, mas não entro, todo aquele
cheiro a cera, a halitose de jejuns, a amoníaco de ceroulas por debaixo
das saias, enoja-me, Que disparate, António, as madres são
limpíssimas, Então é da alma, ma chère.

1. O AMOR PRÓPRIO. Aos sessenta


anos, o poeta pegou na mão da
mulher cheia de grossas veias
salientes e de sarda clara,
enganchou os dedos naqueles
nódulos imóveis e disse-lhe, Vamos
recomeçar tudo do princípio.

2. O AMOR DE CRIANÇA. O menino


esventrou o escaravelho azul-noite,
viu que era cor de leite, por dentro
e enterrou-o numa pequena caixa de
fósforos, dentro de uma pratinha
moída de chocolate, todo enrolado
numa serpentina húmida de cuspo.
Agachou-se em cima, fez força.
Depois, foi buscar a mãe pela mão
para que ela visse onde estava tudo.

3. O AMOR DE MÃE. Ofélia Amaro,


antes de morrer viúva, chamou os
filhos todos um por um. E a cada
um e a cada uma disse,
sinceramente, Como és bonito,
como és bom, como te pareces com
o teu pai. Depois, reuniu-os a todos
e morreu severamente.

4. O AMOR À PÁTRIA. A patrulha já


estava a dois passos do sobreiro
mais próximo. Com os pés metidos
em dois regos de lama, o Osório
agachou-se na dianteira dos
ganhões. Enterrou as mãos no
lameiro até escorrerem visco,
passou-as pela cara, pelo redor do
pescoço, como se estivesse a
acalmar alguma sequeira por
debaixo da samarra.

Batem-me à porta.
Tenho muito mais sorte que o Régio.
Ninguéns me deixam sozinha.
Diante de coisa nenhuma.
Mas limpa os pés, meu amor.

Fui ver. O Lúcio caía.

— Atão, escritora, hoje não sai? É a ressaca, hem? É o costume. Está


muito bem instalada, a escritora, sim senhor. Isto de ser burguês. Não
tem aí uma cervejola que se beba? Sim, senhor, tem um lindo colo, a
escritora, nunca pensei que tivesse um colo tão lindo. Estás com a
ressaca do príncipe, hem? É o costume. Isso é um roupão, é? É que eu
não sei como as senhoras se vestem. Só comeste isso? Ó escritora
assim entisicas, é o que tu queres, não? É o costume.
Não tirou as abas do sobretudo preto de à roda do pescoço nem a
deitar-me a mão canhestra, um arremedo, a esquerda, ao tal colo.
Inteiriçou-se no cadeirão de couro, muito distracto. Eu só tinha duas
cervejas, esta curiosidade moderada para aquelas ausências de patrício
de café, ensimesmado. Nome feito nas letras e às noitinhas, de dia
picando pontos, pobre, os olhos dois farolins, lâmpadas de berlinde.
Faz-me algum medo ou suspeita de respeito de áreas vedadas. Consta
que — foi operário ou mecanógrafo, houve gravidades políticas,
Aljube, zangas de homem — depois, abjeccionismos, mas isso já me dá
muito menos cuidado. São gestos, imitações de transgressões de que, ao
mais, só se pode morrer, modas subtraídas à gesta final, ao desastre
sumptuário de uma outra casta. Ah, com os farrobinhos da audácia
posso eu bem, está provado, perder o emprego por faltas não é o
mesmo que perder ao jogo numa noite quatro caleches inglesas, uma
amante italiana e um pavilhão no Luso, morrer de cirrose é afinal menos
espectacular que a roleta russa, assistir à chapada de um chulo é menos
curioso que ver a avó enterrar um longuíssimo alfinete de chapéu, a
cabela de pequeno dragão de âmbar, nas costas da mão luvada de
camurça e imóvel de um marido possante. Ou ter um pai que se amanda
de Mercedes pela ravina de onde só voltam inteiras as cabras e as
lavandiscas,

— Isto quem é, ó escritora?


— A minha cadela perdigueira acompanhada da minha irmã e da minha
mãe. Ao lado sou eu. É o costume.
— Bela mulher, hem? pouco boa, mas bela mulher.
— Não se podia ter tudo.
— Isto é prata, é? Estás bem instalada.
— Não, é latão com um banho por cima, pergunta a um torneiro
mecânico, o esquema é o mesmo do cromado dos bidés.
— Ó escritora, tu és doida, tens mesmo olhos de doida, é por isso que
eu te amo.
— Quem me dera um incêndio para eu só levar comigo o meu marfim
de Benim, um incêndio, porra, tu amas é a classe dominante e não
sabes.
— Ó escritora, tu estás mas é com dor de corno, tenho lá culpa que não
te entendas com o estudante. Tens mais cerveja?, onde é que se mija
nesta casa? Guarda mas é as tuas coisinhas, bem sei que és rica, mas
olha que a mama há-de-se acabar. Tens ali uma arca toda porreira. Tens
lá papéis é?, os ineditozinhos? Olha, o Pessoa,
— Está tudo contaminado pelo bom gosto, tudo contaminado.
— Tu és mas é bruxa, está a deitar fumo pelos olhos, anda mas é daí
beber umas cervejas.

Não fui. O Gelo caía.


Beijo-te a mão, Cidadão. Tem dias.
Mas os poetas, senhor,

(Exit sem tirar nem pôr o sobretudo.)

Continuamos:
Que pelo sonho é que vamos:
Ó Sebastião come pouco:

Pôs-se então de pé e deu-lhes a


cara assim borrada. Já ninguém se
ria, tudo calado, debaixo do capuz
ferroso dos céus. Osório limpou a
lama da boca e dum sobrolho com o
dentro da manga, estendeu-lhes os
braços com uma poia de terra em
cada mão fechada e disse ao tenente
que tinha parado a dois pés, a
canhota baixa:
— Ei carago, atão vossemecês nem
são homens para atirar a um boneco
de terra?

5. O AMOR POLÍTICO. Na Primavera


de quarenta e oito, Camilinha
Senfins enamorou-se de Garcia
Lello porque ele tinha poder e
fortuna. Ela não podia amar de
outro modo. Também era, por isso,
galante menina. Trinta anos depois,
tendo ambos perdido essas coisas,
a sua vida sexual era muito pobre.

6. O AMOR LOUCO. Baltazar O. tinha


as mãos geladas. Tocou com dois
dedos na têmpora onde o coágulo
nos bordos da fenda tinha formado
uma pequena câmpanula opaca e
mole. Maria Rosa sorria e chorava,
comovidíssima, o fio de sangue
escorrendo da boca até à clavícula,
ao punho cravejado da lâmina, à
ponta da rótula, ao peito do pé.
«Vês que não se morre disto?».

7. O AMOR NATURAL. Graciete tinha


um cão, que preferia. Estando ela a
fingir que se afogava para reter o
cão numa aflição maior, afogou-se
mesmo. O cão foi dado ao filho da
porteira que o prendia por uma pata
com uma guita ao banco da cozinha.
tudo, tudo pode ter os seus significados presos, todas as interruptas
invenções são crudelíssimas a quem quer ler. Eu não escolhi esta vida,
fui posta nela por um conjunto de circunstâncias destinado a averiguar
que circunstâncias são, por todos os meios possíveis, e isso é que é
grave, 1) porque nem toda a gente tem que averiguar porque são tais as
suas circunstâncias; 2) porque as pessoas que têm que averiguar porque
são as suas circunstâncias as circunstâncias que são, não são, as suas
circunstâncias, circunstâncias que as obrigam a averiguar delas por
todos os meios possíveis.

Canso-me muito e todos dizem que eu não faço nada. Excepto a Sara
que diz, Anda a chocá-la. O que, curiosamente, assim foi feito, de facto
— Lê isto Maria Elisa, Que achas disto, Maria Elisa, e eu ia de
Invenção de Junho para a retrete, de Luar de Agosto para a praia, de
Ulisses para debaixo dos pinhais, de Sexus para a mesa, de Mulher
Fatal para a cama.

Acha que a pequena tem idade para


ler isso, António?, A pequena tem
milénios, Maria do Carmo, que é o
tempo da acumulação do bom
gosto, Bom gosto, António?, a
pequena nem sequer se penteia, Que
vai ser de si, minha amiga, quando
lhe cair o cabelo.
Numa família em que as mulheres não tinham tradições de letradas, nem
sequer de legíveis,

Minha Boa Amiga


Maria do Amparo

Daqui do Luso lhe enviamos, eu e as pequenas, as mais gratas


lembranças. Se puder mande-me aquelas amostrazinhas do
Grandella que me prometeu. Se puder também diga à costureira
que guarde as toiles que eu gostei para a volta, daqui a uma
semana. O tempo tem estado um pouco fresco.
Muitas saudades a todos,
Sua sempre grata,
Maria do Carmo,

porque colocar entre mim e os mundos possíveis esta casca flamante de


letras sequer muito amante delas ou industriosa, este situar-me
vestalmente no ciclo das passagens de folha, de geração a geração de
quem não tem nada de mais aventuroso a fazer que registá-lo, esquecê-
lo, transmudá-lo, menti-lo.

Pai, Pai, porque me inscreveste no lenho onde tudo deve ter o Seu
nome?,

perdida para sempre a capacidade deveras soltamente alucinatória do


meu ânimo

no monte eu tinha tranças que eram desfeitas e escovadas para a noite,


um vermicular de ondinhas. Andavam de dia as mondadeiras de chapéu
e lenço e a saia entre as pernas no arroz, eu tinha um pato de celulóide.
Apagada a luz e passado o cheiro a flor funda, nardo?, do breve adeus
Dela, a noite cigarrava mais alto, a minha boneca de loiça sentada
sobre a arca florida luziam-lhe os olhos, pirilampos de casa. A janela
meia-aberta, um cão ou outro fungou perto, alguma buraca de rata ou
resto de biscoito de ovos e manteiga. A capa de carneira azul e filete
doirado das Meninas Exemplares começou a crescer para porta real de
cavalariça de alteres, enorme. A porta do quarto abanava. A minha
cama abanava. A cabeça da boneca caiu para a frente e ficou para
sempre com uma pequena falha branca no nariz. Estava ali um homem
esguio de boné aos quadrados. Postou-se à beira da minha cama de
grades, parado, eu tremia, a cama comigo. O homem curvou-se sem
feições e pegou-me com muito jeito com um braço debaixo do pescoço,
outro dos joelhos e levou-me de camisão compostinho até ao umbral da
porta agora a escâncaras, a casa como que deserta. Não era preciso
ninguém vir, eu não estava assustada, tremia só. O homem depositou-me
no chão, do lado de dentro, como se eu fosse um doce capacho de carne
leve, galgou-me cuidadosamente e desapareceu para sempre. Ao fim de
algum tempo, tive frio e disse, Lala, Mãe. Sem levantar a voz. Sara em
xaile e mãe em rendas foram dar comigo ali, quieta no chão. Contei.
Tremia serenamente, estranharam-se muito, A menina está cheia de
febre, minha senhora, Vai buscar o termómetro, Sara, mandaram ver de
caseiros, de ferrolhos, todos os cães calados. Ele não estava, os
ferrolhos quedos. Dia seguinte veio estetoscópio de Beja, A criança
está com um surto de paludismo leve, nada de grave, Minha Senhora.
Quando Ele voltou, perguntou muitas coisas do homem que só eu sabia,
Foi como quando viste a mãe dentro do fogão de ferro preto e amarelos
da casa da avó, minha querida, com a cabeça de fora da boca de três
aros, a gritar, a gritar? Não pai, isso eu sabia que não era mesmo
verdade-verdade, o homem do boné bom esteve cá mesmo, ele pôs-me
de mansinho no chão, olhe, assim. Porque é que não chamaste a Sara, a
mãe, meu amor?, Não queria que fizessem mal ao homem do boné, pai.
Anime-se, Maria do Carmo, a sua filha Maria Elisa não tem medo dos
homens no escuro, nem tudo se herda, Eu já desisti da educação dessa
criança, António.

Proibiu certos espaços, os mais largos lacustres. Mas a planura não, a


boleta não, as leves cascas de árvores boiadeiras não, o Eça não,

oh sezões, oh Castela
qual alma é sem pustela?

nunca mais vi coisas que não pudesse dar a ver.

Qualquer dia matriculo-me em Letras, assim serodiazinha, agora que a


universidade está em crise e a pátria está em crise. O que eu preciso é
de uma crise que esteja comigo.

É uma da manhã. Para as diversas fatias dos meus pares, a burguesia,


ou adormeceu ou iniciam as hostilidades. A escarpa da Costa do
Castelo desaba queda e muda, escarpa desamparada. O que derramo
intoxica-me. Engulo leite como os bombeiros, mangueirando para
apagar, os Lumes da Mais Maior Proximidade ausentados — Hmémnon,
o transmissor das mnemónicas, morto, O(Todo o)Resto velejando ao
largo, in pavor noctis. Passeio-me como gata em caixa alta, zinco
gélido. O TELEFONE tem estado sensivelmente quedo. O Bem Amado, ou
não tem coroas ou está de borco mais cedo. Ah, este amor de requinta,
aturadamente requentável. Posso pedir uma chamada para Paris para o
Perdido Primo. Posso e faço, que vai levar uma horita magana, vê-se
que já lhe estou falando, in pecto.

— Quero Paris, minha senhora.


— Está demorado.

Bem me pareceu:
numa condessinha
segundo se diz
muito pequenina
eu vim de Paris
foi talvez em França
onde eu aprendi
logo de criança
a dizer merci

Oh, qu’elle est mignogne, la petite, com dois anos, que amor. Maria do
Carmo, nunca mais me ponha a pequena a fazer essa figura
completamente parva diante das peruas das suas tias.

Ah, mas batem à porta outra vez. A


uma hora destas ou uma é
reminiscência ou é uma
reminiscência. Que o Amigo não
bate assim.
Que noite, que malo rato.

E era, oh se era. Pode-se introduzir assim, nesta

Numa colina cuja côncava barriga reapalavrou


a história chorona de um vala irmã
puseram-se os meus espíritos a ouvir a duas vozes
e deitou-me muito abaixo o desgraçado relato:7

MONÓLOGO DA MOFINA

Ai Zizinha, desculpe vir a esta hora, sem avisar nem nada, mas estou
aqui numa grande aflição e ainda tenho que ver se faço hoje algum, nem
sei como que eles não me deixam entrar no Salero, Isto é um potezinho
de azeite e uma chouriça que eu fui hoje ver o meu menino e a minha
mãezinha tinha trazido assim uns primores lá da terra, deixe que eu
ponho na cozinha que ele vem a largar um bocadinho, mas não é do pote
que eu esse trouxe-o ao alto dentro do saco, Isto é uma maravilhazinha
de um azeite, não é para o gabar, bem sei que a Zizinha pouco come em
casa, mas para uma gracinha, um bacalhauzinho assado, Pois é o
seguinte, ai nem merece a pena sentar-me que inda tenho que ir se
calhar sujeitar-me ao enxovalho da Gomes Freire onde andam aquelas
galdérias que nem têm poiso certo, que noutro dia deixaram lá uma
cheiinha de sangue e com a carteira toda esfrangalhada, Foi, foi foi
depois daquela questão com o Olímpio, ah pois foi, foi já depois da
Zizinha ter saído naquele estado que eu até disse para o Lúcio, Vocês
nem a deviam trazer para um sítio destes, uma menina nova, tão fina,
Note que eu sei muito bem distinguir, tive princípios e ainda hoje, gosto
de fazer o meu trabalho bem feito, mas lá porcarias é que não, só o
natural, E então, foi por causa de umas cervejas, que eu até pouco bebi,
Levantei-me para dançar com um rapaz que até é cliente da casa, já
tinha as coisinhas encaminhadas na mesa, Quando voltei, tinham saído à
má fila, aqueles cevados, armou-se para lá um burburinho, o Olímpio
teimava que a despesa corria por mim, inda era uma porção de garrafas,
mais aquela cadela da Lucinda, Ó Sirena, eu bem vi que foste tu que
pediste prà mesa, Ó sua grandessíssima cabra, disse-lhe eu, dadonde é
que você me conhece, o meu nome é Carminha, ouviu, Que eu à Lucinda
nunca lhe dei confiança, sabe, ora não sabe, aquela que andava com a
racha na saia até ao meio da perna que aquilo já nem se usa, sim, que se
põe com liberdades, a perna aberta por debaixo das mesas, ali à vista
de todos, que diz que ela no Cais Sodré já não fazia nada, já a tiravam
pela pinta, até queixa de carteirista, sim que eu, a Zizinha sabe, tenho lá
a minha fichazinha em ordem, mas lá cadastro, E então saltou o Idílio,
aquele da Trafaria, por mim, foram mesas, cadeiras, uma data de copos,
olhe, até polícia meteu, que eles vêm logo mal lhes cheira, a esquadra é
logo ali, Com queixa e tudo, pois, uma vergonha e agora o Olímpio
cortou-me a entrada e é por isso que eu venho cá à Zizinha, para ver se
me podia adiantar uma notazinha que vence amanhã a renda do quarto e
então é que eu estava aviada, com a má vontade com que ela já me anda
e as despesas do menino sempre a mais e se por acaso tenho que fazer
outro desmancho que eu ando com umas faltazinhas, ai Deus Nosso
Senhor lho acrescente, que eu sou crente, atenho-me muito à virgem,
trago aqui esta medalhinha, quer ver?, Ai ó Zizinha posso ir ali dentro
fazer um chichizinho, que eu venho lavadinha por baixo, tomei inda hoje
banho de banheira,

Mas esta gente está toda diurética.


Contágio da escrita não deve ser,
que eu mijo a lápis. Não choram, é
o que é,

Ai, Zizinha, a Zizinha conhece uma tal Fátima que parece que anda
agora aí muito na berra, não, credo, Zizinha, parece que é uma pequena
da alta, aquilo começa a tarde no Procópio e sempre acompanhada, tem
muitas amigas bichas, diz que aquilo é um primor de bem arreada, É
que foi lá ao Salero um rapaz, parece que ele é fotógrafo, que a ouviu
falar muito da sua mana e de si, pelos nomes, pois, conhece-les as
voltas da vida todas, até do mau fim do seu paizinho, até coisas que eu
nem sabia, que sabe que o Afonsozinho foi sempre muito bom para
mim, tem-me valido muito, mas lá certas conversas não tem e é o bem
que ele faz, A Zizinha desculpe, vê-se logo que tem outros princípios,
não quer saber disto para nada, mas olhe que é alguém que tem fio lá
para casa da sua mana, por onde o ata não sei, Que ela anda na vida
tanto como eu isso lhe garanto, são outras esferas, pois, tivesse eu
menos anos, Bem, vou-me à vida, assim vou mais descansada, que eu
com os nervos parece que tenho cheiro, é um castigo, assim amanhã
sempre vou a uma matinezinha, não me leve a mal que eu a si sou-lhe
franca, coitadinha, assim sozinha, sem beber, sem nada, gosto muito
daquele, o Bronson, que ele já está um bocado velhadas mas eu
também, Credo, já viu tão escura que se pôs a noite.
Digo eu, depois de cair o pano da porta, Tio Guilherme (The Shakes),
Como é que se pode traduzir uma coisa destas intraiçoeiramente?
Deve? Pergunta ao teu primo dado que o

TELEFONE

toca:

António, você acha bem que a


pequena com onze anos ande por aí
dias e noites por sótãos e matas
com o João que tem vinte, acha
normal?, nunca devíamos ter
convidado o pequeno para férias,
você sabe o que corria acerca da
mãe, a educação estrangeira, Maria
do Carmo, você queria que fosse eu
a ensinar à sua filha Maria Elisa o
que você nunca quis aprender
comigo?

MENINA DE LÁ — Ne quittez pas, madame.


PRIMA — É o quitas. Boa-noite Phalus.
PRIMO — Boa-noite prima. Vera.
PRIMA — Olhe, ó de Alfarrobeira, o meu gato morreu as vidas seis
dele.
PRIMO — Não sabia que tinhas isso em casa.
PRIMA — Não tenho em casa, tenho em Causa.
PRIMO — By the way, eu não me chamo Alfarrobeira, sweet cousin.
PRIMA — York House or the House of York, Jeannot, estou à rasca,
passa-me tudo por casa.
PRIMO — Muda-te. Acende uma velinha.
PRIMA — A quem?
PRIMO — A ti.
PRIMA — Eu bem sabia que não se devem pedir porcos às pérolas.
PRIMO — Quem começou a parolar foste tu, hermana.
PRIMA — Ouve lá, tu acreditas no Amor Único?
PRIMO — Se for intermitente, mente. Senão, também.
PRIMA — E tu a dares-lhe pela borda.
PRIMO — E tu a fugires burra branca.
PRIMA — Mas tu és um caso de família. Tiraste-mos com uma palhinha
do presépio.
PRIMO — Mas ando à bastardia, coño.
PRIMA — Na traquinagem, coño.
PRIMO — Não me venhas com a teoria dissoluta da dissolução, julgas
que o Tejo é só de água? Cepos, guindastes, cimento e granitos-
farelos.
PRIMA — Primo, tu és demasiado vistoso para as minhas penas, Eu
gosto é de golfinhos.
PRIMO — Telefona para a Acrópole, ou para o Vasco da Gama.
PRIMA — O Aquário? Ó Capricórnio.
PRIMO — Elisa.
PRIMA — Jawohl, mein Prinz.
PRIMO — Ensinei-te tudo o que sabia.
PRIMA — Então também a ti, glorioso mistério, perdão, perdão, perdão.
PRIMO — Sucker.
PRIMA — By the way, little lord Miller, como é que se escreve bem de
uma puta?
PRIMO — Lê-me. Fode-se com respeito.
PRIMA — Bem sei, Sublime. Mas esta é uma puta como as outras,
costureira.
PRIMO — Navega, hermana, ele há ventos e ele há ventos.
PRIMA — E quem é que conta os traques?
PRIMO — Elisa. Afinfa-lhe dois copos e vai-te deitar.
PRIMA — Jawohl. Doktor Schweitzer.
PRIMO — Foste tu quem te vacinaste disto, Elisa.
PRIMA — My name is Elisão. Quando voltas, quase-tio?
PRIMO — Breve, um ano ou dez. Look after poor Mary.
PRIMA — Eu não sou a prima mais velha da minha irmã mais velha.
PRIMO — Elisa, eu não posso ser a tua amiga mais íntima.
PRIMA — João, então tu nunca podes ser íntimo de nadie.
PRIMO — C’est la fin de la singerie, hermana, queres que eu me cape?
PRIMA — On the contrary, descapes. Mas isto já não é amor nenhum.
Até logo, Arlequim teso.
PRIMO — Até já, Columbina Bordallo Pinheiro.
PRIMA — Fare thee well, sweet shadow.

Desligamento,

E agora dormir. Com sorte, sonhar:

Se não tiveres medo das tuas sombras elas vêm-te comer à mão. Comer
o quê, Mestre? Dá-lhes um pouco da carne dos teus ossos, acabam por
se comer umas às outras. Não virão mais, Mestre?, Sempre, sempre
mais, de todalas tuas parte mundanais, ao fim de uns anos são como
anhos do teu aprisco. E isso mata, Mestre? a longo prazo, tudo mata,
pastora.

1 Constituciones p ara las Carmelitas Dezcalzas. Santa Teresa de Ávila.


2 Before the flowers of Friendship Faded. Friendship Faded. IX. Gertrud Stein. Tradução: olhem p ara mim que aqui
estou. E não é p rep aração nenhuma. Nunca o resp iram eles sem tomar alento. E às vezes esp eram daqui a nada. Sem
quebranto disto. M inha sina é que é sentar-me e ser p ensada de través com muito cuidado. Seja que se diz deixem-me
em p az. Vocês é que p ensam e navegam. Seja como seja que os barulhos vos tenham. No refrão que revém é que eles
cantam. Pode que seja assim. (Relativamente literal. — N. do T.)
3 Tradução: Que imp orta — ao fim — senão a qualidade da afeição que traçou sulco na mente dove sta memoria.
4 M icrop aisagem.
5 Conquista de Lisboa aos M ouros (1147). Narrações p elos Cruzados Osberno e Arnulfo, testemunhas p resenciais do
cerco. Texto latino e sua tradução p ara p ortuguês p elo Dr. José Augusto de Oliveira, comp lemento ao volume II da
LISBOA ANTIGA de Júlio de Castilho.
6 Eulisa. ELISABONN, texto em p rep aração.
7 From of a hill whose concave womb re-worded
A p lainful story from a sistering vale,
M y sp irits to attend this double voice accorded,
And down I laid to list sad-turn’d tale.
Shakesp eare. A LOVER’S COM PLAINT
II
CASA DE ELVIRA
LACRIMOSA
Caminhas um pouco atrás do teu homem por aqueles degraus baixos
acima. É muito desolado este casario de Santa Apolónia, noite já caída.
À direita há o rio e monturos de ferrugem. Na boca do meio estão todas
aquelas fieiras de carros quedos. À esquerda os eléctricos baralham-se,
os prédios são velhos e altos, pendem deles colchas desfiadas, roupa
humilde gasta. Não há sentidos unívocos — os carros roncam à direita
rumo a um braço de cidade ainda mais perdido, resíduos de aviões,
carcaças de navio ferroso, erva rala onde as gaivotas debicam, piam
antes de bátegas negras, até alguns cordeiros sem pastor, sem redil —
um espaço à bica do tresmalhado, ferruginoso, residual, as grandes
bolas de metal onde se guarda gás, dizem, pousadas sem figura humana
de vigia. Já viste uma vez. É ali onde se espairece o medonho da
cidade. Santa Apolónia dá de costas a isso. Têm brechas finas, os três
pisos de degrau. Os táxis fazem bicha uns atrás dos outros, passas
rasando a dianteira móvel de um, o chofer deita a cabeça de fora e diz-
te, Ó Santinha. Trazes os sapatos de salto grosso que te deu a Lídia,
ontem, tanto peso embaralha-te as pernas. A Lídia não vai com a gente à
estação?, Diz que hoje não pode, têm lá visitas, vem cá ter só depois,
Carago, têm sempre visitas, ela vai mas é para a moina que eles
deixam-na sair todas as noites, Pode que não, têm lá visitas. O homem
do táxi recolhe a cabeça para dentro, a mão dextra ao alto sobre o
volante, o cotovelo à janela, de camurcina de trabalho, encolhe os
ombros, abana a cabeça do teu esgueirares-te resvés, trôpega das
chancas à moda, as tuas primeiras. Viu o teu homem que se virou do
dito dele para ti, arrastado, Ó santinha de Deus. Nem deu tempo de se
desfardar em casa, o teu homem, vem com as solas cheias de lama até
ao cocuruto da bota, não deu tempo de nada, estavas a ver que ele não
vinha a horas do comboio, vem de mau modo, mal comido, meia bucha
com restos de peixe assado, um quarto de três engolido numa pressa,
tua a lidares para a ceia, Deixa isso que ele já há-de vir tratado. O gajo
disse-te alguma coisa?, diz ele fero, os olhos a chispar para o taxista.
Não respondes, não há de quê, segue-lo de mais perto para dentro
daquelas altas casas movidas, bulhentas, há muito pessoal para os
bilhetes, vês os cestos atados com guitas de onde espirra aperreada uma
asa de tacho de esmalte, os malões de cartão e trave de pinho onde se
assentam criancinhas de gorro de lã com um pompom sebento e um
pouco ranhosas que a mãe vem assoar com a rapidez desabrida de quem
vai de viagem. Magalas arrastam os pés com a boina entalada à
ombreira e as ventas enrubescidas de lhe terem carregado no tintol para
ir aconchegados. Agora vais cerce ao teu homem que te pega pela mão.
A mão vai rija, cepa, não é o ninho de láparos quentes daqueles
passeios contigo pançuda pelo Jardim Zoológico, às últimas réstias de
sol à Estrela, antes de o menino nascer, na folga, aos Domingos. Ó
senhor António, leve-a à matinezinha do Condes, sempre desemburra,
agora ao Jardim da Estrela como os saloios e os pretos, credo. Está
calor. Tiras o casaquinho de malha e dobras no braço ao de cima da
pega da carteira de verniz plástico que te deu a Fátima, ainda boa. Há
silvos, bafos cavos, apitos, o comboio que se vai deita um ventar de
velha mula a aninhar-se brutamente os quartos suados em chão de
palheiro. Os miúdos vão ajoujados com um carro de bombeiros de
plástico, arrastados pelo punho da manga, um cornetim de latão fincado
nos deditos gordos, a trocar os pés, a berrar. Lá pelo cimo altíssimo
vem uma luz que dá sono a tudo aquilo, à gente parada ao pé dos
estendais de revistas, os jornais da noite, aquilo arrepia-te mais o
coração, tanta desvairada gente mexida, os grandes relógios parados
junto a cada focinho de comboio, ou retaguarda, sabes lá, ou onde eles
hão-de vir a estar, as buracas estendidas cheias de cascalho por onde se
estiram até perder de vista os carris, as traves abauladas das madeiras
como dentes espaçados. Se calhar vem atrasado, Ná, vem à tabela, a
gente é que chegámos cedo, assentamo-nos ali naquele banco. Um
revisor de bandeirola no sovaco sai de uma porta vidrada a rilhar um
pastel de bacalhau, a boca tem dentro bocados de branco mole, um
chispar de ouro, um dente. Olha ali pode-se comer, Que estás tu a moer-
te, rapariga, o teu pai vem comido e ainda lá há sobras do jantar,
aqueces-le a sopa, Diz que ele agora come pocachinho, tu é que ficaste
mal, com a pressa, afinal era escusado, Deixa lá, a gente não podia
adivinhar que apanhava logo os dois eléctricos de seguida, isto hoje foi
um dia estuporado, já não se endireita, Não dês agoiro, homem, Ai não,
até a lâmpada do quarto se foi abaixo, Também não é grande a despesa,
ontem não estavas assim chateado, também é só uns diazinhos, a gente
leva-lo lá ao Hospital da Estrela,

MONÓLOGO DO SOLDADO QUANDO CÃO

Não é isso mulher, também mos fechastes à minha mãe, estou mas é aqui
derreado, hoje estive três horas metido na carrinha com os cabritos dos
estudantes a berrar à volta, ele era curtas e compridas e um até acertou
no tejadilho com uma pedrada que parecia que era no dentro dos ossos
da cabeça e depois o nosso tenente inda deu ordens para a gente
avançar e chateei-me de agora a malta ir malhar num estendal de putos
todos a pirarem-se por aquela erva afora e mais os matorrais à volta,
com os cães que pareciam danados, um até abocanhou uma cachopa na
cara, uma raparigaça, o que lhe valeu foi os cabelos senão levava-lhe
metade, a empeçarem uns nos outros e os mais afoitos a fazerem-se à
gente, a açularem de longe, rais parta, que o nosso comandante já nos
tinha avisado que a manutenção da ordem mais isto mais aquilo, porra,
malfeitores e passadores da raia inda vá que não vá, que eu não gosto
de andar a meter chumbo em ninguém, fiz muita patrulha debaixo da
neve do posto aos cabeços da serra, alembras-te?, mas parece que os
gajos o que não querem é ir para a guerra, também eu não, olha que
porra, prometem uma catrefa de coisas à gente, que a guarda isto, que a
guarda aquilo, que dão escola, que dão cantina, que a vida de posto
sempre é mais certa do que andar a semear uma para arrecadar quatro
com a enxada nas unhas, que escusa um gajo de ir malhar com os
costados à França, e vai-se a ver é uma miséria dum vencimento e
agora para andar a cobrir os camaradas a atiçar os cães às canelas dos
ganapos, São assim cachopos?, Ganapos como o teu irmão Abílio,
mulher, que alguns parecem mais, aquilo andam cabelentos e barbudos
a mais não, mas lá estudos têm, prova é que chega a Mafra vão logo de
graduados, quando não amandam com eles para Penamacor de raso,
depois a gente desabafar com os camaradas tá quieto, que a mor parte é
uma cambada de bufos, sempre a meter no cu do nosso primeiro, que
ele já esteve no Ultramar, parece que ganhou lá umas boas postas e olha
que aquilo não foi só da comissão, e diz que pretos e estudantes é tudo
a mesma choldra, que é gado para abater, só querem é mândria, mas eu
não me conformo, carago, farto-me de moer o juízo e o corpo a ver se
me aceitam para o curso de sargentos, eles rezam-me que a ordem é
assim, que a ordem é assado, nunca faltei a uma formatura, nem no dia
em que tu pariste o menino, ele é engolir febres, ele é aceitar trocas de
folgas com camaradas, tenho uma folha que se pode lamber, o nosso
comandante sempre a regougar que vou longe, nunca ninguém me
apanhou verdete num botão, nunca faltei à verdade, mas rais parta a
vida que quanto mais abro os olhos mais nojo me dá, que ele há oficiais
e tudo que dizem que isto tem que levar uma volta, ó se tem, eu moita,
Uma volta, homem? Pois rapariga, eu tenho que ver se te puxo, agora
em aprendendo a ler vais ver, que tu és acanhada mas tens boa cabeça,
isto não há-de haver sempre uns a comer e outros a ser comidos, quem
não pode arreia, carago, Eles são filhos de ricos? Quem? Os
estudantes? Muitos são, mas eu seja ceguinho se não hei-de lá pôr o
nosso, nem que eu tenha de engolir cobras ouviste, a ti que não te falte,
mas eu, nem que tenha que lamber o cuspo das calçadas se o menino
não há-de abrir os olhos e ter uma enxada de prata para fender a noz do
mundo, raios, não há nada pior que um homem não saber ao que anda,
de chapéu na mão a pedir um encosto, a carregar na família se cai de
borco, a limpar a merda dos que nem se agacham para a cagar, a abrir
os carreiros por onde malham os cabrões que a sabem toda sem trilhar
um pintelho do cu,
Jesus, homem, que nunca te ouvi esses modos desbocados, Ah cachopa,
se não fora o bem que te quero e ao menino, não te benzas aqui que não
é nenhuma igreja, Ó homem, e logo hoje que vem aí o meu pai nesta
desgraça, Olha que também há-de ser por isso, uma viga dum homem
que lidou toda a vida, que era dele agora se não fôramos a gente, olha a
tua irmã Lídia, se mexe a cornadura de um dedo para o receber, Está lá
com os patrões, António, E atão, deitar vinho em copos finos e pintar as
unhas alguma vez foi trabalho, mulher?, Cuida dos meninos, António,
Ora, a última vez que lá fui buscar-te estava a velha a dar-lhes o comer,
Estaria a abrir as camas, foi pela noitinha, Hás-de ver a cama que ela
se está a fazer, hás-de.

Não dizes nada, o coração tolhido como um fel de coelho, um garrote


por debaixo dos queixos, uma tenaz fria debaixo dos peitos, na boca do
corpo. Ele está ali sentado à tua beira, aqueles dizeres roucos e baixos
acertam com o falajar de toda aquela gente vestida como tu, um
atamancado decente, tua gente que vai e que vem puxando por grandes
sacos onde desenham lombos equiláteros os cortes de fazenda, as latas
de bolacha, os tubos de laca barata, os pacotes de açúcar, puxando os
filhos com uma mão já esgotada de atilhos de embrulhos, de farnéis em
chitas, os dedos embrutecidos, a cara de galinhas com estranhos na
cerca ou raposa à ronda. Passa um casal que não é tanto assim que tu
ficas a vê-los ir, o teu homem tirou o boné rijo que lhe marca a testa
como uma cicatriz nova virada para o dentro da carne, resfolga à tua
beira, encosta a cabeça nas mãos onde as unhas estão negras, tens que
lhas cortar, ao menino inda é com os dentes enquanto ela to segura ao
colo sem jeito, as grandes mamas sobre a coxa curta um empecilho,
vem do teu homem um cheiro a latrina, a sopa de massa grossa do
almoço levado à casa da guarda, a suor requentado no cotim, debaixo
dos braços, nas virilhas. Dá-te uma grande quebreira enquanto olhas
aquela mulher que parece estrangeira, os cabelos finos e lisos a bordar
a cara de senhora de andor, de loiça, como um véu de oiro penteado,
tem uma caixa de coiro branco na mão além da carteira grande, Isso que
é que tu estás a passar a pano Lídia? É o nécéssaire da senhora, bronca.
E pra que serve? Para levar de viagem os precisos de toilette, é mesmo
bronca, Ah. Esta vai com um homem com ela que tem uma gravata com
espadinhas mínimas e um colete assertoado que parece feltro, uma mala
na mão lisinha como um caixãozinho liso, toda estreita e onde os fechos
luzem como se foram prata, e atrás vem uma carrocinha de ferro puxada
às avessas por um homem que vem curvado como um boi que os baixa
para empuxar o arado de mais fundo, uma pala sobre os olhos, um
carrego de malas todas acertadas, todas pretas e brancas, São gente
rica, suspiras distraída do fundo da tua paixão, os olhos um pouco
repesos, a canseira e a pena a dar em pasmo, encostas-te ao teu homem
que agora parece chochilar, pobrinho de canseira, rala-te o mal comido,
aquela mão vermelha que está ao alcance do fervor da tua boca sobre o
ombro, a mão que diz numa outra rouqueira no lumiar brando do quarto
fechadas as portadas, a porta, as duas botas concertadas malhando à
pequena luz que vem das frinchas, as polainas abertas em cima de folha
de jornal, os botões luzentes vestidos nas costas da cadeira, que ele diz,
subindo pela fímbria da combinação de seda que te deu a Lídia, que era
da senhora, tão linda, que te dá com a trança tombada e o rebolo da
anca recuperado, a mão que diz, pelo dentro da coxa, a outra aferrada a
um dos teus peitos, chupado o outro do leite que sobra, diz, Ai filha, dá-
me cá o teu passarinho, dá-me cá, tu calada a ver se não gemes o gozo
de rijo, para ninguém saber.
Como vai ser agora, como vai ser. Vem aí o comboio, vem aí o teu pai,

u noço pae esta sempre enpeorar e


diz o dotor veiga que avia de ser
milhor que ele sativera a voceses ai
em Lisboa que ele ja faz en dois
anus que anda nesta desgrasa e
ajente com a noça vida tambem que
não le pudemos valer que o Manel
anda à do ervedal e com o Abílio
para a França e tu que sabes da
minha lida pur fora que ele agora ja
faz as necessidades e que não le
poço acudir e darle o comer que aí
tem outros tratamentus e sempre és
mais a Lídia puriço ele pudia ir
com a Gina que u leva que ele inda
andar anda e tu dizeme que te
parese mais ó António que isto é
uma grande ralasão que nu ospital
que não nu aseitam que diz que,

Vem aí o teu pai, põe o talher na mesa, Elvira, Ó Abílio, vai-me ali à da
D. Eulália buscar um pezinho de hortelã que a nossa anda esmorecida,
Ó Cidália, atiça-me o lume, alma do diabo, que as batatas não cozem,
fechaste a travança dos coelhos, Elvira?, Vem aí o vosso pai, toca a
lidar, alminhas de Deus, fizeste os trabalhos, Abílio?, Vem aí o vosso
pai,

tocavam-se as trombetas dos anjos do céu, baliam os anhos novos e as


ovelhas a recato, ajeitavas as pontas manhosas do lenço, punhas cuspo
na dobra do dentro da bainha da saia e esfregavas o sangue seco do
joelho esmurrado, os cães ganiam e ladravam com os rabos a zurzir no
ar, o teu irmão arrecadava às pressas a lousa e os lápis de cor e ia
pendurar no prego, por cima do oleado do forro na porta, a pasta de
cartão com a sua lomba de castanho novo e as tiras que lhe dera a
mestra, a madrinha, a Lídia passava os dedos no sobrolho espesso dos
olhos, a tua mãe tinha um dobre de riso nas falas ríspidas, ajeitava o
avental, levava as mãos às gavinhas do cabelo solto, aos lóbulos da
orelha onde luziam os brincos novos de pedrinha azul, vinha aí o teu
pai, tremia a terra da orla do cabeço até os pés dele rilharem o saibro e
as ervas do vosso carreiro aberto e batido por aquelas mãos toiras,
afagadeiras,

não segura nada nelas, trémulas, o homem que o trouxe de carrego dos
degraus abaixo em meio aqueles urros e bafos da máquina e repelões de
gente, por pouco não davas com eles, diz, Poça, isto é que ele pesa, ó
compadre já tem aqui a sua gente. A Gina diz, Ai Vira, isto é que foi um
calvário, e baixa a voz, Até borradinho ele vem, que eu não no pude
lavar. As mão estão de borco no ar uma ao lado da outra, um mexer de
fim de ave degolada, saliva um pouco borbulhosamente dos cantos da
boca. Não andou ainda.

O teu homem trava-lhe do braço para o ater dos safanões, de cestas, de


malas um pouco esventradas, de quem mais desce, um homem de
chapéu e colete de relógio aperreado, com um menino de bochecha
deslassada e rubro a dormir-lhe no ombro, que diz, Vamos a desviar,
pessoal, isto aqui não é missa do galo. O teu homem sustenta-lhe o
braço como se o aferrara contra o peito, Ande lá, meu pai, ele vai com
um passo muito miúdo, arrastando ora um ora outro em travessinhas
curtas, sempre a eito como se em cima de dois cepos, tu segura-lo do
outro lado, o cheiro a fezes pastosas, de febre, sobe-lhe do fundo da
braguilha onde dois botões estão trocados de casa deixando ver uma
nesga da ceroula enxovalhada, ele tem um estacar miúdo entre cada
passinha, em que só o tronco é ainda firme, grosso achegado ao braço
que susténs com as mãos ambas, não tem vindo com os olhos postos em
nada, vira-te um pouco a cabeça no teu sentido e diz, E tu quem és, ó
marmanja?

Ó DA BARCA

Lá vais no encosto esventrado do táxi de onde saem borbotas de


espuma de nylon como as das chinelas da Fátima que ela deitou para o
lixo ainda ontem. A maleta do velho e o cesto com os ovos e os peros e
a galinha viva que a tua irmã te mandou e que vem com o bico aberto a
revirar os olhos, lá vão atrás na mala que não fecha e vai bamba a cada
solavanco e são muitos. O cheiro do velho empesta, vai amodorrado,
abre os olhos para dizer, Ei carago, nha mãe, isto é que eles arrebentam
todos, torna a fechá-los.
O homem do táxi, um carro velho esmurrado, disse para o teu, que
agora vai teso ao lado dele, Ó sargento, bote-le um trapo por debaixo
do assento, que os ferros esbarrondados mais o fedor, parece que levo
os fregueses na carrinha da morgue, o velhote está aleijado ou vem
grosso?, bem isto é como tudo, eu como levo os sãos levo os coxos, os
borrachos e até alguma puta tresmalhada, que aqui a nossa farda não se
ofende, ó meu primeiro, a sua senhora com aquela cara de sete de
espadas ao peito nem ouve, nem vê, isto é do sangue?, olhe, noutro dia
levei eu um assim ao instituto do cancro, parece que quiseram poupar
na maca, chegou que parecia um santinho de cera, foi só pôr os pés ao
alto e atar com guita, isto sem agouro, que ali o velhote há-de ser teso,
lá restos de arcabouço tem ele, ó cabrão, comes mas é na tua, arreda
mas é para lá o rodízio dos chavelhos, qual quê, seu guarda, eu nem sei
andar com estas lesmas, isto está bem ensinado, às vezes dou-lhe cada
guinada que o gajo até se encolhe para não bater nas esquinas,

Pica-me nos bois, ó Abílio,

Tá a ver como até o velho se anima?, isto é navegação do alto, há anos


que ando nisto, conheço as pedrinhas da calçada com pés de borracha,
ó meu primeiro não se acagace, olhe que lá os seus camaradas nas
viaturas fazem-nas bem pior e sem unhas para o trânsito, vão aos postes
que nem boi magro à vaca, sem ajudas, isto é preciso é pinha fresca e
tomateira à mão, ó nosso guarda, inda outro dia, ali para os lados do
Limoeiro, salta-me para dentro um gajo todo afiambrado que me
mandou seguir para o Alto de São João, isto noite alta, aí pelas quatro
da matina, chega que não chega, eu a dar ao tramelo como o costume,
que é para não ouvir as tripas da traquitana a ranger, o gajo moita, até
que me chega ali a Campo de Ourique, naquele jardim onde está a
Maria da Fonte maneta e diz-me para eu lhe passar o envelope, isto o
frio da ponta da naifa apontado aqui ao cachaço, o meco deve ter visto
que não valia a pena ir a fiéis defuntos, que eu tinha afinfado a buzina a
um desses bananas de caixinhas de fósforos e pneu mamalhudo e trago-
a chilra que nem tosse de grilo, Cheguei-lhe uma guinada aqui ao
volante e olhe, foi com essa chave de cabeça marota que o sô guarda
tem aí aos pés, esbarrondei a ponta do focinho à máquina, foi-se-me um
farolim prò galheiro, mas olhe que a fachada do gajo não ficou melhor,
só dentes apanhei-lhe eu dois no capacho ao outro dia, que dei à miúda
para fazer jantarinhos de tutano, o gajo fez cagarim fez mas foi a berrar
pelo cento e quinze, chega-te para lá cabeça de boga, isto é cabedal
com muito mundo, fossei que me fartei para sacar o alvará, foram
muitas sopas de cavalo cansado e arroz de peixe, catorze horas por dia
amarrado aqui à roda, porra, mas ó seu guarda, o raio do velho fede
mesmo, não há ventos que lhe desfaçam, isto é pior que bater para
Algés na maré baixa com um carrego de penicos,

Fede a tua tia,

Tá a ver, ó compadre, que o velho arrebita, homem que se esquente a


morte não ferra o dente, o velhote sentiu-se, se a gente o pica dá sinal
de seu, aquilo é que é cepa da boa, o meu velho morreu de pé de um
coice de uma mula e antes de cair ainda lhe fez um lenho na garupa com
a gadanha que a gaja por pouco não baqueou também, pois o danado do
velho veio-me uma vez aí, o gajo era embarcadiço, meteu-se-me na
geringonça, andou duas bandeiradas e saiu porta fora a berrar que para
o outro mundo ia a pé ou a bruços, e foi, pelo pé da besta, ora cá
estamos, vamos lá sacar a equipagem, ó menina arribe-se que o velhote
arriba, borrou-se, e atão? mais vale velho cagado que novo enganado,
não é assim ó nosso primeiro?, alma até almeida, ó rais me partam, atão
não me caiu um tampão de uma roda, ná, pensei que o tinir fosse
daquele empananço com o eléctrico, com esta chaparia a bailar a gente
nem dá pela lata cair, paciência, vais com a tarracha arreganhada, antes
isso que um enfeite na testa que isto é um mau ofício prà cabeça, ora
essa, seu guarda, e as melhoras do velhote, oxalá me calhe amanhã pela
manhã uma florista com dez molhos de goivos senão ainda julgam que
ando na praça a peidar-me, saudinha, adeus tiozinho, adeus menina.

Tu vens atrás ajoujada com o cesto de repas, redondo, aba de encher


cova da mão, peso de batata nova cheia de si, de sumo, o cheiro do
corte na azeitona grossa, de peros, do bafo das penas da galinha que
coaxa agora como rã velha, mistura-se àquele fardo de vómitos quase
ao colo do teu homem. Sobe degrau a degrau, arquejando, puxado,
empurrado, o teu homem vai vermelho como as ventas de um vitelo
turino, o velho diz, Tarrenego morcego, pra donde me levas?, na luz
sumida da escada, até ao primeiro patamar. Ao avistar do segundo, a
porta abre-se com um jorro de luz cruaça, o néon do hall onde estão as
duas cadeiras de torcidos e o pote chinês com as ramalhadas de
plástico que a Fátima não gosta, Tão pires, mãe, Ó filha mas poupa-se.
Está Lídia, está ela e a Fátima, caras quase pretas à contra luz, ouves o
pigarreio do senhor Hermínio a caminho do quarto, o menino chora lá
dentro e ninguém lhe acode, não podes passar por causa do velho e do
teu homem que vão na frente, arrimados ora a uma ora a outra parede,
elas estão todas a falar muito alto,

— Ai credo, o que me havia de cair em casa,


— Ai o estado em que o homenzinho vem,
— Ai pai, mas vossemecê cheira que tresanda,

E ele parou no degrau, atido mais à parede e a querer sacudir-se do teu


homem, desenganchou o braço do que a Lídia lho ia a segurar, a cara
desviada, e disse, Pra que curral de cabras me chegam vocês,
sacanagem, e tu dizes, Não se amofine, meu pai, e para elas, Ele não
conhece ninguém, e a Lídia diz, Pois sou eu, a sua Lídia, És mas és uma
marafona, arreda curta do dianho, Ai, ó Elvirazinha, credo, eu nem
sabia que ele estava neste estado, ai que cheiro horrível, mas a criatura
fez as suas necessidades na roupa, ai credo, Ó mãe, deixe lá isso agora,
eles que vão lá para o quarto, ó menina Elvira, de facto, que tu Lídia,
não sabias que o teu pai estava neste estado, pois não? Eu não, Fatinha,
Deus me livre, se eu soubera era a primeira a dizer que o deixassem lá
ficar, alguém havia de lhe acudir, a minha irmã Cidália também é uma
ralaça, nem que a gente mandássemos daqui alguma coisa para a ajuda,
agora uma coisa destas, que está tu a chorar, pareces parva rapariga,
atão tu trazes o homenzinho nesse estado para a casa da D. Marieta?, O
homenzinho é o vosso pai, Lídia, traz um alguidar para o lavar que a tua
irmã foi ver do menino, Olha o senhor, olha o lorpa, Calas-te ou pões-te
já daqui para fora, que não fazes cá falta, Ai isso não, senhor António, a
casa é da minha mãe, a Lídia entra cá quando quiser, não se aflija, mãe,
isto é só por uns dias, O meu soalho, o meu rico soalho que ainda hoje
foi todo enceradinho tu choras, abanando com o corpo para cá e para lá
sentada na beira da cama com o menino nos braços, adormecido ainda
aos estremeções de pranto, o beiço esticado, choras com os dentes
entesados para não gritares, se tiveras os braços livres arrepelavas ao
menos os cabelos e
as roupas como se faz por morte de parente chegado, quando se urra
para que as vizinhas ainda ausentes acorram bradando de braços ao
alto, para que os sinos dobrem, para que toda a terra saiba e
estremeçam os santos nos altares e as agulhas geladas nas braçadas de
pinhos e os animais bravios nos seus nichos respondam ao uivo
prolongado dos cães da casa com um grande temor e quietação — caiu
uma criatura de Deus, um homem, um menino, uma donzela, uma mulher
parida, uma velha que fiava e cantava loas ainda todos os invernos,
abri-vos comportas do céu, porque tu não tens a quem bramar e o velho
está sentado na tua cadeira de tampo de nogueira lavrado, os espaldares
de torrins trabalhado ao torno, a tua única cadeira, e parece perdido os
olhos no fundo de um poço e então fala e diz-te,

Senhora mãe, atão vossemecê não me vem lavar o entre pernas?

VÉSPERAS

Ó sacratíssima mão rude, serva dos despejos do mundo, imenso forro


de neves estremecido de primeiríssima cólera, ó habitada de solitárias
coníferas e trémulos bosquedos onde os metais intransmudáveis fulgem
em cada troço de folhagem, vivos na turfa fria, ó estriada do refluxo dos
sangues dissipados, os teus pés foram feixe de ossículos ocultos em
bastas peles podres, envoltas em tiras arrancadas ao sudário dos mortos
a cada grande retirada, humílima, silenciosa na devastação das searas e
do vivo, ó tenaz colo dos teus filhos tenros e escapados num arrimo de
madeira leve, ó mãos onde se esmigam os cristais e se rompeu a
paginação antiquíssima dos dados escritos, ó insurrectíssimo óvulo
pascal do soterrado, ó estrela da ira matutina incrustada num coágulo
roxo, ó robustez primeira sem pano que bebesse as acérrimas lágrimas
do ódio desarmado, as fezes do arrojo temerário, os patíbulos do
longuíssimo ensaio da justiça, ó dona vera de toda a sumptuosidade
perdida, ó terra de ninguém entre o lavradíssimo saber e a magra
ciência, agónica de manhãs que não cantam mais que o só incêndio, ó
rude ventre aguilhoado da impaciência dos povos, mãe e morte dos
príncipes mais extremos, ó ferrada de lobos e guindastes, do bafo de um
deus trino ébrio de mel, longa treva e suco de centeio, ó pobre e bruta
de astúcia desprendida, munificência rota, língua húmida, ó pátria como
casa desolada, igreja de olho de oiro assente sobre o tanto e o nada do
tentar, ó seio macho e ubérrimo donde pende pelos dentes o cordeiro na
sua pequenez e pouca sanha, o cerdo ancho e torvo, a grande ursa
constelada e branca dormente da esperança, o lobo audaz e altaneiro
escasso e oculto dos povos preteridos, ó lugar, ó sítio, ó vastíssima
nave de outros loucos, ó flanco do outro lado lacerado, sestra moia1, ó
ilegítima, dulcíssima e canalha quando é hora,

estendo-te a mão, o passaporte azul marinho e sul, o gemelado povo,

Chegou a hora em que a gente se ergue


e em que fala
aos séculos
à História

ao universo.2

Porque elas falam. São as outras. Tu podes ouvir com muita exactidão o
que elas dizem. Mas tu não podes entender. Palavra por palavra tu
podes escutar. Tu estarás à beira delas como se atrás de uma parede. Se
escutasses a uma porta ouvirias melhor. Porque elas sabem escutar às
portas. Se tu tiveres na mão um livro, como quem atende a outra coisa,
tu podes escutar e entender. Porque elas podem ter livros na mão. Na
tua mão esquerda, qual orbe a elas intangível, tu tens uma cebola com
toda a sua espessura de capas sob capas de carne de água, seu labirinto
de veios olorosos, esfera armilar que outras e sempre mais encerra,
pequena lua axilar que adere aos dedos e semelha o cheiro do corpo
que a dispõe curvado sobre a terra e depois, avolumado o seu nutriente
enigma, a arranca puxando-lhe a verde cabeleira inútil. A cebola existe
à tua mão esquerda na indestrutível resistência da matéria orgânica à
inorgânica, mas ainda na indefectível misteriosa aliança das suas
trocas. À tua mão direita está a faca que vem do sílex lavrado por
pancadas secas, reflectidas e também da domação do fogo. Podes abrir
a cebola com a faca, cumprindo assim antiquíssimos modos de
decifração dos dentros: acharás que o interior das duas calotes
separadas numa só incisão de face a face, sob a palha da primeira capa,
a mais rica de cor, a mais capaz de reflectir a luz, mas seca,
incomestível, acharás estrias muito semelháveis às que singularmente
demarcam a insemelhança da polpa dos teus dedos com qualquer outra.
Mas é preciso aproximar a vista, vesgar. Sofrer a perplexidade de uma
indagação in extremis, próxima até doer. O juízo suspenso face à
proliferação de similitudes, camadas de sentidos, falas. Tu não falas.
Só o teu acto de cindir a cebola, esse ceptro da manipulação da faca, a
contundência laboral, diz:

É noite cerrada, sem a lua que se não vê lá fora. A galinha foi


dessedentada, debicou restos de sopa de agriões com pão demolhado e
sobras de peixe, pudeste dizer a apaziguá-la após a violentação
cuidadosa do teu dedo mindinho, Tem ovo, D. Marieta. O velho estava
lavado, despejaste o alguidar lá fora humildando-te ainda, Deixe, D.
Marieta, aqui até faz bem às couves e escusa de sujar-lhe a pia. O velho
dorme, uma bolha de espuma irisada num dos cantos da boca. O menino
mamou de olhos fechados, cansado de chorar, de lamentar-se dos
cheiros novos de expectativa malevolente à sua volta, de colos
desabridos. O teu homem caiu de borco na cama por abrir, os
suspensórios por cima da camisola interior para lavar amanhã.
Desapertaste-lhe as polainas, tiraste-lhe as botas. debaixo do corpo
inerte de quebreira, pesadíssimo, tapaste-o pouco, que está suado.
Coube-te a recomposição de três gerações e a rotura, a preparação,
pela mão e pelo fogo, dos bolbos, a evisceração dos animais, a fricção
e laceração e juntura dos tecidos consúteis em busca da temperatura
perfeita dos corpos, da sua alvura e plenitude, exercícios de paraíso. Tu
não falas e também o teu ouvido se desocupa no processo de
percepção, transmutação das matérias, a que se te entregam as mãos,

Tu que picas uma cebola para adiantar para amanhã e fendes as vagens
de feijão na longitudinal exacta e te dás ao processo de eviscerar
pequenas carpas de mar, carapaus. Senhor Hermínio há muito que se
deitou para não ver e não ser visto daquilo. D. Marieta disse, Ai credo,
vou-me deitar, Fatinha, estou extenuada com isto tudo, a televisão já
deu o hino e a bandeira, se Deus quiser.
AS MENINAS EXEMPLARES3

Elas falam, Fatinha não saiu hoje, Chegaram os ingleses, filha, estás
incomodadinha, estás?, Lídia não tem horas de entrada:

LÍDIA
que eu tenho aprendido muito
com ela, lá isso, já vai para
três anos que me disseram na
agência, era eu uma lorpa e
tinha sido posta fora por causa
de uma cabra reles, essa sim
que era reles, que vivia ali num
andar comprado com
empréstimo da caixa em Paço
de Arcos, eu quase nem tinha
quarto, cabia lá o divã e as
minhas roupas detrás de um
cortinado no desvão, aquilo a
dar para umas traseiras cheias
de entulho, só se viam homens
ordinários ou pretos, à hora da
comida a tirarem feijão frade e
cachucho de dentro de latas em
cima de caixotes, a pegarem na
garrafa para a janela e a
dizerem, Pscht, ó menina, é
servida?, e todo o dia aquela
cega-rega das máquinas. E
então ela, era só ela mais o
marido e os dois miúdos, mas
eu é que deitava mão a tudo,
que ela saía para o emprego,
muito mal pintada, ainda
estavam a pagar a prestação do
carro, e eu é que dava o comer,

FÁTIMA
O pequeno-almoço?

