Você está na página 1de 176

Uma coletânea de mensagens de rádio

R. J. Rushdoony

BOM DIA,
AMIGOS
Volume 1
Copyright © 2017, de Mark R. Rushdoony
Publicado originalmente em inglês sob o título
Good Morning, Friends – volume 1
pela Chalcedon / Roos House Books,
P.O. Box 158, Vallecito, Califórnia, 95251, EUA.
Todos os direitos em língua portuguesa reservados por
Editora Monergismo
SCRN 712/713, Bloco B, Loja 28 — Ed. Francisco Morato Brasília, DF, Brasil — CEP
70.760-620 www.editoramonergismo.com.br 1a edição, 2020

Editor: Felipe Sabino de Araújo Neto


Editor assistente: Fabrício Tavares de Moraes
Tradução: William Campos da Cruz
Revisão: Felipe Sabino de Araújo Neto
Capa: Chalcedon Foudation
Proibida a reprodução por quaisquer meios,
salvo em breves citações, com indicação da fonte.

Todas as citações bíblicas foram extraídas da Versão Almeida Revista e Atualizada (ARA),
salvo indicação em contrário.
Conteúdo
1. Deus
2. O Deus de Abraão, Isaque e Jacó
3. A Trindade
4. A bondade de Deus
5. O seu Deus está morto?
6. Providência
7. A Palavra de Deus
8. Os decretos de Deus
9. Emanuel (Salmo 46)
10. O ofício profético de Cristo
11. O ofício sacerdotal de Cristo
12. O ofício real de Cristo
13. A Cruz
14. As perguntas mais fáceis
15. O poder da ressurreição
16. Criação e o Criador
17. À sua imagem
18. O fim principal do homem
19. Preservando a superfície
20. O apelo
21. A aliança
22. O desejo de morrer
23. Autoilusão (Tiago 1.14)
24. Atalhos
25. Pecado
26. Vocação eficaz
27. Santificação
28. Adoção
29. Marcas
30. O que é a fé?
31. Fé salvadora
32. Do arrependimento para a vida
33. O significado da pureza
34. O processo educacional de Deus
35. “Não se turbe o vosso coração”
36. “Que poderá fazer o justo?”
37. Responsabilidade
38. Obediência (Efésios 6)
39. “Mais bem-aventurado é”
40. “Espera com paciência nele”
41. O hábito da autojustificação
42. Quem é infalível?
43. “O Senhor dirige”
44. “Sacudido no crivo”
45. Aquele que andou em trevas
46. A chave de entendimento
47. Quando Deus pede
48. Não há vagas
Sobre o autor
1. Deus
15 de junho de 1954

Bom dia, amigos. Vez por outra, nossos filhos nos surpreendem com
uma pergunta simples, mas de escopo vasto, e nos deixam à
procura de respostas. Uma dessas perguntas é: “Quem é Deus?” ou
“o que é Deus?”. Como responderemos a essa pergunta, tanto a
nós mesmos quanto a nossos filhos? Afinal, o que é Deus? A
pergunta não é nova. Há muito tempo, no monte Horebe, um pastor
chamado Moisés recebeu a ordem de voltar ao Egito e libertar seu
povo do cativeiro. Moisés hesitou diante da ordem divina, dizendo
que o povo questionaria sua autoridade. “Que lhes direi?”,
questionou, “se me perguntarem seu nome, isto é, a definição do
Deus que me envia?” “Deus disse a Moisés: Eu sou o que sou.
Disse mais: Assim dirás aos filhos de Israel: Eu Sou me enviou a
vós outros” (Êx 3.14). Como Deus definiu-se ou nomeou-se a
Moisés? Como o autoexistente e autossuficiente. Deus não apelou a
nada que conhecemos para declarar-se a si mesmo: Simplesmente
afirmou: Eu sou o que sou.

Como compreenderemos esta definição? A primeira e mais


importante ideia é a seguinte: Deus recusou-se a definir-se a si
mesmo; em vez disso, revelou-se a si mesmo. Sua definição, Eu
sou o que sou, é na verdade a rejeição de uma definição. Definir
algo é limitá-lo, estabelecer fronteiras e compreender seu território e
natureza. Isso nenhum homem pode fazer com Deus, pois, para
definir ou compreender a Deus, o homem teria de ter uma mente
igual à de Deus. Todo sistema doutrinário ou de pensamento que
nos dá um deus que podemos entender nos dá um deus existente
apenas na imaginação do homem, não na realidade. Quando
tornamos Deus compreensível ou inteligível, fazemo-lo menor que o
homem, e tal pensamento sempre torna homem e o universo
incompreensíveis e, em última análise, divinos. Assim, a primeira e
mais importante ideia em nosso pensamento acerca de Deus deve
ser este: que Deus está além do entendimento humano, que Deus
recusa-se, quando lhe perguntam seu nome ou definição, a fazer
mais do que afirmar sua autossuficiência e sua autoexistência: Eu
sou o que sou.

A segunda coisa que vemos quando examinamos a resposta de


Deus é esta: embora Deus recuse-se a definir-se, ele se revela.
Portanto, a medida que conhecemos a Deus é a medida que ele
revela de si mesmo. Nosso conhecimento de Deus, portanto, não
depende de nossa compreensão, mas da autorrevelação dele. O
impacto imediato desta situação é que o homem jamais pode provar
a existência de Deus e que todos os argumentos a favor da
existência de Deus são vaidade e provas falsas. O único Deus que o
homem pode provar por seu raciocínio é um deus menor que o
homem e, portanto, não é Deus, pois Deus é conhecido, não por
nossa descoberta ou reconhecimento, mas por sua autorrevelação.
Porque é nosso criador, tanto nós como todas as coisas ao nosso
redor são compreensíveis à luz dele. Não é a nossa mente, mas a
pessoa dele que é a chave de todas as coisas. É tolice tentar prova-
lo à parte de quem não há fato.

Como Deus se revela a nós? O primeiro modo como Deus se revela


a nós é por meio da natureza, isto é, por meio de toda a criação.
Tudo dá testemunho dele, e nada faz sentido se separado dele.
Como diz Paulo: “Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o
seu eterno poder, como também a sua própria divindade,
claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo
percebidos por meio das coisas que foram criadas. Tais homens
são, por isso, indesculpáveis” (Rm 1.20). Mas, porque estão em
rebelião contra Deus, os homens preferem mudar a verdade de
Deus em mentira (Rm 1.25) e adoram a si mesmos, em lugar do
criador. Portanto, embora Deus se revele na natureza na medida em
que o homem é indesculpável, o homem rejeita este conhecimento e
não lhe admitirá a existência.

Como resultado, Deus se revela a nós de uma segunda forma, na


pessoa de Jesus Cristo. “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós,
cheio de graça e de verdade, e vimos a sua glória, glória como do
unigênito do Pai” (Jo 1.14). “Ninguém jamais viu a Deus; o Deus
unigênito, que está no seio do Pai, é quem o revelou” (Jo 1.18).

Entretanto, nosso conhecimento da autorrevelação de Deus na


natureza e em Jesus Cristo é dependente de um terceiro aspecto da
autorrevelação de Deus, a saber, as Escrituras. A medida em que
aceitamos a Bíblia e a tomamos como base exclusiva de todos os
nossos pressupostos e pensamentos também é a medida em que o
vemos na criação e em Cristo. Desse modo, tudo revela Deus a nós
porque reconhecemos todos os fatos criados como parte da
revelação de Deus ao homem. Prostramo-nos diante de Deus e
ouvimo-lhe a palavra, em vez de prostrar-nos diante do homem e da
palavra deste. “De sorte que a fé é pelo ouvir, e o ouvir pela palavra
de Deus” (Rm 10.17, ARC).

Assim, a resposta à pergunta “O que é Deus?” é a seguinte: Deus é


o que ele diz que é em sua autorrevelação, e nunca o que o homem
entende que ele seja. Portanto, nas palavras do Catecismo Maior,
quando este resume a Escritura:
Deus é Espírito, em si e por si infinito em seu ser, glória, bem-
aventurança e perfeição; ele é todo-suficiente, eterno,
imutável, insondável, onipresente, todo-poderoso, onisciente,
totalmente sábio, santo, justo, misericordioso e gracioso,
longânimo e abundante de bondade e verdade. (CMW R:7)
Porventura, desvendarás os arcanos de Deus ou penetrarás
até à perfeição do Todo-Poderoso? Como as alturas dos céus
é a sua sabedoria; que poderás fazer? Mais profunda é ela do
que o abismo; que poderás saber? A sua medida é mais longa
do que a terra e mais larga do que o mar. (Jó 11.7-9)
Lembrai-vos das coisas passadas da antiguidade: que eu sou
Deus, e não há outro, eu sou Deus, e não há outro semelhante
a mim; que desde o princípio anuncio o que há de acontecer e
desde a antiguidade, as coisas que ainda não sucederam; que
digo: o meu conselho permanecerá de pé, farei toda a minha
vontade. (Is 46.9-10)
2. O Deus de Abraão, Isaque e Jacó
22 de junho de 1954

Bom dia, amigos. Na semana passada, abordamos a resposta de


Deus ao pedido de Moisés de uma definição ou de um nome de
Deus. Descobrimos que a resposta de Deus foi simplesmente esta:
“Eu sou o que sou”. Deus recusou-se a definir-se a si mesmo; em
vez disso, revelou-se a si mesmo. Deus, o ser autossuficiente e
autoexistente, está além da compreensão do homem, pois para
entender a Deus e abarcá-lo, teríamos de ter a mente de Deus. A
medida em que conhecemos a Deus é a medida em que ele se
revela, pois Deus é conhecido, não por nossa descoberta ou
reconhecimento, mas por sua autorrevelação. Nosso conhecimento
de Deus, portanto, não depende de nosso entendimento, mas de
sua autorrevelação.
Ele se revela a nós de três formas: na natureza, em Jesus Cristo e
na Bíblia. Ele nos encontra no lugar em que declara que será
encontrado, não num lugar escolhido por nós. Portanto, quando
disse a Moisés “Eu sou o que sou”, Deus não só se recusou a
definir-se, mas declarou também que se revelaria, não conforme o
desejo de Moisés, mas segundo sua própria vontade. “E Deus disse
mais a Moisés: Assim dirás aos filhos de Israel: O Senhor, o Deus
de vossos pais, o Deus de Abraão, o Deus de Isaque e o Deus de
Jacó, me enviou a vós; este é meu nome eternamente, e este é meu
memorial de geração em geração” (Êx 3.15, ARC).
Deus, portanto, deixou duas coisas claras a Moisés: Primeiro,
afirmou-se como o único Deus verdadeiro, eterno, autodependente
e inteiramente livre; Eu sou o que sou, esta é a minha natureza para
sempre. Segundo, declarou que seu memorial se fez conhecido de
geração em geração, e este memorial revelou sua natureza e seu
nome: Jeová, Eu sou o que sou.
O que é este memorial que Deus deixou a todas as gerações, o que
definitivamente nos inclui, para dar testemunho de seu nome e de
sua natureza? Segundo suas próprias palavras, ele era “O Deus de
Abraão, o Deus de Isaque e o Deus de Jacó”.
Eis uma expressão que encontramos repetidas vezes nas
Escrituras. Alguns anos atrás, quando eu era bem mais jovem,
ficava me questionando sobre esta frase: parecia-me um modo
pobre de descrever a Deus. Afinal, quanto bem havia em Abraão,
Isaque e Jacó para que Deus descrevesse a si mesmo a todas as
gerações denominando-se o Deus deles?
Levando em conta o Senhor e seus mandamentos, esses homens
eram tristemente falhos. Abraão carecia de coragem moral em
algumas ocasiões e estava disposto a render sua vida a outro
homem a fim de salvar a própria pele, e seu filho Isaque mostrou-se
igualmente fraco. Abraão meteu-se numa confusão lamentável com
Hagar e Ismael e foi incapaz de agir de modo resoluto ou vigoroso.
Isaque favoreceu e mimou um filho vadio e dividiu a família. Jacó
enganou o pai e foi enganado pelas esposas, pelo cunhado e pelos
filhos. Sua família viveu uma longa série de escândalos.
O fato de Deus revelar-se a todas as gerações como Jeová, o Deus
de Abraão, Isaque e Jacó, à primeira vista, parece um tipo muito
estranho de autorrevelação. No entanto, é precisamente neste
memorial que o encontramos revelado em poder e verdade. Não
havia, nesses três homens, nada de bom. A única coisa boa em
qualquer deles era isto – que o Senhor os chamou das trevas, fez
deles seu povo, identificou seu propósito redentor com o nome
deles, e assim os abençoou. A única coisa boa, portanto, acerca de
Abraão, Isaque e Jacó era o Senhor. Que o Senhor os tenha
redimido e operado neles e através deles não era nada senão pura
graça. Nenhum dos três tinha nenhum direito diante de Deus: Deus
tinha todo direito sobre eles e, no entanto, em sua graça e
misericórdia, fez deles seu povo, e a si mesmo o Deus deles.
Deus se declara o Deus deles porque assim anuncia a todas as
gerações que é este o modo como lida conosco. Somos salvos, não
por nossa inteligência ou por nosso entendimento, não por nossas
boas obras ou bons pensamentos, não por algo que possamos ser
ou fazer, mas pela pura e soberana graça de Deus. Abraão, Isaque
e Jacó não encontraram a Deus: Deus os encontrou. Este é seu
memorial a todas as gerações: que aquele que é eterno e
autossuficiente faz de si mesmo também o Deus de homens
moribundos. Aquele que está elevado nas alturas e infinitamente
além de nós se mostra muito próximo. O Deus independente entra
em aliança com os homens e opera neles e por meio deles. E o
Deus destes pecadores é também o nosso Deus. É assim que Deus
se revela a nós, como o Deus de Abraão, o Deus de Isaque e o
Deus de Jacó, e também como o nosso Deus. Depois de declarar-
se completamente livre, Deus então passa a demonstrar tanto sua
liberdade quanto sua natureza ao chamar três homens cujo único
mérito era a graça de Deus.
Irmãos, reparai, pois, na vossa vocação; visto que não foram
chamados muitos sábios segundo a carne, nem muitos
poderosos, nem muitos de nobre nascimento; pelo contrário,
Deus escolheu as coisas loucas do mundo para envergonhar
os sábios e escolheu as coisas fracas do mundo para
envergonhar as fortes; e Deus escolheu as coisas humildes do
mundo, e as desprezadas, e aquelas que não são, para reduzir
a nada as que são; a fim de que ninguém se vanglorie na
presença de Deus. Mas vós sois dele, em Cristo Jesus, o qual
se nos tornou, da parte de Deus, sabedoria, e justiça, e
santificação, e redenção, para que, como está escrito: Aquele
que se gloria, glorie-se no Senhor. (1Co 1.26-31) Este é meu
memorial de geração em geração. (Êx 3.15)
3. A Trindade
27 de julho de 1954

Bom dia, amigos. Na reserva indígena em que passei oito anos e


meio antes de vir para Santa Cruz, havia um ancião cuja vida e
experiência limitava-se àquela área. Como resultado, as únicas
árvores que ele conhecia eram pinheiros, juníperos, cedros,
choupos, salgueiros, álamos tremedores e que tais, árvores da
região, nenhuma delas grandiosa. Pode-se imaginar seu desgosto
quando, alguns anos atrás, ele ouviu um missionário falar sobre as
grandes sequoias na encosta da Sierra, descrevendo uma árvore
em particular como tão grande que um carro, ou até mesmo um
ônibus, poderia atravessar o centro oco daquela sequoia viva. O
velho índio levantou-se e saiu imediatamente, comentando do
missionário: “Esse homem é o maior mentiroso que já vi”.

Agora, antes de rir daquele homem idoso, seria melhor lembrar-nos


de nossa própria tendência a duvidar do que está além de nossa
experiência. Tendemos a limitar o possível ao que sabemos e ao
que cremos que seja possível.

Temos outra fraqueza. Tendemos a interessar-nos pelas coisas


somente por causa de sua relação conosco. Tendemos a interessar-
nos pelas pessoas somente pelo que representam para nós, em vez
de pelo que são em si mesmas. O dinheiro delas, às vezes, mas
com muito mais frequência a personalidade delas, o contexto delas,
nossas opiniões e interesses em comum, essas coisas nos unem e
nos mantêm unidos. No entanto, se a pessoa fica doente,
desamparada e afastada de nossa vida cotidiana, o laço
imediatamente começa a romper-se. Sentimos pena da pessoa,
mas a maioria de nós acha cada vez mais difícil manter o contato a
menos que também estejamos passando por uma experiência
similar. O homem dá sentido às coisas à medida que as vivencia e,
de modo semelhante, as destitui de sentido à medida que se tornam
remotas e inexpressivas para ele. Eis o egoísmo básico e a
pecaminosidade se revelando.

Como cristãos, tendemos a fazer exatamente a mesma coisa em


relação a Deus. Só estamos ligeiramente interessados em Deus tal
como ele é, o Deus triúno, mas estamos muitíssimo interessados
em Deus em sua relação conosco. Queremos pensar em Deus
exclusivamente sob a ótica da nossa salvação e do cuidado
providencial, sob a ótica do que ele pode fazer por nós, sob a ótica
de nossa experiência dele, em vez de tomá-lo ele mesmo como
referência. É fácil despertar o interesse das pessoas por temas
como “O que Deus pode fazer por você” ou “Como obter a felicidade
pela fé”, mas falar a respeito da Trindade é distante e irrelevante
para elas. Assim como algumas pessoas estão interessadas em nós
somente pelo que temos, e como consequência não nos conhecem
de fato, assim também muitas pessoas que se interessam por Deus
em sua relação com o homem na verdade jamais veem a Deus
como ele é.

Deus, tal como é em si mesmo, é o Deus Triúno — Pai, Filho e


Espírito Santo, cada um igualmente Deus, completo e absoluto, três
pessoas, mas um só Deus, cada um possuindo a essência divina
indivisível em todo poder e perfeição. Deus se revela como um Deus
que é triúno. Isso está além de nossa experiência e imaginação,
embora possamos ver indícios de seu significado na criação; o
mundo é uno, mas vário, um mundo com uma existência e lei
comum, embora contenha uma variedade impressionante de
formas, sem que nada desfigure a unidade. De fato, a multiplicidade
e a variedade da criação fala do modo mais eloquente de sua
unidade, derivada do Criador.

Deus é completo em si mesmo e é triúno desde a eternidade. A


criação não era uma necessidade ou carência da parte de Deus, e
Deus, portanto, não se exaure em seu relacionamento com a
criação; ou seja, há mais em Deus do que o relacionamento, assim
como há mais em nós do que nosso contato com as pessoas
durante o curso de um dia. Se as pessoas não têm interesse em
ver-nos ou conhecer-nos além de nosso relacionamento com elas,
então não nos conhecem mais do que conhecemos um garçom que
aparece, tira nossos pedidos, serve-nos e se vai. Porque Deus é
nosso Criador, toda a criação o revela, e todo o seu cuidado
conosco manifesta sua natureza, mas o próprio Deus, que em sua
tri-unidade está além de nossa imaginação, em seu ser está além
de nossa experiência. Porque ele é Criador, todas as coisas têm
significado e são compreensíveis à luz dele mesmo, e ele é mais do
que podemos compreender ou abarcar.

O que tudo isso quer dizer? Simplesmente o seguinte: para adorar a


Deus devemos adorá-lo como o Deus Triúno; devemos vê-lo, não
meramente no que ele faz por nós, mas como Deus mesmo; Pai,
Filho e Espírito Santo, a Trindade três vezes santa, cuja adoração é
a única adoração verdadeira. Gloriar-se no Senhor não pode
significar gloriar-se no que ele faz por nós, pois então o que
adoramos seria a nós mesmos e nossa gratificação, nossa
satisfação. Gloriar-se no Senhor significa gloriar-se nisto, em que
ele é o Senhor, “a única origem de todo o ser; dele, por ele e para
ele são todas as coisas” (Confissão de fé de Westminster, cap. 2.2).

Tu és digno, Senhor e Deus nosso, de receber a glória, a


honra e o poder, porque todas as coisas tu criaste, sim, por
causa da tua vontade vieram a existir e foram criadas. (Ap
4.11) O Altíssimo tem domínio sobre o reino dos homens e o
dá a quem quer. [...] Todos os moradores da terra são por ele
reputados em nada; e, segundo a sua vontade, ele opera com
o exército do céu e os moradores da terra; não há quem lhe
possa deter a mão, nem lhe dizer: Que fazes? (Dn 4.25, 35) E
não há criatura que não seja manifesta na sua presença; pelo
contrário, todas as coisas estão descobertas e patentes aos
olhos daquele a quem temos de prestar contas. (Hb 4.13) Ó
profundidade da riqueza, tanto da sabedoria como do
conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos,
e quão inescrutáveis, os seus caminhos! Quem, pois,
conheceu a mente do Senhor? Ou quem foi o seu conselheiro?
(Rm 11.33-34) Grande é o Senhor nosso e mui poderoso; o
seu entendimento não se pode medir. (Sl 147.5)
4. A bondade de Deus
2 de agosto de 1954

Bom dia, amigos. Todos nós temos um problema constante na


compreensão de Deus, porque nos aproximamos dele com a nossa
ideia do que ele deve ser, em vez de com a declaração dele mesmo
de como ele é. Queremos que Deus tenha determinadas
características a fim de preencher nossa ideia de seu ser, mas ele
se recusa a atender às nossas expectativas e declara: “Eu sou o
que sou”.

Um homem assim, que se aproximou de Deus esperando ter seu


desejo atendido, foi Moisés. Como líder do povo escolhido e porta-
voz indicado por Deus, ele tinha uma comunhão com o Senhor de
natureza profunda e rara. Como resultado, pediu em certa ocasião:
“Rogo-te que me mostres a tua glória” (Êx 33.18). A glória de Deus,
como Moisés sem dúvida a imaginava, era algo que ultrapassava
muitíssimo a glória de reis e impérios, e de toda a criação. A
magnificência e a glória assombrosa da criatura e da criação
ficariam mudas diante da glória de Deus.

Em certo sentido, isso era verdade. O Senhor disse a Moisés: “Não


me poderás ver a face, porquanto homem nenhum verá a minha
face e viverá” (Êx 33.20). Nenhum homem pode ver a Deus tal como
ele é e viver, pois Deus é um fogo consumidor para o pecador, e o
homem, em carne, é incapaz de ver e compreender o Deus infinito e
absoluto que é espírito. Assim, Moisés descobriu um lugar oculto na
fenda de uma rocha e daquela posição, coberto pela força protetora
de Deus, viu as costas, isto é, o reflexo da glória de Deus.

Mas, sob outro aspecto, Moisés teve seu desejo de ver a glória de
Deus supreendentemente atendido. O pedido foi simplesmente:
“Rogo-te que me mostres a tua glória”. E assim Deus retorquiu:
“Farei passar toda a minha bondade diante de ti e te proclamarei o
nome do Senhor; terei misericórdia de quem eu tiver misericórdia e
me compadecerei de quem eu me compadecer” (Êx 33.19).

Moisés queria ver a glória de Deus, e Deus declarou que sua glória
não era sua majestade como tal, mas, antes, a sua bondade: “Farei
passar toda a minha bondade diante de ti”. A bondade de Deus é a
sua glória. A bondade de Deus não é a sua benevolência nem sua
disposição a ouvir nossas orações. Se Deus houvesse de dar-nos
tudo quanto pedimos, fosse um milhão de dólares ou um ambiente
transformado, afirmar-se-ia não a sua bondade, mas apenas a sua
indulgência. A bondade de Deus é a sua glória; no entanto, essa
bondade muitas vezes é desagradável do nosso ponto de vista, e é
desafiador às nossas almas aceitá-la quando envolve problemas,
tristeza e fardos.

Se a bondade de Deus não é a sua benignidade e definitivamente


não é indulgência, então é o quê? Deus declarou que sua bondade
proclamaria o seu nome, Eu sou o que sou, o ser eterno, e também
que ele seria gracioso e misericordioso a todos a quem lhe
aprouvesse ser gracioso e misericordioso. A glória de Deus é a sua
bondade, e a sua bondade é seu ser. A glória e a bondade de Deus
é esta: dele, por ele e para ele são todas as coisas, e tudo tem
significado e propósito somente tomando-o em consideração. Como
diz o salmista: “O Senhor é bom para todos, e as suas ternas
misericórdias permeiam todas as suas obras. [...] Em ti esperam os
olhos de todos, e tu, a seu tempo, lhes dás o alimento. Abres a mão
e satisfazes de benevolência a todo vivente” (Sl 145.9, 15-16).

A bondade de Deus é sua glória, e sua soberania, propriedade e


controle absolutos são o coração de sua bondade. Jó disse a seus
amigos que toda a criação testifica o poder absoluto do Todo-
Poderoso e seu controle total de todas as coisas: Mas pergunta
agora às alimárias, e cada uma delas to ensinará; e às aves dos
céus, e elas to farão saber. Ou fala com a terra, e ela te instruirá; até
os peixes do mar to contarão. Qual entre todos estes não sabe que
a mão do Senhor fez isto? Na sua mão está a alma de todo ser
vivente e o espírito de todo o gênero humano. (Jó 12.7-10) Toda a
natureza testifica a soberania de Deus, testifica que ele é o Senhor.
“Os céus proclamam a glória de Deus, e o firmamento anuncia as
obras das suas mãos” (Sl 19.1). A bondade de Deus é esta: que o
governo está em seus ombros, que todas as coisas estão em suas
mãos, e ele faz todas as coisas bem. A bondade de Deus é a sua
soberania, pela qual vivemos, não segundo nossos próprios atos,
mas segundo seu propósito criativo e para sua glória; nos movemos,
não apenas por decisão nossa, mas em sua graça e misericórdia e
por meio delas; e existimos, não por nós mesmos, mas por meio
dele e para sua glória.

Se nossa vida está oculta com Cristo em Deus, então de fato


conhecemos a sua bondade. Conhecemos a glória de sua graça e
onipotência, e sabemos, então, a medida de sua graça e o
significado de sua glória.
Isso levanta uma pergunta pertinente a nós: se a glória de Deus é a
sua bondade, e a sua bondade é a sua soberania, o que é a
bondade do homem? É buscar a glória de Deus ao manifestar sua
graça e bondade, e manifestar a soberania dele submetendo-se a
seu domínio.

Isso quer dizer deixar de preocupar-se com o dia de hoje e de


amanhã. Dê glória a Deus: Ele ainda é o soberano.

Isso quer dizer mostrar amor e misericórdia para com todos ao


mesmo tempo que ele a manifesta a nós.

E isso significa viver para ele, cuja única vontade é nossa paz, e o
único a quem pertence o poder, o domínio e a glória.
5. O seu Deus está morto?
7 de setembro de 1954

Bom dia, amigos. Há ocasiões em que todos temos o desejo de


fazer a alguém uma pergunta indiscreta. Sentimos que é necessário
acabar com a tensão e que o pensamento honesto é necessário. E
então falamos abertamente. Bem, tenho uma pergunta desse tipo
nesta manhã. Não tenho nenhuma intenção de ser desrespeitoso ou
irreverente; pergunto com toda humildade e honestidade: O seu
Deus está morto?

Muitas vezes, tenho a impressão de que, para todos os efeitos


práticos, as pessoas adoram a um Deus que não existe ou que está
morto. E amiúde os homens falam e pregam acerca de um Deus
que soa doce e belo, mas que, na verdade, é completamente
impotente para ajudar-nos e inútil em nossas lutas. De fato, ao ouvir
alguns homens falar, parece que a mesa está invertida e que é Deus
quem precisa de nossa ajuda e cooperação, e não nós que
carecemos de sua ajuda e salvação. Falo com toda reverência e
piedade quando digo que a única coisa decente a fazer com tal deus
é dar-lhe um sepultamento sincero e silenciosamente esquecê-lo.
Não há sentido em adorar um Deus que não nos criou, não pode
sustentar-nos, não nos salva e não é nada para nós senão um belo
ideal. Teríamos então menos igrejas estorvando o cenário e muito
mais cristianismo honesto.

Pois o Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó, o Deus das Escrituras,


é muito diferente das divindades anêmicas e sem vida que muita
gente tenta adorar. Ele nos criou do nada e nos sustenta por sua
graça. Ele nos salva de modo sobrenatural, cerca-nos com seu
propósito e providência sobrenaturais e dá-nos uma salvação que é
real, sobrenatural e eterna. Este Deus vivo nunca é dependente de
nós: em vez disso, a cada momento somos total e inteiramente
dependentes dele.

O deus morto de muitos modernos é um ideal lindo, mas o Deus


vivo e Pai de Jesus Cristo é nosso refúgio eterno, socorro bem
presente na angústia. O Deus vivo não nos deixa desamparados,
sozinhos e amedrontados em nossa perplexidade e carência. “E o
Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de
verdade, e vimos a sua glória, glória como do unigênito do Pai” (Jo
1.14). O Deus vivo e todo-poderoso manifesta seu cuidado para
conosco por meio da encarnação, pela qual o Deus Filho se fez
homem e vivenciou todas as provações humanas e venceu o
pecado e a morte.

O Deus vivo, então, enviou o Espírito Santo às nossas vidas, a fim


de se manifestar em nós e por meio de nós. Deus não só se
manifesta em nós, mas se manifesta em nós e através de nós em
todos os acontecimentos e coisas neste mundo por sua providência,
de modo que tudo está preordenado a seu fim determinado.

Se adoramos a um Deus morto, nossa vida é cheia de futilidade e


desperdício. Nada parece funcionar direito. Os ideais que
recebemos do púlpito parecem lindos, mas tudo se mostra inclinado
a perverter nossa fé e a zombar dela. Este é o espírito inevitável de
toda fé falsa.
No entanto, se nossa fé estiver no Santo de Israel, o Deus trino,
então sabemos que não há desperdício em nossa vida e em nossa
experiência. Tudo tem um lugar e um propósito preordenados.
“Sabemos que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que
amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu
propósito” (Rm 8.28). Sabemos disso porque o Espírito Santo assim
nos assegura. Quando estamos em meio a provações e caminhos
confusos, ele nos aquece o coração ao garantir-nos que está no
controle e que os resultados estão em suas mãos.

Em 8 de agosto de 1529, Lutero e sua esposa estavam doentes,


esmagados por disenteria, dores no nervo ciático e uma dezena de
outros males. Lutero disse: “Deus tem-me tocado de modo
tremendo, e tenho sido impaciente: mas Deus sabe melhor do que
nós qual é o fim disso. Deus nosso Senhor é como um tipógrafo,
que pressiona as letras, a fim de que aqui as leiamos assim; quando
estivermos impressos, na vida por vir, entenderemos tudo de modo
claro e cristalino. Enquanto isso, temos de ter paciência”.

Esta é a confiança que temos no Deus vivo. Sabemos que ele é


capaz, que faz todas as coisas bem, e que podemos descansar e
regozijar-nos em sua onipotência.

