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Índice

1. O Milagre da Graça
2. Barreiras para a Graça
3. Graça — ou Desgraça — Paterna
4. Como Tudo Começou
5. As Más Notícias
6. As Conseqüências da Desgraça
7. As Boas Novas
8. Graça e Culpa
9. Graça e Emoções
10. Graça e Auto-Estima
11. Graça e Sentimentos Negativos
12. Panorama da Graça

Prefácio

Cedo em meu ministério descobri que a experiência da graça é o fator mais terapêutico na cura
emocional e espiritual. Um médico que trabalha em um hospital psiquiátrico no Tennessee, disse o
seguinte: “Metade dos meus pacientes poderiam ir para casa em uma semana se soubessem que estão
perdoados.”
A principal tarefa no aconselhamento e na cura interior é remover os obstáculos ao perdão, para que
então as pessoas recebam a graça, uma dádiva do amor de Deus oferecida gratuitamente ao que não a
merece.
Juntamente com a Palavra de Deus, a oração e a Ceia do Senhor, os grandes hinos têm muita
importância para a cura eficaz. Inicio cada capítulo deste livro com palavras de um dos hinos de Carlos
Wesley, repletos como são da teologia e das maravilhas da graça.
Minha oração é que esses hinos, tão preciosos na herança que recebi, tragam até você a graça que
cura.

David A. Seamands
Seminário Teológico Asbury
Wilmore, Kentucky
CAPÍTULO 1
O MILAGRE DA GRAÇA

Oh! Quem me dera mil línguas para cantar


O louvor do meu grande Redentor,
As glórias do meu Deus e Rei,
Os triunfos de sua graça!
Olhai para ele, vós, nações,
Vosso próprio Deus, vós raça caída;
Olhai e sede salvos através da fé somente,
Sede justificados pela graça.

Enquanto ouvia a palestra de Devadas, um simpático jovem Índia no, uma história que ouvira de um
evangelista dos velhos tempos me passou como um relâmpago pela mente. Era sobre um cético que
disse ao seu pastor: “Os seus crentes parecem ter religião suficiente apenas para guardá-los de pecar,
mas não o suficiente para torná-los felizes. Eles me lembram um homem com dor de cabeça. É penoso
suportá-la, mas não quer cortar a cabeça.”

Nessa época eu estava na Índia, servindo como pastor de uma igreja de fala inglesa. Eu e a minha
família tínhamos chegado recentemente de um trabalho evangelístico de quase dez anos nos povoados,
onde a nossa principal tarefa tinha sido plantar novas congregações e templos entre pessoas do meio
rural. Agora encarávamos habitantes da cidade, altamente instruídos, assolados pelos problemas
comuns à vida urbana e industrial.

Nessa ocasião eu não percebi a natureza do problema que me estava sendo apresentado. Afinal,
Devadas era um dos melhores jovens de nossa congregação. Um crente profundamente comprometido
com a causa e cheio do Espírito, descendente de uma família cristã de longa tradição, ele fazia jus a seu
nome: “servo de Deus”. Fiel na freqüência a todos os cultos da igreja, embora isso significasse uma
cansativa viagem de bicicleta de vários quilômetros, ele era um meticuloso estudante das Escrituras e
fiel testemunha entre os seus colegas hindus. Se fosse necessário, Devadas teria morrido por seu
cristianismo — quanto a isso não há dúvidas. A questão real do momento era por que ele parecia quase
estar morrendo de cristianismo.

Naquela tarde de 1957 eu não tinha a mínima idéia de que ele estivesse descrevendo várias das
características de cristãos emaranhados na armadilha do desempenho. A única coisa que ambos
sabíamos era que isso o deixava com uma perturbação emocional e espiritual.

Durante bem mais de uma hora ele partilhou os seus problemas comigo — a sua batalha sem fim com a
tirania das obrigações; o sentimento de culpa e condenação que pairava sobre ele; um alto nível de
ansiedade; um sentimento de baixa auto-estima e de constante auto-depreciação; negação e repressão
de emoções negativas como a raiva e a depressão; e um legalismo e zelo que eram resultados de
consciência prejudicada e hipersensível.

Em minha ingenuidade, parecia-me óbvio que Devadas simplesmente não era tão espiritual quanto
devia. Afinal, fazia apenas dez anos que eu tinha saído do seminário e estava cheio de respostas para a
maioria dos problemas. Portanto, comecei a aconselhá-lo da única maneira que sabia. Como muitos
outros pastores, eu pensava que aconselhamento era uma sessão de pregação individual, com uma
audiência cativa.

Entretanto, para todas as minhas questões sinceras, com suas bem intencionadas sugestões, ele
continuava a apresentar respostas que simplesmente não se encaixavam nas minhas soluções
simplistas.

— Irmão Devadas, você tem lido a Bíblia regular- mente? Se você aumentasse o tempo gasto com a
Palavra, encontraria mais paz e mais vitórias. Estou certo de que isso restauraria a alegria de sua
salvação.
— Mas, pastor Seamands, eu já fiz isso. Na verdade, há algum tempo tenho lido um capítulo extra todos
os dias, tanto do Novo quanto do Antigo Testamento.

— Entendo... Bem, como está a sua vida de oração? Você se lembra que num dos últimos sermões eu
citei um dos santos homens de Deus que disse: “A oração não é simplesmente a preparação para a
batalha; a oração é a batalha.” (Essa declaração tinha-me impressionado, e eu esperava que tivesse
impressionado a todos os demais, também.)

— Sim, pastor. Eu escrevi a citação na margem da minha Bíblia naquela manhã, e tenho dedicado mais
tempo à oração. Mas, para ser realmente honesto com o senhor, nada disso tem ajudado muito. Na
verdade, por mais estranho que pareça, estou piorando. Alguma coisa dentro em mim está
constantemente me dizendo que eu teria de ler ainda mais, e que devia orar ainda mais. Não consigo
entender, mas parece que nunca sou capaz de fazer o bastante. Na verdade, parece ser esse o
problema.

Fiquei perplexo. Eu acreditava que ele me estava dizendo a verdade. Sabia que não adiantaria
perguntar-lhe sobre a comunhão com outros cristãos ou sobre o testemunho — eu conhecia sua “ficha”
nessas áreas. Na minha frustração, o Espírito Santo sugeriu com firmeza: “Por que você não se cala e
ouve o que ele está dizendo? Você está tão ansioso para impressioná-lo com as suas respostas que não
está ouvindo as suas perguntas.”

Pela primeira vez, abrindo os ouvidos para ouvir, realmente ouvi o significado do que ele estava dizendo.
Mais importante ainda, comecei a sentir a sua dor. “Sinto como se eu tivesse de fazer mais. Eu devia
fazer mais, podia fazer mais. E tento, sinceramente, mas parece que nunca faço o bastante.”

Mais tarde percebi ter caído numa emboscada de alguma coisa completamente diferente da indisposição
espiritual que provém de se negligenciar os meios normais da graça e do crescimento.

Essa experiência inesquecível aconteceu há mais de trinta anos. Desse encontro pessoal, de coração
para coração, surgiu um tênue início do que nos anos seguintes viria a se tornar um ministério a muitos
cristãos feridos e abatidos. Essas pessoas sensíveis, sinceras, bastante motivadas e extremamente
esforçadas, estavam presas na armadilha da roda-viva do desempenho espiritual, sem modo de escapar.
Em certo sentido, estavam encerradas numa prisão que, pelo menos em parte, elas próprias haviam
construído.

Desempenho

Devadas dissera tudo com sua descrição sucinta: “Eu devo, eu quero, eu tento, mas nunca parece que
sou capaz de fazer o bastante.” Essa é a escravidão da qual não se pode escapar, o círculo vicioso do
qual não se liberta através de um desempenho maior e melhor. Essa é a essência da maldição, o terrível
núcleo do qual saem todos os raios que sustentam a roda-viva em seu lugar.

Embora haja graus variáveis de concentração no desempenho, a síndrome em si é uma espécie de


doença, um vírus maligno no coração de cada ser humano. E a grande mentira por trás de miríades de
mentiras ordinárias, a qual nos persuade a acreditar que todos os relacionamentos da vida são baseados
no desempenho, isto é, naquilo que fazemos.

Essa mentira insiste em dizer que tudo depende da qualidade do nosso desempenho:

A nossa salvação e estado — o nosso relacionamento com Deus.


O nosso sentido de autovalor — o nosso relacionamento com nós mesmos.
O nosso sentido de segurança e de pertencer — o nosso relacionamento com os outros.
O nosso sentido de sucesso e realização — o nosso relacionamento com a sociedade que nos cerca.

Assim como existem diferentes graus de cada doença, assim também existem níveis diferentes de
intensidade de orientação pelo desempenho. Variam de leve a forte, de severo a crítico, do
perfeitamente normal ao anormal e até mesmo ao patológico. Cristãos orientados pelo desempenho
representam uma vasta gama da humanidade em desespero. Existem os jovens na vida cristã, que
estão lutando para crer numa graça que parece boa demais para ser verdade. Existem aqueles que,
como os gálatas, começaram vi- vendo pela graça, mas agora misturam a lei (desempenho) com a graça
(dom). Existem os perfeccionistas, que estão certos de que nada do que fazem será suficientemente
bom para Deus, para os outros ou para eles próprios.

Existem também algumas pessoas profundamente perturbadas que apresentam sintomas anormais ou
mesmo patológicos, algumas das quais lutam constantemente contra compulsões, como o lavar as
mãos; ou obsessões, como a convicção de que cometeram o pecado imperdoável; ou fobias, como o
medo de serem contaminadas por germes.

Esses indivíduos perturbados podem receber alguma ajuda de um conselheiro cristão ou de um livro
como este, mas normalmente necessitam da ajuda de psiquiatras e até mesmo de medicação especial.
Neste livro dirijo-me a cristãos que estão experimentando um grau mais normal de perfeccionismo e de
orientação pelo desempenho. Não apresentam algumas das características extremas que descrevemos,
mas estão magoando pessoas e encontram-se espiritual e emocionalmente amarrados, e limitados em
seus relacionamentos.

Estou convencido do fato de que a causa básica de alguns dos problemas emocionais e espirituais que
perturbam e atormentam os evangélicos é não conseguirem receber e vivenciar a graça incondicional de
Deus, e a conseqüente incapacidade de oferecer essa graça aos outros. Esse é o problema que mais
surge no gabinete pastoral. O Dr. David Stoop, psicólogo clínico cristão, confirma as minhas
descobertas, ao dizer: “Não é que eu estivesse esperando que o perfeccionismo fosse um problema. Mas
ele parecia brotar como tema de quase todas as pessoas que vinham procurar aconselhamento
comigo.”1 Infelizmente, ele também aconselha quase só a cristãos.

Dor

Antes de descrever alguns dos principais problemas que assolam os cristãos presos ao desempenho,
gostaria que você entendesse o espírito da questão. Passo a citar algumas declarações que me
chegaram através de cartas de leitores ou de notas de pessoas a quem aconselhei. Todas elas são gritos
de socorro, e revelam alguns dos sintomas mais dolorosos da doença. Nessas descrições pode ser que
você se identifique a si mesmo, ou a alguém com quem esteja vivendo. Note as expressões em itálico,
pois brevemente as examinaremos.

Nos últimos treze anos tenho sido um cristão em luta. Meu problema é que nunca estou em paz e
sempre estou tentando ser bom — isto é, ser melhor. Tenho muito medo de cometer erros.

Faço a faculdade e sou crente em Cristo. Seu artigo realmente atingiu-me em cheio. Eu sempre sinto
esse tipo de ansiedade, culpa e condenação. Esses sentimentos invadem a minha vida cotidiana. Não
posso executar uma tarefa, ler um livro, nem ensaiar minha música sem sentir que estou sendo julgado.
Há vários anos aceitei a Cristo como meu salvador, mas sinto que tudo o que faço não é suficientemente
bom para meu Senhor.

É difícil para mim continuar freqüentando a igreja, porque nosso pastor enfatiza a leitura regular da
Bíblia. Eu quero ler a Palavra de Deus, mas sempre que a leio, sinto que o Senhor me está criticando
duramente por aquilo que faço e pelo destino que estou dando à minha vida.

Aquele capítulo em especial era um retrato exato de mim! Até meu marido disse que ele servia
perfeitamente para mim. Tenho toda a sorte de expectativas irrealistas. Além disso, busco realizações
impossíveis e tento conseguir a aprovação de Deus, guardando várias regras legalistas. Pensei que tinha
de conquistar seu amor, e isso quase me levou ao suicídio.

Eu quero ser usado com mais eficácia pelo Senhor, mas me sinto tão indigno e inútil... Tive uma
conversão tão maravilhosa, e em vários sentidos sou uma “nova criatura em Cristo”. Eu realmente me
identifiquei com as suas descrições de ira e ressentimento. E quase como se eu passasse por um ciclo
de ódio contra as pessoas a quem mais amo. Depois disso, me sinto muito arrependido e fico bastante
deprimido. Eu acho que o que me irrita, mais é não estar tendo vitória espiritual.
Sou missionário. Deus tem-me usado para ganhar almas. Conheço todas as respostas, todas as
Escrituras, e posso citar exatamente o capítulo e o versículo. Mas isso tudo está em minha cabeça. O
Deus a quem sirvo nunca está contente comigo e certamente não se parece nada com o Deus gracioso
e amoroso em que professo crer — e que anuncio a outros. Por que não posso praticar aquilo que
prego? Sinto-me um impostor.

Já passei por várias sessões de aconselhamento, e Deus realizou muitas mudanças em mim. Sei que
preciso abandonar a falsa pessoa “espiritual” que tentei ser durante tantos anos. Mas tenho muito medo
disso, porque não sei quem eu realmente sou e o que poderei vir a ser. E possível a pessoa estar
aterrorizada e entusiasmada ao mesmo tempo?

Sinceramente tento ser amoroso, mas sou tão crítico e reprovador, tão duro com a minha esposa e
meus filhos. A menor falha da parte deles fico com raiva e sinto que vou explodir. Então me sinto
culpado e deprimido. Minha família é muito amorosa e sempre perdoa — mas isso só toma as coisas
piores. E como se a mesma história sempre se repetisse.

Parece que quanto mais me esforço, mais caio. Quando fico exausto, e desisto de tentar, aí realmente
me sinto condenado. Parece uma espécie de círculo vicioso.

As palavras e sentenças em itálico claramente descrevem as principais áreas de derrota e desespero na


vida dos cristãos que ainda não compreenderam plenamente o que significa viver uma vida baseada na
graça. Identificam também a dor e o dano que precisam ser curados antes que essas pessoas possam
desfrutar uma vida plena de graça:

Sentimento constante de culpa, condenação, juízo e desaprovação de Deus. Repetidas vezes cristãos me
dizem: “Sinto-me culpado quase o tempo todo.” Quando pergunto: “Não há horas em que você não se
sente culpado, ou em que você se sente em paz com Deus?”, freqüentemente respondem: “Na verdade,
não, porque então sinto-me culpado por não sentir culpa!”

• Esse tipo de culpa não se relaciona a ações ou atitudes pecaminosas específicas. Em vez
disso, é um sentimento de culpa global e generalizado que penetra toda a personalidade, mais ou
menos como o nevoeiro matutino ocupa um vale. E, assim como a neblina, esse sentimento varia em
intensidade. Alguns cristãos vivem numa tênue névoa de desaprovação divina, a qual sempre os cerca.
E, uma vez que não conhecem algo diferente, esses cristãos presumem erradamente que todos os
cristãos vivem assim. Para outros, o nevoeiro é tão denso que ficam quase imobilizados. Mal podem se
mover em qualquer direção ou mesmo tornar pequenas decisões. Sabem que se sentirão culpados em
qualquer caso. Seria difícil exagerar o sofrimento emocional e o desespero espiritual de tais cristãos.

• Um senso de falta de valor, acompanhado de sentimentos de baixa auto-estima e de


repetidos assaltos internos de auto-depreciação e mesmo de autodesprezo. Há tantos mal-
entendidos referentes ao termo auto-estima que é melhor esclarecer o que queremos dizer. A definição
comum do dicionário para estimar é “valorizar altamente, ter consideração por; elogiar ou respeitar”.
Quando falamos de auto-estima, queremos dizer que os indivíduos dão valor a si mesmos como
pessoas, e se consideram como tendo valor em si mesmos. Os cristãos que se baseiam no desempenho
não se sentem satisfeitos consigo mesmos como pessoas, independentemente do que possam ter
realizado. Não importa quão bem-sucedidos possam ser aos olhos dos outros, essas pessoas
invariavelmente menosprezam a si próprias — literalmente dizem a si mesmas que se “prezem menos”,
a fim de não se esquecerem do pequeno valor que atribuem a si próprias e da insignificância que
imaginam possuir à vista de Deus e dos outros.