LÍDIA
Pois, que o almoço comiam na
escola, uma escola que aquilo
era um nojo, vinham-me de lá
os miúdos todos sujos, todos
escalavrados, eu é que fazia
tudo e ó Lídia as-sim, e ó Lídia
assado, a mesa aquilo era a
trouxe-mouxe, nem
guardanapos de pano, era só
papel, que ela dizia que era
para me poupar e meteu
máquina e tudo, mas era mui-to
ordinária, aquilo até metia nojo
à noite, com os rolos me-tidos
no cabelo e as meias enroladas
até ao joelho,

FÁTIMA
Usava meias?

LÍDIA
Usava meias, pois, e uma cinta
já muito deslassada que era
sempre a mesma, eu fartava-me
de ir ao sapateiro pôr meias
solas nos sapatos dele e dela e
ainda por cima sempre com
desconfianças por causa do
marido,

FÁTIMA
Mas tu andavas com ele?

LÍDIA
Não, credo, um nojo dum
homem, sem graça nenhuma,
usava mais brilcream que
cabelo.

FÁTIMA
Ai essa é óptima, tu tens uma
graça a contar as coisas,

LÍDIA
Acho que ele era primeiro
oficial num ministério ou coisa
assim. Bem, o que lá vai, lá
vai, mas foi gente que nunca
puxou por mim, nem pouco nem
muito, as revistas que ela
comprava era a crónica,

FÁTIMA
E o elle, agora há muita gente
que compra,

LÍDIA
Isso, só lá de longe em longe e
era mais o marie claire, e
depois um mau gosto para
arranjar a casa, tudo plásticos e
daqueles móveis estilo rústico,
sabe?

FÁTIMA
Ai ó filha, já te disse para me
tratares por tu, que disparate de
mania, olha, e como é que foste
parar à dela?

LÍDIA
Foi pela agência, eu logo que a
vi gostei dela, mesmo uma
senhora, percebes? Naquela
altura ela usava o cabelo
comprido, apanhado assim num
rolo fofo, sabes como é?, sem
laca nem nada, que ela diz que
estraga o cabelo, agora só usa
às vezes um bocadinho para a
noite, lembro-me tão bem,
recebeu-me na saleta, tinha um
vestido de seda azul escuro,
assim macheado, com pintas
brancas, um chemisier que ela
depois me veio a dar e eu já
nem uso, está-se a desfiar um
bocadinho na manga, mandou-
me sentar de uma maneira que
eu disse logo, Não vale a pena,
minha senhora, parecia que já
estava ensinada. Perguntou-me
se eu já tinha estado no serviço
de fora, eu estava parva com a
casa, o hall cá de baixo com os
azulejos azuis, os amarelos
todos a luzir, a escada de
alcatifa na mesma, tudo cheio
de quadros maiores que eu,
estava um bocado à rasca,

FÁTIMA
Ó filha, estavas acanhada, é
natural, uma pessoa habitua-se,

LÍDIA
Pois, foi assim. Agora o que
me vale é ela, sempre a puxar
por mim, Não diga assim, diga
assado, Lídia, se me vê uma
unha sem aparar, que ele no
serviço só quer verniz branco,
chama-me logo a atenção, ao
fim de cinco dias já me está a
perguntar quando é que volto à
cabeleireira, não quer nem uma
malha nem um pêlo nas pernas,
pergunta-me de namoros, diz-
me sempre para não dizer que
estou a servir, ela é que me
empurrou para me ver livre
daquele rapaz que era marçano
passa a vida a dizer que eu
mereço outra coisa,

FÁTIMA
E mereces, filha, eu estou farta
de to dizer, com um corpo
desses, que tu tens um
bocadinho tendência para
engordar,

LÍDIA
Ai, ela diz-me que não, que
isso já não se usa tanto,

FÁTIMA
Ela disse isso?

LÍDIA
Disse, disse, foi no dia dos
meus anos que ela me deu
aquela cinto de cadeiazinha
dourada e o frasquinho de dior
verdadeiro.

FÁTIMA
Ó Lili, ela não será fufa?

LÍDIA
Credo, antes fosse, não, olha,
escusava de andar naquele
estado feita em bêbeda,
desvairada com aquele borra-
botas, aquela lêndia, aquele
cheira-cus da mãezinha que
nem é homem para a arrancar
às unhas do marido, ali a
mamar o bourbon da casa, a
aparecer aos fins de tarde e a
deixar-se ficar para o jantar, o
marido a gozá-lo e a ela,

FÁTIMA
Mas ele bate-lhe?

LÍDIA
Não, mas ora a enche de tudo
ora a enxovalha, sempre foi
assim, trouxe-lhe de Paris uma
capa do balmain verdadeira,
que ela mostrou-me a caixa,
mais uma grande bola de vidro
preto, parece que é do lanvin,
com uma daquelas borlas de
vaporizar perfume à moda
antiga, parece assim um
puxador de borracha forrado de
fio de seda e com uma grande
franja, parece que há poucos,
chama-se arpège, ela diz que
havia um igual no boudoir da
avó,

FÁTIMA
No quê?

LÍDIA
até chorou, no boudoir, e sabe
o que ele lhe disse, ainda com
ela abraçada, disse-lhe assim,
Mas olhe que não é para pôr
por baixo, que arde,

FÁTIMA
E tem razão, perfumes mesmo
por baixo é que nunca, o gajo
deve ter uma certa classe, já
me falaram dele,

LÍDIA
A Fatinha usa desodorizante
por baixo?

FÁTIMA
Às vezes.

LÍDIA
Ela usa um que lhe trazem da
Suécia, diz que o de cá que faz
cancro, e então a irmã, aquele
grande coirão, disse-lhe que o
que faz cancro é o tabaco
inglês que ele usa, que é o
único vício que tem,

FÁTIMA
Quem, o marido,

LÍDIA
Não, o outro.
FÁTIMA
Olha lá, ela já saiu de lá há
muito tempo?

LÍDIA
Quem, a irmã? foi quase a
seguir à morte da mãe, aí uns
seis meses depois. Ficou
herdada e ala, que ela e o
cunhado é como o cão e o gato,
mas ele com ela encolhe-se.

FÁTIMA
Se calhar são amantes.

LÍDIA
Credo, ela é tarada, mas era lá
capaz de fazer isso à irmã, se
visse como ela às vezes
aparece, toda mal enjorcada,
sem maquillage, sem nada, o
cabelo amarrado atrás mas sem
chique nenhum, outras vezes lá
se arreia e parece daqueles
modelos esquisitos, mas nessa
altura tem pinta, não dá é
confiança, parece que tem um
rei na barriga,

FÁTIMA
Se calhar tem tido.

LÍDIA
Agora, quem ensinou da pílula
à irmã foi ela. Até o estupor da
cozinheira se acagaça, que eu
ela a mim, tenho as costas
quentes da outra, o mal desta é
que foi sempre o ai-jesus do
pai, fazia tudo quanto queria,
parece que ele deixou um
primo pôr-se nela aos doze
anos e que foi ele quem a levou
à clínica,

FÁTIMA
Que gente, eu ao menos,
trabalho com gente educada, lá
bebem, lá fazem as suas
noitadas, mas não são gente
para porcarias dessas em casa,
vais ver, quando fores comigo,
a gente diz que tu és secretária
numa firma, até pode ser que te
arranjem uma colocação, assim
empregada numa boutique, ou
numa loja de discos, eu já
estive,

LÍDIA
Bem, eu isso gostava, mas as
despesas devem ser muitas,
uma pessoa tem que ter casa,
mesa, roupa lavada, eu ali
tenho tudo, tenho pena dela e
ela é boa para mim, ainda
ontem que eu a vi chorar e fui-
lhe buscar uma bandejinha com
chá de jasmim feito num bule
bem escaldado, como ela gosta,
ela virou-se para mim e disse,
Deus queira que sejas feliz,
Lídia, até me tratou por tu e
depois foi buscar uma pochette
de noite que ela tem, do saint-
laurent, ainda quase por estrear
e deu-me, que eu nem sei onde
é que vou usar aquilo,

FÁTIMA
Deixa que inda a hás-de estrear
comigo, eu também não hei-de
ficar aqui muito tempo, tenho
pena de deixar a minha mãe,
mas não posso cá trazer
ninguém a casa, quero ver se
monto um atelier, até podíamos
alugar um apartamento as duas,
já me prometeram emprestar o
capital para o investimento,

LÍDIA
A Fatinha não pensa em casar-
se? Tão chique, olhe que não é
para a gabar, mas se tivesse as
coisas dela não fazia pior
figura, ela tem um pijama de
soie sauvage amarelo que até
lhe ficava melhor a si, que é
morena.

FÁTIMA
Casar-me?, Já, que horror, que
mau gosto,

LÍDIA
Mas nunca esteve apaixonada
assim a sério? Eu o que gostei
mais foi daquele rapaz que era
empregado de escritório,

FÁTIMA
Não, eu acho que só era capaz
de me apaixonar por um assim
como o Kennedy, Ou o Onassis
assim homens que têm tudo,

LÍDIA
Credo, mas o Kennedy
mataram-no e o Onassis é tão
feio,

FÁTIMA
Deixá-lo, são vidas cheias de
tudo.

LÍDIA
Isto já vai do destino de cada
um.

FÁTIMA
Ai filha, já estou como um
amigo meu que trabalha na
publicidade, O destino é como
a guitarra, quem tem unhas
toca, quem não tem é tocado.

LÍDIA
A cabra da irmã diz que o
homem da vida dela é o Orson
Welles,

FÁTIMA
Aquele gordo, do cinema?, a
tipa é tarada, se fosse o
Charles Bronson, ou o Steve
McQueen,

LÍDIA
Eu gosto mais do Alain Delon,

FÁTIMA
Ai esse é tão chupadinho e tem
cara de forreta, eu gosto de
homens de mãos largas,

LÍDIA
Havia de ter conhecido o pai
delas, parece que quanto vinha
quanto ia,

FÁTIMA
Mas elas são ricas,
LÍDIA
Porque a criatura deu cabo dele
a tempo,

FÁTIMA
A mãe delas morreu de
desgosto, se calhar,

LÍDIA
Ná, parece que já se consolava
com o genro há uma porrada,
há uns poucos de anos, mas
isso já são zunzuns que eu oiço
lá em baixo no monte ou do
jardineiro quando ele diz, Filha
de cabra sabe encabrar, que eu
da velha não saco nada,

FÁTIMA
Que gente com que tu estás
metida, ao menos os meus
amigos não ofendem as casas,
olha essa pulseira foi ela que ta
deu?

LÍDIA
Foi, é massa mas parece tal
qual marfim, não parece?, se
não fora o peso, e este fiozinho
de prata também, foi pelo natal,
eu comprei-lhe cerejas
cristalizadas, que ela gosta e
uns legozinhos e um ferrinho de
engomar para os meninos,

FÁTIMA
Para os miúdos?

LÍDIA
Pois para os miúdos.

Pode-se falar assim, Elvira? Tudo isto que é da ordem do já visto


deverá ser dito sob a primazia de ti. Tu que sabes desde o tempo das
maçarocas sanguíneas, reais, desde o tempo dos primorosos vaticínios
de chuvas pela mutação de rumores do vento e concerto de nuvens, pela
maior ou menor claridade do sonido de badalo de ermida para lá de
montes, tu te assentaste sobre o mundo com teu arnês de cebola e teus
sentidos te dizem que ele se não move. Onde te há vida e aparelho para
atentar com minúcia no vagarosíssimo baile das estrelas? E no entanto
move-se, como o rolar dos teus olhos para o dentro da vagem cujas
extremidades decepas, o aguçar do ouvido para o que possa ser estertor
de gosma velha, vagir de alcofa, ronco de má sombra em sonhos de
homem, lá dentro. Mas estas vozes há, só que nem tu nem eu cercando o
talqualmente próximo. Porém se é ele que arrebata para fora da atenção
à vagem, às vísceras do peixe, à indicibilidade exactíssima das penas,
então, que reste tal qual muro entre o rigor e o silenciamento, tão-só da
ordem mecânica do ouvi-lo sem mágoa, sem amor, sem artes, o
vergonhoso e maciço depósito, a canga que se oculta, o desnaturado
naturalíssimo natural, a espessura que esquece e só as grandes actas do
registo judiciário fidelissimamente, ocultas, depõem. Há que facilitar
— O corte transversal do reboco do muro, da vergonha. Tempos houve
em que para saber dançar uma gaivota não carecia demonstrar pulos
grossos, levantar saias. Vamos e não vamos ao minuete, pesada
dançarina de viras, esquecida num halo de cebola e olho de feijão, na
tripa da sarda, da mozartiana toda nossa herança. Tu não és realista, eu
não sou nau de oiro e especiaria. O carrego é de víveres podres e peças
sumptuárias, tecidos legados. Qual tempo mais singrar adversamente?
Passar há que passar pelo mal dos abstrusos (sargaços) e palha dos
taisquais (rolhas disconformes que fumegam.) Cobre, cobre o teu pai,
teu filho, teu irmão dormentes. Carece haver pudor e não esfriar.

DE EXPLICITACIONE
GENTILE

Porque dizes tu, Tu, a criatura que


se lhe disseras o que dizes tu não te
entendera?, dirão-me os que me
dizem tu ao que diz eu. Porque se o
eu que diz tu chegara a tais
excessos de abominação de vós que
falara só — só tu dirias, Deixem-na
estar, pobrinha, não aleija ninguém.
Os que dizem tu ao que diz eu
tremem-se muito do nós — a
suculência sob o rígido, granuloso,
dual invólucro.

Um galho grande incrustado de pequenas unhas de milhafre em cada


irregularidade do lenho repuxa-te o lenço e o cabelo, a terra abre-se-te
debaixo dos pés, gritas e não te ouves, a tua boca está aberta mas muda
e queda e mais e mais e lá fora é a mesma luz coada dos candeeiros e o
estardalhar das camionetas da aurora ainda negra, com o seu carrego de
rabanetes e grelos e couve portuguesa e mulheres tolhidas num xaile
preto, caminho da praça em meio das artérias mores da cidade e ouves,
Nhora mãe, dê-me cá os socos que vou-me ao vivo. Pões o xaile bem
justo pelas costas da combinação, chegas-te à beira do divã onde ele já
está sentado e cochichas-lhe, Esteje quedinho, meu pai, inda é noite
cerrada, Qual nada, vou-me a cortar a água do corgo, diz-te ele de rijo,
a querer firmar-se nos pés. O teu homem ronca mais alto, abranda, volta
a ter o bafo certo, louvado seja Deus que o menino a esta hora nem
abanado acorda. Tu quem és? diz-te o velho agreste, bem fitada no
escuro pelas pintas dos olhos apertados, a querer forçar o
entendimento. Vossemecê está comigo e com o António, sou eu, a
Elvira? És a Elvira? mas a Elvira está para Lisboa, Sou eu, meu pai, a
gente estamos em Lisboa, vossemecê está cá com a gente, Ná, toca a
tocar o vivo, mulher, dá-me cá os socos, já clareia, Esteje quedinho,
meu pai, pela sua rica saúde não me acorde o menino, vossemecê há-
de-se pôr são, veio prà da gente a ver se arriba, faça por dormir, meu
pai, Já dormi, carago, vamos embora lidar, Assome-se aqui à janela,
meu pai, veja a luz que é da rua, o céu está negro, eu arrimo-o, Mas
atão onde é que a gente estamos mulher? Em Lisboa, meu pai, não se
esteja a amofinar, olhe aquilo ali são as calhas dos eléctricos, só lá
pela madrugada é que eles vêm, faça por dormir, meu pai. Elvira, que é
que ele tem? Dorme, homem, não é nada, acordou desestremunhado,
Desestremunhado um raio, um homem tem que ir pelo seu, dá-me as
socas, tu quem és? Sou a Elvira, meu pai, não fale tão rijo que elas
acordam, vossemecê amanhã vai ao hospital com a gente, é noite
cerrada, olhe aqui no relógio, vossemecê sabe ver as horas, meu pai.

Ele olha os ponteiros e os números verdosos na penumbra. Está a fazer


uma grande força para te atender, ele não ouve o que dizes, ouve a tua
aflição. Diz, baixo. Ó nhora mãe, mas atão. Depois cala-se, os olhos
outra vez rasos. O teu homem repegou no sono, ainda diz, entaramelado,
bom, Durma, meu pai, é noite.
Estás ali sentada no escuro à beira dele. Esperas. Os olhos afeitos à luz
escassa vêem o menino bulir de manso um bracinho, o punho cerrado,
levá-lo ao queixo, o dedo à boca. Esperas. Olhas para a cara do teu pai.
Parece agora de novo alerta, a espinha eriçou-se. Vossemecê ouviu o
mocho, nhora mãe? É o apito dos barcos no rio, meu pai, acoste-se
agora. Mas a cara dele é como a dum menino desamparado, a cair, a
cair, os olhos demasiados, Que é que vossemecê tem, meu pai, deu-lhe
alguma dor? Cala-te morcega, vêm aí eles, Eles quem, meu pai?,
sossegue, pela alma da nossa mãe, Tu quem és?
Que grande silêncio. O teu pai respira e há um ralo, cada bafo de ar que
sai dele traz um ai consigo, os braços dois fardos pendidos de cada
lado do corpo, só os olhos espertos ainda, mas já sem terror. Agora é
outra coisa. Sabes que não é dor de corpo como sabes das precisões do
teu menino. Mais grande silêncio. Onde roncam as passagens mais
curtas das camionetas sobre o empedrado, vai passando a noite alta.
Ah, minha rica Elvira, diz o teu pai pela última vez, mas não vai
morrer. A cara dele é a do teu próprio antigo pai que te fita numa
desolação sem nome. Olhas-lhe para a testa. Formam-se ali pequenas
gotas que engrossam pouco, luzem, escorrem. O entendimento do teu pai
está morrendo, entendido por ele. De mansinho te levantas da beira,
abres o boqueirão do baú e puxas do fundo, achada a frescura pelos
dedos, o teu único pano de linho do bragal da tua mãe. Enxugas aquelas
bagas de manso, o teu ânimo está pronto. Não gritarás milagre, não
gritarás nada, para não acordar ninguém nesta cidade. As gotas são de
um vermelho quase negro. Lavarás. Teu pai cai de borco, dorme, viste a
nova dessa estrela cessante. Redeitas-te, dormes pouco. Os astros
amam os insomnes, sanguínea, escuramente.

1 M inha irmã, em russo


2 Vladimir M aiakowski. POEM A PÓSTUM O.
3 Título de um romance p ara meninas da Condessa de Ségur.
II
CASA DE MARY
GÁVEA
No princípio do outono do ano de mil novecentos e cinquenta e quatro,
algures onde a sucessão de vastíssimas colinas e extensos vales não
muito profundos dão a esse território peninsular algo severo o seu nome
de Trás-os-Montes, lá onde o desconhecido ganha a qualidade de
próximo por poder estar detrás da ermidão daquela lomba, iam a passar
por um carreiro quatro crianças, duas meninas citadinas e um casalinho
de lá. Não iam os seus corações contentes na vinda, houvesse embora
parado de cair a morrinha breve que os trazia húmidos. Era tarde.
Esperavam-nos diversificadas calamidades domésticas em respectivos
lares — coça e reprimenda, alguma privação de pequenos gozos.
Haviam visto, na sua já comprida deambulação em busca de quem lhes
alcançara o prometido — cachorro de raposo de meses — pedras
semelhando casas e gente com a mesma granítica implantação no chão
de — casas. Era agora um troço de caminho de ermos totais e parações,
de céus baixos. Iria ainda chover mais, mais denso. Cheirava, os
lombos da terra cor de carneira infusa em charco. As aldeações
visíveis ainda tão ao longe, pareciam de outro lugar. É este um sítio
largo, neste tempo do ano, severamente calado, pois não demonstra
ainda a rutilância da neve que o molda pelos invernos, nem o que se lhe
esperaria, com tal nome, de penhascoso ríspido e despenhadouros de
água. Eram só desmesuradas colinas de ocre escuro, solitárias e tão
velhas carvalhas. Nada há da magnificência sumptuosa das dunas dum
vero deserto, aqui. A sua desabitação é muito humana, sábia, sem a
altivez de montados, serrania brava ou lezíria, espécie mais de grossa
lágrima vagarosa (o ar) em lomba de cara morena, inconvulsa. Está
bem de rosto esta paisagem para o mar costeiro do Atlântico Norte, à
mesma latitude, um esplêndido, solene, só, encobrimento. Se bem que
longe da costa, este troço de terras tem no Outono a mesma
ponderabilidade inerte das faixas de sargaço verde negro abundando
nas praias em manhã brumosa, com uma só criatura sentada num
rochedo gasto, a cabeça coberta sobre um troço de rosto, as saias
negras apertadas nas pernas. É o molhado mas oloroso a salino, de mar
ou de animais retirados, como cabras, lobos, gentes sob peles mal
curtidas, palhas, lãs cardadas grosso. Têm muita espessura, esses ares.
Em Trás-os-Montes, no Outono há essa estase que faz lembrança das
coisas tão caladas — os grandes amores, os jardins desleixados, as
crianças muito sós e sisudas. Há uma paragem dos ares que não é
luminosa, irradiante, digo, nem transparente. É apenas espessamente
translúcida, como todas as luminosidades crepusculares ou muito
matinais dum dia chuvoso sem grande precipitação. É pois mais de uma
blandícia sem qualquer ternura óbvia, essa região da terra, grave.
Talvez que seja assim dos seres humanos que a passam e nela são
imersos e dela comem e dela se dão a comer, parcamente. É uma região
que não espera. É a espera, secreta, cerrada na memória de gestos e
monólitos, outra fala-memória, morredoira.

Mary vai de carro a ser levada rapidamente pela faixa costeira sinuosa,
cuidada, que liga a cidade de Lisboa a essas coisas deliquescentes à
beira da baía de Cascais. Que quietude o ser levada. Tem um vestido de
veludo vermelho negro, um fourreau que só o talhe aguenta, insólita a
matéria e a cor, as mãos vão deslassadas no colo, pôs por primeira vez
os rubis da mãe, morta, afunda-se mais e mais, suspirosa, no não fazer
consentido que é o ir de carro, levada quente, quaisquer as agonias de
antes ou depois de ter ido. Como é que se sente, Mary darling?, José
Oom vai com a mão direita também em quebra lânguida de coxim sobre
o eixo curto das mudanças, guia de afagos lasso no assento baixo, sem
rangências ou verves, Mary põe aí a mão um pouco suada, Ça va, não
devia ter bebido dois whiskies antes de sair, foi um dia péssimo, quase
não almocei, mas sinto-me bem assim um bocado grogue, com você a
guiar, o Frederico é uma estupidez, sempre depressíssima, não sei como
é que não tem desastres todo o tempo, só andava devagar quando
saíamos com a mãe, O Frederico não almoçou consigo?, Que ideia Zé,
sabe lindamente que o Frederico nunca almoça em casa, tem sempre
montes de almoços de trabalho, eu acho óptimo, os pequenos estão no
colégio e a Lídia faz-me imensa companhia enquanto almoço, é
amorosa, só lhe digo que acho que nunca tive uma criada tão espantosa,
Quando é que o Frederico volta?, Deve vir amanhã de avião, não me
diga que está com remorsos de virmos jantar os dois, Pelo amor de
Deus, Mary, a menina sabe que eu a adoro, mas sou amicíssimo do
Frederico e temos vindo sempre em grupo, é um pouco estranho tê-la
assim só para mim, Pois olhe, eu disse ao Frederico que vinha jantar
consigo e ele não se ralou nada,

Acho lindamente, vamos a ver se


esse molusco ao menos amanhã lhe
paga os mariscos, Que maldade
Frederico, sabe lindamente que o
Zé tem imensas dificuldades com o
curso e que a mãe, É, a mãe prefere
pagar-lhe as prestações dos carros
e a suite com ela em Torremolinos
que dar-lhe dinheiro para ir às
meninas aos trinta anos, Porco,
estupor, lá porque o Zé é uma
pessoa pura, Puríssimo, se eu o
deixasse hoje à noite era o meu
anjo da guarda, vá, vá jantar com a
criaturinha, Mary, a cidade tem
poucas visões tão caricatas como
essa, E você, não é caricato com as
suas secretárias? Minha querida, eu
só janto de secretárias para cima,
exclusive, informe-se melhor, Que
estúpido, Frederico.

Acho o seu vestido de veludo um espanto Mary, está linda e esta luz de
velas, a sua pele parece mármore rosa, apetece-lhe lagostins? Ai adoro,

esta claridade exposta, consentida, os sorrisos que lhe enviam de outra


mesa, que péssima ideia um smoking cinza, o Carlos parece um criado
de mesa, mas a Eugénia tem um ar divertido, tão simpático para ela,
Mary, parece-lhe mais gorda, e estes violinos velhos colados ao veludo
espesso, francês, arabescos preto e branco, iluminados por dentro
esventrados de cordas, contendo bonecas de loiça antigas, nuas nos
seus membros articulados e mechas de cabelo morto e a imensa casca
de lagosta em vidro transparente onde estão dispostos os doces, Mary
vai querer da charlotte de morango já aberta mostrando as suas vísceras
de vermelho vivo e natas, suspensos do tecto azul profundo a alcatifa
estão ainda os muito anchos balões de diâmetro irregular, mais vidro e
metal branco, fosco, grumos de luz pianíssima, a mesa é excelente,
perto do vidro rasgado para os urros surdos e cimos de cristas de vagas
invisíveis na treva, mas apoiada ainda pelas costas de espaldar alto
chipendale-cópia, no veludo branco e negro, ah, como vai bem com o
rouge sombre, os veludos de ombro, a emersão do pescoço e
implantação da cabeça em tudo isso, os candelabros em folha de alga
em prata, os lavabos de cristal no seu suporte de garra de grifo onde jaz
uma pequena concha coral vivo, Isto está lindamente bem arranjado,
não conhecia de todo, diz Mary e olha agora o imenso aquário esférico
aos fundos para lá da pequena pista onde se dança e orquestra, ladeado
de duas figuras femininas desnudadas, pudicas, de braços que ondulam
protegendo todo aquele bojo de vidro e águas habitado por mariscos
vivos, adejado morosamente de peixes brancos e negros e fulvos, de
longuíssimas caudas, Ainda bem que gosta, foi arranjado agora,
lembro-me lindamente de vir cá com a mãe comer areias em pequeno,
vim cá com ela a semana passada, diz que lhe faz imenso lembrar a sala
de jogo de Biarritz no tempo dela, olhe, ela pediu-me a receita daquela
tarte de framboesa que a menina, A sua mãe está muito só, não está,
darling? Coitada, entretém-se imenso na quinta, mas quando está em
Lisboa piora imenso dos nervos, é um horror com as criadas, acha
sempre que está tudo desarrumadíssimo, manda fazer as camas duas e
três vezes, vai ao supermercado e aflige-se imenso porque acha que lhe
trocam as ceras para móveis pelas de mosaico, que lhe misturam os
chás, que não medem o arroz do cão, sabe como é?, que a roubam, no
tempo do pai a mãe tinha tantos jantares oficiais, mudou imensas vezes
de casa e havia um pessoal impecável, ela adorou a Argentina, lembro-
me lindamente de me trazerem cá abaixo todas as noites, jantavam com
as portadas abertas para os jardins e eu achar assim a mãe a pessoa
mais bonita, arranjadíssima, não me lembro de a ver de curto para o
jantar, A mãe também se arranjava imenso, claro que. Mas os lagostins
chegam na sua cama de cristal e gelo e luzes brancas, todo o serviço é
excelente, os criados movem-se como sombras, peixes escuros, carpas
centenares de profundezas, limos. Com quatro dedos e os mínimos em
garra de equilíbrio, Mary decepa o primeiro, rosadíssimo, as estrias da
carapaça articulada um branco firme, enorme, limpo dos grumos de
ovas que ainda lhe pontilham a muralha do ventre, corais na cabeça de
onde escorre, decepada, uma pouquíssima de água, odor de cama
marinha,

Por um dos tubos que entram pelo nariz afilado ao ponto de parecer tão-
só rectíssima linha, na obscuridade permanente do quarto, passam
ininterruptamente um líquido de cor sanguínea, sem espessura, e
coágulos de ar. Que profunda estranheza, aquela boca desmaiada,
lacerada de pequenas pústulas e estrias de secura, o ruído cavo naquela
garganta onde mesmo a funda marca dita colar de vénus e a pele um
pouco deslassada tão bem se casavam com o oriente das pérolas, com
as vogais baixas, arrastadas, com o cinza negro de dois anos de luto, o
preto e branco, o já violeta claro da última primavera de viúva sóbria,
cuidadíssima. O peito arfa, o ruído que emite é inverosimilmente
grosseiro, aquela aguadilha ferrosa desce do frasco de soro postado
alto até à fenda da narina que começa a cortar-se na comissura, uma
fenda como trilho de navalha entre escamas de pele. A cama articulada
range como um carro de bois ao longe, está um pouco soerguida, os
cabelos estão mortos perdidos o degradé de loiro e brancas, apesar das
fricções de álcool e colónia, do champoo seco. Os braços descarnados
terminam nas mãos para ali abandonadas na mesma lassidão das carnes,
veias altas, azuis, sarda clara, as duas alianças. Há o chio de borracha
das solas de enfermeira no chão plastificado, o cheiro a éteres, e agora
de dejecções ácidas, aquele beiço que treme só de um lado, a mão
esquerda que se vira para cima num vagar de peixe à tona em agonia, o
dentro do braço lacerado onde a veia fugidia é buscada e buscada, a
palma em concha flácida semicerrada agora numa postura que dá susto,
elegante no acto de morrer devagar, Já posso tirar a arrastadeira,
senhora dona Maria do Carmo?, a tremura do lado da cara que significa
sim, o agudizar do ralo em espécie de palavra que significa sim, o
agudizar do ralo em espécie de palavra que significa sim, a errância
pelo quarto de um só dos olhos, o outro palpebrado baixo. E Frederico
diz do lado de fora da porta entreaberta com aquela voz apavorada que
Mary nem conheceu na iminência dos partos, que só conhece agora, nem
no reconhecimento do corpo esfacelado do pai, Posso entrar? Mary
levanta-se vai até à porta, Espera um bocadinho, deram-lhe um clister, e
ele passa logo a uma irritabilidade má, puxa de um cigarro, a cigarreira
não faz ruído no mesmo chão ceroso do interminável corredor vidrado
ao fundo e vêem-se os altos ramos amarelo rubro dos plátanos e as
quedas franças das araucárias, Algaliaram-na. A que horas vem a Maria
Elisa? A Ziza disse que não sabia se vinha hoje, A sua irmã é uma
besta, parece que não sabe que a sua mãe está a morrer.

Darling, está tão calada, estão fresquíssimos os lagostins, quer mais?


Não, agora preferia uma coisa quente, Quer um vol-au-vent de
codornizes?, a mãe achou óptimo, Ai adoro, estava a pensar que acho
tão estranho a mãe ter morrido há tão pouco tempo, um ano já, Oh
querida, não pense nisso agora, Não, também é por ter tirado o luto,
ainda acho estranhíssimo vestir-me de encarnado, Mas é escuro, Mary,
note que eu adorava vê-la de preto, dramatizava-a imenso, não lhe
apetece dançar?

Mary dança e não está contente. Qualquer coisa mudou, que mudou?
Mary não sabe, dança. Frederico dança melhor. Ao fim e ao cabo é uma
coisa disparatada as pessoas abraçadas a balançar-se. Mary acha-se
parva. Ou não é nada disto que queria. Quando dançava com um vestido
de taffetas changeant que tinha duas laçadas em cada ombro e estavam
os outros a dançar à volta, olhos humildes espiando de vários lados se
estaria disposta para a próxima, tudo era melhor, tudo era tão possível,
a mãe tinha-lhe emprestado a esmeralda, Parece mais velha mas fica-
lhe lindamente, parece a avó Isabel, não acha, António? Falta-lhe
tamanho ou ruindade, ainda não percebi bem, sabe que eu associo
sempre a sua mãe a uma égua carnívora, Maria do Carmo, divirta-se
Mimi, já se despediu da sua irmã? vá lá acima ao quarto, ela pediu-lhe,
Mana, que linda, parece o céu do mar. Que falta a esta Mary, pois?
Olhos que a vejam a ser vista? Mas José, mas a dança? Se ao menos
fosse um tango, por graça, toda a fineza do mundo, Madreselvas en flor,
que me vieran nacer, passa-lhe a memória dos olhos fechados uma
imagem distante dois vultos enlaçados ao longe, longe em perfecção de
uníssono combate uma agulha de prata vivacíssima, onde?, minúsculo
peixe cintilante em que funda treva? Mary pensa que está parva. Não se
aborrece, está inquieta, algo está envenenado, José Oom parece-lhe um
menino de coro com borbulhas a carregá-la como um boneco de palha.
Mas José Oom não tem borbulhas. Dança bem, mas é que não a segura,
embrulha-a. Como guia, como faz gestos no ar ao que diz — é tudo
mole, embrulhado. Está enervada Mary?, com a alegria sorrateira do
alívio, Mary não se lhe está colando, vai ficar tudo na confidência, José
Oom redobra de solicitude, Quer sentar-se, minha querida, o vol-au-
vent já está na mesa. Não me chame querida. Mary, que é que tem, que é
que eu lhe fiz, pode passar à queixa, tudo bem, tudo na mesma, ah não
ter que mudar nada, ganhou, agora é só manter o amuo penalizado até
que ela quebre, Mary quebra sempre, ajusta-lhe a cadeira, senta-se
contristando-se e olha-a nos olhos, magoosamente, com intenção,
pergunta, sinais de dor, José Oom esse jogo ganha sempre, Que é que
tem, darling?

As quatro crianças seguiam a passo estugado, diferentes nas alturas,


modos e trajar. A mais velha era uma rapariguinha airosa de catorze
anos mal cumpridos, perna excessiva sobre a qual breve se elançaria
tronco que soe perfazer o que os seus viriam a ter na conta de boa
figura. Envergava vestido de boa matéria de algodão em verdes, saia
ampla, a cintura muito justa, meia longa como era uso da adolescência
de Lisboa ao tempo. Havia chovido pouco, o que bastasse porém para
que as suas sapatilhas de calf sem tacão, debruadas a fitilho de
gorgorão pegassem e largassem aos pés descompassadamente. Na
peugada ia-lhe um rapazinho trigueiro, alguns nove anos ou onze mal
medrados, descalço, calção com remendos de outra peça sobre nádega
escassa, suspensórios em cordel grosso, camisa sem remate de gola,
algo sebenta, outros usos, outra origem e destinação. Chamava-se o
rapazito Jorze, a mal calçada menina, Maria das Dores, ou Mimi, nome
de casa, nome de campos após alguns dias em boca de novos algo
serviçais companheiros. Desses era a cachopilha mal trajada de chita
azul puída, avental de asinhas de folhos murchos e babeiro alto, soca
sem calcanhar, cambadita, trancinhas magras sobre a bochecha fuinha.
De nome era Rita, alguns sete anos ou mais, irmã de Jorze. Mana, disse
a quarta criança, olhe o que vem lá. Andaria pelos mesmo sete em
sólido, seco, tinha o cabelo já escuro apartado ao lado com travessão,
vestia como a irmã acertados os tamanhos, a cinta imprecisa, os joelhos
quase expostos. Os sapatos andariam pelo mesmo desconchavo da outra
se os não trouxera dentro de pequena cesta onde era suposto haver
vindo raposo desachado. Os pés mimosos que a natureza, parca mãe
mas não cega madrasta, não havia ainda calçado da crosta sólida dos
seus mais desmunidos companheiros, para isso muito contribuindo,
mais que calçado, abominadas diárias abluções e pedra-pomes,
sangravam um pouco, o que não parecia dar-se-lhe muito. Olhem além,
e apontava. Com efeito além vinha rebanho de cabras, curto mas
espesso, encabeçado por pastor forrado de peles, acenante. Vinha muito
lesto na direcção deles, adejando com as mãos ambas e já daqui se ia
vendo que nelas carregava, além de pau cajado, passarocos grandes, as
asas de um pendiam de longe. É um gavião, carago, gritou Jorze e
abalou de carreira. Dois, secundou Elisa, pois era ela, e seguiu-o na
mesma. Zizi, espere aí, olhe que pode ser perigoso, disse a galante
menina de cujo cabelo nos passou dizer o então loiro escurecido de
húmido, os olhos agastados, bastos de pestana, mas, pequeno senão, não
muito vivos. Jorze, ó Jorze, espera, Espera, ó Jorze, berrava a mais
mindinha no encalço valente dos mais afoitos e mais estiradas pernas.
Mary come, as ervilhas aplastadas nas costas longas do garfo, uma
pasta e um verde rutilante, as estrias filamentosas de cenoura crua
admiravelmente sápida de uma vinaigrette leve, a tenríssima massa
folhada com o seu miolo de carne escura, ossículos, molho ligado
denso. Olha de novo a grande pena humilhada que José Oom se postou
na cara e diz, finalmente, Está óptimo. Ainda bem que gosta, estava
tristíssimo de ver a menina deprimida, já sabe que não posso vê-la,
José, você gosta de mim? Claro que sim, adoro-a, mas sabe que eu era
incapaz de ter menos respeito por si, a menina é uma santa,

A sua mãe é uma santa, senhora dona Maria das Dores, a resignação
com que ela tem sofrido. Não é só resignação, senhora enfermeira, é
boa educação, repare bem que assiste pela última vez ao sofrimento de
uma verdadeira senhora, Frederico, pelo amor de Deus, acalme-se,
Cale-se Mary, você nunca há-de chegar aos calcanhares da sua mãe,
Felizmente, mano, Que é que você quer dizer com isso, Elisa?, Que a
mãe pisava tão bem, tão bem, que nem via a quem, Você é um monstro,
Elisa, a sua mãe está na agonia, Ora, estamos todos e eu ainda não
acabei o luto do meu pai, Já cá faltava, Não, nunca vos faltou em nada,
O senhor engenheiro desculpe, mas se fizessem todos um pouco menos
de barulho, Qual quê, senhora enfermeira, as pessoas como a minha
mãe devem morrer ao som de salvas de canhão, Zizi, acalme-se, Tão
boa e tão parva, minha pobre mana, Elisa, eu dou-lhe um estalo aqui ao
pé da sua mãe, Meu caro mano, quer que eu me arrepele como se a
minha mãe fosse minha amante?, nunca foi.

Os grandes peixes arrastam os seus véus perfazendo lentíssimas


mutações de nível dentro da esfera para lá da pista, À l’ombre de toi,
Restera toujours, Un peu d’eternité, Au nom de notre amour1, Mary
sente as entranhas derreterem-se-lhe numa grande confiança puríssima,
vê que já há morangos frescos e pede com natas, a charlotte é
demasiado pesada, bebe um pouco mais, apetece-lhe fazer tinir o beiço
do copo onde está o seu bâton vermelho terracota, a dedada da boca.
No fundo da esfera de água há ainda cristais de rocha, blocos de vidro
azul-pervinca, grandes formações ósseas de corais mortos, brancos,
algas expandem-se como sob aragem e os lavagantes e lagostas
divagam de pinças, delicadamente, Encore, encore, encore, c’est la
confiance et le courage, c’est le bleu des livres d’images,2

Zé, preciso tanto de falar consigo, você sabe que eu não tenho mais
ninguém, depois da morte da mãe, a mãe apoiava-me imenso nos meus
problemas com o Frederico, deu-me sempre óptimos conselhos, para eu
ter paciência, que o Frederico ao fim e ao cabo era um marido óptimo,
adora os pequenos, sempre com imensos presentes para mim, Zé você
sabe que eu gostar imenso de si não resolve as coisas, eu era incapaz de
enganar o Frederico, Sei, minha querida, sei,

Essa lesma, se você um dia lhe


dissesse de caras ou mesmo de
cernelha que queria ir para a cama
com ele, ia fazer chichi para
debaixo dos jupons da mãe, Que
porco, Frederico, que porco, eu não
quero,

a menina é incapaz de uma desonestidade, é por isso que eu a adoro,


Zé, mas há coisas que eu tenho imensa dificuldade em entender, quando
eu casei com o Frederico, A sua irmã Maria Elisa não?, A Ziza está
cada vez mais impossível, diz coisas que me chocam imenso, foi
horrível durante a doença da mãe,

Ziza, não sei, não sou capaz, não


sinto nada disso, Mas ó mana, ou
vai ao médico ou muda de homem,
Maria Elisa, você anda a perverter
a sua irmã Mary? Caríssimo irmão,
junto ao catre final da nossa
querida Clitorismnestra lhe peço
que meça o que diz, que eu meço o
que me lembro. Ameaça-me, Elisa?
Ameaço,

diz coisas que eu não entendo, a seguir à morte do pai, as três de luto,
mas a Ziza não falava, deixou de falar à mãe, parecia doida, o
Frederico um dia abanou-a e ela foi buscar uma pistolinha com cabo de
madrepérola que o pai lhe tinha dado, veio pela escada abaixo, nós
tínhamos ficado na sala os três amachucadíssimos, lembro-me
lindamente, estava o Salazar muito trémulo a ler os agradecimentos da
doença e ela parou com a arma apontada para o Frederico e depois
começou a rir-se e disse, Não vale a pena, já não vale a pena, não
passas de um sinapismo de velha, uma colagem de merda, não vale a
pena. Lembro-me lindamente, eu lembro-me de coisas que não percebo,
o Frederico ficou muito pálido, a mãe tremia imenso, levantou-se e
disse, Vá para o quarto, Maria Elisa e a Ziza disse, Madame, o meu pai
ensinou-me a distinguir entre uma cortesã e uma senhora, sente-se. E a
mãe sentou-se no cadeirão de chintz e começou a chorar e a tremer, o
Frederico ainda fez menção de se levantar para ela, mas ela levantou
outra vez a armazinha e havia qualquer coisa nos olhos dela,

Não chore aqui, Mary dear, quer que eu lhe peça mais morangos?

Quero,

no dia seguinte o Frederico trouxe-lhe um livro chamado Hedda


Gabler3 e começou a falar com ela em inglês. O Frederico fala
lindamente inglês. Foi assim que a Ziza começou a falar,

LITTLE WOMEN4

a poem here
how come this is the house of undone written
words
unspoken lines of sorrow
no meaning to convey emotion meant to last
no sense no rythm
except the very harsh
of womanhood secluded from compassion
of the distorted wombs a mind would have composed
of crushed babes
undeserved barreness
of hope so shrill
a kingdom would not still it
and love so much unwanted
it can kill
no beauty then
no ripeness of the bonds
from line to line
no crawling law
melodious scheming
no poem here nothing
but a howling silence

mas o que quero dizer é que me sinto infelicíssima, no dia em que nos
casámos, a mãe, Quer café, Mary dear? Ao jantar sabe que não, durmo
pessimamente. Chá, Chá, leve, se faz favor.

As cabras, após um pouco turvadas pelo ímpeto do avanço das


crianças, vultos e cheiros irreconhecidos, que as fez voltear em
redondel de pinchos dos cabritos e muita balição, logo refeita a
compactez do rebanho pela presteza ladrada do cão e berros do pastor,
eram bonitos animais de hastes pouco curvas, escuras, alteadas estreito
sob as frentes e barioladas em aros grossos, paralelos. Não traziam
bode. As casacas caíam-lhes em felpas lisas pelos quartos abaixo,
pisavam airoso, ponta de casco a pedir licença ao outro — a bela cabra
montanheira. As primeiras crianças pararam a duas braças de respeitos,
a outra mais menininha lá atrás já próxima a recuperar o atraso em
carreira descomedida até vir postar-se dengosa atida às costas do
irmão, à espreita. Mary, que era ela, então Mimi de nome, estugava o
passo, hesitava em descalçar-se, ainda vinha. O pastor, homem feito,
ufanava:
— Apanhei-os no ninho, este vem morto.
O dito era o que lhe pendia da mão, as grandes asas mosqueadas de
todas as cores de solo e penhasco e até branco, abriam-se imóveis,
largas, até ao chão. No outro braço trazia aninhado um outro pássaro
quedo como rola ensinada, os redondos rútilos olhos bem abertos,
focos.
— Esse não bule? indagou-lhe o pequeno conterrâneo.
— Ná, quis ferrar como o outro, parti-lhe as patas.
Mary já estava à distância de escuta, era a bondosa menina:
— Coitadinho, porque é que você fez isso ao pobrezinho?
O pastor toldou-se-lhe a ufania, considerou para o chão, ganapinho
patrício veio-lhe em socorro, interpretou:
— Isto é bicho ruim, dá cabo dos pintos. Inda outro dia vi um a
acarretar um laparoto pelos ares fincado nas unhas, tira os olhos à
gente, é bicho ruim.
As crianças estavam ao alcance de mão da ave rara. Elisa estendeu uma
e tocou na cabeça do animal, cilíndrica, poderosa como casco de
guerra, o bico curto, curvo, grosso, claro, a gloriosa cabeça que, sem
arremeter, se altivou um pouco, olho solar, severo sob o sobrolho
espesso, penujoso.
— Olhe que ele ferra-lhe, menina Zizi, respeitou o cachopinho o gesto e
o pássaro
— Ná, este já não trilha.
Pastor quebrara. Porém hesitava, respeso do juízo de Mimi, menina
grada, Coitadinho.
— Se vossemecê quiser, leve-o.
Era o mais que podia.
— Ele não vai morrer? Perguntou Elisa que já era uma criança a fazer-
se a extremidades.
— Não há-de estar para hoje, pode que não,
O pastor evadiu.
— Estava, no ninho, ainda era a mãe que lhes dava de comer,
coitadinhos,
Mary repetia-se.
— Se a menina o quiser, aleve-o. Ou bote-o aí num oco de carralha, ele
fica-se, acaba-se a peçonha.
— Nunca mais caça, nunca mais voa?,
Elisa queria o saber do pastor.
— Isso!, nem ferra.
— Ó menina Mimi, a gente tem que se ir embora, senão a minha mãe
casca-nos, aleve-o, faz-se-le uma gaiola de cana, o meu pai sabe.
— Coitadinho,
Mais plangeu Mimi, tomando o volume penoso em braços, hesitâncias.

A tarde cai. Através das janelas duplas de vidros de correr sobre


calhas de aço baço, um pouco embaciados pela morneza do quarto, os
pássaros piam a última chamada à acomodação, os plátanos estão
cheios de pequenos corpos, encontros, quezílias de papos anchos e
viris que reivindicam a chios o seu galho, aquela fêmea parda. O quarto
deveio ainda mais casto — as excreta são agora tubuladas, algálias
regulares, clisteres matinais, quase inodoras, a só assépia. A
introjecção de soro e oxigénio prossegue, todo o fluxo e defluxo
naquela usina inerme é artifício, mecanicidade. Que fala ainda resta,
que imprevisto? A uma pressão mais firme sobre a testa que amarela,
cada hora mais opaca a pele, apenas a pálpebra ilesa e o dedo
indicador tugiram, imperceptível espasmo que não a olhos atentíssimos,
ainda incrédulos à graduação do apagamento. Ontem disse algo que
poderia parecer, Nónio, quando Frederico lhe colocou no anelar ainda
morno de água morna a safira das grandes ocasiões. Frederico chorou
então pela primeira vez, que se visse. Mas isto passou-se num meio dia
alto. Ao fim da tarde elas começam a chegar,

CARPAS (I)

Trazem pequenos véus a segurar os cabelos ralos, o pó das feições. Há


muitas bocas estreitas, comissuras e pelancas deslassadas como sob
fervura simples, os dedos com muitas alianças, torsades de ónix e
brilhantes, algumas pérolas sob tailleurs de alfaiate, sedas negras,
bengalas de castão monogramado, uma aura de um pouco de alfazema e
caixas de caron cuja borla esfiapa e amarelece, tornozelos filiformes
sob meia cinza ou como pulsos de ligamentos rotos, inchados e ligados
sob meia rosa sépia, sapatos de atacador lustrados hoje ou verniz bem
subido, o tacão sólido, calfes envelhecidos com esmero afeitos à
deformidade do dedão, a gota, solenes peitadas descaídas sobre alto
das vísceras ou briosamente arrasadas contra as espáduas secas, bons
portes, beijam pela ponta da boca uma só face, sentam-se, sussurram
bem,
Como está a tua pobre mãe, minha querida filha, Tantos desgostos em
tão pouco tempo, Ficares com a responsabilidade da pequena, O teu pai
foi sempre uma pessoa muito especial, Deus te abençoe que foste
sempre um exemplo, Boa filha boa irmã boa mãe, E o que é que pensam
fazer agora da quinta, Tenho passado menos mal, A minha coluna o meu
bócio o meu fígado, Combinaste com a Maria Elisa as jóias?, Tudo isto
foi tão de repente, Eu hoje acho-a um pouco melhor, Eu hoje acho-a um
pouco caída, A tia Sara está muito mal, A Tita já teve o pequeno, Não
se pode contar com o pessoal, O que tu tens sofrido, petite, E a Elisa, a
Elisa a Elisa, A tua irmã é muito especial, Frederico peça-me o carro,
Tantos desgostos em tão pouco tempo, Amanhã vai à costureira, Boa
filha boa irmã boa mãe.

E saem e entram e ficam em pequenas arrevoadas negras, no mesmo


passo sem pressas de pequeno prazer cochilante, as gargantas cingidas
de fitas, os rins cingidos de pequenos males, a hérnia, a espondilose, a
artrite suave, de quem venceu na vida a vida a vida a vida, um chá leve,
um tamborete baixo. Os pequenos pássaros pardos, pardais,
adormeceram já pena contra pena, cabecita entre asa, as patas firmes
sob o ventre arrufado e descido, num corpo a corpo breve até à aurora
gárrula, cochilam nos seus postos os que aguentam Lisboa, a dos
pombos, poucos corvos, cegonhas raras, margem de gaivotas.
às vezes, quando me lembro da morte da mãe, apetece-me gritar, gritar,
Mas não se sente bem comigo, hoje, Mary?, ah, se a menina não tivesse
casado pela igreja, mas não, nem eu seria capaz de a tirar ao Frederico,
Eu não entendo que as pessoas se casem sem ser para a vida toda,
embora eu, com o Frederico, e eu não era nunca capaz de me separar
dos pequenos, acho que o casamento é uma coisa sagrada, a mãe e o
pai, O seu pai não era nada religioso, pois não, Mary? Não, mas casou
pela igreja, toda a gente diz que ele adorava a mãe, nessa altura, o pai
era uma pessoa tão, tão especial,

Mary sente-se um pouco inchada, ainda bem que tem cinta, regozija-se.
Tem sono. Tem vontade de ir para casa. Quer dançar, Mary? Alguns
pares dançam agora muito devagar, o braço escuro dos homens forma
um ângulo agudo de enlace mole, as mãos lassas em espáduas nuas ou,
sobre seda, crepe, organza já, visíveis de contorno. Na penumbra azul,
aguada, as caras são de gemido, os olhos fechados, tão pegados de
corpo e bordos da cara, os crustáceos continuam a acenar-se de hastes
sem sobressalto, um imenso búzio colado ao vidro ascende agora a sua
massa ventral, opaca, uma mão sem dedos, fria, visco, os peixes abrem
e fecham as suas chagas do lado descompassadamente ao lentíssimo
vaguear vermelho, negro, branco violáceo, das longas franjas. Mary
sente suor na sua pele da mão em mão de José Oom, da têmpora ao
maxilar húmida de outro suor, nas costas da mão espalmada contra a
fazenda escura de grão fino, fresco, não há nada entre a juntura das suas
pernas, a face do púbis, e as dele, onde os troncos se acostam, Vamos
sentar, Zé, estou cansada, vamos embora.

Sobre a conta dobrada a nota inteira, na outra mão a carteira aberta, o


retrato da Maria das Mercês de meia idade, a cabeça do galgo de felpas
sob o joelho traçado, rótula sob seda, ângulo de cabeça onde pescoço
se alise, Que bem que está a sua mãe, Zé, Mary, aquilo que a menina
contou da sua irmã, da arma, não é verdade, pois não? Não sei, às vezes
com tanta mudança já nem me lembro muito bem de quem sou, quanto
mais, Mary, darling, isso parece a conversa da Alice com a lagarta, É, a
Ziza diz que a Alice está imenso na moda,

mas ela uma vez matou um pássaro.