O único tipo de cristianismo real e verdadeiro é o cristianismo


sobrenatural, a fé que a Escritura nos apresenta no Deus Criador,
Sustentador e Redentor. Esta fé bíblica não elimina nossos
problemas. De fato, ela nos diz que Deus não raro os aumenta.
Mas, embora não elimine nossos problemas, ela responde a eles e
nos dá a vitória em Cristo e por meio dele.
Podemos orar a um Deus vivo, confiantes em que podemos pedir e
receber, porque ele é um Deus que ouve a oração e que muda as
coisas. Adorar qualquer outro tipo de Deus é tolice e perda de
tempo. Não importa o quanto a fé possa ser nobre, ela será
supersticiosa se não for real, se o Deus adorado é fútil e irrelevante.
Nosso Deus, porém, é hábil, onipotente e todo-poderoso: céus e
terra estão cheios da majestade de sua glória.

“Tributai ao Senhor, filhos de Deus, tributai ao Senhor glória e força.


Tributai ao Senhor a glória devida ao seu nome, adorai o Senhor na
beleza da santidade. Ouve-se a voz do Senhor sobre as águas;
troveja o Deus da glória; o Senhor está sobre as muitas águas. A
voz do Senhor é poderosa; a voz do Senhor é cheia de majestade.
A voz do Senhor quebra os cedros; sim, o Senhor despedaça os
cedros do Líbano. Ele os faz saltar como um bezerro; o Líbano e o
Siriom, como bois selvagens. A voz do Senhor despede chamas de
fogo. A voz do Senhor faz tremer o deserto; o Senhor faz tremer o
deserto de Cades. A voz do Senhor faz dar cria às corças e
desnuda os bosques; e no seu templo tudo diz: Glória! Senhor
preside aos dilúvios; como rei, o Senhor presidirá para sempre.
Senhor dá força ao seu povo, o Senhor abençoa com paz ao seu
povo” (Sl 29).
6. Providência
27 de abril de 1954

Bom dia, amigos. De vez em quando, alguém tenta dizer-me que


tudo é inútil, porque toda a vida é determinada pelos políticos, pela
hereditariedade, pelo ambiente, pelos capitalistas, pelos sindicatos
ou por alguma outra coisa. Naturalmente, um ministro tem de ser
polido, então nem sempre posso dizer exatamente o que sinto
dessas opiniões, embora sempre afirme a responsabilidade humana
em oposição a essas desculpas.
Nesta manhã, gostaria de tentar responder àquela pergunta: quem
controla as coisas, afinal? Quem ou o que, em última análise, puxa
as rédeas e faz as coisas funcionarem? A maioria das ideias sobre o
assunto são tão velhas quanto o homem e podem ser resumidas em
duas filosofias da Grécia antiga, o epicurismo e o estoicismo. Os
epicureus diziam que o universo é regido pelo acaso, não por um
propósito. Para eles, não há um significado real na vida, e o homem
é pequeno demais para dar qualquer propósito a ela. Os estoicos
diziam que o destino rege todas as coisas, e o homem está
claramente desamparado diante do destino. A maioria de nossas
ideias, hoje, pode ser resumida sob uma dessas filosofias: acredita-
se que acaso e destino regem todas as coisas.
É a isto que se opõe a doutrina cristã da providência. A fé na
providência é uma afirmação da crença em que há um propósito em
todas as coisas, que Deus opera em todas as coisas e por meio
delas para conduzi-las a seu fim determinado. A providência envolve
a preservação de todas as coisas tomando em consideração o plano
divino, a concorrência ou cooperação de Deus em cada
acontecimento, de modo que em momento algum ele está ausente
ou sem o controle, e, finalmente, seu governo em cada coisa e
acontecimento.
Podemos crer na providência? Bem, se não crermos na providência,
não podemos crer em mais nada. Há um propósito criativo no
trabalho em todas as coisas, a vontade de Deus para aquela
criatura ou criação. Quando entrei em meu carro nesta manhã, eu o
fiz com um propósito, um propósito específico. Quando Deus criou,
criou com um propósito — não de modo vago —, e todas as coisas
revelam aquele propósito.
Agora, voltemos nossa mente para outra coisa por alguns minutos,
antes de prosseguir nessa discussão da providência. Dois sábados
atrás, quando devia estar trabalhando nos retoques finais de meus
sermões de domingo, fui atraído por um livro sobre aranhas e passei
um tempão folheando-o. Um item em especial chamou-me a
atenção. Foi feito um censo de aranhas num gramado em Sussex,
Inglaterra, e este mostrou uma incrível população de mais de 2 ¼
milhões de aranhas por acre. Nesta base, estima-se que a
população de aranhas da Inglaterra e do País de Gales é de 2 1/5
bilhões, o que, no mínimo, come anualmente uma população de
insetos cujo peso é maior do que o de toda a população humana da
Inglaterra e de Gales. Se as aranhas não destruíssem tais insetos,
os homens não poderiam sobreviver.
Isso já é interessante, mas ocorreu-me mais uma coisa, e considero
um fato ainda mais tremendo. Os insetos que essas aranhas comem
também têm seu propósito designado, e o cumprem apenas para
manter-se dentro dos limites e da utilidade para as aranhas. Por sua
vez, as aranhas são reprimidas por outras criaturas, os pássaros,
por exemplo. Assim, cada um faz seu trabalho e tem algum
obstáculo sobre si a fim de preservar o equilíbrio da natureza.
Tudo isso fala não de acaso ou destino, mas de projeto, propósito e
providência, e esse projeto e propósito alcançam também os mais
ínfimos detalhes da criação. A Escritura nos diz que até os cabelos
de nossa cabeça estão contados. Nosso Senhor declara que não
pode cair um pardal sem o consentimento de nosso pai que está
nos céus; e o Senhor falou a Jó de seu prazer na criação.
Há um propósito vasto e grandioso em toda a criação, e qualquer
noção de acaso diante dele parece flagrante estupidez. A Escritura
afirma que o controle providencial de Deus é sobre todo o universo,
sobre o mundo físico e a criação bruta, sobre a relação entre as
nações, sobre o nascimento, a vida e a morte do homem, sobre seu
sucesso ou fracasso exterior, sobre coisas aparentemente
acidentais ou insignificantes, sobre a proteção do justo, o
suprimento das necessidades do povo de Deus em resposta à
oração, e a exposição e punição dos maus.
Portanto, a resposta à pergunta “Quem controla as coisas?” é “Deus
em sua providência”. À alegação de que tudo é inútil e que não há
sentido na vida, a resposta é que tudo tem um propósito, e há um
sentido em tudo, mas nada é compreensível, sejam as aranhas,
sejam os homens, a menos que comecemos com Deus. É ele quem
dá significado a toda a vida. Retire-se a fé nele, e não se terá nada;
tudo se torna definitivamente inútil. Isso se aplica não apenas à vida
à nossa volta, mas também a nós mesmos. Nossa vida só tem
significado à luz de Deus e de seu propósito para nós: se
abandonamos a ele e a seu propósito para nós, abandonamos a
sanidade da vida com significado. Crer em Deus é crer na
providência, e crer na providência é crer que nossa vida tem
propósito e direção mesmo apesar de nós mesmos e de nossas
falhas, e que Deus trabalha ao mesmo tempo em nós para aquele
fim determinado e glorioso.
Como o declara a Confissão de fé de Westminster: Pela sua muito
sábia providência, segundo a sua infalível presciência e o livre e
imutável conselho da sua própria vontade, Deus, o grande Criador
de todas as coisas, para o louvor da glória da sua sabedoria, poder,
justiça, bondade e misericórdia, sustenta, dirige, dispõe e governa
todas as suas criaturas, todas as ações e todas as coisas, desde a
maior até a menor. (Cap. 5:1) E como disse nosso Senhor (Mt
10.29-31): “Não se vendem dois pardais por um asse? E nenhum
deles cairá em terra sem o consentimento de vosso Pai. E, quanto a
vós outros, até os cabelos todos da cabeça estão contados. Não
temais, pois! Bem mais valeis vós do que muitos pardais”.
7. A Palavra de Deus
8 de junho de 1954

Bom dia, amigos. Gostaria de discutir nesta manhã algo de que o


mundo nunca careceu: palavras. A maioria de nós tem problema
com as palavras, porque ouvimos demais e falamos demais.
Algum tempo atrás, abordamos parcialmente o significado da
linguagem. Vimos que, para muitas culturas pagãs, magia e
discurso estão estreitamente relacionados e muitas vezes se
identificam entre si. As palavras têm um poder irrevogável sobre tais
pessoas e podem até matar. Um curandeiro fala, e um homem
morre porque foi condenado por aquela palavra. Isso à primeira
vista parece muito distante de nós. Dizemos que um nativo que
morre por uma palavra é vítima do poder de sugestão e insistimos
que tal magia é superstição. No entanto, o motivo por que falamos
demais é que acreditamos no mesmo tipo de poder mágico das
palavras. Cremos que dizer fará as coisas acontecerem e assim
falamos quando nossa consciência nos diz que o silêncio é o
caminho da sabedoria. Estamos mais prontos a falar que a
trabalhar, e pomos mais fé nas palavras do que em Deus, porque
estamos muito mais dispostos a falar que a orar.
Por que somos assim? Isso remonta ao velho Adão em todos nós, a
nosso pecado original. A tentação no Jardim do Éden foi a seguinte:
“Como Deus, sereis conhecedores [ou determinadores] do bem e do
mal” (Gn 3.5). O homem foi tentado a ser como Deus, cuja palavra
soberana e onipotente cria e recria todas as coisas. Disse Deus:
“Haja luz, e houve luz” (Gn 1.3). Nosso Senhor disse: “Quero, fica
limpo!” (Mt 8.3), e a lepra desapareceu. Sendo Deus, a palavra dele
é poderosa e criativa.
O homem, em sua rebelião e pecado, constitui-se a si mesmo como
seu próprio Deus e tenta determinar todas as coisas. E o homem em
rebelião tenta justificar a si mesmo. Toda a linguagem, portanto, está
contaminada pelo pecado e pelo desejo de autojustificação. Isso é
verdade, em parte, até mesmo para o cristão, em quem o velho
Adão nunca morre. Portanto, a palavra do homem jamais é digna de
confiança; nunca é inteiramente livre do pecado e da
autojustificação e sempre tende a gravitar em direção a duas coisas:
pecado e autojustificação. Nossa disposição a falar e não a orar é
prova desse fato: tentamos ser como Deus e, portanto, estamos
mais dispostos a recorrer às palavras que à oração; basicamente, a
nós mesmos, e não ao Senhor.
É por esta razão que a revelação de Deus jamais pode ser deixada
nas mãos dos homens para ser manuseada conforme a palavra do
homem. Deus fala a nós diretamente e sem nenhum intermediário
contaminado na Escritura, na Bíblia. Qualquer tentativa de interferir
na objetividade da palavra da Bíblia é uma tentativa de destruí-la.
Se dizemos que a Bíblia é o registro da revelação de Deus e não a
própria revelação, confiscamos-lhe a objetividade. Se a Bíblia
simplesmente contém a palavra de Deus em vez de ser a Palavra
de Deus, então temos de caçar por toda a Bíblia a fala de Deus e
imaginar se ela realmente está ali, já que, afinal, a Bíblia é um livro
completamente humano. Remover a segurança de uma Bíblia
infalível é destruir a fé cristã, subverter a palavra de Deus e colocar
a palavra do homem em seu lugar.
Se, no final das contas, temos de pôr a palavra de Deus em algum
lugar na Bíblia em meio a muitos dados aleatórios, então somos
juízes — autonomeados, mas ainda assim juízes — de Deus. Se a
palavra de Deus é palavra de Deus somente quando a
reconhecemos como tal, então nosso deus e autoridade básica e
suprema é nosso julgamento e razão, não o Deus da Escritura.
Deus e Sua Palavra não podem ser julgados por homem algum:
eles é que nos julgam. Se insistirmos em dar à nossa mente o
direito de julgar a palavra de Deus, declaramos que somos a
autoridade máxima e que somente o que alcança nossa inteligência
tem o direito de existir! Basicamente, a questão é de quem é a
palavra fidedigna: minha ou de Deus?
Os catecismos perguntam acerca da Escritura:
B.C. P. 2: Que regra Deus nos deu para nos orientar quanto ao
modo de glorificá-lo e gozá-lo?
R. A Palavra de Deus, que se encontra nas Escrituras do
Antigo e do Novo Testamentos, é a única regra para nos
orientar quanto ao modo de glorificá-lo e gozá-lo.
B.C. P. 3: Qual é a coisa principal que as Escrituras nos
ensinam?
R. A coisa principal que as Escrituras nos ensinam é o que o
homem deve crer acerca de Deus, e o dever que Deus requer
do homem.
C.M. P. 4: Como pode ser demonstrado que as Escrituras são
a Palavra de Deus?
A. As Escrituras se manifestam como a Palavra de Deus por
sua majestade e pureza, pela harmonia entre todas as suas
partes e pelo propósito do seu conjunto, que é dar toda a glória
a Deus; pela sua luz e pe1o poder que possuem para
convencer e converter os pecadores e para edificar e confortar
os crentes para a salvação. O Espírito de Deus, porém, ao dar
testemunho, pelas Escrituras e juntamente com elas, no
coração do homem, é o único capaz de persuadi-lo
completamente de que elas são realmente a Palavra de Deus.
A Escritura é nosso mestre fidedigno. Nas palavras de Paulo: “Pois
tudo quanto, outrora, foi escrito para o nosso ensino foi escrito, a fim
de que, pela paciência e pela consolação das Escrituras, tenhamos
esperança” (Rom. 15.4).
8. Os decretos de Deus
29 de junho de 1954

Bom dia, amigos. Nesta manhã, gostaria de falar dos decretos de


Deus. O que são eles? Quando dizemos que Deus decreta algo, o
que queremos dizer? O Catecismo Breve responde assim: R. 7: Os
decretos de Deus são o seu eterno propósito, segundo o conselho
da sua vontade, pelo qual, para a sua própria glória, ele predestinou
tudo o que acontece.
À primeira vista, parece algo muito distante de nossa vida, mas, na
verdade, tem um significado e uma aplicação que alcança cada fibra
e nervo da sua vida e da minha.
Numa palavra, ele nos diz isto: que o Senhor é Deus e que é Deus
quem governa todas as coisas, não o acaso. Você e eu nos
sentamos e tentamos planejar a vida. Estimamos tanto tempo para o
trabalho e tanto tempo para o lazer. Fazemos nosso orçamento,
planejamos nossas finanças e decidimos que certa quantia terá de
ser separada mensalmente para os pagamentos, deixando-nos com
uma soma específica de dinheiro para os demais propósitos.
Honesta e sinceramente tentamos planejar a vida, mas,
evidentemente, o problema é que os planos não são perfeitos.
Imprevistos acontecem, coisas sobre as quais não temos controle, e
nem nosso tempo nem nosso dinheiro se mostram como nossos.
Doenças ou despesas extras destroem nosso planejamento e, às
vezes, anos de esperança. E então começamos a planejar e a
esperar tudo de novo. Isso tem seu valor; dá-nos pequenas vitórias
que seriam impossíveis sem planejamento, mas sempre sabemos
que jamais teremos controle sobre todos os fatores em nossa vida,
em nosso trabalho e no mundo. Planejamos, mas acontecimentos
fora do nosso controle continuamente nos impelem a mudar e a
ajustar o planejamento.
Se os planos de Deus fossem como os nossos, boa parte da criação
de Deus teria ficado fora de seu controle, movendo-se ao acaso. O
acaso seria mais importante que Deus, porque os planos de Deus
estariam sujeitos ao acaso se os acontecimentos se impusessem a
seus planos. Sabemos que não é assim: não há acaso neste
mundo. Como declarou Tiago, irmão de nosso Senhor, no concílio
de Jerusalém: “Diz o Senhor, que faz estas coisas conhecidas
desde séculos” (At 15.18). O plano de Deus é o plano perfeito: não
deixa nada ao acaso, e nem o homem nem os acontecimentos, mas
somente Deus controla o curso do plano.
O que isso significa para nós? Suscita, naturalmente, algumas
perguntas sobre como reconciliar o decreto de Deus e a liberdade e
a responsabilidade humanas. Tais questões não podem ser
respondidas: nossa mente não é capaz de apreender todas as suas
implicações. A única coisa que sabemos, no entanto, é que acreditar
num Deus que tem pleno controle dá sentido a cada momento e a
cada ato em nossas vidas. Nada que nos acontece é sem sentido
ou sem significado. O mundo não está desgovernado, nem Deus
está fora do posto de capitão. Ele tem controle pleno e absoluto.
Isso quer dizer que há um propósito para todas as coisas que a fé e
a paciência podem discernir e em que podem confiar.
Cada um de nós sofre as coisas e passa por provações e
tribulações que testam tremendamente o nosso espírito. A vida seria
sem sentido e cruel se só pudéssemos crer que essas coisas são
sem sentido e os atos aleatórios. Todavia, se podemos crer, como a
Escritura nos pede que creiamos, todas essas coisas são parte do
decreto de Deus e têm um significado sob a ótica dele; então
sabemos que nada é sem sentido ou desperdiçado seja em nossa
vida, seja em toda a criação. Sabemos, portanto, que há um
propósito eterno em todas as coisas e por trás delas, e nossa força
está em confiar em Deus e em suas obras. Isso nos permite dizer:
embora não saiba por que essas coisas me aconteceram, creio no
amor e no propósito que está por trás delas e que as trazem até
mim. Porque o Senhor planejou isto, sei que seu propósito é sua
glória eterna e meu fortalecimento e satisfação nele. Podemos dizer,
junto com Paulo: “Sabemos que todas as coisas cooperam para o
bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados
segundo o seu propósito” (Rm 8.28).
9. Emanuel (Salmo 46)
30 de novembro de 1954

Bom dia, amigos. Todo ano, do Dia de Ação de Graças até o Natal,
a Sociedade Bíblica Americana promove um programa de leitura
bíblica diária, incentivando as pessoas a ler as Escrituras todos os
dias. Trata-se de um programa valiosíssimo. “Uma intenção vaga de
ler a Bíblia não leva a nada até que você realmente faça um início
diário”.
Nossa leitura bíblica de hoje é o salmo 46, o salmo que inspirou o
grande hino de Lutero “Castelo Forte é nosso Deus”. O salmo diz
assim: Deus é o nosso refúgio e fortaleza, socorro bem-presente
nas tribulações. Portanto, não temeremos ainda que a terra se
transtorne e os montes se abalem no seio dos mares; ainda que as
águas tumultuem e espumejem e na sua fúria os montes se
estremeçam. Há um rio, cujas correntes alegram a cidade de Deus,
o santuário das moradas do Altíssimo. Deus está no meio dela;
jamais será abalada; Deus a ajudará desde antemanhã. Bramam
nações, reinos se abalam; ele faz ouvir a sua voz, e a terra se
dissolve. O Senhor dos Exércitos está conosco; o Deus de Jacó é o
nosso refúgio. Vinde, contemplai as obras do Senhor, que
assolações efetuou na terra. Ele põe termo à guerra até aos confins
do mundo, quebra o arco e despedaça a lança; queima os carros no
fogo. Aquietai-vos e sabei que eu sou Deus; sou exaltado entre as
nações, sou exaltado na terra. O Senhor dos Exércitos está
conosco; o Deus de Jacó é o nosso refúgio. (Sl 46.1-11) A data e a
autoria deste salmo nos são desconhecidas, mas uma coisa se
destaca com toda clareza: O salmo foi escrito num período de crise
internacional, guerra e desastres naturais tremendos. Ouvimos que
“Bramam nações, reinos se abalam”. Terremotos assustadores
acrescentam-se a essas agitações políticas, para dar um quadro
geral de um mundo completamente instável. Os terremotos eram
tais que as montanhas se abalavam nos mares, e estes rugiam e
irrompiam num ímpeto de tempestade e tremores. As outras
montanhas pareciam como que arrastadas pelas enchentes ou
tremores contínuos. Não só o mundo do homem e as nações, mas
todo o fundamento sob os pés dos homens era instável. Os homens
chegavam a se perguntar se a vida continuaria ou se haveria algum
sobrevivente a tal combinação de desastres gigantescos.
O estado de ânimo deles estava talvez como o de muitas pessoas
hoje, que sentem que cada dia parece levar o mundo cada vez mais
fundo num horror gigantesco e deixar o chão cada vez menos
estável sob os pés do homem.
Mas, em meio a todos esses horrores, ouvimos a voz da fé anunciar
no salmo 46:
Deus é o nosso refúgio e fortaleza, socorro bem-presente nas
tribulações. (v. 1)
Portanto, não temeremos ainda que a terra se transtorne e os
montes se abalem no seio dos mares. (v. 2)
O refrão do salmo dá a razão desta confiança: O Senhor dos
Exércitos está conosco. Deus está conosco, este é o brado
exultante. Este refrão nos dá em substância um dos nomes de
Jesus Cristo, a Segunda Pessoa da Trindade: este nome é
Emanuel, que quer dizer “Deus conosco”. Para o profeta Isaías e um
remanescente profundamente perturbado com a decadência moral
da nação, nada parecia mais solitário do que o seu grupo. Eles
estavam, assim sentiam, sozinhos num mar de maldade. Para eles,
Deus não só deu a promessa de enviar seu Filho, mas um nome
desse Filho que descreve o Deus trino em sua relação com seu
povo, Emanuel, Deus conosco. É esta fé que o salmo 46 declara e
celebra.
E esta mesma fé é nossa força e alegria, pois nosso Deus não é um
Deus distante, mas mais próximo de nós do que nós mesmos. Nós
nos sentimos sozinhos na privacidade da dor, do desejo e da
esperança de nosso coração, mas Deus vê mais em nós do que
vemos em nós mesmos, e ele nos ama, apesar de todo o nosso
pecado e de nossas faltas. Assim, no pleno sentido da palavra, ele é
de fato Emanuel, Deus conosco.
Em contraste com as enchentes do mundo, as torrentes
destruidoras, enfurecidas, o salmista fala de “um rio, cujas correntes
alegram a cidade de Deus” (v. 4). A cidade de Deus é sua igreja,
seu povo, e o rio silencioso que os alimenta e sustenta é a presença
de Deus entre seu povo. Este é o fato decisivo: não a desordem das
nações e da natureza, mas o Deus Altíssimo que governa e dirige o
curso da história. Deus não é um Deus distante, indiferente ao apelo
de seu povo e alheio a toda a história humana. Ele é Emanuel, Deus
conosco, e nos convoca e ordena que deixemos de afligir-nos. Ele
declara: “Aquietai-vos e sabei que eu sou Deus; sou exaltado entre
as nações, sou exaltado na terra” (v. 10).
O Deus que falou essas palavras tinha apenas um punhado de
crentes judeus em todo o mundo daqueles dias, mas declarou
veementemente a conversão dos pagãos, e sua exaltação em todo
o mundo. Essas coisas estão se realizando agora. Sua promessa é
que se cumprirão em seu Reino eterno. Sua garantia é que cada
passo está sob seu governo providencial e que, em todo o caminho,
ele é nosso Emanuel, Deus conosco.
Podemos, portanto, cantar com alegria junto com o salmista: “O
Senhor dos Exércitos está conosco; o Deus de Jacó é o nosso
refúgio” (v. 11).
10. O ofício profético de Cristo
19 de outubro de 1954