• Um autoconceito de irrealidade e de hipocrisia, um sentimento de ser uma falsificação


sem conteúdo, de ter perdido, de alguma forma, o contato com o seu eu real, e de não saber
mais quem realmente são. Por causa das muitas contradições que esses cristãos encontram em suas
vidas, sentem a perda de sua personalidade singular. Existe um abismo tal entre quem são e quem
deveriam ser, quer dizer, quem deveriam ser por serem cristãos, que o sofrimento é insuportável. Ficam
tão alienados da personalidade que repudiam, que tentam negar a sua existência. Mas essa
personalidade insiste em se afirmar, lembrando-os de sua presença. Essa situação se manifesta em
declarações como: “Conheço todas as respostas, mas elas estão somente na minha cabeça. Na verdade,
não as sinto no coração. Falo de Cristo com os outros, mas bem no íntimo não sinto nem vivo a vida
cristã. Tenho muito medo de descobrir quem sou, e fico horrorizado com a idéia de que outros
descubram como realmente sou.” E claro que tal contradição esgota tanto o desejo quanto o poder de
efetivamente testemunhar de Cristo. Ou então, se agem assim por causa de uma determinação
obstinada de cumprir as suas obrigações, o que acontece é experimentarem um sentimento ainda maior
de hipocrisia e de vazio. O mais triste é que essas pessoas perdem a sua verdadeira pessoa, a
personalidade verdadeira e única que Deus lhes deu e que planejou utilizar para seus propósitos.

• Muitas emoções negativas, especialmente a ansiedade e a ira, causam medos irracionais,


ressentimentos ardentes, explosões de raiva, mudanças de humor e depressão. Se o fato de
sermos aceitos e amados dependesse do nosso bom desempenho, não seria difícil entender por que a
raiva é uma conseqüência inevitável. Estaríamos num estado de ansiedade constante, e qualquer erro
nos levaria à ira contra nós mesmos e contra os outros. Infelizmente, esse círculo vicioso de ira e
ressentimento inclui ira para com Deus, pelo fato de parecer que ele não está cumprindo as suas
promessas.

Tendo pouca graça para dar, essas pessoas não agraciadas tornam-se ingratas para com os outros. Os
padrões de desempenho que exigem dos outros é o mesmo que têm para si mesmas. Ficam tão
sentidas e irritadas com as falhas dos outros como se irritam e se ressentem de seus próprios defeitos.
Quando a pressão se torna grande demais, podem escorregar para a depressão que provém da raiva
tolhida, o lento arder dos ressentimentos e a uma inevitável explosão. Tudo isso nos leva ao sintoma
final.

• Dificuldades nas relações interpessoais, especialmente no que se refere à intimidade. Nos


contatos mais superficiais da vida a maioria das pessoas que se orientam pelo desempenho podem
saírem-se razoavelmente bem. Muitas são do tipo calado, controladas, que trabalha duro, e às vezes
parecem ser tão gentis quanto o “Jesus manso e humilde”. Porém, quando a distância emocional
diminui, quando um relacionamento se aprofunda, e requer-se certo grau de proximidade, muitos dos
fatores que descrevemos podem aparecer e provocar rompimentos, influenciando profundamente a
capacidade dessas pessoas de fazer e manter amizades.

E, porém, dentro do casamento e do relacionamento entre pais e filhos que vemos os maiores estragos.
Sejamos francos: é difícil conviver com cristãos orientados pelo desempenho. Eles são duros consigo
mesmos, duros com seus cônjuges e duros com seus filhos. Em grande parte dos aconselhamentos que
faço para casais e para famílias, encontro cônjuges desse tipo. Foi o grande Sam Shoemaker quem
disse: “Cada pessoa tem um problema, é um problema, ou tem de viver com um problema.”

Estes são os cinco principais sintomas da orientação pelo desempenho que necessitam da graça
curadora. Entretanto, há ainda outro importante fator que deve fazer parte deste capítulo introdutório.

Padrão Global de Personalidade

As duas últimas cartas que citei no começo deste capítulo traziam a palavra padrão. O dicionário diz que
padrão é “um esquema de origem acidental ou natural; um composto de traços ou feições
característicos de um indivíduo.” E essencial que compreendamos que o cristão que vive a vida baseado
no desempenho não tem um problema isolado em algum compartimento escondido de sua vida, o qual
de vez em quando aparece para provocar reviravoltas emocionais e espirituais. Em vez disso, esse
padrão é um modo de vida que a tudo inclui, uma maneira errônea de perceber as coisas, de pensar,
sentir, querer, agir, reagir e de se relacionar. Esse modo errado de ser produz um modo errado de agir,
isto é, um modo errado de tratar com a vida e de relacionar-se com as pessoas.

O oposto da orientação pelo desempenho — uma vida baseada na graça, orientada pela graça —
também é um padrão de ser. Um modo de vida assim é mais do que uma experiência básica com Cristo,
como a conversão ou o novo nascimento, ou como o enchimento do Espírito, ou ainda a experiência de
períodos ocasionais de elevada espiritualidade. Um estilo de vida que se toma o modo certo de ser, de
Deus, é vivido como o modo certo de agir — de tratar os relacionamentos e as situações da vida. E
importante que vejamos tanto o problema como a solução nesta mesma luz — como modos globais, o
certo o errado, de se viver a vida e de se relacionar com as pessoas.
É por isso que, logo de início, queremos deixar claro que não existem curas rápidas, solução ligeira. E
provável que nem uma experiência cristã miraculosa, nem uma cura interior instantânea irão livrar
alguém dos laços da armadilha do desempenho, especialmente nas formas perfeccionistas mais
extremas. Ninguém crê mais do que eu na necessidade do novo nascimento e da vida no Espírito como
os ingredientes básicos da vida cristã. Entretanto, também creio que muitos cristãos que possuem
emoções prejudicadas e memórias não curadas necessitam de um tipo especial de cura interior que os
capacite a viver vidas verdadeiramente vitoriosas. Acho que tudo isso está inteiramente de acordo com
os princípios bíblicos, porém insisto em alertar contra soluções que são mais magia do que milagre, e
que semeiam confusão no coração de cristãos que sofrem. Passo uma quantidade desproporcionada de
tempo tentando juntar os pedaços de cristãos desiludidos que tentaram alguma cura instantânea, sem
sucesso.

Quero lembrá-lo de que este alerta também é válido para o livro que você está lendo. Adquirir uma
compreensão melhor da natureza de seu problema não o libertará da prejudicial e frustrante roda--viva
do desempenho. Mesmo sendo importantes, o conhecimento e a compreensão não curam nem
modificam automaticamente. A noção de que o conhecimento e a perspicácia curam, é uma antiga
falácia grega, desenvolvida por Freud e, infelizmente, perpetuada inclusive por alguns psicólogos
cristãos da atualidade. Paulo desmascara esse erro em sua afirmação cristalina: “Porque nem mesmo
compreendo o meu próprio modo de agir, pois não faço o que prefiro.. . pois o querer o bem está em
mim; não, porém, o efetuá-lo” (Romanos 7:15, 18). Consciência e percepção são de enorme ajuda sob
muitas formas, especialmente quando nos mostra o que devemos buscar e como devemos orar.
Revelam também as áreas de nossa vida nas quais necessitamos da graça que cura, a fim de vivermos
na realidade a graça salvadora e santificadora que já experimentamos em Cristo. Embora a graça
curadora às vezes possa incluir momentos de crise, sempre será um processo de mudança de nossos
padrões de vida.

De Servo a Filho

Foi isso o que aconteceu com Devadas, o jovem que apresentei no início. Quando começamos a nos
encontrar regularmente para aconselhamento e oração, descobrimos diversas áreas nas quais realmente
havia carência de graça. Os cristãos na Índia representam pequena minoria, por isso é até
compreensível que às vezes sintam a necessidade de se afirmar perante seus vizinhos não crentes. Para
Devadas, esse sentimento tinha provocado uma vida pessoal legalista e triste, na qual a aceitação e a
aprovação eram altamente condicionais.

Você se lembra do quadro do irmão mais velho em Lucas 15, que ficou irado quando o irmão voltou
para casa e foi recebido pela graça do pai, com uma festa? “Mas ele respondeu a seu pai: Há tantos
anos que te sirvo sem jamais transgredir uma ordem tua, e nunca me deste um cabrito sequer para
alegrar-me com os meus amigos” (Lucas 15:29). Foi nessa história que Devadas descobriu a si mesmo,
à medida que o Espírito Santo lentamente retirou a casca de seu meticuloso esforço, e lhe mostrou um
coração crítico e falto de graça.

Certa vez, num sermão de domingo mencionei o exemplo de João Wesley. Wesley, criado num ambiente
pastoral, membro do Oxford’s Holy Club, clérigo ordenado da igreja anglicana e missionário no
estrangeiro, foi um homem que buscava com devoção a santidade pessoal. Porém, apesar de todo o seu
serviço sacrificial e de suas boas obras, não encontrava a paz com Deus, e chamava a si mesmo de “um
quase cristão”. Então, em 24 de maio de 1738, ele descobriu a graça enquanto ouvia alguém ler o
Prefácio ao Livro de Romanos, de Lutero. Nas agora famosas palavras de Wesley:

Por volta das quinze para as nove, enquanto ele descrevia a mudança que Deus opera no coração, pela
fé em Cristo, senti um estranho ardor. Senti que realmente confiei em Cristo, em Cristo somente, para a
salvação; e foi-me dada uma certeza de que ele tinha removido meus pecados, mesmo os meus, e me
havia livrado da lei do pecado e da morte.

Wesley disse que se tomou “cristão por inteiro” e que, ao passo que antes tivera a religião de “servo”,
agora tinha a de “filho”.
Na próxima vez que Devadas veio conversar comigo, estava visivelmente entusiasmado: “Até domingo
eu não havia percebido que estava literalmente vivendo à altura do meu nome: ‘servo de Deus’. Tenho
pensando, sentido e vivido não como deve um membro da família, mas como um servo.” Uma vez que
todos na Índia entendem claramente a diferença entre as duas coisas, eu lhe disse: “Devadas, façamos
uma dramatização. Você será o servo da família e eu serei o filho. Vivenciemos um dia de suas vidas,
desde a manhã até a hora de ir para a cama, e vejamos as diferenças.” Ele concordou. Não demorou
muito e estávamos colocando em palavras as grandes diferenças de nossos papéis.

O servo é aceito e valorizado baseado naquilo que faz, o filho baseado naquilo que é.

O servo começa o dia ansioso e preocupado, querendo saber se o seu trabalho realmente agradará ao
senhor. O filho descansa no amor seguro da família.

O servo é aceito por causa da sua habilidade, o filho por causa de um relacionamento.

O servo é aceito por causa da sua produtividade e desempenho. O filho tem seu lugar próprio por causa
da posição como pessoa.

No final do dia, o servo somente terá paz se estiver certo de ter provado o seu valor mediante o
trabalho. Na manhã seguinte a sua ansiedade recomeça. O filho pode estar seguro o dia inteiro, e sabe
que amanhã a sua situação não mudará.

Quando um servo falha, toda a sua posição está em risco; pode perder o emprego. Quando um filho
falha, fica sentido porque magoou os pais, e será corrigido e disciplinado. Porém, não tem medo de ser
lançado fora. A sua confiança básica descansa em ter o seu próprio lugar e em ser amado, sendo que as
suas obras não influenciam a estabilidade da sua posição.

Devadas e eu lemos as palavras penetrantes de Gálatas 4:4-7: Mas, quando chegou o tempo certo,
Deus enviou o seu próprio Filho. Ele veio como filho de mãe humana e viveu debaixo da Lei dos judeus
para libertar os que estavam debaixo da Lei, a fim de podermos nos tomar filhos de Deus. E, para
mostrar que somos seus filhos, Deus mandou o Espírito do seu Filho aos nossos corações, o Espírito que
exclama: Pai, meu Pai. Assim vocês já não são escravos, mas filhos. E, já que são filhos, Deus lhes dará
tudo o que ele tem para os seus filhos. (A Bíblia na Linguagem de Hoje.)

Nas semanas seguintes Devadas contou-me que cada vez que se via sentindo e vivendo como servo,
parava e lembrava a si mesmo: “Pai, Pai querido, sou teu filho, e viverei e me sentirei como tal!” Ao
longo dos anos tenho visto esse milagre da graça acontecer em muitos cristãos que estavam presos pelo
desempenho. Ouso crer que você também pode ter essa liberdade.

CAPÍTULO 2
BARREIRAS PARA A GRAÇA

Tu, grande e misterioso Deus desconhecido,


Cujo amor gentilmente levou-me avante,
Desde os meus dias de infância,
Minha mais íntima alma traze para fora,
E dize-me se já conheci
A tua graça justificadora.
O que quer que obstrua o teu amor perdoador,
Seja pecado ou justiça, remove,
Para a tua glória demonstrar,
Meu coração de descrença convence
E absolve-me de meus pecados,
E a todos leva-os embora.
A vida cristã baseada no desempenho provém do vírus maligno do orgulho pecaminoso — um orgulho
que nos encoraja a construir as nossas vidas sobre uma mentira mortal. Essa mentira afirma que tudo
depende daquilo que nós fazemos, de quão bem nós desempenhamos, de nossos esforços e de nossas
obras. Desfrutaremos amor e aceitação se pudermos conquistá-los, sucesso e posição se pudermos
merecê-los.

Esse orgulho se estende a todas as áreas da vida, mas é especialmente decisivo nos relacionamentos
significativos, incluindo o nosso relacionamento com Deus (salvação), o nosso relacionamento com nós
mesmos (auto-estima), o nosso relacionamento com outras pessoas (segurança e satisfação nas
amizades, casamento e relação com os filhos), e o nosso relacionamento com a sociedade (sucesso e
posição social). Em outras palavras, se Deus nos ama, se podemos sentir-nos bem acerca de nós
mesmos, se outras pessoas gostam de nós, se somos considerados sucessos na vida — tudo depende
do nosso desempenho. Todas as coisas importantes na vida são condicionadas a podermos ou não ter
um desempenho perfeito, ou pelo menos quase perfeito.

Essa autoconfiança orgulhosa é exatamente o oposto da graça. Penso que a maioria dos cristãos sabe
de cor a definição comum de graça como “favor imerecido de Deus”. As vezes essa definição é ampliada
para: “algo concedido livremente àquele que não o merece’. Observe como as expressões-chave
contradizem o que descrevemos até aqui.

Favor imerecido x Aceitação merecida

Livremente concedido x Dado condicionalmente

Recipientes indignos x Conquistadores dignos

A esta altura posso ouvir muitos protestando: “Mas isso é coisa antiga. Sei de tudo isso. E claro que
creio na salvação pela graça e somente pela graça. Você está querendo dizer que eu creio em algum
tipo de salvação pelas obras? Ou numa justificação pelas obras? Deixei tudo isso quando aceitei a Cristo
como meu salvador, quando me tomei cristão. Acho que teria de admitir que sou bastante parecido com
algumas das pessoas que você descreveu no primeiro capítulo. Mas não poderia ser essa a razão. A
nossa igreja é forte na pregação da salvação pela graça e eu mesmo creio nela totalmente. Eu até dou
testemunho desse tipo de salvação a outros.”

Agradeço a sua sinceridade, mas peço que faça um exame mais profundo, pois já ouvi essas afirmações
muitas e muitas vezes. Percebe você, por quase vinte e cinco anos tenho tido o privilégio de aconselhar
alunos e professores da Faculdade e do Seminário Teológico Asbury. Essas instituições evangélicas são
fortes na teologia, e têm o propósito de alcançar o mundo com o evangelho de Cristo. Quase todos os
que vêm a mim em busca de aconselhamento possuem uma sólida teologia da graça. Entretanto, assim
como o missionário mencionado no capítulo 1, quanto mais nos aprofundamos no aconselhamento mais
surpresos ficamos ao descobrir que essa teologia era apenas de cabeça. Bem, é melhor ter uma teologia
correta do que uma errada. Mas isso não é suficiente. Na verdade, muitas vezes prova ser um modo de
nos defendermos contra os fatos e, dessa forma, deixarmos de chegar à raiz dos nossos problemas.