A tiro?
Não, à mão,

O casalinho campónio vai agora na frente, passo saltarico, um chouto


curto já sem ralação — relato de passaroco, pastor e meninas com
encomenda de acomodações para primeiro vai dar que falar antes de
zurzir, em vez de. Mary leva a criatura ao colo tão baça e muda salvo
de olhos quanto o foi transposta de braço a braço. Não sem que se lhe
vissem as lástimas das patas, dois cotinhos esquirolados e sangrentos
donde pendiam bambas as garras abertas e quedas como céus, árvores e
vivo antes de bátega e trovejo.
Mary vai importante mas de cenho cingido:
— A mãe não vai gostar.
Mais um valejo passado:
— Não vai gostar mesmo nada e para mais o bichinho não se salva.
— Lá isso não, fidalguinha, tem no mais para uma semana, que ele
como vai indes que a gente lhe dê o comer à mão nem arriba para avoar
nem espedaça presa. Que inda se a gente le pudera encanar as patas.
Atinando cerce que se lhe vai o ensejo, ou talvez não, que o relato já
daria, após pausar, remata-lhe, serraninho:
— Bem, que o seu paizinho havia de le dar graça, não assomam muitos,
assim já meio criados.
— Isso é que não,
Do pai Elisa sabe.
Andados mais cabeço, ponta de vinha fracativa, quatro borregas e o
amo delas, torna-lhe Mary:
— Podíamos deixá-lo deitadinho num ninho de folhas e palhinhas,
podia ser que a mãe viesse buscá-lo ou que nossa senhora fizesse o
milagre de o curar, rezávamos.
— Ó isso,
Camponinho sabe da vida.
Mary assim dita, assim feito.

O animalzinho é belo. Elisa fica para trás a vê-lo aninhado no chão


ermo, muito de oras enquanto a deitar agora por cima das limpidíssimas
bagas solares dos olhos uma membrana parda, curta, no seu ninho de
aparas e folha seca, por debaixo de uma oliva rala. Coçando-lhe
docemente as penas da cabeça, cor de feno, negras, cinza, surge uma
penuginha branca que se pega aos dedos, doce na cara de fazer espirrar,
doce na boca, nos antebraços, sob as asas abertas à mão, tão quentes,
tão surpresa de lindas como estirar de leque vagaroso. Mary à distância
de grito, para lá da lomba, grita:
— Ziza, venha, deixe-o lá.
Um ah fica a ecoar por valados e montes, enegrece. Elisa molha de
língua e lágrimas a realeza da cabeça redonda que se acoita entre bafo
de boca e de narina, o bico gancho e espesso nem de pio, nem de
gemido.

— Ainda bem que a senhora chegou cedo, a Madaleninha tem febre,


está lá a Sara.
— Muita?
— Pouca. Quer a senhora.
A casa de bonecas tem as portadas abertas, mesinhas, cadeiras e camas
rigorosamente arrumadas, o jantar servido com talheres e pratas que
desapareceram entre dedos de adulto, ninguém à mesa. As bonecas
foram tapadas e jazem no seu dormitório de camas de diferentes
tamanhos, de olhos fechados as que os fecham. Há um cesto de onde
saem pernas e braços mais inditosos. Junto ao fogão da casa de bonecas
há uma criatura de longos cabelos e espécie de capa de veludo com
debrum. Vela em pé sobre minúsculas panelas, sob uma baixelinha de
tachos, xícaras menores que dedais. Na sala, o senhor da casa está
deitado de borco virado para o chão, com o seu pequeno casaco de
casa de abas lisas. No rés do chão, da casota do cão com a sua porta do
tamanho de polegar, sai um focinho de prata e uma cabeleira e meio
corpo de uma bonequinha de celulóide de bibe aos folhos. No sótão,
onde há arquinhas como caixas de comprimidos e um pequeno baloiço
de trave, uma enorme rã de borracha aguarda, os quartos volumosos
sobre o exíguo chão. Tudo está em ordem. A imensa reprodução da
Dama com Arminho contempla, com a sua corda carga em braços, Mary
que ofega, subiu as escadas a correr. O anjo da guarda, colagem de
sedas, rendas, vidrilhos, lantejoula em fundo de fustão e serapilheira
abre as asas na parede como Madalena os bracinhos tímidos de
amarrotar, despentear. Mary agarra-a como a uma memória perdida, a
criança assustada de tão rara veemência crispa-se-lhe nos braços,
cerimoniosa voz antiga brota do coração pequeno a pulsar rápido, A
mãe vai já dormir, vai? fique aqui um bocadinho ao pé de mim, se faz
favor, mãe, o Simão já está a dormir. Madalena, criança de dar
passagem e ungir, como os nomes pesam. Mary senta-se numa das
cadeiras lacadas a shocking-pink, rosa-choque, e acaba de contar, na
mão uma mão pequena como um coelhinho morto ainda quente, um par
de olhos redondos que se entorpecem de prazer, adiamento de penas,

E então o príncipe levou a dama das neves para uma ilha tão longe, tão
longe que só havia pés de tangerina, praias de leite e flores de nardo,
tigres de pêlo azul mansinhos e pavões brancos, e viveram felizes para
sempre.

CARPAS (II)

Quem deterá o ilegítimo júbilo dessoutra espécie — os longevos na


gregariedade sem obra, esse imenso gáudio de haver permanecido na
descarnação das gengivas e erosão das vértebras? Onde cortar fronteira
entre farrapo preto e crepes? A contorsão das mãos não basta. Passado
um tal portal o que conta é o letífero sopro sobrevivo, a maligna ciência
de haver, mortalha após mortalha, suspirado por mais que não a própria
finitude,

dai-lhes senhor o descanso eterno entre os esplendores da luz perpétua,

as que avançam de jubilante negro pela hora em que os corpos


convulsos ou pasmados se derramam em líquidos fétidos, inflam de
matérias pungindo como alheias. Podem seguir os seus cortejos — as
mandíbulas perderam toda a faculdade de preensão rígida, molares
lassam, incisivos descarnam sob essa vitória. Erecto só ainda o alarme
dos contágios, a supressão dos próximos, a ferinidade da língua. Só
podem ver-se em coro, percorreram extensões gélidas a ver dos
féretros agrupadas por duas, fileiras claudicantes, amarão a
uniformidade finalmente disruptiva e corrupta de todos os inalteráveis
rigores rituais,

dai-lhes senhor o descanso eterno entre os esplendores da luz perpétua,

que os velhos solitários que invocam surdamente a morte irmã são


pedras nossas, sedimentos calcários, fundamentos ósseos, occipitais
finamente lavrados, inscritos, indivisos, dos fetos, das gestantes, da
brotação das hastes, do gerir, gerontes, nomes esses,

porém elas estão onde os mamilos secaram sob a previsibilidade dos


receios. Elas seguem as urnas sumptuosamente talhadas e os andores
onde as flores são pútridas de excesso, esconjurando com vozes
antiquíssimas o próprio nascimento, as pequenas hastes foliculares,
indistinto o envolvente pecíolo do caule verde-água, secam, os ovos
goram sob essas ossadas de pés fumados e disformes onde as carnes
persistem no intérmino. Choraram um filho ou um amante expostos na
câmara dos mortos, o hábito de morrer? Uivaram sempre só a própria
morte minuciosamente ingasta. Vêm pelas azinhagas ínvias, as que os
deuses não amam, confirmar o suplício de apenas assistir, o bárbaro e
eterno incómodo dos deuses, os menores, sem escoriações

dai-lhes senhor o descanso eterno entre os esplendores da luz perpétua,

Onde as ínvias colunas vieram postergar-se, tão maiores quanto o


ceptro da sombra gasta que se esvai jovem, sucumbida de excessos,
sepulta em novidade, aí, as nações e os homens decaem nas suas fases
mortas, de minério espúrio, granulação de areias, violáveis, apagadas.
Só a minúcia serva faz viver de mais, articular imperturbadamente o
mesmo e mesmo salmo só ruído,

dai-lhes senhor o descanso eterno entre os esplendores da luz perpétua,

que desgosto, filha, que desgosto, uma rapariga ainda nova, boa mãe,
boa esposa, boa filha, ah, ela não aguentou a morte do teu pai, E tu,
minha querida Elisa, põe aqui os olhos, filha, não somos nada, de que
serve procurar outros mundos se todos acabamos assim, Mandaste
arranjar o jazigo, minha querida? Está linda, uma santa, vais-lhe deixar
ir o fio e a pérola?, Lembras-te, Maria Eulália, daquela cloche branca
que ela levava no dia do casamento, com uma faixa rosa sobre a anca e
do bouquet de muguet?, nunca vi noiva mais linda que a tua mãe, Maria
das Dores, tão nova ainda, E uma dona de casa, ah, foi a melhor mesa
de Lisboa, E em Sintra, filha, Bem, isso não sei, havia os, Mesmo
assim, filha, que desgosto, não chores mais minha querida, vai, filha,
vai a casa ver os pequenos, vê se tomas alguma coisa, Uma jóia esta
pequena, Reparaste já como a Maria Elisa não chora, Mas olha que
pelo pai, Esta pequena exagera sempre, Tal e qual o António, Maria
Eulália, era um pequeno impossível, A culpa foi da Elisa, sabes bem,
Quem, esta pequena? Não, a mãe do António, Eu sempre achei, Mas,
ah, a disseminação das gélidas adversativas de quem só vê impávido e
lastimosamente comenta coralmente sob a distorsão da máscara, turvas
emissões em acto de júbilo, dum volume inaudito, de voz, gesto,

dai-lhes senhor o descanso eterno entre os esplendores da luz perpétua.

Mary deitada abre com gestos pesados a gaveta da pequena mesa junto
ao seu lado da cama. Bebeu, picando as pedras de gelo com a ponta da
unha cor de lacre enquanto Lídia lhe escovava o cabelo. Descai pesado
sobre a incrustação de guipure em seda flexível, malha rosa-sépia. O
frasco já só tem cinco pequenas cápsulas. Mary tira duas, pega no novo
copo de bojo crescentemente lavrado, espécie de flûte gorda, copo da
noite sobre fundo de prata onde jaz evanescente licorne, dama
esquissada já sem contornos, prata usada. Um soupçon de cognac
acidula o gole. Cognac com água doutor? Você gosta, potencia,
distende,

e atende, ó verbos de servir, o telefone, beije, claro, à porta da mão,

— Era só para saber se a menina se sente bem, minha querida, achei-a


tão em baixo no carro,
— Vá à merda, seu lula chocha.
— Desculpe, Elisa, enganei-me no número, eu,
— O meu nome é Maria das Dores.

REZA DA ELISA

Meu Deus, está aqui nestas mãos este sangue e está aqui nestes pés esta
terra que eu bati com eles. O que fiz está feito. Peço-te, ó Deus, que
faças que debaixo da terra e dos meus pés venham lagartas brancas
comer depressa este pássaro. E que estas lagartas comam até ao último
dos seus ossos e à última das suas tripas e às unhas das suas patas
partidas e ao sangue por onde as suas penas pegam à carne e ao mole
dos seus olhos, até ficarem bem gordas e brancas e ladinas. E que este
pássaro se torne a carne delas no que elas comerem. E que fiquem
fortes e venham até ao cimo da terra ver o sol. E que venha então o
maior gavião que sempre houve e coma delas e da carne deste nelas,
que era pequenino, e das suas patas partidas e das goelas que eu torci
com estas mãos. E que desça sobre a terra com as suas asas do tamanho
do céu e coma os olhos das pessoas que partem estes pássaros. Ámen.

Mimi, é verdade que o caseiro me disse, que a sua irmã matou hoje um
passarinho ferido? A culpa foi minha mãe, eu deixei-a para trás, eu
deixei lá o pássaro.

António, importa-se por uma vez de interromper o que está a ler e dar
atenção à educação da sua filha Maria Elisa?, você está a criar um
monstro,

depois olhas para mim, olhas as tuas mãos, e elas ambas, tão claras, tão
seguras, são as mãos de um soldado a arder em febre, aves a percorrer
o seu novo deserto5,

Porquê, Elisa, minha querida?


Porque ele estava a sofrer e não tinha culpa e não tinha remédio.
Porque é que a menina a deixou, Mimi?
Eu não vi, pai, eu não sabia.
Maria do Carmo, a sua filha Mimi é cobarde.
Pai, a Mimi também não tem culpa.
E se não tivesse remédio tu também a matavas, meu amor?
António, você está a ser monstruoso com as pequenas.
Também a matavas, filha?
Não, pai, a Mimi não.
Ainda és pequenina.
1 Da banda sonora do filme de C. Lelouch UN HOM M E UNE FEM M E.
2 Ibidem.
3 Peça dramática da autoria de Louise M ay Allcott.
4 Título de um romance p ara meninas de Henrik Ibsen.
TRADUÇÃO. MULHEREZINHAS Poema? Nisto? E como e como? Nesta casa das p alavras inscritas e desfeitas
dessas linhas do horror que não é dito. Onde achar nome que dê à emoção onde p ausar? Nem senso ou ritmo. Excep to o
rísp ido, das fêmeas que nenhuma comp aixão p ode abrigar ou o de entranhas contorcidas que uma mente em soçobro se
houvera comp razido a transmudar de nascituros mortos, de imerecida aridez. De esp erança tão estridente que nem um
trono p udera sossegá-la, ou de amor tão malquisto, do que mata. Nem belezas então, nenhuma madurez dos laços entre
as linhas, nenhuma lei que afirme, sob a melodia, a trama. Nenhum p oema aqui. Só um silêncio que uive.
5 M ário Cesariny. Do CAPÍTULO DA DEVOLUÇÃO.
A TERÇA CASA
I ACTO

Fim de tarde. Uma ampla cozinha iluminada muito bem a fortes focos
de luz fluorescente1. Azulejo rosa sépia, grandes placards de madeira
com portadas em persiana e fórmica azul escura. Imensas máquinas
de lavar roupa, de lavar loiça, congeladoras. Um banco. Imenso
fogão de ferro com porta transparente. Bancada corrida à boca de
cena, tendo visíveis as tubagens de lavatórios, pias, nicho de
trituradora. Em cima da bancada, bem ao centro, está um pato
enorme, depenado, tigelas, passador de carnes, mais máquinas,
panos, ovos. À direita, uma mesa de material plástico toda branca, de
um só pé, cadeiras de vidro acrílico. A cozinha é ainda decorada com
grandes tachos de cobre, estanhos, barros. A mesa está posta para as
duas crianças (cor quente). Numa das paredes há um grande poster
com a fotografia de Ernesto Guevara. A cozinha deve ser, de facto, o
mais possível bonita. O encenador é livre para, por exemplo, não
manter a escala dos objectos à dimensão das pessoas, significar toda
a sumptuária cozinha por um soalho inclinado ou móvel de aço
inoxidável, pedir ao cenógrafo que tudo se passe dentro de um forno
em ignição ou no Jardim do Príncipe Real. Tem é que ser cozinha,
s.f.f.

1 Não são visíveis quaisquer janelas.


A TERÇA CASA
representação em três actos

PERSONAGENS

ELISA, uma jovem


MARY, irmã de Elisa
ELVIRA, irmã de Lídia
SARA, criada
LÍDIA, empregada doméstica
MADALENA
SIMÃO crianças da casa
FREDERICO, marido de Mary
CASAL AMIGO I
CASAL AMIGO II
JOSÉ OOM, o Amigo da casa
ELVIRA está sentada no banco do lado esquerdo. Está vestida com
uma saia de terylene de pregas e uma blusa branca. Está imóvel e
inteiriça de postura, os pés juntos e uma carteira a imitar verniz
agarrada assente nos joelhos. Tem a trança enrolada na nuca. ELISA
está sentada à mesa branca, do lado oposto, um pouco estiraçada
sobre o tampo. Tem um copo diante, com gelo, Trauteia, All in green
went my love riding, E.E. Cummings, Joan Baez. Está de calças de
veludo, botas, o cabelo amarrado e uma túnica bordada, das de
Marrocos, curta. Vai olhando de ELVIRA a MARY, cantarolando,
girando o copo. MARY está vestida apenas com um roupão turco
muito amplo, lavrado, cornucópias orientais. Está no centro da cena,
de pé diante do fogão, com um livro de capa branca na mão direita.
Declama o seguinte texto:

PATO IMPERIAL1

Depois do pato depenado e limpo dá-se-lhe um golpe a


todo o comprimento das costas, para se desossar, o que se
faz separando com cuidado a carne dos ossos sem
estragar a pele. No sítio das asas e das pernas cose-se,
para que fique a pele bem lisa; estende-se na tábua.
Passam-se pela máquina 250 g. de vitela e 250 g. de carne
de porco; junta-se-lhe um pouco de pão embebido em
leite e espremido, salsa picada, uma colherzinha de
cebola picada, 2 ovos, sal e pimenta. Recheia-se com isto
o pato, ficando a pele do lado de fora. Enrola-se e cose-
se muito bem. Embrulha-se num guardanapo em rolo, ata-
se nas pontas e vai a cozer em água ou caldo temperado
com um pouco de vinho branco, um cálice de vinho do
Porto, uma cebola, uma cenoura, um ramo de salsa e seis
grãos de pimenta. Deve demorar duas horas a cozer.
Serve-se com um bom molho de carne, guarnecendo-se
com ervilhas à inglesa e batatas princesas (ver batatas
princesas).

ELISA continua a trautear a melodia que é muito melancólica. Entra


SARA, gorda, avental de quadrados, ajoujada com um caixote de
papelão da margarina Vaqueiro cheio de batatas. Pousa-o no chão
(deixa cair) junto à bancada esventrada, bufa.

SARA — Arre mula que já não tenho idade para andar com estes
carregos, menina Mimi. No tempo da sua mãezinha que Deus haja
isto era serviço para a ajudanta. Tanto escaninho para tudo nesta
loja de fanqueiros e não há nem o olhinho do cu dum parafuso
onde me caibam batatas pra mais de uma semana.
ELISA — Et exultavit spiritus meus.
MARY — Sempre fazes o pato Sara?

SARA começa a lidar com o pato e com as tigelas. Atenta no livro na


mão de Mary.

SARA — Olhe ó Mimizinha, isto quem não vê é como quem não sabe,
atão não vê o inocente aqui em cima da bancada?, eu se fosse a si
ia mas era pôr-me decente, a cozinha hoje parece a sopa dos
pobres e olhe que ainda tem os beberetes para preparar, que a
Lídia já lhe arranjou as bandejinhas das bolachas.
ELISA — Querer é poder.
MARY — Estou tão cansada, tão cansada, não sei o que hei-de vestir.
ELISA — Vista o seu vestido branco, fica muito bem com o pato cru.

MARY chega-se à mesa, senta-se numa das cadeiras, bebe um golo do


copo de ELISA, pega-lhe na mão e, com as duas mãos dadas, encosta a
da irmã à própria testa.

ELISA — Mary, Mary, quite contrary, where does your garden grow?2
SARA — Não é lá muito tenro. Ganso, ganso é que era outra coisa. E
via-se. Agora estes patos empurrados que nunca conheceram água
a não ser pelo monco abaixo. Ainda me lembro de ter que ir pelo
tanque adentro a agarrar o mais gordo, da gritaria,
ELISA — Ah aquela marreca madrugada que o engenho não deixa durar
pouco.
SARA — Mas não ferravam, iam à morte pela mesma mão que lhes
segava a sêmea. Vá-se arranjar, Mimizinha, olhe as horas, depois
queixe-se se o senhor engenheiro a desfeiteia. A sua mãezinha
estava sempre aprimorada do princípio ao fim, antes de todos,
nem aqui entrava, aqui não, que ela aqui,
ELISA (cortadora) — Chega, Sara, não estás a servir a minha mãe. Vá-
se arranjar mana, eu dou o jantar ao Simão e à Nena.

MARY levanta-se, vacila, passa por ELVIRA a quem toca no ombro,


ponta de dedos.

MARY — Está à espera da sua irmã, coitada.


ELVIRA (a medo, sorriso) — A senhora desculpe que é por via do meu
pai.
MARY — Pois, deixe-se estar, coma qualquer coisa. (sai)
ELISA — Abençoadas as lérias do céu que elas não semeiam nem caem.
SARA — Sempre está muito prioreza hoje, ó menina Elisa, porque não
torna para esta casa que sempre era outro governo? É mesmo a
ferra do seu paizinho, estrela e beque e pé calçado. Só abria a
boca ao pessoal pela manhã e pela noite e era pela ponta dos
dentes.

SARA enxuga as mãos e vem trazer a ELISA uma maçã descascada num
prato, os quartos abertos em coroa.

SARA — Coma-lhe, Zizinha, pela minha saúde, está tão magrinha.


ELISA (rindo e comendo) — E vendi o meu direito de benjamina por um
quarto de pêro.
SARA — Pêro, Zizinha?, camoesa, credo e da boa. (A ELVIRA) Olhe, ó
menina Elvira, já que está de visita à sua mana e come cá
connosco, podia-me deitar uma mão às batatas, tem ali um avental
na gaveta.
ELISA — Deixa-a estar, Lala.

ELVIRA já se levantou como se toda a tensão fosse à espera daquele


convite, ou permissão, e está já a atar as fitas do avental que lhe fica
grande, que a cobre quase toda. Pega numa faca.

ELVIRA — Descasco estas todas?


SARA — E mais umas cenouras e seis cebolas. Depois ajuda a sua mana
a pôr a mesa que eu cá dou o jantar aos meninos.
ELISA — Você já esteve a servir alguma vez, Elvira?
ELVIRA — Não menina, só nos campos a mondar, na ceifa e assim.
ELISA — Quantos meses tem o seu menino?
ELVIRA — Vai em sete, menina, está com a dona da casa.
ELISA — Ela é boa para vocês?
ELVIRA — É sim, menina, é sim. (Pausa. ELVIRA fala com a cara
desviada. ELISA fita-a). Ensinou-me mesmo muita coisa.
ELISA — De quê?
ELVIRA — Dos lidares da casa e assim, menina, dos preceitos.
Pausa longa. ELISA levanta-se, vai até ao centro da cozinha, abre uma
gaveta de onde tira um maço de guardanapos de papel, volta a
sentar-se. As outras duas continuam a lidar, SARA com muita azáfama
e ruidosamente, bate gavetas, facas, arestas de tabuleiros, porta de
forno.

ELISA — Sara, a minha irmã está bêbeda.


SARA (sacudida, deixa cair um tacho com água, limpa o chão) — E
sou eu que tenho a culpa, não? Ora esta. Todos os dias ando aqui
nisto, ela entra e sai pela tarde inda de roupão com o balde cheio
de gelo que dava para um regimento, esvazia-me as cuvettes e
quando ele vem já não há gelo, eu faço de contas umas vezes que
nada, outras digo-lhe, menina Mimi, respeite-se, veja lá o que
anda a fazer, chega-me aqui aos baldões e chora que parece que
lhe bateram, que eu visse nunca, ele chega a vir atrás dela aqui
para a cozinha e a pôr-me fora no meio de um refogado, essa
ranhosa que para aí anda a chorar também, isto parece um
manicómio, tenho alguma culpa, Zizinha? (olha para ELVIRA ao
lado que descasca batatas o mais velozmente que pode,
suspende-se, retorna com choro e mais gana ainda, já
estridente). Eu que posso depois que a sua mãezinha morreu?,
sempre tão boa, a sofrer daquela maneira, alguma vez a vi beber
mais que um cibinho de Porto?, nem foi a mim que ela
encomendou as meninas, foi a ele e depois ele e os seus tios a
deixarem que a menina abalasse daqui para fora a pôr casa
sozinha, a deixar-nos neste inferno sem rei nem roque.
ELISA — Acalma-te Sara, que queimas o pato.
SARA — Que isso também foi mal feito, Zizinha, ela só tem feito em
piorar, quando não está grossa anda atrás dos tachos a ver se os
armários têm teias, teias eu!, ou se cada tampa está bem casada
com o que lhe cumpre, na minha cozinha, carago!, alguma vez a
sua mãezinha entrou aquela porta que não fosse para destinar
cerimónia ou para gabar a gente, ou o seu paizinho com uma nota
de cinquenta se eu me esmerava nas perdizes.
ELISA — Ah os dias felizes.
SARA — E traz máquinas, máquinas para isto e para aquilo e quando
não é ela é ele, máquinas para tirar o pé às ginjas, máquinas para
rapar as cenouras, máquinas para desolhar os linguados, sabe-me
tudo a fénico, nem lixo há, agora abriram-me esta porta das trevas
por onde se escoam os restos sei lá para onde, pelo cu de Judas
adentro, já não sou ninguém, já não sou ninguém, e ao fim da tarde
anda vesga, depois pede-me café ou à fúfia da Lídia, que a mim
acanha-se mais e vem para aqui chorar nessa mesa ou sai porta
fora toda aperaltada até às tantas, o jantar a perder a graça, sem
aconchegar os meninos, a queixar-se-me. (Pausa. Com raiva.) A
mim, que nunca foi a ela que lhe quis o maior bem, nunca, (olha
de soslaio para ELVIRA, que treme de alto a baixo continuando
a descascar batatas, pausa. Continua mais cava, com desdém.)
Bonita, bonita. Uma promessa de cera mal tirada da da sua mãe,
um espigo mal medrado ao pé daquela torre de marfim, é o que é,
sempre chorinca, sempre pedincha, sempre a dar ralações com o
fastio, desde que aquela cabra,
ELISA — Qual cabra?
SARA — São contos antigos, uma alevantada que adoeceu cá da casa do
muito que escabrejou, inda a menina não era nascida. (Remata).
Sou eu que tenho a culpa, sou.

(Assoa-se à ponta do avental).

ELISA (trombuda e fria) — Não sejas porca, Sara.


SARA — Que ela nunca gostou dele, aquilo gosta lá de alguém, nem aos
filhos. Tem-lhe medo, ao mais.

Entra LÍDIA com as duas crianças pela mão. É alta, bem feita, bom
porte, tem o cabelo escuro e curto, está fardada de cor, bem calçada,
bem penteada. As crianças estão de pijamas e roupões iguais. SIMÃO
vem em passo de marcha, perna aberta. MADALENA traz na mão uma
grande gaiola de grilo, doirada. ELISA recomeça a cantar em surdina,
repetidamente estas estrofes da canção de E.E. Cummings:

All in green went my love riding


into the silver dawn
holding hands crouched low and smiling
but Mary dear went before3

Enquanto ELISA canta, LÍDIA recita ao centro com as crianças pela


mão este:

I RECITATIVO DE LÍDIA4

Crescerei como a haste do cedro jovem, ó Senhor, na


colina onde eles são abatidos. Os filhos dos meus filhos
não mais conhecerão a servidão. Serão deles as grandes
tendas de seda e cordoaria de oiro com que povoaram
para os combates os nossos desertos, ó Senhor. Os meus
peitos serão ungidos do nardo e do cinámono para os
nossos guerreiros erguidos das nossas hostes contra o
declínio deles, ó Senhor. Tu és o vime que me ensina a
vergar na mansidão de trato e qual Ester aprendo os actos
do ócio próprios à prometida real. Ressoam já a harpa e
os címbalos e sei designar um por um os instrumentos do
culto. Louvado sejas, ó Senhor das passagnes de ceptro,
eis-me como pérola sem mácula engastada em tiara dos
que serão depostos diante da ira dos teus exércitos
justiceiros. Eu tomarei assento num trono de prata, alta
como o sol, formosa como a lua, a minha túnica lavrada
descerá até aos tornozelos cingidos de badalinhos de oiro
e as minhas coxas firmes como as colunas de alabastro do
novo templo estarão então resserradas aos que caírem
junto aos fundamentos da cidade santa. Louvado sejas, ó
Senhor, porque substituis de eras em eras a dinastia dos
que imperam, para tua maior glória.

ELISA e ELVIRA foram-se aproximando uma da outra lentamente,


durante o RECITATIVO, saudando-se de abraço qual celebrante e
diácono durante o ritual da Missa católica. Para o final da fala estão
de mãos dadas à esquerda da cena, erguendo cada uma delas o punho
disponível.

ELISA e ELVIRA (em uníssono) — Não peças a quem pediu nem sirvas a
quem serviu.

ELVIRA volta para o seu lugar junto à bancada e às batatas, ELISA


para a mesa redonda e o copo. LÍDIA começa a preparar uma bandeja
grande com talheres e copos.

SARA (a LÍDIA) — Ó flor de Jericó, vê lá mas é se te avias que eu


preciso de uma mão para as natas.

LÍDIA encolhe os ombros. As crianças sentam-se à mesa depois de


gritar, TIA, TIA. MADALENA no colo de ELISA. Tudo deve processar-se
como se LÍDIA tivesse acabado de entrar com elas.

SARA — Já lhes vou dar o jantarinho, sopinha, carninha assada.


SIMÃO — Não quero carne achada.
SARA — Ora não quer, quer tudo, o Simãozinho não quer?
SIMÃO — Não quero carne achada.
LÍDIA — Esqueci-me de comprar duas rosas amarelas para os lavabos,
vou aqui ao lado que a Dulce trouxe hoje da florista, uma talvez
dê. (sai).
ELISA — Desgraçada casa onde já só se vai à vizinha por pétalas de
rosa.
SARA — Veja lá se queria que lá fôramos pelo pato, lá vem a menina
com a sua doideira, não me bastava já a sua irmã borracha (olha
para as crianças). Cala-te boca.
ELISA — Há-de ser a última coisa a calares, a boca. A cabeça está cada
vez mais tartamuda e olha que o coração.
SARA — E quem foi, Zizinha, quem foi? Quem me comeu os miolos e as
tripas e até o meu menino (suspende-se de novo chorosa,
arremessa tampas e tachos).
MADALENA — Tia, janta cá?
ELISA — Sim, minha querida, meu passarinho de veludo, minha
bichinha de prata.
SIMÃO — Eu, eu.
ELISA — Meu cordelinho de céu, minha bolinha de lume.
ELVIRA (parada a ver) — A menina gosta muito deles.
SARA — Gosta mas deixou-os neste cuio de doidos, com a sua irmã e
eu a aturá-los, a olhar por tudo.
ELISA — Esta casa não é a minha casa, Sara.
SARA — Não é a sua casa? Homessa, não foi aqui que se criou, não foi
comprada pelos seus? Quem é que pagou os bragais? Donde é
que vieram os móveis e os quadros, de quem eram? E as ossadas
dos cães finos a apodrecer debaixo da relva inglesa e a baixela e
as pratas, e a cama da sua mana, de quem eram?
ELISA — Nunca foi a minha casa.
SARA — Só o monte, só os torrões das courelas e os porcos de
montado, hem, só os livros? Só é filha do seu paizinho, hem?
Bom proveito lhe fez, a jogatana e o resto.
ELISA (serena, seca) — Sara, dobra a língua nos dentes.
SARA — Sim, menina.

SARA começa a servir as crianças. LÍDIA entra. Traz uma bandeja de


prata com pétalas de rosa. As crianças comem.
LÍDIA — Já mas deu desfolhadas, melhor.
ELISA — Rosas, em Janeiro?
ELVIRA — Mas é Março, não é, menina?
LÍDIA (maligna) — A menina Elisa troca muito as voltas aos meses,
tem muitos estudos.
ELISA (cortante) — Lídia, vá mudar de bata e de avental. Bata preta e
avental branco. Crista. Luvas quando for servir.
LÍDIA (vacilante, olhando para SARA, impassível) — Como, menina?
ELISA — Bata preta e avental branco, Lídia.
LÍDIA — Sim, menina. (Sai)
ELVIRA (a medo) — Porque é que a menina a mandou mudar de farda,
menina?
ELISA — Porque ela é da casa, Elvira, nunca está bem como está.
SARA (aparte) — Mesma patorra fria do pai tal e qual. Deus lhe valha.
ELISA — Ela teve razão, fui pedante e não havia com quem. Já nem sei
com quem rosno.
ELVIRA — Não entendo o que a menina diz.
ELISA — É cedo para si e tarde para mim, se calhar. Deixe lá, são
desconversas.
SARA (na mesma) — E à alma da mãe.
MADALENA — Tia, conte uma história.
SIMÃO — Grande, grande.
ELISA — Conto. A Dama das Neves. Sara pára de regougar para dentro.
SARA — Sim, menina. (aparte) Quem não paga manda.
ELISA (rindo) — Quem não manda paga, ó Sara.
MADALENA — Conte, tia.
ELISA —

(Toda a movimentação cénica de preparos de jantar deve ficar


suspensa. Ver no entanto nota 2 p. 250).

A DAMA DAS NEVES


Era uma vez um grande demónio que vivia no mais alto
pico da mais alta serrania da terra toda. Morava ele num
castelo de penedo branco mesmo no bojo das grandes
virações da neve, lá onde não trepam brejos nem agulhas
de pinheiral. O vento andava-lhe de roda aos uivos, não
havia em muitas léguas ao derredor nem casario ou
ermida benta. E as nuvens de gelo bailavam em virações
sem fim fazendo tinir endoidado o catavento de prata da
barbacã mais soberba. Dentro do castelo que estava todo
aparelhado de bons madeiros arruçados e panos de fina lã
com traça de batidas e gamos e javardos, com céus de anil
e prados da papoila e da bonina mais subtil, havia
dispostas por todos os cómodos fornalhas ardentes de
cobre e oiro fino, lares sempre acesos todo o dia e toda a
noite. O demónio, que era da altura de três carros de
milho, luzia voz de trovão e barba ruça que lhe descia às
partes, passava os dias em roncos de penar de boca de
fogo para boca de fogo, só se aventurando ao ermo para
caçar as águias alvas e os ursos de felpa pálida. Tal se
dava somente na calmaria dos tufões de nevão. Vivia pois
ensombrado de se ver assim sem mais companhia que a
dos mais altos penhascos e abaladores ventos, mau grado
as suas lareiras de oiro e as suas camas de minério de
prata e pedras preciosas e peles de urso curtidas nesses
sempiternos fogos e os manjares de boas carnes que é o
que os demónios recebem de ração à mesa dos seus paços
retirados. Seu maior entretém era o de vaiar as grandes
águias brancas que vogavam no mau tempo até aos seus
anchos balcões e mirantes de jade, sabendo-se defesas
aos homens e aos diabos. Um dia que se achou mais
repeso de tão grande penar, abriu de par em par um dos
janelos de cristal de rocha do seu castelo de penedo alvo
e bradou bem alto aos céus turvados de neve para que o
deus das neves o ouvira, Grande Amo e Senhor das coisas
brancas, até quando a minha penada solidão? Dá-me ao
menos uma filha para que possa acompanhar-me neste
tempo sem termo, nesta morada de fogo no coração dos
sítios mais ermos e mais altos e mais frios de toda a terra.

MADALENA (aflita) — Ele morre, tia, ele morre?


ELISA — Não, minha querida, os demónios nunca morrem, coitados.
SIMÃO — E depois, e depois, tia?

ELISA — E depois, ouviu-se então o fragor de uma grande


quebra de gelos como se sete dos mil altos cabeços à
volta houvessem desabado à vez e uma voz que
esbravejava ainda mais de rijo que o reboar dos montes
esfarelados, Que assim seja, ó Filho da Neve, que se faça
em ti segundo a tua vontade. Nessa mesma noite, o
Demónio das Neves adormeceu na sua cama de oiro e pau
vermelho e peles brancas. Acordou pelo meio da noite
com um ardor pequeno no meio dos peitos e viu, à luz dos
imensos archotes e fogo aceso, que lhe estava a nascer na
pele por debaixo dos pêlos ruços, sobre o sítio do
coração, uma mancha de um branco a puxar ao azul, tal
qual um cristal de neve, assim a modos de flor. Pelos dias
que vieram, a mancha foi-se tornando em bolha fina e
dura, fria aos dedos como o cristal da rocha e
talqualmente transparente. Dentro dela estava uma menina
que ia crescendo. Tinha as mãos postas e nelas um nardo
mindinho, a cara muito desfalecida e de fina traça, os
olhos de fenda rasgados alto fechados. Luzia um toucado
de prata lavrada e uma véstia toda de seda branca
bordada a migalhas de nácar e aljôfar, tão comprida que
só se viam os pezinhos nus muito delgados ainda
translúcidos e azulados. Ao fim de três dias, quando a
menina já ia pelo menos em três mãos de altura e a bolha
chegava à cinta e à raiz da gorja da barba do demónio, ele
atreveu-se a tocar-lhe com a polpa de três dedos. O
cristal estalou em mil pedaços muito airosos que foram
esvoaçando para o chão e a menina abriu os olhos que
eram da cor das sombras na neve e muito lisos e fundos e
disse na palma das mãos do seu pai, Bom dia, Senhor Pai,
dê-me a sua bênção.

A partir de Acordou pelo meio da noite com um ardor pequeno MARY,


de vestido comprido, branco, bordado no corpete, entra, apoiando-se
no trajecto, em cena. A, o cristal estalou, deve começar a abrir,
vacilante, os braços, que podem estar totalmente abertos em, Bom
dia, Senhor Pai.

PANO

1 Isalita. Doces e cozinhados (17.ª edição).


2 M ária, M ária, tão contrária, p ara quando a tua reforma agrária? Tradução algo livre de quadra infantil inglesa. (N. do
T.)
3 De verde cavalgava o meu amor na madrugada de p rata, as mãos crisp adas baixo e um sorriso. M as a bem amada
M ary já p artira.
4 N.A. O a) Recitativo de Lídia e a b) Dama das Neves p odem ser acomp anhados de fantasias cénicas, se p ossível de
mau gosto. Exs. a) Bandeira de Israel atravessando a cena, seguida de travesti da rainha de Sabá, de braço dado com
travesti de Goebbels, ou ballet da senhora Golda M eir e os Homens do Presidente com Jacqueline Kennedy em solo de
Sulamita. b) Sugestão: tema do Abominável Homem das Neves e/ou transp lantações cardíacas (Dr. Christiaan Barnard e
o ap p hartheid); contrap onto Deuladeu M artins e Cecília Sup ico Pinto. Sugestão musical — ou Wagner ou canções
p op ulares p ortuguesas p or Amália Rodrigues.
II ACTO

Uma casa de jantar sumptuosa tão fechada quanto a cena possa


permiti-lo. Nenhuma presença de janelas ou sugestão de luz exterior.
Pode insinuar-se, por exemplo, que tudo se passa no interior de uma
imensa caverna fortemente luminosa. De uma das estalactites
colossais penderia então sobre a mesa grande lustre de vidrilhos e
pingentes, todo aceso. Durante todo este acto, o lustre treme com
grande fragor cada vez que é pronunciada a palavra poder. A mesa
muito sólida, madeira negra, patas de animal heráldico, muito longa,
rectangular ou trapezoidal está posta para sete pessoas — cristais,
rosas e cravos e jacintos de oiro, candelabros oiro, bases de prato em
mesmo, lavabos, etc.. O restante espaço cénico deve ser tão nu quanto
possível. Estar-se-á pois diante de uma boca de cena tão fechada
como a do I ACTO, mas de um grande fulgor sobre um fundo de
sombras variáveis ou simplesmente negro. Depois de uma pausa há-
de irromper muito alto a Abertura do Amor Industrioso (Souza
Carvalho. Escola de Vila Viçosa). A par e par vão entrando
sorridentes FREDERICO e a MULHER do CASAL AMIGO II, MARY e o
MARIDO DO CASAL AMIGO II o CASAL AMIGO I e, por último ELISA, a
coxear. Os homens estão de gravata e fato inteiro e as mulheres
assim:
MULHER CA II — amatronada, chanelizada, coifa lacada, muitas
correntinhas amarelas.
MULHER CA I — Interessante e nervosa. Calças ou saias fluidas. Pode
trajar vermelho. Sacode muito os cabelos que mexem.
MARY — Réplica exacta do vestido branco do I ACTO, só que em
amarelo-ovo. Quando de pé, vacila. Sentada dá a impressão pelos
movimentos da cabeça e tronco, de ir de viagem em bacalhoeiro sem
estabilizadores. Não exagerar.
ELISA — Está na mesma.
Dispõem-se em torno da mesa pela seguinte ordem:

Sentam-se sempre sorridentes, tendo portanto que aguentar o esgar


durante muito tempo, hirto, excepto ELISA que se senta muito mal à
mesa, apoiando-se uma bochecha no cotovelo até à deformidade da
cara que não sorriu nunca, perna cruzada em T e pé agarrado,
sugerindo incómodo debaixo da bota. FREDERICO e a MULHER CA II
empernam imediatamente. O Amor Industrioso estaca abruptamente e
entra LÍDIA farda preta, crista e luvas, que se vai postar de pé atrás
da cadeira de MARY. A sopa está servida. Começam a comer.

MULHER CA I — Ziza, que é que a menina tem no pé?


ELISA — Uma bolha
FREDERICO — A montanha vai parir um rato. Porque é que não anda
descalça?
HOMEM CA I — Porque todos morreram calçados. (Riem muito, excepto
ELISA. LÍDIA sorri, discreta.)
MULHER CA II — Eles em Saint Tropez andam.
ELISA — No ano em que a minha avó cheirava dos pés,
FREDERICO — Ah não, poupe-nos o passado, estamos todos mais
interessados no futuro, a situação presente é de mudança, de
expectativa mas de óptimos prenúncios.
MULHER CA II — Há um astrólogo que diz que vai haver um tremor de
terra, só lhe digo que tenho um medo.
FREDERICO — Tudo vai mudar, há um novo estilo de relações de
trabalho, de organização do poder (o lustre treme), mesmo o
governo,
ELISA — É segredo do Lúcio.
HOMEM CA I — Não é difícil de prever. Lisboa está assente sobre uma
zona sísmica.
HOMEM CA II — Todos os novos projectos de construção têm isso em
conta. É sempre possível e cada vez mais racionalizar a
urbanização, a organização dos espaços, a Suécia,
MULHER CA II — Ai mas suicidam-se imenso, acho que é falta de fé,
vocês viram o Silêncio do Bergman?
HOMEM CA II — Claro que há abusos que são cometidos pelos patos
bravos, distorções dos cálculos quer de engenheiros, quer de
propostas dos arquitectos, é absurdo que se tenham demolido
áreas imensas,
MULHER CA II — Ai vimos em Paris, achei tristíssimo, o mais
deprimente que há.
HOMEM CA II — de tecido urbano para construir uma proliferação
irracional de mamarrachos sem carácter.
CASAL AMIGO I — Horríveis.
ELISA — Joaninha avoa avoa que o teu pai está em Lisboa. (Pausa
curta). É da Confidente.
MULHER CA I (rindo) — Ai ó Ziza que disparate, a menina está de todo.
FREDERICO — Mas pouco.
ELISA — Disse o porco ao espinho.
MARY — Mas ontem veio cá uma mulher que trazia um xaile pela
cabeça e que morava numa barraca, disse ela.
FREDERICO — E o que é que a menina lhe deu, um restinho de chanel e
vinte cinco tostões?
MARY — Ela tinha o marido no hospital porque um dia de manhã tinha-
lhe dado uma grande dor no fundo das costas,
HOMEM CA II — Mas isso é o coccix, ó Mary (ri-se muito).
MARY — e uma das filhas foi pedir água quente a uma vizinha para pôr
numa botija de água quente porque a botija de gás que eles tinham
para o fogão de duas bocas tinha-se acabado e como ele estava
sem trabalho há umas semanas numas obras,
HOMEM CA I — Ah é horrível toda esta miséria que decorre de uma
péssima política de parques industriais, da centralização abusiva
e desplanificada do poder (o lustre treme), a irracionalidade da
gestão dos recursos,
FREDERICO (à MULHER CA II) — Natália, a menina está lindíssima hoje.
MARY — e mesmo assim não lhe passou e parece que ele gritava tanto
que se juntou muita gente do bairro,
MULHER CA I — Elisa, onde é que a menina comprou essa túnica, é uma
beleza.
ELISA — Na caverna dos quarenta ladrões.
MARY — e então foram chamar uma ambulância que levou muito tempo
a vir e que não quis chegar-se lá ao pé porque havia muita lama e
muitos buracos,
MULHER CA II — É uma boutique?
MULHER CA I — Ai eu adorava ter ido para medicina, mas o pai achava
que era péssimo para raparigas por causa das aulas de anatomia e
isso tudo.
HOMEM CA II — Notem que eu acho que é um preço que se paga sempre
em qualquer sociedade livre altamente organizada, uma espécie
de excedente de mão-de-obra que tende a agrupar-se de forma
caótica, na periferia dos centros de poder (o lustro treme),
comparável afinal aos excedentes de produção experimentalmente
aplicados na produção de novas unidades e até na investigação,
nos Estados Unidos, por exemplo, as minorias que se agregam em
novos padrões sociais extremamente dinâmicos,

ELISA descalça-se e começa a examinar a bolha.

FREDERICO (a ELISA) — E Diotima disse-lhe que sendo o Amor filho de


Poros e de Pénia, é sempre pobre, duro, seco, sem sapatos, sem
domicílio.
MULHER CA II — Ai ó Ziza, que disparate, à mesa.
MARY — porque eles não tinham nada com que pagar.
ELISA — Vá à bardamerda. (A MULHER CA II levanta-se ELISA
acrescenta para FREDERICO) Sócrates. (A MULHER CA II senta-se,
volta a empernar).

FREDERICO — Sempre exacta, a minha querida cunhada.


HOMEM CA II — De cada vez que vejo a pequena a acho com um
comportamento mais estranho, vocês não acham,
ELISA — O seu filho ainda rouba hondas ou já passou aos mini?
MULHER CA I — Acho a coisa mais deprimente que há, viver sozinho,
não sei como é que a menina consegue, Elisa.
MARY — e então fizeram-lhe uma espécie de maca com um cobertor de
papa e dois paus de vassoura e foi assim que lá o levaram.
ELISA — Mais vale só que na companhia do gás.
HOMEM CA I — Ó Ziza, mas a menina era diferentíssima, do mais
animado que há, com imenso charme,
ELISA — Você não estará a fazer confusão com a Scarlett O’Hara que é
mais do seu tempo?
HOMEM CA II — Tem-se imensa responsabilidade, imensa
responsabilidade, há um clima de desagregação, a própria Igreja,
MULHER CA I — Vinte e três é uma idade horrível, tem-se imensos
problemas sentimentais, depois,
MARY (sorrindo muito terna para Elisa) — Ela vai só fazer vinte e
dois. Que horas são?
MULHER CA II — Ah isso é e nós estávamos muito mais protegidos, não
havia tantas coisas imorais, os cinemas e assim.
MULHER CA I — Não é que a menina não esteja à mesma giríssima,
Ziza, mas não era de todo assim agressiva.
FREDERICO — Que inquietação do fundo nos soergue?, o desejar querer
poder. (o lustre treme).
CASAL AMIGO I — Ai isso é do Fernando Pessoa.
ELISA — Anotado pela tia.
MARY — Quem?

LÍDIA começa a tirar os pratos da sopa.

FREDERICO — Era um senhor que vivia num hospital na África do Sul.


MULHER CA II — A sério, viveu mesmo?
HOMEM CA II — Só se vem na arca, nas coisas recentes.
FREDERICO — Mary, não vai beber isso tudo de uma vez.

MARY levanta-se com um copo cheio na mão, bebe-o todo e atira-o


para trás das costas onde vai estilhaçar-se. O CASAL AMIGO I aplaude
muito.

HOMEM CA I — De qualquer dos modos a planificação económica


ocidental só se começa a fazer a sério depois dos russos a
fazerem.
MULHER CA II — Mas você acha que os russos são felizes? A mãe foi
num cruzeiro o ano passado, acho que passaram no Bósforo, ou
assim, depois da Bretanha e de estarem em Riga, que adoraram,
acharam os russos o mais triste que há.
MARY — Quem?
MULHER CA II — A mãe, foi com o tio Manuel, que lhe tem feito imensa
companhia depois da morte do pai.
ELISA — O amante dela?

Riem todos excepto CASAL AMIGO II.

HOMEM CA II — Acho isto inacreditável, Frederico, a mãe,


FREDERICO — Não exagerem, pelo amor de Deus, Alfredo, a menina
sabe lindamente que toda a gente sabe, Natália, a sua mãe tem
todo o direito de refazer a sua vida, em que século é que vocês
vivem?
MULHER CA II (recomposta, meio sorriso) — Acho péssimo estas
modernices, mas eles acharam que a Rússia,
ELISA — Principalmente porque eles fornicavam desde os treze anos, ai
adoro histórias de primos.
HOMEM CA II levanta-se.
HOMEM CA II — Frederico, desculpa, esta pequena está a exceder-se.
FREDERICO — Senta-te, meu caro, pensa que é o de Gaulle em sessenta
e oito. Elisa, o seu pai devia-lhe ter proibido o Nabokov.
ELISA — O meu pai devia-nos ter proibido você.
MULHER CA I (rindo muito estridente) — Il est interdit d’interdire.
MULHER CA II — Mas vocês deviam tratar esta pequena.
LÍDIA entra com uma grande travessa impressionante — O PATO
IMPERIAL. HOMEM CA II volta a sentar-se. LÍDIA vem à boca da cena,
em frente à mesa, sempre com a travessa nas mãos e diz o seguinte:

II RECITATIVO DE LÍDIA

Caldeiras e caldeirinhas rendas e folhos


Deus lhes dê tanto assento que eu lhes fure os olhos
Hei-de usar luvas para agarrar as mãos
hão-de ser meus os zimbórios e as velas
não deixo pelo chão um só cabelo
hão-de apanhá-lo com a língua
Também não fico por aqui, olá
a minha casa há-de ser no alto dos ventos
quem se lá atrever sai ardido
pelas furnas de um cabeço marujos e tudo
hei-de ter ilhas a boiar nos mares
e as saídas dos rios presas
e que viva a força e que viva a força
Eles aqui ficam eu não vendo nada
tão barato aos usos
Vou passar um rei à língua sem deixá-lo pôr-se
que assim se caga de alto, olá
E se vai e se vai
quem não quer paredes vai ter os palácios
e que viva a raça de quem morde mais
Caldeiras e caldeirinhas rendas e folhos
Deus lhes dê tanto assento que eu lhes fure os olhos

TODOS (excepto ELISA) — Lindíssimo parto, que maravilha de arranjo.


ELISA — Operação Nacht und Nebel.
MULHER CA I — Que lindo, Elisa, Noite e Névoa, é do Goethe?
ELISA — Não, é do Himmler.
FREDERICO (a ELISA) — Está a ver do que a Sara é capaz sem ter visto
o Visconti, ponha os olhos nesta travessa, Elisa.
ELISA — Chamo-me Belisa, não me chamo Santo Luzia.
FREDERICO (trinchando o pato, habilmente) — Só cá faltava o Lorca.
ELISA — Frederico há só um, esquartejado e mais nenhum.
HOMEM CA I — Elisa, a menina tem um senso de humor espantoso, mas
é macabra.
FREDERICO — Uma cabra.
MULHER CA II — Vocês hoje estão péssimos.

MARY levanta-se, vacila muito, bebe novo copo até ao fundo, atira-o
para trás das costas, estilhaços, aplausos do CASAL AMIGO I.

MARY — Tomai e bebei, este é o meu corpo.


FREDERICO — Mary, sente-se.
MULHER CA II — Acho dum mau gosto.
HOMEM CA II — Fred, há certos limiares de blasfémia,
ELISA — Bloody Mary.
HOMEM CA I — Embora o álcool, quando usado com moderação, seja
um excelente sedativo, descontritor vascular, tónico, todas as
sociedades civilizadas,
ELISA — Minha irmã, vossa esposa.

MARY deixa-se cair na cadeira.

MULHER CA II — Mas a mãe disse que tinha achado os russos com um


ar tristíssimo, pessimamente vestidos, as lojas sem nada de jeito.
HOMEM CA I — Isso não é bem assim, há evidentemente escassez de
certos bens de consumo e uma grande restrição às liberdades
individuais, mas acho que eles estão a recompor-se do
estalinismo e, ao fim e ao cabo, o grau de atraso em dezassete,
MARY — Dezassete quê?
FREDERICO — Mary cale-se.

LÍDIA começa a servir pela ordem natural destas coisas.

MULHER CA I — Eu não percebo nada de política, acho que todos os


políticos querem o poder (o lustre treme), mas acho que não
devia ser de todo difícil organizar as coisas de forma a que as
pessoas não tivessem fome nem frio, claro que há pessoas mais
trabalhadoras que outras e isso tem que ser sempre
recompensado, mas eu acho que é incrível que se façam tantos
armamentos modernos e imensos filmes caríssimos e haja
imensas pessoas a morrer de fome. Agora não acho de todo é que
seja preciso revoluções e violência, acho que a educação e o
valor da caridade e do respeito pelos outros,
HOMEM CA II — Que aliás é a base das democracias ocidentais mais
autênticas.
MARY — Onde, onde?
FREDERICO — Cale-se Mary.
MULHER CA I — eu acho que isso bastava para as pessoas serem
felizes. Mas eu, por exemplo, adorava ir à China, acho que lá eles
resolveram imensos problemas e adoro coisas chinesas.
MULHER CA II — Ó Simone, a menina sempre ficou com aquela cadeira
de charão e madrepérola que havia na casa da sua avó? Era uma
beleza.
FREDERICO — O Tao que pode dizer-se não é o Tao eterno. O nome que
pode ser nomeado não é o nome eterno.
MULHER CA I — Fiquei. A Luísa também a queria, mas eu aí fiz valer os
direitos de mais velha (ri muito).
ELISA — Como ele é besta, como ele sabe de mais para aquilo que é,
nunca mais leio nada na vida, nunca mais.
HOMEM CA II — De qualquer dos modos, a transição para a democracia
num país primitivo como este tem que ser feita com luvas. Acho
adequadíssimas medidas como as das conversas ao serão, criam
uma certa familiaridade com o exercício do poder (o lustre
treme), as pessoas apercebem-se até pela incompreensão, da
complexidade dos problemas com que se debate o país depois da
ditadura.
ELISA — Depois, sua abécula?
FREDERICO — Elisa, não me faça lembrar-lhe que está à minha mesa.
ELISA — A metade do meu lado é minha e os talheres também e olhe
que o pato não sei. A lógica é vossa.
MULHER CA II — Mas o Salazar tinha imenso estilo. O pai achava que
ele escrevia lindamente.
HOMEM CA I — Sim, mas já não se pode governar daquela maneira, com
aquela distância de tudo, foi a desdinamização total de imensos
sectores, mesmo o investimento estrangeiro,
HOMEM CA II — Bem, isso depende dos sectores, repare como se
utilizou a mão-de-obra em indústrias de precisão.
MARY — Precisão de quê?
FREDERICO — Mary dear, oiça.
ELISA — O que é que você tem medo que a minha irmã lhe diga? Não
vê que ela não tem com quê?
HOMEM CA I — É evidente que eu reconheço que o homem ti-nha
qualidades de personalidade imensas, quebrou todos os inimigos,
ELISA — Próximos.
HOMEM CA I — Sim mas os outros, sabe muito bem que o que querem é
impraticável na nossa situação geopolítica, agora não me venham
dizer que a liberalização do regime, só por si,
MULHER CA II — A mãe diz que lá a maioria das igrejas são museus, dá
imensa pena.
HOMEM CA II — Dizem que aquele tipo que está no planeamento é um
bocado socialistóide. Isto pode ser uma crise muito grave. Vocês
verão.
FREDERICO — Bem se vê que moras no Restelo, Alfredo.
ELISA — Ter família na Lapa sempre é outro resguardo, lá isso.
MULHER CA I — Eu acho que os estudantes também fazem imensa
confusão. Era tão preciso agora que houvesse pessoas
competentes. Dou imensas graças a Deus por não ter nenhum
pequeno na Faculdade e tem-se sempre aquele horror da guerra.
ELISA — Que é que você quer que lhes aconteça em Timor, que lhe
tragam um leque feito de pêlos do cu de um javali?
MULHER CA I — Em Timor?
ELISA — Sim, com o seu pai a almoçar com o Santos Costa para onde é
que você queria que eles fossem?
FREDERICO — Elisa, o seu pai comia em casa dos Mello.
ELISA — E vai que não comia as Mellas sem ter que lhes pagar nada.
FREDERICO — Eu também não pago às,
ELISA — Pensei que você fosse um gentleman, mano.
MULHER CA II — Ó Ziza, a menina ainda é praticante?
ELISA — Hoje não, estou menstruada.
MULHER CA I — Nós discutimos imenso ao princípio, por causa da
educação dos pequenos. Mas eu hoje acho que de facto é óptimo
que eles sendo bem formados escolham por si, com toda a
liberdade, quando são mais velhos, e acho que o exemplo conta
imenso.