Bom dia, amigos. Um dos fatos mais tristes acerca de nossa fé é


que muitíssimos crentes são demasiado ignorantes das coisas de
Deus e, ainda assim, estão satisfeitos em sua ignorância. Se um
cidadão americano dissesse que tudo que sabe sobre Eisenhower é
que ele tem algum tipo de trabalho no governo em Washington, nós
o consideraríamos um completo ignorante e um americano pobre.
Ora, muitos cristãos são igualmente ignorantes acerca de Jesus
Cristo e de sua posição no governo divino.
Nesta manhã, começaremos um estudo dos ofícios de Cristo. Em
primeiro lugar, precisamos analisar brevemente a pergunta: quem é
Jesus Cristo? A resposta da Escritura é claríssima e sem hesitação:
o homem que caminhou pelas veredas da Palestina alguns séculos
atrás era um homem plenamente humano e, ao mesmo tempo,
divino, divindade de divindade, “duas naturezas distintas, e uma só
pessoa”. Essa mesma pessoa que vive hoje e é nosso Senhor e
Deus, e nosso único Redentor.
O Breve catecismo de Westminster faz duas perguntas a este
respeito e nos dá respostas claras e específicas: P. 23: Que ofícios
Cristo exerce como nosso redentor?
R. Cristo, como nosso redentor, exerce os ofícios de profeta,
sacerdote e rei, tanto no seu estado de humilhação como no
de exaltação.
P. 24: Como Cristo exerce as funções de profeta?
R. Cristo exerce as funções de profeta ao nos revelar, pela sua
Palavra e pelo seu Espírito, a vontade de Deus para a nossa
salvação.
A partir daí, o ofício profético de Cristo fica mais claro. Jesus Cristo
é a revelação de Deus para nós, por meio de quem chegamos a
conhecer a vontade de Deus na medida em que nos é necessário
conhecer. Em suma, por meio de Cristo conhecemos a Deus.
Uma das afirmações fundamentais da Escritura é que nenhum
homem jamais viu a Deus nem ninguém jamais poderá vê-lo. Deus
está além de nosso pensamento ou imaginação: nossa mente
limitada não pode começar a apreender o significado da ideia de
Deus. Deus não é um homem como nós, mas é um espírito infinito,
eterno e imutável. O homem teria de ser Deus para conseguir
compreender a Deus, e isso definitivamente nós não somos. Não
podemos entender verdadeiramente nem a nós mesmos: como
podemos esperar compreender a Deus?
Este predicado do homem é respondido por Deus em Cristo. Como
declarou João: “Ninguém jamais viu a Deus; o Deus unigênito, que
está no seio do Pai, é quem o revelou” (João 1.18). Jesus Cristo é
Deus encarnado, a segunda pessoa da Trindade manifesta em
carne. Como disse Jesus a Filipe: “Quem me vê a mim vê o Pai”
(João 14.9). Em Jesus Cristo vemos, conhecemos e encontramos o
próprio Deus. Assim, Jesus Cristo, como profeta, fala em nome de
Deus, não em visão e só às vezes como os profetas do Antigo
Testamento, mas de modo pleno e completo.
A imagem de Deus conforme a qual o homem foi criado consiste em
conhecimento, justiça, santidade e domínio. Em Cristo, o homem é
restaurado ao reino do verdadeiro conhecimento. Visto que Deus é
o Criador e Sustentador de todas as coisas, e visto que “todas as
coisas foram feitas por intermédio dele, e, sem ele, nada do que foi
feito se fez” (João 1.3), está claro que nada neste mundo tem
significado à parte de Deus, seu criador e seu propósito. Não
podemos entender a terra, o sol, a lua e as estrelas, nem as árvores
e flores senão à luz de Deus, o Criador e propósito criativo.
Tampouco podemos entender nossa própria vida à parte do Senhor
e de sua vontade. Em Cristo, então, somos restaurados ao
verdadeiro conhecimento. Ele se tornou nossa sabedoria. Como
profeta verdadeiro e final, a plena voz de Deus, ele fala em nome de
Deus a nós, e jamais podemos saber algo verdadeiramente a
menos que o saibamos nele.
Cristo fala a nós em seu ofício profético por meio de sua Palavra, a
Bíblia, e pelo Espírito Santo. O Espírito Santo, “o Espírito da
verdade”, nos guia ao entendimento de sua Palavra e, assim, “a
toda a verdade” (veja João 16.13).
Porque Cristo é a plenitude de Deus, o Pai, nenhum cristão
verdadeiro pode crer em revelações novas ou adicionais. A Escritura
é plena e completa na revelação de Deus e de sua vontade
conforme esta é necessária à nossa salvação. Em Cristo, temos a
revelação completa, temos a fala completa e final de Deus, e nada
pode a pode melhorar, nem lhe ser acrescentado ou subtraído. Nas
palavras da Escritura: Havendo Deus, outrora, falado, muitas vezes
e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, nestes últimos dias,
nos falou pelo Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas,
pelo qual também fez o universo. (Hb 1.1-2) E o Verbo se fez carne
e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a sua
glória, glória como do unigênito do Pai. (João 1.14)
11. O ofício sacerdotal de Cristo
9 de novembro de 1954
Bom dia, amigos. Algumas semanas atrás, começamos a examinar
a obra de Cristo como mediador entre Deus e o homem. Vimos que
Cristo foi e é nosso mediador “tanto no estado de humilhação
quanto de exaltação” como profeta, sacerdote e rei.
Nesta manhã, refletiremos sobre Cristo como nosso grande sumo
sacerdote.
Em primeiro lugar, o que era um sacerdote? Um sacerdote era um
representante dos homens diante de Deus, alguém que se
aproximava de Deus por meio do sacrifício a fim de interceder por
seu povo. Era o representante do povo, ou embaixador, por assim
dizer, diante de Deus. Era, portanto, o exato oposto de um profeta.
Um profeta é um representante de Deus diante dos homens, um
sacerdote é um representante dos homens diante de Deus.
A obra do sacerdote era dupla: primeiro, oferecer sacrifício a Deus
e, segundo, fazer intercessão a Deus em favor dos homens. O
sacrifício, portanto, era fundamental a toda a função sacerdotal; uma
porção considerável da Bíblia está preocupada exclusivamente com
o sacrifício, e nada ali pode ser verdadeiramente compreendido à
parte do sacrifício.
Primeiro, não há adoração sem sacrifício. Aquele a quem
sacrificamos e pelo que sacrificamos — eis o nosso verdadeiro
Deus. Se sacrificamos primeiramente visando a nós mesmos e
nossos objetivos, então somos o nosso próprio deus. Não há
adoração sem sacrifício, e o sacrifício indica a natureza e a área de
nossa fé e vida.
Segundo, não é possível aproximar-se de Deus senão pelo
sacrifício. O sacrifício com o qual devemos aproximar-nos dele é de
nós mesmos. Mas qualquer coisa que não um sacrifício puro e
imaculado é ofensa a Deus. O único sacrifício aceitável a ele é um
sacrifício santo. O homem não pode oferecer-se como sacrifício a
Deus porque é impuro e pecaminoso. Além disso, porque somos
pecadores por natureza e nossa adoração básica é uma adoração
de nós mesmos, nossa vontade e nosso desejo, estamos sob a
condenação de Deus e sob a sentença judicial de morte. Mas Deus,
em sua misericórdia, nos provê uma saída, dando-nos tanto um
sacerdote perfeito quanto um sacrifício perfeito, Jesus Cristo, que,
como nosso grande sumo sacerdote ofereceu-se a si mesmo como
sacrifício imaculado a Deus. Deus foi encarado no sacrifício
mediante o ritual do Antigo Testamento, que tipificava Cristo, e
agora e até ao fim dos tempos por Jesus Cristo, nosso sumo
sacerdote. Como membros de Jesus Cristo, estamos na presença
de Deus: inocentes, porque ele é inocente; retos porque ele é reto;
justos porque ele é justo. Quando, pela fé, nos tornamos membros
de seu corpo místico, sua natureza nos é imputada na justificação e
nos é dada progressivamente na santificação.
Terceiro, porque agora somos membros de Jesus Cristo, somos
capazes de fazer um sacrifício aceitável de nós mesmos por meio
dele. Apresentamos nossos corpos como sacrifício vivo diante de
Deus e lhe pedimos que destrua nossa natureza e faça de sua
natureza inteiramente a nossa.
Assim, o sacrifício e a expiação constituíram a primeira obra de
Cristo como sacerdote. Sua segunda tarefa é a de intercessor.
Cristo intercede diariamente por nós diante de Deus, ao mediar
nossas orações e necessidades. O Deus Filho pleiteia a nossa
causa diante de Deus, enquanto o Deus Espírito Santo pleiteia a
causa de Deus conosco (veja Berhkof, p. 401). Do mesmo modo, o
Espírito Santo nos mantém sempre atentos às reivindicações de
Deus sobre nós, e de seus mandamentos, de modo que Cristo
intercede por nós diante de Deus. Nas orações intercessórias de
Cristo no Novo Testamento, vemo-lo orar pelos eleitos que ainda
não foram a ele para que fossem levados a um estado de graça,
pelo perdão diário dos pecados de seu povo, por sua proteção nas
tentações, por sua santificação, por sua caminhada em intimidade
com Deus, por suas necessidades diárias e por sua herança final e
perfeita no céu.
Este é o fato glorioso do ofício sacerdotal de Cristo. Isso quer dizer
que nós, que pela fé somos membros de seu corpo místico, temos
uma voz no próprio coração e na mente de Deus, uma voz eficaz
que “[vive] sempre para interceder por [nós]” (Hb 7.25).
Nas palavras do Catecismo maior de Westminster: P. 44: Como
Cristo exerce as funções de sacerdote?
R: Cristo exerce as funções de sacerdote por ter uma vez se
oferecido em sacrifício sem mácula a Deus, para ser a
reconciliação pelos pecados do seu povo, e ao fazer contínua
intercessão por ele.
12. O ofício real de Cristo
16 de novembro de 1954
Bom dia, amigos. Estamos examinando, nestas últimas semanas, o
ofício de Cristo, nosso Redentor, tanto em seu estado de
humilhação quanto de exaltação, como profeta, sacerdote e rei.
Cristo exerce o ofício de profeta ao revelar-nos, por sua Palavra e
Espírito, a vontade de Deus para nossa salvação.
Cristo exerce o ofício de sacerdote em sua oferta definitiva em
sacrifício para satisfazer a justiça divina e reconciliar-nos com Deus
e ao fazer intercessão contínua por nós.
Nesta manhã, trataremos de seu ofício régio como nosso Redentor.
Segundo o Breve catecismo de Westminster, “Cristo exerce as
funções de rei ao nos sujeitar a ele, ao nos governar e nos proteger,
bem como em conter e subjugar todos os seus e os nossos
inimigos” (BCW R.26).
Assim, vemos que Cristo, nosso Rei, tem uma tarefa tríplice. A
primeira é sujeitar-nos a ele. Esta não é uma tarefa pequena.
Tendemos a satisfazer-nos por nós mesmos. Estamos prontos para
todas as mudanças, exceto a fundamental, aquela que afeta nosso
ego e nossa própria existência. Estamos dispostos a aceitar a Deus
e seus caminhos desde que ele nos aceite a nós e nossos
caminhos. Dizemos-lhe: “Sou teu, ó Senhor, mas seja feita a minha
vontade”. Queremos Deus, mas muitas vezes segundo nossos
próprios termos, e não os dele. Precisamos ser quebrados e
dobrados à vontade de Deus, mas, em vez disso, ansiamos por
dobrar o Todo-Poderoso à nossa vontade. Não é maravilhoso que
Cristo Rei tenha de sujeitar-nos a fim de governar-nos?
Seu Reino sobre nós tem origem não no ato da criação, mas no ato
da redenção. Ninguém é cidadão de seu Reino em virtude do status
como homem, mas somente pelo status como homem redimido. O
Reino de Cristo é um Reino espiritual, não natural. O Reino é
presente e futuro ao mesmo tempo. Reina sobre nosso coração hoje
e impõe-se no curso inteiramente providencial de toda a história. É
também futuro pelo fato de que culminará num Reino grandioso e
eterno em que habitará a justiça. E nenhum homem tem parte nesse
Reino se não tiver sido sujeitado por Cristo.
A segunda tarefa de Cristo Rei é governar-nos e proteger-nos.
Quando somos sujeitados por Cristo, somos governados e
protegidos por ele. A função de um rei é proteger sua propriedade, e
Cristo Rei protege sua propriedade e o faz sem falta. Ele nos
protege, em primeiro lugar, de nós mesmos, pois não temos inimigo
mais mortal do que nossa própria natureza. Contra nosso coração
inconstante e pés vacilantes, temos a defesa segura de Cristo Rei.
Ele também nos protege ao corrigir-nos em nossos pecados e ao
preservar-nos e apoiar-nos em nossas provas e tentações. Ele nos
governa ao reger diariamente todas as nossas ações e fazê-las
cooperarem para o bem. Ao governar-nos e proteger-nos, ele se
manifesta como nosso Rei.
A terceira tarefa de Cristo Rei é conter e subjugar todos os inimigos
— seus e nossos. O mundo, a carne e o diabo são, por sua vontade
soberana, contidos e subjugados. Uma área de sua conquista é o
universo. Cristo é Rei do universo e continuará como seu Rei até o
fim dos tempos. Então, segundo Paulo em 1 Coríntios 15.24-28,
acontecerá uma mudança na economia divina: E, então, virá o fim,
quando ele entregar o reino ao Deus e Pai, quando houver destruído
todo principado, bem como toda potestade e poder. Porque convém
que ele reine até que haja posto todos os inimigos debaixo dos pés.
O último inimigo a ser destruído é a morte. Porque todas as coisas
sujeitou debaixo dos pés. E, quando diz que todas as coisas lhe
estão sujeitas, certamente, exclui aquele que tudo lhe subordinou.
Quando, porém, todas as coisas lhe estiverem sujeitas, então, o
próprio Filho também se sujeitará àquele que todas as coisas lhe
sujeitou, para que Deus seja tudo em todos.
O reinado de Cristo sobre o universo terminará quando a vitória total
for atingida e o inimigo final, a morte, for destruído. Então o reinado
voltará a Deus Pai, a fim de que Deus seja tudo em todos. O
propósito do Reino de Cristo sobre o universo é redentivo, redimir a
humanidade e restaurar o reinado original do homem sobre a
criação. O homem foi criado para ter domínio sob Deus, e Cristo
restaura este domínio do homem sobre o universo. Seu reinado
sobre os redimidos é eterno, e a nova criação intensifica sua glória e
dimensão.
É assim que Cristo exerce o ofício de um rei ao nos sujeitar a ele, ao
nos governar e nos proteger, bem como ao conter e subjugar todos
os seus e os nossos inimigos. Ele é de fato o Rei dos reis e Senhor
dos senhores.
13. A Cruz
18 de setembro de 1956
Bom dia, amigos. Peça a qualquer grupo de cristãos que cite seus
hinos favoritos, e a probabilidade é que um alto percentual desses
hinos esteja relacionado com a cruz. À primeira vista, parece curioso
que os cânticos mais alegres tratem de um emblema de morte e
vergonha. Pois a cruz era muito claramente um instrumento de
morte e vergonha, representando o castigo brutal e deplorável
reservado pelo Império Romano aos criminosos. No entanto, é nesta
cruz que nos gloriamos, a cruz de Cristo, a cruz vazia, que
representa sua vitória sobre a morte e sobre o pecado.
O que a cruz de Cristo representa para nós, e por que é nossa fonte
de alegria e nossa glória? Em primeiro lugar, representa a vitória de
Cristo por amor a nós. Jesus Cristo, Deus de Deus, tornou-se
homem de homem, plenamente divino e plenamente humano. Como
aquele sem pecado, ofereceu a Deus uma perfeita obediência em
nosso lugar. Como portador do pecado, sofreu o castigo de morte
por nossa causa, morrendo como um criminoso na cruz. Como Filho
de Deus, levantou-se dos mortos e tornou-se a nascente de uma
nova humanidade, uma nova raça humana, constituída de todos os
que o aceitam como Salvador, a quem ele dá a vitória sobre o
pecado e a morte. A cruz, portanto, significa para nós salvação e
vida nova em Cristo Jesus. Significa fazer parte da nova
humanidade e entrar numa vida de realização e esperança.
Em segundo lugar, a cruz representa para nós algo central em
nossa experiência interior e em nosso crescimento espiritual.
Nascemos na velha humanidade de Adão, nossa natureza é pecar e
nosso destino é morrer. Quando aceitamos a Cristo pela fé como
nosso Salvador, morremos judicialmente para o velho Adão.
Entretanto, a vida subsequente em Cristo requer nossa santificação,
o aspecto negativo do que envolve a mortificação do velho Adão em
nós. Em linguagem clara, isso quer dizer que morremos para nossas
esperanças e planos segundo a carne, e morremos também para
nossas pretensões, a fim de viver para Cristo e reconhecer somente
as esperanças e planos dele, e somente as pretensões dele. A cruz
significa que estamos constantemente morrendo para o velho Adão
em nós e sendo ressuscitados para o novo homem, Jesus Cristo.
Nunca há em Adão uma esperança para a qual morremos que não
seja satisfeita com a ressurreição de uma esperança maior em
Cristo. Nunca há em Adão um plano ou pretensão de que abrimos
mão sem encontrar mediante a ressurreição de Cristo um plano
mais verdadeiro e uma pretensão substancial. Assim, a cruz
representa derrota constante, rendição e morte para nós e, ao
mesmo tempo, vitória crescente, poder e ressurreição. A cruz,
portanto, é um símbolo adequado de nossas esperanças e alegrias,
e um verdadeiro tema de cânticos cristãos, visto que encarna a
essência de nossa salvação.
Em terceiro lugar, também significa a decisão inescapável da vida.
Ninguém pode escapar da cruz. Ou o sujeito carregará a cruz de
sua natureza pecaminosa com todas as suas mentiras e frustrações,
ou carregará a cruz gloriosa e vitoriosa de Cristo. Os homens
desejam uma vida boa, uma vida nobre, mas pode-se muito bem
afirmar que “quando não há cruz, não há coroa”, quando não há
Cristo, não há vitória. Ou aceitamos a cruz vivificadora de Jesus
Cristo, ou nos encontramos progressivamente oprimidos e
esmagados pela cruz mortífera de nossa própria natureza. Que cruz
vamos carregar?
Jesus, minha cruz tenho tomado,
A tudo deixo e sigo a ti;
Carente, desprezado, abandonado
Serás meu tudo a partir daqui:
Cesse toda a insensata ambição
Tudo que busquei, esperei ou conheci
Por mais rica seja minha condição
Deus e o céu são o que possuí!
(Henry Francis Lyte, “Jesus, I My Cross Have Taken”, 1825)

Aos pés da cruz de Cristo


Meu lugar tomo de bom grado —
A sombra duma rocha imensa
Sobre um solo fatigado;
Um abrigo no deserto,
Um descanso na longa via,
Do sol que queima a pele
E do fardo pesado de um dia.
(Elizabeth C. Clephane, “Beneath the Cross of Jesus”, 1868)
14. As perguntas mais fáceis
8 de setembro de 1953
Bom dia, amigos. Sei que esta é uma hora inoportuna da manhã,
especialmente depois de um feriado, para começar a fazer
perguntas, mas gostaria de tratar de algumas perguntas fáceis por
alguns minutos nesta manhã. Não gosto de perguntas fáceis,
porque geralmente são as mais difíceis de responder. São fáceis de
fazer, mas respondê-las é outra história. As crianças podem
perguntar sobre quase qualquer coisa debaixo do sol, e podemos
lembrar de ter feito as mesmas perguntas anos atrás — mas ainda
não sabemos as respostas.
É possível resumir a maioria dessas perguntas de respostas difíceis
numa única palavra: por quê? Por que Deus faz as coisas do modo
como faz? Por que tenho de sofrer como tenho sofrido? Por que
tenho de passar pelas coisas que estão diante de mim? Por que isto
tinha de acontecer comigo? Não podemos deixar de fazer essas
perguntas. Cristo, como homem perfeito e representativo, fez essa
pergunta em nosso lugar na cruz, quando, em sua agonia de morte,
bradou: “Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?” (Mt
27.46). “Deus meu, Deus meu, por quê?”, ele perguntou isso por
todos nós enquanto estava morrendo em nosso lugar. E essa ainda
é a nossa pergunta.
Alguns de nós, nesta manhã, estamos fazendo a pergunta com mais
intensidade que outros, não estamos? À medida que enfrentamos
este problema ou a provação nos confronta, nossa alma se estreita
pela perspectiva, e bradamos: por quê? Se Cristo fez essa pergunta
como nosso representante, isso nos dá o direito de fazê-la também.
Ele tinha toda razão em fazer essa pergunta. Ele foi um homem
perfeito e sem pecado e, no entanto, sofreu como nenhum homem,
antes ou depois. “Era desprezado e o mais rejeitado entre os
homens; homem de dores e que sabe o que é padecer; e, como um
de quem os homens escondem o rosto, era desprezado, e dele não
fizemos caso” (Is 53.3). Ele sofreu, mas sem pecado. Nós sofremos,
geralmente por causa de nossos pecados, de nossa precipitação, de
nossa cegueira. Por que temos de sofrer?
Aquele que era Deus encarnado sofreu como homem representativo
por nossa causa. Deus nada pede de nós que ele mesmo não esteja
disposto a suportar como homem. Assim, na pessoa de seu Filho, a
segunda pessoa da Trindade, Jesus Cristo, Deus foi tentado, sofreu,
esteve só e morreu. Em nosso lugar, ele fez a pergunta: “Deus meu,
por que me abandonaste” e em nosso lugar ele a respondeu com a
própria vida. O resultado é o seguinte: Se Deus estava pronto para
morrer na cruz por nós na pessoa de seu Filho, ele decerto fará
mais do que abandonar-nos. Mais que isso, ele cuidará de nós, e
nos dá a certeza e a segurança: “De maneira alguma te deixarei,
nunca jamais te abandonarei” (Hb 13.5). De modo que podemos
dizer confiantemente: “O Senhor é o meu auxílio, não temerei; que
me poderá fazer o homem?” (Hb 13.6). Nem sempre podemos
compreender por que Deus faz as coisas de certo modo ou por que
permite ou ordena que certas nos aconteçam, mas sempre
podemos entender isto: ele nos ama e não nos abandonará sem
consolo.
Quando Cristo bradou “Deus meu, Deus meu, por que me
abandonaste?”, isso significava o seguinte: aquele que se fez
pecado por nós tomou sobre si o nosso castigo e deu-nos sua vida e
santidade. Portanto, aqueles que cremos nele jamais seremos
abandonados novamente por Deus, mas estamos eternamente com
ele, agora e no mundo por vir. Enquanto Deus é Deus, jamais
podemos ser abandonados. Podemos estar em grande dificuldade,
podemos estar em problemas bem reais, podemos não conseguir
ver nenhuma luz na estrada à nossa frente, mas jamais somos
abandonados. Ainda é fácil perguntar: “Por quê?”, mas Deus tem
uma resposta difícil a essa pergunta na cruz, a resposta de sua
própria vida. A única resposta que podemos dar à mesma pergunta
fácil é entregar nossa vida àquele que é a resposta. Então, mesmo
em nossas dificuldades, temos a confiança de sua presença e
orientação. Nas palavras de um homem: Não sei por que Deus me
trouxe aqui,
lugar de lágrimas, dor e sofrimento.
A cruz que mais temia está por vir.
Vem a hora de buscar alento.

Não sei por que caminhos mais brandos


Me estão vedados, pois que orei tanto.
Só sei que ontem Ele tomou meu fardo
e pôs em mim um novo canto.

Conduziu e abençoou-me de um jeito novo;


Duvidar de sua bondade já não ouso.
Aquele que me abençoou outrora
Abençoará minha família também agora.
(Poema de RJR)

Deus tem um modo misterioso


De maravilhas operar
Ele acalma a tempestade
E caminha sobre o mar.
(William Cowper, “God Moves in a Mysterious Way”,
1773)
15. O poder da ressurreição
13 de abril de 1954
Bom dia, amigos. Tempos atrás, no Domingo de Ramos, um
homem entrou em Jerusalém montado num jumentinho, cumprindo
deliberadamente uma profecia de centenas de anos para declarar-
se o rei divino, não só de Israel, mas do universo. Ele era o Filho de
Deus e, assim se declarando, entrou no Templo na segunda-feira,
fazendo-lhe uma limpeza dos hipócritas e fraudulentos, como um
senhor divino que vem reivindicar sua propriedade.
Já que estamos numa manhã de terça-feira, vamos olhar
brevemente o que aconteceu naquela terça-feira da semana santa,
muito tempo atrás. Este foi o último dia do ministério público de
Jesus, um dia de debate público com os fariseus, ensino de
parábolas e discussões com os discípulos sobre o fim dos tempos e
o fim do mundo. Um ponto é de especial interesse: nos versos
conclusivos de Mateus 22, nosso Senhor usou um salmo de Davi
para provar, a partir do testemunho daquele rei, a preexistência do
Filho de Deus. Assim, duas coisas se destacam na alegação de
Jesus acerca de si mesmo. Em primeiro lugar, ele declarou que
sempre foi, que teve uma existência eterna e infinita que era idêntica
com a vida de Deus. Em segundo lugar, declarou que todo o
propósito de sua permanência na terra podia resumir-se na cruz,
que ele, de fato, veio para dar a vida em resgate de muitos, para
libertá-los do poder do pecado e da morte.
Esses dois pontos são importantes: retire-os e você não terá
nenhum Jesus que possa ser identificado com o homem que viveu
na Galileia e foi a Jerusalém para morrer. Aquele homem alegava
ser Deus encarnado e declarava que sua morte mudaria a natureza
do homem. Declarou, e seus discípulos testemunharam, que se
levantaria dentre os mortos no mesmo corpo com que foi
crucificado. Ou as declarações daquele homem estavam certas ou
ele era um pobre tolo digno de pena ou de cadeia, não de adoração.
Não podemos recriá-lo para adequar-se a nós: temos de ser
recriados para adequar-nos a ele.
Se o aceitamos com base no que diz de si mesmo,
descobrimos cada vez mais que nele temos poder sobre o pecado.
Este é um fato óbvio que só os voluntariamente cegos podem negar.
A segunda parte de nossa vitória em Cristo não é tão óbvia,
entretanto: a nossa vitória sobre a morte. Digamos do seguinte
modo: se Jesus Cristo morreu por nós para libertar-nos do poder do
pecado e da morte, então ele morreu a morte que nós tínhamos de
morrer, como rebeldes contra Deus. Assim, a pena está paga. Ora,
podemos fazer a pergunta que nos vem naturalmente à mente: se
ele morreu por nós, por que temos de morrer? Afinal, todos nós
ainda havemos de enfrentar a morte. Somos livres do poder do
pecado, o que podemos reconhecer, mas ainda morremos por tudo
isso. Por que também temos de morrer? A resposta é claríssima:
nossa morte não é um castigo ou punição pelo pecado, mas “uma
abolição do pecado e uma passagem para a vida eterna” (Kuyper, p.
99; ver também o Catecismo de Heidelberg, P. 42).
Enquanto estamos neste mundo, nunca somos inteiramente
livres do poder do pecado e do poder da morte. Há em nós o velho
Adão, com sua perversidade permanente. Ao nosso redor, há a
tensão constante de um mundo que constantemente tenta cometer
suicídio enquanto clama por mais vida. Vemos tudo mudar e, no
entanto, continuar na mesma — contaminado e pervertido diante de
Deus. Os amanhãs do mundo vêm, mas parecem só uma
concentração maior dos pesadelos dos ontens. E o homem, criado à
imagem de Deus, ouve um chamado profundo bem em seu interior e
brada: “Desventurado homem que sou! Quem me livrará do corpo
desta morte?” (Rm 7.24).
Nossa vida neste mundo, e o mundo mesmo, é um corpo de
morte para nós. Ele promete paraíso, mas nunca o pode entregar, e
por essa razão é enganoso e fraudulento. Jamais podemos
encontrar aqui algo que está alhures. Nossa verdadeira vida não é
aqui: está oculta juntamente com Cristo, em Deus. Somente quanto
vemos este propósito e objetivo de vida, glorificar a Deus e gozá-lo
para sempre, vemos este mundo em sua perspectiva adequada e
somos capazes de extrair dele a alegria que ele pode dar. Já não
esperamos demais dele, mas esperamos mais do Senhor.
Voltemos agora à nossa pergunta, por que temos de morrer, já
que Cristo morreu por nós? Eis a resposta: do mesmo modo que
temos morrer para nós mesmos, assim também, afinal, temos de
morrer para este mundo e esta vida a fim de obter a plenitude da
vida. Nossa morte não é uma punição pelo pecado, mas a abolição
do pecado e da morte, porque ela nos leva à vida eterna. A morte
completa o processo de desmame de nossa vida espiritual. Em
nosso tempo de vida, você e eu fomos desmamados de uma série
de coisas; a cada vez, o processo era doloroso ou cansativo, mas
os resultados, maravilhosos. É assim com a morte, que coroa
nossos dias e nos dá nosso diploma da escola do mundo e do
tempo. Para os cristãos, a morte é uma graça que leva à plenitude
da vida. Portanto, podemos dizer com alegria:
Jesus Cristo ressuscitou dos mortos. Verdadeiramente
ressuscitou, e libertou-nos do corpo desta morte.
16. Criação e o Criador
20 de julho de 1954
Bom dia, amigos. Algum tempo atrás, um censo da opinião religiosa
americana revelou o fato curioso, mas sem sentido, de que cerca de
98% dos americanos acreditam em Deus. Considero esses dados
sem sentido porque a própria pesquisa deixou claro que a palavra
Deus significava coisas diferentes para pessoas diferentes. Para
alguns, não significava mais do que uma ideia de potencialidade no
universo; para outros, significava apenas a natureza; para outros
ainda, significava um ser supremo de poder muito limitado. O que
muitas pessoas chamam Deus não é nem remotamente comparável
com o que a Escritura nos revela sobre Deus.
O único Deus digno de fé é um Deus verdadeiramente hábil, um
Deus onipotente, todo-poderoso e senhor em todas e sobre todas as
coisas. Não podemos crer em tal Deus a menos que também o
aceitemos como Criador. O primeiro versículo da Bíblia nos conta
que “no princípio criou Deus os céus e a terra”. Hebreus 11.3
declara que: “Pela fé, entendemos que foi o universo formado pela
palavra de Deus, de maneira que o visível veio a existir das coisas
que não aparecem”. A verdadeira fé envolve, portanto, a crença em
Deus como Criador.
A Escritura nos diz que nem o mundo nem nada nele é
autoexistente ou eterno, que Deus, no princípio, criou os elementos
do mundo a partir do nada e trouxe-os, imediatamente e por sua
palavra soberana, à sua forma presente. A Escritura também
declara que Deus fez boas todas as coisas, e as fez para seu
próprio propósito e para sua própria glória. A criação foi obra da
Trindade — a obra de Deus Pai (1Co 8.6), do Deus Filho (Jo 1.2-3)
e do Deus Espírito (Gn 1.2; Jó 33.4); do Deus Pai por meio do Filho
(Hb 1.2) e do Deus Pai pelo Espírito (Sl 104:30).
Algumas pessoas consideram essa doutrina da criação
irremediavelmente ultrapassada e inteiramente anticientífica.
Preferem acreditar em várias hipóteses ou teorias de um universo
em desenvolvimento, emergente ou em evolução, embora essa fé
tenha uma única razão por trás: ela dá uma resposta ao problema
da criação que evita a Deus. Esta é a razão fundamental para a
teoria, não a evidência.
Se não acreditamos em Deus como criador, na criação de todas as
coisas a partir do nada, imediata e completamente, pela palavra
divina, não podemos acreditar no Deus da Escritura ou ter o consolo
e a fé que somente a fé bíblica pode dar.
Por que este artigo de fé é tão importante e por que a fé bíblica é
destruída sempre que alguém tenta afirmar a fé cristã em Deus sem
ao mesmo tempo declará-lo o Criador no pleno sentido da palavra?
Enfrentemos a questão com cuidado e clareza. Se os elementos e
componentes básicos do universo sempre existiram, e se se
desenvolveram até sua forma presente com base em sua própria
potencialidade, então existem dois seres eternos e autoexistentes —
Deus e o universo. Se o universo se desenvolve a si mesmo, então
está sujeito apenas a suas próprias leis e é independente de
qualquer controle externo. Deus, então, se torna alheio ao universo
e incapaz de agir sobre ele ou alterar qualquer parte dele, porque o
universo é independente dele e é seu próprio soberano. Assim, é
inútil acreditar em Deus, porque ele é alheio ao mundo e alheio a
nós e a nossos problemas. Se o universo evoluiu por si mesmo,
então é uma lei em si, e Deus é alheio a ela e inerme diante dela.
Você pode acreditar em tal universo e ainda acreditar em Deus, mas
seu Deus é um Deus inerme no que concerne às necessidades que
você tem.
Por outro lado, se Deus criou todas as coisas, como nos diz o
primeiro capítulo de Gênesis, então ele é Senhor e Soberano sobre
todas as coisas e tudo depende de sua graça e providência. Assim,
em vez de ser alheio a nossas vidas, ele, nosso Criador, é aquele
em quem vivemos, nos movemos e existimos. Nossa história se
move tão somente segundo os critérios dele, conforme a criação, a
providência, a regeneração e o juízo. Toda a criação e toda a
história do homem servem apenas para realizar os propósitos e
decretos de Deus. Deus, o Criador, pode falar conosco, porque
somos obra de suas mãos; Deus, o Criador, pode sustentar-nos,
porque o governo está em seus ombros, não nas mãos da criação
ou da criatura. Ele pode regenerar-nos, porque é a imagem dele que
carregamos e para a glória dele; ele pode julgar-nos, porque o único
critério e propósito da história é a vontade e a glória dele. Os
motivos de Deus não estão fora dele mesmo nem dependem da
criação ou do homem, mas apenas dele mesmo. Como diz o
salmista: “Não a nós, Senhor, não a nós, mas ao teu nome dá glória,
por amor da tua misericórdia e da tua fidelidade. Por que diriam as
nações: Onde está o Deus deles? No céu está o nosso Deus e tudo
faz como lhe agrada” (Sl 115.1-3).
Este Deus Criador soberano é o único Deus que pode ouvir e
responder orações, porque só ele é soberano e todo-poderoso.
Diz-nos o Catecismo maior de Westminster: P. 14: Como Deus
executa os seus decretos?
R. Deus executa os seus decretos nas obras da criação e da
providência, de acordo com a sua presciência infalível e o livre
e imutável conselho da sua vontade.
P. 15. O que é a obra da criação?
R. A obra da criação é aquela pela qual Deus, no início, pela
palavra do seu poder, fez do nada o mundo e tudo quanto nele
há, para si, no espaço de seis dias, e tudo muito bom.
“[Pois] este é Deus, o nosso Deus para todo o sempre; ele
será nosso guia até à morte” (Sl 48.14).
17. À sua imagem
6 de julho de 1954
Bom dia, amigos. Um dos fatos mais tristes a nosso respeito é que
estamos mais interessados em nós mesmos do que nas coisas mais
importantes da vida. Tendemos a estar mais dispostos a estudar
psicologia, que nos fala sobre nossos caminhos, que a estudar
teologia, que trata dos caminhos de Deus. Isso nos diz,
evidentemente, que há algo errado conosco, que somos
basicamente autocentrados, mais interessados em nós que no céu e
na terra.
Por que somos assim? Fomos feitos desse modo? Deus, o criador,
nos fez desse jeito? O Breve catecismo de Westminster pergunta
“Como Deus criou o homem?” (BCW P. 10) e então nos diz que
fomos criados à sua imagem, em conhecimento, retidão e
santidade, com domínio. Se fomos criados conforme a própria
imagem de Deus, como nos diz a Escritura, então originalmente não
fomos criados autocentrados, fracos e pecaminosos, mas como
homens e mulheres ordenados a pensar os pensamentos de Deus,
cumprir a vontade dele e deleitar-se em seus caminhos.
A imagem de Deus no homem não é aparência física, molde ou
forma, não é a alma ou a mente do homem como tal. A imagem de
Deus é conhecimento, retidão, santidade e domínio; essas são as
coisas que caracterizam a Deus: seu conhecimento é perfeito e
completo, sua retidão total, sua santidade além de nossa
imaginação e seu domínio absoluto e inabalável.
Fomos criados por Deus para exercer as funções de sua imagem
sob sua Palavra e propósito. Mas o homem rebelou-se contra Deus
e tentou afirmar-se por si mesmo. O slogan era “Cada homem é seu
próprio Deus”, o que representava uma submissão total à tentação
— “Sereis como deuses” (Gn 3.5). Ora, esta é a razão por que todos
somos por natureza autocentrados, por que estamos mais
interessados em nós mesmos que no resto do mundo e por que
gostamos de falar mais de nós mesmos que de Deus. Algumas
pessoas estão dispostas a falar tudo sobre seus sonhos, suas dores
e anseios do momento, seus problemas com os boletos do mês, e
assim por diante, mas pergunte-lhes sobre a fé em Deus e elas se
ofenderão com a pergunta. Afinal, dizem, minha religião é coisa de
foro íntimo. Bem, isso não faz sentido para mim. Até onde consigo
enxergar, nossas dores e anseios, sonhos e boletos, tudo isso são
questões privadas, no entanto, passamos um tempão tornando-os
públicos todos os dias. Por outro lado, Deus é uma questão pública
muitíssimo importante, a única questão verdadeiramente importante,
a questão fundamental. Individual e coletivamente, permanecemos
de pé ou caímos segundo a ótica dele.
Então, por que fazemos de nós mesmos uma questão pública e de
Deus um assunto privado? Não é porque consideramo-nos mais
importantes e, inconsciente e instintivamente, vemo-nos como
Deus? Sentimos que o mundo devia ouvir e saber os detalhes de
nossa vida porque a vida não seria plena ou completa sem essa
proclamação. É assim que agimos em nossa capacidade de
pequenos deuses.
Mas a tragédia é que nossa rebelião contra Deus corrompeu e
fraturou a imagem dele em nós. Jamais poderemos ter verdadeiro
conhecimento de nada a menos que comecemos com Deus como
Criador. Qualquer outra tentativa de gerar conhecimento nos dá
apenas um mundo sem sentido e monstruoso, e o conhecimento em
si mesmo é uma maldição. Separados de Deus, não há verdadeira
retidão, somente santarronice, uma coisa hipócrita e
repugnantemente falsa. Quanto à santidade, é mais remota que as
estrelas para um homem separado de Deus. Toda tentativa do
homem de recriar a santidade com pompa e circunstância, mediante
cultos e rituais magnificentes, mediante a beleza e a arte, leva
somente a maior zombaria e a um fracasso ainda mais óbvio.
Quanto maiores as nossas pretensões, mais óbvia se torna a nossa
fraqueza.
Quanto ao domínio, o homem claramente o perdeu. O homem já
não tem domínio sobre o mundo, sobre sua própria área de
atividade ou sobre si mesmo. O autocontrole é um grande problema
público e privado. É um problema mental também, e os homens,
havendo perdido o controle de suas vidas, acham difícil manter por
um momento a sanidade e logo se rendem a um afastamento
impotente deste mundo que não se submete a eles.
Assim, a imagem de Deus no homem está claramente arruinada,
obviamente estilhaçada. O homem é incapaz de ser o que se
planejou que fosse. Mas Deus não nos deixa desamparados assim.
Ele vem a nós em Cristo e recria a humanidade caída. Pela fé em
Cristo, somos regenerados à imagem de Deus, e esta recriação
será perfeita no mundo por vir. Paulo nos lembra da natureza e do
privilégio de nossa regeneração conforme a imagem de Deus,
dizendo: E vos revestistes do novo homem que se refaz para o
pleno conhecimento, segundo a imagem daquele que o criou. (Cl
3.10)
E vos revistais do novo homem, criado segundo Deus, em
justiça e retidão procedentes da verdade. (Ef 4.24)
Ou não sabeis que os santos hão de julgar [ou governar, ou ter
domínio sobre] o mundo? (1Co 6.2)
18. O fim principal do homem
1 de junho de 1954

Bom dia, amigos. Pessoas diferentes em momentos diferentes


propuseram listas de momentos-chave na história, cada um
segundo seus pressupostos. Para mim, um dos grandes marcos da
história é a Assembleia de Westminster, que se reuniu em 1643 e
em 1652, e cuja obra forneceu a espinha dorsal moral e espiritual da
história britânica e americana subsequente. Um dos produtos
daquela assembleia foi o Breve catecismo, cuja primeira declaração
é uma das mais bem conhecidas em toda a literatura. À pergunta
“Qual é o fim principal do homem?”, dá-se esta grande resposta: “O
fim principal do homem é glorificar a Deus e gozá-lo para sempre”.