Graça Instintiva

Uma sólida teologia da graça pode ser apenas puramente proposicional, só de cabeça, e não visceral ou
do coração. E fascinante lembrar que as pessoas do mundo bíblico consideravam o estômago, a barriga,
como a fonte de crenças e emoções profundas. Tanto é assim que as passagens que traduzimos por
“coração”, as versões mais antigas dão como “ventre” e “entranhas.

“Rios d’água viva correrão do seu ventre” (João 7:38, Versão Revista e Corrigida).

“Se há algum conforto em Cristo... alguma consolação... alguns entranháveis afetos e compaixões...“
(Fp. 2:1, Idem).
“Sim, irmão, eu me regozijarei de ti no Senhor: recreia as minhas entranhas no Senhor” (Fm. 20, Idem).
“Quem pois tiver bens do mundo, e, vendo o seu irmão necessitado, lhe cerrar as suas entranhas, como
estará nele o amor de Deus?” (1 João 3:17, Idem).

Nos tempos bíblicos a palavra entranhas denotava muito mais do que meras emoções. Incluem-se nela
atitudes, ações e feitos, e é um modo global de pensar, sentir, fazer, e relacionar-se. Significa a inclusão
de toda a personalidade, até os níveis mais profundos.

Hoje em dia muitos crentes têm uma doutrina biblicamente sólida da graça, à qual dão completo apoio
mental. E verdade que crêem acerca de Deus, mas esse não é o seu nível visceral de viver com Deus,
consigo mesmos e com os outros. E doutrinário mas não relacional; é objeto de crença, mas não de
vivência.

Ted era um seminarista que veio partilhar comigo alguns problemas de família. Representante típico dos
muitos homens que Deus parece estar chamando ao ministério nestes dias, os quais já têm outra
profissão, ele era casado e tinha filhos adolescentes. Deixara um bom emprego para obedecer ao
chamado de Deus, após ele e sua esposa terem passado por conversões comoventes, saindo daquilo
que ele chamava “a via rápida do pecado”. Ultimamente, cada fim de semana ele ia pastorear duas
igrejas no interior. Estudava bastante e visitava fielmente os membros das igrejas. Pregava
vigorosamente sobre a graça transformadora de Deus, via vidas se transformando e igrejas crescendo.
Então sua filha mais velha começou a se rebelar contra essa nova vida. Mudou o seu estilo de vida —
roupas, penteado, amigos, linguajar, hábitos — tudo enfim, e passou a ser um embaraço para ele no
seminário e no pastorado. Ted se surpreendia pelo quanto se ressentia com a atitude da filha. Ele
também sentia certa ira de Deus — como é que ele pôde deixar isso acontecer, sendo que tinham
sacrificado tanta coisa para atender ao chamado?

A medida que conversávamos, comecei a sugerir que, embora Deus não tivesse causado a situação, ele
efetivamente queria que Ted aprendesse alguma coisa com ela, começasse a entender a dor que o Pai
celestial deve ter sentido quando Ted vivia no pecado. E, acima de tudo, entendesse o que significam
amor e graça, Conversamos e oramos juntos várias vezes enquanto Ted lutava com os seus sentimentos
de ira e injustiça. Aos poucos ele começou a entender o preço do amor incondicional e da misericórdia
imerecida — que Deus sempre nos aceita e nos ama, mesmo que não aprove o nosso comportamento.

Quando Ted finalmente pôde transmitir graça à sua filha, conseguiu perceber que essa graça começava
a fazer diferença na vida de ambos. Em nosso último encontro, ele estava tomado por uma emoção
profunda. “Você sabe”, disse ele, “tenho estudado sobre a graça de Deus, creio nela de todo o coração,
tenho pregado regularmente sobre ela, e tenho visto muitos maravilhosamente transformados por ela.
Mas posso ver que isso estava só em minha cabeça. Agora Deus me concedeu a possibilidade de sentir
esse tipo de dor, porque é o único modo pelo qual ele conseguiu despregar a graça de minha cabeça.
Ela precisava ser abaixada cerca de trinta centímetros para que eu pudesse experimentá-la no coração!”

Talvez você também esteja dizendo: “E isso exatamente o de que preciso. Assim como Ted, a minha
compreensão teológica e mental da graça precisa penetrar no mais íntimo do meu ser, e tornar-se uma
graça visceral. Desejo isso desesperadamente.” Agora, se é isso o que você realmente quer, por que é
tão difícil? Por que parece ser quase impossível vivenciar a graça em todos os níveis da vida? Por que
você se agarra tenazmente a padrões de desempenho que são totalmente não bíblicos e que continuam
a tornar a vida tão miserável?

A esta altura o mais fácil seria voltar ao Jardim do Éden, falar dos resultados da Queda e salientar o
orgulho humano, o egocentrismo e a rebelião contra Deus. Afinal, não é o pecado a fonte de toda essa
torrente venenosa? Sim, mas se fizéssemos isso neste momento, possivelmente seria meramente mais
outra viagem mental, uma excursão doutrinária muito interessante no nível cognitivo, que efetivamente
não produziria mudanças no nível instintivo. Infelizmente, é isso que muitos pastores e conselheiros
fazem e, dessa forma, não tocam no verdadeiro problema — as profundas barreiras contra a graça, que
foram implantadas em muitas pessoas. E claro que essas barreiras incluem idéias que operam no nível
consciente da personalidade. Mas também incluem sentimentos, hábitos, atitudes, reações,
predisposições e pressuposições que foram condicionadas por padrões e lembranças de experiências e
relacionamentos anteriores. A maioria dessas sensações operam desde o profundo nível subconsciente
da personalidade. Não são simplesmente conceitos ou imagens mentais. São conceitos-sentimentos ou
sentimentos-conceitos, imagens mentais tão entrelaçadas com emoções que uma coisa influencia a
outra. Necessitam ser penetradas pelo evangelho; em muitos casos, requerem a graça que cura, além
de uma renovação da mente.

Barreiras Culturais à Graça

Já escrevi sobre como as experiências e os relacionamentos da vida familiar podem formar em nós
imagens bastante distorcidas de Deus. De modo semelhante, alguns dos pressupostos básicos da cultura
podem influir sobre nossas concepções de graça. Devo a maioria das idéias desta seção a Ralph Satter,
aluno formado em nossa Escola de Missões e Evangelismo E. Stanley Jones. Com a permissão dele estou
utilizando material da sua tese de doutorado.

Os eruditos que fazem um estudo especial sobre outras pessoas e suas culturas são chamados
antropólogos. Suas pesquisas têm provado conclusivamente que as pessoas de determinado país podem
ter posturas, perante a vida e a realidade, bem diferentes das de pessoas de outro país. Esse caráter
distintivo é a cosmovisão, uma espécie de mapa mental ou modo de encarar a vida, que determina
como um povo vive. A cosmovisão depende muito dos valores, pressupostos e crenças básicas, que
quase todos tomam como óbvias. As pessoas podem não falar a respeito delas, nem questionar ou nem
mesmo estar cientes delas. Elas simplesmente “existem”.

Em meus dezesseis anos de vida missionária na Índia, freqüentemente entrava em choque com as
diferenças entre a cosmovisão americana e a Índia na, predominantemente hinduísta. Quando eu
pregava sobre nascer de novo, muitas vezes era compreendido mal; pensavam que eu estava falando
sobre a reencarnação, ou sobre nascer de novo, de novo e de novo. Quando Khrushchev, governante
russo, visitou a Índia, causou boa impressão. Porém mais tarde, nas Nações Unidas, ele se irritou, tirou
o sapato e com ele bateu na mesa; a Índia ficou horrorizada! O povo Índia no associa os calçados com
poeira e sujeira, e “dar chineladas” em alguém é o maior insulto possível. Além disso, você já tentou
explicar a teoria das doenças provocadas por germes a alguém que crê serem elas causadas por
espíritos irados? Qualquer argumento aparentemente racional que você possa utilizar, como: “Os
germes são invisíveis”, e: “Penetram no corpo”, só servem para fortalecer a cosmovisão dessas pessoas.
Elas sabem que os espíritos são invisíveis e que penetram no corpo!

A cosmovisão é como uma lente através da qual as pessoas vêem todos os aspectos da vida. As lentes
dos óculos dependem do tipo de refração que neles foi colocada. Da mesma forma, a nossa cosmovisão
depende da refração de nossas idéias e ideais básicos, e de nossos valores essenciais.

Portanto, o que é a cosmovisão norte-americana? Qual a aparência do evangelho visto através de


nossas lentes culturais? Existirão alguns pressupostos e valores subjacentes tão profundamente
enraizados no “modo de vida americano”, que de fato subjugam e distorcem a compreensão bíblica da
salvação pela graça? Serão eles tão fortes ao ponto de tomar difícil a vida pela graça?;Examinemos mais
de perto três elementos da cultura; americana que se podem tomar barreiras para a graça.

• Auto-suficiência. A maioria dos pesquisadores concordaria em que a auto-suficiência é um valor


cultural dominante na América. Compare, por exemplo, um ancião americano que depende dos filhos
para o sustento, com um ancião chinês na mesma situação. O chinês, cuja sociedade não idealiza a
auto-suficiência, tem orgulho dos filhos e gaba-se de como eles são bons para ele. O americano fica
envergonhado, e não quer que ninguém saiba disso. Pelo contrário, deseja se orgulhar da
independência que tem dos filhos. Preferiria tomar um empréstimo de um banco do que dos parentes.
Sua tendência é desculpar-se por perturbar os amigos quando alguma coisa sua se quebra.

Essa auto-suficiência é totalmente contrária à graça, pois para se obter a graça hasta pedir; a graça é
confiante em Deus, dependente de Deus na vida cristã, uma auto-suficiência extrema nos faz tentar ser
o nosso próprio salvador e sustentador. E difícil para os americanos pensarem em qualquer coisa boa
que possa vir de um relacionamento de dependência, mas a graça é exatamente isso. O ideal de auto-
suficiência faz que muitos cristãos tomem os próprios meios da graça e os coloquem na roda-viva do
desempenho. Embora possam utilizar a linguagem da graça, no nível instintivo profundo vivem como se
a sua salvação e a sua segurança dependessem do quanto lêem ou oram, ou contribuem, ou trabalham,
ou testemunham.

• Individualismo. Este valor é mais bem expresso por “fazer o que se gosta”. Vemos atualmente
exemplos extremos e ridículos na interpretação da Constituição dos Estados Unidos, por causa de uma
ênfase excessiva no individualismo.

O individualismo é o tema de muitos dos grandes escritores americanos. Em seu best-seller de 1985,
Hábitos do Coração: Compromisso e Individualismo na Vida Americana, Robert Bellah e seus colegas
enaltecem diversos aspectos do individualismo americano que fazem que a pessoa possa ir em frente
por sua própria iniciativa, em busca da riqueza e da auto-expressão. O interessante é que o livro enfoca
até o “individualismo bíblico”.

Embora as Escrituras dêem atenção ao indivíduo, essa atenção é equilibrada por uma ênfase nas ações
de Deus, tanto de amor quanto de juízo, em relação às famílias, comunidades e nações. No Novo
Testamento, a graça salvadora sempre está ligada a relacionamentos, e encontra-se unicamente na
comunidade de Cristo e de seu povo. Não existem cristãos isolados, e o termo santos nunca aparece no
singular. A graça é recebida e vivenciada na comunidade da fé. O “todo o que” das Escrituras é
contrabalançado com “serás salvo, tu e tua casa” (Atos 16:31).

Um número muito grande de pessoas, em vez de receber graça, permitindo que Cristo reine no interior
e vivam num relacionamento de graça com outros, considera a religião como mais um caminho para a
auto-descoberta e a auto-realização. Salvação é uma questão de se estar numa relação de dependência
com Cristo, que disse: “Sem mim nada podeis fazer”.

• Ativismo. Vários antropólogos culturais referem-se ao ativismo como uma visão otimista do esforço:
“Você pode fazer/ser/conseguir qualquer coisa que realmente quiser, se trabalhar duro o suficiente. Se
na primeira vez não tiver sucesso, tente de novo, e de novo.”. Bellah observa que a exigência de a
pessoa ser alguém através do trabalho é um requisito que os americanos impõem a si.

Certamente, a Bíblia dá ênfase ao fazer e ao obedecer. Nós devemos ser “praticantes” tanto quanto
“ouvintes” da Palavra (Tiago 1:22). São nos ordenadas todo os tipos de boas obras, mas nunca como
um modo de ganhar ou de conquistar a aprovação de Deus. Cristo morreu por nós enquanto éramos
impotentes — ainda pecadores — muito antes que pudéssemos fazer qualquer coisa para conseguir a
nossa salvação (Romanos 5:6-8). A redenção é totalmente um dom da graça e inclui o receber, antes
que o realizar. Boas obras são o fruto de sermos aceitos, não a causa da aceitação. São a nossa
resposta ao amor incondicional de Deus.

Os americanos, porém, consideram a aprovação, o sucesso e a posição social como recompensas de um


bom desempenho. Quando esse sistema de valores é traduzido para a vida cristã, a salvação toma-se
uma questão de nossos esforços. Um desenho retratando os fariseus da atualidade trazia a seguinte
legenda: “Conseguimos a nossa justificação à moda antiga — nós a conquistamos!” Os americanos têm
dificuldade em aceitar a graça!

Pelo fato de muitos aspectos da cosmovisão americana terem sido exportados, agora são
compartilhados em outros países do mundo. Por exemplo, Devadas, na minha história de abertura, era
um cristão de terceira geração e seus pontos de vista estavam bastante ocidentalizados. Nos países do
mundo em rápido desenvolvimento, muitos experimentam essas barreiras à graça. Embora nos
regozijemos com o progresso, nos entristecemos ao ver alguns dos mesmos obstáculos à graça
desenvolvendo-se nessas nações. A corrida capitalista precisa ser curada, não exportada.

E a Igreja?

E possível que se argumente que a Igreja, o corpo de Cristo divinamente instituído, não poderia ser
parte do problema. Seria possível indicar as épocas e locais na história em que a igreja influenciou
grandemente ou formou a cultura ao seu redor, muitas vezes alcançando grandes triunfos sobre o mal.
Por exemplo, geralmente admite-se que o reavivamento wesleyano do século XVIII salvou a Grã-
Bretanha do caos e da carnificina de uma revolta semelhante Revolução Francesa. Várias reformas
sociais foram conseqüência dos persistentes esforços de cristãos evangélicos no Parlamento, desde a
abolição da escravatura até uma lei exigindo que no lado dos navios fosse pintada uma linha que
limitasse suas cargas. Antes disso, os proprietários gananciosos sobrecarregavam os navios, e muitas
vidas se perderam em meio a tormentas no alto mar.

Verdadeiramente, “nossa pátria está nos céus” (Fp. 3:20), e somos chamados a “não nos conformarmos
mais aos padrões deste mundo, mas a nos transformar” e certamente também a transformar a
sociedade.

Além disso, a Igreja é exatamente uma das agências da graça. Alguns iriam mais longe e diriam que a
graça é a única agência, e que a graça salvadora vem através de uma igreja específica. Mas idéias como
essas erram ao não fazerem uma importante distinção. A Igreja, o corpo universal e invisível de Cristo,
constituído de todas as pessoas que nele crêem como seu verdadeiro salvador e senhor, é um
organismo divino e perfeito. Porém, a igreja visível como nós a experimentamos, é uma organização
bastante humana e imperfeita. Como tal, ela participa da queda e das imperfeições das estruturas
humanas.

Embora cada cristão genuíno seja uma parte vital do corpo invisível, é da igreja visível e local que nos
ocupamos a esta altura. Devemos sempre nos lembrar de que aqueles que constituem a igreja visível
são produto de uma cultura em particular. Portanto, não nos deveria ser surpresa descobrir dentro da
igreja certos impedimentos ao recebimento e à experiência da graça.

• O evangelho do sucesso. O ativismo claramente contaminou a idéia que a igreja tem de sucesso.
As dimensões e projetos das instalações, o montante do orçamento anual, o crescimento constante da
membresia e a freqüência — estes aspectos definem uma igreja ou ministério de sucesso. O evangelho
de saúde e prosperidade anunciado por muitos pastores e tele-evangelistas é o exemplo mais extremo
dessa idéia. O evangelho tipo “escolha e peça o que você quiser” mostra que o cristianismo pode ser
literalmente absorvido pela cosmovisão americana. Não é de admirar que a igreja seja satirizada pelos
humoristas seculares como uma organização que promove uma religião de tagarelice e de ganância.