LÍDIA, que acabou de servir o pato volta a postar-se detrás de MARY.


MARY vai levantar-se com novo copo na mão, dá pela presença de
LÍDIA, pára, vacila mais.

FREDERICO — Sente-se, Mary.


MULHER CA I — Acha que ela faz aquilo por causa dos Romanoff? (ri-
se muito).
MARY — Agora quero fazer um discurso.
CASAL AMIGO I — Ai acho lindamente.
CASAL AMIGO II — Ó Mary veja lá.
ELISA — Acho que ela faz isso por causa dos mujiques.
FREDERICO — Acho bem, quando fala muito vomita sempre.
ELISA — Quer que eu lhe agarre na testa antes ou depois, mano?
MULHER CA I — O que é os mujiques? Ó Elisa a menina tem tanta
cultura, é uma pena.
FREDERICO — Eu posso bem com a minha testa, Elisa.
MULHER CA II — Ó Frederico, veja lá, a Mary.
ELISA — Descanse, Ema, a minha irmã também não leu o Flaubert.
MULHER CA II — Mas eu não me chamo Ema.
ELISA — Não? Mas olhe que o meu cunhado tem imensa vocação
crismática, admira-me.
HOMEM CA I — A Elisa faz-me lembrar imenso Maio sessenta e oito,
cita tanto.
ELISA — É, mas o gado é mocho.
FREDERICO — Elisa, deixe a sua irmã falar.
ELISA — Dá jeito, dá, isto está tão político.
MARY — Eu quero fazer um discurso.
FREDERICO — Faça, filha, faça, mas não faça no chão.

(MULHER CA II ri-se muito).

DISCURSO DE MARY

Durante o pronunciamento desta fala, que deve ser muito flat1,


poderá ouvir-se o Rondo de Mozart em ré maior 382, ou o Abril em
Portugal, orquestração de Thilo Krassman. Numa direcção de cena
deveras audaciosa, o Adagio Cantabile da sonata para piano n.º 8 em
dó menor opus 13, de Beethoven.

Quando eu nasci eu só queria viver acho eu mas nunca


ninguém me quis. Eu sei que a maioria das pessoas não se
querem bem, bem vejo. Mas ao menos algumas vezes
sofrem umas pelas outras durante um tempo. Nunca
ninguém sofreu por causa de eu existir. Também há
pessoas que têm outras agarradas porque lhes cheiram tão
bem ou sabem na pele como nenhuma outra. Quando eu
nasci só me lembro que começaram logo a dizer que eu
era muito bonita mas não me lembro de terem pegado em
mim como se eu fosse melhor cheirasse melhor ou
soubesse melhor que qualquer outra coisa. Eu queria fazer
um discurso a dizer que o que me aconteceu não é nada
justo. Eu gostava muito de ter sido alguém. O único cão
que me lambia mais até morreu de sarna. Não era feio
nem bonito mas era o meu cão. Quando os meus filhos
nasceram eu estava a dormir. Toda a gente disse Dê cá
que eu visto. Eu sei que não sei muito bem fazer as coisas
com as crianças foi melhor assim. O Frederico casou
comigo porque o pai tinha muito dinheiro e também
porque achava a mãe como uma deusa foi o que ele disse.
Nunca ninguém me viu como se eu fosse de alguém. Um
dia destes eu fecho os olhos paro de respirar muito quieta
de pé e as pessoas vão ter só bastante pena porque eu
mereço isso. Mas no fundo ninguém dá por nada. Eu
queria também dizer que ninguém tem culpa nenhuma e
pedir muita desculpa de os estar a incomodar. Mas esta é
que é a verdade. Também queria dizer que se algum dia
alguém gostasse muito de mim eu não sabia o que havia de
fazer porque eu não sei como é que se prefere excepto
aquele cão que eu disse que me preferia. E eu também não
soube o que é que havia de lhe fazer porque não se pode
coçar um cão melhor do que ele se coça. Era isto que eu
queria dizer. Que tenho muita pena e que acho que não se
deve viver assim.

Pausa. Estão todos a bichanar excepto Elisa que tem um punho na


boca. Lídia começa a sair com os pratos.

HOMEM CA II — Não acha que a Mary devia ir deitar-se, Frederico?


ELISA (aos berros) — Ela ainda agora se levantou, sua besta.
FREDERICO — Elisa, não se exceda. A sua irmã tem de facto mais
pudor.
ELISA — Ó espécie de Marylinda.
MULHER CA II — Eu acho que a Mary não está de todo bem, devia ir
descansar um tempo à Suíça ou assim. A minha cunhada Teresa,
por exemplo teve uma crise,
ELISA — A sua cunhada Teresa é vesga e droga-se com aspirina há dez
anos.
FREDERICO — E a sua irmã está bêbeda, Elisa. Vá-se deitar Mary.
MARY — Não quero ir para a cama.
FREDERICO — Isso sabe-se por toda a Lisboa, dear.
HOMEM CA I — Vocês tem ido ao cinema?

MARY senta-se de baque.

ELISA — Frederico porque é que não faz um discurso?, fazia-lhe bem à


sarna.
MULHER CA II — Ai adorei a Abelha na Chuva.
FREDERICO (pesaroso) — Olhe que os galgos também se abatem, Elisa.
ELISA — Só depois do Outubro dos perdigueiros, sossegue.
MARY — É do Fernando Pessoa?
HOMEM CA I — Quem?
MARY — A abelha à chuva?
ELISA — Não, é do Fernando Castello Lopes.

FREDERICO ri-se muito. O CASAL AMIGO I também.

ELISA — Inda lhes cai alguma acção.

LÍDIA entra com a sobremesa.

MARY (pomposa, pastosa) — É um bavarois de chocolate.


MULHER CA II — Ah um bavarois de chocolate.
MULHER CA II desemperna, levanta-se lesta e declama o seguinte texto
sorrindo muito enquanto Lídia serve:

BAVAROIS DE CHOCOLATE2
Desfazem-se 250 gramas de chocolate com 250 gramas de
açúcar e uma pouca de água; quando o açúcar estiver bem
derretido, tira-se do lume e juntam-se-lhe quatro gemas e
seis folhas de gelatina derretida e deixa-se arrefecer.
Estando frio, junta-se-lhe meio litro de natas batidas e
mete-se dentro de uma forma com feitios, molhada com
água. Põe-se a gelar um bocado e serve-se.

MULHER CA II volta a sentar-se, emperna. JOSÉ OOM entra, tropeçando


na obscuridade, vindo dela. Vem de blaser e lenço bojando do colo
aberto da camisa, a rir muito. É um rapaz bem parecido, de nariz
muito pequeno, gestos à beira dum desgraçado mas não desgracioso
equívoco. Beija as mãos às senhoras, inclusive ELISA, os olhos postos
em FREDERICO. Muitos OLÁ VIVA.

JOSÉ OOM — A Sara abriu-me a porta, ela sabe que eu adoro bavarois
de chocolate, adoro.
FREDERICO (a ELISA) — Deus os derrete, Deus os junta, Diotima.
ELISA (cansada) — Aqueles que são fecundos segundo o espírito,
Sócrates.
MARY — Quem?
HOMEM CA I — Está óptimo, Mary, parabéns.
FREDERICO (a ELISA) — Minha irmã, nossa viúva.
ELISA — Poça, distraí-me.
MULHER CA I — Lembro-me lindamente da sua mãe fazer este bavarois
com nozes, Mary.
ELISA — Tout est bien qui finit mal. Um dia hei-de escrever um livro
fêmea, todo por dentro.
JOSÉ OOM (inquieto, a boca cheia, ainda não olhou para MARY) — O
quê, o que é que acaba mal?
MULHER CA I — Ó Zé, o menino viu em Paris aquele filme do Bergman,
o Silêncio?
JOSÉ OOM (na mesma) — Ai adorei, só lhe digo.
CORTINA

1 Chata. — N. do T.
2 Isalita. Doces e cozinhados. 25.ª edição.
III ACTO

A mesma cozinha do I Acto. Todos os sinais de fim de azáfama. Pratos


sujos, tachos e panelas usados empilhados em cima da bancada. SARA
abre e fecha gavetas com grande alarido e sanha, ELVIRA põe sopa em
três pratos na mesa pequena. Toda a cozinha deve ter um ar
desalinhado mas não sujo, de máquina em andamento em full a
começar a abrandar.

SARA — Rais parta o dianho, mas onde é que eu larguei o abre-latas,


carago.
ELVIRA — Mas para que é que a menina Sara precisa do abre-latas?
SARA — Para que é que eu preciso do abre-latas?, para abrir uma porra
de uma lata de nozes, que eles hão-de mamar a outra taça toda e
acabaram-se-me as nozes (Abre um armário de onde tira uma
garrafa que desarolha, bebe pelo gargalo, fecha, torna a
guardar, suspira alto). Ai eu.
ELVIRA — Mas a outra taça não levava nozes, menina Sara.
SARA — Não levava nozes? — espera, tu tens razão, eu neste não pus
nozes. É isto, já não sei o que ando a fazer, estou velha, é o que é,
varre-me tudo da ideia, (choraminga) esta casa vaza-me o tino, é
o que é.
ELVIRA — Fartou-se de lidar, estava tudo tão lindo, venha agora comer,
menina Sara, há-de ser da fraqueza, eu depois ajudo-lhe à loiça.
SARA — Tu tens é que ir para o pé do teu homem, rapariga, tens lá o teu
pai e o teu filho à espera, despachas a conversa com a tua irmã
enquanto comes, que já me deitaste aqui uma boa mão. Tomara-te
eu cá ter-te todos os dias (Assenta-se, pesada). Isto antigamente
era outra loiça. Pra começar, quando eu era ajudanta, em vida da
menina Carminha, éramos duas, ainda na casa da mãezinha dela.
Ei carago, eu nem sabia picar um alho, na da minha mãe era
despi-los e andor prò tacho, depois pra cada perdiz estufada era
meia dúzia de mãos a depená-la, na herdade, tudo na morna.
Agora aqui, ao primeiro inda só davam jantares no dia da mulher
a dias, agora é duas e às vezes três vezes por semana, parece a
sopa do sidónio mas de alho porro para cima, ouvistes? (Ri-se,
bate nas coxas, começa a sorver a sopa). E como a tua irmã é
muito fina para pelar uma batata, a Sara que alombe.
ELVIRA — A menina Sara já devia de estar ao pé dos seus, a descansar
de tanta lida.
SARA (picada) — Quais meus nem teus, pra vir para aqui alguma lontra
esbarrondar-me o que me custou tanto a estimar? Ná, eu só digo é
que se a de fora é só de quartos, que ela nem sequer o comer aos
meninos dá, devia de haver uma ajudanta prà cozinha, é o que é,
que eu já lho disse a ele, mas ele disse-me que chamasse a mulher
a dias quando fosse precisa, eu sei lá estar a telefonar.
ELVIRA — Podia pedir à minha irmã.
SARA — A tua irmã, a tua irmã. A tua irmã é gado de outra ferra, quanto
menos eu lhe pedir melhor. Olha lá, ó rapariga, mas tu não
comes?
ELVIRA — Estava a ver se a minha irmã vinha.
SARA — Isso, bem podes esperar, ela enquanto não lhes sorver o
parlatório todo para o ir meter no cu de quem não deve, não
descansa.
ELVIRA — Vossemecê tem que le ter paciência, ela não o faz de mal.
SARA — Aquela? Há-de acabar por te virar a cara na rua. Ouve bem o
que te digo, rapariga, vocês nem parecem filhas do mesmo pai e
da mesma mãe.
ELVIRA — Ela veio de cachopinha para casa da madrinha, tem outros
princípios.
SARA — E olha que não foi para bons fins, essa to garanto.
Entra LÍDIA com uma taça de doce, vazia, que poisa na bancada.

LÍDIA — Senhora Sara, é preciso mais doce.


SARA — Vai ao frigorífico e tira-o.
LÍDIA — Isso não é do meu serviço.
SARA — Atão vai lá dentro e diz-lhes, carago, não vês que estou a
comer a sopa?

LÍDIA, de mau modo, tira do frigorífico nova taça de doce, vem ao


centro da cena e, a taça nas mãos, diz o seguinte

PARÁBOLA DE LÍDIA1

Os mendigos bateram à porta. A criada abriu. Eles


estenderam as mãos. Ela foi lá dentro. Avisou. Vira sinais
de lobos pelas herdades. Soltaram os cães. Os lobos
mataram os cães.

LÍDIA sai.

SARA — Estás a ver?


ELVIRA — Vossemecê desculpe, menina Sara, ela não o faz de mal.
SARA — Era só o que me faltava, aquela marafona vir-me ensinar o
serviço. Estou nisto há quarenta anos, ouviste rapariga, inda tu
não eras nascida já eu sabia qual era o meu lugar.
ELVIRA — Vossemecê nunca quis outra vida?
SARA — Não, nem me dou mal com esta se não me vierem estas curtas
atentar, que a gente olha para elas ao Domingo e já não sabe quem
é a patroa nem quem é a senhora, não queiras tu sapateiro tocar
rabecão.
ELVIRA — Ela é nova, menina Sara, se a menina puxar por ela.
SARA — Ná, já são outros cordelinhos a tangê-la. Vê lá se a ti te dá
para aquilo.
ELVIRA — Tive outra criação.
SARA — Tens mas é outro tino. Olha lá, sempre vais levar o teu pai de
casa?
ELVIRA — A gente inda não sabe, era disso que eu vinha falar com a
Lídia.
SARA — Pois olha, tira daí o sentido, que ela já disse que ele está bem
ou na da tua irmã ou no asilo. Aquilo quer lá saber do seu sangue.
ELVIRA — Deixá-lo, eu ainda falo com ela, se ela ajudar com pouco
que seja a gente pode bem.
SARA — Tu lá sabes da tua vida.

LÍDIA entra com a taça de doce vazia.

ELVIRA — Não tens fome, Lídia?


SARA — Só se está rota, encheu-se de pão com nozes eram seis horas.
LÍDIA — Veja lá se foi você que as pagou.
SARA — Nem tu, calaceira.

LÍDIA volta a sair com uma grande bandeja de prata para o café,
máquina de balões, chávenas, açucareiro alto. SARA suspira
profundamente.

SARA — Ai eu.

ELVIRA levanta-se com os dois pratos da sopa, o dela vazio e o da


irmã, cheio, em direcção à bancada. Vai ao fogão, onde verte o da
irmã de volta à panela. Tira a carcaça de um pato que traz para a
mesa. Pára em pé.

ELVIRA (compadecida) — Vossemecê não come mais sopa, senhora


Sara?
SARA — Não me dês senhorio, rapariga, que não me faz preciso.

ELVIRA continua de pé, as mãos no peito, olhando em volta, como


estranhada.

SARA — Que tens tu, rapariga, assenta-te para te despachares e ires


para casa, olha que já há-de ir para as dez.
ELVIRA — Não sei o que tenho, é como um peso aqui. Parece-me que
está tudo a ficar sem bulir, que estamos aqui as duas sozinhas no
fim do mundo.
SARA — Credo, rapariga, tu também não és certa. (Pára. Olha em
volta, à escuta). Tu tens razão mulher, anda aí alguma a preparar-
se, tenho o coração repeso. (Pausa novamente. Recompõe-se,
começa a talhar no que resta da carcaça do pato). Ná, deve vir
mas é aí chuvada grossa, não te despaches não, que a apanhas
pelo caminho. Olha se eu não tinha forno para os três.
ELVIRA (Ainda a olhar para o alto, receosa) — Três quê, menina Sara?
SARA — Três patos, rapariga, pato só é manjar de dama com fastio, já
lá dizia o meu primeiro patrão.
ELVIRA — Quem era, menina Sara?
SARA — O avô das meninas, que era um latagão capaz de enfardar
quatro perdizes ao almoço, seguido de papas queimadas.
Elvira — Escute, senhora. (Elvira ainda não se sentou e levanta agora
uma mão a pedir silêncio, à outra que atenda. Nessa postura,
recita então a seguinte:)

ORAÇÃO DE SAPIÊNCIA

Quando o teu coração to disser poupa as tuas vísceras à


ingestão de alimento, água ou animal morto e escuta a
preparação dos ares para grandes coisas. Eu sou a que
olho os livros apertados por milhares nas suas altas casas
e a minha cabeça verga-se até ao pó, pois eis-me diante
do espaço do sagrado que me é vedado como o suporte da
hóstia o é a estes dedos que as larvas hão-de rilhar e a
acidez das terras carcomer. Mas soergo aos céus esta
cabeça adornada de um rolo espesso que nenhuma lâmina
profanou e posso predizer do ribombar das nuvens
inchadas e obscuras, sei afastar-vos pela noite dos lugares
que lumejam azul inexplicavelmente, sei escutar no balir
da ovelha o termo da sua prenhez e o andamento da seca.
Posso pegar numa raiz podre e dar-vos aviso do que lhe
foi escasso ou sobejou, num torrão de terra e dar-vos
conto de quantas sementes serão logradas de um só grão.
Posso dizer-vos, Está aqui o tempo de ir pelas romãs, no
cheiro da várzea, da pernada da glicínia. Pelo dorso de
um cão especado posso saber-vos a quantas léguas
ciranda o lobo novo, quão ancha é a raposa, reconheço na
noite os olhos do mocho e do gineto, no divagar de um
sapo e seu destino sei predizer-vos a precipitação das
chuvas de amanhã e o sabor das uvas gradas a três luas de
distância nas bagas ainda diminutas sob a parra sulfatada
de fresco. O meu corpo, aparelho húmido de bocas
tumefactas e prontas que não esqueceu passagens de
monções e pestes e desertos e travessia dos mares sobre
torrões fumegantes saberá emitir face a eles os perfeitos
juízos e os urros mais antigos, oh quanto afogamento,
quanta sede, quanta imensidão a atravessar, dai-me as
árvores olorosas e nuas que sugam os grandes pântanos e
as chagas dentro aos bofes, dai-me a deslocação
voluntária das chuvas, a ciência da paz, as barcas e as
redes e a destinação. Eu sei cheirar, do corpo, ao exalar o
medo do que ignoro e não domino e eu e a terra vamos
abraçadas contra a morte, tão frágeis e indómitas. Sei
temer e vergar qual caule ou carne viva onde vós estais
distractos e metálicos estalando na esventração dos
nomes, simulação de pele férrea que são as vossas letras
sem escritura no chão, escamas rutilantes contra esta pele
dos caules e animais sofrentes, outro chão, na pele do
chão, suspensos por um fio da minha fala a zumbir entre
as estrelas mais que razão curta, a consciência toda, a da
dor e prazeres, imortal.

Quando ELVIRA acaba, a cena começa a tremer. Há primeiro o tinir de


vidros e metais, um ronco surdo relativamente crescente, alguns
cobres e barros tombam de cima dos armários. Pilhas de pratos e
tachos desmoronam-se. Ouvem-se gritos dentro. SARA segura a
travessa do pato contra o peito e benze-se com a outra mão. ELVIRA
permanece com a mão de aviso no ar. Não parecem demasiado
assustadas.

ELVIRA — Que é isto, ó menina Sara?


SARA — É um abalo de terra, mulher, só me faltava mais esta, olha os
cacos, Jesus nos valha.

Entram todos os presentes no II ACTO, excepto ELISA. As mulheres aos


gritos, excepto MARY que vacila procurando o apoio das paredes e
mesas. Os homens dão manifestas provas de descontrole. JOSÉ OOM
vem de gatas seguido de LÍDIA que o galga gritando mais que
qualquer outra, a bandeja de prata vazia numa das mãos. Berram
todos quase ao mesmo tempo.

HOMEM CA I — É preciso encostar-se a uma empena, onde é a empena?


FREDERICO — Sei lá onde é a empena, esta zona é sólida, é do século
dezoito.
MULHER CA I — Ai os meus queridos filhos, ai, ai.
HOMEM CA I — Vão cair telhas em cima dos carros, você lembra-se
onde é que eu arrumei o carro?
HOMEM CA II — Deus tenha compaixão de nós, são testemunhas de que
eu ofereço um ano de missas, são testemunhas.

MULHER CA II desmaia. Sara segura-a e abana-a com o avental. JOSÉ


OOM está debaixo da mesa da cozinha. Entra ELISA a coxear, um
sorriso crispado. LÍDIA continua a gritar muito.

SARA — O raio da rapariga parece o porco nas vascas, ora uma destas,
agora cai-me esta enxúndia nos braços.
ELISA — Caiu, caiu a grande Babilónia.

ELISA dirige-se a ELVIRA, baixa-lhe o braço erguido, tira-lhe o prato


da outra mão, pousa-o na mesa. Dirige-lhe a fala seguinte.

ELISA — Já está a passar.

O tremor da cena cessa. Pausa. Miram-se.

HOMEM CA I — Vamos já para casa por causa dos pequenos.


FREDERICO — Esperem, o vosso prédio é de construção solidíssima,
telefonem primeiro, aqui estão melhor que no carro ou a caminho,
pode vir outra onda,

LÍDIA recomeça a gritar, MARY ri muito alto dando pancadas nas


coxas.

FREDERICO — Lídia, cale-se. (aproxima-se de Mary que se cala, as


mãos na boca, aterrada) As paredes são do século dezoito na
zona de serviço, o terrestre marquês sabia o que fazia.

JOSÉ OOM sai debaixo da mesa, sacode-se, beija a mão de MARY.


HOMEM CA II — Você acha que há possibilidades de outra onda, ó
Frederico?
ELISA — Se Deus quiser.
MULHER CA I — Já há imenso tempo que não havia nenhum tão forte.

SARA dá água à MULHER DO CASAL AMIGO II que já veio a si.

HOMEM CA I — Acho que vamos mesmo, ó Frederico, estamos


preocupadíssimos.
SARA — Não deve vir outro.
FREDERICO — Como é que tu sabes, Sara?
SARA — Se tivesse de vir já tinha vindo (recomeça a lidar com os
restos do pato, a servir-se e a servir ELVIRA).
MARY (olhando os cacos, rindo) — Olha os barros da mãe.
ELISA — Allah jacta est, provérbio árabe.
SARA — Deixe que eu já apanho, menina Mimi, primeiro vou dar o
jantar aqui à irmã da Lídia que tem que se despachar.
HOMEM CA II — Esta Sara é extraordinária.
FREDERICO — Está connosco há tantos anos.
SARA — Há mais que o senhor, lá isso.
FREDERICO — Bom, vamos lá para dentro, o pior já passou.
HOMEM CA I — Tem paciência, ó Frederico, nós vamos andando.
HOMEM CA II — Ah, eu preciso de beber qualquer coisa.
MULHER CA II — Demos graças a Deus Nosso Senhor (recolhe-se).
FREDERICO — Um cognac, homem, um cognac, também eu.

Saem todos excepto ELISA e LÍDIA, MARY vai pelo antebraço de JOSÉ
OOM que graciosamente lho ofereceu. Agarra a ponta da saia. SARA
põe prato para LÍDIA, serve-a também. Senta-se. ELVIRA e SARA
comem. Elisa está sentada à mesma mesa na mesma postura do I ACTO.

ELVIRA — Não comes, Lídia?


LÍDIA — Ai credo, eu posso lá comer estou num estado de nervos.
SARA — Mais fica, já do abalo de há cinco anos andei dois dias a
mamar sozinha um peru que sobrou.
ELVIRA — Isto dá cá muitas vezes?
ELISA — Só quando é preciso. Houve um que levou uma data de ruas e
igrejas, entrou o mar pela terra adentro, era o dia de todos os
santos, todos os reis da Europa se largaram a chorar quando
souberam.
LÍDIA — Credo, menina, pode lá ser, lá está a menina a assustar quem
não sabe.
SARA — Se a Elisinha diz que é, é porque é, o pior defeito que ela tem
é que nunca patranha.
LÍDIA (melíflua) — Mas inventa histórias para os meninos.
SARA — As histórias são um supor de verdade.
ELVIRA — Lídia.
LÍDIA — Ai não me estejas a atentar tu agora, que ainda estou com uns
nervos.
ELISA — Vá à sala que isso passa-lhe.
ELVIRA — A menina Elisinha desculpe é que eu precisava de dar uma
palavrinha à minha irmã.
ELISA — Quer que eu me vá embora?
ELVIRA — Não menina, não, até gosto que a menina fique aqui com a
gente.
SARA — Fique, Zizi, é tão raro a gente tê-la cá, quer mais um
bocadinho de doce?, olhe que tenho ovos verdes do almoço.
ELISA — Com fiambre? Dá-me um.
SARA de largo sorriso vai buscar ao frigorífico uma tigela com ovos
verdes. ELISA come.

SARA — A menina se calhar não gostou do jantar, coitadinha.


ELISA — Não gostei dos jantados.
SARA — Olhe, está como eu, isto a gente que vem agora cá à casa.
Olhe, uma vez estava o seu avozinho a comer umas fatias de
lombo de porco, lembro-me como se fosse hoje, quando caiu um
raio na casa das alfaias, mesmo pertinho, aquilo tiniu tudo, um
clarão que parecia o fim do mundo. Pois sabe o que ele fez mais a
sua avó?, nem sequer se levantaram da mesa a ver dos estragos e
pediram para abrir uma garrafa de vinho francês, vinho francês,
menina, foi o que eles pediram e continuaram a comer como se
nada fosse.
ELISA — Nesse tempo a terra não tremia.
LÍDIA — Mas a menina disse,
ELISA — A terra deles não tremia.
ELVIRA — Lídia, eu é só porque me tenho que ir chegando, está lá o
António e o menino mais o nosso pai, eu era por causa do nosso
pai que eu cá vim.
LÍDIA — Quero lá saber disso, tu não vês que eu estou cheiinha de
nervos?
ELISA — Puta de casa que isto volta sempre ao mesmo por mais que a
terra trema.

ELISA encosta a cabeça nos braços. SARA levanta-se e pega numa


vassoura de cabo alto. Varre. Suspira alto.
Sara (varrendo) — Ai eu.

PANO

1 Texto inédito de Luís Sousa Costa, p or acaso trazido durante a feitura deste, e admiravelmente op ortuno e cedido. O
acaso não existe.
IV
CASA DE ELISA
ANGELUS
Madrugo. Estão-se a passar coisas raras. Nunca alvores matinais me
arrancaram do sono, quanto mais precipitação de chuvas. Memória do
sismo não é, a cismação matinal — que trema o chão, que ruam as ruas,
não seria a primeira vez nem de má memória o fundar de artérias
citadinas, aquedutos e traça, sobre carbúnculos residuais de sécias e
peraltas. Viva a razão do lume, fendas na crosta, maremotos, como diria
Nero a apagar-se, fulva sua mãe e os leões. Ouço a chuva clamorosa
nos algerozes e telha velha, enxurrada nas ruas em declive da minha
alcandorada urbe, mais pombalina de pombas soltas que de Pombal,
colina incólume. Em batalha campal deveria o narrador ser postado em
ponto alto, donde pudera seguir a movimentação das alas e a emissão
das ordens, junto ao pavilhão dos condestáveis. O escriba era assim
alevantado e só mandado assentar muito depois. Todo o registo escrito
dá ainda sinal dessa reduzidas variâncias de postura. Olha que há quem
lá fosse ao ventre da batalha, dizem-me os coevos do cerco, da perda
de um olho por frechada ou estilhaço de obus, do reino por um cavalo.
Mas isso são modernices. Nisto — nas mais antigas profissões do
mundo — são os princípios que marcam, a argila tablóide, papiros,
peninhas demolhadas.

Qual ofício, menina? Amadora de registos. Ah, bibliotecária,


programadora de circuitos electrónicos, ah. Não, amadora de registos
no corpo. Ah, geneticista, perita em enxertos, Não, de registos que
doem. Ah, anestesista. Não bem, de registos novos, em combinações
novas. Ah, a investigação, percebo, em que laboratório? Bem, é mais
uma arte, amadora. Ah, o jogo, o prazer, a edificação moral. O prazer, a
moral e o jogo decorrem de registos. Então sempre é artista? Não,
amadora de registos. Quer dizer que não tem profissão? Pois, não,
tenho, ainda é muito pequenina. Vai ser poeta, é? Não me parece,
preciso tanto de explicar. Nacionalidade? Amadora de registos, varia,
divagante.

Fui à cozinha que é pequena. Meia hora de gestos resolvem-na. Aqueci


dois decilitros e meio de leite, mais coisa menos coisa. Juntei café em
pó da Nestlé que é uma firma multinacional cuja designação tem por
origem a palavra nest, em inglês ninho, do latim nidus, (ni — em
baixo, sed — sentar). Há consultas que resultam. Bebi, sentei-me, estou
a escrever. Espia todos os teus gestos e objectos, verás que todo o
espaço é colectivo, enlatada a fé e o império, quantas gerações sem
trabalho manual para a perda do espatulamento das tuas unhas?
Nenhuma? Que grande salto, ó mutante.

Noutra altissonância, chove tanto mais, a leitura é a escrita de um som


que se descreve?:

Como hoje no mais terrível dos


pensares há a sacra queda das
chuvas. Um por um os tarolos de
horas matinais se acamam de águas.
Tudo se alisa enfim, já era tempo.
Amarga barca esta que Não É até
pousar em monte Ara Feito e o acho
carne minha — o donde fui largada
com promessas de lei a achar e
acasaladas espécies. Como o
dessaber de chorar confirma o que
é chão e próprio — já não sei
chorar, não sei chamar — sou eu,
sou eu comigo só,
cidadã sem arco e sem balão de festas juninas. Não vejo pomba de
raminho em bico. Só me vem à glote do dedo o Oliveira morrendo de
cadeira, Pai, o Filho que era um pastorinho chamado Francisco, irmão
de duas tolinhas que só viam senhoras a brilhar, e o Espírito Santo que
tem um museu e oficina de tecelagem aqui perto. À mãe. Blasfemo?
Tenho a impressão que há muitos anos anda qualquer coisa de errado
nas minhas orações. É isso, são amadoras. Isto de ser português até a
rezar é uma incompetência.

Isto é uma abertura insuportável e eu não me chamo marcelisa, a lisa


deste Março. Estou contaminada de verve pseudoliberalizante, espécie
de delírio de preso em cadeia com ar condicionado, lawn e lavandaria
mecânica. É Março, embora, e alguma primavera urgiria, um destes
anos.

Olha, parou subitamente de chover. Tenho que ter mais cuidado com o
que desejo, os elementos estão tão soltos. Mas a magia não existe, e Eu
sei lá quanto tempo mais.

A minha mente desagrega? A minha mente executa, excreta?, solo de


trompa em fuga — congrega caçadores e cães. Discrepança: a ilustre e
luzida companhia profere que a apetência da jonglerie verbal é já
indício de demência. Diria a fábula da raposa trompando a salvo de
chumbos, pois que posta a linda cauda, cometa próspero, em seu
sossego de animal doméstico, graças de nymphette de câmara, raposa
lamparina:

FÁBULA DE RERUM NOVARUM


OU
A RAPOSA EUROPEIA
«Eu não colaboro», disse melreante o melro à pega impúbere, o que o
cuco corroborou. «Abóbora», disse o grão-duque mocho moxoxo, «que
eu suste, porque o decair me assiste, vide o que disse o Nites sobre a
podridura dos frutos». «Seja, ó culto, mas nós jovens de há poucos
factos, postos? e os dos outros ramos ora esperançosos?, e o corroído
encosto em que tudo está posto?, disse o rouxinol bem acolhido por
cantor de luares de agosto. «Venha mosto», pois comandaram todos e se
beberam uns aos outros como eram comidos. Calendas que foram do
dia posterior, que embora o houve, voltou de arribação um tão só
passarinho. «Bem te vi vir», disse o mocho que via tudo antes de ser,
para o caso de poder não ser e prever — e o passarinho em colhido, se
disse, cedeu-se, excedeu-se e bem mostou-se, por se acaso não
pensarem que asas não tivera qual os demais. Que ressaca! Impúbere
ainda e sempre em uso disse a pega. «Tudo se pega». A raposa então
veio e disse, «Ena, tantos», e comeu até virar loba. Aí, foi colocada em
Roma onde refez o império pelo lado das tetas, essas úberes.
Deuses, diz a amizade, o quente falajar dos íntimos que há, Em que
estado de tristeza estás posta. Outrossim dirá a inimizade, Está cada vez
mais pernóstica. Respondo ao lado esquerdino, o que é para lancetar —
Quando for grande vou para bolbo de beterraba no mundo roxo. Há que
desconversar. Sei, cada vez que ceio em casa do próximo que (me) há,
que a amizade ou amor que cá se usam não trazem qualquer socorro na
hora certa, não de agonia, mas de exaltação e que, muito pelo contrário
matam, matam, as cumplicidades matam, as formas domesticadas de
amparar o intenso, matam-no. O chão está trémulo, maduro para fissura
que se veja.
Mas sei: quem foi gabado por saltos não pode deixar de saltar, sob
pena de encontrar à aterragem, não os escombros da pequena vida que
acometeu, nesse território tudo, tudo se concerta, se substitui — o que
espera o saltante parado no espaço é a escuridão mesma do espaço
onde nem já há queda nem mapa de rumo.
Se tudo isto fora posto em esquadria, isto é esquadrinhável, isto é
navegável em todos os sentidos sem perdição, chamava-se obra. A
compactez fecal do que é unificadamente emitido uma vez ao dia e ao
sétimo descansa-se. Pudera eu tanto não poder, mas isto é ainda demais
o esgoto do sorriso, o esgotar do esgar, a posta que resta da aposta
cândida — por isso não é nada de nu, é só de roto.

Dizia eu pois que é de manhã, que a casa de onde me estirpo é um


inferno. Continuando esclarecidamente, dado que se vê da janela
espécie embotada de arco dito da velha, dito da íris, dito da aliança —
se sou carta de baralho em que carta viciada me treinou, a mim, carta
menor, para mão de poker, primeiro gesto libertário houvera de ser
aventar o baralho — antiga cantiga: Quando a Alice disse, Vocês não
passam de um baralho de cartas, foi quando lhe cortaram mesmo a
cabeça — entrou para dentro da sucessão das casas parvas. Era a hora
do chá.

Outra questão de grande vulto: amei os meus? Qual a diferença entre a


minha mãe e uma sumptuosa Dido consolável? Porque inventá-la como
a maligna, se não desejo que o mito caia nas unhas de bruxa misógina
de Walt Disney? Meu pai, o Bom? Se amava facas porque não mandou
vir boa lâmina toledana de ir aos moinhos, em vez de me usar a abrir
livros, a amolar-me para tesoura e navalha de cortar,
cavalheirescamente, o que afinal só ele cortou com os pés —
acelerando para dentro do abismo, literalmente? Minha mana de tantos
nomes, pouca história, guardada na caixa boneca de louça que se parte
muito e pode infinitamente virar caco? Quero lá saber. Meus amigos?,
tudo como eu, navegantes de periferias, arrais costeiros a fazer que
transatlantam. Meus compatriotas?, ah, isso, a língua portuguesa. Qual,
a dos mortos mal dispostos com a tença, a pátria, a audição da obra, ou
a dos que trocam consoantes e conspurcam os sanitários públicos com
quadras lúbricas e ortograficamente inexactas?
se me deres o teu
dou-te a ponta dum chavelho
porque ao lamer do baralho
é que luse o cu ao velho

Curioso, quando hostil pareço menos doida. Menos verídica também. É


que isto não é uma questão de família e muito menos uma questão de
raiva. Quem o disser entretém-se. Isto é a questão dos objectos que
tenho à volta, tive, terei. Da decifração de gestos. Pensando bem, nunca
matei criação para a comer, nunca britei uma pedra. Toda a força que
tenho me há-de parecer assim que nada me é, em termos de estrita
sobrevivência, necessário fazer, um imenso potencial de violência
maligna. Mas ele, o que me empunhou?, armou?, meu pai? Ah, sim, que
podia fazer o senhor de feudos perdidos senão ferir a casta subsequente
com a melhor arma — o pergaminho manuscrito, a indecifrável
elegância, o destemor da consciência da morte. E no entanto, a gota de
cicuta última foi clássica, quase — a senhora brandiu-lhe jovem letrado
macho, boa malha, minha mãe tecedeira — Frederico, que me poderia
ter feito um irmão tão jeitoso, adaptado às novas exigências, tão lindo
em sela como de capacete siderúrgico, tão lido de Keynes, como de
Miller e até mesmo de Kate Millet. Queridas, queridas marionetas de
pau, há-de haver-me outro público. Sim, riem vocês, Mas não são do
teu sangue. Queridas, queridas marionetas, sangue só há um, o que flui.

Aqui estou pois, com o coração batente de mais no meu posto de


trabalho, perfuradora solitária de esgotos, como se em torno não me
pulsasse o bairro, a cidade, a lusitanidade, a idade. Posta com o
coração batente de mais para o que tenho a fazer e é só esperar,
atentamente, mais tremuras de solo, fissuras, disse. Eu que era para
estar onde a todo o tempo haja coisas eminentes, raríssimas convulsões,
imperceptíveis e desastrosas fissões de núcleos mínimos, eu que só
amo as vidas extremas, nisto, nesta grande paragem que é o mais que
alcancei após tanto arrancar-me do mais óbvio que me era destinado —
uma excentricidade decente. Não me arranquei nada. Perceber não é ir
tudo. Resta-me o coração batente o necessário, batente não deste posto,
desta espera explicativa, desta esperança menor confirmadíssima de
que me chamem, telefones, portas, papéis de cartas, chamarem-me pelo
nada de meu nome próprio, porque oiço, porque enfeito, faço redoer
excitadamente toda esta troca miúda das famílias à marginália
interessante, o que ainda resta de antenas irisa-se de prontidão aparente
para uma outra vida que é já só, em todos eles, uma alguma que não
fosse esta. Excitam-se e então jogam na bolsa, mudam de amante ou já
mesmo de mulher, falam, falam. Vida espera, véspera sem. E eu? Estou
cegada acaso pelo que desando quando aqui não estou, pelo desgosto
com que vejo a reprodução de tiques nas poucas que se
profissionalizam, neste antro afinal de despojos, de pirata costeiro,
palhoça rica, estas odiosas almofadas bonitas e óleos desbastados das
suas molduras de talha, peças desirmanadas mas ditas belas, uma
iconoclastia rendada, uma inteligência vendada. Rendosa? Ou estou
cegada acaso pelo que desando quando aqui não estou, o lado dos
soluços vomitados e gestos histéricos, vamos fazer um filme?, Um
livro?, estrondear citações e cacos e comungar sacrilegamente nos
Mártires pela madrugada, tudo é igual, isto e isso. Não é comparável a
lavar catorze quilos de roupa, ou ir de jangada de Amazonas que
abalroa ou não. É porque o sei tanto que me excuso e fico a anotar? De
algum saber meritório incrustado nas unhas da estirpe do usurpador que
morre, cadela de Diogo Cão morto por azagaia em estuário de rio
Cacheu ou noutro rio igual em igual cachão, Cão resignado que deixa a
herança do grande gosto da ascese que signifique e o desgosto do
privilégio? Fiat. De algum saber maior que hei-de saber mais tarde,
donde perdurar nisto já e aqui, sem ir a qualquer lá, o coração batente
inresignado, de batido, de tudo ser igual, mesma iminente perda adiada,
estar viva nisto um só desastre, seja o lugar que for. Ou o júbilo. O
coração batente, nisso tremo e aposto? Saber do que não é, que não é
este posto jubilar e a ele revir a ir buscando qual. Embora a pena disso,
desse andar, tanta e tantos, só desse até aqui, tão nada e pouco. Tantas
horas de pouco e as outras de tentar.

Vou-me lavar e sair para as alamedas do Jardim Zoológico que é do


outro lado da cidade, o que me permitirá bonançosa travessia — o sol
das nove está aguado e subtil. Usarei,

something old
and something new
something borrowed
something blue1:

Fio de bisavó Elisa, a Douda, que ia de anquinhas ao presídio dos


liberais em Estói visitar seu inimigo preferido — primo-irmão e
marido; carta de filho ilegítimo que a Sara pariu de casa e que está a
estudos de batimentos em Champigny; edição da Mensagem que me
emprestei da zona menos encoirada da biblioteca; um par de jeans made
in USA, ganga também é azul, ó céus de cuspo.
Não é o que eu percebo que me muda, é o que muda que me há-de
perceber. Ou não, irmãos Vladimir e Vladimir. Que pena eu não ter
formaão política para lá da anedota e pequena história. Hei-de
matricular-me. Mas Março não é o mês para matrizes dessas. Assim,
quando mereço descansar, acho, vou ao Jardim Zoológico, rever, a
matéria e a consciência, sua casalidade.
Escutai agora com toda a atenção, que a terra mudou de cor. É noite
bem descida, limpidíssima, uma da manhã da noite severa. Creio que
estou em estado de choque. A serpente paralisada pelo olhar da
serpente deverá porém gerar a serpente para que na tradição dos
Antigos, possa iniciar-se o conto do território do paraíso:
O Jardim Zoológico em manhã de semana, eu vejo-o como um espaço
constelado dentro de um ar de arestas vítreas, prisma. Não é muito alto
nem muito baixo. É azul, transparente, azul-cinza. É fresco e silencioso.
Logo a entrada é muito misteriosa, com o seu chão cavado de passos em
laje larga, de catedral junto a túmulo de reis, o guichet onde os bilhetes
são entregues de olhos baixos, numa murmuração. Segue-se, ainda
coberta, uma pequena cúpula sob um corredor trespassado de aragem
gélida. Abre-se para o verde e alamedas de saibro, velhas estruturas
metálicas e pequenos pavilhões telhados, como coretos. Uma ponte
cheia de ferrugens, delicada de volutas e colunatas pende sobre um lago
imóvel e negro onde gaivotas de madeira perdem, como eucaliptos,
grandes lascas de tinta velha. Sombras de peixes emergem dum lodo
cerrado, uma grande ilusão de profundezas. Dum pequeno banco de
azulejo incrustado no bojo de amurada do lago escutam-se grasnidos de
inusitada potência, um ninho de gaivotas desponta as arestas do seu
halo de gravetos, pousa-lhe em cima a negro e branco uma esguia
sentinela do ar. Os flamingos rosam-se, ponderam patas em outras águas
mais baixas, as folhas de relva rude estão erectas nas suas duas faces
laminadas, entreabertas. Se passa um homem idoso com dois baldes de
zinco vazios, apenas pontua uma muito benévola ermidão, o excesso de
quietude azul palidíssimo onde mora a mais pungente paz da cidade.
Caminha-se cerce a um restaurante abandonado, com uma sombra
míope fardada de criada de crista que dispõe já talheres em pequenas
mesas de ferro forjado, fatias de bolo inglês ainda morno em tabuleiro
amplo, velho, encerado escuro. As catatuas brancas de penacho
amarelo-água pestanejam molemente, ao mais oferecem a um olhar
plácido uma pequena saudação de busto, um acometer valsante, meigo,
nas suas gaiolas amplas onde a hera se enrosca. Para o lado esquerdo
há estufas de vidro fosco fechadas, as rosas florescem, um outro velho
empunha um regador de zinco. Essas roseiras, com as suas tabuazinhas
com nomes de jazigo de parque, todas gotha e heráldica, não perfumam
porém o ar próximo. O cheiro próprio do jardim nesse tempo, a nitrir
de bovinos, a humidade de penas e pelagens, a estrume, a terra húmida,
prevalece. Lá alto, as ramadas reúnem-se sobre alamedas, não venta,
não rumoreja. Não há maior paragem. Seguindo uma hierarquia de
potência de voo e carnagem, as aves de rapina estão dentro de uma essa
enorme cúpula gradeada, as penas baças, o olhar desinteressado e
aceso das grandes águias lá alto, a catação de um abutre. Sei que os
gaviões adultos me saúdam, pacto antigo. Em baixo, adormecem
grandes mochos tigrinos com seus cornichos de pena branca. Um
pedaço de carne enegrecida numa pata indúctil, no chão cimentado
coberto de dejectos cremosos, um grande corvo crocita, despedaça,
mira de lado, despede-me. Em capoeiras há as trepadoras, na rede ao
lado as aves inquietas, bicos de lacre, periquitos de amores. Mas as
grandes trepadoras, as araras olham. Carregadas de olheiras,
sumptuosas de cor como um ícone, um vitral opaco de poderosas cores
simples, o largo rabo bariolado suspenso naquele grande silêncio,
como lhes falta o denso verde todo em torno, a humidade sufocante
onde seriam então deslumbramento certo. Mais além, uma fêmea
bisonte acaba de parir, o mesmo velho afadiga-se agora com os baldes
à entrada do pequeno templo do animal, um dos vários com porta de
mesquita abertos numa estrutura circular em tijolo e cal onde se
encontram os outros grandes mamíferos de hastes, pacaças escuras, os
grandes cervos de armações foliculadas recobertas de um velo sedoso,
a garupa redonda de égua prenha das zebras, inverosivilmente listadas.
As girafas sustentam o seu focinho de uma grande gentileza, com os
seus pequenos cornos de carne, colo e patas à beira da fractura
iminente, dulcíssimos veludos olhos, camelos beiçam meigamente sob
as bossas flácidas, os búfalos dormem na poeira como em estrada tão
longínqua, os grandes chifres lisos, brancos, virgulados como em signo
de antiquíssima lavra litúrgica. O pequeno animal recém-nascido vem
mal seguro de patas com a cabeçorra bamba até à orla da vedação
metálica, está molhado de visco que esfria, a mãe vage pianíssimo a
chamá-lo, uma massa de pelancas cinzenta ensanguentada pende-lhe dos
quartos traseiros, digo ao animalinho trémulo e aquiescente à coçadura
de testa húmida, Vai, vai, e afasto-me tendo nos dedos um cheiro salino
e adoçado, uma manada de potros solta-se de alegria daquela aguadilha
forte, e a compaixão. Uma fêmea de chimpanzé estende a mão, cumpre,
desconvicta, códigos. Tem ao colo uma cria franzina, curiosíssima
ainda, alerta, a cabeça toda torcida a ver, os bracinhos justos a firmar-
se na mãe, as tetas rosadas, coral sob a pelagem alta. Mas os gorilas
parecem agonizar dentro do seu pavilhão vidrado, do seu pêlo azul-
negro, dos olhos sem pupila, cordatos, a inércia dos membros de animal
profundamente pacífico, facilmente mortal. Ao lado, o orangotango
contemplado é a vera chama de carne de todos os primatas, o longo
pêlo fulvo seduzindo do baloiço lento de barra a barra — vede o
esplendor do ramo, o belíssimo símio, o que deveras voa lentamente,
lume de carne e olhos de oiro, cabelo solto o todo, todo o corpo, frágil
e estéril porém em cativeiro. O cheiro das feras está agora próximo, a
carnes podres e fezes fermentando. Passa-se isso num grande
descampado alto, depois da acomodação dos pequenos macacos a
praticamente tudo, guinchosa, quezilenta, gárrula e subitamente terna,
irmãos pequenos que tudo precariamente habitam, qualquer o espaço
dado, não é a inteligência vivaz que faz morrer da exiguidade e
estranheza de um espaço dado, é a fidelidade ao espaço próprio. Que
espécie somos? Os leões dormem. Dois gémeos cachorrinhos de
focinho e orelhas redondas disputam por cima das tremendas patas
doces da leoa um naco de osso com estrias de vermelho. Os grandes
olhos são inocentes, de cão, bondosos, e os de sua mãe. Já os tigres
evitam o fitar, o ter comércio de prazer ou reconhecimento, o parir
crias, seu percorrer pesadamente airoso de barra a barra, seu jazer não
é o de cerviz baixa dos ursos lançados à água por amendoim, casca de
pão, lembro-me. Agora os ursos dormem sobre o dorso, sob o sol
branco, nas suas felpas manchadas de água suja, amarelecidas de
velhice, fétido o cheiro a resíduos de peixe, amoníaco na fossa. O tigre
sem me olhar, vela e vela a distância com os seus olhos fendidos fino a
preto no oiro que deliberadamente me ignoram, a determinação na
ofensa ainda que eu diga, Salvé, senhor da solidão, em voz alta, surda.
Tua temível simetria, invocando Blake. Um casal de panteras pretas
recolhe-se ao mais escuro da cela, dois pares de focos austeros, toda a
potência de salto súbito. Sobre as alas de pedra miúda, cascalho moído
claro, arenoso, os meus pés rilham de botas, de bolha. Eis o romance da
filha do colonizador que arqueja, a coxinha do Times. Não irei ver os
lobos e a sua pequena suspensão agitada de patas ao mudar o rumo do
trote curto, o rabo baixado, também os olhos solares. Porque têm olhos
amarelos os animais mais arredios a aceitar a exiguidade do dado? Ou
são os predadores do crepúsculo, os fitadores de sol descido? Não vou
ver os lobos, são meus compatriotas, são de ares rarefeitos, serra,
estepe, silvado, são, mais que o touro, Europa, a minha, o uivo em
catedral, a pata dada ao monge doido, o Estudante das fragas de
lanceiros e druidas2, o alibi oculto no visco e serpe dos desejos de
meninas e anciãs vermelhas cobertas de capuzes3, o devorador
colectivista, o solitário astuto, o bicho que delimita a Europa bem para
lá dos Montes Urais com a sua estatura de cão impossível, o dado e
arredio, o Irmão Lobo, o hirsuto4. Não vi os lobos hoje, no ar azul e
húmido como a mais desolada das meninas, essa fragilidade letal de
donzelinha exangue que a cidade de Lisboa se tem no seu jardim dos
animais, essa denúncia da incapacidade de gerir-se imperial sem sede
da morte breve, sem delíquios de virgem de facto frágil, essa relação
trágica e transfigurada que a cidade mantém com a sua amostragem de
feras arrebatadas a outros territórios. Lisboa, no Jardim Zoológico, é
como uma criança deveras subtil que morre aos oito anos de um grande
sentimento da impraticabilidade do seu destino, coberta de açucenas e
lírios, desmaiada num mal plácido, inconvulso. Mas carece que seja de
manhã e de semana e de sol tímido, quando o rinque de patinagem está
deserto e o jardim dos pequeninos, com as suas casinhas de metro e os
seus pucarinhos mínimos está desabitado e os porcos da Índia e os
coelhos brancos de olho rosa circulam numa fetidez inexplicável, sem
gritos de júbilo corado à emersão dos seus focinhos de vítima lorpa de
casotas risíveis, sem ocupação de baloiços de assento e costas
coloridas, trave baixa. As crianças e o sol aceso modificam tudo. É
preciso ir lá quando os animais apenas ostentam a sua condição de
trazidos e mantidos a custo, num cenário novecentista com as suas
estátuas fendidas e minarete que azebram. É tão amável então, sob essa
luz vivacíssima de simultaneamente crua e velada quanto país perdido
na sua invocação de almas gémeas em tudo, na sua incapacidade de
fazer distância que é o qualificativo mor de todo o bom domador. Ah,
vão ver as condições quase naturais em que os pandas descascam um pé
de espargo em Regents Park, em que os animais nocturnos têm
invertido, por sóbria utilização de luzes, o seu ciclo de sono e vigília
— vereis a capacidade de expansão incólume de uma nação, a génese e
possibilidade de transplantação de uma vocação imperial, a estupidez
consolada e hábil do comprazimento no artifício. Digo — o Jardim
Zoológico de Lisboa tem o encanto de uma menina dorida — Alice
decidindo morrer sob um sorriso sem gato, decisão justíssima. Justeza
portuguesa.

Elisa quer dizer o quê, a eleita ou a elidida, suprimida? A elisão evita o


hiato. A eleição evita a bruteza clara, é a evitação do argumento da
força? Dilecta, a que deleita, para que fim? Estava a pensar no meu
nome quando cheguei ao elefante nesse campo que vejo elíseo, beato,
póstumo, o Jardim Zoológico de aqui. Mas o elefante, maior dos
proboscídeos e maior dos quadrúpedes, entra em gestação durante vinte
e dois meses. O elefante, a sombra eleita, o animal fantástico, capaz de
elidir-se face a sons, incólume na pele e presas opacíssimas, brancas,
esculpíveis, fundo de inscrição rara, o solo dos triunfos da guerra e da
erecção da paciência, trompa e trompete, o gregário da legenda da
própria morte em solo. O majestoso que não derrama sangue, El, Al O
Que. Eloi, Eloi. Sujeito só ao fogo, à seca, ao homem, necessidades
extremas. Nada temas, Elisa, gesta longamente.