Somos informados com toda clareza de que o homem foi feito para
um propósito e só pode ser compreendido à luz desse propósito,
que é a glória de Deus. O homem não é um fim em si mesmo, mas
um instrumento a ser usado para um propósito específico.

Olhemos do seguinte modo: suponhamos que eu compre — estou


fazendo uma suposição muito exagerada aqui — um carro novo,
leve-o até o fim do píer e espere que ele funcione como um barco só
porque é um bom carro. O resultado, claro, será um fracasso
completo, e acabarei sem carro nenhum. Ou suponhamos que eu
tenha que serrar alguma coisa e tente usar um martelo para fazer o
trabalho, ou tenha de martelar algo e tente usar um serrote. A
estupidez de tal confusão é evidente.
Mas esse é o tipo de coisa que estamos constantemente tentando
fazer conosco. Fomos criados para um propósito, feitos como uma
ferramenta de precisão projetada para uma função específica; no
entanto, tentamos usar-nos para tudo, exceto para aquele trabalho
particular. A função para a qual Deus nos criou é seu serviço e sua
glória, e dedicar nossa vida a qualquer outra tarefa é abusar de nós
mesmos e fugir de nossa responsabilidade.

No coração da frustração do homem moderno está esta percepção:


não importa o que faça, ele não se adequa. Não consegue se
encontrar em toda a sua busca e atividade porque em todas essas
coisas ele está fugindo da função para a qual foi criado — a glória
de Deus. Jamais nos encontraremos até que primeiro tenhamos
encontrado o Senhor, nem viveremos verdadeiramente até que
comecemos a viver para ele. Como disse Agostinho: “Nosso
coração permanece inquieto até que repouse em ti”.

O propósito de nossa vida, portanto, só é compreensível sob a


perspectiva de Deus, e quanto mais tentamos viver para nós
mesmos, mais sem sentido e frustrante será a nossa vida. Quanto
mais vivemos para nós mesmos, menos estamos vivos. Temos de
negar a nós mesmos a fim de viver. Como disse Jesus, temos de
perder nossa vida para ganhá-la (Mt 10.39). Este é o paradoxo no
núcleo da vida, e, no entanto, está claro e compreensível quando
vemos Deus como nosso criador e reconhecemos que “dele, por ele
e para ele são todas as coisas” (Rm 11.36). Ele é a fonte de toda
vida, propósito, significado e função. Portanto, Paulo se junta a nós:
“Quer comais, quer bebais ou façais outra coisa qualquer, fazei tudo
para a glória de Deus” (1Co 10.31).
Visto que o fim principal do homem é glorificar a Deus, toda
atividade fora de Deus é estagnação, é um desperdício de vida e de
tempo e constitui uma morte viva. Por outro lado, toda atividade sob
Deus é livre da futilidade e tem a garantia de resultados perfeitos.
Porque agora funcionamos nele e sob sua graça, temos a
segurança de que ele abençoa nossa fidelidade impotente e nos dá
a colheita. Como resultado, Paulo incita-nos a maior serviço,
declarando: “Portanto, meus amados irmãos, sede firmes,
inabaláveis e sempre abundantes na obra do Senhor, sabendo que,
no Senhor, o vosso trabalho não é vão” (1Co 15.58).

Há, entretanto, mais do que isso na promessa que nos foi dada
quando vivemos segundo nosso propósito criacional. Nosso fim
principal não é só glorificar a Deus, mas também gozá-lo para
sempre. Esta é a dimensão mais segura da fé cristã, uma das
maneiras mais rápidas de reconhecer a verdadeira vida no Senhor.
O homem que vive segundo o propósito para o qual foi criado
conhece a alegria da realização em Cristo e a vitória de sua
presença mesmo em meio à aparente derrota.

Como gozamos a Deus? Pela obediência a ele, pela proximidade


em comunhão, por viver nele e para ele e por viver nesta grande
segurança de que nossa vida e nosso trabalho não são vãos no
Senhor. Gozar a Deus é conhecê-lo na pessoa de seu Filho Jesus
Cristo e reconhecer o amor redentor que está presente nele.

Somente quando verdadeiramente gozamos a Deus podemos


verdadeiramente gozar a vida, porque é somente então que
estamos reconciliados com nós mesmos. Deus em Cristo fez a
reconciliação conosco, e nessa paz encontramos paz com o homem
e com nós mesmos. Assim temos vida, e a temos com mais
abundância, pois “Quem tem o Filho tem a vida” (1Jo 5.12). Quando
apazigua a guerra que dentro de nós constantemente ameaça a
nossa alma, ele nos dá uma vida que tem vitória e alegria. Quando o
homem vive segundo seu fim principal, o resultado é esta alegria e
vitória. Nada na vida tem algo para ele à parte do Senhor. Como
declarou o salmista: “Ainda que a minha carne e o meu coração
desfaleçam, Deus é a fortaleza do meu coração e a minha herança
para sempre” (Sl 73.25-26).

Qual é o fim principal do homem?

O fim principal do homem é glorificar a Deus e gozá-lo para


sempre.
19. Preservando a superfície
7 de fevereiro de 1956

Bom dia, amigos. Para muita gente, não só a beleza, mas toda a
vida é só uma casca. Integridade, honestidade e caráter não são
mais que aparências, e a aceitabilidade de um homem há de ser
julgada à luz de sua adequação e seus hábitos sociais.

O homem deseja viver somente na superfície das aparências; quer


que o mundo o aceite como ele parece ser. Toda a sua vida é
dedicada ao cultivo de uma aparência de sucesso em todas as suas
ramificações.

Nossas palavras pessoa e personalidade provêm de persona, que


quer dizer “máscara”, e refere-se às máscaras vestidas pelos atores
do teatro grego antigo. E, de fato, a palavra ainda é pertinente, no
sentido de que, para a maioria das pessoas, sua pessoa e
personalidade estão dedicadas à proposição de que a criatura real
deve ser mascarada pela pessoa que confronta a si mesma, que
age como representante público do homem interior. Este homem
interior acredita no egoísmo, por exemplo, e vive somente nesta
perspectiva, mas a pessoa que é a máscara, o representante
público, piedosamente afirma uma fé no amor, na cooperação, no
altruísmo e no compartilhamento. Queremos que o mundo aceite a
máscara pública, mas queremos a satisfação que o homem interior
autocentrado exige. No entanto, não ousamos viver abertamente,
exceto com a máscara. Queremos que o mundo aceite nossa
aparência e não faça perguntas.
Este homem prefere considerar o mundo e as pessoas como
parecem ser, e não fazer perguntas embaraçosas. A vida é muito
mais aceitável às avessas, se as máscaras e hipocrisias são
honradas e nenhum pretexto destruído. Claro, este homem goza de
algum leve desmascaramento, porque lhe dá uma
pseudossabedoria, uma sensação orgulhosa de que é superior
porque está por dentro do assunto. Mas a autoconsciência só
acentua a hipocrisia e revela mais claramente a fuga de toda
verdade e realidade.

A natureza de todos os homens é assim revelada na aproximação


de Deus. Vivendo apenas de aparências, esperam que Deus aceite
sua aparência e justifique-os segundo ela. Em outras palavras,
pedem que Deus aceite cada homem não como são, mas como
aparentam ser. Nenhum homem pode ser justificado como é;
portanto, os homens exigem que Deus aceite um substituto deles:
ou palavras, ou sabedoria, ou experiência mística, posição racial ou
coisas assim como substituto. Os homens odeiam tudo que ameaça
a aparência superficial e, portanto, apesar de suas máscaras
piedosas, odeiam a Deus porque ele destrói toda máscara e
desnuda todo pecado em sua perversidade essencial e rebelião.
Porque esses homens mascarados exigem aparências, procuram e
constroem igrejas que abençoarão e aprovarão a aparência
superficial e os justificarão — e a construção de tais igrejas não tem
fim. A igreja se torna, então, uma máscara para maldade piedosa e
uma aparência usada numa tentativa de enganar a Deus e ao
homem. A verdadeira igreja, que trava guerra contra toda aparência,
torna-se uma geradora de problemas e um inimigo público de todos
os homens mascarados. No entanto, todos os esforços dos homens
mascarados são inúteis. Nas palavras do Evangelho: “O julgamento
é este: que a luz veio ao mundo, e os homens amaram mais as
trevas do que a luz; porque as suas obras eram más” (Jo 3.19).

O Senhor destrói todas as máscaras, todas as aparências, e, assim,


ou as renunciamos voluntariamente, reconhecendo que somos por
natureza pecadores e aceitando a salvação graciosa, ou elas são
arrancadas de nós, para nossa confusão, vergonha e juízo. Quando
recebemos a graça salvífica, recebemos um novo homem interior,
que já não é um rebelde perverso contra Deus, mas uma nova
criatura em Cristo. Ora, nenhuma aparência superficial pode
equiparar-se à glória interior, e nossa ação feliz e nossa
responsabilidade se tornam uma revelação ao mundo daquela que é
a realidade gloriosa de nossas vidas: “Cristo em vós, a esperança
da glória” (Cl 1.27).
20. O apelo
7 de dezembro de 1954

Bom dia, amigos. Nossa leitura bíblica de hoje é Isaías 55, o grande
apelo do profeta a que os homens deixem a frustração e a
insatisfação e encontrem descanso e refrigério na graça e na
misericórdia eternas de Deus.

Ah! Todos vós, os que tendes sede, vinde às águas; e vós, os


que não tendes dinheiro, vinde, comprai e comei; sim, vinde e
comprai, sem dinheiro e sem preço, vinho e leite. Por que
gastais o dinheiro naquilo que não é pão, e o vosso suor,
naquilo que não satisfaz? Ouvi-me atentamente, comei o que é
bom e vos deleitareis com finos manjares. Inclinai os ouvidos e
vinde a mim; ouvi, e a vossa alma viverá; porque convosco
farei uma aliança perpétua, que consiste nas fiéis misericórdias
prometidas a Davi. Eis que eu o dei por testemunho aos povos,
como príncipe e governador dos povos. Eis que chamarás a
uma nação que não conheces, e uma nação que nunca te
conheceu correrá para junto de ti, por amor do Senhor, teu
Deus, e do Santo de Israel, porque este te glorificou. Buscai o
Senhor enquanto se pode achar, invocai-o enquanto está
perto. Deixe o perverso o seu caminho, o iníquo, os seus
pensamentos; converta-se ao Senhor, que se compadecerá
dele, e volte-se para o nosso Deus, porque é rico em perdoar.
Porque os meus pensamentos não são os vossos
pensamentos, nem os vossos caminhos, os meus caminhos,
diz o Senhor, porque, assim como os céus são mais altos do
que a terra, assim são os meus caminhos mais altos do que os
vossos caminhos, e os meus pensamentos, mais altos do que
os vossos pensamentos. Porque, assim como descem a chuva
e a neve dos céus e para lá não tornam, sem que primeiro
reguem a terra, e a fecundem, e a façam brotar, para dar
semente ao semeador e pão ao que come, assim será a
palavra que sair da minha boca: não voltará para mim vazia,
mas fará o que me apraz e prosperará naquilo para que a
designei. Saireis com alegria e em paz sereis guiados; os
montes e os outeiros romperão em cânticos diante de vós, e
todas as árvores do campo baterão palmas. Em lugar do
espinheiro, crescerá o cipreste, e em lugar da sarça crescerá a
murta; e será isto glória para o Senhor e memorial eterno, que
jamais será extinto. (Is 55.1-13) O que o profeta Isaías
ofereceu ao povo neste grande convite está claramente
afirmado no versículo 4. É o Servo Sofredor, o Messias ou
Cristo de Deus, que por sua morte trará perdão abundante a
muitos. Essas são as “fiéis misericórdias prometidas a Davi” (v.
3), isto é, as bênçãos prometidas com tal certeza a Davi cuja
plenitude é vista somente em Jesus Cristo.

O perdão do homem sempre é incerto e imperfeito. O homem pode


consolar-nos em nossa aflição e sofrimento, ou falar à culpa e
frustração de nossa alma e incentivar-nos de modo comovente às
vezes, mas o que o homem dá é superficial e não muda nossa vida.
Só nos possibilita esquecer nosso apuro por algum tempo, somente
para vê-lo voltar mais tarde com força renovada. O verdadeiro
fundamento de nossa esperança é Deus e seu Cristo, pois só ele
perdoa abundantemente e purifica por completo. Ele anulará nossa
culpa e frustração tão certo quanto a chuva cai dos céus.

Para ter essa paz de Deus, somos chamados a renunciar nossos


caminhos e nossos pensamentos. Isso, claro, é exatamente o que
odiamos fazer. Queremos acrescentar Deus ao nosso caminho, mas
ele se recusa a permitir essa situação. O homem está inclinado a
protestar: por que tenho de abrir mão dos meus caminhos e do meu
pensamento? Por que não me permitem seguir meu próprio
caminho e ainda ter paz e a bênção de Deus? A resposta de Deus é
claríssima: “Porque os meus pensamentos não são os vossos
pensamentos, nem os vossos caminhos, os meus caminhos, diz o
Senhor, porque, assim como os céus são mais altos do que a terra,
assim são os meus caminhos mais altos do que os vossos
caminhos, e os meus pensamentos, mais altos do que os vossos
pensamentos” (v. 8-9).

Nosso pensamento é completamente incompatível com o


pensamento de Deus, e nossos caminhos com os caminhos dele.
Nossa vida está condicionada, como disse Jesus, por preocupações
como estas: “O que comeremos? O que beberemos? Com que nos
vestiremos?” (veja Mt 6.25). Nossa vida gira em torno de nós
mesmos; os pensamentos e caminhos de Deus, em torno de seu
propósito eterno. Somos chamados a renunciar nossa vida por ele a
fim de que possamos viver de verdade.

Como é agora, estamos desperdiçando nossa vida, disse Isaías,


gastando dinheiro com o que não é pão (v. 2), isto é, trabalhamos
por aquilo que não satisfaz, e passamos pela vida com fome e sede
de vida, mas nunca a experimentamos.
Diante de tudo isso, nossa única esperança está em Deus em
Cristo. Vivendo nele, sairemos com alegria e seremos guiados em
paz; a própria natureza compartilhará de nossa felicidade (v. 12). O
que antes nos era um espinheiro se tornará um lindo cipreste, e a
sarça, uma murta (v. 13), porque nossa vida agora está num novo
mundo em Cristo, a plenitude do que herdaremos no fim dos
tempos.

Isso pode realmente nos acontecer? Temos a palavra de Deus de


que não pode ser de outro modo, pois ele diz:

Assim será a palavra que sair da minha boca: não voltará para
mim vazia, mas fará o que me apraz e prosperará naquilo para
que a designei. (v. 11)
21. A aliança
31 de agosto de 1954

Bom dia, amigos. Às vezes temos o hábito de usar uma palavra ou


expressão familiar por anos sem compreender-lhe plenamente o
significado. Um exemplo de termo bíblico desse tipo é aliança. A
Bíblia tem muito a dizer sobre alianças, e as duas partes da
Escritura são chamadas de Antigo e Novo Testamentos, ou
Alianças.

A palavra aliança na Escritura tem um significado original que


significa cortar ou dividir, e o sentido usual de aliança refere-se a
uma aliança de sangue.

No sentido estrito da palavra, refere-se a uma fraternidade de


sangue entre dois homens. Dois homens independentes e iguais,
tendo grande afeição um pelo outro, concordam em se tornar irmãos
de sangue. Depois do ritual de derramar e misturar o sangue, eles
se tornam mais próximos um do outro que em qualquer outra
relação. Passam a ter uma obrigação mútua de guardar um ao outro
da deslealdade e do perigo, e de estar dispostos a abrir mão da
própria vida em favor do outro. Para um homem, ser infiel aos laços
da aliança era impensável: tornava-o um homem sem valor e
proscrito. Quando fazia uma aliança de sangue, o homem tinha, por
assim dizer, uma nova natureza: ele adentrava na vida de seu novo
irmão e, daí em diante, tinha um laço de amor que superava todos
os outros laços e lhe exigia uma vida que tivesse uma nova
orientação.
Ora, obviamente, a palavra aliança em sentido estrito, requerendo
duas partes contratantes iguais e independentes, não pode aplicar-
se à aliança entre Deus e o homem, entre Criador e criatura. O
Deus grandioso e infinito não pode equiparar-se com a frágil criatura
humana. No entanto, a Escritura chama o relacionamento de Deus
com o homem de aliança, mas neste caso uma aliança de graça e
promessa. Em Salmos 89.28, a palavra aliança equipara-se a graça.

Portanto, Deus, em sua graça infinita, faz uma aliança com o


homem. O significado, eu acho, começa agora a ficar mais claro. O
Deus da graça faz a si mesmo irmão de sangue do homem e diz
que, em sua misericórdia, redimirá o homem e assim
voluntariamente abre mão de sua vida em favor do homem.

Jesus Cristo fez isso pelos filhos da aliança. Como nosso irmão de
sangue, tendo assumido nossa natureza na encarnação, ele
cumpriu sua obrigação da aliança ao morrer por nós e compartilhar
conosco os frutos de sua vitória sobre a morte e o pecado. A todos
os que estão em aliança com ele pela fé, ele dá uma nova natureza
e uma nova vida.

Esta nova natureza, sendo sua vida em nós, significa comunhão


permanente com ele. Na última ceia, ele “tomou um cálice e, tendo
dado graças, o deu aos discípulos, dizendo: Bebei dele todos;
porque isto é o meu sangue, o sangue da [nova] aliança, derramado
em favor de muitos, para remissão de pecados” (Mt 26.27-28).
Nossa participação no sacramento da comunhão significa que nos
regozijamos em nossa nova vida em Cristo. Reconhecemos que em
nós mesmos somos homens mortos, mas nele temos uma vida e
herança eterna e incorruptível.
Olhemos mais uma vez para o ritual primitivo da fraternidade de
sangue. Quando dois homens se tornam irmãos de sangue, os laços
que os unem um ao outro tornam-nos responsáveis também pela
família do outro. Uma vez que tivessem uma vida comum, teriam
também uma família comum.

O mesmo é verdade acerca a aliança de Deus conosco.


Ingressamos na família de Deus, “[nos tornamos] coparticipantes da
natureza divina” (2Pe 1.4), e compartilhamos dos mesmos
privilégios da família de Deus como filhos e herdeiros por adoção,
que é nossa na aliança. Do mesmo modo, quando, pela fé,
entramos na aliança de Deus em Cristo, nossa família se torna a
família de Deus. Isso é verdade até mesmo onde somente um dos
pais é cristão, pois, como Paulo disse aos coríntios em 1 Coríntios
7, o parceiro descrente é santificado pela esposa ou pelo marido
crente, e os filhos são considerados santos. Isso quer dizer que os
filhos dos crentes estão sob a aliança de Deus e a bênção do
Espírito Santo e são contados como do Senhor até que na
maturidade rejeitem especificamente a aliança e saiam de sua
jurisdição.

Este é nosso grande privilégio em Cristo: nossos filhos nascem na


família da fé e da aliança de seu Deus. As promessas da aliança
não são apenas para nós, mas para nossos filhos e para tantos
quantos o Senhor nosso Deus chamar.

Adultos só podem entrar voluntariamente nesta aliança pela fé e


confissão de Cristo. Crianças nascem nela. Entretanto, como diz
Paulo, nem todos os de Israel são, de fato, israelitas (Rm 9.6); nem
todos os filhos dos crentes são filhos da promessa.
Vamos dar mais uma olhada no ritual primitivo de fraternidade de
sangue. O relacionamento estava sob certas leis e obrigações, e a
cerimônia era concluída pela troca de presentes. A lei da aliança é a
Palavra de Deus, escrita nas tábuas de nosso coração por meio da
presença duradoura, e o dom da aliança é o dom do Espírito Santo,
as promessas e privilégios da aliança e vida eterna. Nosso presente
deve ser nossa vida como um sacrifício vivo ao Deus da aliança,
nosso tempo, nossa substância, nosso tudo.

A aliança de um Deus gracioso faz de nós, que somos pobres,


cegos e famintos, homens e mulheres que são herdeiros de todas
as coisas em Cristo. A aliança nos dá nutrição, e esta nos dá vida.
Seu símbolo adequado é uma mesa de comunhão, em torno da qual
a família de Deus se reúne para receber as dádivas da aliança.

Se não estamos desfrutando dos privilégios da aliança, é porque


somos culpados de recusar-nos a participar da mesa que nos está
preparada até mesmo na presença de nossos inimigos, como diz o
salmo 23. Acheguem-se, então, e compartilhem da riqueza do Deus
da aliança.

Ora, o Deus da paz, que tornou a trazer dentre os mortos a


Jesus, nosso Senhor, o grande Pastor das ovelhas, pelo
sangue da eterna aliança, vos aperfeiçoe em todo o bem, para
cumprirdes a sua vontade, operando em vós o que é agradável
diante dele, por Jesus Cristo, a quem seja a glória para todo o
sempre. Amém! (Hb 13.20-21)
22. O desejo de morrer
24 de agosto de 1954

Bom dia, amigos. Um dos fatos mais significativos acerca do homem


é que muitas vezes ele tem um desejo intenso de morrer. A vida é
tão cara à maioria de nós que é difícil compreender que alguém seja
tomado pelo desejo de morrer; no entanto, o fato tem documentação
abundante na psiquiatria moderna e em outros campos de estudo.

Os homens têm modos diferentes de mostrar esse impulso


autodestrutivo. Com alguns, vemo-lo no alcoolismo — e no abuso
da bebida há este impulso suicida latente, um desejo de afogar
parte da vida ao sufocar a mente e a consciência com álcool. Com
outros, vemo-lo na jogatina. O apostador inevitavelmente perde e
sabe disso; se ganha, sente que deve continuar, porque — informa-
nos o Dr. Bergler — tem o desejo de perder, de arruinar-se e de
infligir uma punição a si mesmo. O viciado em entorpecentes, o
motorista imprudente que flerta com a morte, esses, assim como os
demais, são caracterizados pelo desejo de morrer.

Isso, evidentemente, não é normal. Dizem-nos que este impulso


destrutivo é um “desejo profundamente enraizado de autopunição”.
Ora, essa é uma ideia de máxima importância para o pensador
cristão. O que os estudos modernos revelam, tanto na psiquiatria
quanto na psicossomática, é que o homem pune a si mesmo
quando sente que transgrediu ou está prestes a transgredir. Em
outras palavras, uma sensação de culpa enraizada leva as pessoas
a atividades autodestrutivas e a assumir riscos de modo imprudente,
porque assim, inconscientemente, punem-se a si mesmos pelos
pecados cometidos em pensamento, palavras e obras.

Os homens responsáveis por esses estudos em sua maioria são


não cristãos e talvez tivessem objeções a uma interpretação cristã
de seus dados, mas até mesmo eles não raro são impelidos a tomar
emprestada a linguagem da teologia para explicar esses mesmos
dados.

O que este desejo de autopunição revela a nós, como pensadores


cristãos?

Em primeiro lugar, dá um testemunho eloquente do fato de que o


homem foi criado à imagem de Deus. Embora tenha sido arruinada
pela queda do homem, essa imagem testemunha contra o homem e
torna a punição inevitável. O homem sabe que a pena pela
transgressão da lei de Deus é a morte e, havendo transgredido, é
atormentado por um impulso mórbido. Ele nega a Deus com os
lábios, mas pune-se a si mesmo em obediência inconsciente à
ordenança divina contra o pecado. Não podemos fugir de Deus;
visto que ele nos criou, cada nervo e fibra de nosso corpo dá
testemunho dele e de sua lei contra a rebelião de nossos lábios e
mente. Podemos negar seus juízos, mas só terminaremos
cumprindo-os contra nós mesmos.

Em segundo lugar, o impulso do homem à autopunição declara


enfaticamente que o pecado deve ser expiado. Não há escape às
exigências e obrigações da justiça. A expiação deve ser feita,
afirmou nosso Senhor, até o último tostão. Qualquer homem que
não encontre a redenção e libertação do poder e da pena do pecado
na pessoa e obra de Jesus Cristo estará preso na tarefa mortal e
sem esperança da autoexpiação, e o único resultado é uma
autopunição vã.

O pecado deve ser pago, e a expiação será feita por Jesus Cristo ou
pagaremos por ela com nosso próprio impulso autoinfligido de
punição e morte.

Vivemos hoje em meio a uma geração coagida em direção à morte.


Suas atividades febris parecem ter este propósito comum: destruir a
mente e a memória, fugir da vida, punir o corpo e a alma, fugir,
acima de tudo, da voz interior acusatória que é a imagem de Deus
no homem.

Quando, todavia, pela fé, fugimos desta derrota viciosa ao encontrar


nossa expiação em Jesus Cristo, somos verdadeiramente livres.
Podemos, então, dizer com o apóstolo que “para mim viver é Cristo
e morrer é lucro” (Fp 1.21), porque em qualquer situação temos a
bênção de sua paz e vitória. Já não somos coagidos; agora somos
guiados em paz e alegria, e o peso de nossa culpa é retirado.

Como declara a Confissão de fé de Westminster: O Senhor Jesus,


pela sua perfeita obediência e pelo sacrifício de si mesmo, que ele,
pelo Eterno Espírito, ofereceu a Deus de uma vez por todas, satisfez
plenamente a justiça do Pai, tendo adquirido, não só a reconciliação,
mas uma herança eterna no reino do céu, para todos aqueles que o
Pai lhe deu. (CFW 8.5) Cristo, com toda certeza e eficazmente,
aplica e comunica a salvação a todos aqueles para os quais ele a
adquiriu; isso ele consegue fazendo intercessão por eles e
revelando-lhes na Palavra e pela Palavra os mistérios da salvação,
persuadindo-os, eficazmente, pelo seu Espírito a crer e a obedecer,
governando o coração deles pela sua Palavra e pelo seu Espírito;
vencendo todos os seus inimigos por meio de sua onipotência e
sabedoria, da maneira e pelos meios mais de acordo com a sua
admirável inescrutável dispensação. (CFW 8.8)
23. Autoilusão (Tiago 1.14)
31 de janeiro de 1956

Bom dia, amigos. Devaneios e autoilusão são características


familiares de nossa constituição humana; são uma face e uma
fachada com as quais tentamos lidar com os fatos desconfortáveis
da realidade sem ofender nosso ego. A autoilusão se manifesta não
só nas representações internas à nossa mente, mas também em
seu gosto externo. O atual apetite por violência na literatura, em
periódicos e na imprensa, na arte e no entretenimento, é um indício
vital da natureza violenta e destrutiva da autoilusão do homem de
hoje. Mais que isso, é a sombra do amanhã e uma advertência
urgente de que devemos guardar o coração com toda diligência,
pois dele provêm os males da vida. Antes que tomassem a
Alemanha, os nazistas foram precedidos por uma geração cujo
apetite literário era movido à violência, e os nazistas representaram
na vida o que seus pais haviam representado na autoilusão. Antes
que ocupassem o poder na Rússia e começassem seu programa de
erosão total do passado do homem, os bolcheviques foram
precedidos por niilistas, anarquistas e outros, que sonharam com
um mundo e o trouxeram à existência, o qual destruiu a eles e aos
que os seguiram. Há uma correlação no fato de a maioria dos heróis
revolucionários da Rússia terem morrido mortes violentas em
prisões e campos de escravos: seus devaneios foram levados às
últimas consequências.
Mas vamos olhar para a casa, o seu coração e o meu. O que a
autoilusão significa em nossa vida? Hallesby (God’s Word for Today,
p. 280) definiu-a como “o pensamento que não segue a lei da lógica,
mas os impulsos de nossos caprichos e desejos”. Em todo
pensamento assim, portanto, não só tentamos mudar a realidade
das coisas, mas também nossa relação com essa realidade. Não só
falsificamos o mundo em que vivemos, mas também a nós mesmos.
Mentimos acerca do que é a vida e do que nós somos. Hallesby
também chama a atenção para o fato de que “na hora da tentação
se dá a autoilusão em sua forma mais completa”. Todo pensamento
desse tipo é uma mentira, e normalmente nossas mentiras enganam
em primeiro lugar a nós mesmos. Inevitavelmente, a mentira
começa a viver sua vida, e o que pode ter começado como uma
tentativa de enganar aos outros na verdade engana-o mais que a
qualquer outro. Assim, o autoiludido começa a viver a partir de seu
sonho, a trabalhar a partir de sua mentira, e o resultado é que
caminha impetuosamente no pecado e então culpa a Deus por
torná-lo inevitável. Em certo sentido, o pecado é inevitável para o
autoiludido, porque para ele a vida deixou de ser servir a Deus e
tornou-se, em vez disso, a realização de seu próprio sonho. E o
sonho não permanecerá seguramente enterrado: ao contrário, ele
insiste em enterrar tudo que se opõe a sua realização na vida do
homem.

Por isso Tiago escreveu: “cada um é tentado pela sua própria


cobiça, quando esta o atrai e seduz” (Tg 1.14). É nossa cobiça,
nosso sonho, que nos leva à tentação. Como disse John Donne,
tentamos Satanás para tentar-nos; colocamo-nos numa situação em
que a tentação e o pecado se tornam inevitáveis e então culpamos a
Deus por colocar-nos ali.

Visto que somos tentados quando somos atraídos por nossa própria
cobiça, nossas tentações são um bom indício de nossa autoilusão.
As tentações de um homem, portanto, estão estreitamente
relacionadas com seus devaneios e são um passo a caminho de
sua realização. O pecado é ativo não só na realização, mas também
na concepção, no próprio autoengano.