Para aqueles dentre nós que foram missionários entre os pobres e oprimidos, essa versão distorcida do
evangelho é chocante. Quando me lembro de milhares de cristãos fiéis na Índia que não possuem terra,
e que portanto estão à mercê econômica de seus vizinhos incrédulos, e que se sacrificam por sua fé e
lutam unicamente para sobreviver, fico aterrorizado e irritado ao ouvir o evangelho de sucesso através
das realizações, que somente pode ser aplicado aos abastados. Ouvi um sermão baseado na história
neotestamentária do jovem rico, o qual teve uma .conclusão inacreditável. Você se lembra de como o
jovem recusou o desafio de Jesus de desfazer-se de suas posses, tomar a sua cruz e segui-lo? O tele-
evangelista corretamente chamou-o de milionário, e então comentou: “Esse pobre coitado! Ele não
percebeu, mas se tivesse obedecido a Jesus e sacrificado as suas posses Jesus teria feito dele um
bilionário!”

Certamente, a maioria das igrejas não chega a tais extremos. Porém, quem pode negar a ênfase na
atividade, e a pressão de programar a rotina aceita para o calendário eclesiástico semanal? Ou então a
constante conclamação do pastor ao engajamento nessas atividades, como modo de provar a
profundidade da sua experiência cristã? Aos poucos vamos aceitando a idéia de que uma vida cristã
vitoriosa depende de quão bem nos desempenhamos nos programas da igreja. Não é difícil entender a
frustração da maioria dos pastores. E responsabilidade deles manter as coisas em movimento, arrecadar
o dinheiro para pagar as contas e satisfazer ao plano cooperativo da denominação. Quando o pastor
percebe que isso não está acontecendo por falta de participação de seu povo, ele tende a tratar do tema
da participação em muitos de seus sermões. Como resultado, o povo passa a pensar que o cristianismo
se resume em participação e desempenho. Uma espécie de participação pela fé toma-se a obra através
da qual eles poderão ser justificados!

Tudo isso está bem longe do verdadeiro evangelho da graça imerecida e inconquistável, a única que nos
pode colocar numa relação correta com Deus, a fim de podermos ser “chamados filhos de Deus” (1 João
3:1). A graça de Deus faz-nos dignos e valiosos por aquilo que somos, e não por aquilo que realizamos
com sucesso. Creio que o evangelho distorcido do ativismo e do esforço próprio contribui muito para a
auto-depreciação e o baixo senso de auto-estima de tantas pessoas. (E também uma grande fonte de
culpa e de vergonha. De alguma forma somos induzidos a sentir culpa se não obtivermos sucesso em
cada uma das áreas da vida: igreja, trabalho, casamento, criação de filhos, ou em tentar relacionar-se
com alguma pessoa com a qual dificilmente alguém conseguiria conviver. Essa idéia está implícita
inclusive nas situações que evidentemente não são culpa nossa e não estão sob o nosso controle. Um
exemplo disso é o modo depreciativo pelo qual muitas igrejas tratam as pessoas divorciadas —
independentemente da causa — como se fossem leprosos morais.

Com essas “obrigatoriedades” de sucesso em tantas igrejas, é fácil considerar-se um fracasso. Isso se
aplica tanto ao ministro quanto ao leigo. Tenho visto muitos pastores jovens sucumbir sob a pressão da
exigência de um desempenho a nível local e denominacional, e por fim abandonar o ministério.

• O evangelho do individualismo auto suficiente. Outro aspecto da vida da igreja que entra em
conflito com a graça bíblica é uma ênfase excessiva na vida cristã individual, independente de
relacionamentos plenos de graça com outras pessoas. O Novo Testamento sempre pressupõe que, se
recebemos a aceitação e a graça incondicional de Deus, então sempre damos o mesmo tipo de graça às
outras pessoas. Mas isso significa que a igreja deveria propiciar uma atmosfera em que tal reciprocidade
seja possível. Tantas igrejas funcionam como atração esportiva, com pouca ou nenhuma participação
genuína nos relacionamentos. A maioria de nós hesitamos em deixar que as pessoas nos conheçam; na
igreja,sempre sentimos que devemos “fazer o melhor que pudermos espiritualmente” e “manter nossas
auréolas sempre na posição correta”. Quando isso é combinado com a ênfase ao sucesso, a maioria das
pessoas fica com medo e com vergonha de partilhar as suas fraquezas ou problemas. Alguns se fecham
em si mesmos, pensando: “Se sou cristão, devia ser capaz de resolver o problema por mim mesmo.”
Isso também contribui para aqueles sentimentos de irrealidade e de falsidade que descrevemos.

Apesar de freqüentar e trabalhar fielmente na igreja durante anos, muitos nunca experimentaram as
mudanças que deviam ser feitas pela graça. Suas necessidades mais profundas não somente não são
atendidas, mas também não são nem sequer expostas. O trágico dessa situação é que esse tipo de
atmosfera estéril leva os cristãos a se esconderem ainda mais, e reforça os seus problemas espirituais e
emocionais. Eles passam a integrar as fileiras dos desiludidos e desanimados.

• O evangelho do legalismo. O legalismo sempre foi um problema para a igreja. A crença de que a
salvação vem por intermédio da guarda dos mandamentos e regras é tão antiga quanto a humanidade,
e é uma das fraudes básicas por trás de todo sistema religioso: que podemos conquistar a aprovação e
o amor de Deus, obedecendo a certas leis morais.

As igrejas e os pastores evangélicos crêem na doutrina da salvação pela graça através da fé e a


proclamam, e intencionalmente não anunciariam a salvação mediante as obras. Mas às vezes as lições
da Escola Dominical e os sermões não são ouvidos como mensagens da graça. Em vez disso, os
ouvintes os filtram através da cosmovisão cultural e religiosa, e os distorcem, tomando-os em um
evangelho contraditório — uma mensagem mista de graça e obras, de amor incondicional e aceitação
baseada no desempenho. Assim como todas as mensagens mistas, esta produz confusão, o que resulta
em problemas emocionais e espirituais.

Vimos alguns dos aspectos gerais da vida que raramente são considerados como possíveis barreiras à
compreensão e à aceitação da graça. Passemos agora ao maior obstáculo de todos: relacionamentos
interpessoais destrutivos dentro do lar e da família.

CAPÍTULO 3
GRAÇA — OU DESGRAÇA — PATERNA

Vem, Pai, Filho e Espírito Santo,


A quem por nossos filhos clamamos:
O bem desejado e mais almejado
Do suprimento da tua mais rica graça;
A sagrada disciplina seja dada
Para criá-los e levá-los aos céus.
Deus utiliza diversos meios a fim de nos preparar para a necessidade que temos de Cristo como
salvador. Um desses meios é a graça paterna, designada para ser um meio da graça, dócil porém
bastante eficaz. Por todas as Escrituras Deus fez alianças com famílias. Foi a intenção dele que as
crianças incluídas nesses pactos fossem criadas na “disciplina e admoestação do Senhor” e, dessa
forma, fossem despertadas para amá-lo e servi-lo.

Quando eu era menino, meus pais freqüentemente me diziam que tinham orado por mim já muito
tempo antes de eu nascer. Eu não gostava nada disso. Eu sentia que, como criança pequena, isso me
deixava com pouca escolha, e era tirar proveito da minha meninice. Mais tarde, à medida que observava
outras famílias, comecei a agradecer as orações de meus pais. Alguém nos lembra que desde o dia em
que nascemos estamos em dívida — uma dívida de nove meses de casa e comida! Isso é verdade para
todos nós, mas muito mais para aqueles que nasceram em lares cristãos!

Antes de podermos ver que terrível barreira à graça o lar pode se tomar, devemos olhar para ele de
modo positivo, partindo do ponto de vista do que Deus quis que a paternidade fosse, em seu esquema
de graça preparatória.

Nesta altura há dois caminhos a seguir. Podemos olhar para as descobertas das pesquisas da psicologia
e das ciências do comportamento (verdade descoberta), para nos prover um modelo do que um bom lar
e uma paternidade adequada devem ser. Ou então, podemos olhar para as Escrituras (verdade
revelada) como ponto de partida, e então utilizar as descobertas comprovadas da psicologia do
desenvolvimento para iluminar esses princípios. Como cristão evangélico, estou comprometido com as
Escrituras como fonte primária e como autoridade para julgar toda verdade, e por isso iniciaremos com
elas.

Graça Paterna na Vida de Jesus

Examinemos o modelo perfeito de família, aquele que Jesus experimentou. Quando o Filho de Deus se
encarnou na vida humana de Jesus de Nazaré, não se suspenderam nem se violaram nenhuma das leis
do crescimento e desenvolvimento humanos. Deus pôde — e efetivamente o fez — passar ao largo do
processo reprodutivo normal, naquilo que denominamos nascimento virginal, mas este é um termo que
pode levar a interpretações errôneas. O que realmente queremos dizer é “concepção virginal”. Conforme
diz o credo, Jesus foi “concebido pelo Espírito Santo”. Essa concepção certamente foi um ato
sobrenatural, um milagre. Mas, a partir do momento da concepção, todas as leis normais do
desenvolvimento humano entraram em operação. Jesus foi concebido sobrenaturalmente, mas, assim
como todos os outros bebês humanos, se desenvolveu no útero da mãe, e nasceu naturalmente. Em
Filipenses 2:6-8, Paulo descreve a profunda kenosis, esvaziamento ou humilhação sofrido por nosso
Senhor quando abriu mão da glória da sua igualdade divina e das suas prerrogativas reais. Mas Jesus
não abriu mão da necessidade de um lar humano com mãe e pai que possuíssem as qualidades
divinamente designadas para a boa paternidade. O próprio Deus inculcou neste mundo um plano
familiar, um propósito para a paternidade e para a família, os quais refletem o seu próprio caráter.

As Escrituras dedicam atenção especial ao retrato da virgem Maria como uma mulher de piedade,
santidade e obediência especiais a Deus (Lucas 1:26-55); e José como homem reto, de integridade,
constância e obediência a Deus (Mateus 1:18-25). E a Bíblia também os apresenta como um casal que
dava alta prioridade aos valores espirituais. Lucas conta o resultado natural de um lar assim: “Crescia o
menino e se fortalecia, enchendo-se de sabedoria; e a graça de Deus estava sobre ele” (Lucas 2:40).
Com todo o respeito à peculiaridade e à deidade de Cristo, creio que mesmo assim podemos dizer que o
principal instrumento do amor de Deus nesta época particular da sua vida era a graça paterna de Maria
e José. Será que disto não temos de concluir que Deus Pai providenciou cuidadosamente o ambiente no
qual o espírito humano do Filho encontraria a sua identidade, segurança e auto-estima?

Isto só pode acontecer à medida que um ser humano, durante os importantes anos do desenvolvimento,
responde à aceitação incondicional, cuidado físico e emocional, estabilidade, amor e disciplina. Para
tanto são necessários pais de caráter piedoso que demonstrem retidão, atenção amorosa, e bondade
estável. Se tomarmos a família de Nazaré como modelo, teremos de concluir que todos os desvios desse
padrão, na direção da injustiça, instabilidade, falta de amor ou de disciplina, criam carências e distorções
nos fundamentos da personalidade. Tais danos tornam-se barreiras para a graça, e causam problemas
espirituais e emocionais, que freqüentemente irrompem mais tarde, sob as tensões da vida condicionada
pelo desempenho.

Lucas era um historiador impressionantemente cuidadoso, datando os eventos conforme esperaríamos


que um médico o fizesse, com precisão clínica. Ele registrou os acontecimentos de Jerusalém, no templo
com Simeão e Ana como depois de “passados os dias da purificação deles, segundo a lei de Moisés”
(Lucas 2:22). Isto é, quando Jesus contava quarenta dias de idade.

“Cumpridas todas as ordenanças segundo a lei do Senhor, voltaram para a Galiléia, para a sua cidade de
Nazaré. Crescia o menino e se fortalecia, enchendo-se de sabedoria; e a graça de Deus estava sobre
ele” (2:39-40). O termo que Lucas utilizou é paidion, que significa “criança pequena”. E óbvio que a
graça de Deus nesses primeiros anos do desenvolvimento veio “sobre” Jesus através da graça
sustentadora de seus pais. O canal foi evidentemente a graça paterna, e podemos observar claramente
os seus resultados quando Jesus tinha doze anos de idade: “E desceu com eles para Nazaré; e era-lhes
submisso... E crescia Jesus em sabedoria, estatura e graça, diante de Deus e dos homens” (Lucas 2:51-
52).

Isto era o que Deus queria como modelo e padrão para toda a graça paterna. Observe as cinco áreas de
cuidados paternos e o respectivo desenvolvimento da personalidade, tão claramente apresentados na
Palavra de Deus:

• Física. E o “menino crescia e se fortalecia” (2:40). Esta referência obviamente é ao infante Jesus. “E
crescia Jesus em... estatura” (2:52) descreve-o com a idade de doze anos. A parte mais elementar da
graça paterna é o sustento corporal e a proteção provida pelo suprimento das necessidades básicas.
Embora essa graça seja primariamente física, está relacionada ao desenvolvimento total da pessoa.
Pesquisas entre as crianças que passam fome na África revelam danos permanentes ao cérebro, e uma
capacidade prejudicada de expressão emocional, como resultado de carências físicas. Aqui no Ocidente
estamos apenas começando a entender as conseqüências psicofísicas das crianças subnutridas
provenientes de lares pobres e carentes. Também estamos vendo o que acontece às crianças de lares
abastados onde o fumo, as drogas, a bebida alcoólica, o excesso de açúcar e de comidas
industrializadas fazem parte da “nutrição”. Ambos os tipos produzem crianças subnutridas que sofrerão
conseqüências danosas à saúde.

• Mental. Tanto Lucas 2:40 quanto 2:52 descrevem Jesus crescendo em sabedoria. Do ponto de vista
bíblico, esse crescimento inclui conhecimento, mas vai muito além. Sabedoria é a arte de chegar aos fins
corretos, utilizando-se os meios corretos. E dar às coisas de Deus o mesmo tipo e intensidade de
dedicação que as pessoas dão aos afazeres mundanos (Lucas 16:8). O lar de Jesus providenciou a
atmosfera e o incentivo para um desenvolvimento mental pleno, isto é, uma compreensão profunda das
Escrituras, e a sua aplicação prática e contextualizada na vida diária.

• Social e Relacional. Jesus cresceu no plano horizontal e inter- pessoal, “em graça perante... os
homens”. E evidente que Jesus mantinha bons relacionamentos pessoais. Ser amado e cuidado pelos
pais cria um forte sentimento de segurança e de pertinência, que capacita os jovens em crescimento a
entrar em contato com outra pessoas e relacionar-se com elas.Uma conhecida canção dos Gaither
expressa de modo muito lindo essa verdade: “Sou amado, sou amado, posso arriscar-me a te amar”.
Uma das primeiras áreas em que percebemos os efeitos destrutivos das pessoas carentes da graça
paterna é a incapacidade de construírem relacionamentos profundos e duradouros com outras pessoas.

• Pessoal, Volitiva, Emocional. “E desceu com eles para Nazaré; e era-lhes submisso” (2:51). Este
versículo precede ao que descreve o crescimento, e muitas vezes é deixado fora da lista, quando na
verdade é o seu fundamento. Jesus acabara de expressar pela primeira vez aos pais a crescente
percepção da sua verdadeira identidade, dizendo: “Não sabíeis que me cumpria estar na casa de meu
Pai?” Seus pais “não compreenderam... as palavras que lhes dissera” (2:49-50). Apesar da crescente
consciência de que Deus era seu verdadeiro Pai, e da tensão que sentia por causa da falta de
compreensão dos pais, Jesus deliberadamente escolheu pôr-se sob a autoridade deles e obedecer-lhes.
Um dos propósitos centrais da graça paterna é ensinar a obediência. A criança precisa compreender que
o amor genuíno oferece limites, e que o afeto e a disciplina caminham juntos. Ambos são essenciais a
um desenvolvimento sadio da personalidade. Coloquei deliberadamente este aspecto antes do elemento
espiritual. A criança que aprende obediência e submissão à autoridade dos pais está sendo preparada
para render-se à vontade de Deus. Tal aprendizagem encontra-se no cerne da verdadeira maturidade.