ENUNCIAÇÃO
Havia no solo, para lá do fosso, fardos de palha meio desfeitos e
aglomerados de uma bosta grossa, escura. É uma extensão grande. Ao
parapeito do fosso, onde jaz uma pouca de água verdosa coalhada de
moedas numa margem em declive agudo eriçado de arestas de pedra
britada, pode ver-se o interior do pavilhão, a treva, a nudez, outro
imenso vulto cor de cinza deborcado. Agora este — As orelhas são as
largas do grande elefante africano, os olhos pequenos e lentamente
móveis estão encimados de pêlos espessos, idênticos ao tufo patético
que finda a cauda curta, afuselada. As grandes unhas da pata dianteira
alevantada e algo rósea no joelho, de luz rosa, no esforço de distender a
grande massa de carne rugada e profundíssimos músculos mais e mais
para a frente, as grandes unhas quase negras não ultrapassam a abrupta
delimitação da pata, como tronco pujante decepado raso, pouco abaixo
da articulação ancha. As duas grandes presas serradas cerce, estriadas
de um castanho de folha de queimada, soerguem os beiços sem
espessura, a pequena boca quase coralina, indecisa. Do todo, está
estendida até ao limite máximo a tromba, anelada de rugas, com o seu
tão comovedor terminal fendido, delicadíssimo, afeito à sucção e à
preensão de ramículos, agora trémulo de táctil, a mucosa nua, húmida e
timidamente captadora da mão que a acaricia, a mão belíssima, enorme,
de um negro de lustro de um animal marinho surdindo de águas, azulado
de gelos, os nódulos dos dedos vigorosos mais claros na movimentação
terna, a palma cerra-se branda e quase branca, como ungida de cinzas,
rosa azul-negro de corola recolhida sobre aquela palpitação pedinte do
grande membro do velho animal acariciado pela voz que raspa
afectuosamente pequenos sons guturais e estalidos, pelas unhas claras,
implantadas fundo e curtas que repetem uma fricção compassiva sobre a
bordadura daquela viva fenda em frémito. Foi então que ouvi
distintamente que ele me dizia, Nada temas, Elisa. Encostada a três
metros no mesmo parapeito, assistindo, eu disse então, Como?, e ele
respondeu virando lento a vista de pupila de ónix sobre fundo de
resplandecente branco ácido, quase azul, o sorriso compassivo
mantido. Não disse nada, minha senhora. Acrescentou ao meu esboço
de gesto quase brusco, ao recuo das criaturas de Deus, o paquiderme
restabelecia-se sobre quatro patas, recolhia o sumptuoso instrumento e
alçava-o à sineta que dobrou, quebrada, metal fendido, três vezes — Às
vezes dizemos, dizemos, sem falar. Chamo-me Elisa, o automatismo
veio-me diante dos evidentes sinais da soberania. Era altíssimo,
alongado sem demasiada magreza, os ombros recuados e plenos em
redondo compacto sob o casaco de uma gabardina quase branca, a
nonchalance da perna em igual, o vinco de fio de agulha terminado em
pé sublime, coisas para Cardin ou mesmo Roma, os punhos e peitos da
camisa em seda mole, a mesma divagação de branco, areias e negro na
gravata, mesma cerosidade sem excesso do calçado estreito. As quase
translúcidas asas do nariz baixo, de cana porém firme, soerguiam
ligeiramente junto à junção com as comissuras do sorriso, o rosto
alteava-se em dois malares fortes, duas bossas que rolavam a fronte
excessiva sob a massa crespa e redonda de dois dedos de velo negro na
cabeça, a perfeita lomba da nuca, água nocturna. A luz brilhava em aços
na ancheza dos maxilares, descia até ao pescoço régio de graça e porte,
o interior cinza-azul do pulso na mão estendida ao ar e céus e mim tinha
uma corda nodosa de violenta cicatriz a toda a volta, o renque de
correctíssimos dentes quase translúcidos, a plenitude da boca apenas
irónica desfazendo o gesto como consentindo por caridade a menina
humilde num ritual pateta, Prazer, chamo-me Angelo. Algo mudou
porém na doação das mãos, um reconhecimento do bom. Que ele então
disse, Não tenha medo Elisa. E eu disse, murmuradíssimo, Hare
Krishna. E ele disse como se estivesse comentando o estado do tempo,
Não é bem esse o continente. Mais disse, após sopesar o que eu via
fitando-o, Não tem pupilas para o pálida que está, não quer sentar-se? E
mais logo, É portuguesa, está doente? Sou portuguesa, posso vir a estar
doente, donde é que você vem? O você era tímido, aquilo ou era de
soba ou de embaixada para cima, a realeza. Cape Town, disse ele e
sorriu maligno, mas não me era dirigido a mim, ave coxa, arribante. La
illah ila Allah5, mais disse penseroso; a rótula mansamente sobreposta,
a meia em seda fumada, o tornozelo frágil. Ai u é, acrescentei eu. Se
sabedes novas do meu Amigo, riu-se ele muito comigo e pela primeira
vez tocou-me na testa com os três dedos intermédios da mão direita
dizendo, Malinké, mia senhor fremosa, algures dos arrabais do grande
rio, importa pouca. Ilha? disse eu. Não, floresta basta, o calor húmido
irisa o umbigo dos deuses. — Falas bem português, disse eu.
E disse tu.
— Quando o Pentecostes nasce é para todos. É a língua d’alma.
— A tua mãe?
— Quando a minha mãe estava grávida foi em busca do espírito dos
antigos até à beira dum ribeiro. Na margem estava um crocodilo ainda
novo que lhe disse, Mata-me. A minha mãe pegou numa pedra larga
para o esmagar. A pedra transformou-se num grande mocho branco que
lhe disse, Pousa-me sobre o crocodilo e prosta-te na areia sobre o
ventre até deixares de ouvir o ruído da torrente. A minha mãe assim fez.
Quando tudo estava muito silencioso, abriu os olhos ainda a tempo de
ver dirigir-se à água uma pantera negra que ergueu uma pata e lhe disse
fitando-a com os seus olhos de perpétua zanga, Quando chegares na
tabanca, mata um cabrito e grita até estarem todos os homens e mulheres
grandes reunidos. Não terás dores mas vais parir hoje. Quando a
criança nascer unge-a com o sangue fresco de um cão e com o amarelo
do ovo de uma galinha. Dirás que isso te foi dito pelos antigos que
assim lhe vedaram a pele para grandes feitos. Fá-lo-ás crescer no temor
dos búfalos e dos homens de cabelos longos. Tal é o desejo dos
antigos. E dizendo isto, caminhou para dentro do leito das águas de
novo rumorosas do ribeiro. Foi assim.
— Espécie de Siegfried do mato, are you kidding?
— Quite so, Brunhildezinha, todas as amazonas da Europa adoram
mitos exóticos.
— Mas eu sou uma bajuda6 do Dahomé
— Sabes muito, gazelinha, ao que corres?
— Ce n’es pas juste, je ne t’ai posé que des questions évidentes.
— L’évidence est une qualité de surface7.
— Ah, a Aventura Ambígua, és animista ou islamizado?
— Para quem leu tanto gazela, isso é uma pergunta estúpida. Importa-te
assim tanto situar quem te comove?
— Tu não estavas a comover-me, isso já estava feito, estavas a
impressionar-me com a acumulação de saberes.
— Tens razão, tendo muito a portar-me como um negro greco-romano,
aqui. É o sindroma do escravo.
— Aqui?
— Europa.
— Foste educado aqui?
— Ainda estou a ser educado, lá.
— Eu estou-me a deseducar.
— Muito europeu, estiveste em Maio em sessenta e oito?
— Não, vou estar na terra no ano dois mil, com uma grande grande
araucária a crescer-me dos cabelos.
Aí, ele silenciou, voltou a pesar o peso do ar à nossa volta e disse:
— Desculpa, és a primeira portuguesa que desconfio que sim.
— Há muito ódio, príncipe, entre nós?
— Há muito ódio a príncipes, senhora, e é bem feito.
— Tu disfarças?, que estás aqui a fazer, que querias do elefante?
— Sirvo, procuro servir, fiz-me ponte, creio.
— Os africanos falam preferentemente por metáforas, como eu,
— Os povos primitivos, quem regressa, os,
— Diz, diz,
— Irmãos escuros.
— Tu não me és escuro.
— Ao meu povo sim, a brancos sim.
— Teu povo?
— Nasci lá.
— Lá?
— Lá, debaixo da terra onde não sossegam os restos, onde não há
destrinça exacta entre o raio e a raiva de Deus, onde o espírito mana da
infecção de um espinho, onde a humilhação fez de cada crença um
quisto ambíguo de verdade e mentira, porque os teus perderam o chão,
perderam o chão, perderam-nos o chão,
— Não tenho meus.
— Morres, gazela, morres como os antigos desfeitos em fezes líquidas,
os pés garrotados a caminho das Antilhas largado à força o pilão cheio,
um filho de mama, morres como os que voltam para as minhas terras a
desfazer num dia os feitiços, a decepar num mês as árvores de irã, a
devassar pelos trilhos de mato a traça dos antigos, em dois dias.
— É preciso estar com os rudes, Angelo?
— É preciso estar com os rudes, branca-flor. Queres ver-me ver os
répteis comigo?
— Quero, mas não sei se o que trago vestido,
— Pobre oncinha borralheira, pareces mulher grande sem mezinho e
sem cabras, a pele que se renova é o vestido que há.

E então Angelo beijou-me num dos olhos com uma grande


complacência e, maior delícia, com uma grande saudade. A sua boca
cheirava a incenso, a hortelã pisada num almofariz de nógado. Era a
alegria pungente.

Vi-o falar às cobras. Uma grande píton começou a deslizar sobre o


tronco em direcção à barreira de vidro, à voz, aos olhos dele que
amareleciam e perdiam pupila, fendidos numa grande concentração
surda, o braço elevava-se numa quase imperceptível movimentação
sinuosa e a língua bifurcada do animal invocado fremia na nossa
direcção, o colo estorceu-se por forma a que a pequena cabeça rígida e
triangulada se acostasse directamente ao vidro, eu assistia à dor. Ele
disse,
— Se fosse na floresta, se não houvesse entre nós e ela esta placa
vítrea, terias medo?
— Não, disse eu, contigo não teria medo senão da separação.
— Essa é a única lei, gazela.
Eu bebia chá, ele bebia água sentados sob árvores, as catatuas
dormiam, o sol alto radiava sobre uma carapaça de nuvens, fitável,
sobre altíssimas ramadas, coado. A cigana avançou qual barca
nazarena, toda casco silente e olho imenso à popa, as saias de ondas, pé
de rede em afago de areias, a manhã, a manha, os longos dedos
guitarreiros, mesma estatura de Angelo, os altaneiros rins, a cara
marcada como solo lunar, crateras de bexigas, Quer que lhe leia a sina,
minha menina?

Viajará pelos longes do mar na companhia de rapaz trigueiro, há-de


ouvir os roncos da profundeza e o ranger das cordas e dos costados.
Passará fome e sede e cairão-lhe os cabelos e as unhas mas há-de ser
para bom fim. Afugentará muito mostrengo e gentio porque é bondosa
de coração e temente a Deus. Hão-de pôr-lhe à prova a valentia de
coração e terá que pisar por um colchão de brasas acesas. Terá um
menino e uma menina que não hão-de desdizer da sua criação e um
partirá para o norte e outro para o sul. Há quem lhe queira mal e queira
fazer intriga com o seu rapaz, uma mulher de cabelos loiros anda a
deitar novena pela sua má sina, mas não desmerecerá da sua boa estrela
e há-de voltar na bênção do senhor por cima dos ares para morrer em
boa paz na estimação de todos os seus. São vinte escudos.

Angelo disse:
— Donde vindes, madre, branca e colorida?8
— Do cu dos tempos, senhor preto, do cu dos tempos, onde só entra a
agulha de Deus.
— Tu o disseste, hermana, disse ele.
E deu-lhe uma nota inteira de cem, o que a fez sorrir-se como uma
cobra aberta, ou seria das listas rasgadas como pele seca do avental até
aos pés, do afastar donairoso, de toureira em perigosíssima lide,
terminado o lance.
— Estes nada perdem, nada criam, só transformam pela quase intacta
memória, disse eu.
— Nenhuma produção os corrompe nem avança, apenas trocam,
sujeitos à morte altiva e lenta, mas o Frederico amava-os.
— Quem?, disse eu, noutra.
— O verde que nos queria verdes.9
— Os poetas?
— Os esperançosos de todo o mundo, gazela, unidos.

Mais lancinante, de lança que trespassa, foi na casa dele rememorar o


tango deles. Digo casa dele porque ele disse:
— Queres vir comigo?
— Sim.
E eu disse sim que é em português palavra pouco usual como resposta
afirmativa.

A casa não era longe, no bairro que se chama Azul e o é, com as suas
varandas de pretensiosas colunas bojudas, as persianas corridas,
pequenas leitarias de vão de escada onde havia tangerinas ou estou em
querer agora que talvez não. No último andar direito, Angelo meteu uma
chave à porta para um pequeno hall interior de bandeiras de porta muito
altas, vedações em caixilho de vidro fosco para outras dependências.
Fixei os arabescos de tapetes persas sobrepostos cobrindo todos os
soalhos e folhagem de plantas em grandes potes de barro cozido,
branco, um pouco por toda a parte. Não havia móveis, creio, mas
espelhos de todas as épocas recobrindo paredes acima e abaixo dos
lambris de madeira, pelo menos onde estive, na que abria para a
marquise. Nem um retrato, nem um óleo, esperei ver máscaras, marfins,
escudos, de filigrana de ráfia, apenas espelhos, redondos, elípticos,
ligeiramente convexos ou grandes plataformas cristalinas, emolduradas
em metais pesadíssimos e preciosos, volutas, enquadramentos de acaju,
de mogno, biselados muito espessos sem moldura, espelhos. Eram
paredes temíveis, nós sombras mínimas ad infinitum, paredes de evitar.
Havia mais, pois, a grande marquise aberta para umas traseiras
desoladas, dezenas de escadas de serviço descendo angulosas e vazias
com as suas plataformas metálicas e picotadas até pátios de cimento
vagos, cordas e cabos metálicos de onde pendiam boas roupas,
húmidas. A corda de Angelo não tinha nada. Os persas ondulavam as
suas cornucópias e pétalas geométricas a vermelho e preto, verdes
sombrios, pontas e fundos de um turquesa ensurdecido, desfibravam por
manchas, franjas desfiavam. Descalcei-me. A minha bolha luzia sob o
quadriculado dos sinais de gaze, toque de câmpanula frágil, caduca. Ele
tinha dito, Espera aqui, e ouvi-o falar, titilações de telefone. Grandes
trepadeiras de folha muito larga, espatulada, ou estreliforme quase
vedavam o vidrado da marquise, o pano de linho alastrado de grandes
manchas ténues, envelhecido, que coava a luz. Recomeçava a chover.
Recostei-me em espécie de coxim, panos, única peça. Quando ele
voltou disse, Um gadget, e ligou sem manivela uma grande grafonola de
campânula. O som veio amplo, correctíssimo, apenas a fanhosidade de
relíquia recuperada imediatamente reconhecida. E foi assim que eu
fechei os olhos e os vi claramente dançar, um mesmo objecto a que se
dava corda, um fim de tarde de ouros e castanhos, ao Norte, cadeiras de
palhinha crua numa outra marquise ampla, ladrilhada largo — o tango
deles, ajustadíssimos, belos, ela tinha um vestido de crepe pérola de
manga com fieira de botõezinhos forrados e chumacinhas nos ombros,
ele estava de fato inteiro assertoado e o cabelo uma só placa lustrada e
justa ao crânio harmónico, a nuca cava, dançavam sem se olhar, ela
numa mímica perfeita e sacudida de cabeça, os tendões do pescoço
hirtos de diva altiva, ele deixando-a tombar pela cinta e cair sobre
coxa, a mão seca, branco-azul-greco sobre os rins dela, dóceis e
crispados como cumpria ao espírito da dança, dominando todo o jogo
como bom cavaleiro o faz de toque de rótula na montada e rédea sóbria,

madreselvas en flor
que me vieran nacer
y en la vieja pared
sorprenderan mi amor
pasados los años
y los desengaños
el primer cariño
que nunca olvidé,

que idade teria eu, dois, três anos? cheirava a tabuleiros de marmelada
recente, ferro de carvão, era tão clara a presença. Abri os olhos e disse
a Angelo.
— Acho que eles se amavam.
— Não é possível, não teria sido possível, aqui,

vieja pared
del arrabal
tu sombra fue
mi compañera
y todos los años
tus flores renacen
porque ya no muere
mi primer amor.

Os acordes duplos e marcados do acordeon, o arrastamento dessa voz


raspada, dessas imagens de uma grande arrogância juvenil, latina na
dança de cio controladíssimo e combate galante, de aves enormes, eu
devia vê-los do chão, extasiada, pequena. Angelo acocorado do outro
lado tinha vestida por sobre as calças e os pés nus uma túnica mole,
sombria, leve, as mangas abriam, o colo fendido fundo, e olhava-me
como através de mim, vendo-os, pois que disse,
— Os senhores do cavalo e do escaravelho de lápis-lazúli, os
batedores de trirreme que subiram à raiz do Nilo e desceram à foz do
grande Níger?, não, nunca poderiam amar-se sem despedaçar-se
mortalmente.
— Foi o que aconteceu.
Disse eu. E só então o Soube. Vacilei e mais disse, Tu quem és? e sobre
a voz carregada de idades e transplantações de ânimo de Carlos
Gardel,

Asi aprendi que hay que fingir


para vivir
decentemente,

Angelo começou a baloiçar-se sobre o tronco erecto e a cantar em voz


muito grave, acompanhando-se de lento batimento de palmas, do som
das rótulas sobre o soalho, abafado como percussão cardíaca sob
carne, tambor surdo,

ouvre à l’ombre de l’Homme


ouvre, ouvre à mon double
mon double viendra dire
tout ce qu’il aura vu
aus portes de l’empire
d’où les morts sont venus
ouvre à l’ombre de l’Homme
ouvre, ouvre à mon double.10

Então, pela primeira vez tive um grande medo e ele viu. E ajoelhado à
minha beira, com uma taça cheia de avelãs nas duas mãos, numa
reverência profunda, disse, Nada temas, Elisa.
Uma mulher de voz madura, muito aguda, cantava sobre um fundo de
Kora a louvação La illah ila Allah, Donde, donde, é isto?, Guiné,
gazela, os grandes restos do Mali, também descemos sobre a mesma
carne, tribos contra tribos, mas os antigos velam nas fibras da piteira,
sob a casaca dos répteis na orla dos grandes rios. A voz atingia a
crescente rispidez do grito e eu peguei-lhe o mais humildemente na
fímbria do pano fino como cambraia e toquei com ela a minha boca
descida, a minha testa fria, no espaço entre os dois olhos. Vi então que
não só os pulsos estavam marcados de lacerações profundas a toda a
volta, como também os dois tornozelos nus de tendões finos, ossos
altos. Prostrada ainda, perguntei-lhe, Quem te feriu? e ele recitou assim
com as pontas dos dedos no meu queixo e os olhos sérios nestes, como
quem se dói, Sublimes excoriations d’une chair fraternelle et jusqu’aux
feux rebelles de mille villages fouettés, arènes.11 Depois perguntou-me,
— Tu que queres, menina?
E eu falei como uma rainhola em começo de carreira:

Ah se eu pudesse fazer alguma coisa para restituir ao meu povo, não o


orgulho, não o orgulho, ah mas o prazer de ser.
Ser o quê?
Ser tudo, humilde, sóbria, gentilmente tudo, pacífico, português.
Sabiamente?
Sabedora, sabedores, como os animais são sabedores da terra, como
vocês,
Nós, os negros?
Vocês os que se levantam agora da humilhação sem identificar-se ao
humilhador.
Isso é o que tu inventas, gazela, a carne é antiga, mas o espírito é jovem
sobre a terra, não foram vocês que nos ensinaram a violência, o
canibalismo é memória de todos os homens, para que tu pudesses falar-
me olha as minhas roupas, há milhares de africanos a varrer as tuas ruas
e tu não lhes discorres da vida e da morte.
Então o carinho, a veemência da ternura, a veemência da diluição no
outro, no mundo,
A paciência da mãe com as suas criaturas, é isso que queres da tua
pátria, da gente da África?
Isso, isso.
Mas tu estás cheia de ódio, assombrações, autos de fé, monumentos
ríspidos, gazela.
Como tu, pantera doce preta, como tu, a agulha de Notre Dame é uma
zagaia perdida,
Donzela gazela respeita a cólera dos pobres, a catana que dorme no
mato sob os peitos dum homem acossado não é a ponte sobre o Tejo, é
mais cara, mais nova, já não há povos de eleição, há munificentes
sobrevivências, vem aí outra coisa.
Mas isso digo, isso digo,
Podes dizê-lo comigo e não podes dizê-lo comigo, os africanos não são
o algodão das tuas feridas sobre a terra, o teu povo,
É um povo ferido, há portugueses que dormem sob arcadas, longe.
Não são de ti, da tua carne.
São, são.
Olha os meus pulsos.
Tens a vanglória das tuas cicatrizes.
Tenho a glória de chegar aqui nu de ânimo, falar a tua fala, achar-te e
não poder levar-te.
É então impossível tudo?
Posso adiar, gazela, as nossas pátrias não, são pátrias que começam
pelo fim, não posso adiar, se bem é doce, bai é magoado, mas se
cabado, ca ta birado12
É crioulo?
É, ou seja, Que toda a partida é alfabeto que nasce, todo o regresso é
nação que soletra, Que toda a partida É potência na morte, E todo
regresso é infância que soletra13.
Angelo o que eu procuro neste país e em todas as outras coisas é uma
espécie de sumptuosidade perdida ou a reinventar, total, como os
negros são totalmente elegantes sobre a terra, tu,
Elegantes e vulneráveis como as espécies tenazes no seu habitat,
Como os mutantes,
Como o amor é difícil depois da morte dos bons sentimentos, da fácil
unidade das tribos e das castas,
A harmonia da terra com a terra, eu quero a harmonia total, Angelo.
É o desejo das castas e dos povos bem cansados de dor, de humilhação,
podes voltar a ti, gazela, já não tens fronteiras.
Crês então que não há salvação sem violência?
Sem veemência organizada, para os sobreviventes, para os mutantes,
para os povos pobres.
Qual é a diferença entre violência e veemência?
A veemência ri-se, chora, enternece-se com a natureza, hesita, continua
como um amor grande.
Isso enfraquece,
Isso é a força.
Na sua mão direita tinha uma argola de marfim velho, polida, uma
fissura profunda, enegrecida, feria-a de lado a lado, mas mantinha-se
coesa, os bordos polidos pelo tempo e uso. Meteu-ma no braço direito
e eu disse,
— Vais partir?
— Vou-te levar a casa.
— Conheces o Amílcar?
— Nunca indagues do paradeiro dos heróis no país das carpas.
— Das carpas?
— Não, dos peixes carnívoros e longevos instalados em fossas onde a
memória não abre. Posso-te pegar na cabeça?

E as mãos seguraram-me o crânio todo junto à pele sob os cabelos


frios, na curva dos malares a ruga tersa das duas cicatrizes, as polpas
dos dedos inscreviam-se mornas nos bolbos eriçados desse meu coiro
cinza, sobre as volutas moles do interior, houve uma corola de carne a
encerrar esta caixa de crânio e nunca mais seria dita nunca mais a
conjunção das coisas separadas. Era o cair da noite, de lobos, hora di
bai14.
É uma da manhã. Sou europeia. A minha irmã telefonou-me a pedir colo
que não de garça. Eram nove horas. Minutos depois eu pedia às
meninas que me ligassem ao outro bairro, Azul, Ver-te-ei, gazela, dorme
sob grutas, dorme-lhes bem, Pedi por morada:
— Minha senhora, essa morada não tem telefone.
— Deve ser engano, desculpe.
Foi o tempo de apanhar um táxi, subir ao que já sabia, aos fâmulos da
vizinha de baixo, europeia:
— Olhe menina, esse andar já está vago há uns anos, não mora lá
ninguém, parece que a senhoria está a guardar para umas pessoas de
família.
— De África?
— Não menina, credo, do Linhó, uma menina que está para casar, a
casa está sem nada, de vez em quando vem cá a mulher a dias da
senhoria dar uma aspiradela, tirar as teias.
— Não tem tapetes?
— Nadinha, menina, a menina desculpe, vê-se que é uma menina fina,
está interessada na casa?, isto é, a gente gosta de saber quem vem para
cima de nós.
Era a Lala de lá.
— Não, isto é, talvez, não ouviu ruído nenhum hoje à tarde?
Aí ela resfriou-se, fez menção mínima de fechar a porta.
— Não menina, deve ser engano, a menina desculpe que eu tenho que ir
à minha vida.

Mas, à uma da manhã de uma noite limpa, não me aflige nada o poder
estar doida. Nunca contarei a verdade de factos inverosímeis. Carece,
nestas partes do mundo, suportar a inverosimilhança calada até que
mais realidade, a exercitada silente, faça luz. Passo a pulseira ao pulso
esquerdo, a mão que firma o espaço, vago, onde inscrever. Oiço, Bach,
Posso-te pegar na cabeça?,

Bist du bei mir


geh ich mit Freuden
zum sterben und zu meiner ruh
Ach, wie vergnügt
wär so mein Ende,
es druckten deine schönen Hände
mir die getreuen Augen zu.15

Dormirei acaso ameaçada de bambis mosqueados, de elefantes alados


de orelhas parvamente volantes, esta selva desenha-se animada, Deus te
guarde da proliferação da disneylândia, Angelus,

e trema, trema este chão eivado de inscrições díspares, que


sobreponho. Um solo excessivamente trespassado dá sinais, fende em
grau alto na escola de nós.

É preciso mudar a natureza? também eu lhe disse em braços.


Qual, a nossa natureza?
A natureza da terra.
A nossa natureza é da terra.

1 Algo velho, algo novo, algo emp restado, algo azul. Tradição a ter em conta no ataviar de noivas na cultura anglo-
saxónica.
2 Referência ao romance de Aquilino Ribeiro, Quando os Lobos Uivam.
3 Referência óbvia.
4 Referência menos óbvia.
5 Deus é o único Deus. Guiné.
6 Rap ariga em crioulo da Guiné Portuguesa.
7 Referência a L’Aventure Ambiguë, romance do Sheik Hamidou Kane. Senegal.
8 Paráfrase do Conde de Vimioso, Cancioneiro de Resende.
9 Referência a F. Garcia Lorca.
10 Birago Dio. Incantation. Senegal.
11 Aimé Césaire. Patience des Signes. Antilhas.
12 A vinda é doce, a ida dói, mas quem não p arte não tem regresso. Crioulo. Cabo Verde.
13 Corsino Fortes. Pão & Fonema. Cabo Verde.
14 Partida. Crioulo. Cabo Verde.
15 Foras tu comigo e eu caminharia p ara a minha morte e rep ouso na alegria. Ah quão doce seria meu fim foras tu a
fechar-me com tuas mãos, belas, os olhos fiéis. Stolzel. Do Livro de Notas p ara Ana M adalena Bach (1725).
IV
CASA DE ELVIRA
STELLA
Tudo, tudo mudou, não é só o vires caminho da praça derrancada dos
braços desafeitos a um tão grande peso, tê-lo seguro com um e lavar-lhe
a cara, os peitos e os antebraços grisalhos com o outro, cortar-lhe as
unhas sarrentas assentado na pia, lavar-lhe as partes no bidé com ele a
desviar a cara, a dizer, Deixa, deixa isso, rapariga. Tem mais tino, hoje.
O teu homem disse, Pelas onze volto cá, faço-lhe a barba e ala para a
consulta, ouviu, meu pai? E ele disse, com um meio de riso por entre os
pêlos pigarços espetadiços, Seja, homem, cá estou. Pôs-se de atalaia à
rua firmado no parapeito enquanto davas de mamar ao menino, uma
fralda por cima. O menino, desacostumado, tirou-a ao chão, uma, três
vezes. Depois hesitando entre berrar e sugar, calou-se com os olhinhos
a meio fechar de gula, o punha cerrado na tua mão, o cenho ainda a
protestar mas lá foi, os dois únicos dentes debaixo a rilhar-te o mamilo.
Tudo mudou. D. Marieta pela manhã entrou na cozinha. Tinhas a
cafeteira ao lume, e alguidar para as águas aos pés. Ela disse, Olhe
menina Elvira, não tem precisão de o estar a lavar no quarto que me
derrama a água e mancha o soalho todo, incomoda-me a Fatinha que
inda está a descansar. Sirva-se da casa de banho, desde que deixe tudo
em ordem. Depois, deu um puxão aos virados do robe acolchoado com
botões de massa irisada e flores mindinhas, roxas de olho rosa em
fundo branco, gorda, gorda e começou a lidar com a torradeira eléctrica
muito sacudida, a meter a ficha baixa gemendo, Ai hoje o meu fígado
está de todo, hei-de mandar pôr uma ficha por cima do frigorífico para
a batedeira. Era a trégua seca. O teu homem já tinha saído, repetindo
com força, atarantado mas firme daquele novo peso, a ter que ater-te do
desamparo em que te vira nas vésperas, pelo meio das noites de
levante, sussurradamente alvoroçadas a amparar o velho em vigília,
Logo pelas onze e meia estou cá com a guia, já pedi dispensa, faço-le a
barba e ala, queres que to ajude a lavar? Não, ele hoje está
melhorzinho, não merece a pena atrasares-te, disseste com a voz
vibrante onde já só estava uma raspazinha de medo, da coragem
disseste, Eu posso, não viste como ele já se alevantou? D. Marieta
disse, Vamos lá a ver o que diz o médico, isto é para internamento com
certeza, a minha madrinha também lhe deu assim, mas pouco tempo
incomodou, coitadinha, para o fim já nem podia sentir os cãezinhos que
era a grande estimação dela e eram de raça, uns pekinois daqueles de
nariz chato, maus que eu sei lá, credo, o que eu passei. Mas valeu a
pena, ó D. Marieta, disse o teu homem antes de sair, Que é que o senhor
António quer dizer com isso, ora essa?, Nada, D. Marieta, nada,
Sacrifiquei-me muito, lá isso sacrifiquei, a lavá-la, a pegar-lhe a peso,
mas olhe que não foi de mais para a estimação em que ela me tinha,
coitadinha, aquilo foi uma mãe para mim e mesmo na doença sempre
tão fina, comia as bolachas araruta molhadas no chá, era só o que ela
comia e umas colherezinhas de maizena, sempre com uns modos, nunca
se lhe ouviu um desbocamento, Atão até logo, D. Marieta, Vai levá-lo
hoje ao hospital, não vai senhor António? Estou cá pelas onze, A ver se
esta desgraça se resolve. À porta ele disse, baixo, Grandessíssimo
coirão, e, tal como ele esperava, até já te riste. E ele então apertou-te
um peito de rijo e disse, Havemos de sair desta enrascada, mulher, vais
ver que o velhote arriba e ainda o havemos de ver de sacho nas unhas.
Nem tu nem ele criam que assim fosse, mas ele desceu a escada e era a
luz dos teus olhos, viga da consolação. O menino estranhado da
presença do avô ao fundo do quarto berrava, agarrou-se-te com gana, os
olhinhos postos no intruso, o velho mostrara os cinco dentes
descarnados, picados de tabaco de onça. Ele deixara-lhe enroladas
umas quantas pitas, Aqui tem meu pai, de vício está aviado até que eu
venha, lá pelas onze, faço-le a barba e ala para a consulta, e ele tornou-
lhe muito certinho, Bem hajas, mas não lhe pôs o nome. O menino
espreita-o agora mais afeito da sacada do teu ombro, ainda beiça
fincado ao teu pescoço, É o teu avô, filho, atão não vês que é o
avozinho? E o velho diz, Amanhã hei-de ir à do Hermínio buscar-lhe
uma cega-rega, olá se hei-de, Ao Hermínio não, meu pai, a gente
estamos em Lisboa, mas havemos de ir lá pela Páscoa com o menino à
Cidália, vossemecê há-de-se pôr bom, que vossemecê ainda não o
conhecia, é um lindo menino, pois não é, meu pai?, é o teu avô,
Toninho, chama-se como o pai, vossemecê não acha que le dá ares?
Toninho, Toninho, Abílio é que havia de ser, Ora, meu pai, Abílio já
vossemecê tem um, fica para a próxima. E ele diz, do assento do divã
por fazer, a arquejar na pieira da tosse, De quem é, o cachopo? É o seu
neto, meu pai, tornas-lhe tu, esmorecida, e pões-te a alinhar o quarto,
deitaste os lençóis e os cobertores abaixo na tua cama, hoje não há
manchas frescas daqueles leites do corpo que tu escondias antes de
lavar, com os nervos esqueceste-te de tomar a pílula, talvez que ainda
vá a tempo, senão amanhã estás outra vez a sangrar e inda foi há tão
pocachinhos dias. Vais disfarçada tomá-la à torneira que ela assim não
te mói como te moía ao princípio. Ó Elvirazinha, que desleixo, credo,
isso assim ainda lhe faz mal, se eu soubesse a Fatinha nem lhe tinha
dito, credo, custa alguma coisa. Mas custava, todas as noites espetar a
unha naquela pratinha de chocolate e mica estranha aos dedos, aquela
baga engoli-la todos os dias, custava. O teu homem dizia, Tomaste-a
hoje?, senão tenho que botar fora. E tu tomavas. Talvez que ainda vás a
tempo, é manhã cedo, pelas oito. Voltas, bates o colchão, melhor não
abrir a janela que está por detrás das costas do teu pai. Deixá-lo, arejas
logo. Puxas os lençóis, fazes a dobra de entalar como ela te ensinou,
Nos hospitais é assim, Elvirazinha, faz-se assim uma prega para ficar
mais liso, dura mais, foi a enfermeira da minha madrinha que me
ensinou, coitadinha. Lídia vinha e ria-se, Na casa da minha senhora não
são de engomar, Isso hão-de ser caríssimos, ó menina Lídia, Fatinha,
hás-de-me ver se há na Baixa, ai filha, só o não ter que engomar. Os
cobertores, a colcha de crochet branco que ela te ensinou tantos meses
as rosetas, de entremeio com as lãzinhas do menino, a dobra bem
entalada por debaixo da travesseira. Puxas o teu pai do divã para a tua
cama feita, ele parece acordar, diz, Que é, que é que tu queres
mostrenga?, segura-se e diz, Ai és tu, mas não diz o teu nome. O menino
está acordado, dá aos pezinhos, palra e gorjeia mirando-te o lidar. Com
um grande esforço de ranger, os dentes aperreados, fechas o divã com a
cama feita dentro e encostas ao vão da janela. Deitas o menino ao lado
do velho sentado na tua cama e dizes, Tenha mão nele, meu pai, por
dizer, e recomeças com os lençolinhos pequenos que têm patas a cheio
na bordadura da bainha. O velho canta-lhe, Lá vai uma lá vão duas, três
pombinhas avoar, uma é minha, outra é tua, outra é de quem na apanhar,
com voz roufenha mas certinha da música de cantador antigo, o menino
dobra o riso, pedala, agarra-lhe os dedos, o velho diz, desdentado, o
ralo no peito mais fundo de gosto, Ah ganapo do diabo, ah ganapinho,
queres uma codinha para rilhar, queres? E tu rindo também voltas a pô-
lo na alcofa de folho e dizes, Não mo esteja a espertar, meu pai, que eu
agora tenho de ir à praça. E mais dizes enquanto o deitas, protestante
sem muita gana, o sono a vir, Para o mês que vem já hás-de ter uma
caminha, já quase não cabe, e o velho assevera-te, com muito tino,
Atão, agora é que ele tem que medrar. Mas não te dá nenhum sinal
quando lhe dizes, Eu não me demoro, meu pai, vou pelo almoço.
Encolhida, sais e pedes-lhe que deite um olho ao quarto, por eles. Ela
responde-te, Olhe que eu não posso garantir, menina Elvira, que hoje é
dia de mulher a dias, veja se não demora, podia ter ido ontem, O
frigorífico estava muito cheio, D. Marieta, Então vá, mas veja então se
não demora, que eu tenho a minha vida. E tu desces a escada, as ruas,
com o coração à boca, esgueirando-te de todos, saindo para fora dos
passeios a passo estugado sem ir de carreira que parece mal. Tudo,
tudo mudou,

e chegas ao portão da praça com os braços inchados por dentro. Tão


lassos que o cesto, o gesto de o pender vazio, são dolorosos. Hoje não
vais parar diante da montra onde está a ninhada de pequenos patos
sobre palhas, sob uma lâmpada vermelha, ver os pássaros de rabo
longo, azul celeste, verde limão, senhor dos passos e malva, os papos
sempre mais aguados de cor, as cabecinhas catadas do par, as asas
carregadas de perdiz miúda, garrote quase negro à volta do pescoço,
Ah isso são periquitos, Elvirazinha, a minha madrinha tinha um
casalinho, isso dá um trabalhão a limpar a gaiola, suja-se tudo à volta
de cascas de alpista e do cânhamo, são muito lindinhos, são. Ficavas a
ver, com o porta-moedas na mão, às vezes havia uns ratos de pêlo de
pêssego a andar à nora numa roda ao alto, com as orelhas que pareciam
pétalas da flor da amêndoa, quase transparentes, escurinhas, sem rabo,
Isso não são ratos, ria-se a Fátima, vêm do Canadá. Viriam. Também
havia grandes coelhos espanhóis, dos que a tua mãe criava com esmero,
de orelha quebrada, malhados a três cores, e então os peixes. Não te
atrevias a entrar mas vias de fora como alumiavam a azul ferrete e
morrão de vela, na água escura, os mais miudinhos como cabeça de
dedo, como largavam atrás de si um manto de andor ao vento os
maiores, brancos, e os cor de tanja. Deixa estar que um dia que a gente
se possa mudar para uma casa da gente, hei-de-te comprar um aquário.
Mas tu não saberias lidar com aqueles peixes lindos como luzes-cu e
flores, era só para ver. Levou-te ele então ao Aquário Vasco da Gama e
disse-te, o braço à volta da cintura cheia, o queixo enterrado no teu
ombro a espreitar contigo aqueles fundos luminosos dos mares, Fecha a
boca, rapariga, inda pensam que és alguma tolinha. Mas uma gatinha cor
de espiga seca havias de comprar, quando fosse da casa, os olhos azuis
aguados e o nariz e patas de chamusco, Credo, Elvirazinha, cá em casa
Deus me livre, deitam cheiro a tudo, uma pouca vergonha quando é o
mês deles, e até é um perigo para o menino, se lhe vai aos olhos. Até
podia ser que houvesses de vir a ter um quintalzinho que tu ordenasses,
um dia. Podia ser, pensavas com o menino ao colo enquanto uma a uma
lhe roías as unhas moles, fechada no quarto, Credo, Elvirazinha, que
porcaria, há umas tesourinhas para os bebés. Não lhe querias cortar a
fala. E vais hoje na praça por dentro daquele vozear sob altas
abóbadas, transpões aqueles portais de paço encimado pela cúpula de
mosaico amarelo e catavento azul forte, mais lá para baixo na avenida é
a estação para as praias, não há melhor peixe que o da D. Arminda, a
de avental de veludo preto e tantos ouros, nas mãos, nas orelhas, ao
peito. Lá alto estão as clarabóias vidradas, por cima dos outros
patamares de fruta e hortaliça, das bagas e temperos e azeitonas
vendidas a peso de alguidar, ainda com a folha de tomilho agarrada,
cachos de pimentão e renques de alho e cebola, agrião orvalhado, a
couve-flor com os seus olhos brancos, compactos e duros acoitados no
verde. E as flores, que elas aspergem com as mãos rilhadas dos arames
de armar as grandes coroas de defuntos, até cravos azuis e essoutras
que parecem aranhas cruzeiras, as orquídeas, gladíolos maiores que um
pé de milho, tantas violetas. Uma vez compraste dois pezinhos a cinco
escudos e ela disse que as flores vivas no quarto que faziam mal.
Também logo murcharam, é flor de melindre, e do calor da mão de
grávida a acartar o cabaz. O manjerico, esse deu cheiro até ao fim do
Verão no parapeito das noites quentes, pouco espigou, regado pela
tardinha, o cravo de papel tomou ferrugem, desmaio do relento,

Quando eu for velho Maria


Poe-te à minha cabeceira
Que me feches tu os olhos
Nessa hora derradeira,

Olha, mas eu cá não sou Maria, homem, Deixá-lo, é como se fosses e


este é que é o meu sentir, disse-te ele à saída da feira quando to passou
para a mão, leu. Lá muito no alto de onde vêm todos os ecos sobre a
grande praça fechada os vidros estão sujos. Há poças de água e sangue
nas pedras de descamar, nos tanques de lavar o peixe. Uma varina bebe
pelo gargalo a grande goles, meia carcaça na mão. Larga, limpa a boca
à manga e chama-te, vás tu lampeira que não vás, Ó freguesa atão hoje
não vai nada? Já te acostumaste. É à da D. Arminda que vais, por
cachucho. Tantos, tantos gritos, baquear de caixotes de grade, de peças
inteiras de carne, de cutelos afiados, do grasnido de aves degoladas que
pendem pelo pescoço sangrando do lado de fora das bancadas. Reses e
porcos estão abertos esventrados suspensos de grandes ganchos
enegrecidos, os rins brilham em cima dos mármores com a sua película
beringela, vidrada, as mioleiras parecem sapos brancos agachados
sobre as patas na lua cheia, há um caixote cheio de peles de coelho
ainda ensanguentadas e os pequenos corpos minúsculos lisos e claros
têm apenas olhos baços, um tufo de pêlo no rabo. Algumas amêijoas
tacteiam as conchas próximas com os seus pedúnculos vivos, o camarão
translúcido pincha de oras enquanto, estremece. Veios de sangue
escorrem ainda do coração de espinha das postas brancas da pescada
do alto, as sardas luzem no dorso malhas de azul profundo ao lado da
lula aluada, dos salmonetes a que aquela, criada de casa farta, levanta a
guelra como se fora sovaco de asa, cheira, Veja lá se quer meter alguma
coisa que lá tenha em casa, atão isso não está fresco, senhora? É a D.
Arminda. Credo, ó menina Elvira, mas que cara que hoje me traz,
santinha, Ó freguesa, tire-me a mão da pescada, isto é que é um castigo,
amassam-me o peixe todo, diz que olho cego é só um, mas estas trazem
o cu na cara, Atão o que é que vai a ser hoje, santinha, tenho aqui um
cachuchozinho que é uma beleza, traz alguém, doente, filha?

SURPREENDENTE MATÉRIA ESSA

do sal, que demais não será jamais louvada em terras estas de largas
costas salineiras. Atentai ora pois de suas propriedades a todos os
outros mantimentos se acomoda, dando reforço a sua ancheza de fibras
ricas, novidade à humilde baga insípida, tremoço, pevide. Exaltando
das carnes só seu espírito, pondo nos pães sua só esperteza de travo.
Assim, até longínquas dobras arenosas e sob a ríspida corola da
tamareira, inscrevem esses cristais a sua traça marítima, sulcando o
palato dos homens e suas bestas da irisação das espumas, capilar
periculosidade das medusas, as sápidas memórias. O açúcar seda,
satisfaz, é a outra primícia. O sal das águas largas é porém matriz do
rastejar primeiro para os elementos altos — o fogo, o ar. Sobre terras,
pântanos insípidos. A seco porém e em sua só inteireza abrasiva, quem
no estima ou sequer o rigor lhe suporta? Vede que só os mais rudes
animais capazes de íngreme, migrantes, cabras, crianças secas, gente da
sede crónica. Este é o que reserva as águas no seu posto móvel e lacera
os insondáveis rins. Entre nós, salineiros por piscatórias águas e
deslocação de urbes sóbrias suspensas sobre rias — o sal está onde a
fermentação dos mostos, a preservação das carnes, dar têmpera. Ora
pois — que vícios contrapor a tais virtudes? Que malefícios prevenir a
tão indúctil bem, sacramento de sageza sobre o beiço do neófito? Os há,
porém, — o sal incha ou resserra. Mulher prenha e víscera velha devem
aprender-se de temê-lo. Assim o sal semelha a mão que salga — se
pouca é desuso triste ao paladar; o excesso, o abuso da aspersão, mata,
queima quem dele farta. Que pois devemos face à mão que o sal
empunha, ocupa, penetrada da vitral acridez até palpos de língua,
curtiduras de feições e mechas de cabelo? Que tento tenha em bem
salgar as gordas coisas a que desinchem ou cessem putridez avançada,
que não consinta sejam retidas de salmoura estática as que sustentam e
sempre foram limpas, que não abrase os verdes, a tenrez. Indes que tal
mister de salinar, modular o tónico, o adstringente, a todos nos
concerna, tão salgada nação, ousar de seu administrar a boa conta. Da
arte de salgar contra o pútrido toda a mão lusa devia ter mesura. Porém,
salvo nos grandes peixes espatuláveis e nas veras colinas desta matéria
dada — salinas — é a mulher que mede e de sua mestria nisso sabereis
destino de sua casa e gerações: É temer-se da escassa e da mão solta.
Dependendo sobre que carne e bocas modula o exercício da aspersão
dos cálculos mínimos, o unguento pisado com alho e especiarias. Ora
pois, senhora de salgar, deusa da pedra dúctil e solúvel, não haverá de
vosso assento uma tão-só palavra sobre quem o sonega ou o abusa? Ora
pois, mão mestra da alquimia dele, mentora do gado parco que o tem
por numinoso bem, onde está o cajado que de direito fronteira teu
cabreiro redil? Se o reino é doutro mundo, o sal é deste, gema incisa,
vitral soluto, sobre as línguas inermes, as calotes gélidas, extremas.
Louvemos ainda os que se habitam dos cristais lacerantes, sapidez
tónica, havendo-os consubstanciado ao ânimo íntimo pela rareza da
expulsão dele, sal, lágrimas raras,
Ó santinha, não se rale, atão ela faz mais que a sua obrigação em ter lá
o velhote? vocês não lhe pagam o quarto? Grandessíssima cabra, isso
brada aos céus, Havia de ser comigo, Ó Leocádia anda cá ouvir esta,
Nem que eu lhe partisse a loiça toda nos cornos depois que se fosse
queixar à esquadra, Olha o estupor, coitadinha da criatura, já não há
respeito pela doença, mande-ma cá que eu dou-lhe com uma chaputa nas
trombas, a fazer-se fina, o coirão, Ó santinha, não se aflija, cante-lhe de
alto, que o seu homem é farda, Olhe, tenho aqui umas sardazinhas
frescas que é um regalo e leve esta postazinha do alto que é oferta para
o velhote, grandessíssima cabra, havia de ser comigo, e as melhoras do
seu paizinho, santinha, Coitadinha, ela é mas é branda, a outra caga-lhe
em cima, um desenxovalho duma rapariga,

Tinham cevado o porco há dois dias, a tua mãe andava com os braços
cheios de carolos de unto e colorau, as unhas estavam negras do sangue
coalhado das morcelas, tinhas ido ajudar a segurar no grande traseiro
do bicho que pinchava sangue do cachaço para uma gamela. Assim era
ainda aquela carnificina todos os anos, só este te deixaram pôr as duas
mãos com força no estertorar dos quartos trementes de onde saíam
pedaços de uma merda em pastas, uma mija negra. Fincavas as unhas
nas dobras de pele clara com os pêlos rijos, cerravas os dentes no
mesmo prazer que os acometia a todos, nessa noite já haveria
torresmos, nacos de febras estrugidos sobre brasas de fumo de azinho.
Ora foras por mais sal, pontas de orelhas e pés cascudos despontavam
chamuscados da salgadeira, era o cair da noite, hora de mandados.
Numa sarça adiante luziram-te dois olhos pequenos, depois um pincho
trôpego, o bicho caiu-te de borco quase aos pés. Era um gineto
pequeno, os chifrinhos de pêlo branco estremeciam na aragem, os olhos
agora fechados, no lusco-fusco, Para que me vens tu arrenegar com
isso, rapariga, isso é bicho bravio, ora uma destas, aventa-me isso
daqui para fora, o bicho já está morto, Deixa lá a cachopinha entreter-
se, mulher, também não é boca que esbarronde a bolsa, deita-o além
cima duma pouca de cinza do lar, Vira, vai buscar a chucha moída do
teu irmão, a que ele aventou, faz-se-le um buraco, aquece aí um dedal
de leite na púcara, o bicho está vivo, dá-te graça? pois também a mim.
Criou-se a pontas de leite, a petinga, a raspas de carne salobrada, até
sopas de vinho. Ao primeiro tolhia-se no canto da casa onde pior
alumiasse, escondia-se atrás de potes e arcas, dormia-te numa rosca de
pêlo morno entre ti e o Abílio, que o judiava e a quem davas lambadas.
Bufava com uns grandes dentes finos maiores que os dos gatos e as
orelhas aguçadas recolhidas, lambia-te de unto com a língua de lixa aos
cantos da boca e as buracas do nariz. Um dia, estralhaçou um pinto
pedrês. A tua mãe disse, Rais parta o enguiço, hão-de-se me ir as
galinhas todas. E o teu pai disse, É tempo. E foste com ele pô-lo para lá
do Ervedal, num matorral ermo. O teu pai disse, Há-de-se amanhar, e
trouxe-te de carrego até ao terreiro da casa, escarranchada à cinta,
assoou-te. Foi a última vez que te deu colo. Já pesavas.

Aquela escadaria parece a do Senhor Santo Cristo, há militares coxos


agarrados a dois paus de muleta, há um que tem a manga dobrada com
um alfinete de ama, lá dentro há-de estar um coto grosso, um latagão. O
teu pai cá vai na sua passinha de texugo, parece outra vez cagado. Fez
as precisões em casa antes de sair, quis ser ele a limpar-se e disseste,
Veja lá, meu pai, que vamos à consulta. E ele disse, Cuidas que sou
maneta? Mas não vos dá pelo nome. Veio amodorrado, vai esforçado
degrau a degrau a não dar parte fraca, a olhar para o chão. Num grande
corredor que cheira a tintura de iodo, passam mais homens entrapados,
as caras de um verdoso macilento, as cabeças ligadas de gaze limpa ou
crânios rasos com traças de mercúrio de lado a lado em cima de
cicatrizes negras, cruzadas por estrias de pontos. Um homem novo vem
de cabeça de borco e mãos bambas, numa cadeira de rodas, baba-se,
empurrado por outro que traz o casaco da farda por cima do pijama.
Puta de guerra, carago, diz o teu homem entre dentes, naquele avanço de
andor em que ides a amparar o teu pai, Isto é tudo da guerra?, dizes tu e
ele diz, Cala-te, a mal.

Despiram-no por detrás do biombo; Vem agora a avançar o melhor que


pode, está em brios desviado da enfermeira que o segura, vem em
peúgas, a cueca do teu homem cinge-lhe mal as grandes partes
descaídas, está limpo. Perguntam-lhe o nome e ele diz, inteiro. Da tua
mãe só soube, Dália. Então tu disseste para a enfermeira que preenchia
o papel, Era Cidália, senhora enfermeira. Estás tu e o teu homem
encostados a uma parede onde há um armário só de um corpo com
frascos, seringas e pinças. Há uma secretária com as pernas cromadas e
uma cama estreita com espuma de borracha e um pano manchado e
lavado por cima. O médico vem. Fá-lo andar sozinho. Ele esmera-se
mais, apruma-se de peito do desempenado que foi. Marcha assim
rasinho ao chão, apoia-se na cama. Ele já anda assim há quanto tempo?
e ajuda-o a sentar, bate-lhe com ferrinhos nos joelhos. Nada bule.
Deita-o. Dói-lhe aqui, ó amigo? Não senhora, não, Vamos lá então
vestir, e para vocês, o velho do lado de lá do biombo, diz em fala mais
baixa, Isto vai ser sempre a piorar, pode-se atalhar um pouco, mas,
vocês têm condições para ficar com ele?, andar ainda anda mais uns
tempos, Quanto tempo, meu major? Pode ser meses, pode ser um ano ou
mais, é teu sogro não é, rapaz? É sim meu major. Não chore, senhora,
que muito bom está ele para o avanço da doença, ele ouve mal? Não
sei, senhor doutor, ele só agora é que veio para a nossa beira, não se
recorda dos nomes da gente, acorda de noite a cuidar que é dia, quer ir
trabalhar, depois lá fica mais cordo, mouco não me parece muito, não,
Tudo isso é próprio, têm momentos, sabe?

— Ora então sente-se lá, senhor Carreiras, então o senhor que idade
tem?
— Não merece a pena, não estou derreado.
— Sente-se homem, isso, que é para a gente ter aqui uma conversa, está
aqui em boa companhia, com a sua filha e o seu genro, ora então
quantos anos conta?
— Ahn, que é que ele disse?
— Estava a perguntar-lhe a idade, quantos anos tem vossemecê, meu
pai.
— Ora, eu já sou velho como os trapos, velho e relho.
— Que idade tem ele?
— Há-de ir pelos setenta, meu major.
— Bom, então não é tão velho como isso, ó senhor Carreiras.
— Isso fora os que mamei.
— Ora vamos lá saber, então gosta de estar cá em Lisboa com a sua
gente?
— Ahn?
— A sua gente, com a sua filha e o seu genro, se gosta de estar cá em
Lisboa?
— Já vi a Avenida, sim senhor, e fui de passeio ao Parque, havia lá
umas belas carvalhas, sim senhor.
— Isso foi da outra vez, meu pai, inda a nossa mãe era viva.
— Mas gosta de cá estar, com a sua gente?
— Pois muito belo, sim senhor.
— Ele não ouviu, isto complica a coisa. Oiça cá, senhor Carreiras, e
quando é que veio lá da sua terra?
— Vai para uns anos, sim senhor, que eu aqui em Braga,
— Mas então não foi agora que o senhor veio para casa da sua filha?
— Ná, eles são bons para mim, sim senhor, mas eu tenho que lá voltar à
terra, tenho lá umas cepazinhas e ele agora é que é dar-les e por via
dumas águas,
— Mas então oiça lá, teve lá alguma pega com alguns vizinhos, é isso?
— Tudo coldra, isto é tudo uma choldra.
— Bem, deixe lá isso e olhe, lembra-se do que comeu hoje pela manhã?
— Pelo almoço foi umas cabeças de bacalhau com grão e pão de milho.
— Ó meu pai, mas vossemecê ainda não almoçou, foi uma caneca de
café e pão com manteiga, senhor doutor.
— Olhe, ó senhor Carreiras, vamos lá a ver, então quantos filhos é que
o senhor tem?
— Filhos, filhos, tenho estes que aqui estão, mais um pequerruchinho
que está lá em casa.
— Não tem mais filhos?
— São estes, são estes e mais esse.
— É o neto, senhor doutor, a gente somos quatro irmãos.
— Não se aflija, isto é próprio da doença, ele há-de estar umas vezes
mais confuso que outras.
— Ele varou do juízo, senhor doutor?
— Não é bem isso, isto é tudo do mesmo mal, as pernas, estas ideias,
as veias cansam-se e o sangue não chega bem à cabeça.
— Vossa Excelência é de parecer que ele inda pode voltar para a terra,
meu major?
— Se tiver lá quem o cuide bem.
— Isto é tudo uma choldra, queriam eles cortar-me a água e eu então,

Não verei o desmoronamento do meu edifício, a diáspora dos filhos dos


meus filhos. Não verei as fendas abertas sobre as telhas que estas mãos
assentaram de rojo sobre a traça do tecto, raspadas dos fungos por estas
mãos, a mordedura da saraiva sobre os vidros insubstituídos, não verei
a proliferação dos míldios e a lenta contorção dos caules podres na
horta, as bichas nos tubérculos. Não verei a maldição dos meus artelhos
perros, a segação do meu assento sobre a terra, o Senhor Santo Deus se
compadeça de mim e dos meus frutos.

Na parede estão os retratos dos presidentes, tu conheces. Assoas-te a


um lencinho miúdo e dizes ao senhor doutor que desculpe. Ele diz,
Bem, isto enquanto vocês puderem aguentá-lo não está para
internamento. Olhas para o teu homem. Tem o sobrolho franzido, a
queixada presa, guarda a aflição para ele. Mais guarda a papeleta, o
papel das análises, a receita. Agradecem muito. O teu pai diz, Atão
boas tardes, senhor doutor e saudinha. Seguis com ele quase
prazenteiro, a arrastar os pés por aqueles corredores cheios de
aleijados na flor da idade.