É por isso que a Escritura insta-nos a levar todo pensamento cativo


a Cristo, porque quando todo pensamento é levado cativo a seu
mandamento, o cumprimento não é o pecado, mas a santificação;
não a tentação, mas a força; não a fuga, mas a responsabilidade. A
autoilusão entroniza nossos desejos, mas somos ordenados, em
vez disso, a entronizar a Cristo em nosso coração: Ele nos leva, não
à tentação, mas nos livra do mal e nos dá a vitória nele.
24. Atalhos
13 de março de 1956

Bom dia, amigos. Alguns anos atrás, uma mulher comentou comigo
que desperdiçou boa parte da vida à procura de atalhos para tudo.
Procurava atalhos para Deus, para a felicidade, para os desejos do
coração, para todas as coisas, e sempre terminava muito longe de
seus objetivos.

A experiência dela é comum. As pessoas constantemente procuram


atalhos, e uma boa maneira de começar um grupo, seita ou culto
religioso é oferecer um novo atalho para Deus. Ora, todos esses
atalhos têm uma característica em comum: propõem-se a desviar e
eliminar da vida toda os problemas infelizes, todos os assuntos
desagradáveis, todas as experiências tentadoras e a levá-lo, doce e
impassível, ao próprio Deus. Mas a falácia infeliz em todo
pensamento deste tipo é a seguinte: nenhum homem que tenta ser
liberto da vida pode ser levado a Deus. Somente quando
enfrentamos todas as experiências da vida podemos estar
preparados para enfrentar o Deus que no-las dá. O pecado e o
sofrimento, a tragédia e a morte, essas não são coisas que a fé
religiosa pode ajudar-nos a evitar, mas, em vez disso, nos ajuda a
enfrentar. Para encontrar a Deus, portanto, devemos enfrentar a
vida de modo vitorioso, e isso não pode ser feito sem Jesus Cristo.
Não há caminho para Deus que possa eliminar Cristo sem fracassar
por inteiro. Disse Jesus: “Eu sou o caminho” (Jo 14.6), o único
caminho para Deus; e disse mais: “Eu sou a porta” (Jo 10.9), o único
acesso a Deus, pois “ninguém vem ao Pai senão por mim” (Jo 14.6).
Nenhum atalho para Deus leva a lugar algum senão à ruína, quando
elimina toda a vida vivida em Jesus Cristo e com ele, o mediador
entre Deus e o homem. Nele e em sua mediação expiatória,
podemos enfrentar tudo da vida sem fugir, porque tudo é
transformado, tudo está sob a providência divina. “Todo vale será
aterrado, e nivelados, todos os montes e outeiros; o que é tortuoso
será retificado, e os lugares escabrosos, aplanados” (Is 40.4).

E quanto aos atalhos para a felicidade? Aqui, de novo, queremos


vezes demais somente um lado da vida, e insistimos em nosso
direito e rejeitamos o outro. Mas nossa capacidade de ser feliz
sempre é proporcional à nossa capacidade de receber das mãos de
Deus todas as coisas da vida. As pessoas mais verdadeiramente
felizes são aquelas que podem aceitar tanto a tristeza quanto a
felicidade, e em tudo dão graças a Deus.

Muitas vezes nossa tentação é estar contente meramente com a


oração pelas bênçãos e por felicidade. Temos tanto que pedir a
Deus, e pedimos, muitas vezes e com impaciência, desconfiando de
seu atraso e de sua ausência de resposta. Deus declarou há muito:
“Eis que, hoje, eu ponho diante de vós [...] a bênção, quando
cumprirdes os mandamentos do Senhor” (Dt 11.26-27). A condição
da bênção, portanto, é um coração obediente, um coração que
procura a vontade de Deus e cada vez mais nela se deleita. Não há
atalho para a felicidade que possa eliminar a fé e a obediência.

Assim, é óbvio que os atalhos não são, de maneira alguma, o


caminho da vida. A riqueza da vida está em vivê-la inteiramente
submisso a Deus. O resultado dessa vida é esclarecido pelo
salmista quando declara que este homem “é como árvore plantada
junto a corrente de águas, que, no devido tempo, dá o seu fruto, e
cuja folhagem não murcha; e tudo quanto ele faz será bem-
sucedido” (Sl 1.3). Não há promessa de imunidade à tempestade,
de proteção contra a infelicidade, luto ou tristeza. Nenhures Deus
nos promete uma vida assim neste mundo. Entretanto, a garantia
claríssima é de que, quando nossa vida está enraizada em Deus por
meio de Jesus Cristo, tudo quanto fizermos prosperará à luz do
propósito eterno de Deus e de nossa alegria eterna.

O sacramento da mesa do Senhor dá testemunho desta plenitude


de vida. O fim do sacramento é a santificação dos santos, seu
crescimento no Senhor, a bênção de toda a sua vida com a força, a
alegria e a paz do Senhor. No entanto, o caminho para este
resultado abençoado é a aceitação do sacrifício expiatório de Cristo,
nossa própria morte para o velho Adão em nós, ou a disposição de
tornar-nos sacrifícios vivos em Cristo Jesus e nossa obediência ao
Senhor. Nosso Redentor afirmou-o de modo muito simples quando
disse: “Pois quem quiser salvar a sua vida perdê-la-á; quem perder
a vida por minha causa, esse a salvará” (Lc 9.24).
25. Pecado
13 de julho de 1954

Bom dia, amigos. Há um assunto em que a maioria de nós alegaria


muito modestamente ser autoridade — o tema do pecado. Muitos de
nós acham que sabem muito sobre pecado, e algumas pessoas até
se sentiriam insultadas se se sugerisse que sabem pouco do
assunto. No entanto, o fato estranho é que, embora todos estejamos
cheios do tema, muito poucos de nós realmente sabem o que o
pecado é. De certo modo, isso não é de estranhar. Afinal, podemos
estar cheios de torta de maçã sem saber o que aconteceu à massa,
que tipo de maçã foi usada e por quanto tempo foi assada. Se
estamos cheios de torta de maçã, não é porque sabemos tudo que
há para saber sobre ela, mas porque gostamos dela e ela nos cai
bem.

A pergunta, então, nos confronta: o que é o pecado? A maioria das


pessoas dá uma resposta errada. Definem o pecado como
assassinato, mentira, roubo, adultério, extorsão, lascívia, bebedice e
coisas assim. Nenhuma dessas coisas é pecado em si mesma: são
pecados, não pecado. Assim como Santa Cruz é parte dos Estados
Unidos, assim também esses pecados particulares são fragmentos
do pecado ou, até melhor, produtos do pecado. Esses pecados
individuais são frutos de uma árvore cuja vida é ampla e difusa, ao
passo que os frutos são particulares e limitados.

Você e eu podemos ser livres desses pecados individuais. Podemos


ser inocentes de assassinato, mentira, roubo e de outros pecados
evidentes e ainda ser culpados do pecado em si mesmo, podemos
ser pecadores tão sombrios quanto uma fileira de assassinos ou o
corredor da morte já visto. Pois o pecado é muito mais perigoso que
pecados individuais, menos facilmente detectado e mais
profundamente enraizado.

O que, então, é o pecado em si mesmo? É ceder à tentação de ser


como Deus, conhecedor, isto é, determinador do bem e do mal. O
pecado de Adão foi tentar ser seu próprio deus, decidindo por si o
que era certo e errado, e esta é a tentação de todos nós. É mais do
que nossa tentação: é nossa natureza.

O Breve catecismo de Westminster responde à pergunta “O que é


pecado?” (BCW P. 14) com a simples definição: “Pecado é qualquer
falta de conformidade com a lei de Deus, ou qualquer transgressão
dessa lei”. Em vez de deleitar-se na conformidade à lei de Deus, o
pecado exige que Deus e o homem se conformem a nós. Sentimos
que somos o centro da criação e que todas as coisas devem girar
ao nosso redor. Em vez de conformar-nos à lei de Deus, tentamos
ser legisladores por nós mesmos. Assim, o pecado é mais do que
atos isolados: é nossa natureza apartada de Deus. É o velho Adão
em nós que constantemente se rebela contra Deus e se aborrece de
impaciência com os caminhos divinos porque interiormente acredita
que os próprios caminhos são superiores aos caminhos de Deus.

Você e eu podemos vencer pecados. Podemos ser vitoriosos sobre


um impulso de roubar, de mentir, de matar ou de cobiçar, mas essas
pequenas vitórias não são nada se comparadas à nossa total
frustração quando enfrentamos o problema do pecado. A este nunca
podemos vencer. Vencer o pecado por nós mesmos é como tentar
elevar-nos puxando os próprios cadarços. Somente o próprio Deus
pode livrar-nos do poder e da pena do pecado. E é exatamente isso
que ele faz em Jesus Cristo.

O que jamais podemos fazer, ele faz por nós. Ao dar-nos uma
segunda natureza, sua própria vida, ele nos dá um poder maior que
nós mesmos a fim de capacitar-nos para vencer a nós mesmos.
Nossa confiança como cristãos é esta: em Cristo temos uma vida
que é santa, justa e vitoriosa. Nossa segunda natureza agora é
Jesus Cristo e a vida eterna. Tendo isso como nossa herança,
podemos facilmente abrir mão daquela vida dolorosamente limitada
que era nossa vida em pecado. Quanto mais vemos a Cristo e
vivemos nele, mais fácil é morrer para nós mesmos a fim de entrar
de modo mais pleno naquela vida melhor.

Infelizmente, no entanto, o pecado em nós é persistente, e suas


raízes se estendem por todo recanto de nosso ser. Conhecemos e
vivemos a nova vida em Cristo, mas nos encontramos dispostos a
morrer interiormente e, assim, compartilhar mais plenamente dessa
nova vida.

Mas o fato feliz é este: nossa salvação não repousa em nossa


disposição ou no sucesso de nossa luta interior com o pecado, mas,
antes, na graça de Deus. E isso torna nossa vitória sobre o pecado
algo certo. Ela nos dá a certeza em nossa caminhada diária, pois
temos a Palavra infalível de Deus e o poder onipotente que
subscreve nossa redenção e libertação do poder do pecado.
Podemos regozijar-nos com Paulo: Porque a lei do Espírito da vida,
em Cristo Jesus, te livrou da lei do pecado e da morte. (Rm 8.2)

Esta é a vitória que vence o mundo: a nossa fé. (1Jo 5.4)


26. Vocação eficaz
22 de novembro de 1954

Bom dia, amigos. Um dos problemas que nos incomodam é nossa


instabilidade. Mesmo aqueles que se imaginam como a mais
constante das pessoas têm de levar em consideração alterações
persistentes de disposição e de gosto ao longo dos anos. As
músicas que dez anos atrás tinham para nós todo o peso do
sentimento e nos tocavam profundamente, hoje podem deixar-nos
indiferentes. Nossa comida favorita de ontem dificilmente nos chama
a atenção hoje. Amigos sem os quais mal poderíamos viver,
encontramo-los hoje com uma pitada de constrangimento e uma
desculpa por não os ter visto ultimamente.

A razão para tudo isso é simples: estamos constantemente


mudando — em algumas coisas, para melhor; em outras, para pior;
e, na maior dos casos, nem para melhor nem para pior, apenas
mudando. Nossa vida está intimamente relacionada à mudança. O
tempo muda tudo, e decerto não somos exceção. Mudamos física,
emocional, intelectual e espiritualmente. Chamamos de estáveis as
pessoas cujas mudanças são graduais, e não repentinas, mas,
como quer que as chamemos, elas mudam.

Tudo isso suscita uma pergunta religiosa muito pertinente. Visto que
estamos constantemente em mudança, o que acontece se
mudarmos nossa fé? Afinal, se aqui como alhures estamos sujeitos
à mudança, então um homem, que hoje acredita ser uma pessoa
salva, pode esquecer sua fé amanhã e estar eternamente perdido.
Hoje, podemos deleitar-nos na leitura da Escritura, na oração e na
adoração, mas amanhã podemos odiar essas coisas. Se somos
criaturas mutáveis, então nossa fé pode mudar e deixar-nos sem
salvação.

Ora, há algumas pessoas que acreditam que é assim que as coisas


se dão, que pessoas hoje salvas amanhã podem perder-se para
sempre porque mudaram a fé. Acreditam que não há segurança em
nossa fé e em nossa salvação enquanto a morte não nos
surpreenda no ato de fé. Assim, até que morra, o homem nunca
sabe se conseguirá ou não manter a fé e ser salvo.

Ora, este parece um ponto de vista lógico, mas as pessoas que o


defendem se esquecem de dois fatores essenciais. Primeiro, fazem
da fé uma obra do homem, pela qual este se qualifica para a
salvação, quando, segundo a Escritura, a fé é dom de Deus. Se
nossa salvação depende de nosso ato de fé, ou de qualquer coisa
que fazemos, então a salvação é essencialmente obra nossa e
depende basicamente de nós. Desse modo, não é nada mais, nada
menos que nossas ações que nos salvam: é, em suma, o homem
que se salva a si mesmo. Dizer isso, no entanto, é negar todo o
ensino e a fé cristãos e invalidar o significado da Escritura.

Segundo, a fé não é uma obra ou uma ação do homem, mas dom


de Deus. Como o homem é instável, qualquer coisa que dependa
dele certamente será incerto. A salvação, portanto, nunca será
segura, nesta vida ou na próxima, se depender do homem. Nossa
salvação é segura precisamente porque não depende de nós, mas
do Senhor. Nossa salvação não pode se tornar vazia, porque
nenhum ato do homem pode sobrepor-se a um ato de Deus. O
homem pode alterar o que o homem faz, mas o homem não pode
agir contra Deus nem pode anular os atos de Deus. Nossa salvação,
portanto, é segura e inalienável porque é o dom de Deus, e não
nossa própria fé ou obra.

Está e a doutrina conhecida como segurança eterna ou vocação


eficaz.

Vocação eficaz quer dizer que Deus nos escolhe e chama, nos
justifica e adota, nos guia à santificação e nos recebe em seu
próprio ser. A mudança que se dá com a nossa regeneração não é
uma mudança humana, que em si mesma também está sujeita à
mudança: é um ato de Deus. Como disse o Senhor: Dar-vos-ei
coração novo e porei dentro de vós espírito novo; tirarei de vós o
coração de pedra e vos darei coração de carne. Porei dentro de vós
o meu Espírito e farei que andeis nos meus estatutos, guardeis os
meus juízos e os observeis. (Ez 36.26-27) Deste modo, nossa
salvação é Deus trabalhando em nós e através de nós. Como diz
Paulo: “porque Deus é quem efetua em vós tanto o querer como o
realizar, segundo a sua boa vontade” (Fp 2.13).

O Breve catecismo de Westminster resume assim: P. 31: O que é


vocação eficaz?

R.: Vocação eficaz é a obra do Espírito de Deus, pela qual,


convencendo-nos de nosso pecado e de nossa miséria,
iluminando o nosso entendimento pelo conhecimento de
Cristo·e renovando a nossa vontade, ele nos persuade e
habilita a aceitar Jesus Cristo, que nos é oferecido de graça no
evangelho.
Q. 32: De que benefícios gozam nesta vida aqueles que são
eficazmente chamados?

R.: Aqueles que são eficazmente chamados gozam, nesta


vida, da justificação, da adoção e da santificação, bem como
dos diversos benefícios que acompanham essas graças ou
delas procedem.
27. Santificação
31 de julho de 1956

Os relatos conhecidos das tentativas de eremitas e monges de


alcançar a santidade revelam tanto a intensidade do esforço quanto
uma frustração permanente. Bento, para vencer as tentações do
mundo do qual fugia, fez para si uma cama de espinhos e nela
rolava até que seu corpo estivesse em carne viva, mas tão logo a
dor atenuasse, ainda que por pouco tempo, ele estava novamente à
mercê de sua tentação. Cirita queimou sua carne até os ossos a fim
de vencer a luxúria, mas, depois de queimar, continuou a arder com
seu pecado. Godrico passava noite após noite num rio gelado para
acalmar seu temperamento ardente, congelando a noite toda, mas
ainda sem conseguir obter a vitória. A vitória monástica era
infrutífera: substituía a força da tentação por um corpo semimorto, e
a vitória pela fuga. Os monges e eremitas buscavam sinceramente
vencer a tentação, mas fracassavam, porque a premissa básica de
sua luta não era cristã, mas pagã. Confiavam na força de vontade,
na autoconfiança, para a vitória e, assim, encontravam a derrota e
somavam pecado a pecado. A Bíblia desencoraja toda forma de
autoconfiança e a declara vã: “Tens visto a um homem que é sábio a
seus próprios olhos? Maior esperança há no insensato do que nele”
(Pv 26.12). “Aquele, pois, que pensa estar em pé veja que não caia”
(1Co 10.12).

Esses homens estavam tentando santificar a si mesmos pelo próprio


esforço da vontade e, portanto, falharam. Nossa regeneração, nosso
novo nascimento, é um ato de Deus. Nossa santificação, nosso
crescimento em santidade e justiça, é o ato contínuo de Deus em
nós. Nossa santificação nunca está completa nesta vida, mas é
vitoriosa. Temos a segurança de Deus de que o pecado não terá
domínio sobre aquele que foi regenerado e justificado.

Os monges do deserto encontraram frustração na busca da


santidade porque esta concepção de santificação era
essencialmente negativa e humanista. Era algo que eles
alcançavam ao evitar a tentação. Estava equivocados em sua
autoconfiança assim como estavam equivocados quanto aos meios.
Fugiam de toda sociedade humana para escapar do vinho, das
mulheres e da música; mas o pior encontro não era a luta com
essas coisas, mas com a própria alma. Fugiam de pecados
particulares, mas levavam o princípio do pecado em seu próprio ser.
Não eram os homens, o vinho ou as mulheres que os tentavam,
mas o próprio coração pecaminoso. Não era, portanto, uma questão
de evitar as coisas, mas de ter uma nova natureza, com a vida de
Cristo em seu ser.

Em parte, a santificação significa autoconhecimento, proporcionado


pela obra do Espírito Santo em nós, pela qual nossa autoconfiança
se estilhaça e nossa confiança na graça de Deus aumenta. A
santificação, deste modo, significa crescer na verdade — no
conhecimento — bem como na graça; os dois andam de mãos
dadas. Mediante a santificação, Deus aplica a nós a morte e a
ressurreição de Cristo. E ele aplica a morte de Cristo à nossa vida,
expõe o nosso velho Adão e revela-nos claramente o que somos, a
fim de que pareça a nossos próprios olhos que estamos perdendo a
santidade, em vez de ganhando-a. Nossa velha natureza e nosso
pecado são crucificados e sepultados, e isso continua até a morte,
quando o velho Adão em nós, judicialmente morto desde o momento
de nossa justificação, torna-se agora plenamente morto. No entanto,
Deus também aplica a ressurreição de Cristo a nós, pela qual
somos constantemente renovados segundo o homem interior,
recriados à imagem de Deus, em conhecimento, justiça, santidade e
domínio, e firmados cada vez mais em Cristo à medida que
morremos progressivamente para o pecado. Somos santificados
porque fomos justificados.

Os teólogos de Westminster, em resposta à pergunta “O que é


santificação?” (CMW P. 75), disseram o seguinte:

Santificação é uma obra da graça de Deus, pela qual os que


Deus escolheu antes da fundação do mundo para serem
santos são, nesta vida, pela poderosa operação do seu
Espírito, que aplica a morte e a ressurreição de Cristo a eles,
renovados no homem interior segundo a imagem de Deus,
tendo os germes do arrependimento que conduz à vida, e
todas as outras graças salvadoras implantadas no coração
deles, e tendo essas graças de tal modo estimuladas,
aumentadas e fortalecidas, que eles progressivamente morrem
para o pecado e ressuscitam para a novidade de vida.
28. Adoção
21 de agosto de 1956

Bom dia, amigos. Uma das doutrinas mais gloriosas da Escritura é a


doutrina da adoção. É difícil compreender por que não se dedica
mais atenção a um fato tão grandioso em implicações para o
homem. Ele define o relacionamento do cristão com Deus.

O relacionamento natural de todos os homens com Deus é o das


criaturas, criadas à imagem de Deus, mas, ainda assim,
essencialmente criaturas. A Bíblia não dá nenhum fundamento real
para a crença comum na paternidade universal de Deus. Em vez
disso, ela fala apenas de um Filho de Deus, o único Filho gerado,
Jesus Cristo.

A doutrina da adoção na filiação é o grande acréscimo do Novo


Testamento ao plano da salvação e a fonte constante de alegria dos
apóstolos. Versos e versos falam deste grande privilégio.

[...] nos predestinou para ele, para a adoção de filhos, por meio
de Jesus Cristo, segundo o beneplácito de sua vontade. (Ef
1.5) [...] vindo, porém, a plenitude do tempo, Deus enviou seu
Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei, para resgatar os
que estavam sob a lei, a fim de que recebêssemos a adoção
de filhos. (Gl 4.4-5) Mas, a todos quantos o receberam, deu-
lhes o poder de serem feitos filhos de Deus. (Jo 1.12)
Nenhuma compreensão madura do significado da salvação é
possível sem esta doutrina. O Dr. Gordon C. Clark definiu bem o
significado da adoção com uma ilustração simples. Se o governador
de um estado perdoa um criminoso culpado de crimes muito sérios,
seu ato de perdão de maneira alguma dá ao criminoso uma carta
branca para todas as atividades subsequentes. O homem, afinal,
ainda é capaz de atividades criminosas futuras e ainda está sujeito a
sentenças e julgamentos futuros. Tampouco ele dá um passo além e
recebe o criminoso em sua família como um filho adotado.

Mas é exatamente isso que Deus faz. A salvação começa com o


fato grande e glorioso do perdão dos pecados. Mas este perdão,
nossa justificação, pela qual a perfeita obediência de Cristo e a
plena satisfação é imputada a nós e recebida pela fé, é um ato
judicial e não muda nossa natureza, senão pelo fato de que a
justificação de Deus inclui a fé justificadora, o fruto da regeneração.
Recebemos uma nova natureza, nascemos de novo, e isso quer
dizer que nosso perdão é acompanhado por uma natureza
transformada a fim de que agora vejamos a face de Deus em vez de
fugir dele. Vê-se então esta nova natureza desenvolver sua vocação
submetida a Deus, e isso é santificação.

Mas, além disso, Deus nos recebe em sua família como filhos
adotivos, um privilégio que nunca pode ser revertido ou anulado,
que faz de nós herdeiros de toda a criação de Deus, cuidado
providencial e glória futura, e nos dá a glória de ser participantes da
natureza divina. A adoção nos dá um novo nome, o nome de Deus,
a fim de que nosso coração clame a ele, pelo Espírito, dizendo:
“Aba, Pai”. A adoção nos dá a proteção e o cuidado de filhos de um
pai onipotente e perfeito. A adoção nos dá, ademais, o privilégio da
disciplina e do castigo de um pai amoroso e sábio. Para alguns, isso
pode parecer um privilégio estranho, mas na verdade constitui um
dos privilégios centrais da filiação. À parte dele, sofremos em vão e
cruelmente sob as pancadas de homens e acontecimentos. Com
ele, temos a confiança de que todo o nosso sofrimento trabalha para
nosso bem e para nossa glória nele. A adoção, portanto, é a
plenitude de nossa salvação, a manifestação plena da liberdade
gloriosa de nossa salvação. Em suma, nas palavras dos teólogos de
Westminster (CMW R. 74): Adoção é um ato da livre graça de Deus,
em seu único Filho Jesus Cristo e por amor dele, pelo qual todos os
que são justificados são recebidos no número dos filhos de Deus,
trazem o seu nome, recebem o Espírito do Filho, estão sob o seu
cuidado e suas dispensações paternais, são admitidos a todas as
liberdades e todos os privilégios dos filhos de Deus, e feitos
herdeiros de todas as promessas e co-herdeiros com Cristo em
glória.
29. Marcas
7 de julho de 1953

“Os que confiam no Senhor são como o monte Sião, que não se
abala, firme para sempre. Como em redor de Jerusalém estão os
montes, assim o Senhor, em derredor do seu povo, desde agora e
para sempre” (Sl 125.1-2).

De volta ao país montanhoso de onde venho, as últimas semanas


foram bem cheias. No início da primavera, o rebanho se mostra no
campo assim que a neve desaparece. Então, à medida que o verão
se aproxima, e os bezerros de pernas bambas ganham peso e ficam
robustos e brincalhões, chega o tempo da caça. De volta àquele
país indiano, todos fizeram a mala e se mudaram para as
montanhas, e uma pequena aldeia de tendas brotou em algum lugar
nas montanhas, perto de uma nascente. Os meninos estavam no
paraíso, montando a cavalo até os rios Fawn, Sheep ou Summit,
para alguma pescaria de trutas, ou indo atrás de cervos ou galos
silvestres nos despenhadeiros do entorno. Perto de cada tenda
havia uma fogueira na qual se assavam carne e pão, e muitas vezes
vinham convites calorosos de uma velha indiana: “Espere um pouco
e coma conosco”. Era época de caça.

Perto do curral, os vaqueiros tinham um fogo de artemísia


aquecendo ferros de marcar. Outros estavam preparando para a
injeção e, conforme os bezerros eram trazidos um a um, eram
marcados na orelha, amarrados e ferrados para sempre. Quando
terminavam, e o bezerro corria balindo para sua vaca, levava as
marcas permanentes da propriedade. Um vaqueiro treinado podia
agora reconhecê-lo em qualquer lugar e, com um relance em sua
orelha, pescoço ou lombo, identificá-lo com facilidade. Agora estava
marcado por toda a vida.

Segundo a Bíblia, nós, todos nós, portamos isso que nos marca
clara e facilmente a todos. Podemos olhar ao nosso redor e
reconhecer a vida e o caráter de outros homens e mulheres
prontamente: vemos o fingimento e a hipocrisia: vemo-los
enganarem-se a si mesmos sobre como são maravilhosos, e temos
pena de sua cegueira. A marca é demasiado clara para que a
negligenciemos. A pergunta, então, é esta: que marca portamos?

A velha canção de vaqueiro retrata todos nós seguindo para a última


caçada. No fim da trilha, o grande chefe separa as vacas que têm a
sua marca e as desgarradas. É uma boa imagem, embora seja
humilhante.

Odiamos pensar em nós mesmos como marcados. A todos os


demais, identificamos e classificamos. Marcamo-los como seguros
para o comércio, ou como defeituosos, como um bom amigo ou uma
maledicência ou fofoca com segundas intenções. Na autodefesa e
com base no senso comum, temos de discernir entre duas pessoas.
Podemos confiar nelas inteiramente ou ser ressabiados em tudo.
Mas odiamos pensar em nós como classificados ou marcados por
homens e mulheres; e tendemos a rebelar-nos contra a ideia de que
Deus faz o mesmo. Mas a ideia do cristianismo é que ele faz.

Uma das coisas que costumavam surpreender-me era o modo como


os vaqueiros conseguiam reconhecer seu rebanho. Muitas vezes,
via um vaqueiro reconhecer uma vaca velha, em nada diferente a
meus olhos de qualquer outra Hereford de cara branca em centenas
ou talvez milhares, e dizer: “Aquela ali é minha: ela está seca agora.
Tive-a de uma das vacas secas que comprei”. Ou ele diria de um
bezerro desgarrado e sem marca que ele não via desde pouco
depois de seu nascimento: “Aquele bezerro é meu, nascido dessa
ou daquela novilha”. Eu costumava perguntar: como você sabe?
Todas se parecem iguais para mim! Ele diria: “Eu conheço as que
me pertencem”.

Essa é uma resposta especialmente impressionante, porque a Bíblia


nos diz que Cristo diz o mesmo a nosso respeito: “Conheço as
minhas ovelhas e chamo-as pelo nome” (veja João 10.14). De
outras, diz ele: “Apartem-se de mim. Não os conheço. Vocês são
estranhos a meu aprisco” (veja Mt 7.23).

Será que ele conhece bem a você e a mim? Será que ele nos
chama pelo nome?

Paulo, outrora um fariseu hipócrita que sentia que pertencia a Deus


porque guardava a lei, ia para a igreja, e sempre era zeloso pela
causa, só depois percebeu sua hipocrisia e depositou sua fé em
Cristo em vez de em si mesmo, a ponto de poder dizer
honestamente: “Porque eu trago no corpo as marcas de Jesus” (veja
Gl 6.17).

A Bíblia está cheia de conversa sobre marca, às vezes traduzida


como selo ou sinal. Ela fala da marca de Caim, o assassino e
errante, que fazia de sua vontade sua lei. Ezequiel fala da marca do
hipócrita, que finge ser santo e secretamente suspira pelo pecado. E
João fala da marca da besta, a marca dos homens que se entregam
pronta e facilmente a tudo neste mundo exceto a Cristo. Sua mente
e sua vida são avenidas abertas a todo tipo de trânsito, exceto o tipo
certo. Eles têm tempo para tudo, exceto o Senhor. Eles podem dar
tempo a trivialidades ao longo do ano, mas nada tão importante
quanto Deus pode levar um minuto. Estão sempre com pressa e
sem nunca conseguir fazer nada que importa, prontos para crer em
qualquer coisa, exceto o que conta. Este é o tipo de vida que marca
todos nós até que a caçada de verão nos tire do rebanho e coloque
a marca de Cristo em nós. Então, pertencemos a algo mais e nossa
vida tem um propósito e leva a marca da propriedade de Deus.

Olhemos para nossa vida e vejamos que marca é essa que está em
nós.
30. O que é a fé?
10 de agosto de 1954

Bom dia, amigos. Em semanas recentes, estivemos discutindo


certas doutrinas que muitas pessoas considerariam remotas e
abstratas. Uma opinião comum diz que podemos acreditar no que
quisermos, desde que tenhamos a disposição adequada. Em outras
palavras, sua religião não é importante; suas atitudes são. Você
pode ser budista ou maometano, modernista ou cristão ortodoxo, e
isso não faz diferença alguma desde que seu coração seja justo,
isto é, desde que você tenha a disposição adequada, desde que
tenha fé.

Essa opinião, infelizmente, é muito popular. Ela envolve uma


falência religiosa completa e uma concepção incrivelmente absurda
de fé. Afinal, o que é fé? Em si mesma, a fé não é nada e não tem
valor algum. A menos que haja conhecimento, compreensão e
apropriação da verdade por trás dela, a fé de uma pessoa pode ser
uma tolice e um estorvo.

Coloquemos o problema numa base mais simples e prática. Se creio


que tenho um milhão de dólares no banco, minha fé será uma tolice,
a menos que de fato eu tenha esse dinheiro. Toda ação baseada
numa fé falsa envolve não só tolice, mas perigo. Para mim,
preencher de boa fé o cheque de uma conta bancária inexistente é
um convite a problemas sérios, não importa o quanto minha fé seja
firme. Conheço um homem bondoso, agora internado num hospício,
que acredita sinceramente que é um fazendeiro muito rico com
vastas propriedades em dois estados e muitos milhões em vários
bancos. Ele está suficientemente convicto em sua fé para convencer
as pessoas disso sempre que é liberado, com o resultado de que
cheques sem fundos são escritos, os quais voltam e redundam em
seu novo confinamento. Sua fé não torna os cheques bons, e
comparar este homem e sua fé a um homem que pode escrever
cheques bons é tolice. De maneira semelhante, não podemos
equiparar um homem com fé numa falsa religião a um homem que
tem a fé verdadeira. Ter a fé como tal, ou uma disposição adequada,
ou sinceridade, não basta.