Mas esta não é simplesmente uma questão de os pais forçarem os filhos à obediência. E de enorme
importância perceber que o apóstolo Paulo reafirmou com cuidado o quinto mandamento, em sintonia
com o espírito do Novo Testamento. Ele pôs parte da responsabilidade pela obediência da criança
diretamente sobre a atitude dos pais, de modo que essa atitude se toma importante manifestação da
graça paterna. As ordens e regulamentos dos pais precisam ser “no Senhor”, de acordo com os
princípios morais de Deus, e devem ser levados a efeito no espírito apropriado, de modo que a sua
disciplina não venha fazer que os filhos se frustrem, se irritem ou tenham ressentimentos (Efésios 6:1-4;
Colossenses 3:21) Serei eternamente grato por esse tipo de graça paterna que recebi, especialmente
através do meu pai. Ele tornou tão mais fácil para mim crer no Pai Celestial e render-me a ele.

• Espiritual / Relacional. Jesus cresceu no plano vertical, “em graça perante Deus”. Esta é a principal
finalidade de ser criado “na disciplina e admoestação do Senhor” (Efésios 6:4). Assim como João Batista
foi um precursor de Cristo, da mesma forma os pais devem “preparar o caminho do Senhor, endireitar
as suas veredas” (Mateus 3:3). A graça paterna tem o propósito de preparar o caminho para a vinda de
Deus em graça salvadora.

Desgraça Paterna

Infelizmente, os pais também têm o poder de espalhar pedras no caminho e, realmente, serem
bloqueios de estrada em vez de precursores da graça salvadora. Para descrever este lado do quadro
emprego o termo desgraça, que é a distorção trágica da graça.

O prefixo des tem história e uso interessantes. Provém do latim dis, e tem a sua raiz na antiga palavra
grega dus, que significa “ruim” ou “maligno”. Dis é comumente usado em termos relacionados com a
medicina, para descrever algo que sai errado, ou onde há uma doença; dispepsia (digestão perturbada,
indigestão); dislexia (impedimento da capacidade de ler); distrofia como em “distrofia muscular”
(atrofiamento dos músculos). Este prefixo é mais claramente entendido no termo disfunção, que
significa o funcionamento desordenado ou prejudicado de qualquer sistema. Portanto, desgraça é a
graça que foi distorcida ou prejudicada de modo que produz o oposto do originalmente desejado. A
graça é construtiva; a desgraça é destrutiva. A graça estimula a vida e produz saudável crescimento da
personalidade; a desgraça prejudica a vida e produz crescimento maligno da personalidade.

O que acontece quando a graça paterna se toma desgraça paterna? O que acontece quando
aquilo que Deus designou para ser o maior instrumento de desenvolvimento e de crescimento se
transforma em instrumento de prejuízo e de disfunção? Acontece exatamente o oposto. Em vez de
ajudar a preparar o ser humano para o novo nascimento e para a nova vida com Deus, a desgraça
paterna toma-se um obstáculo ao novo nascimento. Por quê? Os fundamentos necessários para as
relações interpessoais são assentados nos primeiros anos da infância. Da mesma forma como existe um
útero físico, no qual a vida biofísica do bebê ainda não nascido é alimentada e mantida, assim também
existe um útero emocional e espiritual no qual a vida de relacionamentos da criança se desenvolve. A
criança aprende uma linguagem de relacionamentos antes de aprender a falar. Pronta atenção às
necessidades físicas, aceitação e afeição incondicionais transmitidas através de abraços, do processo de
vinculação, de expressões faciais e tom de voz que denotam amor e aprovação — tudo isso comunica
mensagens de graça. Privação, negligência, aceitação condicional, baseada em desempenho perfeito,
afeição imprevisível, rejeição, feições condenatórias e tom de voz irritado comunicam exatamente o
oposto. Então a graça é distorcida e causa disfunções à criança. Anos depois, se palavras nada graciosas
e ações correspondentes são acrescentadas a esta primeira atmosfera de desgraça, a criança em
crescimento começa a praticar o padrão de desgraça dos relacionamentos que tem experimentado.

Os quatro conceitos mais básicos da vida brotam dos relacionamentos interpessoais que
experimentamos durante os anos de desenvolvimento. Quando me refiro a um conceito, como
freqüentemente faço em todos os meus escritos, não quero com isso transmitir uma imagem
meramente mental. Quero transmitir tanto a imagem mental quanto o conteúdo emocional ou o
sentimento que a cerca. Uma vez que somos pessoas inteiras, estes dois aspectos sempre caminham
juntos, quer o percebamos, quer não. De modo que quando empregamos o termo conceitos, na verdade
estamos falando sobre sentimentos-conceito ou conceitos-sentimento, que em última instância
transformam-se em padrões de personalidade totalmente pervasivos. Examinemos esses quatro
conceitos, que determinam a vida.

Seu Autoconceito

A família é a principal fonte de como vemos a nós mesmos. No início o bebê não tem consciência de si
próprio. Por volta dos dezoito meses de idade, a maioria das crianças é capaz de distinguir a si própria
dos outros e tem os rudimentos da auto-imagem. A partir daí a sua imagem é ampliada até que alcance
o tamanho da vida. Primariamente, essa auto-imagem vem das reflexões e reações sobre elas próprias
por parte das pessoas que lhes são mais próximas. E um sentimento-conceito acerca de si mesmas.
Nesse sentido, o lar é como um espelho no qual as crianças se podem ver. A sua auto-estima dependerá
grandemente do valor — ou falta de valor — refletido nos espelhos das pessoas que lhes são mais
significativas. O seu registro audiovisual toma-se a base de como elas perceberão a si mesmas nos anos
vindouros!

José era um jovem cujos amigos o descreviam como alguém que “tinha tudo sob controle”.
Bem-sucedido no trabalho, feliz no casamento e com uma família de fazer inveja, José era tido em alta
estima tanto na igreja quanto na sociedade. Então, quando chegou aos trinta e cinco anos, as coisas
começaram a mudar — não pelo lado de fora, mas por dentro. Em minha prática de aconselhamento há
muito tomei conhecimento do que chamo de “crise dos jovens adultos” na vida de muitos crentes. Essa
crise geralmente chega entre vinte e seis e trinta e oito anos de idade. Freqüentemente diversos fatores
tomam parte, tais como tensões ligadas ao casamento, criação de filhos, necessidades financeiras,
relacionamentos com pais ou com sogros. Entretanto, o motivo que parece levar as pessoas a buscarem
ajuda é o surgimento, às vezes quase a explosão, de emoções negativas e destrutivas. Essas emoções
muitas vezes representam exatamente o oposto de quem e o que essas pessoas pensam ser. Foi uma
situação assim que empurrou José para fora de sua vida confortável, e o forçou a buscar ajuda. Antes
disso, ele nunca tinha entendido os meus sermões sobre problemas emocionais, e não tinha paciência
com cristãos que pensavam necessitar de cura ou de aconselhamento.

No começo José estava embaraçado e confuso. “Parece que o inferno inteiro está solto na minha
personalidade”, confessou-me, com hesitação. Perguntei a respeito de possíveis fatores físicos. Ele me
garantiu que um check-up recente, a pedido de sua empresa, mostrou que ele estava em perfeita
saúde. Procuramos fatores circunstanciais, mas não descobrimos nenhum. Aos poucos a situação foi-se
esclarecendo. José parecia estar preso por profundos sentimentos de medo, insegurança e dúvida.
Apesar de todo o seu sucesso testemunhar o contrário, ele tinha um sentimento dominante de ser um
fracasso completo. Esse sentimento era tão forte que José também estava sendo tentado por certos
desejos e pecados que lhe eram completamente novos, o que acrescentava um sentimento de fracasso
espiritual. Tomou-se evidente que José tinha empurrado muitas coisas dolorosas para o porão da sua
personalidade. Conforme ele mesmo disse: “Essas coisas parecem estar subindo pelos canos do
aquecimento central.”

Desde os primeiros anos de vida José sentiu que não era desejado nem amado, especialmente pelo pai.
“Nunca senti ter sido aceito ou amado pelo que eu era. Só quando eu não lhes trazia nenhum problema
ou perturbação, ou se lhes desse motivo de orgulho, ou se pudessem utilizar-me para melhorar a sua
reputação — só então agiam como se me desejassem. Durante anos passei por cima de todos esses
sentimentos e fiz o meu caminho para o sucesso. Não me permitia olhar para essas coisas porque não
suportaria encarar a verdade.”

José lutou para conter as lágrimas e a dor. À medida que ele partilhava as cenas dolorosas de sua
memória, uma em especial o perseguia. Ele devia ter três anos de idade e sua mãe o estava levando do
hospital de volta para casa, depois de uma pequena cirurgia. Ele sentia náuseas e fraqueza e ela o
estava ajudando a entrar em casa. O pai estava do lado de fora, trabalhando no carro, com a cabeça
sob o capô. Sem mesmo virar-se para olhar, disse em tom de desagrado: “Tudo bem agora, não venha
aqui choramingar. Tenho trabalho importante a fazer.”
José nunca recebeu a nutrição vivificante da graça paterna: aceitação, afeto e afirmação. E agora sofria
de um caso de “deficiência de vitamina emocional A”. Ele tinha sido vítima da desgraça paterna, o que
deixou um buraco enorme no centro do seu ser, e estava destruindo a área mais importante da sua
vida, o seu relacionamento com Deus. E isso nos leva ao segundo conceito que determina a vida.

Seu Conceito de Deus

O lar é como uma clarabóia através da qual temos um relance das nossas primeiras imagens de Deus.
Adquirimos as primeiras “sensações” de Deus através do relacionamento com os pais. Grande
quantidade das características dessas sensações são entrelaçadas com a idéia do caráter de Deus, desde
o que é captado até o que é ensinado. Poucos pais percebem que qualquer coisa que for permitida no
lar é ensinada e captada) Passo horas e horas com adultos, alguns dos quais já em idade avançada,
ajudando-os a reconstruir os seus sentimentos-conceito de Deus Na percepção de muitos, Deus e os
pais estão totalmente emaranhados. Precisam separá-los antes de poderem ter um Deus a quem
possam amar e com quem possam conviver.

Embora eu pudesse fornecer um grande número de ilustrações de conceitos terríveis de Deus, cuja
fonte está na desgraça paterna, gostaria que olhássemos para o efeito duradouro da graça paterna que
forma um bom conceito de Deus.

Foi um grande privilégio receber Corrie ten Boom em nossa casa por três dias em 1961. Ela estava
apresentando uma série de conferências em nossa igreja, em Bangalore, na Índia . (A propósito, as
coisas de que ela mais gostou foram de nosso suprimento de água quente e as grossas toalhas de
banho americanas que lhe providenciamos!) Nunca me esqueci das histórias que ela partilhou, ao dar o
devido valor ao importante papel que seu lar desempenhou quanto à segurança e à força para suportar
as terríveis experiências do holocausto. Mais tarde descobri que ela havia resumido isso em um de seus
livros.

A minha segurança foi reafirmada de várias maneiras quando eu era criança. Todas as noites eu ia até a
porta do meu quarto vestida de pijama, e chamava: “Papai, estou pronta para ir para a cama”. Ele vinha
ao meu quarto e orava comigo antes de eu ir dormir. Lembro-me de que ele ficava um bom tempo
conosco e ajeitava os cobertores ao redor dos meus ombros com muito cuidado e com a precisão que
lhe era peculiar. Então colocava a mão gentilmente no meu rosto, e dizia: “Durma bem, Corrie... Eu amo
você.”

Eu ficava bem quietinha, porque pensava que se me movesse, poderia de alguma forma perder o toque
das mãos dele; eu queria senti-las até pegar no sono.

Muitos anos depois, num campo de concentração na Alemanha, eu às vezes me lembrava do toque das
mãos de meu pai no meu rosto. Deitada ao lado de Betsie, num colchão sujo e imprestável daquela
prisão desumana, eu dizia: “Senhor, deixa-me sentir a tua mão sobre mim.. . que eu possa me arrastar
para debaixo da sombra das tuas asas.” No meio daquele sofrimento estava a segurança do meu Pai
Celestial.’

Seu Conceito Sobre os Outros

Os nossos relacionamentos familiares influenciam grandemente o modo pelo qual olhamos para outras
pessoas e nos relacionamos com elas. Será que as vemos como amigos, como concorrentes, como
adversários ou talvez até como inimigos? Esperamos que os outros nos tratem com respeito ou com
desdém? Têm eles a intenção de nos ajudar ou de nos prejudicar? De nos animar ou de nos
desencorajar? Vivemos nós segundo a regra áurea, ou será que “fazemos aos outros antes que eles o
façam a nós”?

O lar é como uma janela através da qual olhamos para os outros. Ele influi no modo como os vemos e
no modo como pensamos que eles nos vêem. Aquilo que nós achamos que eles acham de nós tem
muito que ver com o modo como esperamos que eles se relacionem conosco. A diferença é se
recebemos a graça ou a desgraça paterna O Dr. Ken Magid é um psicólogo clínico atuante, e professor
numa escola de medicina. Recentemente, ele escreveu um livro cuja tese principal é que os Estados
Unidos estão passando por uma “crise de vínculos”2. Isto significa que toda uma geração está sendo
criada com a “síndrome da criança sem vínculos”. Essas crianças nunca foram verdadeiramente “unidas”
com os pais e, a não ser que esse vínculo seja restaurado ou modificado, jamais se achegarão a
qualquer pessoa. Por causa do comportamento dos pais — aquilo que temos chamado de desgraça
paterna — o Dr. Magid acha que essas crianças se tomarão adultos que parecem não ter consciência, e
que são incapazes de relacionar-se genuinamente com outras pessoas. O Dr. Magid os descreve como
os vigaristas da sociedade, mentirosos patológicos, e em alguns casos, criminosos perigosos. No cerne
da sua vida encontra-se uma ira profundamente arraigada, advinda de suas necessidades não
satisfeitas. Essa raiva parece estar trancada dentro de suas almas por causa do abandono emocional
que experimentaram quando crianças. Diz o Dr. Magid que é como se uma voz dentro deles dissesse:
“Eu confiei que vocês estariam aí e que tomariam conta de mim, mas vocês não o fizeram. Dói tanto
que nunca mais confiarei em ninguém. Tenho de controlar a tudo — e a todos — a fim de evitar que eu
seja abandonado de novo.” O livro está repleto de ilustrações de muitas pessoas desse tipo, que foram
tão seriamente prejudicadas no lar que hoje passam por momentos difíceis sempre que tentam receber
ou dar amor a outros.

Alegro-me de termos uma visão mais otimista, por causa do poder transformador de Cristo.
Verdadeiramente “a esperança não confunde porque o amor de Deus é derramado em nossos corações
pelo Espírito Santo, que nos foi outorgado” (Romanos 5:5). Mas existem muitas pessoas tão seriamente
marcadas pelo tipo de problema descrito pelo Dr. Magid que se faz necessário uma graça que cure
profundamente a fim de trazer inteireza a suas relações com os outros.

Seu Conceito de Realidade

A família é a porta para o mundo. Uma vez que as portas se abrem para ambos os lados, o modo pelo
qual uma criança experimentará a vida depende muito da interpretação que seus pais têm daquilo que
entra no lar e dele sai. A grande passagem sobre o lar, Deuteronômio 6, enfatiza a importância de
constante instrução moral e concreta. Os grandes princípios da vida devem ser discutidos com as
crianças e vivenciados perante elas em toda oportunidade: ao andar, ao falar, antes de se recolher à
noite e ao levantar pela manhã (v. 7). Devem ser o estilo de vida do lar, entrelaçados na estrutura da
família, e devem tomar-se os símbolos para toda a vida (v. 8). Devem ser escritos nos umbrais e nas
portas (v. 9). Os pais são, na realidade, os vigias de Deus. Tudo o que entra no lar e dele sai é
processado através da sua interpretação da vida.

Essa verdade foi confirmada alguns anos atrás quando diversas pessoas notáveis foram perguntadas
sobre o que mais influenciou na formação de seus padrões morais para a vida prática diária. A maioria
respondeu que foi a conversação da família às refeições. Através de nossos lares, recebemos a
concepção do mundo, da vida, da própria realidade, e de como tudo isso se relaciona com alguns
princípios embutidos, os quais serão descritos mais adiante. E por isso que a criança mimada pode ter
tantos problemas espirituais e emocionais quanto a criança maltratada, pois em ambos os casos há uma
idéia errada do mundo e da vida. A crueldade e os maus tratos certamente distorcem conceitos corretos,
mas assim também o faz o afeto sem a disciplina, e o amor sem os limites.