Porque agora, Elvira, enquanto contemplas invisualmente a proliferação


indecifrável dos dados da cidade, essa mão calosa e placidamente
resignada à velhice e breve fim na tua mão zebrada e vermelha das
calcárias águas e matérias cáusticas, agora chegou um tempo duma
grande turbação. Só tu ouvirias a prossecução desta palavra como
antiquíssimo ranger de cordame resistindo em molhe à pressão de muito
densas águas, tão habitadas e mortais. Como colar tua paixão gemida a
essoutra da univocidade das articulações vozes e inscrições, algures,
num outro veio puríssimo decantado de escórias? Assim fitam-se
amantemente uns olhos sós e se pode dizer — eis aqui o
restabelecimento da lisura das tábuas, o assento da minha precária
passagem na preclara consciência, acrescida. Ladeiam-se as incisões, a
grande arca de resíduos que um e outro transporta, transmigra, e, no
clarão sumptuário da perdição dos olhos no olhar-se, na junção indual
das bocas que não falam, tudo parece perdoado, iniciático, o apogeu da
errância enfim proscrita. E agora, do terror — isso onde estás, o clímax
da mudança — o que era não mais poderá ser. Toda a paixão é a
aterradora inscrição no ovo límpido dos sinais da eclosão eminente,
falhas. Sob o cálido corpo (e solar) surde da fenda em júbilo e agonia
apenas mais larga faixa a desvendar. As calhas dos eléctricos e as
empenas dos edifícios de habitação descrevem-te ao olhar cego de
agónico apenas pequena célula da tessitura indecifrada onde seca e
arrufa a nossa pena ainda quase implume, surta de contínuas e contíguas
cascas. Um pano escarlate que ostenta a cruz de Avis sobre um portal
de igreja ocupa-te, absorta, o ângulo lateral de visão, ó confidente
preterida, impraticável. Justa porém e hóspita leitora dos motivos
simples, no meu sondar contigo o dito glabro e individuado que subjaz
vivo à discutível unicidade do Auctor1, agora em ti a minha vida a mais
legível2.
O senhor Hermínio espreita do fundo do corredor, a mão na maçaneta
do quarto, a barba por fazer, casaco de pijama. Desleixou-se mais,
hoje, pergunta das melhoras e mal ouve da resposta, Vai melhorzinho,
agradecida senhor Hermínio. Teme-se, fecha a porta do quarto
penumbroso, já deve ter comido, a sesta agora. Fátima luz um roupão
novo, de veludo roxo e largas listas amarelas ao alto, chinelinha de
felpa a condizer, pêlos longos amarelo-ovo, Então o que disse o
médico? o teu homem faz um gesto largo de sugerir silêncio, respeito
pelo velho, mente, Que ele há-de arribar. D. Marieta vem da cozinha
com o tacão grosso a metralhar, Então, que é que o médico disse? Que
ele há-de-se pôr melhorzinho, desvias agora tu a vista. Sim, mas para
quando?, não marcou outra consulta? Vai ter que fazer umas análises,
Mas ó senhor António isso leva um ror de tempo, eu já os tinha avisado
que aqui, só por uma semana, a noite passada já acordei duas vezes e eu
para repegar o sono é um castigo, tu não ouviste, filha?, Deve ter sido
depois de eu chegar, Ó filha, credo, nem tu chegaste depois das quatro,
Eram seis da manhã, diz o teu homem, E que é que o senhor António tem
com isso?, Deviam ser seis, mãe, tivemos muito serviço ontem na boîte,
fechou mais tarde.

Tu puseste a água a aquecer para as sardas e posta que estão de sal no


frigorífico, Ó menina Elvira, eu já lhe tinha dito para não me pôr o
peixe destapado no frigorífico, que dá cheiro, se não fosse por ter dó do
seu pai tinha-lho tirado para fora, isto assim é um aborrecimento, A
mãe podia tê-lo tapado, Ai isso não, filha, eu cumpro os meus deveres
com os hóspedes eles que cumpram os deles, muito tenho feito eu. Tem
a cabeça cheia de rolos e um penteador de nylon azul celeste. Raspa os
restos dos pratos para dentro do saco de plástico do caixote moderno,
de pedal, enjoada, vai-os acamando no lavatório de inox, pratos com
pratos, talheres e sertãs já de molho, para ir tirando a maior, Inda bem
que a mulher a dias agora dá as tardes, eu ando que não posso dos meus
rins, quem devia ir ao médico era eu, Marque consulta, mãe, Hei-de
marcar, hei-de, isto é do coração, depois do tremor de terra tenho
passado tão mal. Tu descascas as batatas para dentro dum papel de
jornal. Perguntas a medo se o menino comeu. Nem por isso, nem por
isso, deixou o purezinho de legumes quase todo, que até a criança anda
nervosa com tudo isto, passou a manhã a chorar, inda lá fui umas três
vezes e a menina Elvira sabe que eu não tenho vida para isso, com o
peso que a criança já tem, eu posso lá, Mas a mãe ontem esteve a mudar
as gavetas todas do quarto, andou por aí ajoujada com elas para o
quintal, Ai filha mas isso era uma necessidade, tem que ser senão as
coisas ganham mofo, Por isso é que lhe doem as costas, mãe, Não, não,
isto é dos rins, eu já não hei-de durar muito, Ora, desde que me conheço
que a oiço dizer isso, Pois ouves filha, que só eu sei o que tenho
sofrido, eu mexo-me mas é a poder de nervos. A água ferve. Deitas o
peixe, o sal. Isso é do seu sal, menina Elvira? É sim, D. Marieta, é do
meu, Mas vamos lá a saber, que é que o médico disse da doença do seu
pai? Disse que ele tem que fazer as análises e tomar os medicamentos,
Mas ele melhora? O senhor doutor disse que ele atalhar, atalha, Mas
então o que é que pensam fazer, vão mandá-lo para a terra?, lá também
tem a sua outra irmã, ela tem tanta obrigação como vocês, estarem
assim a estragarem a vossa vida, Não sei, inda tenho que falar com o
meu marido, para ver o que havemos de fazer, O seu marido, o seu
marido, você é que tem que se decidir que o homem acanha-se, não é
filho, estar-lhe assim a estragar-lhe a vida, Se a D. Marieta não se
importasse de ele cá ficar até fazer as análises, Isto é uma ralação, mas
quando é que dão os resultados? Parece que é uma semana, ele vai
amanhã com o meu marido, Uma semana nisto?, e depois há-de ser a
consulta, quando é que o médico o mandou lá voltar? Credo, mãe,
parece que é da judiciária, Deixá-lo filha, que isto é um grande
transtorno para a nossa vida, de roupas, de tudo, está ali o quarto que
até parece mal, um homem daquela idade deitado no mesmo quarto que
um casal, Ora mãe, há quem durma sete na mesma cama, Mas isso é
gente relaxada, depois vai-se a ver e até têm televisão e aparelhos de
pilhas e carros à volta das barracas, isto não é uma casa de ciganos, lá
desmazelos não, isso nem parece teu, filha, Tenho pena do velho, mãe,
Tu sempre tiveste bom coração, filha, felizmente não deixas que te
pisem no serviço.

Tu dispões os talheres para os três. As bagas das lágrimas caem-te


sobre as mãos que lidam, evitas fungar de rijo, tiras o lencinho já
húmido da manga, assoas-te, vais ter que lavar as mãos que ela vê.
Fátima vê, Ó Elvira, mas também não vale a pena estar-se a afligir
assim, talvez ele possa ser internado cá, a sua irmã Lídia que fale aos
patrões, às vezes para entrar para os hospitais basta um pedido forte, O
senhor doutor disse que ele ainda não está para ser internado, Ora, não
está para ser internado, o que eles não querem é tê-los lá, os calaceiros
dos médicos e das enfermeiras, e a gente cá que o ature e a este
desatino, a menina Elvira tem é que falar à Lídia e quanto antes, tenha
paciência eu não tenho saúde para me estar a ralar desta maneira. A
porta da cozinha bate com estrondo. Fátima diz, Deixe lá, fale mas é à
sua irmã, Eu já falei, ela diz que ajuda com alguma coisa, mas que ele
vá para a terra, que há-de parecer mal aos patrões se ele tivesse que ser
internado tendo a gente, eu e a minha irmã Cidália, a menina Elisa é que
disse, — Deténs-te. Depois dizes a grande verdade espetada como
espinha das grossas no coração do teu desgosto, E eu não queria
interná-lo que ele não está ainda para isso e tem a gente, ele hoje até me
entreteve o menino, não se sujou. Fátima fica calada. A água ferve e os
testos dos tachos tinem. Depois ela diz, Eu o meu pai nunca o conheci.
Quando ela sai de mansinho fica um cheiro a flores fortes, nardos, de
mistura com os vapores de água do peixe que já escuma, do galheteiro
que dispões agora sobre a mesa, finalmente assoada, a aflição já só
peso como membro dormente. As batatas e a pouca de grelos já hão-de
estar.

TROMBETEIRA
fuga: foram vinte milénios para
chegar a esta utensilhagem e ainda é
pouco

Vem aí a mulher chamada Estela


nem sequer muito bela só louçã
Já não usa colete por farpela
que a demonstre logo como páupera;
é puerpere duas vezes em Arroios.
Trabalha num tear onde há dois mil,
não acarreta na cabeça nada
nem cântaro nem sogra (rosca de pano)
que não seja fluir e influir
sirenas do fechar e abrir.
É esperta
e sabe refogar a brando
todo o desejo
de mais a mais.
Porém é irmã chã,
isso a faz evitar içar-se a estrela
sem a costela macha,
constelação.
Aí vem Estela
não pode ser detida
é temporal
temporã.

Ó menina Elvira, olhe que estão a bater à porta, vá lá abrir que eu estou
a tirar os rolos e a mulher a dias foi ao pão, credo, sou eu que tenho que
fazer tudo nesta casa, se calhar é para si,

Ó Estela, olha a Estela, entra Estela, Ai cá dei com o andar, tás boa
Vira, tás boa, pois, tomaste corpo com o casamento, Ó Estela, tás mais
gorda, rapariga, ai que alegrão, Foi a Gina que me disse que tu agora,
Quem é, ó menina Elvira? É uma rapariga da minha criação, Dona
Marieta, é a dona da casa, ó Estela, anda ali para o quarto, vais ver o
menino e o meu pai, A Gina já me disse do teu pai, desta ralação em
que tu estás, a gente só se vê nas bodas e nas desgraças, eu hoje larguei
mais cedo, olha o tio Abílio, És tu, Cidália? Não senhora, meu pai, atão
vossemecê não vê?, é a Estela do ti Domingos, olhe aqui a Estela, Hum,
Sou eu ti Abílio, És a Cidália, bem vejo, toma aqui assento, Ele não
conhece a gente, Deixa, deixa Vira, não te apoquentes, que mais dá um
nome, ai que lindo que é o teu menino, mulher, mesmo lindo, é a tua
cara, Ná, olha que não, puxa mais ao António, Tu é que puxas a ele
rapariga, estás tal qual na mesma, Abençoada boda, Que é que
vossemecê, disse, meu pai? Abençoada boda a do rei Salomão, ó Dália,
Ó meu pai, a nossa mãe já lá está no descanso, eu sou a sua Elvira, esta
é a Estela. Abençoada boda, digo-to eu, Deixa Vira, ele lá sabe,

pois eu vinha cá por causa de dois quartos que lá estão para alugar lá
no pátio e quando a Gina me contou do teu pai eu fiz logo tenção de vir
que tu sabes que agora já vai para meio ano que eu estou na fábrica e a
gente,

1 Referência a M anuel Gusmão.


2 Referência a Fiama H. Pais Brandão.
IV
CASA DE MARY
CÁPSULA
Acha bem a altura, senhora dona Mary? Mary olha no espelho
rectangular ladeado de tocheiros de parede com campânula de chama
em vidro fosco a sua imagem de corpo inteiro, a mulher ajoelhada a
seus pés com a boca cheia de alfinetes, a pequena almofada de cetim
carmezim crivada de mais, a criatura tem uma blusa de manga curta e
virados, pendem-lhe linhas dos ombros grossos até à cintura curta, os
saltos dos mocassins sobre os quais se assenta a olhar-lhe os joelhos no
espelho e a cara estão um pouco, só um pouco cambados, Madame
observa também no espelho a zona onde a toile apenas cobre a rótula,
tem as pálpebras irisadas de verde-musgo e as pupilas e a pele luzem,
como a iluminação frontal face a espelho favorece, o corpo de Mary
dourado está coberto de placas de tecelagem rígida cor de pano cru,
Madame tem postos os pequenos óculos ovais de finíssimos aros de
ouro e corrente sobre o peito pontilhada de pequeníssimas pérolas um
pouco descaídas sobre a lomba do nariz um tudo nada busqué, joga com
o sautoir de contas de jade na mão lacada de pérola areia, Je crois qu’il
faut encore descendre un peu, ma petite, la tendance est à descendre e,
deixando tombar os óculos de um gesto vivaz, levanta-se e vem ao
ombro de Mary emergindo nu daquele colete áspero, farrapos hirtos que
a cobrem, a incomodaram sempre, ver a pele da mãe cobrir-se de
impingens nas arestas daqueles casulos de hóstia de pano em
intermináveis horas de prova, deixara-a sempre irrequieta, ansiosa
pelas pequenas sanduíches de foi gras aparadas e a xícara de porcelana
inglesa com chocolate quente, o lanche um pouco mais abaixo no
Chiado, uma cadeira vaga ao lado das duas, a mãe com o seu feltro
branco descido sobre a testa, circundadas de espelhos, madeiras e
florões de estuque, a carteira de calf mole, monogramada, as luvas
vazias pendentes sobre o fecho de estalido, as suas pernas de soquette
de crochet cru que não chegavam ao chão, o embrulho da Bénard com o
papel de bolas de gomos e meninas com arcos na praia com que a mãe a
compensava de ser sage comme une image, Quer vir comigo à
costureira, Mimi? Agora Madame repuxa-lhe um pouco de tecido sobre
o ombro, decide-se por rasgar uma costura de alinhavo sob o braço,
Aqui não está bem, Armanda, a altura da saia vê-se na segunda prova,
pouvez-vous venir jeudi, mon petit? Quinta-feira temos a senhora dona
Henriqueta, Madame, Ah essa, ah, querida Mimi, comme je déteste
trabalhar para esta gente, tenho uma saudade da sua chère mère. Mary
olha-se de novo ao espelho, também os seus dessous são gris-rat, como
vai bem com os cortinados de damasco rosa-velho, as cadeiras de
palhinha e dourados das cabines de prova, o chemisier tête de nègre de
Madame que cheira um pouco a âmbar, às emulsões ricas do fond de
teint mate. Para a outra prova traga os seus chanel, mon petit, por causa
dos saltos, não é o que vai levar? Armanda ergue-se sacudindo alguns
fios, exala um mínimo de hálito de alho, de axilas, sai sobraçando as
toiles, a almofadinha eriçada na mão, Então até sexta, madame, as
melhoras da Madaleninha. Mary diz, Já está sem febre, graças a Deus, e
começa a vestir-se com uma grande, grande lassidão. Madame volta a
sentar-se agora o tronco inclinado para trás, cruza de novo a perna de
meia cinza palidíssimo, acende um longo em ponta de boquilha de
écaille, curta, remate de prata, Ah, estas toiles, Armanda c’est bien,
mais ce n’est plus pareil. E perscruta gravemente, por entre rolos de
fumo, o rosto e o corpo de Mary vestindo o camiseiro de voile de lã
bordeaux, desenrolando a gola, apertando os botões, pequenas cabeças
de hidra em prata, ça ne se démode jamais, c’est du prêt à porter, mon
petit? Mary diz, Hum, hum, como os braços lhe pesam, olha-se no
espelho, como foi longo maquilhar-se, Madame comenta, Pas mal
comme petite robe, mais vou n’avez pas três bonne mine ces jours-ci.
Mary terá agora de se pentear, pára um pouco olhando no espelho
aquela cara onde o rouge parece tão exterior a uma palidez profunda,
sob os olhos. Madame inquire, Não se sente bem, petite? Acho-a a
emagrecer demasiado, ma chérie, c’est chic mais vous n’êtes quand
même pas manequin, mon petit, il faut plaire, ah votre chère mère se
faisait tant de souci, surtout depois da sua primo-inféction, mas sempre,
sempre, Estou tão cansada, Hélène, tão cansada, Mas isso não é natural,
minha querida, há que ir ao médico, foi o desgosto da morte de maman,
tant de malheurs dans la famille, faut faire attention, vous avez un mari
qui vous comble, des enfants adorables, voyons. Mary volta a olhar-se
no espelho prende agora o grampo da corrente de metal fumado e
prateado que lhe rodeia a cintura, vira-se um pouco para ver como cai
nas costas, o dorso longo, a anca estreita, Que vous ressemblez de plus
en plus à votre chère mère, como ela estava sempre ansiosa de si,
lembra-se de quantas provas fizemos para a sua robe de mariage? e
Madame olha agora no espelho com um sorriso quase espiègle uma
outra imagem de cintura colocada alto donde partem duas fundas pregas
de organza de seda branca, um busto cravejado de vidrilhos mínimos e
pequenos trevos diáfanos ou miosótis verde-água na mesma organza,
que alastra alta e hirta sobre o chão, as mangas amplas fechadas no
punho igualmente bordado de onde pendia aquela quase flácida mas
bonita mão, Elle n’aura jamais votre port de tête, Madame, mais ce
qu’elle vous ressemble, Oui, oui, endireite-se, Mimi, que péssimo
hábito que a menina tem de andar curvada, petite. Mary beija Madame
de lado na face que cheira a óleo de flores e desce a escada apoiando-
se nas costas do punho, as mãos carregadas de embrulhos, levanta mais
alto a cabeça e encolhe os ombros, respira fundo antes de entrar na rua
onde vai passar gente que conhece, o sol do meio dia é tão intenso após
a luz fluorescente e lâmpadas de lágrima fosca em candelabros de
bronze do salão de Madame, que hesita, atingida de um terror maior,
uma tontura leve. Atravessa a rua para comprar uns novos óculos
escuros, dior ou assim, detesta os italianos do ano passado. Está quente
e límpido, desce distribuindo alguns olás e sorrisos de dentes, alguém a
beija na face e na junção do punho e diz, Até quarta, só lhe digo que há
lebre, abraço ao Frederico, vejam se chegam cedo. Mary diz, Sim, sim,
adeus, beijo à Rucha, vê numa montra como lhe ficam bem os óculos,
ficariam bem aqueles escarpins verniz e bordeaux que entra e compra,
Vai levar calçado, Madame? Não, não. Diante de uma garrafa de lime
juice e lata de bagas de chocolate suchard’s com noisettes pensa, Que
estupidez, não precisava nada. Entra e pede dois tubos grandes de
smarties, Mas são lindos, espreita-os no saco, a forma não demasiado
cambrée, o tacão estreito, suave, um sobressalto pouco duradoiro de
gozo, dado que dão lindamente com o tailleur mescla verde seco e
vinho, Frederico disse, Escusava de andar a espalhar as suas tendências
etílicas por toda a sua roupa, darling, compra tudo cor de mosto, para
mais a menina só bebe scotch, Frederico vai dizer que já lhe desceu aos
pés, a mania, Frederico. Mary olha agora numa outra montra uma
máquina reluzente de cortar fiambre em casa, a lâmina redonda de
estrias de aço baço saindo de armação lacada a vermelho rutilante,
duas sumptuosas facas de trinchar, um caixote do lixo esmaltado,
imenso, de tampa móvel a pedal com grandes flores deco, orquídeas de
lianas longas escorrendo a laranja, roxo e verde pelo tampo e bojo, que
manda levar a casa. Entra agora, pelo hábito antiquíssimo de acabar
compras pela mão da mãe, casaquinho de veludo de lã beige com gola
claudine e botões de veludo castanho, quando ainda era a única, num
bolo de massapão e amêndoa em forma de pomba, ou de pequena
tangerina de olho verde claro, ou, maior delícia, minúscula galinha em
ninho de fios de ovos, peixe vermelho de olho de botão de vidro. Tal
como a mãe, pede brie, danish blue, quatrocentos gramas de tâmaras,
que ponham na conta, Sim senhora dona Mary, a mana, os meninos?, e
as mãos ajeitam a encorpá-las caixas de papel exactas como origami,
cortam o fio dum gesto seco e muito rápido, Vou levar as tâmaras, Sim
senhora dona Mary, E o queijo. Há ananases frescos e o cheiro mistura-
se ao dos arenques, ao dos sumptuosos salmão fresco inteiro e trutas, as
travessas de bolos de ovos estão dispostas em andares de equilíbrio
surpreendente, os que imitam castanhas de trifaces queimadas, os
rolinhos de dedo, os queijinhos de folha de hóstia sobre o loiro do
dentro, as fatias da china boiando em calda límpida, os de aveiro,
marinhos de formas como ossadas de afogados estaladiças ao sol,
recheio gemado de leve toque de baunilha, secreto ponto de açúcar, a
frescura dos russos com o seu interior de nata fresca e a textura solta de
miolo de noz, as nozes de Colares presas em escrínio de caramelo
translúcido. E há as ostras, rochas abertas húmidas, Mande-me três
dúzias. Os paios estão deitados compactos nas suas roscas de linha, o
presunto recém-cortado mostra a carnadura clara e tenra, os dom
rodrigos luzem em pirâmides de pratinhas de cores, seis faisões
mosqueados pendem de olhos entreabertos sobre a embocadura da
montra onde jaz doirado o javali intacto, fresquíssimos o limão e a
salsa, as colinas de imensas laranjas sem caroço e olho de hemorróida,
as pamplemousses pálidas e as peras-abacate, de novo os ananases e
anonas de ilhas nas suas camas de aparas, espuma de papel, caixotes
inverosimilmente limpos. Chouriças de foie gras estão fechadas intactas
na tripa pálida rematada de um pequeno selo de alumínio inscrito, as
galantinas e a tête de achard abrem janelas de gelatina incolor nas suas
carnes mistas, rosa, rubro, vermelhão, sangue seco, branco. Do lado de
lá da montra as pessoas apontam ora uma ora outra vitualha mais rara,
entra uma grande e velha mulher com o cabelo ondulado a mise e dedos
sob uma rede tenuíssima, o casaco amplo em poil de chameau e o
sapato abotinado, Yes, madam?, ao fundo alinham-se pequenos prédios
de andares de ridgways tea, Jasmim, senhora dona Mary? Jasmim e
quatro garrafas de José Maria da Fonseca, branco. Vai logo à tarde,
senhora dona Mary. A rua Garrett continua branca, crua. Alguém lhe
quer vender alfinetes de ama e os de cabecinha perfilados num escrínio
de papel grosso, rosa, abre-se ameaçador o descalabro dos armazéns
do Chiado, Tenha paciência. Mary vacila. Manda o táxi seguir para
casa agoniadíssima. Vai. Levada, o colo e o assento um misterioso
vómito de cornucópia, volumes de papéis ciré e dourados de que já não
lembra o conteúdo. Ah, o embrulho das tâmaras, fechar os olhos,

onde estou eu, onde estou eu, para quê, porquê, para quem, menina
nunca, Menina-Nuca, chamava-lhe então o tolinho da herdade no ano
em que a mãe estava de esperanças, ela tinha sandálias inglesas, de sola
de cauchu mole no calor, com abertos em forma de pétala de flor ou dos
abertos na cassa aberta, a inglesa. Havia, afeitos os olhos ao escuro,
uma escrevaninha alta onde estava um tinteiro ainda manchado por
dentro com borras secas de tinta negra e um mata-borrão colado no
tampo aberto carregado de assinaturas ao invés, como num espelho,
cheirava a mofo, a flores secas, ao adocicado de livros e livros velhos
amarelecidos por dentro, carcomidos pela bicheza de corpo anelado e
translúcido que se escapava por dentro da fina serradura de papel
perfurado de túneis mínimos e caía no chão negro de velhas ceras
naquele quarto quase sempre fechado, havia na parede um retrato em
moldura oval de uma senhora sentada com um fato com ruches no peito
e gola barbeada, um luzir baço nas pregas que deviam ser de gorgorão
até aos pés e o cabelo descia em dois bandós baixos, enfunava de um
rolo na nuca apanhado com um trança grossa sobre o alto da cabeça, os
cortinados de renda espessa estavam pendentes de varões finos de latão
amarelo enegrecido pela humidade e tempo, uma caixinha com uma
pintura de gôndolas estaladas abria-se para um recheio de engenho de
rodízios e buracos de chave de corda e não fazia qualquer ruído salvo o
das traves a estalar dentro do grande guarda-fato cujas portas rangiam
abrindo para vestidos e vestidos rematados de pedaços de renda e
cordão de seda, folhos que seguiam ascendendo da fímbria da frente
devastados de traça até a laçadas desfeitas sobre onde devia ser a
nádega, sombrinhas de cabo de esmalte e carapeta de massa fendidas,
fitas de taffetas escocês com franjas finíssimas e esboroáveis como pó
de talco, nas extremidades, nas fendas redondas ratadas a meio. Havia
um gavetão pesadíssimo de duas maçanetas de chifre a que um corpo
pequeno há que puxar ora uma ora outra e que aberto desvenda às mãos
uma profusão de frasquinhos estreitos de rolha de vidro, relíquias com
o ossinho colado numa legenda indecifrável, fivelas de strass e prata e
abotoadeiras de luva, de botina, escovas de dentes como seara
saraivada em engaste de casquinha com motivos florais, copinhos de
bebé monogramados num cursivo alto, maços de cartas com fitas azul
pervinca mortiço de onde se desprendem pétalas de amores-perfeitos,
coroas de cabeças de zínias, perpétuas, luvas de canhão desirmanadas,
os dedos cavernosos nas pontas, leques de osso ou fatia de marfim
descolados nos seus fitilhos de seda, caderninhos de baile inteiramente
deslavados de letras,

o táxi trava que uma cega é ajudada a atravessar a rua por um homem
que ainda usa chapéu e alfinete de gravata com pérola,

e na cómoda de bacia de porcelana,

deixo-vos uns aos outros como intervalos, pausas necessárias,

havia um espelho também oval onde ao fundo surdia como ponto sépia
na penumbra o pequeno retrato e a cabeça, só a cabeça dela, Mimi, com
um laço de veludo azul-negro no cabelo como halo luminoso à cara, no
escuro à contraluz,

como eu vos amei,

e a voz do pai ouvia-se no pátio coberto de tijoleira encerada ao centro


da casa, apenas agora ali carregada dos estalidos e cheiros a coisas
mofentas, de usos ignorados, pequenezes excitantes, como este pisa-
papéis fendido e recheado de bolhas de flores e grossos estames de
vidro congelado escorrente dentro do vidro sem cor, Mimi, Mimi, onde
é que a menina está? E depois os ruídos que o pai e as criadas faziam
pela casa, pelas escadas de lá que ressoavam, rangiam as portas de
quartos em quartos a abrir-se, até armários, Mimi, Mimi, e ela quieta
naquela penumbra ao lado da cama muito alta com patas de animal
preto e espaldar de asas de grifo de inclinação maligna, a franja de
torcidos da colcha onde abria leque um grande pavão de crochet tinha
do lado dela uma boca descosida que roçava o chão, o tapetinho
esmaecido e ela em bicos de pés com as mãos pousadas no ralo fundo
daquela bacia estalada por onde tinha deixado cair o aparo de prata da
caneta que estava no tinteiro seco, sobre a escrivaninha, sob os livros
de lombada de cartão grosso e carneira e letras comidas de onde saíam
pó e bichas fugidias, rabiantes, Que é que a menina está aqui a fazer no
quarto da bisavó Antónia, não ouviu chamá-la?, a sua mãe já teve o
bebé, venha ver a sua irmã Elisa, Como eu estou cansada, cansada,

Mas a senhora tem que comer qualquer coisa, um chá, uma fatia de
fiambre, um sumo de alperce, eu levo-lhe ao quarto, Talvez, talvez,
arranje-me um banho, Lídia, A senhora come primeiro?, Depois,
depois, um banho morno, com sais, Rochas, minha senhora?, Não, não,
qualquer coisa que cheire a nardo, forte, doce, veja você, Sim, minha
senhora, a senhora sente-se mal?, Não, não, deixe-me só, Lídia, arranje
o banho,

e a mãe disse-lhe de dentro de uma liseuse lilás de malha muito aberta e


fitas de veludo passadas, Elisa era vermelha como um punho com
frieiras, enrugada, tinha os olhos inchados e fechados, ela espreitava
das cortinas de voile do berço que o pai tinha levantado, a mãe disse,
muito cansada, Um dia a menina também há-de ter bebés assim, minha
querida, e a mãe nunca dizia, Minha querida, e o pai disse sorrindo mas
levantando uma sobrancelha má, Assim não, Maria do Carmo, e nessa
noite em que jantaram só os dois trouxe-lhe uma caixa de aguarelas
suíça, com godets de cerâmica e três pincéis de diferentes grossuras e
ela usou os godets para pratinhos de boneca, e o pai disse, Onde estão
as suas aguarelas, Mimi? Estão na arca dos brinquedos, pai, Na arca
dos brinquedos?, mostre-me se já pintou alguma coisa, Nada pai, não
sei pintar, Mas eu ensinei-a, Mimi, Não sei pintar, pai, Não mace a
pequena, António, Não sei, não sei pintar pai, não sei, Deixe Mimi, não
vale a pena chorar, brinque às casinhas de jazigo, como a sua mãe,

e então o pai despediu-se dela e disse, Vou uns dias ao Porto, Mimi,
vim cá para dar um beijo ao pequenos e beijou-a nas duas faces e
quando ele ia a sair, a pequena Madalena veio com a sua carinha de
Elisa sombria em camisa de noite comprida, fugida da cama, ao cimo
da escada e gritou na sua fala explicada de mais, Avô, avô, e ele tinha
as grandes rugas dos lados da boca mais dentro que nunca debaixo dos
olhos tão claros que à luz do hall pareciam amarelos e disse sem sorrir
para o alto da escada, Que é meu Lili Roxo?, como ele lhe chamava, e
Madalena disse, gritando ainda agarrada ao corrimão enquanto Sara a
puxava de manso, Não vá avô, não vá, meu amor de avô, e ele disse
virando-lhes as costas a todos, Até logo, minha querida, até logo,

Mary está sentada na cadeira de baloiço junto ao vão da janela fechado


para a varanda do quarto, quis camisa branca e o velho roupão
ciclâmen com encaixes de veludo, baloiça-se lentamente, as mãos no
colo, Lídia arruma as roupas que ela despiu, aproxima-se para correr
um pouco o cortinado, o sol passou já para o outro lado, paira sobre os
jardins em frente um começo de sombra, as folhas não mexem, Mary
está assim a baloiçar de olhos fechados, os polegares inertes dentro dos
punhos brandamente no colo há aproximadamente uma hora, depois do
banho, os olhos fechados onde desejou morrer ali e Lídia veio
perguntar à porta, A senhora precisa de alguma coisa?,

Se eu desenhasse, se eu desenhasse, Mary não vê lá fora o volteio de


dois melros debaixo de uma ameixoeira de galhos já floridos, os jactos
de água da regadeira móvel que deixam na luz limpa da meia tarde asas
de gotículas luminosas, ela vê sobre o dorso interno das pálpebras
fechadas um baloiço onde uma mulher de sari safrão e barras rosa vivo
bordadas, o torso nu sobre o ombro e seios cobertos, se baloiça em
trave suspensa de lianas debaixo de um céu de grossos rolos de
tormenta. A pele é como canela clara, os olhos são pretos e alongados
para as têmporas, a boca é pequena e carmim, tal como a marca ao
centro da testa e os corais nos lobos das orelhas. As plantas dos pés
estão pintadas de tijolo, as mãos, cuja chave é cheia e os dedos finos,
agarram as lianas alto, as pernas graciosamente alongadas para diante,
cheio ainda o peito do pé, a anca, o busto redondo, fina a cintura curta,
desnudada. Há um ribeiro manso ou lagoa onde flutuam flores de lótus,
na margem está uma cama de imensas folhas largas, flores como o
jacinto branco, a açucena, renques de miosótis e pequenos lírios, beiços
de leão, nos troncos das árvores enroscam-se trepadeiras, jasmim,
buganvília, a mulher tem braceletes de guizos nos pulsos e tornozelos
descalços, Mary escuta os sininhos que vibram, a orla do sari parece
parada no ar do movimento lento, há rolas nas ramadas e íbis brancos
no meandro das águas mais além, Mary sabe que a mulher espera
alguém azul, Khrishna, é esse o nome, ah, onde viu o que está vendo
com tanta exactidão, movendo-se agora à sua própria escala, seu corpo
sendo aquele, os olhos cerrados sob pálpebras quentes, numa escuridão
vermelha?, os lótus são brancos extremados de rosa, a água é cinza aul
e no desenho as suas volutas são como os veios da madeira aberta,
onde?, onde?, algum livro do pai, Um dia gostava de ir à Índia, pai, A
menina, Mimi, que é incapaz de dormir sem dar a volta à chave do seu
quarto?, isso deve ser de algum artigo de guru que leu no vogue ou no
harper’s do cabeleireiro, à Índia, ouviste a tua irmã, Elisa? Ela podia
ser a mulher de um marajá, pai e ter rubis escondidos no guardanapo ao
pequeno-almoço e uma esmeralda na asa do nariz, Minha querida,
andaste outra vez a ler o Salgari, O critério dos outros pais costuma ser
o obsceno, pai, O mau gosto é obsceno, minha querida, vê lá se a tua
mãe lê o jours de france,

mas a ela, ele nunca a ouvia, nem já havia que lhe dizer, Elisa com onze
anos precoces não podia puxá-la ao pai, a mãe dizia, Isso são coisas do
seu pai e da Maria Elisa, Mimi, já arranjou as suas unhas? Que é que
vai levar a casa dos Arouca?, a sua pele está péssima esta semana, tem
posto o adstringente?,

e a pele dele tinha na cabeça, por debaixo do lenço de seda branca com
que a mãe lha cobriu sem uma lágrima, as duas alianças já na mão
esquerda e o anel de pérola barroca ainda posto, um sulco fundo que
lhe rasgava a cara até ao canto da boca, o cabelo impossível de
desgrumar de sangue seco havia sido cortado por mechas irregulares, a
mãe insistira na barba, o barbeiro tremiam-lhe as mãos, à mãe não, até
cair contra um dos bordos de talha dourada do plinto um pouco abaixo
dos sapatos de polimento dele que lhe tinham calçado custosamente nos
pés inchados e rígidos, na perna fracturada, e foi Frederico que a
agarrou e a levou para o grande quarto Império, os cabelos loiros e
lacados, inaturalmente fixos naquela cabeça pendida inerte, que
baloiçava enquanto ele no trajecto por corredores com ela atrás a
morder os dedos, lhe desviava o corpo de obstáculos e baloiçava,

baloiçando até que o mundo pare de bater neste peito solto de soutien,
num ventre lasso onde não está nada, nada, Quando os meninos vierem,
Lídia, diga que a mãe está doente, que não façam barulho, a Sara que
lhes dê o lanche, eu não estou para ninguém,

Minha senhora, está lá em baixo o senhor José Oom, Que chato, diga-
lhe que eu não estou bem, uma dor de cabeça horrível, eu depois
telefono, Minha senhora, o senhor diz que é muito urgente, Olha manda-
o à merda Lídia, traga-me outro scotch com água lisa, A senhora não
prefere um chá de jasmim leve? Traga-me o chá e o whisky e que não
me chateiem, Desculpe minha senhora mas eu não posso ver a senhora
assim, a senhora quer que eu traga o telefone para falar ao senhor
engenheiro?, O senhor engenheiro tem uma porca entalada no cu, Lídia,
deixa-o morrer de parto, Credo, eu nunca vi a senhora assim, quer que
eu chame o médico? Vai, Lídia, vai ao teu serviço, ao teu serviço,
manda-os à merda a todos,

e ele dizia para o pai, O pai desculpe-me, eu não tenho nada com isso a
não ser no que possa vir a atingir a Mary, mas não lhe parece que a
cortiça este ano, com os shares deste ano,
Oiça, meu amigo, sou bisneto de morgadio frustrado, sou neto de
liberais frustrados,
Lá está o pai —
Sou filho de republicanos frustrados, fui sidonista, verduras, li o Pessoa
e o Almada,
Está a fazer o texto para o who’s who?
Além de sogro de um genro engraxado sou administrador nominal e
principalmente frustrado,
E frustrante pelo menos no que toca à aplicação do que tem, a Bolsa,
Acomode-se, meu caro, a sua família tem bens investidos na indústria, a
minha tem as graças da decadência, pague o preço da aisance no mundo
dos seus filhos ainda que lhe saiam tarados ou acabem maltrapilhos,
O pai desculpe, só me interessa o que possa prejudicar a Mary,
Ora, meu caro, a Mary foi prejudicada à nascença, a mãe dela parece-
se muito consigo, é de uma self-made family,
Lá porque a mãe tem mais senso comum —
Tem principalmente o senso posto em que o que tem não seja comum
aos outros, não partilha nem esbanja, most common, isto é, ordinária,
meu caro,
O pai é extremamente snob, casou-se com ela, não casou?
Nunca ouviu falar em luta de classes, meu amigo?, às vezes calha ser
corpo a corpo.
Classes?, pensei que isso fosse uma coisa organizada, senhor meu pai,
entre pobres e ricos,
Isso é no Evangelho, ah meu filho, recorde as alianças entre a realeza e
arraias miúdas para derrubar intermediários rapaces,
Ah senhor Mestre, com que logro, pois que vós haveis arrecadado os
dobrões e a canela —
Como folgo em ver-vos arrufado senhor duque recente, parece que nos
entendemos,
Meu pai, dilapidar uma fortuna e ler os clássicos não é servir ideários
marxistóides, creio.
Oh qu’il est mignon, le petit technocrate, não é servir mas também não
desajuda e desmoraliza-vos muito, ó burguesitos, no que nos imitar
quereis, quem vos odeia com pontaria senão aqueles a quem haveis
tirado a rédea e aqueles que ainda não vos apearam?
Curiosa teoria, meu pai, a isso chamam eles colaboração de classes.
Sim, sim, se os fantasmas ferozes forem classe,
Eu não temo fantasmas, meu pai,
Isso é verdade, Frederico, mas olhe que a sua gravata é pirosíssima.
Como pai?, é do leonard, comprei-a na via veneto,
Não se agarre ao no como o enforcado do tarot, meu caro genro, vê
como os fantasmas são temíveis?, temo-vos suspensos por um fio, um
nó de gravata, a basbaquice de querer ter tão boa mesa e biblioteca
quando o senhor de Malraux —
O Malraux não é de.
Essa é melhor que a da gravata, mas não se preocupe, meu caro, a achá-
lo profundamente risível na Europa já só o senhor de Gaulle, o senhor
de Kruschev e o senhor de Cohn-Bendit e não sei se terão tempo para
se rir juntos.
Mary, vamos embora, o seu pai está insuportável hoje, Elisa, não
percebo de que é que se está a rir, esta conversa não tem graça
nenhuma, o seu pai está a brincar aos anarquistas d’annunzianos, isto é
Almada de quarta, não tem graça nenhuma,
Tem, ó se tem, Freddy dear, que para Barreiro de primeira ainda é
cedo.
Num momento em que apesar de tudo se caminha para uma
liberalização, há maior preocupação de uma política social justa, este
tipo de discurso é dissolvente, Elisa, e a menina sabe que —
Eu e o pai somos um, Freddy, você só já promete ser alguém e já não
lhe passa.
Mas que é que se passa nesta casa, estão todos aos gritos, ouvia-se lá
em cima, o pessoal a ouvir, porque é que a menina está a chorar, Mary,
o que é isto?
Nada, Maria do Carmo, só o seu querido genro é que gritou por causa
da gravata, assusta-se muito com o avanço do proletariado —
Do quê?
Não faça caso, mãe, o pai e a Elisa são totalmente irresponsáveis.
E então a Elisa pôs-se de pé entre o pai e o Frederico e disse, Um dia
eu ganharei o pão com o suor do meu rosto,

E o pai riu-se muito em altas gargalhadas felizes e disse, Ao menos


morro com a casta em pé,

E o Frederico antes de sair perguntou à mãe de Mary se ela gostava da


gravata e ele disse, É lindíssima, depois de lhe ter virado o forro a ler a
etiqueta,

E Elisa disse,
A mãe tem tão bom gosto tão bom gosto que só já tem isso.
Maria Elisa não seja impertinente —
Maria do Carmo, a sua filha pôs-lhe o dedo na ferida que você não tem,

e antes de saírem com ela a enxugar os olhos o pai ainda gritou,


Frederico, você tem tendência para ter caspa, e a porta bateu com força,
relativa, por causa do pessoal, da mãe,

e o coração de Mary, implume qual pássaro cego e silente, só sabia


gemer então, Paimãe, Mãepai, dessa terrível suspensão do tino, suster
da preferência, que nunca ninguém lhe perdoaria, numa beleza sem
lustro porque não tinha parte nos fragores da batalha, sem palavras
como a fita magnética uma e outra vez usada as não tem, sem ilibação,
como aqueles que caem no limbo a não têm, ou a incriatividade dos
preparados a não tem, sem culpa como a cordeira desprovida de
armação e incisivos a não tem, a que babuja águas que não são as
mesmas de ontem nem serão as de amanhã, ó visões de Éfeso, lobo
razoável que cevas o que à beira riacho está passivo à beira do que
muda, e bem, e bem, e cevas bem, quão lamentável e repugnante é a
inocência do ânimo petrificado de um horror que se não sabe, que
apenas regista e se oculta no indizível, condenado à irrelevância dos
gestos, gestos, gestos, narráveis mas ocultos sob fumos, narrados mas a
decifrar, numa escuta de nojo e de compadecimento, mimética. Face a
vacilar de donzela pulcra e ébria encadenada a tripé de desejos fátuos,
indecisos, quem sabe o que decifra, justamente? Quão ininteligíveis as
vozes apenas perpassadas por nenhuma outra convulsão que não a da
inconsciência, impessoal espasmo onde fervilha, sulfuroso, o múltiplo,
o sempre múltiplo, o escasso múltiplo, preterida a humana ordem do
preferir, do haver preferido?

Minha senhora, telefonou o senhor engenheiro a dizer que não vem


jantar, Traga-me a Bíblia, Lídia, Eu disse ao senhor engenheiro que a
senhora não estava bem e ele perguntou se a senhora estava doente e eu
disse que não, mas que não estava bem e o senhor engenheiro disse que
vinha logo que pudesse depois do jantar e para a senhora acender a
televisão que parece que vão hoje uns homens para a lua, Traga-me a
Bíblia de lá debaixo da saleta, Lídia, está na minha escrivaninha, tem
uma capa preta, A senhora não prefere que eu lhe vá buscar umas
revistas?, A Bíblia, a Bíblia, Lídia, Sim minha senhora,

Agarra-se num livro que se ache que tem que ser aquele. Fecham-se os
olhos sem pensar em nada. Abre-se no sítio onde se sinta que tem
mesmo que ser. Lê-se. Dá sempre certo.
Quem é que lhe ensinou isso, Zizi?. Foi o pai, Dá certo para quê?, Para
a gente se sentir no meio do mundo, vivos, A menina faz isso muitas
vezes? Não, senão estraga-se, só quando é muito preciso é que vale,
Não acha que é pecado?, Não seja parva, Mimi, parece as madres:

Agora, pois, ouve isto, tu que és


dada a delícias,
que habitas tão segura,
que dizes no teu coração:
Eu sou, e fora de mim não há outra;
não ficarei viúva
nem conhecerei a perda de filhos.
Mas ambas estas coisas virão sobre
ti num momento, no mesmo dia,
perda de filho e viuvez:
em toda a sua força virão sobre ti,
por causa da multidão das tuas
feitiçarias,
por causa da abundância dos teus
muitos encantamentos.

Porque confiaste na tua maldade e


disseste: Ninguém me pode ver:
a tua sabedoria e a tua ciência,
isso te fez desviar
E disseste no teu coração:
Eu sou e fora de mim não há outra.
Pelo que sobre ti virá mal de que
não saberás a origem, que o não
poderás afastar: porque virá sobre
ti, de repente, tão tempestuosa
desolação
que a não poderás conhecer1

O sol estava a pino. Era meio dia. Os pés faziam no saibro das áleas
entre jazigos e campas engalanadas de pietas e baixos-relevos, um
tumulto rilhado, surdo, e sussurros. Que grande funeral, ia cochichando
Sara, fungona e extasiada da luzida companhia. Tinham-se esquecido do
chapéu de abas de piquê de Simão. Sara fez com o lenço branco de
barra preta do luto recente da irmã, dela, uma protecção. Foi assim:
atou um nó em cada uma das quatro pontas e enfiou-o na cabeça de
Simão, que ficou parecendo sócio de nascença em tarde de estádio da
Luz. Estava muito calor, fora de tempo. Os cangalheiros enxugavam-se
debaixo do peso da urna. Era muito grande, com entalhes e florões
dourados. Os cravos vermelhos, brancos, brancos debruados a
ciclâmen, e as pontas de gladíolos nas coroas aguentavam bem. As
rosas não. Caíam pétalas sobre grandes fitas de moiré violeta de franjas
e letras douradas. O buço descolorado das senhoras perlava-se,
enrubesciam ritmicamente mais, afrontadas, as de meia idade.
Frederico trazia o espinha miúda antracite, tinha dado ao porteiro da
empresa o do outro luto, também completo. Elas duas, Mary e Elisa,
tinham ainda muito luto, o preto não se desusava tanto assim. Elisa
caminhava um pouco aparte do grosso dos acompanhantes, quase em
cima das valetas cavadas, empedradas. Mary sentia o braço despegado,
sem apoio do de Frederico, porque ele ia teso como um morto. Era tudo
muito indolor, pasmado, a luz forte, os fatos pretos. O jazigo já estava
aberto, a cancelinha, a porta baixa, Os dois homens saíram cá para
baixo e disseram que a urna era maior uns dois dedos que a plataforma.
Frederico sugeriu que se picasse que depois se veria. As senhoras e
senhores de mais idade, tias e tios, abrigavam-se à sombra ou de
arvoredo ou de outras construções funéreas. De arvoredo era difícil,
dada a exiguidade em pleno zénite da sombra de ciprestes. Algumas
sentavam-se sob bustos e lápides, abanavam-se de estampas de missal
ou pagelas de entes queridos, os dois pés compostos juntos e a saia
estirada sobre o joelho cambão, em degrauzinhos, em portaizinhos ao
fim e ao cabo familiares. Traziam as mantilhas de tamanho médio,
chapéu as mais idosas. Os adolescentes conversavam nos seus fatos
inteiros de flanela escura, de festas, e elas nas suas saias pregueadas ou
evasées, de lutos, meios lutos, missas por almas. Ou blasers de
uniformes. Elisa sorria aux anges, debaixo de um cachão de glícinias
longe, escandalosamente. As picaretas picavam. Simão observava de
perto, a cabeça de lado para dentro do portalinho e dizia de oras
enquanto para fora no seu desvio de fala inábil, bracarense, Ó pai, xá
debe echtar, num debe pai?, a cabecinha de benfiquista com garrafão,
calção pintudo de public school a dar pela rótula gorda, já
emporcalhada. Sara comentava, chorando e rindo, Coitadinho.
Madalena foi dar a mão a Elisa, que se agachou para lhe ouvir o
segredo. Depois a urna coube, deu-se a volta à chave do jazigo. Nesse
dia o almoço foi canja e galinha corada, que era sempre quando havia
lutos. Elisa comeu bem, e Simão, divididas as moelas entre os dois e os
pequenos ovos por formar. Elisa fez uma sande da carne mais escura de
uma coxa para Madalena que olhava para tudo e todos perplexa,
consternada a toda a novidade, como havia passado a ser depois do avô
morto, Como Nena, Não tenho fome, pai, A Nena é pisco, a Nena é
pisco, E que bicho é o Simão? Gabião, tia, Ximão é gabião, gabião,
bão, bão, Cale-se Simão, A abó num morre mais bezes, pai, não? Sara,
leve os meninos para cima, O Ximão num qué i pa xima, num qué i pa
xima, num qué i, num qué,

Eu não tenho sabedoria, eu não tenho ciência, eu não sou a filha dos
caldeus, é fora de mim que está tudo, não é justo, não é justo, e eles
descem dos céus a arrancar com bico recurvo grandes postas do meu
fígado, perdi para sempre a maravilhosa unidade, a mulher do baloiço
sorri-se agora mais e mais de mim na cara sem carne e os seus cabelos
estão pegados à caveira em mechas reles, mortas, compridíssimas
felpas paradas no ar sem viço, eu grito,

A senhora chamou? Olha Lídia, eu agora vou dormir que parece que
estou um bocado bêbeda, vou dormir até logo, que ninguém me acorde,
ouviste? A senhora não quer que eu chame a menina Elisa? Não, a
minha irmã tem mais que fazer que aturar velhas bêbedas, Credo, minha
senhora, a senhora, inda não tem trinta anos, a senhora anda mas é
desgostosa, Velhas bêbedas isto é uma casa de velhas bêbedas, vai, vai
Lídia, deixa-me dormir,

Que ninguém te acorde, pois, Mary, Mimi, Maria das Dores, os tempo
estão maduros para o teu grande sono. Agora levantas-te e vacilas até à
cama. O corpo ondula-te, as paredes movimentam-se como entranhas de
tonel iluminadas vivacíssimo, mas há uma grande e serena
determinação de depor o teu espírito e a proliferação das suas vozes,
não é verdade que hajas perdido para sempre o lugar onde inscreveres
a singularidade da tua passagem. Arrastaste-te de nádegas sobre a
cama, os pés no chão até lhe chegares ao topo, a cabeça vacila-te, e os
olhos vesgam-te, mas vês, mas sabes, mas ouves, Frederico, vem aí a
pequena, isto é uma monstruosidade, Eu amo-a, eu amo-a, eu morria por
si, Maria do Carmo, É uma loucura, uma loucura, eu podia ser sua mãe,
Eu amo-a, mãe, filha, contra Deus e contra o diabo, eu amo-a,
Frederico, a pequena, o desgosto da pequena, que monstruosidade, olá
minha querida, sempre comprou a carteira?, deixe ver, ah é uma beleza,
veja os forros de agneau, Frederico, Tu viste, tu vês, Mary, ele está de
joelhos e abraça-a pela cintura e tem os olhos pisados, o teu vestido é
negro e o dela, sobes, sobes ao teu quarto e não pensas em nada, não
pensas em nada, tiras os papéis de seda de dentro da carteira, desfazes
invólucros volvidos misteriosos pela multiplicidade, desvendas e situas
objectos, superfícies opacas dentro de superfícies opacas, desde
criança que há entre ti e o que te circunda uma venda, uma fossa de
grande silêncio e cegueira eriçada de objectos, de gente desviada, e
agora puseram-se todos a falar e a mover ao mesmo tempo, nesgas de
frases, feições, claríssimas, arestas residuais de gestos e tempos onde
nunca espiaste, onde desviaste a vista soterrada no susto, aquela
criadinha de quinze anos que chora escorregando pela parede do teu
quarto abaixo com a cara no avental depois de despedida, Ai menina
Mimi, diga à sua mãezinha que não foi por mal, e tu fugiste, este
pássaro estropiado que a virgem a quem rezas sem o ver vai abandonar
num ninho falso, Simão de meses os braços estendidos para ti em pranto
do colo de uma outra mulher que se afasta, todos estão iluminados a
branco como o teu próprio rosto que ora vês em fim de anestesia sob
um foco implacável, o teu braço oscila mole como um colo de cisne
velho até achar o puxador da gaveta, alguém arde em chamas
irrompendo do crânio e das dobras de uma túnica sentado sobre o chão,
vês esses olhos nos teus volvendo-se tição, a consumpção dos
sobrolhos e cabelos, abres o frasco, engoles as primeiras, as últimas
são já mastigadas numa bola ácida onde amolecem as cápsulas
gelatinosas, engoles pedaços desse magma com goles de água e álcool,
trincas gelo e pó e arestas de mica amolecente, ouves ao longe a voz do
teu filho que berra num dos seus acessos de cólera espojado pelo chão
que esmurra como novilho a fazer cascos, terreno à investida, não é teu
filho, nunca tiveste filhos nem marido, compões as pernas, buscas o
exacto centro harmónico dessa jazida, primeiro a orla da camisa,
depois as dobras do roupão, como são claros de exauridos de sangue
pela água morna os pés ungidos, fazes o alabastro, demasiado tardia
encomenda régia, fechas os olhos, a náusea tão profunda como se
rolasses em queda livre em vácuo, teu pai ainda diz, A Mimi é cobarde,
tua mãe ainda insiste, distraída, Pauvre petite, e tu sorris com sorriso
este sim teu, já pétreo, e todos os vermes da criação não poderão
descarná-lo, cruzas as mãos sobre o peito e as dobras minuciosamente
compostas pela mão que vacila, crias, desenhas-te, ajustas ainda
volutas de cabelo a que caiam bem sobre a travesseira coberta, pele
que empalideça, sobrepões deitadas as mãos sobre o peito a que
rigidifiquem doces, uma delicada poldra branca de olhos de anémona
rosa, narinas de begónia húmida, passa ao longe em prados que a pouco
e pouco te aquietam, reconheces, a crina solta e alta de asa singular ou
orla de onda em galope tão largo, lento, os que não vão morrer te
saúdam, que poderemos fazer com teu inumerável espólio de sapatos2
agora ténues fauces longe, ululantes longe, cada vez mais longe da
carreira serena desta poldra suavíssima, unicorne?

1 Antigo Testamento. Isaías 47.


2 Homenagem a João César M onteiro.
V
CASA DE ELISA
LÍNGUA
A atitude de Elisa em relação à vida mudou muito, tendo em conta de
forma atenta toda a súmula, embora não cronológica, dos factos que
acabamos de relatar. Vamos pois despedirmo-nos dela sem que tenha
ainda conhecimento do que se passa com a sua irmã, pois não será isso
que irá atalhar a sua ulterior disposição de ânimo e os seus propósitos
de futuro. Pelo contrário, mais lhe irá parecer o que foi como inevitável
sinal propiciatório do que teria que ser. Tal é, muitas vezes, a natureza
do andamento de vida dos cometidos à arte — que carecem de marcos
pungentes e exteriores que lhes ratifiquem por reais sofrimentos
próprios ou virações de rumo que outromodo lhes pareceriam tão vãos
quanto esse extremo discernimento precário sob o efeito do álcool, de
droga, ou da excessiva exposição aos astros, nocturna.