Uma fé válida deve, portanto, fundar-se em conhecimento, e o


conhecimento deve sustentar as conclusões da fé. Ter fé em Deus
significa não só acreditar que ele existe, mas conhecê-lo em sua
revelação. A fé não é nada em si mesma; homem algum jamais foi
salvo graças a sua fé, mas somente pela fé, ou por meio de sua fé.
Como expressou Machen: “A fé é meramente o meio que o Espírito
Santo usa para aplicar à alma individual os benefícios da morte de
Cristo”.

Assim, a fé não é alguma qualidade da alma, uma disposição


adequada ou uma boa atitude. A fé, segundo a Bíblia, é “a
substância das coisas que se esperam” (Hb 11.1). A fé, portanto, é a
apreensão real e a posse parcial agora de coisas que, em última
análise, estão além de nós. Isso quer dizer que ter fé em Jesus
Cristo é ter fé numa pessoa que está além de nós e é invisível a
nós. Ele é nossa esperança para o futuro e por toda a eternidade e,
no entanto, não o vimos ou tocamos nele. A fé verdadeira, contudo,
é a substância dessas coisas também, e significa não só conhecê-lo
no futuro, mas tê-lo hoje em nossa vida. Se temos Cristo em nossa
vida em verdade e poder, não temos sua plenitude, mas de fato
temos sua substância. Ter fé em Cristo também quer dizer ter a
Cristo. Crer num céu que virá a nós também significa ter a
substância desse céu, embora não tenhamos sua plenitude hoje. Se
cremos que Deus concede paz e amor a seu povo porque ele é a
nossa paz, e é amor, então manifestamos a substância dessa paz e
desse amor em nossa vida cotidiana. Se nossa fé está num mundo
ímpio ou num mundo que saiu do controle do Todo-Poderoso, então
manifestamos a substância dessa fé em incerteza, instabilidade e
preocupação.

Assim, vemos que, em primeiro lugar, a fé pressupõe conhecimento;


em segundo lugar, que é a substância das coisas que se esperam, a
prova das coisas que não se veem; e, por fim, temos de ver que a fé
não “está fazendo” coisa alguma, mas, em vez disso, recebendo
algo. A fé, em si mesma a obra de Deus em nós, quer dizer que
recebemos o Senhor e sua salvação como dádiva. A fé não é um
ato de nossa parte, mas nossa recepção do ato de Deus em Jesus
Cristo.

No Breve catecismo e no Catecismo maior de Westminster, lê-se o


seguinte: P. 30: Como o Espírito aplica a nós a redenção adquirida
por Cristo?

R.: O Espírito aplica a nós a redenção adquirida por Cristo


operando em nós a fé, e unindo-nos a Cristo por meio dela em
nossa vocação eficaz.

P. 72: O que é fé justificadora?


R.: A fé justificadora é uma graça salvadora, operada no
coração do pecador pelo Espírito e pela Palavra de Deus, pela
qual, sendo ele convencido do seu pecado, da sua miséria e
da sua incapacidade, e das demais criaturas, para o restaurar
desse estado, ele não somente aceita a verdade da promessa
do evangelho, mas recebe Cristo e confia nele e na sua justiça,
que lhes são oferecidos no evangelho para o perdão dos
pecados, e para que a sua pessoa seja aceita e considerada
justa diante de Deus para a salvação.

P. 73: Como a fé salvadora justifica o pecador diante de Deus?

R.: A fé justifica um pecador diante de Deus, não por causa


das outras graças que sempre a acompanham, nem por causa
das boas obras que são os frutos dela, nem como se fosse a
graça da fé, ou qualquer ato dela, que lhe é imputado para a
justificação, mas unicamente porque a fé é o instrumento pelo
qual o pecador recebe e aplica a si Cristo e a justiça.
31. Fé salvadora
28 de agosto de 1956

Bom dia, amigos. A fé religiosa frequentemente é recomendada em


revistas populares como uma panaceia para os males da sociedade,
e supõe-se que os problemas e fardos do homem desapareceriam
se tão somente crêssemos. Mas crêssemos em quê? Aqui os
escritores geralmente são vagos. Insistem que a fé é a resposta,
mas não especificam fé em quê. Com muita frequência, as pessoas
insistem em dizer que as diferentes igrejas e até religiões deveriam
trabalhar juntas sem tergiversar acerca de pontos de doutrina e
artigos de fé. A falácia de tal pensamento pode ser ilustrada com
referência a uma liga de futebol. Seria possível que oito equipes
constituíssem uma liga se uma insistisse em jogos com seis
jogadores, outra com onze, uma banisse todas as partidas, outra
insistisse no direito de mudar as regras à vontade, enquanto outra
ainda declarasse que suas próprias regras lhes permitiam fazer o
que quisessem, desde que fossem sinceros? O resultado, claro,
seria o fim do futebol. Um conjunto de regras uniformes e comuns
deve prevalecer antes que os times possam se enfrentar, ou um
único time poderá estar preparado.

De semelhante modo, a fé é sem sentido a menos que seja


específica e verdadeira; para o cristão, a fé salvadora é a verdadeira
fé cristã e nenhuma outra. Nas palavras da Confissão de fé de
Westminster: “Por esta fé, um cristão crê ser verdade tudo quanto é
revelado na Palavra, pela autoridade do próprio Deus que fala nela”
(CFW 14.2). Assim, a fé nas fadas ou em falsos deuses nunca é a fé
verdadeira ou salvadora. A única fé válida é aquela que se relaciona
de modo preciso e específico com a realidade.

Portanto, a Bíblia é o meio da fé. Nas palavras de Paulo, “A fé vem


pelo ouvir, e o ouvir pela palavra de Deus” (Rm 10.17). A Bíblia
nunca é o objeto de fé, mas, em vez disso, o meio da fé. Cristo, e
por Cristo o Deus triúno, é o objeto da fé.

A fé não é simplesmente um ato da vontade, nem um ato da razão,


um assentimento ao verdadeiro ensino, mas um ato da pessoa
inteira pelo qual se rende e se submete a Cristo para a salvação. É
a obra do Espírito Santo, por meio da Palavra, fortalecida em nós
pela Palavra, pelos sacramentos, pela oração e pela caminhada
cristã. A Confissão de fé de Westminster declara que “os principais
atos da fé salvadora são: aceitar e receber a Cristo e firmar-se só
nele para a justificação, santificação e vida eterna, pela virtude do
pacto da graça”.

A fé nos leva à união pessoal com Cristo, de modo que Cristo agora
vive em nós, e nós em Cristo. Diz Lutero:

A fé deve ser ensinada de modo puro: isto é, que tu e ele vos


tornais como uma só pessoa: de modo que podes dizer com
ousadia “Sou um com Cristo, o que significa que a justiça, a
vitória e a vida de Cristo são minhas”. E, de novo, Cristo pode
dizer: “Eu sou um com aquele pecador: ou seja, os pecados
dele e a morte dele são minhas, porque ele está unido a mim e
eu a ele”. Pela fé, estamos tão unidos que nos tornamos uma
só carne, somos membros do corpo de Cristo, carne de sua
carne e osso de seus ossos: de modo que esta fé me une a
Cristo de modo mais próximo que o marido se une a sua
mulher.

Essas lindas palavras enfatizam um aspecto importante da fé.


Muitas vezes, os homens se sentem sozinhos em sua fé, postos em
circunstâncias difíceis sob uma obrigação de viver pacificamente
que limita sua resistência enquanto aumenta seu fardo. Estar em
Cristo não raro quer dizer estar à prova. Mas isso não é tudo. Cristo
está envolvido em toda a nossa vida: nunca estamos sozinhos.
Nosso fardo é o fardo dele; nosso problema é problema dele; e
nossa libertação é a libertação dele. “Portanto, não temeremos
ainda que a terra se transtorne e os montes se abalem no seio dos
mares. [...] O Senhor dos Exércitos está conosco; o Deus de Jacó é
o nosso refúgio” (Sl 46.2, 11).

Mais do que isso, porque Cristo está conosco, a fé salvadora


sempre tem como sua dimensão magnificente a esperança,
“aceitando as promessas de Deus para esta vida e para a futura”
(CFW 14.2). Sabemos que “a tribulação produz perseverança; e a
perseverança, experiência; e a experiência, esperança. Ora, a
esperança não confunde, porque o amor de Deus é derramado em
nosso coração pelo Espírito Santo, que nos foi outorgado” (Rm 5.3-
5). “Se Deus é por nós, quem será contra nós?” (Rm 8.31). A vida
de fé é uma vida de esperança, uma vida de promessa e uma vida
de realização, porque é uma vida vivida em Cristo e na glória de seu
poder salvador.
32. Do arrependimento para a vida
3 de setembro de 1956

Bom dia, amigos. Uma palavra bíblica muito mal compreendida é


arrependimento. Para muita gente, arrependimento quer dizer
lamentar os pecados. Contudo, pesar não é arrependimento. Muitas
pessoas lamentam seus pecados porque as consequências lhes
causaram problemas, não porque odeiem o pecado em si mesmo. O
verdadeiro arrependimento significa, em primeiro lugar, odiar o
pecado; em segundo lugar, envolve uma mudança de direção, uma
meia-volta do pecado e um caminhar em direção a Deus, confiando
nele; e, terceiro, obediência ativa ao Senhor. Arrependimento e
conversão são as mesmas palavras, derivadas das mesmas
declarações bíblicas, mas conversão, em nossos dias, perdeu o
significado original, que é dar meia volta, mudar de direção, e
passou, em vez disso, a equivaler a nascer de novo.

Quando Deus, por sua graça salvadora, regenera um homem, essa


vida nova revela-se imediatamente em arrependimento.
Arrependimento, portanto, é o fruto de uma vida transformada, o
resultado da regeneração.

Gordon H. Clark fala do arrependimento como um processo vitalício,


um aspecto do arrependimento que raramente levamos em conta,
mas que, todavia, é central. Muitas vezes, a ênfase no
arrependimento é relegada ao pecador recém-chegado a Cristo.
Decerto, tal arrependimento é da máxima importância. O pecador
precisa ser informado de que o pecado está sob a condenação de
Deus, mas que nenhum pecado é tão grande que possa trazer
condenação ao que verdadeiramente se arrepende. Somos instados
a confessar diante de Deus, não dos homens, e de modo privado,
não público. A confissão deve ser específica, mas não precisa ser
detalhada ou exaustiva. Não é a confissão total ou exaustiva que
assegura o perdão dos pecados, mas a graça de Deus, que estende
o perdão ao humilde e contrito de coração. Se ofendemos os outros,
precisamos buscar o perdão deles também, com uma simples
confissão de nossa ofensa; no entanto, mais uma vez, não é o ato
de confissão ou de seus detalhes que são valiosos, mas o coração
arrependido.

Entretanto, o arrependimento não termina em nossa salvação. É um


resultado contínuo dela. Porque nossa santificação não é completa,
e porque diariamente falhamos em nossa obediência, precisamos
orar diariamente em busca de perdão. O arrependimento é um
processo para a vida toda, e seu resultado é o crescimento contínuo
em graça e santidade.

Outro resultado do arrependimento é a bem-aventurança ou


felicidade. Diz-nos o salmista:

Bem-aventurado aquele cuja iniquidade é perdoada, cujo


pecado é coberto. Bem-aventurado o homem a quem o Senhor
não atribui iniquidade e em cujo espírito não há dolo.
Confessei-te o meu pecado e a minha iniquidade não mais
ocultei. Disse: confessarei ao Senhor as minhas
transgressões; e tu perdoaste a iniquidade do meu pecado.
Muito sofrimento terá de curtir o ímpio, mas o que confia no
Senhor, a misericórdia o assistirá. Alegrai-vos no Senhor e
regozijai-vos, ó justos; exultai, vós todos que sois retos de
coração. (Sl 32.1-2, 5, 10-11) Felicidade é o resultado do
arrependimento, porque o homem arrependido caminha em
confiança não só do perdão, mas na alegria crescente da
vitória. Pecados e tentações passados tornam-se os meios da
graça presente rumo à vitória futura. Segundo John Bunyan:
“As tentações, quando as encontramos pela primeira vez, são
como o leão que ruge diante de Sansão; mas, se as
vencemos, na próxima vez em que as virmos, encontraremos
um favo de mel dentro delas”. O arrependimento para a vida,
portanto, torna-se, para nós, não só uma graça salvadora, mas
uma graça sustentadora. Ele se volta para o Senhor na
confiança de seu amor e cuidado e de sua graça até a vitória
em nossa vida. Pode-se dizer, nas palavras de um cristão
indiano:
Se há algum valor em mim
Este vem de ti somente
Guarda-me, ó Deus, e assim
guardas o que a ti pertence.
(Narayan Vaman Tilak, 1861-1919)
33. O significado da pureza
10 de janeiro de 1956

Bom dia, amigos. Visto que a pureza é uma exigência cristã, é


importante, para nós, entender o significado da palavra pureza
conforme usada na Bíblia, particularmente em sua língua básica, o
hebraico. A palavra inglesa puro chegou a nós via o latim purus, que
quer dizer limpo, e nossa concepção básica de pureza é matizada
por essa derivação latina. Assim, quando lemos a palavra puro na
Bíblia, naturalmente tendemos a pensar à luz de seu significado
latino e inglês em vez de em sua significância bíblica. Para nós,
portanto, puro quer dizer limpo, intocado, imaculado, virginal. Para
nós, é algo enquanto ainda não estragado pela sujeira e imundícia
do mundo, intocado pelo pecado e pela tentação, e serenamente
virginal em sua existência.

Este é o significado inglês, e embora haja traços do significado de


limpo em algumas palavras usadas para pureza em hebraico, de
modo geral não é seu significado normal. Diversas palavras usadas
na Bíblia são comumente traduzidas em inglês como puro. Essas
palavras significam claro, escolhido, liberdade, batido, livre,
absolvido, refinado, provado e separado.

Assim, quando o salmo 19.8 diz que todo “preceito do Senhor é


puro”, isso quer dizer que todo mandamento é claro — mais do que
isso, esclarecedor, como o sol (Ct 6.10).

O salmo 12.6 aponta claramente para o significado de puro quando


declara: “As palavras do Senhor são palavras puras, prata refinada
em cadinho de barro, depurada sete vezes”. Assim, a pureza
envolve a depuração da escória e o refinamento pelo fogo, uma
separação do ser e da falsidade.

Quando Daniel 7.9 fala do Ancião de Dias cujo cabelo é como “pura
lã”, ele nos diz que seu cabelo é branco ou grisalho, ou seja,
envelhecido. Mas a palavra usada para puro, aqui, significa livre,
inocente, absolvido, ideias que, em vez de estarem associadas com
a infância imaculada, como em inglês, aqui estão associadas a
idade e experiência imensas.

Mais uma vez, quando 1 Reis 5.11 fala de “vinte coros de azeite
[puro]”, isso significava vinte coros de azeite batido (em vez de
esmagado), sendo o azeite extraído pela batida.

Essas poucas ilustrações são suficientes para indicar a diferença


radical entre nossa concepção inglesa comum de pureza e a
doutrina bíblica da pureza. A palavra inglesa tende a supor que
pureza é uma condição inerente a certas coisas desde o princípio;
nosso pressuposto comum relaciona a palavra puro a palavras
como virginal e imaculado. Para nós, a pureza pode ser retratada
como um cordeirinho recém-nascido ou um bebezinho rosado.

O conceito bíblico de pureza supõe, em vez disso, uma impureza


original, e a pureza vem como resultado de um processo de
refinamento, seleção, separação, limpeza, batida, depuração e
libertação. Para ser pura em sentido bíblico, uma pessoa muito
provavelmente será idosa e experiente, provada no fogo da aflição,
queimada e depurada pela tentação enfrentada e por fim vencida,
batida pelas experiências até que a escória em nosso ser seja
purgada de nós, e separada de nosso ego e falsidade para uso do
Senhor. Assim, pureza não é algo que perdemos à medida que
crescemos, mas algo que nos esforçamos por obter, pela graça de
Deus, ao longo das experiências difíceis da vida e por meio das
experiências da vida. Assim, em vez de ser um fato passado, a
pureza, para o cristão, é uma luta e uma depuração presentes e
uma vitória futura.

O Senhor nos escolheu, ou seja, nos purificou, na fornalha da


experiência recebida da mão do Senhor e em seu Espírito. Como
disse Isaías, a palavra do Senhor é clara a respeito de seu povo:
“Eis que te acrisolei, mas disso não resultou prata; provei-te na
fornalha da aflição” (Is 48.10).
34. O processo educacional de Deus
24 de janeiro de 1956

Bom dia, amigos. Uma de nossas ilusões persistentes é a


esperança de que nossa educação pode ser um processo fácil.
Porque as salas de aula hoje muitas vezes são lindamente
convidativas, os livros didáticos atraentes, presumimos que a
educação pode ser reduzida a um processo inofensivo. Nunca
funciona assim. Educação envolve, no sentido mais verdadeiro, uma
remodelação de nossa vida, e remodelar o corpo e a alma é um
processo doloroso. Deste modo, enquanto o homem tenta tornar a
educação inofensiva e ineficaz, Deus lida conosco de maneira
franca e com toda a honestidade rigorosa que a educação requer.

Deus sabe, decerto, que somos preguiçosos e que muito de nossa


atividade é preguiçosa, cujo propósito é fugir das exigências mais
básicas da vida. Entregues à própria sorte, somos inclinados a
tomar a Deus e sua Palavra de modo casual e confortável. De
imediato minimizamos a força de todas as suas exigências e
insistimos que a vontade de Deus para nós deve ser um chamado
brando e uma escala de preferência.

A resposta de Deus a isso é destruir nossa complacência. Ademais,


ele permite que Satanás nos peneire como trigo (Lc 22.31). O
peneiramento do trigo é um processo árduo; o peneiramento dos
homens é muito mais rigoroso. Envolve um chacoalhão de nosso
ser mais íntimo, a abertura da vida pelo medo e pavor e um total
desamparo à medida que sentem o poder de Satanás ao redor
deles. Mas nunca podemos verdadeiramente conhecer e temer a
Deus até que também tenhamos conhecido e temido Satanás. Até a
enormidade e poder do mal e do pecado se tornar vívida e real para
nós, não estamos prontos para castigar nossa autossuficiência e
lançar-nos nas mãos de Deus.

Nosso Senhor disse a Pedro, que se gloriava de sua força, que


Satanás o peneiraria; então, depois de peneirar, a força viria, e
Pedro teria esta responsabilidade: “fortalece teus irmãos” (Lc 22.32).
Pedro, mais tarde, fez isso, e suas cartas serviram para fortalecer a
Igreja Primitiva ao prepará-la para a realidade de tentações e
provações, para a realidade do processo educacional de Deus.

“O fim principal do homem é glorificar a Deus e gozá-lo para


sempre” (CFW R.1). Este é nosso objetivo educacional, e antes que
possa ser alcançado, nossa autoglorificação é destruída, e todas as
nossa tentativas de gozar de outras coisas em detrimento do Senhor
se tornam frustração e pesar. A mão do Senhor deve ser vista em
toda a nossa vida, e seu poder impressionante há de ser percebido,
a fim de que possamos viver na urgência não de nossas
necessidades, mas de sua vontade. Como disse Paulo: “E assim,
conhecendo o temor do Senhor, persuadimos os homens” (2Co
5.11).

Todas essas coisas estamos prontos para entender ao lidar com


nossos filhos, mas somos relutantes em entender como Deus lida
conosco. Não reconhecemos que somos apenas crianças crescidas,
e os piores bebês são adultos. Muitas vezes nos queixamos de
bebês que se recusam a ser homens enquanto insistimos que Deus
nos trate como anjos. Antes que fôssemos desmamados e
pudéssemos andar, pedimos asas e, ao nada obter, começamos a
duvidar da sabedoria de Deus. Quanto mais prontamente
recebemos a educação, mais prontamente supomos a
responsabilidade e o privilégio que vêm com ela.

Moffatt traduz Hebreus 12.11 assim: “A disciplina sempre parece por


um tempo algo doloroso, não alegre; mas aqueles que são treinados
por ela colhem o fruto disso mais tarde na paz de uma vida reta”.

Se deixamos de receber o processo educacional de Deus com paz,


paciência e consagração, então a “raiz de amargura” cresce em nós
até contaminar tudo em nós e ao nosso redor. Recebemo-la,
portanto, à medida que Deus a dá, como graça e amor, e tendo-a
recebido assim, recebemos também os resultados desse dom:
força, alegria e vitória em Jesus Cristo e por meio dele.
35. “Não se turbe o vosso coração”
14 de dezembro de 1954

Bom dia, amigos. Há alguns capítulos da Escritura que abrem


caminho ao coração de um número incontável de pessoas de um
modo especialmente íntimo. Uma dessas passagens é nossa leitura
de hoje, João 14. Ouçamos o que nosso Senhor tem a dizer neste
capítulo: Não se turbe o vosso coração; credes em Deus, crede
também em mim. Na casa de meu Pai há muitas moradas. Se assim
não fora, eu vo-lo teria dito. Pois vou preparar-vos lugar. E, quando
eu for e vos preparar lugar, voltarei e vos receberei para mim
mesmo, para que, onde eu estou, estejais vós também. E vós
sabeis o caminho para onde eu vou. Disselhe Tomé: Senhor, não
sabemos para onde vais; como saber o caminho? Respondeu-lhe
Jesus: Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida; ninguém vem ao
Pai senão por mim. Se vós me tivésseis conhecido, conheceríeis
também a meu Pai. Desde agora o conheceis e o tendes visto.
Replicou-lhe Filipe: Senhor, mostra-nos o Pai, e isso nos basta.
Disselhe Jesus: Filipe, há tanto tempo estou convosco, e não me
tens conhecido? Quem me vê a mim vê o Pai; como dizes tu:
Mostra-nos o Pai? Não crês que eu estou no Pai e que o Pai está
em mim? As palavras que eu vos digo não as digo por mim mesmo;
mas o Pai, que permanece em mim, faz as suas obras. Crede-me
que estou no Pai, e o Pai, em mim; crede ao menos por causa das
mesmas obras. Em verdade, em verdade vos digo que aquele que
crê em mim fará também as obras que eu faço e outras maiores
fará, porque eu vou para junto do Pai. E tudo quanto pedirdes em
meu nome, isso farei, a fim de que o Pai seja glorificado no Filho. Se
me pedirdes alguma coisa em meu nome, eu o farei. Se me amais,
guardareis os meus mandamentos. E eu rogarei ao Pai, e ele vos
dará outro Consolador, a fim de que esteja para sempre convosco, o
Espírito da verdade, que o mundo não pode receber, porque não o
vê, nem o conhece; vós o conheceis, porque ele habita convosco e
estará em vós. Não vos deixarei órfãos, voltarei para vós outros.
Ainda por um pouco, e o mundo não me verá mais; vós, porém, me
vereis; porque eu vivo, vós também vivereis. Naquele dia, vós
conhecereis que eu estou em meu Pai, e vós, em mim, e eu, em
vós. Aquele que tem os meus mandamentos e os guarda, esse é o
que me ama; e aquele que me ama será amado por meu Pai, e eu
também o amarei e me manifestarei a ele. Disselhe Judas, não o
Iscariotes: Donde procede, Senhor, que estás para manifestar-te a
nós e não ao mundo? Respondeu Jesus: Se alguém me ama,
guardará a minha palavra; e meu Pai o amará, e viremos para ele e
faremos nele morada. Quem não me ama não guarda as minhas
palavras; e a palavra que estais ouvindo não é minha, mas do Pai,
que me enviou. Isto vos tenho dito, estando ainda convosco; mas o
Consolador, o Espírito Santo, a quem o Pai enviará em meu nome,
esse vos ensinará todas as coisas e vos fará lembrar de tudo o que
vos tenho dito. Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou; não vo-la dou
como a dá o mundo. Não se turbe o vosso coração, nem se
atemorize. Ouvistes que eu vos disse: vou e volto para junto de vós.
Se me amásseis, alegrar-vos-íeis de que eu vá para o Pai, pois o
Pai é maior do que eu. Disse-vos agora, antes que aconteça, para
que, quando acontecer, vós creiais. Já não falarei muito convosco,
porque aí vem o príncipe do mundo; e ele nada tem em mim;
contudo, assim procedo para que o mundo saiba que eu amo o Pai
e que faço como o Pai me ordenou. Levantai-vos, vamo-nos daqui.
(Jo 14.1-31) A substância deste capítulo é a resposta do Senhor a
quatro perguntas de seus discípulos. Ele havia anunciado que os
estava deixando, e estes ficaram muitíssimo perturbados. Simão
Pedro perguntou: “Senhor, para onde vais?” e a resposta que
recebeu foi que ele não o poderia seguir ainda. O Senhor estava
indo abrir caminho para as muitas moradas do Pai e dar-lhes a
plenitude de seu reino, a vida eterna.

Tomé fez a segunda pergunta: “Como podemos saber o caminho?”.


Respondeu-lhe Jesus: “Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida;
ninguém vem ao Pai senão por mim”. A única forma de aproximar-
se de Deus Pai é por intermédio de Jesus Cristo. O único caminho
para Deus é conhecer Jesus Cristo. A verdade, declarou Jesus, não
é algo abstrato, não uma série de fatos aleatórios nem dados
experimentais. A verdade é uma pessoa, e essa pessoa é Jesus
Cristo.

A terceira pergunta veio de Filipe, que pediu: “Mostra-nos o Pai”. A


resposta de Jesus foi uma reprimenda: “Filipe, há tanto tempo estou
convosco, e não me tens conhecido? Quem me vê a mim vê o Pai”.
Em outras palavras, Jesus declarou que era Deus encarnado. Vê-lo
era ver a Deus. Jesus é Deus em carne, e sua própria insistência
era que esta identificação com Deus era plena e completa.

A quarta pergunta veio de Judas, não o Iscariores, que queria saber


como Jesus planejava continuar com eles, mas não com o mundo.
Jesus declarou união com seu povo como um corpo e a
identificação deles neste ato de graça. Jesus sempre estará
presente com seu povo porque, segundo a promessa, ele se tornou
um com eles. Consequentemente, estamos perto de Deus porque
somos membros de seu corpo.

Nosso Senhor, portanto, declarou: “Não se turbe o vosso coração”,


porque, como membros dele, somos membros daquela vitória
grandiosa e definitiva. O príncipe deste mundo veio e não tem direito
sobre nós, por causa de nossa membresia em Cristo. A verdadeira
vitória não é contra Roma, ou contra algum inimigo humano, mas
contra o velho Adão em nós, contra o pecado e a morte. E essa a
vitória Jesus Cristo obteve por nós. As pequenas coisas que nos
perturbam e incomodam estão aqui hoje e amanhã já se foram.
Nenhuma delas tem importância perante a eternidade. A verdadeira
paz decorre da vitória sobre nós mesmos, e esta vitória só é nossa
em Jesus Cristo. Quando Jesus Cristo disse aos discípulos “Não se
turbe o vosso coração”, ele imediatamente lhes disse como
encontrar a paz. O que ele disse foi o seguinte: “Credes em Deus,
crede também em mim”. Quando cremos nele segundo a Palavra,
ele nos dá sua vitória, seu consolo e sua paz.

Ele nos diz: “Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou; não vo-la dou
como a dá o mundo. Não se turbe o vosso coração, nem se
atemorize” (v. 27).
36. “Que poderá fazer o justo?”
26 de outubro de 1954

Bom dia, amigos. Um salmo muito importante para esta época


turbulenta é o salmo 11. Foi escrito por Davi sob circunstâncias
muito difíceis e tentadoras. Embora muitos não o percebessem, a
nação havia passado às mãos de homens maus e inescrupulosos.
O Rei Saul e seus assistentes estavam claramente comprometidos
com o mal, embora a nação continuasse como antes, sem saber da
extensão da mudança no governo. A popularidade de Davi
minguara, e sua grande vitória fora esquecida. Como resultado,
muitos consideravam sem esperança a causa de Davi, e davam-lhe
um conselho prático: fuja para os montes e salve a própria pele.
Esses homens estão mirando em você, e miram para destruí-lo.
“Ora, destruídos os fundamentos, que poderá fazer o justo?” (v. 3).

Há muita gente que pronuncia o mesmo brado em nossos dias.


Muitos fizeram essa pergunta, por exemplo, durante as audições de
Kefauver alguns anos atrás. Essas audiências, e outras também,
revelaram uma rede oculta e despercebida de crime organizado em
toda a nação, um governo mau por trás de muitos governos locais.
Ao nosso redor, vemos, também, indiferença às coisas do Senhor, à
Escritura e aos Dez Mandamentos. Vemos a nação em busca da
segurança, mas indiferente à verdade, mais preocupada com a
prosperidade que com a justiça. E, o pior de tudo, vemos que esses
homens não veem as condições que a cada dia ficam mais óbvias.
Assim, podemos compreender o sentimento dos amigos de Davi —
bons, mas pessimistas — que diziam: “Ora, destruídos os
fundamentos, que poderá fazer o justo?”. Para eles, a solução
estava clara: fugir para os montes, salvar a própria pele e esquecer
de tudo.

A resposta de Davi a este conselho foi resoluta: “No Senhor me


refugio. Como dizeis, pois, à minha alma: Foge, como pássaro, para
o teu monte?” (v. 1). Davi foi forçado por algum tempo a fugir para o
monte, não para escapar da luta por justiça, mas somente para
continuá-la. Esta era sua confiança: O Senhor está no seu santo
templo; nos céus tem o Senhor seu trono; os seus olhos estão
atentos, as suas pálpebras sondam os filhos dos homens. O Senhor
põe à prova ao justo e ao ímpio; mas, ao que ama a violência, a sua
alma o abomina. (Sl 11.4-5) Assim, Davi deu uma resposta dupla
àqueles que diziam “Que poderá fazer o justo?”. O justo, declarou
ele, pode pôr sua confiança no Senhor. Isso quer dizer que pode ter
confiança na justiça segura e infalível de Deus. Os tribunais deste
mundo sempre são falhos e todos demasiado corruptos, mas a
decisão final não está nas mãos deles. Muito acima e além de todos
os tribunais deste mundo está a grandiosa e suprema corte do Deus
Todo Poderoso, e não há apelos nem recursos a seus julgamentos.
E Deus odeia o mal em todas as suas manifestações: “ao que ama
a violência, a sua alma o abomina” (v. 5). Não há triunfo para o mal,
porque todas as suas vitórias aparentes têm o juízo de Deus contra
elas. “Que poderá fazer o justo?” Pode pôr sua confiança no Senhor,
que reina sozinho e que enfim confundirá toda injustiça.

A segunda coisa que o justo pode fazer é isto: pode continuar a ser
justo. É essa a sua força e certeza de vitória. “Porque o Senhor é
justo, ele ama a justiça; os retos lhe contemplarão a face” (v. 7). A
perspectiva da fé é a da segurança e da certeza garantida. O
caráter difuso e mascarado do mal é difícil de apreender,
perturbador de ver, e muitas vezes leva-nos a visões pessimistas.
Somos tentados a concordar com os bons amigos de Davi, que
perguntavam “Que poderá fazer o justo?”.

A declaração de Davi, no entanto, permanece: “Deus está com a


linhagem do justo” (Sl 14.5). O Senhor está presente entre os justos
para defendê-los e fortalecê-los. Ele transforma em bem cada
derrota; coroa cada vitória com suas bênçãos.