Earl Jabay, capelão do Instituto de Neuro-psiquiatria de Nova Jersey, em Princeton, gastou a vida toda
trabalhando com alcoólatras, viciados em drogas, e neuróticos. Diz ele que um dos maiores problemas
dessas pessoas é uma visão inadequada da realidade e da vida. Pensam que podem criar o seu próprio
mundo de fantasias, fazer as suas próprias leis e viver as suas próprias vidas de acordo com essas
fantasias.

São esses os quatro sentimentos-conceitos mais importantes de nossas vidas: o de nós mesmos, o de
Deus, o dos outros e o do mundo ao nosso redor. E a parte significativa da formação desses conceitos
vem através dos relacionamentos com os pais. Resta-nos ainda ver de que modo esses conceitos
determinantes da vida nos ajudam a viver uma vida cheia de graça, ou nos impedem de vivê-la,
CAPÍTULO 4
COMO TUDO COMEÇOU

Meu Salvador me convida para vir, Ah! Por que me demoro?


Ele chama o pecador cansado ao lar; contudo à parte dele fico.
O que é que me retém, de que não me posso separar?
Que não deixa meu Salvador tomar posse do meu coração?
Alguma coisa desconhecida e maldita certamente espreita no interior;
Algum ídolo, que não desejo possuir, algum pecado íntimo e secreto.
Jesus, mostra o obstáculo que tenho medo de encarar;
E dá-me a coragem de conhecer o que me mantém longe de ti.

Examinamos diversos obstáculos à graça, os quais contribuem para a formação do Cristianismo baseado
no desempenho. Agora, ao olharmos por trás deles e vermos a sua causa primária, chegamos ao cerne
do problema: o pecado. Segundo a Bíblia, o pecado é tanto a raiz do que temos descrito como uma
doença maligna, quanto a razão pela qual um desempenho perfeito jamais o curará. O coração do
problema é o problema do coração — decaído, adoecido e impotente para modificar-se a si próprio.

Mas o que há de errado em tentar alcançar de alguma forma um desempenho perfeito? Todos nós
queremos que as coisas sejam perfeitas. O erro básico dessa tentativa é que já não temos essa opção.
Nós a perdemos e já não podemos falar de nada que seja verdadeiramente perfeito neste mundo
imperfeito. E claro que a frase-chave é “neste mundo imperfeito”. Quer isso dizer que o mundo já foi
perfeito? Sim, mas caiu daquilo que era, e por isso os cristãos falam de um mundo decaído e imperfeito.
Alguma coisa aconteceu, a qual destruiu a perfeição do mundo. Será que isso significa que a vida nunca
mais poderá ser totalmente perfeita? Sim, pelo menos aqui no Planeta e no sentido em que o foi
originalmente. Algum dia, certamente, mas para isso serão necessários “novos céus e uma nova terra”
(Apocalipse 21:1). Aqui e agora, a vida pode ser perfeita somente num sentido novo e diferente, no
caminho da graça livremente dada por Deus.

Mas estamos indo rápido demais. Se devemos verdadeiramente entender tudo o que está por vir, temos
de voltar ao princípio. E isso o que Jesus fez ao ser questionado sobre a diferença óbvia entre o plano
ideal de Deus (no caso, para o casamento) e o modo menos que ideal que às vezes existia no mundo
decaído. Disse ele: “Não foi assim desde o princípio” (Mateus 19:8). Sigamos o exemplo de Jesus, e
voltemos à criação. É interessante que, enquanto escrevia, comecei a folhear meu exemplar da Nova
Versão Internacional da Bíblia. Tentando abrir em Gênesis 1, voltei três páginas demais e me encontrei
lendo estas palavras do prefácio: “Assim como todas as traduções da Bíblia, feitas como o são pelo
homem imperfeito, esta indubitavelmente não atinge os seus objetivos. Entretanto, somos gratos a Deus
pela medida em que ele nos capacitou a realizar estes objetivos e pela força que deu a nós e a nossos
colegas para completar a nossa tarefa.” Impressionante! Nem mesmo as traduções da Bíblia escapam às
conseqüências de um mundo decaído e imperfeito.

A Criação Perfeita

Os antigos filósofos costumavam discutir a origem da idéia que os seres humanos têm da perfeição. Não
poderia ter sido a observação concreta da experiência, uma vez que nada neste mundo é perfeito. Como
então puderam imaginar uma linha reta ou um círculo perfeito, quando na realidade tais coisas não
existiam? De onde vieram essas idéias? E assim a discussão ia e vinha.

Nós, cristãos, sabemos que a idéia do perfeito vem de um Deus perfeito que criou um mundo perfeito
com seres humanos perfeitos feitos à sua perfeita imagem. A cada passo do processo criador, Deus
declara que era bom (Gênesis 1:11, 18, 21 e 24). Finalmente, ao criar a humanidade à sua própria
imagem, macho e fêmea “viu Deus tudo quanto fizera, e eis que era muito bom” (Gênesis 1:31).
Percebe você, só depois de ter criado seres à sua própria imagem é que Deus achou que era muito
bom.

Tiago, em sua carta, acrescenta a importante palavra “perfeito” para descrever os dons criados por
Deus. “Toda boa dádiva e todo dom perfeito é lá do alto, descendo do Pai das luzes” (1:17). Pense
agora em quão completamente perfeita a boa criação de Deus na realidade era. A sua descrição
encontra-se nos primeiros dois capítulos do Gênesis.

• Deus criou um Universo perfeito, governado por leis perfeitas — perfeição universal.
Gênesis 1:1-9, 14-18 descreve a criação dos céus e da terra — a luz, o firmamento, a terra; os mares, a
vegetação; o sol, a lua e os planetas; todas as criaturas viventes, com a provisão para seu sustento.

• Deus criou um mundo perfeito de plantas e animais, com um equilíbrio perfeito entre eles
— perfeição ecológica. Gênesis 1:11- 13, 20-25 e 30 descrevem o modo pelo qual Deus providenciou
alimento e sustento para cada nível da sua criação.

• Deus criou um homem e uma mulher perfeitos com orientação sexual e identidade de
gênero perfeitas — perfeição psicofísica. “Homem e mulher os criou” (Gênesis 1:27).

• Deus deu-lhes personalidades perfeitas, modeladas de acordo com a sua própria, mentes
com capacidades incríveis de aprender, e emoções com forte senso de identidade e auto-
estima segura. Tudo isto para que o homem e a mulher dominassem sobre a criação — perfeição
mental, emocional e organizacional. “E Deus os abençoou, e lhes disse: sede fecundos, multiplicai-vos,
enchei a terra e sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, e sobre todo animal
que rasteja pela terra” (Gênesis 1:28).

• Deus deu-lhes companheirismo perfeito entre si, modelado de acordo com a harmonia da
sua própria natureza social, na qual Pai, Filho e Espírito Santo vivem em unidade e amor
perfeitos — perfeição relacional. Isto significava unidade e abertura perfeitas, sem defesa, culpa,
vergonha ou inibição. Pense nisto — nada a esconder! Adão e Eva tinham a capacidade de uma união
espiritual, emocional e física (sexual) perfeitas (Gênesis 2:18-35). Os versículos 24-25 denotam muito
mais do que o aspecto físico. Pressupõem que não havia barreiras de tipo algum — mental, espiritual,
emocional ou física: “Tornando-se os dois uma só carne. Ora, o homem e sua mulher estavam nus, e
não se envergonhavam.”

• Deus deu-lhes uma comunhão perfeita com ele mesmo — perfeição espiritual. Gênesis 3:8
descreve o que fora criado para ser uma relação bela e natural de amizade entre Deus e os seres
humanos. E o retrato incrível do Pai-Criador que anda e fala com os seus filhos: “Quando ouviram a voz
do Senhor Deus, que andava no jardim pela viração do dia.”

Foi esta a pedra angular da criação. Deus havia provido a satisfação perfeita, através de seu projeto
perfeito, a todas as necessidades básicas que ele próprio implantara na personalidade humana. Seu
projeto não era apenas perfeito, mas também perfeitamente natural, no sentido em que funcionava
naturalmente. Cada coisa, cada animal e cada ser humano operava perfeitamente dentro do esquema
que fluía da natureza criada. Nenhum tinha de se esforçar para conseguir funcionar. Se vivessem
conforme o perfeito plano divino e os perfeitos princípios divinos, tudo funcionaria perfeitamente. Os
versículos 4-6 do Salmo 8 expressam essa realidade da melhor forma:

Que é o homem, que dele te lembres? Fizeste-o, por um pouco, menor do que Deus E de glória e de
honra o coroaste. Deste-lhe domínio sobre as obras da tua mão, E sob seus pés tudo lhe puseste.

DEUS
abaixo os
SERES HUMANOS
arraigados, mas acima da
NATUREZA

Os seres humanos estão abaixo de Deus, e arraigados na natureza, mas acima dela. Foi este o esquema
perfeito. Se os primeiros seres humanos tivessem vivido de acordo com ele, tudo teria sido perfeito. Ah,
mas esse era um enorme se. E aqui estava a grande diferença entre Adão e Eva e toda a criação abaixo
deles. As coisas, as plantas ou animais cumpriam o seu propósito sem ter de fazer escolhas. O seu
destino tinha sido fixado para eles. Mas os seres humanos somente poderiam realizar os seus propósitos
escolhendo permanecer dentro do relacionamento correto com o Criador. E a escolha significava que
sempre haveria a possibilidade de não permanecerem nesse relacionamento. Os diversos termos bíblicos
que descrevem o pecado expressam a idéia de “ultrapassar uma linha”, “errar o alvo” e “não atingir o
objetivo”.

A Queda

O livro do Gênesis registra a história da escolha errada que a humanidade fez, e as terríveis
conseqüências que se seguiram. Chamamos a esse evento de Queda.

Os seres humanos, criados para viverem sobre e acima de todas as demais criaturas, mas abaixo de
Deus, deram ouvidos à voz do Maligno. Satanás, um dos maiores dentre todos os anjos, havia caído das
alturas da perfeição. Essa queda é descrita em Isaías 14:12-15 e Lucas 10:18. Ele desejou ser
semelhante ao próprio Deus, recusou-se a aceitar o seu lugar, e caiu para o fundo do Universo.

Semeou a mortal semente da tentação na mente de Adão e Eva, até que começaram a questionar a
bondade do caráter de Deus. Eles já não viam a limitação amorosa de Deus: “Não comerás da árvore..
.“, como provisão graciosa do Pai para que seus filhos desfrutassem ainda mais completamente todas as
demais árvores do jardim. Em vez disso, foram enganosamente levados a perceber essa limitação como
uma proibição cruel provinda de um tirano maligno. E escolheram não aceitar a palavra de Deus sobre a
questão, mas fazer as coisas ao seu próprio modo.

Mesmo a esta altura a questão não era escolher entre o bem ou o mal, o certo ou o errado — pelo
menos não no sentido em que usamos essas palavras agora. Adão e Eva somente tinham de viver em fé
semelhante a de uma criança. Não tinham de tomar decisões entre bem ou mal, certo ou errado — nem
sequer sabiam o que essas palavras significavam. A única decisão que lhes cabia era escolher entre duas
alternativas opostas: confiar na palavra de Deus e obedecer a ela, ou não confiar nele e decidir por si
próprios. Ou continuariam a viver num relacionamento de confiança e de recebimento com Deus,
desfrutando dessa forma todos os seus dons perfeitos, ou se recusariam a permanecer nessa posição
obediente e franca e, lançando mão da sua própria vida, começariam a tomar decisões baseadas no que
achavam ser melhor.

Infelizmente, se rebelaram contra Deus e o seu caminho. Recusaram-se a aceitar as limitações da sua
humanidade. Quiseram manter a sua posição acima da natureza, sem continuar abaixo de Deus. Tinham
a perfeição — eram um pouco menor do que o próprio Deus — mas queriam mais. Queriam ser como
Deus, no sentido de serem iguais a ele (Gênesis 3:4).i. Agostinho expressou-o assim:

E qual é a origem de nossa vontade má senão o orgulho? Pois “o orgulho é o princípio do pecado”. E
que é o orgulho senão ânsia por exaltação indevida? E isto é a exaltação indevida: quando a alma
abandona Aquele a quem deveria se apegar como seu fim, e se torna uma espécie de fim em si mesma.

Porém, quando Adão e Eva tentaram ser como Deus, não apenas não conseguiram tornar-se mais do
que eram, mas na verdade tornaram-se menos. Não puderam atingir a glória e a perfeição que
pertencem unicamente a Deus. Em vez disso, perderam o único tipo de perfeição que tinham: um dom
que lhes fora concedido como seres criados à semelhança de Deus.

Um Mundo Imperfeito

Por causa da Queda, a imperfeição permeia todo o Universo. Tente conseguir entender as perdas
globais que aconteceram. A perfeição humana original e inata se foi, e nunca mais a reconquistaremos
através de nossos esforços, não importa quão seriamente nos esforcemos para isso. Mas os cristãos
orientados pelo desempenho acham difícil aceitar essa realidade, e continuam vivendo como se
pudessem reconquistar a perfeição. “Se tão-somente... se tão-somente agirmos bem. Se tão-somente
alguém trabalhasse com maior afinco. Se tão-somente as pessoas compreendessem... Se tão-somente
Deus fizesse algo a respeito. Afinal, devia ser assim, portanto podia ser, seria, se tão-somente.

Em contraste com a fantasia de desempenho em que muitos tentam viver, examinemos o que perdemos
na Queda.
• Perdemos a perfeição natural e ecológica. Romanos 8: 19-22 descreve como “toda a criação”
agora é imperfeita, gemendo “como em dores de parto” aguardando o dia em que “será redimida do
cativeiro da corrupção”. Basta olharmos para a destruidora lista de males naturais, como terremotos,
tormentas, inundações, furacões, erupções vulcânicas, para vermos o desequilíbrio do mundo natural. O
caos agora ingressou no cosmo. Isto não significa que as leis naturais deixaram de operar; elas
efetivamente funcionam, mas o sistema não mais é perfeito. Um dos modos pelos quais os seres
humanos ainda tentam subjugar a natureza e governar sobre ela é compreendendo melhor essas leis,
cooperando com elas e protegendo a si mesmos da destruição natural. O atual conhecimento da
ecologia, da previsão do tempo, da advertência contra tempestades e terremotos, tudo é exemplo da
tentativa de colaborar com a natureza. Entretanto, a devastação, o sofrimento e a morte que esses
males naturais trazem são indiscriminados. Parecem caprichosos e injustos. As companhias de seguro os
classificam como “atos de Deus”, uma tentativa de explicar um mistério postulando outro. No
aconselhamento, tenho descoberto que muito da ira de alguns cristãos acontece porque simplesmente
não podem encarar o fato de que este é um mundo decaído, imperfeito e muitas vezes injusto. Estão
assolados por um senso demasiadamente elevado de injustiça, e esse senso os mantém irados com a
vida em geral.

• Perdemos a perfeição física. Milhares de fatos cotidianos nos lembram essa dolorosa realidade:
ferimentos e sofrimentos, doenças e deformações, degeneração e morte. Achamos que, se os nossos
primeiros pais não tivessem caído, teriam transmitidos a seus filhos e às gerações subseqüentes uma
herança biofísica perfeita. Em vez disso, todos nós somos vítimas de um conjunto de genes que cada
vez mais se tornam imperfeitos, enquanto deficiências físicas, mentais e hormonais são passadas de
uma geração a outra. Muitas têm efeito direto em nossos temperamentos inatos e nos tipos de
enfermidades que herdamos ou desenvolvemos. Embora essas deficiências não sejam pecaminosas em
si mesmas, são, contudo, pontos fracos que nos tomam mais vulneráveis a certas tentações e, portanto,
mais passíveis ao pecado. A tendência herdada de nervosismo e irritação, ou de certos tipos de
depressão, são exemplos comuns dessas fraquezas. Uma das tarefas mais difíceis, no aconselhamento
de crentes cuja mente é orientada pelo desempenho, é ajudá-los a aceitar as suas limitações, e viver
dentro delas.

• Perdemos a perfeição mental. Só podemos imaginar os poderes mentais originais da humanidade.