Mas que raio de paleio de pega velha e amestrada é este, se não é assim
que se lhe pega ainda menos é assim que se lhe torna porque se lhe vai
deixar, a última tanga não há-de ser coletinho barroqueiro, por força.
Donc, mas também, On ne se déchaine pas comme ça, les règles devant
la foule, petite. Chega aqui e diz-se — Se cá não se traduz o francês é
porque foi cá tão dominante que se espalhou tanto como a sífilis, na
geração anterior e sequelas. A propósito, meu nome é legião, diria
qualquer demoninhado portuga, recusando-se a entrar poliglota para
dentro da vara dos porcos a despenhar definitivamente, lá pelo
evangelho ser novo. Palavrinha, pensa bem, ó cidadão — tudo quanto
digas, ou já está escrito ou pode ficá-lo. E esta? Uma história deve ser
em si uma invectiva sem ter que rematar com a língua de fora. Mas
temam-se, ó seus portugueses, de não estar sós com os elementos
simples, de não amar ao menos uma vez terrivelmente, pelas páscoas.
Esta zona da geografia que parece limítrofe, praia chã de lota modesta,
exige muito dos peitos. Prova é que está cheia de poetas fechados. Fica
dito, por exemplo, que Elisa preferia Salazar ao Marcelo, questão de
estilística, tendo vómito a ambas. Salazar era de um tiro na nuca,
Marcelo só chupando-lhe a linfa dos tutanos por um tubinho de análise
de urinas, cuspido o chilro ao lado como babugem de rata infectada.
Coisa para peritos persistentes, porque haveria sempre mais. É que
tudo isto tem muito a ver com o poder e seus diversos nojos (lutos
renovados).

Quanto a Elisa, ah, Elisa está em casa. É noite. Este capítulo é nocturno
como tereis decifrado já pela sequência algo rígida da sucessão aqui
dos dias e das noites. A literatura moderna serve para demonstrar a
irrelevância da evidenciação de processos de mostrar. O sexo não
morre por arregaçada a saia, quando muito constipa-se, obnubila-se,
tosse para onde não deve. Consta mesmo que a libertinagem é a última
fase do puritanismo avançado. Lá por estar tudo misturado não é
necessário misturar mais tudo, ou então deixara-vos estar, ó
moderníssimos transeuntes, sob pélvis da mãe. Ela não deixa,
volveriam, no fundo ufanos. Quem não gosta de ter uma mãe decente,
mesmo se o objectivo mor da vida seja a agudeza da vista e a lassidão
dos membros e dos costumes, o generazione sfortunata1, cheia de
maldades átonas. E agora é que é dar-lhe no obscuro, toma lá o escopo,
ó martelo. E se não pudesses pôr a tua boneca de lado depois de ver-
lhe as tripas de fioco e a gaita do apito chorão à mostra? E se o teu pião
ratado no fio insistira em pedir-te a mão, a mão, a mão de giro, tu já
artrítico?

A sobremesa estragou o apetite para o jantar. É preciso recomeçar tudo


do princípio que há.
Elisa está pois em casa, é fim de tarde e ela dorme, cansou-se no chão,
descaiu-lhe a mão, o livro,

Para criar simpatias, era necessário que a aristocracia fingisse perder


de vista os próprios interesses e lavrasse o auto de acusação contra a
burguesia no único interesse da classe operária explorada. Agindo
desta maneira obtinha a satisfação de satirizar o seu novo dono e
ousava trautear-lhe ao ouvido algumas profecias de muito mau augúrio.
Assim nasceu o socialismo feudal, mistura de lamúrias e de pasquins,
de reminiscências do passado e de ameaças para o futuro. Embora, por
vezes, a sua crítica amarga, cáustica e espirituosa atingisse a burguesia
em cheio, a sua impotência absoluta para compreender o caminhar da
história cobriu-a constantemente de ridículo. A fingir de bandeira, esses
senhores hastearam a sacola de mendigo, para juntarem atrás deles o
povo. Mas logo que o povo lhes seguia no encalço, via-lhes no cu os
velhos brasões feudais e dispersava com grandes gargalhadas
irreverentes,2
dorme, Assim:

Ela vai por um grande descampado tão seco que a terra está branca,
torrões duríssimos esboroáveis na borda de fendas negras a que não se
vê o fundo e é assim até perder de vista. Ela caminha tranquila pouco
pensando aonde pôr os pés pois que os olhos lhe vêem mais que aquilo
que atentamente atenta ver — o quê para lá do horizonte. Assim ladeia
e transpõe de salto, naturalmente hábil, fissuras que fora do sonho
haveria que cuidadosamente evitar por abissais. Não se apressa. Por
aquele terreno afora, que a haver fendido assim denota haver sido
outrora pasto de águas abruptamente seco, ela vai como de passeio por
entre verduras, a passada quase imponderável, pulada largo, como se
levara apensas às costas dois pares de asas de nervuras transparentes,
de libélula. Leva a mão ao ombro e sente-lhes a ligeira viscosidade
vibrátil e sorri, Bem, bem, só as pontas dos dedos dos pés vão já por
sobre o chão. Não dá para voar mas é uma delicada lembrança. O
horizonte começa a curvar muito, as fendas estreitam, água borbulha-
lhes dentro. Elisa pisa agora sobre areia molhada, o cimo de uma duna
compacta, os dois dedões dos pés nus aflorando maciços de chorão
florido de rosa e amarelo. É a orla do mar, extensa praia limitada por
névoa descida em hemiciclo, mar calmo e cinza, céu ameno e cinza e
um eco de voz límpida entre o canto e o grito sem urgência, que vem
das águas, das movediças neblinas. Os músculos transparentes que
sustentam as asas de Elisa e o seu peso palpitam, as grossas cordas de
sangue roxo e vermelho inchadas, as quatro asas rufam levemente
suportanto-a aflorando o chão sem esforço, ao cimo da duna. Elisa
acorda sorrindo e dizendo, Bem, bem, a minha bolha secou, coisa que
já havia constatado na véspera, já ali está há três dias descalça ou de
sandálias, Elisa em casa acorda feliz e vê do ângulo de chão onde
adormeceu que o céu agora a escurecer tem laivos de rosa, vem aí o
tempo quente, um dia de esplendores, a irrupção talvez finalmente tenaz
da Primavera, Bem, bem, esta passagem está acabada. Não está certa de
ter reflectido muito durante estes dias, ou antes, que seja aquele estar
que se use com propriedade chamar reflectir. Não atendeu telefones ou
portas e folheou livros. Foi trespassada de imagens. Os períodos de
sono e vigília assumiram um ritmo abrupto que por nenhuma forma
contrariou. Disse à senhora Lúcia que não precisava dela durante uma
semana, não sabia se mais. A sua atenção aos objectos, incluindo os
próprios pés e as mãos em movimento, as feições no espelho e as
gravuras ou caracteres impressos, agudizou-se muito. Por toda a casa se
precisaram contornos, a orelha escassa de sumaúma de uma almofada, a
aresta de um retrato, o prego amarelo de um puxador de porta. Os
filamentos de uma lâmpada eléctrica ligada pareceram-lhe muito
surpreendentes, bem como as exactas meias luas das unhas que só lhe
existiam no polegar e indicador de cada mão. Tudo o que leu lhe
pareceu minuciosamente concertado como um oráculo coerente, embora
não haja tecido congeminações sobre que sujeito a orava assim ou se o
devia sequer distinguir de si própria. Punha batatas a cozer com casca
que depois despia por laivos largos com muito gosto, lavava a loiça, a
frigideira com as suas traças de gordura alta que era necessário raspar
com escovilhão e jacto de água e em seguida passar de esponja, a face
áspera, a face doce, entendeu que as águas bem quentes e correntes
apressavam e beneficiavam os resultados da tarefa, congeminou por
tentativa e erro processos metodológicos e crescentemente mais
correctos para arrumar pratos, dobrar os cantos de cobertores,
acomodar escovas. Isto podia passar-se às quatro da manhã e foi numa
madrugada que se lhe revelou quão excelente preparação para o
trabalho manual era aquilo a que convencionou chamar,
operacionalmente, a atenção poética, isto é, a minuciosa visão, unidade
por unidade e relacional, dos objectos em torno. Depois pensou que o
poeta devia ser expulso da cidade por isso — porque era um escravo
que também via das mãos. Mas isso já lhe pareceu um pouco abusivo.
Considerou então que agora já pouco mais lhe faltava que a
aprendizagem da normalidade e ratificou a sua intenção de matricular-
se na universidade, fazer estudos sérios e imiscuir-se na vida de
colectivos muito grandes, estando lá, Sempre é um princípio. Percebia
que estava passando por este transe afinal muito serena porque tinha
sido muito amada e tinha amado e que para quem assim é e lhe foi feito,
havendo sobrevivido à separação, tudo, tudo pode sempre recomeçar.
Não tinha porém pressa de reencontrar nem o Amigo nem os amigos.
Cristalizava algo e precisava de ocultação, estar nos fundos, parecia-
lhe. Entendia também, servindo-se para isso da inteligente parcimónia
com que polvilhava de joelhos o mosaico da casa de banho com
detergente e o passava depois com pano absorvente nem demasiado
húmido nem demasiado espremido para dentro do balde, que toda
aquela muito plena acalmia dos sentidos em relação às pessoas, toda
aquela acuidade agravada da percepção das coisas, decorria de um
imenso desgosto adiado, de uma fecunda acumulação de lutos
necessários, que iriam permear toda a sua vida, mas não de modo
excessivamente sentido como injusto, aterrador ou insuportável. Elisa
podia amar e suspender temporariamente o tino comum e o julgamento,
a confiança crescia-lhe com a capacidade de prazer e discernimento,
amadurecia para dentro daquela infância onde afinal quase tudo lhe fora
estimulado, quase tudo lhe fora permitido, os mortos eram afinal
acidentados de um percurso único, os seus mortos, todos os mortos, ela
não desistiria desses rostos resplandecentes de sorrisos e buscá-los-ia
no espelho, na rua, no maior número possível. Sim, o número dos
benditos contava. Mas isso achava Elisa que entenderia escrevendo ou
outra coisa igualmente solitária como gritar na rua depois dos vinte
anos, Sim, sim, nascemos para a alegria. Porém, não escreveu muito,
tirante algumas reflexões sobre o uso e a diversidade das línguas, que
anotou em bloco logo ali nomeado canhenho, pensando enquanto
escrevia assim, Estes estádios da consciência buscam o arcaico na
forma de dizer e a diversidade dos nomes para o mesmo objecto —
como o olho da mosca, eficazmente poliédrico e móvel, está em tudo.
Também escreveu por exemplo assim, depois de um sono súbito, com
um pano do pó na mão, que durou do meio dia solar às três da tarde:

All is all
flower of contentment
come closer,

o que lhe pareceu dum orientalismo inexplicável, Não vou agora


começar pelos Vedas e pelo Lao-Tse, não vou agora pôr-me à moda dos
esoterismos, sei tirar a tripa à lagosta, o que eu não sei é limpar um
pargo. Mas não escreveu isso, ainda, pôs-se a assentar assim:

Porquê o inglês como segunda língua? Porque era a língua oculta que eu
ia desvendando enquanto eles todos falavam francês à volta dos cimos
da minha cabeça, Fais attention à la bonne, mon cher, Faites attention
aux petites, chère. Porque foram os ingleses que inventaram o vinho do
Porto e o Fernando Pessoa, sem querer? Até ao sétimo ano de latim
sempre pensei que, O tempora, o mores, queria dizer, Ó testas, ó Mais.
Ou talvez porque era então, mais que nenhuma outra, a outra língua,
porque a minha pátria nem será já a língua portuguesa.
Mas os tesouros, os tesouros da origem, o barulhinho de primeiro
regato (regaço?) que fazem:

lentilha escapulário
aspidista algália
benzedura caniçal
almejar melancia
roseiral alpendre
estrelícia arvéola
nafta mágoa e mácula

e todas as esdrúxulas e superlativos, praticamente.

É preciso dizer adeus cedo às dobras olorosas da vulva da nossa mãe.


Há mais vagas, há mais vagas que a saliva de uma só língua, há que
acumular os sucos, cumulá-los. Que sei do Quimbundo ou do Hindi? E,
do russo só o prazer de uma ou outra interjeição intraduzida em
exilados um pouco pedantes, ou berioska3, ou Soyuz4, ou nomes,
Mascha, Petia, Volodia, nomes do lado de lá de uma neblina pungente,
esses europeus. Schade5, no meu parco, de sentimentos, alemão. Moia
bieda6, Frederico el verde, sestra moia, ti pomnisch grou?7

Que língua falaremos um dia?


Um dia falaremos todos a mesma língua.
Que línguas estarão mais mortas então, nesse corpo único?
Que pena dessas, se sabedes novas
daquilo que se ama não se pode dizer tudo. E se se tenta isso só pela
polivalência da glote — sai fracativo.

É preciso aludir, ser realista. A vida é uma alusão. Estou cansada —


sou fêmea — é o primeiro direito, estar cansada de impregnação. De
insignificância de gestos. Isto onde estou é uma violência. Mas a
violência abominada faz a força. Macht macht frei8. Mas era preciso
que eu me concentrasse num campo a saber as línguas dos outros gestos,
obrigados: atulhar um ganso para lhe inchar os fígados, lavar latrinas,
segar milho, ajudar bácoros a sair, dispor sangue leucémico numa
lamela, tecer uma esteira, moer num pilão, apagar giz num quadro ao ar
livre com folhas de capim, limpar um cu de leprosa velha, o coto do
braço esquerdo de um miliciano esquerdino.

Vou lavar duas camisas. Sempre é um princípio, lorpa. A que vai ser
escritora em português esvai-se da evidência do que ignora.

A minha pátria são os pronomes dolorosamente pessoais.

Eram as coisas assim que Elisa escrevia nesses dias. Podia sentar-se
também durante longos minutos contemplando a pele nova, ainda
rosada, que lhe nascera no calcanhar. Pensava então, Depois de todas
estas reparações, terei ainda algum dia alguma coisa a dizer por
escrito?, e duvidava muito, tal era o prazer que retirava da habilidade
gestual na execução de tarefas manuais que desconhecia, tendo
descoberto por seus próprios meios a temperatura a que um ovo se
estrela sem queimar-lhe a clara nos bordos, sem ficar-se com a gema
coagulada em visco incolor como ranho de gripe recente. Não lhe
ocorria sequer pensar que podia estar demente, tal a veemência de dor
com que a acometiam imagens e sensações do seu corpo no colo ossudo
do pai, tão longe, das lágrimas misturadas no quente das duas faces no
escuro, dela e do Amigo, ou destas duas mãos negras circundando-lhe a
nuca tão compadecidas no adeus, as polpas de polegar no afiado do
queixo, a saudade do par. Tanto quanto sabia, não é das coisas assim
que os doidos se doem, mas do desaparecimento de tudo. Elisa
exercitava-se na manipulação conservadora das coisas, retirava das
plantas as hastes e as folhas que apodreciam, humedecia-as, espalhava
aquele sargaço pelos vasos. Em três dias, as plantas procuravam a luz
sob os seus olhos, mais túrgidas e viçosas, era-lhe quase possível
escutar o imperceptível ranger das fibras respondendo a aflorar de
dedos mornos, subtis trocas energéticas. Sabendo acaso
prematuramente quase tudo da perdição terna com o outro, ela não ia
morrer, afinal. E mais lhe parecia que agora era questão de esfregão de
palha de aço, cadernos de apontamentos escolares, agenda de encontros
memorizada, cabaz de compras, ficheiro de leituras, coisas assim
simples. Do resto ela sabia algo mais que o comum, parecia que isso
teria a ver com escrevê-lo ou falar disso, mas de um outro quotidiano
mais forte. Olhando para o espelho com o cabelo húmido frisando
comprido por debaixo da toalha acrescentava ainda que era já mulher e
que sim, sim, também isso se veria depois, da diferença de solidões, de
gestos milenares. Estava carecendo de ser perfeita em mais matérias.
Que saberei das mulheres se não lavar, fritar, esfregar? E escrevia
então assim em espécie de diário de bordo, só não sabia de que
embarcação ou viagem e que por isso chamou, de

DIÁRIO DE BORCO

Vejo cada vez mais com certeza que existe entre as combinações de
objectos e seus destinos e aqueles que os possuem ou manipulam mais,
uma unidade, uma univocidade. Há criaturas que suscitam à sua volta a
ordem e a duração, outras a proliferação e a graça mórbida, outros a
abundância mas estática, outros a escassez, mas tónica. Outros parecem
rodear-se de cacos de caos, o sórdido, outros a abundância
tropicalmente ordenada, a ardorosa fecundidade. Como decifrar estas
tecituras e as suas margens de demarcação, ver pelo modo como alguém
arruma à noite a sua roupa ou descasca um nabo ou limpa o ranho a uma
criança ou enfia um prego, que mundo sairá das suas mãos, uma
desordem sulfurosa, ávida, uma ordem esterilizadora, letal, uma
desordem leve, lúdica, uma ordem de paz e esforço ameno, humano?
Etnias, costumes? Um montanhês nortenho deixa que a sua casa se cubra
de sarros que a grudem sob as neves, um alentejano ordena os seus
brancos e ama as pausas entre tarefas, coisas, afectos, pondera no liso,
um cigano consente que a pele se lhe vende e o cabelo cobreje e os seus
tachos fumegam gerações de refogo, e dança, dança compactamente, um
negro varre e ordena até a mais informe das suas esteiras, lava infindas
vezes seus meninos e trapos num oco de cabaça, moroso mas fiel ao
ritmo das conspurcações possíveis, em torno a árabes e indianos toda a
realidade fermenta, antiquissimamente prolixa, e os japoneses
estarrecem as flores e movem-se rapidamente pelo mundo, na ponta dos
dedos. Acautelar-se de quem e achegar-se a quem? Temer-se dos que
não dançam porque não sabem onde fica a terra? Dos que não
contemplam? Dos que têm mãos como pinças incansavelmente
esfregadas? Das garras infectadas? Ou de nada, de nada, confiar na
ordenação final onde haverá lugar? Quem somos, que sou?

Elisa esses dias decidiu-se a fazer sempre muito todas as coisas


simples, para perceber. Podia de facto ter endoidecido, Elisa, mas fora
uma criança preparada desde muito cedo, pela estranha condimentação
de desistência e combatividade dos seus mais próximos, a mutações
muito bruscas, das que podem ficar reconhecidas na nomenclatura dos
textos como revelações. Era só um pouco maníaca na maneira de dispor
as lascas de alho tão geometricamente quanto marcos geodésicos sobre
a posta de carne lisa. A base era boa, carne do lombo. Sua mãe não se
pintaria melhor, ironizava. Mas de oras em diante, Elisa não faria
menos por uma terrina de carapaus de escabeche a aproveitar da
véspera, por uma açorda de coentro, medido milimetricamente a olho o
derrame de azeite. Elisa fora afinal benquista dos seus — podia
aprender quase tudo das relações corpo a corpo com os outros corpos,
animados ou não, vegetais, línguas vivas, arrebatar da morte, querer o
transmudar, tolerar a crise brusca e aprender a paciência. Nesses dias,
achou-se muito portuguesa.

Cantava ela já, nesta abertura de noite, em modulações de ária barroca,


I know not what tomorrow will bring9, frase que consta ter sido a
última a ser escrita por Pessoa, em inglês quando já sem fala, tocou-lhe
a porta com as retinências insistidas que logo lhe identificaram a rara
visita do cunhado. Pelo sim pelo não da irmã ou sobrinho, abriu. O
sorriso alarve e a desenvoltura de galgar degraus toda desportos de
inverno desvendaram-lhe logo que grave não era e arrependeu-se
daquela quase alegria de alguém chegado vir, quantas horas-luz iria
perder do ganho destes seus dias, pelo sangue morre o ânimo, pensou:

— Então mana, passou à clandestinidade?, pensei que andasse por aí na


crista das greves a ser mordida no assento pelos cães-polícias.
— Os únicos polícias que me rosnam nem dão para cães, que é que me
quer?
— Calma, dê-me qualquer coisa que se beba, eu não demoro muito,
Olhe, são duas coisas, primeiro tenho pensado na sua situação e na da
sua irmã,
— A situação da minha irmã é de facto péssima
— Elisa, deixe-se de sarcasmos, queria dizer-lhe que acho que se pode
pôr o que vocês têm a render muito mais, vendendo e —
— Quando eu tiver problemas de administração do que tenho não vou
ter consigo, Frederico, o pai,
— O seu pai morreu e os seus tios estão balhelhas, sabe muito bem que
eles estão de acordo com o que nós decidirmos.
— Oiça Frederico, a falar a falar é que a gente se entende com quem
não deve, mas já que veio cá pelo seu pé, há duas ou três coisas que
vão ficar clarinhas hoje. Eu não tenho qualquer interesse na
convivência consigo, excepto na medida em que tenho pena da minha
irmã e gosto dos miúdos, O corte não é nada que me mate, nem esse,
nem outros. Você foi amante da minha mãe e sabe que eu sei. Trata a
minha irmã como um pulha machista, espécie de duche escocês que só a
corrompe e brutifica mais, sexualmente tem-na mais virgem do que eu,
profissionalmente não é melhor nem pior, é dos piores dos melhores,
politicamente é da geração dos James Bona, os tomates quadriculados
numa pastinha de dossiers à moda, capitais que não afundam nem saem
debaixo doutros, e a ideia peregrina de que andar de avião é trabalhar
muito. Em suma, trate da sua liberdade que eu trato da minha e não lhe
mando a conta.
— Elisa, já que você disse de uma assentada meia dúzia de bojardas e
brutalidades, vamos então falar de homem para homem.
— Eu não lhe estou a falar de homem para homem, estou-lhe a falar de
cima para baixo.
— Isso veremos, mana, ainda não tem dadonde.

Há agora um silêncio. Frederico fita Elisa e surpreende-se de a ver


deixar tombar a raquete. Não era uma bola muito dura. Grave, mais
grave, Elisa estava a mudar de jogo. Se nem sequer o fitava com os
olhos que metalizavam na ira, se o percorria dos sapatos, à braguilha, à
gravata, sem nada,

Bem, vejo-a calma.

Elisa via-lhe um ponto entre os dois olhos.


É verdade, fui amante da sua mãe, isto é, mal ou bem foi a única mulher
a quem amei. Casei-me com sua irmã porque se parecia com ela como
uma boneca de cera se parece com o modelo vivo. A sua irmã é uma
boneca de cera, sabe o que é viver, fazer amor, com uma boneca de
cera?, depois,
— Poupe-me mais detalhes que os que vi.
— Eu só soube o que sentia pela sua mãe depois da morte do seu pai,
Elisa, foi mais forte que nós, a sua mãe,
— É essas coisas sentem-se muito quando surge uma vaga na
administração, Oiça eu já interpretei que bastasse o meu Sófocles, não
me peça que oiça agora a versão avenidas novas, só quero dizer-lhe
que vá à sua vida, não lixe mais a minha irmã que o necessário na
capoeira onde vocês moram, eu estou noutra e se um dia isto virar e o
vir numa esquina a sonegar fundos, desvio a vista que é para o relato
desta família não parecer um tampax usado.
— O que só prova que a menina para revolucionária ainda está muito
tenra. Elisa, a criada de fora da sua irmã telefona-me todas as tardes a
dizer que a sua irmã não está bem, hoje telefonei eu a dizer que não
jantava,
— Como é frequente, parece.
— E foi quase aos gritos, a criada de fora quase aos gritos e as
telefonistas a ouvirem,
— Fure as orelhas às telefonistas e mande a conta da caixa ao pdg que
anda a ver se você lhe pega na filha para bom fim.
— Elisa, assim não podemos falar.
— É o que eu lhe estive a dizer, já não podemos falar.
— Elisa, eu não tenho ninguém, eu fiz o melhor que sabia, levei a Mary
a Florença, levei-a a especialistas, o ginecologista,
— Você crismou-a em inglês e chamou-lhe definitivamente parva.
— A Mimi já era parva.
— Você também, Frederico, com a agravante de que não é totalmente
estúpido.
— Mas que é que você quer da vida afinal, Elisa, você é uma miúda, a
relação mórbida com o seu pai deu cabo de si, se se quer sentir útil
porque é que não vai trabalhar para a empresa, pode escrever, você tem
talento,
— Ah não é utilidade dessa, não é talento desse e se fora antes não fora
nenhum, Frederico, há coisas que não são conciliáveis, já não são, por
enquanto.
— Por exemplo?
— O amor e o bem-estar, a arte e o bem-estar, a justiça e o bem-estar.
— Mas isso é masoquismo, porque é que não se inscreve na
Conferência de São Vicente de Paula?
— Porque já lá estão as mães dos filhos da mãe que vocês vão ficar.
— E então, o que é que vai fazer, brincar aos universitários de esquerda
que quando acabam o curso querem tacho e mini para começar?
— Há-os aleijados, há-os presos, há-os exilados.
— São minorias insignificantes, Elisa.
— São minorias insignificantes os tipos que se põem na sogra e foi a
única coisa decente da sua vida.
— Adeus Elisa.
— Adeus Frederico.
— Elisa, vou-lhe mandar a Ada do Nabokov.
— Ah, o abominável homem das verves, é como você, sabe de mais
para aquilo que percebe.
— Eu perceber percebo, Elisa.
— Não, só se percebe aquilo que se faz.
— Vai esfregar escadas, Elisa?
— A da sua descida aos infernos talvez, mano, é só ter com quem.
— Isso é ódio de classes ou é só ódio, Elisa?
— Não, é o afecto que resta.
— Adeus Elisa.
— Adeus Frederico, veja se vai cedo para a estufa que plantou.
— Eu, Elisa?
— Talvez não, mas alguém tem que pagar.
— Elisa, gostava que você fosse minha irmã.
— Você não tem saúde para mais que um incesto na vida, rapaz.
— Elisa, se a menina precisar de mim,
— Não preciso Frederico já tenho a minha conta de purgas.

Adeus Elisa.
Adeus Frederico.

Olhe, parece que vão hoje homens para a lua, não vai ver? já pensou o
espanto do tempo em que vivemos, apesar de tudo,
Nós não vivemos no mesmo tempo.

Adeus Elisa.
Adeus Frederico.

LÍNGUA PÁTRIA

Salve jovem poeta picada como vaticinadora bexigosa e indolente, na


inocência dos teus meios, na virulência da indefectibilidade dos teus
afectos. Jovem ferreiro que ignoras ainda o nome do inimigo e que
modelas milenarmente o reforço dos cascos sem saber a que hoste
recuada ater-te face à mobilidade de formas da indestrutível besta,
encerrado nas bagas do teu suor e de orvalho. Suspenso do veredicto de
prontidão e asseio, da enrubescência da bigorna afeita às mãos mas não
ágil o ânimo do aprendiz a toda a viração dos cavalos terríveis, ora
corças do mal. Que forja? Onde vires um farrapo encosta-te, onde
morder a fome diz, São minhas as entranhas insaciadas. E se te
invectivarem, Mentes! dirás tremendo das mãos e dos joelhos, Sim,
sim, minto, mas do lugar do escasso, do bruto, do mentido, eu minto dos
que ignoram, eu minto da nudez, eu não sei. E as gargalhadas hão-de
ressoar sob a abóbada oca do teu crânio despovoado como despovoado
é o universo apenas interrompido dos corpos estelares, sinais de que
inteireza derrocados? Mas sabes do que falas?, virá severo o Inquisidor
insofrido, a mais complexa máquina fechada. Darás a mão ao
desmunido de verbo mais próximo, o mutilado da boca,
ventriloquentemente serás desgracioso e agitará então os beiços em teu
nome, Daqui falamos, é o crioulo galáctico, Senhor. Internar-te-ão entre
as capas dos textos recolhidos, legados, indagarás do interior de um fio
mínimo, Vai morrer, a minha língua? Mas tiveram que arrancar-te a
tenazes antes de supliciar o lugar onde perpassa contínua, crescente,
exultantemente fundível nas imprevisíveis conexões, outra antes de
anulada,

Melodramática, melodicamente memorável, arriscando o melado,


solvência em outros sucos, suturada peça de carne votada ao desastre,
ao desastrado excesso, língua delambida e inchada das passagens de
vau, de fontes duvidosas, de cabo a cabo Não, garrotada a cabeça que
escuta e emite, ou defumada até minguar em mínimo troféu, posta de
azul já quase pútrida e distensa, miudez insepulta, húmus do longe.

E quando o cunhado sai cuidando de não arremessar a porta e deixar


surdina, Elisa vai até às traseiras, à varanda, é ainda uma outra pausa,
Àquela que além luz, se é Vénus, crismarei Dinamene, Elisa há-de
sempre amar as pausas onde o espírito fica como que vago, mas o
exacto contrário do vazio, Erros nossos, belíssima fortuna. Elisa
respira o ar da primeira noite morna do ano, não sabe bem o que
murmura mas parece-lhe justo, miríades de estrelas são visíveis e essa
lua manchada como um rosto doído onde lhe disseram com voz cujo
hálito fora de alho e coentro que um homem arqueja sob um fardo para
todo o sempre e pensa, Aguentar, aguentar, ó Sísifo lunático, vai aí a
consciência em cima de dois pés e antenas. Mas não lhe dá ganas de
assistir de outro modo ao evento, tomar conta da irmã prudente,
enquanto se desflora a lua. Elisa é demasiado nova para ter televisão
em casa. Um dia, um dia, pensa de queixos ao alto, na garganta
desgolada o hálito morno da noite, por sobre aquele redondo e
iridescente vale no corpo da cidade cavada de cinturas que se lhe
estendia sob sardinheiras regadas de sua nova mão, catadas de
caracoletes e folha velha com cheiro de feno, Um dia assistirei à
debandada do sistema, ó planetas mindinhos, planearemos o universo
com o mesmo susto e gusto. Será a escrever que Elisa indagará ainda
do porquê da sua confiança no passeio dos homens pelo poços de vácuo
entre iluminações. Talvez, talvez porque o enxofre e o pez caídos dos
céus não feriram nunca a crosta de terra, porém tremente, em que
nasceu, talvez porque lhe ensinaram na escola que bonita, bonita, e
nossa era a navegação. As janelas dos vizinhos resplandecem abertas,
talheres tinem em loiças e tachos, há pequenas explosões de
esquentadores em ignição, a mesma voz indecifrável e charangas de
indicativos publicitários jorram em uníssono dessas várias bocas de
casa, Ora, pensa Elisa, mas pelas festas ainda dançam nas ruas, há
concertinas como no tempo do senhor dom Pedro, e ri-se, da exacta
absurdidade histórica. Percebe então, enquanto transversalmente um
fragmento de corpo ígneo desfila abrupto para dentro do horizonte,
Pedaço de asno de astro. Que nunca será poeta, há uma doação que não
dá. Jamais estará cega sob fulgor que queime a voluntariedade da mão.
Ela olhará nos olhos a majestade das coisas disconformes buscando
com elas a amena familiaridade de uma conversa de café lisboeta, de
cama pós orgasmo tão já somente amistoso. Elisa deseja que a
fulguração oculta more na cozinha de cada um e ajude a enxugar os
pratos, como macho inábil visita da casa, por enquanto. Pensa ainda se
é do contar histórias que não prescinde e embora saiba que só saberá
de todas essas indagações escrevendo-as, lhe parece que não. Não é a
alternativa entre a encantação e o relato plausível que a rala, ali
instalada respirando dos contrafortes da bem debuxada muralha a
ocupação das luas. Elisa quer afinal a coisa mais natural dado o seu
percorrer, o derramamento sem fronteira de entendimento ou contenção
de uma fala, exigente mas ainda explícita, sem essa ocultação ciciada
do verso, ou Elisa já não pode a exasperação do silêncio que ouve num
poema, belo, Meus segredos forcejarei para que possam ser ditos boca
a boca. Porque acaso se teme da desmesurada desolação daquele que
recita possesso do ritmo sagrado pelos templos, Elisa busca a resposta
a forjar-se nos olhos dos vivos, criar como retorquir, narrar para que
eles narrem, Babilónia é um pátio, Luiz Vaz, diz ela então ao astro a que
devolveu nome e agora a voz, contar, cantar de Dinamene a
multiplicação de todolos rios que não vão dar a Roma ou à sede de um
império sobre astros, bronco, sem fala mais que um trémulo nos
circuitos de máquina ejectada.

EU KALUPTOS10

Se fosses uma árvore que árvore gostavas de ser?


Assim, de amor, uma araucária com as franças de verde assim quedas,
olha, sem mexer ao vento, que paz, ou um cedro a estorcer-se enorme
para aqui e para além um tronco assim de largo e multiplicado de
ramas, a irregularidade mas harmónica, habitadíssimo de ninhos,
insectos, lagartas todas veludas e sardões agachados.
Pareces é uma bétula, toda trémula, cheia de suco doce.
Assim de fora, assim para não ser, é do eucalipto, trazido de tão longe,
aquela grande avidez que,
tem sob pântanos e que o leva a sugar num imenso diâmetro tudo o que
possa ser matéria pútrida, restos de toda a fossa, ovas submersas e
filiformes de insectos malignos, resíduos de folhas e bolor onde se
agacham as tarântulas pretas, as lestíssimas pequenas cobras dos
trópicos, mortais, os caimões e a anaconda que tem os olhos brancos.
Ah, os eucaliptos crescem rapidissimamente sobre tudo isso até um
porte soberbo, a carne é tenra e húmida e de tantas tonalidades de pele
lascada periodicamente e que se enrosca como a das cobras mansas e o
nome significa a flor fechada, cheiram a um ar tónico e um pouco
fumegante sem que as suas folhas de cimitarra estreita ameacem os
olhos como as agulhas de um pinheiro.
Ninguém fala assim, Elisa, estás já a escrever-me do cimo das árvores.
Estou a falar de uma coisa amada necessária, comem do podre, do
dissoluto mortífero e faz-lhes proveito.
Os eucaliptos sugam as raízes do que estiver à volta, de quem estás a
falar, Elisa?
É deixá-lo só, no fundo duma clareira.
Tens que ter uma clareira.
Ora, toda a gente pode passar por um pântano e dizer, É meu, toda a
gente pode passar por uma clareira onde está um eucalipto e dizer, É
meu.
Pode, atravessando, atravessando o resto com uma baga cheirosa a
fumigação e ar rarefeito em cada mão, também eu te inscrevo, Elisa,
amar-te-ei para fora do teu terreiro seco podre.
E as lascas da minha carne serão o papel dos que morrem nos arrozais
para nada, eu amo-te.
Esta conversa é ingénua e literária como o caraças.
É mas ainda somos muito novos.
Gosto das tuas peles, carnes, ossos, Elisa.
Gosto da tua boca, quando eu morrer deita-me sem caixão.
Debaixo dum eucalipto?
Debaixo do teu choro, que eu seco, eu subo.
Bem sei, bem sei, só sabemos falar de lenhos e de fins altos.
Eu não, eu não, tu sabes,
Longe não, só longe é que não, ainda, Elisa.

Mas Elisa, nesta ascensão de Março está obcecada com a sua


nacionalidade por resolver. Dos animais, das árvores e dos corpos
celestes, detalhes vivacíssimos e díspares, raras fixações de processos
e nomes, nunca acertou um telescópio para um quadrante exacto, nem
sabe decifrar nos líquenes do casco de uma oliva a maleita que a aflige,
nunca criou frangos, o único gado que apascentou em camas rilhadas de
folha de amora e tubulares caganitas pretas foram hordas de bichos-da-
seda apalpando o ar cabeçudos e cegos em caixas de sapatos de preço
até se encerrarem na própria baba em vertentes de um grande brilho
branco, em amendoins de amarelo vivaz de onde surdiam num líquido
de fossa feias borboletas ventrudas precárias e sem voo, com os seus
bigodes de antena de radar. O mundo das coisas vivas parece-lhe
porém bem, sofrível até nos seus horrores, nada está morto demasiado
tempo, há o cristal de rocha, a onça meritória no apressar da finitude
dos animais sofrentes ou mais fracos. Terá que decifrar que é gente e
que é nação ou tribo mais que um modo de dizer-se singular e passar
anulada, que é um par mais que lugar de acariciar-se preferentemente, a
danação, terá que,

Mas algo mais está acontecendo com Elisa que lhe faz perder o sentido
da extrema complexidade das coisas humanas. Ou galgá-lo de uma
pernada, como outrora o intruso do boné que outro não haverá sido,
acaso, quem sabe destas coisas?, outro ser que não o terno visitador
nela das coisas presas que a habitam. Parece-lhe que há-de haver uma
receita próxima e simples como uma só palavra. É muito ignoto o que
procura, mas complicado não. Olha os seus livros, estende a mão no
jogo antiquíssimo do escrito do Sagrado Acaso, são suas as maiúsculas
e assim lhe sai, dando Prazer, ainda sua a maiúscula,

Aqui despi meu vestido de exílio


E sacudi de meus passos a poeira do desencontro11

E prossegue em noite de Lisboa e alunagem, a emissão do fio,


dicionariamente tece:

AQUEUS, originários da Tessália, os Aqueus conquistaram inicialmente


quase todo o Peloponeso. Foram expulsos pelos Dórios, tendo-se
estabelecido na costa setentrional do Peloponeso que, de seu nome, foi
chamada Acaia.

Quantas, quantas deslocações ávidas ou passionalmente sofridas,


quantos sulcos de sangue marcou sobre a terra a necessidade humana de
uma diferenciação inexplicável?, irá acrescentar um dia Elisa, quando
puder dizer que tal é a sageza dos povos longamente suplantados após
glória — a detestação das fronteiras entre as nações, os homens e as
espécies, o tão-só amor da própria fala, vínculo sublime com a única
fala que restar um dia das duríssimas sobrevivências.

Falta-me um grito que arrebatara para mais próximo do para onde


forcejo, falta-me uma única frase de confiança brotada das rochas de
basalto de esta cidade mestra e abalada de vermes que nunca a amaram
amante da variedade, este calcário trémulo e rosado onde uma nação
marcada pela dispersibilidade escolheu reclinar a sua cabeça à espera
do princípio do princípio duma outra era sem povos preteridos ou
malditos, E esse seria um tema muito recorrente nos seus escritos e
andares, durante mais alguns anos.

Considerou ainda nessa noite a proximidade de raiz semântica do seu


nome ao de Electra, a que atrai pela pertinácia do seu clamor de
reparação e ao de elektron, em grego o âmbar amarelo, esse cálculo de
petrificada resina translúcida, seiva volvida coriácea que atrai
partículas leves se insistentemente friccionada, quente, tida em mãos
que indaguem, rara, achável na orla de mares nórdicos contendo por
vezes um pequeno insecto incorrupto, suspenso morto. Tantas
referências, e os vizinhos escutavam altas horas uma avançada de um
feito há bem pouco tido por irreal, impraticável. E a carne de Elisa
acedendo aos nomes no tempo em que as bocas se cerravam doía-lhe da
ausência de braços onde encontrara paz. Mas não chamava, suspendida
entre a pena e o júbilo, contraindo de memória os músculos da vagina
como se válvula foram da imensa víscera palpitante do mundo vista de
cápsula em trânsito, ensaiado o desprendimento da memória do seu
espaço-tempo num pequeno andar da Costa do Castelo. Elisa expôs à
Lua a palma da mão direita e espalmou a esquerda morna sobre o baixo
ventre, acima do triângulo do púbis e disse, porque guardaria toda a
vida uma certa propensão para a grandiloquência, Espaço, eis aqui o
teu Porto, madrugada, eis aqui o teu Galo,

prova que não estava doida é que se riu sozinha voltando para dentro a
comer uma bucha e acrescentando, De Barcelos. Continuou depois
fazendo o que lhe parecia ser estudar pela noite fora, aplicadamente, o
programado,

A linguagem é tão velha como a consciência — a linguagem é a


consciência real prática, que, existindo para os outros homens, existe
para mim próprio pela primeira vez e, tal como a consciência, a
linguagem só aparece com a necessidade imprescindível do trato com
os outros homens.12

E então, uma outra vez a pequena Elisa adormece dentro do seu corpo
de adolescência a um tempo lenta e precoce, adormece porque não está
de facto a preparar nenhum exame mas a modular a trajectória do seu
corpo que fala sobre a porção de terra que lhe coube, como um
exercício que se desejaria exemplar de maleabilidade e atenção. Tem
agora os cabelos quase pretos espalhados sobre a cara de feições
agudas e fechados os olhos sobre a íris cuja coloração é variável por
luminosidades ou humor. Dorme no chão porque este seu tempo, cuja
duração não é previsível exactamente, muito se assemelha a uma
campanha. E como dizem que os sentidos no dormir muito nos dão sinal
mais ou menos legível das nossas esperanças e lembranças, sonha ela
que é já madrugada e que vozes a estão chamando das palhas a que vá
avisar o rei, tolhido no pouco território que resta, de que as povoações
estão a dispersar de grandes coisas e que ela, que só sabe avisar, veio
em nome delas, das vozes. Repara então que vai cavalgando por uma
floresta musguenta e cheia de míscaros em cima da lebre vagarosa mas
muito macia nas pernas por debaixo do bibe e das saias. Agarrando-se
afectuosamente ao cachaço da lebre e mal tocando com os pés no chão
suspira, Este continente tem uns mitos um bocado parvos. E a lebre
responde num pincho suavíssimo, curiosamente com a mesma voz que a
da freira da portaria, Agarra-te bem que inda agora vamos a entrar.

1 Ó desgraçada geração. Pier Paolo Pasolini La Ristorasione di sinistra.


2 M arx e Engels. M anifesto do Partido Comunista.
3 Bétula. Russo.
4 União. Russo.
5 Que p ena. Alemão.
6 M inha p ena. Polaco.
7 Lembras-te, minha irmã? Russo.
8 Poder liberta. Alemão (Não O Poder liberta) — N.A. À entrada do camp o de extermínio de Auschwitz, na Polónia,
estava escrito — Arbeit macht frei. O Trabalho liberta, alemão.
9 Nem sei o que trará o amanhã. Referido p or Jorge de Sena in Poemas Ingleses. — N. do T.
10 O bem coberto. Grego.
11 Sop hia de M ello Brey ner Andresen. Acaia.
12 M arx e Engels. A Ideologia Alemã.
V
CASA DE MARY
DECLINAÇÃO
Despache-se a comer o lanche Mimizinha senão quando a mamã e o
papá vierem não está pronta e eu queria vestir-lhe o seu vestido de
organdi azul, não quer vestir o seu vestido de organdi azul?, Pica Rosa,

O pão tem por cima manteiga e marmelada e na boca mistura-se o


macio da manteiga e do miolo e o travo mais carregado desta polpa em
grumos espessos e translúcidos, os teus olhos ainda triunfantemente
azuis e confiados fitam aqueles risonhos pretos na cara muito corada
onde há gotas nos pêlos escuros por cima do beiço, os calcanhares das
tuas botas fazem um barulho bom a bater cada perna no reboco do muro
caiado, um atacador pingão. Espalhaste miolinhos do pão arrancados
com o indicador e o polegar gordos e o galo cocó trouxe as três
galinhas para os teus pés, ao teu lado está o chapéu de palha com fita
que caiu no tanque dos gansos, os andorinhões chiam baixo, a herdade
sossega. Ela baixa-se a mirar-te a barriga das pernas de onde as meias
molhadas escorregaram, vem de lá diante um rebanho a vir, é o
Domingos que nunca leva safões, Pica agora, atão a dona Mécia forrou-
o todo, Jesus, como a menina tem as pernas, anjinho, todas cagadas, foi
outra vez aos marraninhos, não lhe disse já que a Feliciana lhe ferra?,
tenho que andar-lhe sempre na trela do caminho, isto é que é uma
retoiça, apanha-se fora da minha mão e não há quem na agarre. E essa
voz tem campainhas de sininho de cordeiro de felpa em cima de rodízio
e de flor fina azul aberta e chupável, tu dizes com a boca cheia sendo
levada apertada nos braços e a tua cara ungida de manteiga encostada
terna àquelas bochechas macias molhadas e cabelos pretos, Rosa,
posso levar o meu patinho?, Podes, minha santinha, meu passarinho de
prata, atão não puderas, mas temos que despachar que vêm aí eles e
hão-de querê-la toda bonita, atão não hão-de, mê Santo?, E tu vais
abanada ao colo para um lado e para o outro, o que te faz vazios na
barriga mas não cais e guinchas de prazer, o bracinho aferrado ao
pescoço morno, a mão ao pão. Lá fora ficam os céus vermelhos e a
amarelidão arruivada das terras e dos chaparros fincados no ar, os
troncos dos sobreiros há pouco descarnados têm fulgores de rocha
aberta ao mar, argilas, todas as portadas azuis estão a escâncaras e
percorrem-se corredores habitados de cheiros bons, cabrito a marinar
em vinha de alhos, leitão a tostar, papos de leite a serem queimados. A
Lady, cadela fox de casa e cega ensarilha as pernas de Rosa que trota,
dobra agora o passo de corrida de égua doida em cortesias contigo à
ilharga aciganada pelos corredores fora, apertas as coxas e pula-te o
rabo pequeno e a Sara berra de lá longe onde assobiam vapores e
matracam colheres de pau e garfos que alteiam claras, Credo, que
carreiras são essas, ó Rosa, depois diz que tens tosse, isso nem são
propósitos de ancar com a menina, veio à porta da grande cozinha com
pias de mármore como baptistérios, para ralhar de alto. Chegas à casa
de banho onde há cadeiras esmaltadas de aros laçados e assento de
furos, o grande espelho está já embaciado e a Rosa depõe-te ao alto
num acesso de tosse e riso e curva-se para te alargar as botas puxando
entre as anilhas, algumas soltas da carneira, dos pés que não chegam ao
chão. Deitas-lhe os braços ao pescoço e dizes, Gostas de mim, Rosa,
gostas?, e ela beija-te muito de chupado o pescoço e diz, Atão não
houvera de gostar, quem é que criou o meu rico anjinho, quem foi?, mas
vamos lá agora num ai que eles quando achegarem e a virem nesses
preparos, haveram de ficar muito pesarosos com a gente, não é meu
lindinho? E docilmente deixas-te despir a mastigar em paz a última bola
gostosa, de pé agora em cima da cadeira enquanto a água gorgoleja e
fumega para dentro da grande tina de zinco pintado e pela janela
entreaberta, do delá da rede apertada miudinho, há uma voz de homem
que vos trauteia uma moda e isso está no sorriso da Rosa e no modo
como te suspende com doçura um braço enquanto sai custosa a manga
húmida do bibe pegada à do vestido e te passa para a outra mão o
patinho que chuchas e a segura pelo punho enquanto com a outra mão te
puxa as cuecas mijadas já frio, Ó riquezas atão outra vez?, Tava
esquecida, Rosa, Tava esquecida, tava esquecida, atão e se cá estivera
a mamã?, agora a Rosa tem que as lavar às escondidas, não é?, Lava
aqui, Rosa, eu não torno mais, foi sem querer, Rosa, Pronto, não se
aflige, anjinho, não chora a minha Miminha, inda é pequenina a
passarinha, não é, meu cordeirinho?,

Alentejo nã tem sombra


senã a que vem do céu
assenta-te aqui menina
à sombra do mê chapéu,

O patinho de celulóide singra numa fona e não se afunda, bates com as


mãos gordas a água morna que espirra, fios grossos descem desde o
tecto pelas paredes e embebem-se onde principia a cal, Ó anjinho, atão
assim molha-me toda, o celulóide do pato é mais saboroso molhado, Tu
também tens que te pôr a crista para eles, e Rosa torce-se de riso com
um joelho no chão na saída de borracha encharcada, Ora esta, ora esta,
e esfrega-te as costas com a esponja verdadeira macia e as unhas
amolecidas, coça-te mais acima e mais abaixo como tu pedes, passa-ta
agora nas dobras do pescoço e da vagina e tu calas-te de prazer
chuchando o rabinho estriado do pato, segurando-te em pé por um braço
à asa do avental, a protestar um pouco, ela detém-se mais nas mãos, no
entre dedos e na palma dos pés e tu dobras de novo o riso e sentas-te de
chofre o que a alaga a ela e mais o chão e a voz da Sara vem de longe
desembaraçada, um intervalo no afadigamento, cheia de cheiros a
coentro e louro e tomilho já à porta onde espreita e diz que já vai para
as seis, escurece, Parece que anda por aí o pessoal todo alvoroçado,
diz que prenderam dois homens na Coita, O Manel não foi, que inda
agora o ouvi cantar, Lá cantar-te canta ele e de rijo, vê mas é se tomas o
xarope de cenoura pela noitinha, que cada vez andas com mais tosse,
assim a lidar com a inocente, Ora, isto passa, não é meu lindinho?,
Agora uma rapariga que já está numa casa destas há tanto ano encantar-
se dum ganhão, Ele não é ganhão, é filho do tio Rita, Ora, está amarrado
aqui a este chão, não está?, e tu tens que ir para Lisboa e nem escrever
sabes, rapariga, vê se tens tino nessa cabeça, já tinhas idade para
namorar menos, Que foi, que foi? São os homens a ralhar lá fora,
Mimizinha, por causa de uns homens maus que prenderam, Porque é que
eram maus? Deixe-a falar, meu lindinho, maus é quem nos prendeu,
Isso, só cá faltavam agora essas ideias, tu vê-me mas é o que é que
andas a dar ouvidos, olha que o pai diz que o derreia se lhe apanha
mais jornais, bem, vou mas é à minha vida, bem podias vir dar uma mão
à cozinha, que aquele pessoal põe-me a cabeça em água, Atão não vê
que estou a lavar a menina?, Ora, tu passas mas é a vida a reinar com a
inocente, deixa vir a menina Carminha, que ela diz-te, que a dona Mécia
não tem mão nesta casa, Vossemecê também desde que ficou com a
cozinha parece que é dona da herdade, A Lala é má, É má, é?, deixe que
ainda há-de vir pedir-me que lhe faça areias para o lanche e paiozinhos
para chupar, deixe, que eu digo-lhe, bem diz a avozinha que a Rosa a
estraga, A avó é má, É má, é, só a maluca da sua avó Elisa é que era
boa, Credo, ó Sara, se o senhor doutor a ouvira, Quero lá saber, eu cá a
minha patroa é a menina Carminha que só vim por mor dela, agora
aquela peste, Deus lhe perdoe, capaz de roer um homem à mão, a
entrar-me pela cozinha adentro com a caçadeira logo pela manhã,
aquilo nem era senhora, nem nada, A Lala é má, Pronto Mimi, vamos é
vestir que estão a chegar os paizinhos.

A água esfria, esbranquiçada e opaca, a bola de sabonete de glicerina


custa a encontrar ao fundo dos teus batimentos de pernas, barriga no
fundo, a Rosa esfrega-te agora a cabeça cheia de ripinhas pegadas e
frias e diz-te, Fecha os olhos patinha, fecha os olhos, i que lá vai uma
grande chuva, olha a saraiva, ena que grande chuvada, e tu ris-te muito
com a cara ao alto e a boca cheia de água limpa que ela te deixa cair
em grandes bátegas de dentro de um jarro, num jogo tão antigo, faz
assim desde que te sentas bem no fundo da tina e na banheira de bebé
agora já curta, e só abres os olhos quando ela te retira com dedos doces
o excesso de água da cara que tens franzida, Parece uma laparota, o
meu Miminho e tu sorris, sorris, estendendo-lhe os braços curtos a
escorrer para dentro do abraço, da toalha grande que te embrulha toda
naquele colo dela, que te estica para fora um braço para te enxugar
brincando as roscas do pulso e a cova em cima que te cocega e mais
riem, guinchas e estorces-te, os pés a dar a dar, Ai que assim a gente
não se despacha, Mimi, vá lá, pintinha,

e tosse, a Rosa, caminho do quarto contigo às cavalitas nua e de pele


mole dentro do pequeno roupão rosa turco traçado por cima do corpo
rosa e a cara aureolada de cabelitos pálidos e bastos que já secam, no
ar, os pés rosa descalços de cada lado daquela cintura e o rabo assente
na laçada do avental e a Sara a dizer de lá longe, Olhem para aquilo,
olhem para aquilo, que desatinação, e a dona Mécia larga a costura e
vem cheia de linhas por cima do vestido preto com o seu passinho
esperto e impertigação assustada recomendar que a senhora dona Maria
do Carmo disse para ter a menina pronta por volta das seis e meia e tu
cochichas com a Rosa, aos pulos na cama a bufar de riso e excitação
porque vêm aí eles e a Rosa tira do teu guarda-fato branco com tantas
flores de cores do quarto da herdade a tua combinação com goma e fitas
passadas e o vestido de organdi que ainda pica um bocadinho no
pescoço e nas mangas franzidas, apesar de forradas as costuras; calça-
te as meias bem esticadas de crochet e os sapatos de tira de botão e tu
deixas-te estar agora muito quieta em cima da cadeira diante do espelho
da cómoda enquanto ela se esmera a enrolar-te no ar as madeixas pouco
húmidas já uma por uma e tu estás no espelho com essa cara muito séria
onde espetas dois dedos para ver se faz covas como a menina que
sapateia no cinema, o que faz sempre rir a Rosa e dizer que és mais
linda, e ela põe o elástico enrolado na madeixa que leva a fita larga e
olha também no espelho o acerto bojudo das duas asas da laçada de fita
nova e diz, Pronto, agora não se amachuque toda até eles virem,
puxando-te dos dois lados a bainha da saia e juntando as duas mãos dos
lados da tua cara, assim frescas da lavanda que te pôs e que picou um
bocadinho nos arranhões das pernas e ela assoprou e diz, Minha riqueza
de menina, não há coisa mais linda e agora vou-me aprontar eu, e tu

ROSA ROSAE

Mal sabendo ou sabendo de que denegado saber que não é dito e te


povoa as noites de malignos entes — que desse corpo, que te
acompanha como amantíssima excrescência o teu ao acordar e ser
inerte no sono e socorrido no susto e donde recebes o alimento, serás
decepada pela inflexão de um golpe gerando-se invisível de uma
história de antiquíssima carência, entre vós ambas a inscrição da fome
e do abandono precoce, ó rosa que definhas carcomida de um verme1
que não deixará pétala sobre pétala no edifício do vosso entendimento
carnal. Que é dos actos e nomeações entre as espécies amáveis desta
carne corroída já que a tua se acrescenta e a si mesma goza de ser, entre
as humanas coisas, desejada. Que abres a boca e há uma colher
empunhada com gosto e delicadeza no saciar-te, defecas onde te foi
pedido e há esta mão vitoriosa e compadecida do compromisso que te
extrai das bordas do pequeno ânus rosado os resíduos das fezes
dizendo-te ainda linda no agachamento humílimo, tropeças e é esta a
mão que te sustém da laceração das rótulas redondas e tenras e te
incitou porém à audácia do passo erecto e da aplicação inábil dos
nomes. Acordas pelo meio das noites nesses grandes espasmos de ser
comida de fauces esguias e obscuras emergindo dos braseiros da tua
emissão culposa de urinas e são estes braços que logo te erguem ao
uníssono com um outro corpo que pode abarcar o teu, ninando cantos
doces e o perdão e a promessa. Há, deveras há, altíssimas criaturas
coroadas, eles, que entram e saem envoltos num halo de oiros dos teus
paços menores, mas esta é a árvore da vida onde enroscas a progressão
do teu sentir, que te esconde dos vaticínios dos deuses altos e avaros, te
assoa e leva ao parque por entre as árvores e ao chiqueiro onde
colidem sem escândalo as carnes e os mais pestilentos e moldáveis
elementos, um olho posto amante em ti e o outro no desejo dos homens
que a sustenta, alheia ao desastre que vos mina já todo esse tempo
solar, ó amadas dos tempos e das iconografias, meia virgem com
menina emprenhando-se do mundo, cativas mãe e filha veramente
adoptadas onde fluiu entre corpos não o leite mas a frequência do corpo
a corpo prolongado e a palavra, ambas espúrias passageiras de
precária barca, delicioso contrato ante a adiada perda, corola
rescendente, de botão a flor feita o mesmo amável pé hasteado num
tempo, o dom materno.