A história dá testemunho da graça e do poder de Deus. De novo e


de novo, o Senhor transforma nossa derrota ou problema em vitória.
Que momento sombrio para a igreja, quando, ainda em germe, era
perseguida por Saulo e obrigada a fugir para um refúgio em outras
cidades. E Paulo, então chamado Saulo, viajou com companheiros
em direção a Damasco, e tinha autoridade e ordem do sumo
sacerdote para levar presos os cristãos, homens e mulheres, até
Jerusalém (veja At 9.2). Mas, naquele momento, o Senhor, em vez
disso, atou as mãos e os pés de Saulo com sua graça soberana e
enviou-o para a igreja como um novo homem.

O Senhor é zeloso dos seus; ele lembra seus filhos… Prostrai-


vos diante dele, ó poderosos. Pois o Senhor está perto.

(Felix Mendelssohn, “O Senhor zela pelos seus”, s.d.)

Descansa no Senhor, espera pacientemente nele, e ele


satisfará os desejos de teu coração… Entrega teu caminho ao
Senhor, confia nele, e não te aflijas por causa dos que
praticam o mal.
(Felix Mendelssohn, “Descansa no Senhor”, 1846)
37. Responsabilidade
4 de maio de 1954

Bom dia, amigos. Vez por outra, entro em discussões com pessoas
que afirmam que suas ações não fazem nenhuma diferença, que
são senhores de si e que podem fazer exatamente o que lhes der na
telha. Normalmente, essas pessoas temem que eu lhes diga o que
fazer, algo que não é da minha conta, e dão o melhor de si para
declarar sua completa independência de Deus e dos homens.

Bem, nunca vi, no entanto, um homem que seja capaz de separar-


se do universo com algum sucesso. Por mais que tentem, ainda
continuam a viver no mesmo mundo que nós, e este é um mundo de
interdependência, não de independência. Todos os dias,
dependemos uns dos outros: do açougueiro, do merceeiro, do
eletricista, do produtor de gás, do agricultor, do policial, do
carpinteiro, e mil e um outros homens no cumprimento de seus
variados deveres. Durante toda a nossa vida, dependemos uns dos
outros.

Tudo isso, claro, é óbvio, então vamos avançar um pouquinho.


Nossa interdependência não se limita à vida física. Emocional e
socialmente, precisamos da presença dos outros. Há ocasiões, é
claro, em que podemos querer um pouco de isolamento, mas,
basicamente, precisamos de comunhão. O confinamento solitário é
a mais severa das punições a criminosos. As razões por que
precisamos da presença de outras pessoas são diversas, mas entre
as mais importantes está a seguinte: em nosso pensamento,
sentimento e ser, jamais estamos em isolamento; somos parte de
um grupo; mostramos nossa época e linhagem, não porque somos
produtos da sociedade, mas porque a própria vida é sociedade,
comunidade e interdependência. Conversamos com os outros
porque a comunicação é uma necessidade de nossa natureza. Nós
nos desenvolvemos na mesma proporção do amor que somos
capazes de dar e receber, porque nossa felicidade aumenta quando
nossa interdependência e comunhão cresce. Em todo homem, a
humanidade está presente com todo o seu potencial e todos os seus
problemas. Só podemos falar do gênero humano e da humanidade
por causa dessa natureza comum do homem que nos torna a todos
semelhantes. O homem é a sociedade, ele é a humanidade, e Deus,
ao criá-lo, declarou: “Não é bom que esteja só” (Gn 2.18). Social e
emocionalmente, a vida do homem é uma vida de interdependência.
Portanto, visto que nossas vidas estão envoltas umas nas outras,
nossas ações são da máxima importância, pois não podemos viver
para nós mesmos, nem podemos limitar as consequências de
nossas ações a nós mesmos.

Como resultado, as pessoas que dizem que podem fazer


exatamente o que lhes der na telha e que a vida delas só diz
respeito a elas mesmas esquecem-se de que nossa vida é uma vida
comum, uma vida compartilhada, e que em momento algum
podemos separar-nos do universo e esquivar-nos de nossa
responsabilidade diante de Deus e do homem. Tentar fazer isso é
ser tão tolo quanto o homem que alguns anos atrás saiu de Joppa
para uma breve viagem pelo Mar Mediterrâneo. Quando o barco a
vela, velho e de madeira, deparou com o mau tempo, o nativo
ignorante ficou doente, e começou a cavar um buraco embaixo de
sua cama, na lateral do navio. Quando outro passageiro ficou
irritado, o pobre tolo protestou: “Que diferença faz para você? O
buraco que estou cavando está embaixo da minha cama”. A
resposta óbvia, é claro, era que o buraco afundaria o navio e a todos
junto com ele.

Todo ato privado tem sua consequência social. Você e eu jamais


podemos separar-nos deste universo consequente por um único
momento ou um único ato. Somos, em cada momento de nossa
vida, pessoas responsáveis, e ser responsável é ser dependente e
interdependente. Somos responsáveis por nossos semelhantes
porque nossa vida está inter-relacionada à deles, e somos
sumamente responsáveis a Deus porque ele é o único Criador,
Sustentador e Redentor. Deus não tem responsabilidade para
conosco: sua relação conosco não é de obrigação, mas de pura
graça e misericórdia. Nós é que somos responsáveis diante dele.
Por essa razão, Paulo disse: “Porque nenhum de nós vive para si
mesmo, nem morre para si. Porque, se vivemos, para o Senhor
vivemos; se morremos, para o Senhor morremos. Quer, pois,
vivamos ou morramos, somos do Senhor. Foi precisamente para
esse fim que Cristo morreu e ressurgiu: para ser Senhor tanto de
mortos como de vivos” (Rm 14.7-9). “Assim, pois, cada um de nós
dará contas de si mesmo a Deus” (Rm 14.12).

Isso quer dizer que somos inteiramente do Senhor e não temos


autoridade sobre nossa vida ou morte. Somos dele duplamente, em
virtude da criação e da redenção, e nossa vida é uma vida de
responsabilidade e prestação de contas.
Toda a criação revela interdependência mútua e plenitude de
dependência de Deus. Dependência total significa total prestação de
contas e, portanto, Paulo declara que todo ato que não provém da fé
é pecado (veja Rm 14.23).

Por fim, ser responsável é estar em Cristo, que perfeitamente


cumpriu o dever do homem diante do homem e a obrigação do
homem diante de Deus. Nele, nossa responsabilidade diante de
Deus é cumprida, e recebemos a paz e a liberdade que vêm com
uma dívida quitada. Nele, temos o poder de revelar esta graça de
Deus em nossa lida com homens e de anunciar a vida do Filho do
Homem responsável enquanto ele vive em nós. Em nós mesmos,
somos rebeldes contra todas as coisas; em Cristo, somos homens
responsáveis. Esta é a nossa força, e ele é a nossa paz.
38. Obediência (Efésios 6)
21 de dezembro de 1954

Bom dia, amigos. Nossa leitura bíblica desta manhã é Efésios 6.


Paulo tem a dizer algo que precisa ser dito com todo vigor e sem
meias-palavras em nossos dias. Eis o que ele diz: Filhos, obedecei
a vossos pais no Senhor, pois isto é justo. Honra a teu pai e a tua
mãe (que é o primeiro mandamento com promessa), para que te vá
bem, e sejas de longa vida sobre a terra. E vós, pais, não
provoqueis vossos filhos à ira, mas criai-os na disciplina e na
admoestação do Senhor. Quanto a vós outros, servos, obedecei a
vosso senhor segundo a carne com temor e tremor, na sinceridade
do vosso coração, como a Cristo, não servindo à vista, como para
agradar a homens, mas como servos de Cristo, fazendo, de
coração, a vontade de Deus; servindo de boa vontade, como ao
Senhor e não como a homens, certos de que cada um, se fizer
alguma coisa boa, receberá isso outra vez do Senhor, quer seja
servo, quer livre. E vós, senhores, de igual modo procedei para com
eles, deixando as ameaças, sabendo que o Senhor, tanto deles
como vosso, está nos céus e que para com ele não há acepção de
pessoas. Quanto ao mais, sede fortalecidos no Senhor e na força do
seu poder. Revesti-vos de toda a armadura de Deus, para poderdes
ficar firmes contra as ciladas do diabo; porque a nossa luta não é
contra o sangue e a carne, e sim contra os principados e
potestades, contra os dominadores deste mundo tenebroso, contra
as forças espirituais do mal, nas regiões celestes. Portanto, tomai
toda a armadura de Deus, para que possais resistir no dia mau e,
depois de terdes vencido tudo, permanecer inabaláveis. Estai, pois,
firmes, cingindo-vos com a verdade e vestindo-vos da couraça da
justiça. Calçai os pés com a preparação do evangelho da paz;
embraçando sempre o escudo da fé, com o qual podereis apagar
todos os dardos inflamados do Maligno. Tomai também o capacete
da salvação e a espada do Espírito, que é a palavra de Deus; com
toda oração e súplica, orando em todo tempo no Espírito e para isto
vigiando com toda perseverança e súplica por todos os santos e
também por mim; para que me seja dada, no abrir da minha boca, a
palavra, para, com intrepidez, fazer conhecido o mistério do
evangelho, pelo qual sou embaixador em cadeias, para que, em
Cristo, eu seja ousado para falar, como me cumpre fazê-lo. E, para
que saibais também a meu respeito e o que faço, de tudo vos
informará Tíquico, o irmão amado e fiel ministro do Senhor. Foi para
isso que eu vo-lo enviei, para que saibais a nosso respeito, e ele
console o vosso coração. Paz seja com os irmãos e amor com fé, da
parte de Deus Pai e do Senhor Jesus Cristo. A graça seja com todos
os que amam sinceramente a nosso Senhor Jesus Cristo. Amém.
(Efésios 6.1-24) Paulo começa falando da necessidade de
obediência. Essa decerto é uma necessidade também em nosso
tempo. Obediência e disciplina infelizmente estão em falta no
cenário atual. A ênfase de nossos dias está na autoexpressão,
raramente na obediência. Um psiquiatra que recentemente fez um
levantamento de 19.000 casos de menores infratores constatou que
havia um fator comum a todos esses jovens: a ausência de um
verdadeiro senso de responsabilidade. A resposta a isso, ele sentia
claramente, era a disciplina (veja Paul Mallon, The Ease Era).
A obediência, diz Paulo, é fundamental a toda sociedade piedosa.
Ela começa em casa, na vida das crianças e dos pais, cada um
obediente a seu lugar e função, e se estende a nosso trabalho e a
nosso papel como cidadãos; e também, em última análise,
essencialmente a Deus. Exige-se que sejamos obedientes, não para
agradar aos homens ou proteger-nos, mas para agradar a Deus.
Exige-se que sejamos obedientes porque há diferenças de posição
e autoridade, mas, ao mesmo tempo, temos de reconhecer que,
com Deus, não há respeito de pessoas e, portanto, nenhuma
posição ou autoridade dá a homem algum mais direitos sobre os
outros, mas, ao contrário, apenas mais responsabilidade.

Obediência e disciplina são necessárias do ponto de vista humano


porque nos preparam para os conflitos da vida, e toda vida tem suas
lutas e batalhas. A vida atrelada à autoexpressão só encontra
frustração na luta, mas a vida treinada na disciplina e na obediência
encontra força e paz por meio da luta.

Quando toda obediência está fundada na obediência básica a Deus


e toda disciplina é disciplina piedosa, então temos uma força que é
maior do que a força humana: É o poder de Deus.

Paulo nos incita a esse tipo de força quando diz: “sede fortalecidos
no Senhor e na força do seu poder” (v. 10). Revestir-nos de a toda a
armadura de Deus quer dizer receber sua Palavra e obedecer a ele,
conhecer-lhe a salvação e andar no Santo Espírito.

Esta fonte de nossa força não está na natureza; está somente em


Deus mediante Cristo. Precisamos desta força sobrenatural para
viver, porque a nossa luta, basicamente, é uma batalha espiritual
contra forças e pessoas demoníacas.
Para obter essa força, temos de orar, não só por nós mesmos, mas
uns pelos outros. Precisamos sentir que as necessidades de nossos
irmãos e irmãs em Cristo são nossas necessidades, e oração
verdadeira significa compromisso, tem um senso de urgência, surge
em toda e qualquer ocasião, e é pela ajuda do Espírito Santo. E esta
última é central: pois a disciplina básica em nossa vida é o poder do
Espírito que habita em nós. “Pois somos feitura dele, criados em
Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou
para que andássemos nelas” (Ef 2.10).

E assim, nas palavras de Paulo: “A graça seja com todos os que


amam sinceramente a nosso Senhor Jesus Cristo. Amém” (Ef 6.24).
39. “Mais bem-aventurado é”
10 de maio de 1955

Bom dia, amigos. Há algumas declarações na Bíblia que nos fariam


muito bem se as repetíssemos diariamente. Elas declaram sem
rodeios verdades que nossa natureza humana prefere ignorar ou
considera repulsiva.

Uma dessas declarações é a afirmação de nosso Senhor: “Mais


bem-aventurado é dar que receber”. Paulo cita essas palavras em
Atos 20.35, como princípio orientador de sua própria vida e serviço e
como fundamento de sua felicidade pessoal.

Essa declaração certamente se opõe aos meus e aos seus


sentimentos. No que diz respeito à natureza humana, definitiva e
inequivocamente, sente-se que é muito mais bem-aventurado
receber do que dar. Todo o nosso pensamento sobre a felicidade
está ligado a uma série de expectativas, a coisas que esperamos
receber ou que nos sejam dadas. Nossa felicidade começa, creio
eu, quando recebemos certas coisas pelas quais gastamos nosso
tempo esperando e orando. Quando conseguir isso e aquilo,
dizemos a Deus e a nós mesmos, então serei feliz, então serei
capaz de servir-lo melhor, então minha vida terá a medida de
riqueza que espero. Essa é a nossa ideia de bem-aventurança.

Ora, nosso Senhor de maneira nenhuma menosprezava o receber.


Ele não faz nenhuma tentativa de subestimá-lo ou ridicularizá-lo. A
implicação clara da afirmação é que de fato é bem-aventurado
receber, e somos instados a tornar conhecidos de Deus todas as
nossas necessidades e desejos. Nosso Senhor disse: “pedi... para
que a vossa alegria seja completa” (Jo 16.24), e a Escritura deixa
claro que Deus quer que gozemos a bênção de receber, e que o
próprio Deus se deleita em receber de nós, muito embora ele não
tenha necessidade de nada que possamos oferecer.

Receber presentes de amigos e entes queridos é um deleite e uma


bênção. Receber respostas de oração é a própria bênção. De fato, é
bem-aventurado receber, declarou nosso Senhor, mas é mais bem-
aventurado dar.

No fundo, no fundo do coração, todos sabemos disso. Sabemos que


os homens mais felizes, mais bem-aventurados, são aqueles mais
especializados em dar que em receber. São as pessoas a quem
mais amamos e mais apreciamos. Gostaríamos de ver o mundo
povoado por tais pessoas, mas, assim como em muitas outras
coisas, queremos que as outras pessoas sejam boas a fim de que
seja mais fácil para nós ser o que somos, sem mudar.

É muito fácil reconhecer e aplicar uma verdade aos outros:


precisamos aplicá-la a nós mesmos. Para você e para mim,
enquanto há felicidade em receber, há maior felicidade em dar. Se
isso não é verdade, Deus é mentiroso, e Deus não pode mentir.

Não podemos sempre ter a bênção de conseguir o que queremos.


Deus não se obrigou a dar a você e a mim tudo que pedimos, ou
fazer conosco e por nós o que queremos. Não há, é claro, nenhum
cristão tão pobre que não tenha recebido, e com abundância, de
Deus, mas muitos crentes ainda permanecem em circunstâncias
difíceis e em provação, sem resposta a seu clamor por libertação.
Durante a última guerra, muitos crentes perderam a vida, ou a visão;
muitas esposas de oração, o marido; muitos pais e mães, o único
filho. Eles oraram, e a bênção de receber lhes foi negada. E essas
coisas continuam diariamente. Do nosso lado direito estão pessoas
cujas orações são respondidas de modo maravilhoso e milagroso;
do lado esquerdo estão cristãos igualmente fiéis cujas orações não
são respondidas com o recebimento da bênção. A razão repousa na
sabedoria e na providência de Deus, que homem nenhum pode
compreender ou questionar.

Mas para tudo isso está aberta essa felicidade superior, a bem-
aventurança de dar em nome e na pessoa de Jesus Cristo. Mesmo
quando não temos nada mais para dar, ainda podemos dar-nos a
nós mesmos. Assim, a felicidade nunca é uma porta fechada para
nós: ela nunca depende de receber certas coisas. Depende, em vez
disso, de cumprir a vida de Cristo em nós, de dar enquanto
recebemos de Deus, com boa medida, calcada, sacudida e
transbordante.

Nesta manhã você e eu temos certas esperanças e expectativas em


nosso coração, coisas que esperamos receber, pela graça de Deus.
Deus pode conceder-nos essas coisas, pois há alegria em recebê-
las. Mas você e eu precisamos, nesta manhã e a cada manhã,
“recordar as palavras do próprio Senhor Jesus: Mais bem-
aventurado é dar que receber” (At 20.35).
40. “Espera com paciência nele”
4 de janeiro de 1955

Bom dia, amigos. Recentemente, quando eu estava na casa de um


casal de amigos para a comemoração de suas bodas de ouro, eles
mencionaram o salmo 37 como passagem favorita das Escrituras.
Esta é uma preferência reveladora, e nascida da experiência cristã.
Ouçamos o salmo de Davi e compreendamos por quê: Não te
indignes por causa dos malfeitores, nem tenhas inveja dos que
praticam a iniquidade. Pois eles dentro em breve definharão como a
relva e murcharão como a erva verde. Confia no S e faze o
bem; habita na terra e alimenta-te da verdade. Agrada-te do
S , e ele satisfará os desejos do teu coração. Entrega o teu
caminho ao S , confia nele, e o mais ele fará. Fará sobressair
a tua justiça como a luz e o teu direito, como o sol ao meio-dia.
Descansa no S e espera nele, não te irrites por causa do
homem que prospera em seu caminho, por causa do que leva a
cabo os seus maus desígnios. Deixa a ira, abandona o furor; não te
impacientes; certamente, isso acabará mal. Porque os malfeitores
serão exterminados, mas os que esperam no S possuirão a
terra. Mais um pouco de tempo, e já não existirá o ímpio; procurarás
o seu lugar e não o acharás. Mas os mansos herdarão a terra e se
deleitarão na abundância de paz. Trama o ímpio contra o justo e
contra ele ringe os dentes. Rir-se-á dele o S , pois vê estar-se
aproximando o seu dia. Os ímpios arrancam da espada e distendem
o arco para abater o pobre e necessitado, para matar os que trilham
o reto caminho. A sua espada, porém, lhes traspassará o próprio
coração, e os seus arcos serão espedaçados. Mais vale o pouco do
justo que a abundância de muitos ímpios. Pois os braços dos ímpios
serão quebrados, mas os justos, o S os sustém. O S
conhece os dias dos íntegros; a herança deles permanecerá para
sempre. Não serão envergonhados nos dias do mal e nos dias da
fome se fartarão. Os ímpios, no entanto, perecerão, e os inimigos do
S serão como o viço das pastagens; serão aniquilados e se
desfarão em fumaça. O ímpio pede emprestado e não paga; o justo,
porém, se compadece e dá. Aqueles a quem o S abençoa
possuirão a terra; e serão exterminados aqueles a quem amaldiçoa.
OS firma os passos do homem bom e no seu caminho se
compraz; se cair, não ficará prostrado, porque o S o segura
pela mão. Fui moço e já, agora, sou velho, porém jamais vi o justo
desamparado, nem a sua descendência a mendigar o pão. É
sempre compassivo e empresta, e a sua descendência será uma
bênção. Aparta-te do mal e faze o bem, e será perpétua a tua
morada. Pois o S ama a justiça e não desampara os seus
santos; serão preservados para sempre, mas a descendência dos
ímpios será exterminada. Os justos herdarão a terra e nela
habitarão para sempre. A boca do justo profere a sabedoria, e a sua
língua fala o que é justo. No coração, tem ele a lei do seu Deus; os
seus passos não vacilarão. O perverso espreita ao justo e procura
tirar-lhe a vida. Mas o S não o deixará nas suas mãos, nem o
condenará quando for julgado. Espera no S , segue o seu
caminho, e ele te exaltará para possuíres a terra; presenciarás isso
quando os ímpios forem exterminados. Vi um ímpio prepotente a
expandir-se qual cedro do Líbano. Passei, e eis que desaparecera;
procurei-o, e já não foi encontrado. Observa o homem íntegro e
atenta no que é reto; porquanto o homem de paz terá posteridade.
Quanto aos transgressores, serão, à uma, destruídos; a
descendência dos ímpios será exterminada. Vem do S a
salvação dos justos; ele é a sua fortaleza no dia da tribulação. O
S os ajuda e os livra; livra-os dos ímpios e os salva, porque
nele buscam refúgio. (Sl 37.1-40) O que Davi enfrenta aqui e
responde de uma vez por todas é aquele espírito de perversidade
na vida que assola a todos nós. Vemos os malfeitores prosperar, e o
justo lutar para se manter, e ficamos indignados e impacientes com
Deus. Observamos, como Davi, “um ímpio prepotente a expandir-se
qual cedro do Líbano”, enquanto nos encontramos limitados e
frustrados em coisas pequenas próximas a nós. Diante de tudo isso,
“Onde está Deus, e o que ele está fazendo?”.

Toda a nossa rebeldia é basicamente uma rebelião contra Deus.


Isso não quer dizer que devemos ficar em silêncio e inertes na
presença do mal e de condições injustas. Temos a obrigação moral
de trabalhar em favor da retidão e da justiça sob Deus. No entanto,
somos chamados a “deixar a ira, abandonar o furor”, e fazer o que
fazemos com perfeita fé na providência de Deus, a “descansar no
Senhor e esperar pacientemente nele”.

O núcleo desta segurança é o seguinte:

Confia no S e faze o bem; habita na terra e alimenta-te


da verdade. Agrada-te do S , e ele satisfará os desejos
do teu coração. Entrega o teu caminho ao S , confia
nele, e o mais ele fará. (v. 3-5) Observem o que esses versos
dizem. Não há promessa de saída dos problemas que nos
confrontam, nenhuma promessa de que este mundo se tornará
uma via segura para nós. Em vez disso, eles asseguram que
podemos, se confiarmos e esperarmos no Senhor, conhecer
uma paz e uma plenitude maiores do que o mundo pode dar.
Mais do que isso, os desejos de nosso coração serão
satisfeitos como resultado de duas coisas, as mesmas coisas
que nos fazem sofrer, somadas a esperar com paciência no
Senhor. Na verdade, Deus faz todas as coisas cooperarem
para o bem daqueles que o amam, que são chamados
segundo seu propósito (Rm 8.28).

Então o salmo promete algo mais. Seu refrão pode ser chamado de
a promessa de que os mansos “herdarão a terra” (Mt 5.5). Quem
são esses mansos bem-aventurados de quem nosso Senhor
também falou em suas bem-aventuranças? A palavra bíblica para
mansos significa dócil, subjugado. Somos os mansos bem-
aventurados quando somos subjugados por Deus, e nossa natureza
rebelde descansa no Senhor e espera pacientemente nele.

Os mansos bem-aventurados herdam o mundo nesta vida e no


mundo por vir. A vida deles tem o aroma e a qualidade da vida
verdadeira aqui e agora. Outras pessoas tentam viver e encontrar a
vida, mas só a encontram numa fuga. Os mansos bem-aventurados
vivem. Então, para os mansos, o tempo só os leva para mais perto
da eternidade, e os sofrimentos da vida presente não hão de se
comparar com as alegrias da eternidade. Aos mansos, os
subjugados por Deus, pertence o Reino.

Este salmo, portanto, requer de nós quatro tarefas:

1. Não se indignar. Não se preocupar com os mistérios da


providência de Deus.
2. Confiar. Descansar no Senhor. Ele permite essas coisas para o
seu propósito e nosso bem final nele.

3. Esperar com paciência.

4. Fazer o bem.

Ao agir assim, tornamo-nos submissos a Deus. A promessa de


nosso Senhor a nós é esta: “Bem-aventurados os mansos, porque
herdarão a terra” (Mt 5.5).
41. O hábito da autojustificação
11 de janeiro de 1955

Bom dia, amigos. Um dos maus hábitos que todos nós


compartilhamos em alguma medida é o hábito da autojustificação.
Esta é uma fraqueza que condenamos nos outros e reprimimos em
nossos filhos, e, no entanto, nós mesmos muitas vezes somos
culpados dela. Aliás, a autojustificação é mais que uma fraqueza: é
pecado.

Em primeiro lugar, o que temos em mente quando falamos de


autojustificação? Nas palavras mais simples, autojustificação
significa desculpar-nos a nós mesmos. No entanto, envolve muito
mais que uma desculpa: envolve também a nossa crença
fundamental em que o que fazemos ser desculpável porque somos
basicamente justificados por nosso estilo de vida e por nosso modo
de agir. Podemos concordar que a ação particular em questão é
questionável e até errada. Mas, quando algum pecado particular
pesa contra nós, sentimos que o prato da balança está
predominantemente do lado da justiça, porque nossa própria vida
justificável sobrepuja qualquer pecado particular. Em outras
palavras, a autojustificação quer dizer que insistimos em desculpar-
nos de nossos pecados porque nos recusamos a crer que eles
dizem toda a verdade a nosso respeito: a verdade, insistimos, é algo
muito melhor e muito mais agradável, e deve ser considerada como
o fator determinante. Porque somos pessoas boas, sentimos que
nossos pecados ocasionais podem e devem ser ignorados.
Mas o que a Bíblia diz sobre nós é muito diferente. Ela declara que
todos nós, sem exceção, podemos ser descritos somente como
pecadores. Nossa natureza humana é caracterizada pela rebelião
contra Deus e pelo desejo de ser como Deus. A essência de nosso
discurso não é a veracidade, mas a hipocrisia e o desejo de sermos
considerados melhores do que realmente somos. Este é o velho
Adão em nós, e o velho Adão é um farsante e embusteiro. Sua vida
consiste em máscara e fingimento: está constantemente
escondendo-se atrás de uma mentira que insiste ser verdade, e foge
da verdade, que ele chama de mentira.

A autojustificação, portanto, envolve uma negação da verdade de


Deus acerca da natureza humana, e sua acusação contra o homem.

Diante de tudo isso, o cristão deve ter uma resposta diferente. Não
precisamos justificar-nos a nós mesmos, porque fomos justificados
por Deus. Ser justificado por Deus quer dizer que aceitamos suas
acusações contra nós: reconhecemos que somos pecadores em
rebelião contra Deus. Depositamos nossa confiança não numa
justiça própria imaginada, mas na justiça de Deus.

Isso quer dizer que vivemos sem ilusões acerca de nós mesmos,
mas com fé em Deus. Significa desconfiar de nós e confiar em
Deus. Não vemos necessidade de dar desculpas: admitimos o fato
de nosso pecado e apontamos para nossa liberdade e justificação
em Jesus Cristo.

O pecador é assombrado pela necessidade contínua de


autojustificação. Sua vida inteira se torna envolta em hipocrisia,
fingimento e evasão, numa tentativa de convencer a si mesmo e ao
mundo de que ele é basicamente um homem bom e, por causa
disso, desculpável. O cristão tem uma desculpa melhor, uma
justificação melhor, Jesus Cristo, que assume o pecado e a culpa
em nosso lugar e os cancela pela Cruz, e que nos torna membros
dele, de modo que temos, por sua presença santificadora, nossa
justificação permanente.

Quando nós, como cristãos, damos desculpas e tentamos justificar a


nós mesmos, estamos vivendo não em Cristo, mas em nós
mesmos, no velho Adão. Nossa autojustificação tola não é nada
comparada à graça de Deus contínua e permanente em Cristo.
Como declara a Confissão de fé de Westminster (Cap. 11.5): “Deus
continua a perdoar os pecados daqueles que são justificados”.

O Catecismo maior de Westminster resume a questão nestas


palavras (R. 70): Justificação é um ato livre da graça de Deus para
com os pecadores, no qual ele os perdoa, aceita e considera justa a
pessoa deles diante dele, não por qualquer coisa neles operada,
nem por eles feita, mas unicamente pela perfeita obediência e plena
satisfação de Cristo, a eles imputadas por Deus e recebidos só pela
fé.
42. Quem é infalível?
18 de janeiro de 1955

Bom dia, amigos. Recentemente passei por momentos


perturbadores com um oficial do Estado cuja atitude considerei
muito incômoda. O homem era um oficial de caráter e integridade,
um homem honesto e merecidamente respeitado por seu trabalho.
No entanto, senti e ainda sinto que há algo perigoso neste homem e
em homens como ele, porque ele acreditava que a lei não se
engana.

Essa atitude, claro, não é nova. A Bíblia fala da “lei dos medos e dos
persas, que se não pode revogar” (Dn 6.8), e dos “decretos feitos
em nome do rei [que] não se podem revogar” (Et 8.8). Era uma lei
infalível contra a qual não há apelo nem recurso. Essa atitude não
se limitava à antiguidade. As nações constantemente tendem a
divinizar sua lei e a considerarem-se intérpretes infalíveis da
vontade divina. O comunismo marxista torna a ditadura do
proletariado a expressão da obra divina na história, enquanto em
nossa América muitas pessoas afirmam de modo blasfemo que a
vontade do povo é a vontade de Deus e que a voz do povo é a voz
de Deus.

Tampouco esta afirmação de infalibilidade se limita a governos.


Igrejas também têm essa pretensão. Afirmam que Deus fala por
meio do líder de sua igreja, ou que a voz do presbitério é a voz do
Espírito Santo, e fazem muitas afirmações que direta ou
indiretamente reivindicam a infalibilidade.
Todas essas atitudes, quer na igreja, quer no Estado, são
extremamente perigosas, porque o homem é pecador, e o fato mais
óbvio sobre ele é sua falibilidade, sua tendência a pecar, errar,
falhar, devanear e mentir. Para o homem, afirmar infalibilidade em
alguma de suas ações ou instituições é uma reivindicação absurda e
um pecado monstruoso, porque o homem é uma criatura que peca e
morre — só Deus é infalível.

Há um traço comum a todas as pessoas que reivindicam


infalibilidade, seja para si mesmas, seja para suas instituições.
Todas elas, sem exceção, ou subestimam, ou ignoram, ou negam de
modo cabal a própria palavra infalível de Deus, a Bíblia. Defenderão
a autoridade de homens enquanto negam a autoridade da palavra
de Deus. Afirmarão a supremacia de suas instituições e passarão de
largo pela supremacia exclusiva da Palavra de Deus. Lutarão com
zelo em defesa de sua infalibilidade e mentirão para defendê-la,
enquanto escarnecem e ridicularizam da Palavra infalível de Deus.

Contra tudo isso, temos de afirmar que o homem, em todas as suas


atividades e instituições, é uma criatura e um pecador nascido para
morrer, e que somente Deus é infalível e sua Bíblia é nossa
autoridade. Aceitar algo menos como nossa autoridade final é
destruir todos os padrões além de nossa própria vontade.