Certamente, a capacidade de Adão de classificar e dar nomes instantânea e intuitivamente a “cada
criatura vivente” implica um tipo de conhecimento direto e perfeito que não mais possuímos. Aquilo que
ele deve ter apreendido de imediato, nós o adquirimos somente através de longos e laboriosos estudos.
Ocasionalmente, num Miguelângelo, num Mozart, num Newton ou num Eistein, percebemos leve
vislumbre da capacidade mental original da humanidade. Chamamos uma pessoa assim de gênio, o que
significa que reconhecemos aquilo que receberam como sendo um dom, e não somente como algo que
alcançaram. Embora tais exceções raras nos lembrem do que perdemos na Queda, não queremos com
isso dizer que essas pessoas sejam perfeitas. No verão de 1987 os jornais apresentaram a história de
um jovem brilhante, estudante de matemática, que descobriu que até o grande Isaac Newton havia
cometido um grave erro ao utilizar as tábuas matemáticas, logo depois de haver descoberto a lei da
gravidade. Mas nós não precisamos de uma prova tão espetacular da imperfeição humana. As nossas
próprias experiências diárias fornecem toda uma gama, desde um embaraçoso saque a descoberto no
banco até uma morte trágica nas estradas, devida a um erro de cálculo.

Freqüentemente me surpreendo com os incríveis pressupostos que regem a vida de alguns cristãos
perfeccionistas e orientados pelo desempenho. Eu estava ouvindo Ângela contar-me todas as coisas
pelas quais se sentia culpada. A sua lista aumentava cada vez mais, e ela se emocionava ao despejar
fracasso após fracasso sobre si própria. O seu rosto mostrava sinais de tensão. Era evidente que ela
estava, conforme disse, “vivendo uma crise”.

Quanto mais falávamos, tanto mais ela se aprofundava num atoleiro de depressão. Eu tinha de fazer
alguma coisa para quebrar o encanto da melancolia. Inclinei-me para a frente e disse,
esperançosamente:

— Ângela , posso tocar em você?


Ela pareceu assustar-se e se afastou de mim.
— O quê?
Perguntei-lhe novamente: -
— Posso tocar em você? E que faz muito tempo que não vejo um ser tão divino.
— O que você quer dizer?
— O que quero dizer Ângela, é que somente uma criatura divina poderia esperar fazer todas as coisas
que você enumerou, quanto mais fazê-las com perfeição. Você tem expectativas absolutamente divinas.
Onde foi que adquiriu a noção de que você ou qualquer outra pessoa deveria fazer todas essas coisas?
O que estou ouvindo você dizer é que se sente culpada por não conseguir fazer tudo e fazê-lo sem
defeito algum.

Ângela ficou sentada em silêncio por um bom tempo. Então baixou a cabeça e começou a chorar.
— Você sabe o que estou pensando? — perguntou ela. — E uma loucura, e tenho vergonha de lhe
contar. Mas confirma o que ultimamente tem-se tornado claro para mim. Em algum lugar, há muito
tempo, comecei a levar a sério o modo como meus amigos costumavam me chamar: “Anja”. Nem posso
acreditar. Eu sentia que eles esperavam tanto de mim que comecei a desempenhar o papel de anjo. Não
posso pôr toda a culpa neles, eu mesma tenho muito que ver com isso, tentando sentir-me especial.
Foi um momento de autoconsciência revelado pelo Espírito que fez com que Ângela desse início a uma
nova peregrinação, da armadilha do desempenho para a graça e a liberdade.

• Perdemos a perfeição emocional. Nem é necessário elaborar esta questão. Tudo o que temos a
fazer é olhar honestamente no espelho e ver as nossas emoções negativas: medo, preocupação, ira,
raiva, ciúme e autodesprezo. Ou então nos lembrar de quão imprevisível e incontrolável é a série de
sentimentos que muitas vezes expressamos, mesmo para com aqueles a quem amamos.

• Perdemos a perfeição relacional. Talvez esta seja a área em que o nosso desequilíbrio emocional
mais nos prejudique. A beleza da abertura e da transparência que caracterizaram Adão e Eva em
Gênesis 2:24-25 se foi. Agora estamos equipados com mecanismos de defesa automáticos atrás dos
quais escondemos o nosso verdadeiro ser. Temos medo de nos desnudar emocionalmente e nos deixar
ser conhecidos por aqueles que estão próximos de nós.

Muitas vezes nos envergonhamos da nossa sexualidade, mesmo dentro do casamento. Amizades
significativas, companheirismo, comunhão cristã, ou as mais profundas intimidades da unidade sexual
dentro do casamento não surgem fácil e naturalmente. Para as termos é necessário um grande esforço
— às vezes até sofrimento. Na melhor das hipóteses, não são perfeitas; na pior, podem ser
terrivelmente destrutivas.

• Perdemos a perfeição espiritual. Esta é a perda fundamental, da qual provêm todas as outras.
Nossa centralização em Deus agora se transformou em egocentrismo. O que originalmente era um ser
perfeitamente unificado e integrado agora está dividido e desequilibrado. A personalidade humana,
antes em perfeita harmonia com Deus, com a natureza, com os outros e com ela mesma, agora está em
conflito com cada uma destas coisas.

Desfiguramos aquilo que Deus criou e designou para ser chamado de “filho”. O que era perfeito está
caído, torto e quebrado. Ao compararmos a emocionante beleza de Gênesis 1-2 com os gélidos
destroços de Gênesis 3, espantamo-nos com as terríveis perdas que sofremos.

Não Há Retorno?

O pior de tudo é que não há retomo. “O Senhor Deus, por isso, o lançou fora do jardim do Éden, a fim
de lavrar a terra de que fora tomado. E, expulso o homem, colocou querubins ao oriente do jardim do
Éden, e o refulgir de uma espada que se revolvia, para guardar o caminho da árvore da vida” (Gênesis
3:23-24). Não há retomo ao tipo de perfeição representado pelo jardim do Éden. Perdemos não apenas
o perfeito, mas também a capacidade de conquistá-lo, realizá-lo ou recuperá-lo. Nós verdadeiramente
vivemos no Paraíso Perdido. Não há retomo.

Mas não perdemos a lembrança do paraíso, nem a necessidade ou desejo dele. Deus deixou em nós o
anelo da perfeição. Esse anelo é uma das necessidades básicas que caracterizam os seres humanos —
como a necessidade de alimento, segurança, acolhimento, afirmação, afeto, sexo e, acima de tudo, a
necessidade de amar e de ser amado. O impulso à perfeição é parte vital da nossa necessidade de Deus.
Essa constante nostalgia pela perfeição é parte integrante do vazio em forma de Deus dentro de nós, o
qual somente Deus (o verdadeiramente perfeito) pode preencher.

Não há nada de errado com o desejo de perfeição. O pecado entra em cena quando nós, como criaturas
decaídas, insistimos em definir a perfeição com nossos próprios termos, e em buscá-la à nossa própria
maneira. O impulso para fazer isso encontra-se no cerne de nossa pecaminosidade proveniente da
Queda. Esse orgulho egocêntrico e distorcido, que é o fundamento do cristianismo baseado no
desempenho, é denunciado nas Escrituras como salvação “pelas obras”, ou, conforme Paulo o diz, uma
tentativa de justificação pelas “obras da lei” (Romanos 3:20). Resumamos o nosso desejo de perfeição
com estes opostos:

A virtude se transforma em vício.


O ideal se transforma em ídolo.
A realidade toma-se falsificação.
Um dom que deve ser recebido tentamos alcançar.
A busca da excelência se distorce na luta pela supremacia.
Um relacionamento imerecido se distorce numa busca de vantagem merecida.
As mãos vazias e abertas tomam-se punhos cerrados.

Apresentei muitos detalhes a fim de explicar a base bíblica da nossa busca pervertida do desempenho
perfeito. Ela está enraizada no “pecado original”, e é uma manifestação dele. Para alguns cristãos,
porém, os problemas emocionais estão tão entrelaçados com os pecados do espírito que se faz
necessária uma cura e reprogramação especial. Embora seja verdade que todos nós somos responsáveis
por nossos próprios pecados, muitos são vítimas de pecados de outras pessoas. As vezes é difícil separar
corretamente esses dois fatores. Muitos jamais encontrarão a libertação da armadilha do desempenho e
de todos os problemas emocionais e espirituais que a acompanham, a não ser que consigam fazer essa
separação. E por isso que o Espírito Santo (o grande Conselheiro) muitas vezes precisa da ajuda
temporária de um assistente humano. Por isso a graça curadora freqüentemente só entra em cena com
a ajuda de um pastor, de um amigo de confiança ou de um conselheiro profissional. Examinaremos
esses aspectos do problema mais adiante.

Porém, a esta altura é importante perceber que as raízes da orientação pelo desempenho são teológicas
Se a cura última é a graça, então a causa última do comportamento é o não entender, experimentar e
vivenciar a graça em cada área da vida. Isso significa que temos de aprender a abrir mão de qualquer
tentativa vã de alcançar relacionamentos corretos através de qualquer outro meio que não o plano
global de Deus, que é a graça. Até conseguirmos isso, estaremos condenados a ser cristãos
realizadores, orientados pelo desempenho.

Clara, um Sansão Atual

Você se lembra da senhora do capítulo 1, que terminou a carta, dizendo: “Eu pensei que tinha de
conquistar o seu amor, e isso quase me levou ao suicídio”? Ela se chama Clara, e é uma dona de casa
que, no desespero, tentou o suicídio. Entretanto, assim como muitos outros, ela reconheceu que
esperava que não desse certo; era, na verdade, um clamor desesperado por ajuda.

Clara utilizava um retrato bíblico de si mesma que nunca me havia ocorrido. Ela disse que, antes da
tentativa de suicídio, tinha-se identificado profundamente com Sansão. Aqui está o retrato a que ela se
referia: “Então os filisteus pegaram nele, e lhe vazaram os olhos, e o fizeram descer a Gaza; amarraram-
no com duas cadeias de bronze, e virava um moinho no cárcere” (Juízes 16:21). Clara disse que era
exatamente assim que se sentia — como se estivesse numa prisão, amarrada a uma grande pedra de
moinho, girando e girando, quase como um animal acorrentado. “Eu me sentia como se o meu destino
fosso girar o moinho. Qualquer coisa que tentava, levava-me a um círculo vicioso. Às vezes eu
conseguia manter a situação sob controle, e girar o moinho mais devagar. Mas normalmente começava
a andar cada vez mais depressa, pois me sentia forçada a continuar. Isto é, sentir que estava fazendo o
bastante. Mas nunca fazia o bastante, e assim nunca me sentia aceita nem aceitável. Eu estava presa
numa armadilha, e não conseguia achar um modo de escapar. Fui-me desgastando cada vez mais.
Posso entender por que Sansão acabou destruindo tudo. Parecia não haver saída. .. ainda hoje gostaria
de saber se há.”
Tenho ouvido esse tipo de clamor desesperado de muitos filhos de Deus sinceros, que estão “enjoados e
cansados de estar enjoados e cansados”. Naquele dia partilhei com Clara algumas palavras que
transmitiam a mais forte certeza possível de esperança, palavras que se encaixavam tão bem em sua
imagem de Sansão, proferidas por Jesus quando ele começou o seu ministério, na sinagoga de Nazaré.
O Espírito do Senhor está sobre mim, pelo que me ungiu para evangelizar os pobres; enviou-me para
proclamar libertação aos cativos e restauração da vista aos cegos, para pôr em liberdade os oprimidos, e
apregoar o ano aceitável do Senhor (Lucas 4: 18-19).

A minha oração é que as boas novas do evangelho da graça — o favor do Senhor — possam tomar-se
realidade em sua vida.

CAPÍTULO 5
AS MÁS NOTÍCIAS

Pecadores, voltem; por que iriam morrer?


Deus, o seu Salvador, pergunta-lhes por quê;
Deus, que em realidade suas almas resgatou,
Morreu ele próprio, para que possam viver.
Deixarão que ele morra em vão?
Crucificam novamente o seu Senhor?
Por que, ó pecadores redimidos, por quê?
Desprezarão a sua graça, e morrerão?

Jamais me esquecerei da primeira vez que vi o abismo do Grande Canyon, no Arizona. Eu era um típico
filho de missionário, que tinha visto muitas das assim chamadas maravilhas do mundo. Tinha aprendido
de modo difícil que a realidade dos lugares turísticos raramente corresponde à fantasia que cerca a sua
propaganda. Portanto, aos doze anos de idade, eu já tinha desenvolvido esta filosofia prática: “Não se
entusiasme demais com um local famoso, porque não corresponderá às suas expectativas.”

Foi com esse espírito cético que cheguei ao Grande Canyon, em 1934. Naqueles dias, relativamente não
explorados pelo comércio, a pessoa simplesmente caminhava na direção do Canyon e, de repente, lá
estava ele na sua frente. A minha surpresa foi tão grande que perdi a fala, e fiquei parado durante longo
tempo, em pura descrença perante a absoluta vastidão do seu tamanho — a largura, o comprimento, a
profundeza do abismo com aquela minúscula fita de um rio no fundo — e o incrível espectro de cores
cambiantes. Precisei de vários minutos para perceber que era verdadeiro. Pela primeira vez na vida, a
experiência real de alguma coisa ultrapassava as minhas expectativas!

E essa a imagem que me vem à mente quando penso em outro abismo, até maior do que o Grande
Canyon — o abismo que existe entre um Deus perfeito e santo e os seres humanos imperfeitos e
pecadores. E um Grande Canyon moral, ainda maior e intransponível. Como poderemos atravessar esse
abismo? Como poderemos construir uma ponte? A verdade é que não o podemos, e isso nos deixa
numa situação insolúvel. A Palavra de Deus toma bem claro que, a partir do nosso lado do abismo, não
há modo de negociar uma reconciliação. Se esse abismo deve ser transposto, terá de ser feito a partir
do lado de Deus.Não há nada que nós seres humanos possamos fazer para preencher os requisitos da
perfeita lei de Deus. Não se engane a esse respeito: esses requisitos não mudaram. O propósito de
Deus para conosco ainda é o mesmo. Ele nos criou para vivermos num relacionamento perfeito com ele
e com os outros, e ainda deseja a nossa perfeição.

A Lei e o Amor

Quando falamos de lei e de amor, não nos estamos referindo a “podes e não podes” ou a um conjunto
de leis. As pessoas imediatamente pensam nos Dez Mandamentos, nas leis do Antigo Testamento ou
nos mandamentos do Novo Testamento. Mas foi o próprio Jesus que nos revelou o que a lei realmente
era, ao mudar a fraseologia de um mandamento de Deuteronômio 6:5: “Amarás o Senhor teu Deus de
todo o teu coração, de toda tua a tua alma, e de todo o teu entendimento. Este é o grande e primeiro
mandamento. O segundo, semelhante a este, é: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo. Destes dois
mandamentos dependem toda a lei e os profetas” (Mateus 22:37-40). Partindo das palavras de Jesus,
Paulo escreveu: “O cumprimento da lei é o amor” (Romanos 13:8- 10). O apóstolo João também
enfatizou o amor a Deus e aos outros em 1 João 3:11-24, e 4:7-21. Não há dúvida de que a lei do amor
é o centro em tomo do qual giram todos os mandamentos e proibições das Escrituras, sendo também o
princípio que lhes dá o seu significado.

Para tomar as coisas ainda mais impossíveis para nós, Deus exige que a sua lei seja cumprida
perfeitamente em nossos corações. A nossa obediência deve ser uma tarefa interior, e não mera
conformidade externa. Portanto, não é suficiente que evitemos assassinar, adulterar ou roubar, pois
agora os mandamentos são altamente internalizados. Exige-se de nós que não guardemos rancor, não
sejamos lascivos, nem gananciosos. No Novo Testamento aprendemos que devemos amar a Deus de
todo o nosso coração, perdoar de coração as pessoas, e fazer de coração a vontade de Deus (Mateus
22:37; 18:35; Efésios 6:6).

Esta era a questão por trás das batalhas que Jesus travou com os fariseus, os obreiros orientados pelo
desempenho, da sua época. Eles guardavam a letra da lei com perfeição, mas constantemente
quebravam o seu espírito. Jesus lhes disse: “Hipócritas! Bem profetizou Isaías a vosso respeito, dizendo:
Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim. E em vão me adoram,
ensinando doutrinas que são preceitos de homens” (Mateus 15:7-9).