E quando o carro vem vindo agachado na estrada batida ao longe


levantando pó e todos os cães ladram e se agitam e das portas dos
vários edifícios vão saindo cabeças, mãos que se enxugam e se
assentam no sobrolho, que a estrada é à contra poente, já tu estás no
portal de cantaria da entrada, sentada no punho plissado de branco da
Rosa, erguendo-te no tronco de nervosismo e a Rosa ri-se e tosse e diz-
te que assim não pode e quando ele sai primeiro, a tirar as luvas de
camurça e a ajudar a tua mãe a levantar-se langorosa sacudindo dos
cabelos o lenço de seda posto como um turbante e já ambos com os
olhos postos em ti a sorrir, ela cansada e ele com os braços estendidos
onde está aquele cheiro a tabaco bom e a rugueza da flanela de riscas
do jaquetão traçado, pedes chão para correr para lá, que o carro já
parou de roncar e ele já está nos degraus, A sua filha está cada vez mais
parecida consigo, chérie, que criança linda, cresceu imenso num mês, e
contigo ao colo mas olhando já em frente para a escuridão da entrada
onde luzem as pontas de cobre e os pregos amarelos dos grandes
cadeirões de coiro, após saudar o pessoal que espreita ou se descobre,
entram em casa, na frescura da casa, e encostas a cabeça à maxila do
teu pai porque ele vem um pouco triste e agarras a tua pequena mão
com a tua mão, os braços à volta do pescoço dele que pica um pouco.
Mas aí está Rosa bonita na sua crista e tranças presas e avental diáfano
que te estende também os braços e a quem ele te passa e que te
sussurra, Vai ver como lhe trouxeram bonitos lindos, Mimi, e tossica
travado e o teu pai vira a cabeça e pergunta, Tens tosse, Rosa? E ela
diz, É pouca coisa, senhor doutor, constipei-me no rumor de lua, e toda
a casa está já num alvoroço, a Sara vem a enxugar as mãos e a dar as
boas vindas, Ai o senhor doutor, ai a minha menina, fizeram boa
viagem?, dona Mécia vem penteada de fresco dar a ponta dos dedos e
beijar na ponta da cara, escovada de linhas, Boas tardes, menina Maria
do Carmo. Mas a tua mãe vem muito cansada e pisa devagar nos seus
sapatos de tiras e cunhas e tailleur cintado de viagem e pede silêncio, o
quarto, um chá, Depois não janta, menina Carminha, tenho cabritinho
ensopado, Um chá, um chá só, e o teu pai vendo-te ficar para trás os
olhos postos nos bolsos, ri-se, entrega o chapéu e diz para irem buscar
as malas ao carro e trazer-lhe ali a mais pequena e enquanto a tua mãe
avança seguida da Emília que lhe tira das mãos casaco e carteira, o teu
pai e a Rosa sorriem do teu rostinho ávido mas composto, Está tão
linda a menina, não está, senhor doutor?, Está, Rosa, está, temos é que
ver que tosse é essa, rapariga.

A boneca tinha os olhos fechados cheios de pestanas duras dentro da


caixa e um vestido azul quase igual ao teu, folho de bainha, faixa de
laçada, folho crescente da cintura ao ombro em asa, golinha de apor
com molas de encaixe, pequeninas, soquettes, mas o sapatinho branco,
pespontado em abertos. Estava segura por elásticos forrados nas roscas
dos braços e das pernas e tinha os cabelos amarelos, crespos e
brilhantes. Tu tinhas a boca aberta sem te atrever a mexer e a Rosa
dizia, Ai que linda, Mimi, ai que linda. Numa maleta de cartão um
casaco com gola de pêlo branco, três vestidos e um quimono, dois
pares de sapatinhos, uma saia de ténis e uma camisola de crochet com
torsades, um pente e escova ao tamanho, um frasquinho de perfume e,
maravilha, outra caixinha com pó-de-arroz, rouge, bâton verdadeiro. A
mãe já sentada no cadeirão de orelhas abre apenas os olhos para o
vosso grupo no chão assistindo à pequena passada da boneca, ao seu
Mamã miado, A pequena gostou, António? Tu extasiada bates as palmas
sem chegar a tocá-las para não fazer barulho, Vá agora brincar para o
seu quarto, mon choux, que a mãe não se sente bem, leve a sua boneca,
a Rosa leva-lhe a caixa e os vestidos. Vais com os braços cheios,
aqueles pés rijos chegam-te abaixo dos joelhos, seguras a boneca com
dificuldade, a bochecha de loiça apertada na tua e a Rosa cochicha,
Não agradece a sua boneca, Mimizinha? E tu voltas-te sem os ver quase
com aquela cabeçorra diante de um olho e dizes muito gentilmente,
Merci maman, merci papa, mas o teu pai beijou-te já na testa e está de
joelhos aos pés da cadeira da tua mãe que tem os olhos fechados. Ele
tem a mão dela com as unhas pintadas de ciclâmen pegada à boca e
olha-a e olha-a e diz-te, Vá, minha querida, vá brincar, a mãe está
cansada, Rosa leve a menina,

A boneca está nua em cima da tua cama de grades de madeira descida


do teu lado, a caixa dela e a maleta pousadas na de ferro onde dorme a
Rosa. Com a cabeça para baixo o que a fez miar mais, investigas-lhe o
traseiro e o entre pernas sem rachas, as articulações encaixadas fundo,
descalçaste-a, pedes ajuda à Rosa que está diante da janela entreaberta
e diz, Espere agora, Mimi, mas eles ameaçaram assim o pessoal de
morte? E a outra voz diz, enquanto tu te resignas e vais pentear-lhe o
cabelo onde o pente pouco entra, abrindo-lhe uma risca que não sai
muito direita, a medo para não arrancar, Aquilo até lhes disseram que ia
a tiro, o pessoal que não pegasse, E tu?, Eu, já se sabe, deixei-me estar
ali a ver, que eles de mim não vão desconfiando, sou filho de rendeiro.
As cigarras ainda se ouvem, um burro zurra perto, há vozeares ao longe,
Atão e agora? Agora nada, que o pessoal não buliu nem para arrecadar
uma palha, eles não nos podendo matar a todos foram-lhes achegando
com os cavalos, mas dali não abalou ninguém, quando a guerra acabar
vais ver, lá em Lisboa é que vão ser elas, isto vai tudo levar cá uma
volta, Achas que vão matar a gente? A gente não, que já hás-de estar
casada comigo, eu não gosto é dessa tosse que tu me andas tossindo,
Isto não é nada homem, apanhei isto de uma corrente da cozinha, tava eu
a espertar o forno, Mas já vais nisso para mais de um mês, olha que eu
não te quero doente que temos que ir tangendo na nossa vida, que isto
está fero para quem andar chegado a patrões. Dá-me pena a cachopinha,
é como se fosse minha, Ora havemos de fazer outras, Deixá-lo, Lá
lindinha é ela, ó Mimizinha, chegue-se cá à gente, ela o nome dela como
é?, que isto é nome de gato, É Maria das Dores, Raio de nome mais
triste que lhe haveram de pôr à gaiata, É das tias, prà gente é Mimi, e
uns braços duros forrados de flanela entram para dentro do quarto e
levantam-te do lado de fora ao rebordo da janela a ti e à boneca nos
teus braços entre aqueles dois corpos chegados, os pêlos da gola de
raposo malhado, mas o teu coração está tolhido e apertas a boneca de
pernas e braços para cada lado como a Rosa te aperta a ti e ele a ela.
Quantos anos tem ela, ó Rosa? Vai em cinco, o anjinho, mas isto é tão
entendida, não é minha rosa?, Rosa és tu, Ora somos as duas, não é,
minha pombinha? E tu dizes como essoutra cúmplice menina Julieta a
sua perfeita ama, evocando, Éi. E os dois desfazem-se a rir mas tu
sentes que é de gosto em ti e no teu falar local, deles, e a pena no peito
solta-se um pouco, Rosa tosse para o lado para não te atingir a cara e
beija-te e ele a ela, a mão onde o peito arrufa e a ti já não deixa, e estão
a chamar para o jantar, badala, querem-te à mesa hoje, a Rosa dá-te, a
Emília é que faz o serviço de mesa.

DE PROFUNDIS

Como o coração é lacerável e aquilo que comummente se designa por


inteligência das coisas. Somos o que pudemos não perder. E todos os
dias nos cruzamos com hordas cerradas de mutilados marchando
docilmente dentro de um destino indesejado. Como pecíolo isolado na
ablação das estrias fêmeas, invisitado do afago das hirsutas patas,
assim percorre os anos e as estações o que outrora foi a cigarra intacta
que te morou, ó habitante decepado de uma norma frouxa. Lembra-te
que olhaste um dia a planta desnudada do teu pé e era maior que este
teu tempo — solicitavas então com toda a urgência apenas a
acomodação do teu corpo a outro, cálido, a progressão no teu
conhecimento, a saciedade das tuas carências mais simples, a pura
fome, a pura sede. Olha-te, rosa das rosas e dito medida de todas as
coisas, quantos pequenos animais e estruturas foliculadas te
ultrapassam hoje em sageza na prossecução do que deveras carecem?
Apõe as mãos ao leme da tua dobragem de águas contrárias, português
que te leste ou que vais saber ler, soletra quão grande ganho é haver
perdido ante outros povos a noção falsa de ser, a assente no imperar —
a imprestável à natureza humana que é de bondade e averiguação do
máximo possível — mais amar, mais saber. Diremos de dentro do peito
vermiculado de uma rosa insistente, E o poder? Diante desse dito se
engelham porém as mais perfeitas e tenazes odoríferas corolas. Nenhum
lactante quer mais que o colo que sacia. A beleza é da ordem da
indagação justa dos próprios meios, não mais do que permita a força
humana. Todo o herdeiro é cortado de si mesmo pela mutilação dos
deserdados. Generalidades, ao lado do discorrer do que pode e do urro
do impotente. E então a flor mais córneo bolbo se fará sob capas a
desvendar apenas pouco na alacridade acre de periódicos cravos a
hastear em cada um de teus globos oculares, invisuais, pegados na
pústula restante dos pedaços desmembrados da criança que te perdes.
Que nome da origem deve ser o de onde nos perdemos belamente na
sucessão dos legados costumes e textos, gestos de alargamento só
ininteligíveis ao coração lascado cedo de si mesmo. Larga, deixa
crescer resíduos, não sirvas os que se expandem pelo lado de fora,
caricatos na sua crescente recessão íntima. Nem temas temer, que
perturbação e carência são os sinais da gestação findada, a laceração
do bolbo ávido, a rosa que gera rosas da sua vida breve e há invernos.
Nenhuma forma reduz vãmente a pujança dos seus processos vitais. Só
é impossível o possível prematuro. Ó aleijado herói e cidadão de
esparsas pétalas mirradas, sujeito insciente de uma polinização intensa
e miscigenante, isto é docemente resistente como a essência de rosa e a
persistência dos ventos nunca unívoca, o canto épico é tecido do cantar
de amigo levado muito longe e este do extasiamento da consciência que
nasce para o todo amparada, embalada amante. Que a injustiça não
mata, ou a avidez desamante, mas quanto nos adiam e separam, ó povos
sábios de avisos e prenúncios de unidade, votados ao subsolo e ao
crepúsculo pela besta que acumula sem prazer, o horror gélido.

Eles comem. No fundo desses pratos de loiça quase azul há animais


finamente debuxados, com asas e pequenos templos e crisântemos
escuros e à volta um filete doirado esmaecido nessa luz dos dois
grandes candelabros de pétalas de cerâmica onde a cera escorre e se
fixa em lágrimas moles, mas ainda da que se abre das janelas por onde
entram já as pesadas borboletas do crepúsculo, o som distante de
animais e pulsar de motor a braços, motoretas no carreiro, vozes de
mulheres bradando pelos filhos, balidos. A tua mãe tem no prato um
pouco de leitão de crosta loira e arroz, come lentamente sem gosto,
vestiu um vestido com olhos de pena de pavão estampados num fundo
branco e que te faz um pouco de medo, prendeu os cabelos à refugiada
com duas popas altas cor de palha orvalhada sobre cada têmpora, quase
sem maquillage excepto a boca ciclâmen, pouco come e o teu pai, com
o cabelo rente ao crânio numa pasta luzente devora desatento o pão
molhado e a carne clara do cabrito, trinca as cartilagens tenríssimas
com os olhos postos nela, em frente, estão em silêncio e a Rosa
pergunta em pé à tua beira, enquanto bates o varal da cadeira com os
tacões destes pés leves e te sacodes na almofada que afunda, o garfo
cheio de peles saborosas e arroz, Está a ver como a menina come,
senhor doutor, e tu tens a grande boneca no colo, o que te atrapalha um
pouco o que vês e abres a boca quando o garfo ainda está ajuntando
pedaços no prato, mas não te deixam usar a colher de sobremesa tão
pesada e cheia de letras para meter bagas na boca entreaberta com dois
dentes parados no carmim de loiça que te escorrega do colo, dentro do
quimono de seda monogramado no peito, Deixe agora a sua boneca,
Mimi, coma tudo, diz o teu pai sem te ver e tu olhas como ele a tua mãe
que tem os olhos perdidos para dentro daqueles templozinhos e fundos
oiro dos lavabos de casquinha, Não tem apetite, Maria do Carmo? É o
calor António, apetece-me já imenso o inverno. Emília volta a encher o
copo do teu pai, intacto o dela, Não gosta do vinho, chérie? pode-se
abrir outra, Não, não, não me apetece álcool. Je vous aime, diz ele
então com a voz mais grossa, baixa, Oui, oui, a tua mãe sorri-se só um
pouco do lábio, concentra-se no prato, não come e as unhas escuras e
compridas enroscam fiapos de miolo em bolinhas que deposita no
rebordo, regularmente, Avez vous remarqué comme la bonne toussote?,
Ne vous en faites pas, mon amour, la petite est bien soignée, bien sage,
elle a une mine splendide, C’est peut-être la fièvre, Mais ele mange
bien, Je veux dire la bonne, Mais non, on verra, ne vous en faites pas,
chérie, voyons. Tu olhas de um para outro e abres a boca aos
montículos que Rosa vai compondo espetando e equilibrando, o braço
no teu espaldar, levando-te por vezes a um canto que escorre molho a
ponta do babette laçado na tua nuca, e sentes no corpo dela que o susto
cresce, entesa-se à tua beira e o garfo treme sobre o prato e em
direcção às tuas maxilas prontas, eles falam da Rosa e de ti, cerras
então os dentes e abanas a cabeça por cima do prato e diante do renque
de copos, Não quer mais Mimizinha?, estava a comer tão bem. A luz
vai decaindo fora e uma melga zumbe, invisível, as chamas adejam
levemente à aragem da noite, Têm usado o flit nos quartos?, pergunta a
tua mãe na vossa língua à Rosa e à Emília e esta diz, Sim minha
senhora, com uma travessa que baixa cheia de leite-creme queimado a
ferro e a Rosa diz, mais tarde, mais sumido, Sim minha senhora, e tosse
com a boca fechada, avermelha-se. Abanas ainda que não mais uma vez
com a cabeça e embalas a tua boneca que tem dois bagos de arroz nos
cabelos. Vá deitar a menina, Rosa, e o teu pai beija-te e mete-te os
dedos mornos por entre os caracóis que a Rosa te refez um por um com
tantos cuidados, ele tem os olhos postos na tua mãe, no teu pequeno
corpo trazido de passagem para as rótulas duras dele que te oferece
agora uma noz pelada, toda branca, sentes-lhe o pulsar dirigido para
aquela sombra bonita cheia de olhos de seda e fulgentes lá em baixo
das velas já baixas, aonde vais agora pela mão da Rosa encostar a
cabeça naquela manga macia e cheirosa a flores gordas e dizes
timidamente para aquela cara onde as luzes redobram loiras, A mamã é
linda, e ela então sorri com os olhos de água de vidro dando-te
pequenas pancadas na bochecha como se faz no lombo de perdigueira
que desabocanha caça e fechas os olhos, Allez vous choucher, mon petit
choux, elle est gentille, la petite, vá, vá dormir, Mimi, Rosa, a menina
tem dormido bem?, Muito bem, minha senhora, já nem acorda de noite,
nem molha a cama nem nada. E quando lhe depões a mão gorda do teu
braço livre do peso da boneca no ombro enchumaçado ela retira-ta,
segurando-a pelo teu punho ainda de roscas e dá-te a ponta da cara
onde procuras depor um beijo que não suje, a boca apertada para não
ter cuspo, segura nos braços pela Rosa que te inclina para ela, o corpo
de Rosa rijo de triste e os olhos do teu pai que vos acompanham sente-
los nas costas picadas de organdi até saírem e ficar já escuro na casa de
jantar, excepto o branco dos lambris de azulejo, onde há senhores a azul
de casaca e meia justa e chapéu de três bicos e cães muito magros que a
Sara diz que a herdade já teve, todos tremeliques, que a avó Elisa os
trazia presos à trela longa do selim de amazona e que os largava às
lebres.
E vais pelo corredor com o nariz encostado à gola de goma dura da
Rosa, a cabeça deitada naqueles cheiros conhecidos e ela com um
braço ampara-te o corpo murcho e a boneca abraçada e não falam.
Chegas ao quarto e dizes que te dói a barriga e choramingas para que a
Rosa te fique a mão na mão até dormires. Enquanto ela te veste a
camisa de percal com pintas e tens os braços ao alto, dizes-lhe em pé
na cama e por baixo do tecido que ela puxa, Dói, dói, mas não é
verdade e a Rosa que sabe quase tudo, diz-te, Eu fico, jóia, mas é só até
a Mimi dormir, a Rosa tem que ir papar também. E na penumbra do
quarto ela diz-te que então o lobo malvado deixou a cordeira ir em paz
porque era uma moura encantada. Perguntas-lhe, Tu vais morar para a
casa do Manel, vais? E a Rosa diz Isso inda está para se ver, e tosse a
rir-se e então tu fechas os olhos e finges que dormes, o cabelo áspero
da boneca raspa-te a cara e deixas a mão mole na mão quente dela e ela
entala-te melhor a roupa e fecha a grade da cama e as portadas de modo
que só entra um fio de luz da lua e sai pé ante pé, a deixar cair o trinco
devagar. Levantas-te então a acender a luzinha de cabeceira. Vais à
maleta da boneca e tiras o bâton e a pequena caixa de rouge benamor e
pões duas rosetas na cara, redondas. A boca sai-te um bocado por fora.
Tiras a colcha de crochet branco da tua cama e estás em pé em cima da
palha da cadeira com a boneca nos braços a dizer diante do espelho,
Sou a noiva moira mais linda que há, sou, sou, quando ele entra e diz,
Mas que é que a menina está a fazer ainda a pé?, onde é que está a
Rosa?, mas que disparate é este, Mimi, toda besuntada, quer que a mãe
se zangue consigo? Mas não se ri de ti, nem está a ralhar muito e,
depois de chamar alto a Rosa, senta-se contigo aconchegando-te a
colcha pelas costas e embala-te tendo o cuidado de te limpar a cara e a
boca com o lenço, sem fazer muita força, a rir-se já e a olhar-te para
dentro dos olhos e de tudo, Mas de que é que a menina estava
mascarada, filha? E tu dizes, encostando-lhe o cimo da cabeça ao
queixo e escondendo-lhe o sorrizinho que abre, De noiva, De noiva,
meu amor?, mas ainda tem que crescer muito, as noivas bonitas dormem
a horas, Rosa olha-me o estado em que eu vim encontrar a menina, Mas
ela ficou a dormir tão bem, senhor doutor, ó sua marota, Bem, lava-lhe
a cara, vá já dormir, minha querida. E fica aquele cheiro bom a charuto
e álcool queimado e o triste sorrir terno e tu amuas do ralhar da Rosa
mas sempre lhe perguntas, Tu vais ter um bebé, vais?, Não menina,
credo, só as que são casadas é que têm bebés, Quem é que faz os
bebés?, É Deus Nosso Senhor, Mimi, agora durma. E no escuro desce
um pássaro preto com uma grande cara benévola que te vem embalar,
embalar até que o mundo gira devagarinho à volta dessa cama, tens a
mão na vagina que está quente e o dedo na boca, e ele diz acamando as
asas e ajeitando as patas grossas no rebordo da grade subida, Tu és uma
noiva linda e a tua barriguinha vai crescer, e ele está agora em cima
dum baloiço que dança para cá e para lá de ti que estás vestida de
luzinhas a brilhar pelo corpo todo naquela escuridão, roçando com os
dedos a ponta macia do lençol e com a língua a comissura da polpa do
polegar antes do declive da unha, tão quente o pêlo do urso habitual,
que empurraste a boneca mais para o lado das grades, da parede
rugosa, e tudo está forrado desse negro manso para onde rolas
devagarinho, de pele, de pêlo, naquela escuridão que amarelece,

que amarelece e o urso pica-te e há tantos gritos à volta da cama onde a


Rosa está deitada quieta, a Sara grita, grita, aberta a portada a uma luz
fria de madrugada que se mistura com esta amarela do candeeiro e estás
molhada, Jesus, acudam, Senhor doutor, menina Carminha, ai valha-me
Deus, e tu pões-te em pé agarrada às grades da cama e a camisa pega-se
às pernas e vês o sangue encarnado na travesseira ao lado da boca
assim aberta da Rosa que não se mexe com os cabelos todos desfeitos
pretos e pegados à testa molhada por cima do lençol, da colcha de
damasco e ela tem as mãos paradas e aquela mancha no branco, e
começas a chorar muito alto e vem a Emília que grita também e a Laura
que ainda é pequena e te pega ao colo e tu esperneias e vês de mais
perto a Rosa, quieta, quieta, a tremer os olhos revirados com a boca
sempre aberta e com sangue grosso, escuro e com bolhas a escorrer do
queixo e o teu pai entra de roupão e manda-te levar dali para longe e foi
um grande buraco negro e vermelho, que girava, que girava,

A Rosa estava muito doente, minha querida, mas há-de se pôr boa e
voltar, mon petit, Coma, coma a sua papa, só mais esta pelo papá, A
menina sentiu-se muito, minha senhora, mas é natural era ela que —

mas nunca mais te lembraste, ou te lembraram, e depois.


1 Referência ao verso de William Blake, O rose thou art sick, an invisible worm. Cantos da Exp eriência.
V
CASA DE ELVIRA
ATRIUM
Raios de luz verde água e azul frágil irisam essa massa de ar que
avança matinal em rodopio vertiginoso das ilhas, sobre a formação de
miríades de renques de espumas baixas ditas carneirinhas, sobre
espessuras profundíssimas de água que, da variedade de algas e
temperaturas de correntes internas, oscila dum sustido verde pétreo ao
azul cobalto, do metálico ao veludíneo, espirais interpenetrando
espirais e braços de água intersectando-se na imensidão da água, o
oceano tónico e diverso, mar nosso, desigual Atlântico. À medida que
se aproxima da ponta da costa europeia esse cachão de brisas finas e
descidas, a ondulação desencontra-se, reduz-se da vaga cilíndrica e
unidamente quebrada em belíssimo glauco para uns cuspezinhos
espargidos e delicados, os velames enfunam arrítmicos com estaladiça
brandura, os céus vedam-se nesse pardo afinal róseo onde há
aglomerações mais espessas de vapor em distensão velocíssima, sem
porém dissipar-se totalmente, adiado o anil. É então que a gente
marítima e ribeirinha suspende os gestos e ergue a cara a essas
irradiações de luz vidrada e bafos de idos emanados da flora que
navega a meio corpo oceânico, respira-se profundamente a gigantesca
amenidade que a vastidão emite — é a primavera do mar. Pelas ruas
estreitas em declive, assentes em basalto esfriado ou plataformas de
argila longamente decantada ascende e espraia-se essa luminosidade
olorosa de suave carga alcalina que vem pegar-se às roupas que adejam
nas cordas com muita leveza e os pombos deixam-se cair a pique e
acasalados, acometidos dessa grande excitação de hábitos das aves
marinhas que então tendem a tomar o largo mais afoitamente. São ares
de abalada que, picando os alvéolos do peito, coincidem com o grande
hausto esse morno e sedante que irrompendo da terra faz rebentar os
galhos nos jardins escassos, perder espessura a pele dos caules e dos
sáurios, tremular de pétalas cadentes a orla dos amendoais. A
primavera costeira é, inicialmente, uma outra forma de frescura, um
chamamento que vem. As zonas portuárias do sul e nelas os
arruamentos virados à costa, às ilhas, celebram alacremente todos os
anos essas notícias do sargaço e do açor, dos idos de Março,
trepidação de traineiras ou mesmo emanação de antiquíssimos cascos
borbulhando das profundezas matérias que regressam da dissolução dos
betumes à atmosfera onde se processa a sangradura dos novos pinhos,
resíduos de calcário ósseo naufragado viajando em tenuíssima poalha o
seu eterno retorno aéreo, em bolhas mínimas o carregamento das
névoas. O trabalhador ribeirinho é então capaz de gastar o salário de
uma semana de decapagem de cascos metálicos a sugar as matérias
marinhas envaginadas na cabeça da gamba grande, na crosta aspérrima
da santola, no pedúnculo do percebe, apazigua o desejo que lhe freme
de mais e mais dessa embriaguez da saudade inscrita no que inspira
enterrando os dentes no corpo todo víscera unida do búzio, singulado
mamilo verde e suave, na baga da amêijoa macerada em cebola
amolecida e alho e ervas aromáticas onde demolha o pão acalma enfim
a possessão da sereia que dá por este tempo sinais do cio do mar. E
tudo isto é bem mais sério que o que possa parecê-lo a habitantes
menos antigamente sumptuários. O ânimo da grande foz do Tejo por
onde a Europa se vem ao Atlântico ginga agora sobre um sobrado
móvel que contamina até aquele que migrou doutras paragens, sujeito ao
renovado apelo da navegação, suas regras, seguidamente e boa
memória do trânsito dos corpos celestes, fazer-se aos contraditórios
ventos lestos e sair onde se arrufam velas e tripulações completas,
muito gárrulas no desatar de cabos e alçar-se ao berço da gávea, à
paração movente. Inspira tu agora uma quebreira fresca, marinheira.
Não é a expiração que comanda, ó suspiroso. Fique o peito, que os ares
movem-se. Respira fundo na cidade que habita na viagem. Só o declínio
sabe da exalação das grandes unidades falsamente cindidas pela
nomenclatura precária, mares, mentes, nações, dois mortais olhos que
perfaçam o antiquíssimo gesto de seguir à mão mobilmente as
combinações de gases e sinais, o transitório transe, o historial duma
grei obstinadamente visitada por aragens felizes.

O quarto que a gente teve alugado durante um ano aquase está desfeito e
suspiro atando sobre a rede de arame do chão da cama o último pedaço
do novelo de corda rala que ele me trouxe na trouxa onde estão as
roupas de cama mais rudes, os cobertores de papa e fioco, o colchão da
cesta do menino que vai ao colo e engatinha ensarilhando-me os pés. O
meu pai está sentado na cadeira à beira da janela com a boina posta à
banda, a que o meu lhe ofertou, a bengala de pau de nogueira com a
rolha de borracha em baixo onde ele descansa as duas mãos, contente
como um rendeiro de aforros. Ali está desde que o ajudei a aprontar,
tirados da cama pelas seis para começar de acabar o enfardar do que
não teve cabimento nas duas malas e baú, que também as atei porque
ficaram a abrir bocas e não fechavam no trinco apesar do meu se lhes
assentar em cima com o peso todo. Já clareava e quando a gente
escancarou a janela o meu pai disse, Cheira a merda do mar e águas
fundas, mas isto está mimoso como a Póvoa. O menino ora bate palmas,
ora guincha de rijo, atrapalhou-me o lidar, mas o meu pai às tantas
pegou-lhe, eu ainda fui a deitar a mão mas avisei-me que dali não vinha
mal, antes pelo contrário, assentado como está. Quanto mais me deita a
mão que pode ao que me vê lidar, mais parece ganhar alento e
destolher-se, ao menos do entendimento e das mãos, que o passinho
segue-lhe peado e não nos acerta com as voltas dos nomes a cada um.
Mas deixá-lo. Nunca mais se descuidou nem nas roupas nem na cama e
só é preciso ajudá-lo ao Domingo na tina, quando muda a roupa, tem
sido o meu. Ela desde que sabe que a gente está de abalada, pouco mói,
entrombada. Se me apanho lá Deus seja louvado e com um nichozinho
para um fogão de três bocas só para a gente com chaminé e tudo, só a
serventia da pia que fica para as traseiras e da tina é que é para todos,
mas a gente vai pôr um lavatório de pé nos quartos e hei-de arranjar
uma celha de plástico para o do meu pai, que tem dado sentido a tudo e
ainda ontem perguntou ao meu, Olha lá, este relógio aí num penhorista
ainda dava qualquer coisa, ó não? Só com os nomes é que não nos atina
e tudo lhe passa da ideia, tirando o que tem muita lonjura de anos que
isso parece que foi ontem, contos e cantigas e passagens da nossa vida
assim no miudinho que nem eu sei já. Chama de Abílio o menino, a mim
é conforme, o da minha mãe, o de uma irmã que ele teve, ao meu nem
sei quem ele nomeia, gente da criação dele, falecidos. Mas que mais dá
os nomes, diz a Estela e bem, A Estela. Ah o nome de um amigo de
peito até alegra o coração a gente largá-lo da boca. Tem sido mais que
uma irmã, veio-me para aqui ontem ajudar-me a embrulhar a loiça e o
talher para dentro das cestas, trouxe-me uma molhada de jornais. Ela
debandou para o quarto que eu da Fátima já fiz ontem as despedidas. A
gente pouca bulha fez que também não é grande trem. Se a gente tiver
sorte e o meu pai se manter assim na mesma, hei-de comprar uma
panelazinha de pressão como a dela e mais duas sertãs, que o menino
começa-me a querer comer, ontem rilhou uma batata frita inteira que eu
lhe dei e umas raspas de isca que eu moí da minha boca. E hoje de noite
foi um sossego, nem o meu pai deu sinal e o meu todo animado, com
espertina, Vais ver, vais ver, não são luxos, mas é tudo boa gente. Eu sei
que lhe custou, que a casa aqui tem outros cómodos, outra apresentação,
mas lá até depois a gente pode pôr o menino no outro quarto quando for
num aninho ou assim, que diz que não é bom estar com a gente, como a
porta abre, se o havíamos de alugar mais tarde fazemo-lo agora, o meu
pai a continuar assim nem é mau de aturar e até me deita um olho no
menino, vamos a ver se a Lídia continua a dar a ajuda, que ela amansou
muito depois daquela desgraça e a Elisinha também me disse para eu lá
ir, se me visse aflita, louvado seja Deus,

E as minhas mãos dobram e alisam ainda enquanto vou e venho da


janela e da cozinha onde arrecado o resto das mercearias, a maizena do
menino e deixo uma sobra de feijão frade e ela está e não me dá
palavra. Vou agora buscar um pano de pó limpo que está já a cobrir a
cesta dos tachos e dou uma passadela nos móveis, nos rodapés da cama
e no alto armário vazio, empoleirada no banco que esse fica, que é
delas. A suavidade peluda do pano faz-me uma com a doçura um pouco
picante, vibrada, do ar que vem da rua, ouvi de madrugada os navios
como se atracados no largo próximo, e isso pareceu-me um sinal de
bem. Acordei em muito contentamento, dormi desta vez queda,
abraçada a ele que sempre dorme inteiriço, sem remexer a roupa da
cama. Desde que o meu disse que íamos deixar o quarto ninguém mais
me moeu, ela passou a falar-me só de largo, como se já me esquecera,
mas deixá-lo, fui boa para ela enquanto foi boa para mim, não esqueço
o bem nem o mal, mas só tenho agora na ideia como no fundo de um
canto dos olhos aquelas sardinheiras cor-de-rosa envasadas à nossa
porta que a dona Mariana disse que ficavam a me pertencer, todas
floridas. Mais o sobrado lavado de fresco e as parede caiadas que ela
disse que lhe pertencia a ela antes da gente entrar, tirou todo o dia de
Domingo, que diz que lá na terra dela é assim. O meu peito é como um
favo de mel a encher-se daquela casa, estou certa que se me adoçou o
leite que o menino mais puxa e me subiu aos olhos a animação
estremecida das estrelas que moram no céu. Até as tranças voltaram a
luzir-me como o papo do melro novo e ele diz que a minha cara parece
o botão da roseira podada, a cruz alçada no espigueiro por estrear. E os
meus peitos estão como as colinas rasas da neve virgem de passos e a
minha boca do corpo parece o girassol virado à luz daquela nova
morada. Quanto pode uma mudança que a gente crê para bom fim. Ah
abençoada Estela que veio alumiar-nos nesta treva a que eu não via
livramento, a carrinha há-de estar a vir, espera que ainda tenho uma
toalha de rosto pendurada lá dentro e é das boas, Não lhe dê colo meu
pai, que ele depois está sempre a sarrazinar a gente e nem puxa pelo
andar, não no deixe é sair, Atão o ganapinho não há-de ver os artistas?,
Amostre meu pai,
a mulher tem no alto do braço um pandeiro que rufa e tilinta em cima do
tapete estendido no alpedrado do passeio e começou a juntar-se
passantes e gente nas janelas e sacadas traz vestida uma saia de bicos
de um rosa flamante e uma blusa azul anil cor de manto de senhora em
andor com mangas que arrufam moles muito nos punhos é magra como
uma vela e dança airosa em cima de uma bola ancha de um côvado que
oscila para cá e para lá em cima do tapete ralo os braços adejam e
baila os dedos no fundo dos braços como chama de candeia a findar-se
à beira a olhar-lhe para os pés está um homem com sapatos de bico
recurvo e manchados como alface grelada e toca com a mão em concha
esguia uma gaita de beiços é aquela música que conheço do circo e de a
Fátima a cantar tão bem com a voz de estar a aprontar-se para sair
amapola lindíssima amapola como puedes tu vivir tan sola com o meu
menino agarrado pela cinta e a dar aos pés o homem diz então lá de
baixo hop levantando ele os dois braços enquanto a mulher salta de
cima da bola nas pernas finas calçada de como que uns pés de meia
brancos sem sola virando-se para um e outro lado das palmas frouxas e
dos risos entre escarninhos e prazenteiros do ajuntamento também ele
tem os braços ao alto e depois os desce e dobra-se pela cintura a dar a
vénia para um lado e para outro há um rapazinho que tem batido os paus
a compasso num tambo e lhe arranca agora um rufo prolongado
enquanto os dois saúdam nas suas blusas tufadas a dele tem um rasgão
nos peitos e vê-se a carne debaixo dela é de cor preta a luzir de
lantejoulas nos remates da gola e do punho o rapazinho despe agora as
correias do tambor e cabriola saindo e entrando no tapete e na calçada
os carros apitam de pés e mãos enquanto o homem e a mulher fazem
gestos de amostragem ele pula e sobe o passeio ao invés tangendo ela
agora o pandeiro enquanto o homem sopra uma marcha veloz o
rapazinho tem a cara cavada e penso então arredando-me um pouco da
minha curiosidade abismada daquele recreio na rua que há-de ter fome
coitadinho empina-se agora nos ombros do pai há-de ser pai que se
agachou e se levanta com ele às costas em pé enquanto a mãe gira que
gira à volta com o pandeiro ao alto a latir alguns passantes aplaudem e
outros já estão a ir à sua vida o menino protesta-me que o desvie da
janela a ir embrulhar dez tostões num ponta de jornal rasgada de um
testo de tacho o meu pai segura-o risonho vê lá se queres que os
funâmbulos te levem ora esta ora esta faz anos que eu não via disto cá
em Braga Lisboa meu pai a gente estamos em Lisboa e vamos hoje para
a nossa casa lá em baixo a mulher apara no pandeiro muito belamente o
que lhe aventam ou deixam e olha-me por instantes nos olhos como uma
loba acossada só a boca muito vermelha se lhe mostra os dentes sem
pensar aceno-lhe com o punho mal aberto do meu menino e ela então
deixa os olhos abrirem-se como duas poças de água enluarada num
ermo de um sorriso verdadeiro de gosto a gosto mas está já a recolher
outras arremessas poucas cada um lá vai à sua suspiro caminho da
toalha lá dentro eles dobram o tapete suspiro que ele há vidas

Que a vossa determinação dos processos da minha consciência só pode


ter lugar, passo a passo, na intromissão carnal nos meus gestos. Não me
descrevo ou possuo palavras outras que muito estritas para ver-me ou
haver-me visto, Chorei, Padeci muito, Alegrei-me, Comi, Lidei para
eles, Fiz as necessidades, Dormi. É apenas por dentro dos meus gestos
executando-os que o falante em meu nome poderá alcançar a tremenda
injustiça que me é feita na exiguidade dos ditos para os reflectir. Dir-
me-ão os amantes visitantes das povoações sem luz nem estrada,
coarctadas da teia vulgar de comunicar e acender, Exiguidade? E
voltarão com registos de imagens e antiquíssimas formas de dizer, sons
que rareiam a depositar no embevecimento dos circuitos rápidos,
recolhas memoráveis. Eu porém, que olhei estas mãos acabadas de sair
tolhidas de debaixo do xaile e desesperei diante da bica onde
finalmente congelavam os últimos fios de água, que contemplei a
extensão verde do faval cristalizada e agónica sob a coberta da geada
da noite, eu que mijei estas mãos para que a comedura aberta da frieira,
o inchaço das articulações cedera, quanto daria para dizer-vos
arrogantemente que o pitoreco aqui dói, neste exacto sítio donde me
escorre da vulva o primogénito morto que a minha mãe e a curiosa
puxam pelos pés já roxos, o berço térreo de nogueira talhado para nada,
para nada a fiação manual dos panos, qual o azeite coado pela goela
com ervide da galinha infectada, na ausência de peritos a dizimação das
coelheiras, a peste dos porcos, a sarna dos meninos.
Ireis como peregrinos contemplar a alvenaria sóbria dos meus casais de
granito, a airosidade do bordado das tamancos de boda da minha mãe e
o seu tino certeiro a comentar as passagens da vida. Mas fenecia ela e
nenhum de vós houve para a arrancar do negrume das sombras onde ela
apostava o dianho a buscá-la, ninguém para salvar-lhe os dentes que lhe
tombaram uma a um como cabelos secos na febre. Eu quero dizer. Que
os vossos altos edifícios e saber são lindos como o mirante de Deus. Eu
quero dizer que só são belos os primores da minha rudeza se vierdes
comigo ao que nela me mantém. Que não me vale ser visitada de olhos
afagadeiros e saudosos de quem nunca foi. Mostra-me a tua vida e a
disposição quotidiana dos teus gestos. Que limpas, que rasgas, que
montas pedra sobre pedra ou literalmente despejas, quem te esfregou a
roupa do corpo, que moição de rins sofres, que peso te derreia. Deleita-
te e louva-me a sageza e muito complexa herança dos enfeites, alfaias,
traças do costume e penas laborais, contos e ditos, mas enterra a tua
fala num corpo que saiba do que dizes. E dá-me esse modo como
discorres da história dos bens, da perfeição dos sentidos, dos amores
lentos, da paragem dos céus e fluxo das águas com todos os seus nomes.
Ah que eu possa saber de mim sabendo das coisas. Porque me alegra
mais que a vós a esperança dadivosa, porque é meu espírito mais cativo
do gozo e do penar dos meus? Como se não fora mais que elo
paupérrimo de correia pendida do teu lado exterior. Ah quem dirá do
meu dizer perdido, coisas que sei da cortesia de uma rês preferida, da
bondade de uma bola de esterco de onde emanam as soltas violetas
encobertas. Que não saberei jamais dizer diante do meu espelho de
morte, findando o bafejar, De Elvira, Lo primero que vi hace tantos
años, Fue la sonrisa y es tanbién lo útimo.1 Haverá dores que ignoro e a
que tenho direito e prazeres que me sonegais dizendo amável o meu não
saber e a indiferenciação do meu espírito absorto na repetição das
tarefas e dos ditos que herdei e esqueço, que me instilam e matam. Ah
quem me teria amor para que eu me invente mais, questão que não me
ocorre. E houvera de ocorrer de dentro deste corpo ou de quem o
soubesse perfazendo estes actos intérminos que perfaz quem somente
deles sabe. Quem me diz corpo em corpo sabendo da imitação escassa
onde decorrem os meus dias e a subsistência dos meus, cativos de
antiquíssimas leis que se não julgam, tolhida de incitamento a um bem-
estar em que não irei discernir do que somos e para onde. Amada do
homem que me entra e tem saudoso sem no saber de bem dizer-me —
pela triagem hábil do ter acesso judicioso ao múltiplo, à bela errância
dos verbos, dos sentidos. Denuncio a pouquidão dos meus meios
crispados nas vossas mãos que apenas pagam serviços. Não me falem.

Falem dobrados sobre o soalho que pisais, a manufactura dos melhores


nacos que quotidianamente asseguram a vossa manutenção e escutarei
sob que forma haveis então de gemer ou imprecar da perda de uma voz
desocupada de mãos. Ouvirei então aqueles que não disseram, A cada
um segundo os seus dotes e hábitos, julgando que estão a falar de
necessidades eternas. Quem poluiu o direito do meu espírito a vaguear
face a uma rosa da variegada profusão dos seus lugares e matizes?
Quem usurpou pela fadiga dos nomes a que não tive acesso o meu
direito a dizê-la que toda a rosa a rosa? Olhem esta cintura que não foi
cintada no puerpério a refazer colinas e pescoços de aves que lá eram
na minha donzelia — como eu poderia fustigar-vos bem a fraude do que
se diz justiceiro e não se ocupa de meu direito a um lazer que me
ilustre, luminosamente me faça e me desfaça. Eu nem sei dizer-vos que,
querendo o tudo, ainda não sei escolher dos resíduos esmoleres quais
os detritos a devolver-vos. Descasca hoje uma batata em meu nome
sabendo que não lhe chamarei nunca tubérculo. Seja esse o teu primeiro
exercício da igualdade entre os humanos. Deixa-a apodrecer como um
cálculo nas imediações do que te dizes. Criatura que me falas sublime,
eis aí a destinação do teu rosto, engelhando na emissão de radículas
ávidas, digo olhos, até à podridão. Que o meu apodrece selado sem
saber que se não sabe. Poderíamos, enfim, ser mais, os poetas nados e
criados, se não te temeras tanto da corporalidade extrema de toda a
mutação, mudança que valha.

Eu, Elvira, pela graça de Deus e dos homens, que não distingo, vejo
agora que a carrinha que o meu homem apalavrou chega agora lá em
baixo à rua esvaziada da aura dos artistas para me levar daqui ao pátio
que é onde vamos morar. Se aqui é mais alto, cheira finamente a mar, lá
em baixo, que é mais perto, há-de cheirar muito mais,

A campânula colossal e viajante do vapor marinho acama-se agora


lentamente sobre a faixa costeira a Sul do cabo da Roca. Como
magnólia translúcida e gigantesca toma assento branco sobre
superfícies que a absorvem e à sua salinidade. É meio dia alto sobre as
águas que marulham baixas numa espuma amarelecida que devolve ao
areal carcaças de pequenos crustáceos, fragmentos de conchas,
cadaverosas vinagreiras coalhadas de branco, nódulos de nafta. Longas
extensões de praia estão desertas, as folhas gomos dos chorões
embaciam-se, burriés ornados de minúsculos líquenes deslocam-se
para dentro de pequenas poças no rochedo, sumptuosamente decoradas
de algas fixas de um verde vivaz ou profundo, anémonas ciclâmen de
tentáculos rosa, a irisação negra dos ouriços submersos, o disparar
iluminado de um peixe nessa luz muito branca, água límpida. Nos ares
há para quem vir a suspensão de uma nau fantasma, o casco rebrilhando
nos seus contrafortes cristalinos, levíssima fluorescência da curvatura
de popa a proa, o velame tenuamente vítreo, a corda da âncora um fio
de aracnídeo de onde pende um cristal de rocha tão oco que vacila no
azul branco dos céus sob o sol branco. O ar, veramente etéreo, escreve
o seu perfeito discurso aos homens, o da fina brisa na neblina marítima,
Chiça, menina, os pertences não são muitos, mas olhe que só este
armário dava para derrear o pai da vida. O melhor é levá-lo de borco
que ele aguenta a cama por de cima, isto é mas é pau de pedra. A gente
depois ata-lhe isto com cordas e a menina segue no carro, tem lá alguém
avisado? O marido da menina diz que se pudesse dava lá uma saltada.
Santinho, ó tiozinho. Veja lá se apanha alguma, meu pai. Ná, espirram
as cabras é sinal de bom tempo. É reinadio, o seu paizinho, ó menina.
Vamos lá embora,

E eles acorrem ao portão da boca do pátio a ver o que lhes trago. A


carrinha parou com as rodas em cima do passeio para não empatar o
trânsito, os homens deitaram abaixo com estrondo as vigas da traseira e
começaram a arriar o que me pertence. Trouxe comigo no táxi as malas
e a cesta das mercearias, para o almoço abro uma latinha de atum que é
coisa que o meu pai esfarela bem com os dentes, oxalá a dona Mariana
se tenha lembrado da bilha do gás. Ele vem logo mais cedinho diz que
me ajuda, mas pelas cinco já hei-de ter tudo pronto nos seus sítios,
depois é só ele pregar uns pregos e meter uns calços no que for preciso,
que grande rombo que isto foi mas assim como assim a gente tínhamos
que um dia ter quarto para o menino e não era agora estar à espera que
o senhor Hermínio se finasse, que ela dizia. Veio à porta do quarto e
tinha os olhos chorosos e deu-me pena. Mas nem uma palavra de boa
sorte teve para a gente, Oxalá não se arrependam, ia ela a dizer de
costas pelo corredor fora quando eu fechei a porta com o menino num
braço e a alcofa no outro, que o meu pai já se arrimava à escada,
degrau a degrau. E eles acorrem, os cahopos largam a bola de pano,
Centra, pá, centra, ouvi-lhes eu ainda berrar e oferecem-se para
acarretar os cestos e as malas, a cadeira que eu pedi para vir ao de
cimo, a tronar bem atada por cima do molhe de trastes. As vizinhas vêm
à janela ou à porta baixa com janelo metido e dizem, Atão felicidades,
ou, Atão já cá está com a gente, a enxugar as mãos, a chamar as que
bordam ou costuram lá dentro a que venham ver a pequena que vai para
a da dona Mariana. Ela sempre se tinha lembrado da bilha e assiste com
gravidade à gravidade com que eu entrego aos homens as três notas de
cem, sempre com o menino à ilharga a chuchar no boneco que lhe deu a
Lídia e a babar-se para o meu ombro até que uma cachopinha que há-de
andar pelos treze anos lhe vem estender os braços dizendo, Anda à Tina
anda, que a Tina mostra-te os coelhos, e a dona Mariana diz, Deixe-o ir,
deixe-o ir, que ela é muito atiladinha. E ele vai, tão confiado que eu
pasmo. Há vasilhame com patas de cavalo e sardinheiras, até gladíolos
a rebentar e cravos, sécias e malmequeres dentro de velhas bacias de
esmalte falhado a todo o derredor do pátio. Alguém derramou sal a
queimar a erva que irrompe de entre o calcetado, nas paredes há
andorinhas de barro e azulejos com dizeres a encabeçar entradas, uma
velha máquina de costura atracada a um lancil, tanques onde a roupa
demolha que é princípio de semana e gaiolas onde se agitam e gorjeiam
pianinho que foi muita a bulha da mudança, bicos de lacre, periquitos,
canários tangerina com as penas de arrebique. Há duas motoretas
lustrosas com o pedal descido e o rapazio após mirar-me de esguelha e
meio riso e entrar-me e sair-me dos quartos a depositar alguidares e a
arriar traves de cama, repegaram no jogo, Remata, cabrão, este gajo é
um nabo, e as mães com os olhos postos em mim e na dona Mariana à
soleira dizem-lhes para ter tino nessa boca senão chegam-lhes. Uma
vizinha vem com dois pezinhos de salsa acabados de colher, outra
barriguda com um filho ao colo vem de volta com a Tina comparar ao
meu, o peso, a dentição, as porções de farinha. Dona Mariana enxota
depois de agradecida e diz que escuso de estar a abrir a lata do atum,
que lá tem uns carapauzinhos da véspera de escabeche, que a gente tem
de ser uns para os outros e que a Estela tanto me gaba. O meu pai
quedou-se ufano de bengala na cadeira ao sol fagueiro lá fora, do lado
de lá cochicham duas velhotas, gaiteiram de cabaz na mão e saias
pretas pela barriga da perna, um reformado avançou para ele duma
soleira próxima e estão retorquindo, não nos oiço com a chiadeira dos
miúdos, Centra, pá, porra. Num fogareiro de barro abanicado de palha
esão a assar lá para os fundos que dão para o reduto de terrenos baldios
onde há barracas de habitação, de ferramentas e capoeiras
improvisadas, sardinhas e pimentos. Esse é o perfume da minha
chegada que me saliva para os carapaus enquanto desdobro lençóis de
lavado para encetar pelas camas feitas e a dona Mariana me gaba o
preceito e os bordados a cheio da minha mão, que pus o do casamento.
Da rádio muito alta vem um cantor que diz,

se sabedes novas do meu amigo é que venho perguntar que arte levou
meu amigo há-de a noite encarcerar dentro de fel e vinagre sua boca há-
de fechar com sete chaves de prata e fechaduras de neve que arte levou
meu amigo há-de a febre devorar se sabedes novas do meu amigo é que
venho perguntar2,
Sossego dentro da tristeza da toada. Dou o peito. Agora toca os
vampiros e a Tina que está ali a ver diz que é do Zeca Afonso, mas isso
eu sei, que elas lá não gostavam muito, enchem as tulhas bebem vinho
novo dançam de roda no pinhal do rei. Na mesa de armar que a gente
comprou, aberta no quarto do meu pai onde também já está a cama feita
e a máquina de costura, deponho agora dois pratos e o talher, o menino
reina com os pés com a Tina a abanar-lhe a alcofa. A batata ferve no
meu lume dentro da panela de pressão que a dona Mariana me
emprestou com a sua voz de cantares, Que a gente temos de ser uns para
os outros. E mais me dispensou uma cabeça de alho maior que nabo,
dois pés de rábano, uma alface das dela arrebicada com um cravo
verde gigantão e um cheirinho de coentro que ela diz que o menino já
está em tempo de açorda com os temperos todos. Da chaminé dela
pendem chouriças de sangue, linguiça, paiozinhos curtos, parece a
cozinha da minha gente, mas branca, com um asseio que levanta a vista
e o coração. Louvado seja Deus que cheguei em bem e penduro na
parede o retrato de boda dos meus pais, ela em pé de arrecadas e
quatro voltas de cordão com a cabeça coberta, e ele sentado de colete e
cadeia de relógio e o bigode farto, revirado. Cheguei. Pela tardinha hei-
de regar as minhas sardinheiras à porta, juntar para uns vasos de ervilha
de cheiro pendidos do beiral, uma ou duas frangas que não estorvam
presas pela pata ou ali para os terrenos da dona Mariana. Já chorou de
o filho estar para a guerra e eu disse-lhe que havia de vir em bem com
aqueles aleijadinhos do hospital atravessados em mente. O meu é que
sabe. A mercearia é farta e a peixaria a dois passos. Vou-me ao pão.
Linda coisa é este terreiro arredado numa cidade assim tão grande. Que
ele vem logo e há-de estar tudo num brinco. Sempre é mais tempo de
eléctrico, mas deixá-lo, farda na plataforma não paga. A rádio está
quase a dar o romance. Deixá-lo. A cachopinha lida-me com o menino
assentado na coberta no chão semeado de sal do pátio, perguntei-lhe,
Atão tu não vais à escola?, e a dona Mariana fez-me sinal que ela é
lenta da cabeça. O meu pai está a contar o caso do corte das águas ao
vizinho reformado que lhe ofereceu do três vintes nos dedos que
também tremem, os cachopos malham na bola de meia que fazem içar
aos peitos, Remata pá, ganda nabo. Saio com o saquitel do pão
engelhado da trouxa mas limpo, meu coração achou por agora lugar
onde medrar, pousar em paz, sempre hei-de fazer a vontade ao meu e
seguir a cartilha aos serões. As portadas da casa da Estela estão
fechadas que ela deixa o menino na creche e larga pelas seis. Vou-me
pois ao pão. Na rádio toca agora aquela dos Beatles que o meu diz a
rir-se que é a do sargento Pimenta, os canários aquietados trilam alto,
gorjeiam delicado, É pá, passa, pá, este gajo, tem a mania, pá,

e pergunto agora de onde durmo e sob as espécies que esta mente


fabrica quando inerte, carregada como barca de ar vogando no carrego
dos tempos — para quê todas estas terríveis coisas numa vida tão
esmiuçada? A minha perna está inerte na escuridão por cima das coxas
dele, que já dorme, a minha cabeça cai e descai-me a boca sobre a alça
da camisola que ele voltou a enfiar do direito, depois, que gosta de
sentir os meus peitos, risonho. É que quando me deram aqueles
estremeções e o esgazear da vista e a boca se me ir como a trilhar de
tão aberta sem atrever-me de respirar debaixo da mão dele a que eu
grite peado, e do corpo, o sentido todo posto no membro catando-me a
alma do corpo, dei conta que se me vertiam águas e não me ralei. Estive
a pontos de chorar de vergonha, depois, mas ele disse, Carago mulher,
que assim nunca tinha visto, deixa lá que é pouca coisa, é o baptizo da
casa. E ajudou-me a limpar. Era pouca coisa, mas eu fiquei a mirar
aquela mancha como cabeça de ova no lençol e que era minha com um
grande pasmo, o corpo todo mole, incerta nas pernas Ele então chegou-
me por detrás do espelho, que acendemos a luz debaixo, e disse-me
alteando-me a cara a puxar-me de brando pela trança, Pareces a cara da
aurora lavada na nascente. E eu vi que era. E comecei depois a dormir
meditando muito. Que coisa é esta que da violência do gozo quase dor
nos alevanta ou arrecada na pureza das fontes? O menino dormiu por
sob tudo aquilo, o velho já roncava cantante de lá do tabique como o
silvar dum moinho. Mais ouvi ainda por fora ali da janela rasteira o
sopro do navio, pelas frestas da gelosia vinha o cheiro das águas,
caneiro e maresia. Que vale? Que coisa poderia indagar da minha
mente clareada, das minhas bocas lavadas após tão dadivoso derramar,
leites, saliva, mijo quente? Quem me dá tempo de falar da abundância
de paz que irradio de meu poder doar-me ao que gozo, ao que espero,
ao que peno? Caio agora nas grandes águas nocturnas onde desabam
rios e se retomam ares, que a água é sempre mais, benigna, mor, e é de
seu comércio com o astro hiante que se revolvem as estações. Mas
durmo já, a língua inerme, porém no merecimento da felicidade
entendida que só da felicidade pode vir.

1 Jorge Luis Borges. Elvira de Alvear.


2 José Niza. Luís Pignatelli. Cantiga de Amigo.

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