O homem precisa de uma autoridade final. Sem ela, ele não tem
padrão. E o homem não pode fazer de suas emoções a autoridade
final, porque elas tendem ao erro e à tolice. Tampouco pode fazer da
razão ou da vontade o árbitro da autoridade final, porque a razão e a
vontade do homem estão contaminadas e corrompidas pelo pecado.
Eles têm como sua órbita os limites estreitos do mundo restrito do
homem, que ele só pode ver por meio dos olhos do pecado. O
homem jamais pode produzir autoridade: todas as suas tentativas
de fazê-lo só destruíram a autoridade e suplantaram-na pela
obstinação.

Portanto, devemos afirmar com os teólogos de Westminster na


Confissão de fé (cap. 31:4): Todos os sínodos e concílios, desde os
tempos dos apóstolos, quer gerais quer particulares, podem errar, e
muitos têm errado. Portanto, eles não devem constituir regra de fé e
prática, mas podem ser usados como auxílio em uma e outra coisa.

Conforme ensina o Catecismo maior (R. 3 e R. 4): As Sagradas


Escrituras do Antigo e do Novo Testamentos são a Palavra de Deus,
a única regra de fé e prática.

As Escrituras se manifestam como a Palavra de Deus por sua


majestade e pureza, pela harmonia entre todas as suas partes
e pelo propósito do seu conjunto, que é dar toda a glória a
Deus; pela sua luz e pelo poder que possuem para convencer
e converter os pecadores e para edificar e confortar os crentes
para salvação. O Espírito de Deus, porém, ao dar testemunho,
pelas Escrituras e juntamente com elas, no coração do
homem, é o único capaz de persuadi-lo completamente de que
elas são realmente a Palavra de Deus.
43. “O Senhor dirige”
5 de abril de 1955

Bom dia, amigos. De vez em quando, quando paramos brevemente


para fazer uma retrospectiva de nossa vida, percebemos que esta
foi muito diferente do que um dia esperamos. Ao examinar alguns
papéis velhos, talvez deparemos com uma foto de nós mesmos há
muito esquecida, que traz de volta um turbilhão de memórias.
Percebemos o quanto éramos jovens à época e quanto sabíamos
pouco e, no entanto, como eram elevados as esperanças e o
orgulho enquanto olhávamos para o futuro. Talvez nos perguntemos:
o futuro será tão inesperado como o foi o passado? Mais que isso,
estará definitivamente além de nossa determinação e controle?

Anos atrás, tínhamos um quadro esperançoso do que seria o futuro:


a hora presente nos encontra muito diferentes daquele quadro. O
amanhã nos será tão impossível de projetar como foi o hoje?

Contudo, num sentido muito real, hoje somos o que o nosso ontem
fez conosco. Somos responsáveis e não podemos fugir da
responsabilidade de nossa situação e de nosso estado presente.
Todavia, quando levamos nossa reavaliação às últimas
consequências, algo ainda nos escapa. Não somos onipotentes, não
somos todo-poderosos, e todas as nossas tentativas de moldar
nossa vida deixa algo faltando.

Muito tempo atrás, um homem enfrentou este mesmo mistério


acerca de sua própria vida. Ele começara com uma promessa
esplêndida, somente para cair numa tolice abjeta e emergir no final
com uma sabedoria triste e humilde. Olhando para trás, Salomão
declarou, como diz Provérbios 16.9: “O coração do homem traça o
seu caminho, mas o Senhor lhe dirige os passos”. Moffatt traduz o
texto do seguinte modo: “O homem concebe seus planos, mas o
Eterno controla o seu curso”.

Vamos examinar o significado deste versículo. “O homem concebe


seus planos”, mas com quais resultados? O planejador mais
cuidadoso considera a vida algo frustrante com que tem de lidar:
muitas coisas escapam de seu planejamento. E, mesmo no pouco
que ele consegue planejar, há tantas pendências que o
planejamento é um guia certo para a frustração se o homem não for
compreensivo. Tiago, o irmão de nosso Senhor, tinha isto que dizer
sobre planejamento, conforme a tradução de Moffatt: Agora, vocês
que dizem “Hoje ou amanhã vamos para essa ou aquela cidade;
vamos passar um ano ali, empreenderemos e ganharemos
dinheiro”: vocês não sabem nada sobre o dia de amanhã! O que é a
sua vida? Vocês não passam de neblina, que aparece por um tempo
e depois some. Vocês deveriam era dizer: “Se o Senhor quiser,
viveremos para fazer isto ou aquilo”. Mas aí estão vocês, cheios de
pretensões orgulhosas! Toda essa ostentação é do mal. (Tg 4.13-
16) Sim, “o homem concebe seu plano”, mas, como é homem, não é
onipotente nem pode o homem controlar ou moldar todos os fatores
de sua vida, ele não pode controlar seu curso. Ora, isso seria deixar
o homem numa situação terrível se não houvesse nenhum controle
para reger ou dominar em sua vida. Mas, como indicou Salomão, “O
coração do homem traça o seu caminho, mas o Senhor lhe dirige os
passos”. “O homem concebe seus planos, mas o Eterno controla o
seu curso.”
Porque nossa vida não se desenvolveu como planejamos, isso não
quer dizer que ela não tenha direção ou propósito. Enquanto
caminhamos pela fé, como membros de Jesus Cristo, somos parte
de um plano total que faz todas as coisas cooperarem para o bem.
E, se o Senhor trouxe derrota aos seus planos e aos meus, é
somente porque ele tem algo melhor que deve e vai prevalecer. O
Senhor dirige, e seus direcionamentos são claros e infalíveis. Nas
palavras do velho hino de Samuel Rodigast: Tudo que Deus ordena
é justo:
Sua vontade santa sempre se cumprirá,
Ficarei tranquilo em tudo quanto fará.
Seguirei seguro por onde me guiar;
A ele tudo hei de entregar.
Ele é meu Deus, mas a estrada, escura;
Não cairei: sei quem me segura.

Tudo que Deus ordena é justo,


Ele nunca me enganará;
no caminho reto me conduzirá.
Sei que não me deixará;
Aceito, contente, o que ele envia.
A sua mão o meu pranto leva
Com paciência espero o fim da treva.

Tudo que Deus ordena é justo,


Embora o cálice, em que ora bebo
ao meu coração frágil pareça amargo.
Aceitarei, sem hesitar,
O fim das lágrimas quando o sol raiar.
Doce conforto encontrará meu coração,
A dor e o sofrimento extinguir-se-ão.

Tudo que Deus ordena é justo,


firmo aqui a minha posição.
Dor, carência ou morte me alcançarão
Mas não serei abandonado, não.
O cuidado de meu pai me envolverá,
Não cairei, pois ele me susterá.
Então a ele tudo hei de entregar.
(Samuel Rodigast, “Tudo que meu Deus ordena é justo”, 1675)

O coração do homem traça o seu caminho, mas o Senhor lhe


dirige os passos. (Pv 16.9)
44. “Sacudido no crivo”
8 de março de 1955

Bom dia, amigos. Uma das coisas que temos de ter sempre em
mente, quando lemos a Escritura, é que devemos levar Deus a
sério. Se cremos apenas no que nos agrada, então tudo que
aceitamos é nossa própria palavra, porque estabelecemos como
verdade somente aquilo que nos é aceitável.

Com essa perspectiva, vejamos um versículo que diz algo que


precisamos ouvir cuidadosamente, Amós 9.9: “Porque eis que darei
ordens e sacudirei a casa de Israel entre todas as nações, assim
como se sacode trigo no crivo, sem que caia na terra um só grão”.

Este versículo, claro, lida especificamente com o tratamento de


Deus para com Israel, mas também declara um princípio do
procedimento de Deus que é igualmente verdadeiro em seu
tratamento conosco. Este é o processo de peneiramento.

Obviamente, Israel esteve nele por um tempo difícil. Ser sacudido


no crivo quer dizer ser quebrado até que o palhiço seja removido do
grão e completamente separado. Hebreus fala desse mesmo
processo, declarando que o propósito de Deus é “a remoção dessas
coisas abaladas, como tinham sido feitas, para que as coisas que
não são abaladas permaneçam” (Hb 12.27). Os apóstolos, em Atos
14.22, deixaram claro que “através de muitas tribulações, nos
importa entrar no reino de Deus”.
A maioria dos cristãos prefere pensar na vida em Cristo como toda
doçura e luminosidade. Alguns realmente tentam acreditar que o
privilégio cristão é ser liberto da tribulação. Entretanto, o propósito
específico de Deus para conosco, que somos sua semente ou grão,
por assim dizer, é peneirar-nos para que o palhiço seja separado de
nós. E isso levaria uma pessoa tola e leviana a declarar que não
tem palhiço em sua vida e, portanto, não precisa de peneiramento.

As tempestades e problemas deste mundo, os seus problemas


pessoais e os meus, são a peneira de Deus e devem ser aceitas
como tais, com fé, paciência e humildade. A história é a poderosa
peneira de Deus, separando o joio do trigo.

Mas há mais neste versículo do que a promessa de peneiramento.


Com esta promessa de tribulação vem uma declaração estranha e
reconfortante: “sem que caia na terra um só grão”.

A promessa do crivo do Senhor é uma garantia de que seremos


sacudidos e quebrados, mas com ela vem a promessa grandiosa:
não haverá perdas neste processo — só ganhos.

Ora, ambos os fatos nos parecem incríveis e talvez difíceis de


acreditar; mas pede-se que creiamos neles, primeiro, porque Deus
nos peneirará, e não podemos fugir da peneira e da sacudida que
separará o joio do trigo; e, segundo, porque Deus não permitirá que
o menor entre nós caia ou sofra permanentemente como resultado
deste processo. O resultado será somente ganho.

Em vista disso, podemos de fato concordar com as palavras de um


velho hino do século XVII:
Confia o teu caminho
a teu fiel Senhor!
Teu coração mesquinho,
com todo o seu temor:
Ao Deus onipotente
entrega-o sem tardar:
teu Criador clemente
não te há de rejeitar!

Em teu Senhor espera,


se queres seu favor;
sua obra considera,
e a tua tem valor!
Angústias desoladas
jamais te salvarão;
alcanças bens sagrados
somente em oração.

E mesmo que o demônio


nos venha a resistir
e como poder medonho
nos queira destruir,
o teu aceno basta
a fim de o subjugar,
e todo o mal afasta
o teu divino olhar.

Deus quer que não pereças


em sofrimento e mal;
fará que lhe agradeças
no Reino celestial.
Ele há de dar-te a glória,
o eterno resplendor;
e cantarás vitória
por seu divino amor!

Amém! Por ti espero,


Meu Pai e meu Senhor!
No mal não desespero,
pois tenho o teu amor.
E quando, enfim, na morte
meu trilho terminar
a ti a minha sorte,
Senhor, hei de entregar!
(Paul Gerhardt, “Befiehl du deine Wege”, 1653)[1]
45. Aquele que andou em trevas
26 de maio de 1954

Bom dia, amigos. Uma das deficiências que todos compartilhamos é


a tendência a ficar tão apegados a nossos modos e perspectiva, que
não conseguimos ver nada mais, nem mesmo quando estamos
olhando. Por causa desta falha, podemos ler uma passagem na
Escritura dezenas de vezes sem que seu significado penetre nosso
coração e nossa mente: já temos tanta certeza do que deve estar
ali, que não conseguimos ver realmente o que está diante de nós.

Uma afirmação dessas pode ser encontrada em Isaías 50.10-11:


“Quem há entre vós que tema ao Senhor e que ouça a voz do seu
Servo? Aquele que andou em trevas, sem nenhuma luz, confie em o
nome do Senhor e se firme sobre o seu Deus. Eia! Todos vós, que
acendeis fogo e vos armais de setas incendiárias, andai entre as
labaredas do vosso fogo e entre as setas que acendestes; de mim é
que vos sobrevirá isto, e em tormentas vos deitareis”.

Essa é uma definição tão incomum do homem de fé que à primeira


vista a deixamos passar por completo. Quem é o homem que confia
e obedece? Isaías declara que é “aquele que andou em trevas, sem
nenhuma luz”.

Há algo em nós que se rebela contra isso. Sentimos que, uma vez
que cremos no Senhor, deveríamos ser autorizados a portar certa
quantidade de luz, e alguns chegam a reivindicá-la. Todavia, quando
renunciamos a isso, somos capazes de andar em trevas. Não
podemos ver além do presente. O minuto seguinte, o dia seguinte, o
ano seguinte são inteiramente trevas para nós. Podemos ter uma fé
grande o bastante para mover as montanhas, mas ainda não
podemos ver além do presente nem fazer outra coisa senão andar
em trevas.

Mais que isso, andamos em trevas quanto ao ontem e ao hoje. As


aflições nos sobrevêm, a separação cruel e repentina da morte, e
não a compreendemos. Vemos a miséria e o sofrimento que fazem
murchar a imaginação e nos perguntamos por que essas coisas
tinham de acontecer. Olhamos para trás em nossa vida e
descobrimos as mesmas perguntas surgindo dentro de nós. Por que
o Senhor despertou essas esperanças e nunca as atendeu? Por que
ele nos deixou sem resposta quando clamamos em oração por
algum sinal de esperança? Por que estava tudo uma treva total e
um absoluto silêncio?

Não só caminhamos em trevas, mas fomos proibidos de acender


uma luz por nós mesmos. Para nós, parece apenas senso comum,
mas dizem-nos que todo que acende uma tocha e tenta cercar-se
de luz e andar naquela luz deitará em tormentas. A mão de Deus
estará contra nós se tentarmos acender uma tocha.

Qual é o significado desta passagem estranha e surpreendente?


Sabemos que andamos em trevas: por que é errado tentar andar na
luz? Por que é que o resultado inevitável de tentar acender uma
tocha por nós mesmos é sofrimento?

Andar em trevas significa isto: andar por fé. De outro lado, declarou
Isaías, tentar acender uma tocha contra as trevas é tentar andar por
vista. E isso não se pode fazer. Nenhum de nós é capaz de andar
por vista. Tanto a vida agora quanto o dia de amanhã são mistério
para nós. Reivindicar a visão, reivindicar que tenhamos uma tocha
que dissolva as trevas, é reivindicar algo que o homem não pode ter.
É uma reivindicação falsa que inevitavelmente leva ao sofrimento.

É difícil para os cristãos aceitar esta situação. Tendemos a sentir


que nossa fé deveria de algum modo inspirar uma retribuição de
Deus, revelando alguns poucos mistérios que não podemos
entender por inteiro. Mas, quando Deus, em vez disso, nos diz que o
teste da fidelidade é simplesmente andar em trevas, ficamos
contrariados pela aparente injustiça de tudo isso.

Entretanto, não podemos fazer com que a fé signifique nada mais


do que fé sem transformá-la em alguma outra coisa. Precisamos, ao
contrário, aceitar humildemente nossas trevas e orar pela presença
divina enquanto passamos por elas.

E é por isso, claro, que nos pedem que andemos nas trevas. Se não
fôssemos forçados a andar somente pela fé, não alcançaríamos a
mão de Deus em meio às trevas. Não pediríamos que ele nos
segurasse e conduzisse pela meia-noite do mundo.

Andar em trevas, portanto, é andar somente pela fé. Significa que


reconhecemos que nenhum homem se basta, e nós menos ainda.

Portanto, seja agradecido pela escuridão. Deus tinha seu propósito


ao proporcioná-la, e era este: que fôssemos atraídos para junto
dele. Por natureza, tendemos a ser levados pelas circunstâncias.
Mas o Senhor, por meio das trevas, nos chama para o seu lado.
Enquanto caminhamos com ele, bem podemos dizer com John
Newton: Perigos mil atravessei
E a graça me valeu
Eu são e salvo agora irei
Ao santo lar do céu.
(John Newton, “Preciosa graça”, 1779)
46. A chave de entendimento
19 de abril de 1955

Bom dia, amigos. Uma das facetas interessantes da história humana


é a tentativa do homem de encontrar uma chave de entendimento.
O homem tem tentado, de geração em geração, tanto científica
quanto filosoficamente, compreender todas as coisas à luz de um
conceito-mestre. Uma das coisas que deram a Albert Einstein uma
importância tão central em nossa geração foi a contribuição que ele
deu com um conceito-mestre. Sua teoria do campo unificado
apresentou uma interpretação do tempo, da altura, da largura e da
profundidade deste universo que permitiu que o homem fizesse
vastos avanços rumo à compreensão e ao controle da energia
material. No entanto, por mais importante que fosse a contribuição
de Einstein, ela não era um conceito-mestre verdadeiro. Na
verdade, ela abrangia em certa medida o significado de energia
material, mas para o homem e para a criação há mais do que
energia material, e um conceito-mestre que não vá além não é uma
verdadeira chave de entendimento.

Em Provérbios 28.5 temos, expresso de modo muito simples, um


conceito-mestre, uma chave de entendimento, que vai além da
matéria para interpretar a própria essência da vida do homem. Eis o
que Salomão disse: “Os homens maus não entendem o que é justo,
mas os que buscam o Senhor entendem tudo”.

A primeira ideia afirmada por este provérbio é que há uma relação


entre a fé e o entendimento. A vida e o caráter de um homem são
um indício de sua capacidade de compreensão. O homem mau não
pode compreender o significado do juízo ou da justiça. As interações
de Deus com o homem estão além deste e só o confundem e
desconcertam. Em outras palavras, a confusão espiritual também
envolve confusão moral e intelectual. Há uma medida em que
ficamos aquém das exigências do Senhor a nós; somos nessa
mesma medida incapazes de compreender sua interação conosco.
Ficamos perplexos e rebeldes.

A segunda ideia afirmada por Salomão é que “os que buscam o


Senhor entendem tudo”. Quando o fim de nossa vida é viver à luz da
fé no único Deus vivo, obtemos o conhecimento, em todas as
situações da vida e diante de todas as coisas, do significado de
todas as coisas. Quando nossa vida pessoal tem um fundamento
divino, somos capazes de compreender as obras de Deus. É o
julgamento ou justiça de Deus que é a pedra de tropeço para o
homem natural; mas é esta mesma coisa, o julgamento e a justiça
de Deus, que proporciona uma chave de entendimento ao fiel. O
que naturalmente nos torna rebeldes, pela graça de Deus serve
também para abrir os olhos de nosso entendimento. Aquilo que
aliena o mundo de Deus, nos leva para mais perto dele. O que para
o homem natural é maldição torna-se, para o crente, uma bênção.
Na fidelidade e na confiança somos abençoados, e os olhos de
nosso entendimento se abrem. Portanto, é isso que a Escritura
declara quando diz que o temor do Senhor é o princípio da
sabedoria. Nosso Senhor declarou: “Se alguém quiser fazer a
vontade dele [de Deus], conhecerá a respeito da doutrina” (Jo 7.17).
Esta é a nossa chave de entendimento, fé e confiança no Senhor.
De tais crentes, João escreveu: “E vós possuís unção que vem do
Santo e todos tendes conhecimento” (1Jo 2.20). Em outras palavras,
todos os crentes (toda a igreja, em virtude de sua fé, seu Espírito
Santo em nosso interior) têm um conhecimento espiritual que os
capacita a enfrentarem e interpretarem os acontecimentos da vida e
tornarem-se vitoriosos diante da adversidade.

A fé, portanto, é a chave do entendimento. Os homens que tentam


andar por vista são homens que andam às cegas. Não conseguem
ver um passo adiante ou uma hora no futuro. Mas os homens que,
em vez disso, andam por fé, andam com confiança na escuridão,
sabendo que têm um guia e que todas as coisas estão sob o
controle providencial e sob o propósito de seu Senhor e guia. Os
olhos de nosso entendimento estão abertos quando abrimos mão de
nossa visão humana. Nas palavras da tradução de Moffatt de
Efésios 1.17-23: Que o Deus de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai
glorioso, conceda a vocês o Espírito de sabedoria e revelação para
o conhecimento dele mesmo, iluminando-lhes os olhos do coração,
para que possam entender a esperança para a qual ele nos
chamou, a riqueza de sua herança gloriosa nos santos, e a
grandiosidade extrema de seu poder sobre nós, os crentes — um
poder que opera com a força de sua potência que ele exerceu ao
ressuscitar a Cristo dentre os mortos e fazê-lo assentar à sua direita
na esfera celestial, acima de todos os dominadores, autoridades,
poderes e senhores angelicais, acima de todo nome que se nomeia
não só nesta era, mas na era por vir — ele pôs tudo sob seus pés e
colocou-o como cabeça de todas as coisas para a igreja, a igreja
que é seu corpo, preenchida por aquele que preenche o universo
por inteiro.
47. Quando Deus pede
26 de abril de 1955
Bom dia, amigos. Há ocasiões em nossa vida em que Deus nos
pede coisas difíceis. Somos impelidos a renunciar coisas que
amamos, especialmente fortes esperanças, o fruto de nosso
trabalho e outras coisas que não temos coragem de abrir mão.
Todos estamos familiarizados com esse tipo de experiência. Às
vezes, parece como se a vida consistisse sobretudo num processo
de retirar coisas de nós, até que a própria vida se vá. Perdemos a
juventude e a maturidade, e todas as esperanças associadas a
ambas, e às vezes até as pequenas coisas com que nos
consolamos são também tiradas de nós.
Vez por outra estamos inclinados a imaginar e perguntar: por que
Deus tira tanto de nós? Por que ele pede um sacrifício tão contínuo?
O livro de Êxodo dá uma resposta comovente ao clamor de nosso
coração. Em Êxodo 19, vemos Israel diante do Monte Sinai,
preparando-se para a renovação da aliança feita originalmente com
Abraão. Até este momento, Deus havia demonstrado sua fidelidade:
ele tomou um povo escravo no Egito e resgatou-o, destruindo o
poder do Egito; ele conduziu esse povo milagrosamente a
atravessar o Mar Vermelho como terra seca, alimentou-os com
maná no deserto e deu-lhes água que jorrou da pedra. Só depois de
tudo isso ele fez um pedido a Israel. Disse Deus: Tendes visto o que
fiz aos egípcios, como vos levei sobre asas de águia e vos cheguei
a mim. Agora, pois, se diligentemente ouvirdes a minha voz e
guardardes a minha aliança, então, sereis a minha propriedade
peculiar dentre todos os povos; porque toda a terra é minha; vós me
sereis reino de sacerdotes e nação santa. (Êx 19.4-6) Daí em
diante, um fato notável acerca da interação de Deus conosco fica
evidente: antes que Deus nos peça algo, ele primeiro dá muito mais
do que ele jamais há de pedir. Recebemos muito mais do que
jamais se nos exigirá que demos. Na verdade, todo o processo é de
enriquecimento contínuo: recebemos para que possamos dar e, na
medida em que damos humildemente e com fé, o pedido seguinte é
precedido por uma dádiva ainda maior. Como disse nosso Senhor:
“Dai, e dar-se-vos-á; boa medida, recalcada, sacudida,
transbordante, generosamente vos darão; porque com a medida
com que tiverdes medido vos medirão também” (Lc 6.38).
Portanto, em vez de ver a vida como uma perda contínua,
precisamos considerá-la, ao contrário, como um investimento
contínuo pela fé. Requer-se de nós que entreguemos toda a nossa
vida a Deus pela fé e que consagremos a ele nossas atividades
diárias, em confiança, seguros de que nossa doação de nós
mesmos é um investimento na Palavra de Deus. Nosso Senhor
declarou que aqueles que buscam salvar a própria vida a perderão,
e aqueles que a perdem por amor a ele, hão de salvá-la. Os
resultados deste investimento revelar-se-ão na eternidade. Paulo
declarou: “Porque importa que todos nós compareçamos perante o
tribunal de Cristo, para que cada um receba segundo o bem ou o
mal que tiver feito por meio do corpo” (2Co 5.10). O texto grego diz,
de modo mais preciso, que naquele dia receberemos de volta as
obras de nossa fé. Não é meramente um receber, é um receber de
volta nosso investimento, agora com um retorno multiplicado por
cem ou por mil.
A resposta ao lamento de nosso coração, portanto, é que Deus
pede porque ele já nos deu e continuará dando por toda a
eternidade. Deus nos dá muito mais do que percebemos, amiúde
muito mais do que somos capazes de receber, e pede de nós que
devolvamos pela fé o investimento em sua fidelidade.
Em vista disso, em vez de reclamar, precisamos ecoar o louvor dos
santos antes de nós e entoar a alegre canção:

Quão maravilhoso és tu, Senhor,


Tua majestade brilha com fulgor!
Teu trono de graça é um primor
Adornado e pleno de esplendor!
(F. W. Faber, “My God, How Wonderful Thou Art”, 1848)
48. Não há vagas
22 de dezembro de 1953
Feliz natal, amigos. Como esta é a semana do natal, voltemos
nossa atenção nesta manhã para a história daquela cidadezinha da
Roma imperial. Dois viajantes exaustos certa vez entraram naquela
cidade ao cair da noite, depois de uma jornada longa e cansativa.
Eles não estavam ansiosos para viajar, mas o deslocamento era
uma questão de necessidade. Todo homem tinha de voltar a seu
lugar de nascimento para registrar-se no censo imperial, e ali
estavam agora, mas não havia lugar para eles na hospedaria. O
único hotel da cidade tinha uma placa de “não há vagas” —
desculpe, estamos lotados — e eles não tinham onde repousar o
corpo fatigado.
Provavelmente, José deu voltas por Belém, procurando velhos
amigos para pedir um lugar para passar a noite e dizendo: “Minha
esposa Maria está prestes a ter o bebê, e não temos lugar para
ficar”.
Ele sem dúvida recebeu muitas respostas amigáveis. “José, que
bom te ver, homem. Sentimos sua falta aqui em Belém. Com certeza
adoraria poder recebê-los nesta noite, mas tenho dois tios e três
sobrinhos que vieram à cidade para o registro, então estamos
lotados”.
Talvez outro tenha dito: “É uma situação terrível, José. Com certeza
deram mancada com esse registro. Vocês sabem que eu os
acomodaria se pudesse. Aliás, como estão as coisas em Nazaré?
As coisas andavam bem devagar aqui até aparecer este registro, e
não há comércio permanente nesse tipo de coisa”.
Outro pode ter sugerido: “Talvez você encontre alguém que tenha
lugar descendo a rua. Tenho muitos parentes na cidade para ajudar.
Avise-me se houver alguma outra coisa que eu possa fazer”.
E assim Maria e José instalaram-se à noite numa estrebaria, e ali
Jesus nasceu. Ninguém tinha lugar para o Filho de Deus, a segunda
pessoa da Trindade, quando ele veio a esta terra.
Não havia ninguém para ajudar Maria naquela noite, enquanto ela
dava à luz seu filho primogênito. José provavelmente ajudou como
pôde, mas de que serve um marido em tais circunstâncias? Em
qualquer grau, quando tudo estava terminado, Maria enrolou o bebê
em panos de cueiros e deitou-o na manjedoura.
O maior milagre do mundo aconteceu numa estrebaria, com o
mundo indiferente a ele.
Eu me pergunto se muitas vezes a mesma coisa não está
acontecendo hoje entre nós. Assim como os amigos de José, temos
nossas boas desculpas. Mas a verdade é a seguinte: não há lugar
para ele na hospedaria de nosso coração.
Nossas almas são hospedarias ocupadas que não têm espaço para
o Senhor. Temos tempo para todas as outras coisas, mas tempo de
menos para ele.
Dizemos: “Não podia dedicar mais uma hora à igreja ou ao estudo
bíblico. Eu realmente sou favorável ao cristianismo, mas
simplesmente não tenho tempo disponível”. Ou ainda, declaramos:
“Sou a favor das missões, mas não posso doar mais dinheiro àquela
igreja. Há muitas necessidades para o meu dinheiro, e não tenho
onde encontrar um dólar sobrando em lugar algum”.
Temos boas intenções, claro, ou assim dizemos a nós mesmos e a
todos os outros, mas o fato é que nossa vida está preenchida, e
assim damos as costas ao Senhor para dar espaço às nossas
trivialidades. A maioria de nós estamos mais ocupados do que Deus
quer que estejamos ou planejou que estivéssemos. Temos tempo e
lugar para tudo, menos para ele, que deveria vir em primeiro lugar.
Não temos tempo nem lugar para Jesus Cristo neste domingo de
manhã?
Podemos ser gratos por uma coisa: embora muitas vezes não haja
lugar para ele na hospedaria de nosso coração, ele sempre
encontra lugar para nós.
Ele chama seus convidados e ordena a seus servos que parem os
viajantes e transeuntes para instá-los a entrar. Ele acolhe o pobre, o
aleijado e o cego, e tem homens nos caminhos e atalhos em busca
de mais convidados. Nós dizemos: “Desculpe, não há lugar”; ele diz:
“mais lugares, ainda mais lugares para vocês”. O contraste foi bem
definido pelas palavras familiares do hino de Emily Elliott, “Tu
deixaste, Jesus, o teu reino de luz” (Vesper Chimes, 134).
Tu deixaste, Senhor,
Tua glória, esplendor,
Quando ao mundo quiseste descer,
Não puderam achar
Em Belém um lugar,
Num presépio Tu foste nascer.
Vem ao meu coração, ó Cristo,
Nele tenho p'ra Ti um lugar!
Vem ao meu coração, ó Cristo vem!
Nele podes p'ra sempre morar!
Hinos de adoração,
Anjos no céu Te dão,
Te rendendo excelso louvor.
Mas humilde o Senhor
Veio ao mundo de horror,
Pra dar vida ao mais vil pecador!
As raposas aqui
Covas têm para si,
E seus ninhos as aves do céus,
Só não teve um lugar
P'ra cabeça pousar
Jesus Cristo, o Filho de Deus.
Do céu vieste Jesus,
Nos trazendo Tua luz,
Que nos dá eternal salvação;
E com ódio e furor
Te cravaram, Senhor,
Sobre a cruz, donde deste o perdão!
Aleluias nos céus,
Ao Cordeiro de Deus!
Quando vier o Seu povo buscar;
Sua voz se ouvirá
E pra mim, oh! Dirá:
“Vem, Eu tenho pra ti um lugar”.
(Cristo e sua humilhação, citado aqui conforme a versão da
Harpa Cristã, hino 481)
Sobre o autor

Rousas John Rushdoony (1916-2001) foi um célebre erudito


americano, escritor e autor de mais de trinta livros. Graduou-se
pela University of California (bacharelado e licenciatura plena
em Artes Liberais) e recebeu treinamento teológico na Pacific
School of Religion. Ministro ordenado, serviu como missionário
entre os índios dos povos paiute e shoshoni e também em
duas igrejas na Califórnia. Criou a Chalcedon Foundation, uma
organização educacional dedicada à pesquisa, publicação e
comunicação persuasiva do saber distintivamente cristão para
o mundo inteiro. Seus escritos no Chalcedon Report e seus
vários livros produziram uma profícua geração de crentes
ativos na reconstrução do mundo para a glória de Jesus Cristo.
Ele residia em Vallecito (Califórnia) e estava comprometido
com pesquisas, palestras e o auxílio de irmãos no
desenvolvimento de programas que colocassem a fé cristã em
ação. É autor, entre outros livros, de Cristianismo e Estado,
Fundamentos da ordem social, A política da pornografia,
Esquizofrenia intelectual, Rejeição à humanidade e A filosofia
do currículo cristão.

[1] Citado aqui conforme a versão brasileira disponível em


«http://www.luteranos.com.br/conteudo/confia-o-teu-caminho».

Você também pode gostar