Quando examinamos de dentro para fora as exigências que Deus nos faz, não leva muito tempo para
percebermos o problema insolúvel: o abismo entre as suas exigências e as nossas realizações, o imenso
golfo entre o que é e o que devia ser. Na Queda não somente criamos o abismo, mas também
perdemos o poder de saltar sobre ele. Mas isso não quer dizer que não tentemos, pois efetivamente
tentamos. Tentamos construir uma ponte à moda nova e à antiga, sem sucesso em ambos os casos.

O Caminho do Ágape Desmazelado

Ágape é uma palavra grega que se refere ao amor de Deus ou ao tipo de amor que Deus coloca em
nossos corações. Ágape desmazelado é uma versão sentimentalista do amor de Deus, tão
desequilibrada que exclui os demais aspectos da natureza divina. Muito popular em vários grupos
religiosos modernos, alguns dos quais até chamam a si mesmos de cristãos, esse tipo de amor
simplesmente nega a existência do abismo, afirmando que Deus é tão amoroso que deixa de lado os
nossos pecados e as nossas falha. Esse ágape desmazelado é como um melado grosso despejado dentro
do Grande Canyon, enchendo-o até em cima, de modo que não se consiga mais ver o abismo que fica
entre os dois lados.

Ou então pode dizer que não existe abismo algum, pois não há verdadeira diferença entre o bem e o
mal, o certo e o errado, a verdade e o erro, o pecado e a retidão. Não há distinções morais, pois tudo
faz parte de Deus e, portanto, tudo é bom. Embora algumas coisas possam parecer ímpias, isso não
passa de ilusão.

Essa filosofia é apresentada em diversas embalagens atraentes. Existe o tipo popularizado pelas
celebridades da televisão, ou em livros e seminários caríssimos. E incrivelmente ridículo ver alguém que
a gente sabe estar levando uma moral baixíssima, dizer num programa de entrevistas da TV: “Eu sou
Deus!” Esse tipo de afirmação é comum no movimento da Nova Era. Aqueles que serviram como
missionários na Índia ou no Extremo Oriente, o reconhecem como uma versão simplória e
americanizada do velho hinduísmo ou budismo. Existem outras versões populares, que reduzem Deus a
uma espécie de entidade impessoal. A sua saudação é: “Que a força esteja com você.”

Há também o deus enfraquecido dos cristãos liberais, que de tão abrangente é retratado como um tipo
de bisavô nos céus, uma deidade benevolente e simplória que sorri para as suas criaturas aqui embaixo,
e diz: “Tudo bem, desde que as crianças estejam-se divertindo.”

Bíblia deixa claro que o amor de Deus é um amor santo. O mesmo apóstolo João que diz: “Deus é amor”
(1 João 4:16), também declara: “Deus é luz, e não há nele treva nenhuma” (1 João 1:5). As Escrituras
fazem muitas referências à “ira de Deus”. Percebo que essa expressão perturba alguns cristãos, muitos
dos quais são pessoas temas e hipersensíveis, com conceitos distorcidos e temerosos de Deus. Apesar
da sua boa teologia mental, no nível instintivo sentem a Deus como um onipotente bicho-papão celestial
cujo propósito é apanhá-los, e assim, estão aterrorizados. Essa é uma área em que precisamos de uma
compreensão bíblica equilibrada acerca de uma verdade muito importante; assim, encaremo-la de
frente.

A ira de Deus significa simplesmente que a santa natureza de Deus é imutavelmente oposta a todo o
pecado. Significa que Deus não pode fazer vistas grossas ao pecado, nem entrar em acordo mediante
alguma espécie de negociação. Dizendo de forma simples, Deus é contra todo pecado, apresentado em
qualquer forma, em qualquer lugar e em qualquer tempo. O pecado perturba a ordem moral do mundo,
e isso Deus não pode ignorar. Ele não pode tratar da mesma forma o bem e o mal; agir assim seria
negar a sua própria natureza moral.

A ira de Deus não significa o que ira muitas vezes significa para nós: um ataque de raiva, uma emoção
súbita, uma reação irritada de autodefesa acompanhada de perda do domínio próprio. Deus não explode
de raiva contra alguém por causa do pecado e então pensa em como se vingar. Em vez disso, a ira de
Deus é o seu antagonismo previsível e constante contra qualquer coisa pecaminosa ou não santa.

Confundimo-nos ainda mais se misturarmos ira e ódio, pois não são a mesma coisa. Os pais sabem
disso. Podemos ficar bastante irados com os filhos e ainda amá-los profundamente. Na verdade, os bons
pais vão mais longe, de modo que há horas em que é exatamente a sua ira que prova o quanto amam a
seus filhos. Pois quando os amamos verdadeiramente, não toleraremos nada que os possa prejudicar ou
destruir, vindo de fora ou de dentro. A ira de Deus, a sua oposição santa ao pecado, é prova segura da
sua preocupação redentora para com os seus filhos. Deus nos ama, e se importa conosco com tal
profundeza que o seu interesse pelo que nos acontece é infinito.

“Mas”, continua alguém a protestar “não entendo esse negócio da ira de Deus; isso me apavora.” Talvez
uma pergunta ajudaria a esclarecer a questão. Qual é a alternativa à ira de Deus? A alternativa não é
um Deus de amor, porque, como já vimos, amor e ira são duas faces da mesma moeda, e não se pode
ter uma sem a outra.

A alternativa à ira é a apatia, o que significaria um Deus moralmente neutro e indiferente ao resultado
da batalha entre o bem e o mal. Isso faria dele um Deus que se assenta no muro moral do mundo, e
diz: “Não me importo com o que acontece a eles. Deixe-os pecar, se quiserem; isso é problema deles.
Não vou interferir em suas vidas.” Portanto, sempre que a imagem bíblica de um Deus santo que se ira
contra o pecado parecer antiquada e assustadora, tente imaginar algo muito mais amedrontador: um
Deus apático que não se importa com nada. Imagine como seria viver num mundo como o nosso se
Deus fosse pessoalmente indiferente, e moralmente neutro. Seria um horrível pesadelo.

E a realidade de um Deus santo, irreconciliavelmente oposto a todo o pecado, que faz que a vida seja
tolerável num mundo como o nosso. Pois isso significa que Deus se importa o suficiente para se irar
quando pecamos, pois ele nos ama o bastante para nos desejar o melhor. Significa também que
sabemos de que lado Deus está: ele próprio se declarou ao lado do reto e da retidão. Isso é consolador,
não assustador! E pode nos impedir de tentar construir uma ponte sobre o grande abismo que há entre
nós e Deus, numa tentativa de modificar a sua natureza santa.

O Caminho Freudiano

Estamos usando o nome de Sigmund Freud meramente como representativo. Ele é comumente
considerado o pai da psicanálise e de todas as correntes da psicologia que tentam transpor o abismo
mediante modificação da natureza do pecado. Essa filosofia ou nega que o abismo existe, abaixando
assim os padrões de Deus para nós, ou reduz o abismo a uma simples valeta que é fácil de pular.

Alguém traçou um contraste entre Jesus e Freud, da seguinte forma: Cristo diz ao pecador: “Vai e não
peques mais.” Freud lhe diz: “Vai e não lamente pecado algum.” Embora essa seja obviamente uma
simplificação exagerada, contudo revela o erro básico de todos os que explicariam o abismo da culpa
como sendo meramente uma questão de sentimento de culpa.
Os sentimentos de culpa dos assim chamados pecados e erros, dizem eles, são resultado de diversos
tabus e regras colocados em nossa consciência por influências sociais e culturais. Os pais, os
professores, as religiões, as leis da sociedade, encontram-se entre as fontes de autoridade que ajudam
a formar os nossos conceitos de certo e errado. Criam os nossos sistemas de valores e, dessa forma,
criam os nossos sentimentos de culpa ou de aprovação. O modo de a pessoa se libertar desses
sentimentos é perceber que as regras provêm de opiniões humanas, e são totalmente relativas. Todos
nós temos diferentes padrões, e estes estão constantemente em mudança. Não existem absolutos,
afirmam eles, nenhum padrão fixo; uma vez que os estabelecemos, também podemos modificá-los, e
dessa forma atravessar o abismo.

E verdade que as épocas e as tradições formam algumas das normas culturais da nossa consciência. Há
muitos exemplos disso na própria Bíblia. Porém os padrões universais não se alteram. Estão escritos no
íntimo da humanidade.

O que de Deus se pode conhecer é manifesto... porque Deus lhes manifestou. Porque os atributos
invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder como também a sua própria divindade, claramente se
reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas. Tais
homens são por isso indesculpáveis... estes mostram a norma da lei gravada nos seus corações,
testemunhando-lhes também a consciência (Romanos 1:19-20; 2:15)

A Bíblia ensina uma revelação geral de alguns padrões universais, com as correspondentes idéias de
culpa e expiação. Estudos realizados por antropólogos confirmam que parece haver uma intuição
universal a respeito do abismo existente entre os seres humanos pecadores e Deus. O que diversos
povos fazem para atravessar o abismo varia muito, e pode ser muito errado. Mas a intuição básica por
trás dos atos é muito certa. De uma ou outra forma, todos parecem dizer: “Sem derramamento de
sangue não há remissão” (Hebreus 9:22).

a tentativa de auto-expiação na Índia , ao observar uma mulher hindu utilizar o corpo para medir a sua
jornada de oito quilômetros até o templo local; ou observar homens muçulmanos xiítas cantando e
batendo no peito desnudo até sair sangue. Também já vi essa tentativa em cristãos atribulados que vêm
para aconselhamento. Alguns destroem a si mesmos de um modo respeitável, mediante o excesso de
trabalho; outros tentam expiar os seus pecados através da penitência e da auto-depreciação interior;
aqueles que têm distúrbios emocionais utilizam métodos incomuns e obsessivos de auto-imolação.
Sempre me surpreende esse senso de culpa e de auto-expiação embutido nas pessoas. Podem tentar
reprimi-lo ou ignorá-lo, mas ele encontra meios interessantes de se revelar.

Dorotéia era uma adulta jovem e solteira que veio para se aconselhar. Ela não hesitou nem um pouco
em partilhar a sua vida abertamente. Assustei-me com o que parecia uma necessidade quase
compulsiva de revelar as misérias da sua vida com lúgubres detalhes. Ela era uma cristã moderna e
“liberada”, o tipo de cristão que sente pena dos pastores, pensando que vivemos num mundo protegido
e anti-séptico. Fazem questão de falar conosco acerca do mundo real. Parte da sua missão é iluminar a
nós, pobres almas privadas, acerca das alegrias da sua nova liberdade.

Dorotéia às vezes fazia uma pausa em seu recital proibido, olhava para mim como se eu fosse uma
amostra da vida antes do iluminismo, e dizia com um sorriso confiante: “Mas não quero que você pense
de forma alguma que me sinto culpada por essas coisas.”

Devo admitir que tenho uma perversidade que me leva a entrar no jogo com esse tipo de pessoas, e
assim eu disse: “Oh! não, é claro que não. . - entendo: nenhuma culpa.”

Então comecei a observar um pouco da linguagem corporal de Dorotéia, à medida que ela continuava
pegando lenços de papel da caixa que sempre deixo numa mesa lateral. Não para enxugar as lágrimas
— é claro que não — pois não sentia culpa alguma. Mas, lenço após lenço, ela os fazia em pequenos
pedaços. O que mais me fascinava era que ela estava completamente inconsciente do ritual de rasgar
lenços. Depois de algum tempo, decidi abandonar o papel de conselheiro indireto. Interrompi o último
capítulo das suas confissões verdadeiras, e disse um tanto abruptamente:

— Desculpe-me, Dorotéia, mas não acredito no que você está me contando.


— Como assim? É a verdade, sinceramente.
— Acredito em suas histórias, mas não acredito na sua história principal.
— Minha história principal?
— Não acredito na história de você não sentir culpa sobre todo esse lixo na sua vida. Na verdade, sinto
como se seu monte de culpa fosse tão alto quanto essa montanha de lenços de papel que você fez na
mesa.

Ela abaixou os olhos em assustada descrença. Evidentemente constrangida, permaneceu sentada em


silêncio, olhando fixamente para os lenços rasgados. Fiquei em silêncio, mas o Espírito Santo, que Jesus
prometeu que iria “convencer o mundo da culpa do pecado”, falou alto e bom som. Vagarosamente,
Dorotéia pegou outro lenço de papel, e desta vez o utilizou do modo correto.

— Você tem razão — choramingou ela. — Acho que esperava não me sentir culpada, desde que fosse
honesta acerca de meus pecados. Mas bem lá no fundo eu sabia que não era assim, e sabia que você
sabia disso. Acho que na verdade eu esperava que você não deixasse isso passar despercebido.

Lemos juntos a tradução de Phillips da maravilhosa passagem de Colossenses 2: 14-15, onde Paulo
descreve a obra de Custo na cruz:

Foi ele que perdoou todos os pecados. Por termos quebrado as leis e os mandamentos, fomos
condenados, mas Cristo riscou essa condenação que pesava sobre as nossas cabeças, anulando-a
completamente e pregando-a na cruz sobre a sua própria cabeça. E depois, retirando a força aos
poderes hostis a nós, expô-los já despedaçados, vazios e derrotados, no seu ato final glorioso e
triunfante!

Dorotéia compreendeu que não precisava destruir os seus pecados nem os lenços de papel, nem realizar
qualquer outro ato inconsciente de penitência. Cristo despedaçou todo o seu pecado na cruz, e libertou-
a da sua culpa, desde que ela os confessasse a ele, e confiasse no que ele fez por ela. Dorotéia
descobriu que não podemos transpor o abismo, negando que ele existe, mas somente através da
confiança naquele que o transpôs, “carregando ele mesmo em seu corpo, sobre o madeiro, os nossos
pecados” 1-Pedro 2:24). Que alegria foi, nas sessões seguintes, trabalhar ao lado do Espírito, ajudando
Dorotéia a purificar o seu procedimento e a viver como uma filha de Deus.

O Caminho Farisaico

Existe ainda um método ineficaz de tentar transpor o abismo, método freqüentemente utilizado pelos
cristãos mais legalistas. A eles pertence o caminho de obediência a um conjunto de regras precisas e
codificadas. Utilizam os mandamentos de Deus como o material principal da construção da ponte. Os
“podes e não podes” criados pelos homens são as porcas, os parafusos e os rebites que sustentarão e
firmarão as vigas. Com muito cuidado, constroem o que parece ser uma ponte bem forte, com seu
esquema de leis, regras e regulamentações externas fortemente interligado. O Manual do Proprietário
que a acompanha, trata de todos os detalhes. Então eles estendem essa ponte pré-fabricada sobre o
abismo e cuidadosamente, com muita oração, soldam-na no lugar certo. A ponte parece se encaixar
perfeitamente. O seu complicado projeto, o seu imenso tamanho e a sua qualidade inflexível, dão a
aparência de uma força gigantesca. Então, quando caminham por sobre a ponte, acreditam que tenham
transposto o vão, e chegam até a desfrutar certo sentimento temporário de paz e segurança.

Antes de a graça ter chegado à sua vida, Paulo construiu uma ponte assim. Ele fala sobre ela na sua
carta aos Filipenses (3:5-6):

“Hebreu de hebreus, quanto à lei, fariseu.., quanto à justiça que há na lei, irrepreensível.” E, é claro,
foram principalmente os fariseus do tempo de Jesus que haviam construído uma estrutura assim. Com
suas 612 regulamentações detalhadas para a vida diária, eles forjaram da justiça uma ciência exata. O
único problema era que, à medida que guardavam todas essas regras, deixavam de lado a principal: a
lei do amor. A mais feroz demonstração da ira de Jesus foi para com os fariseus, num dia em que
demonstraram mais interesse pela guarda das leis do que pela cura da mão ressequida de um homem,
realizada por Jesus (Marcos 3:1-5).
Muitos cristãos sinceros têm tentado agradar a Deus e transpor o abismo utilizando esse mesmo
caminho, só para descobrir que este é o caminho que menos lhe agrada. Nunca traz paz duradoura pois
sempre há mais alguma regra que alguém ou algum grupo acrescenta à lista. Além disso, os seus
seguidores jamais estão completamente certos de que realmente guardaram a lei do modo como
deviam. Essa é uma ponte insegura, que um dia, na tormenta, cairá.

Foi isso o que aconteceu, há muitos anos, a uma ponte suspensa muito famosa. Terminada no início de
1940, a Ponte Tacoma Narrows, no estado de Washington, era uma obra-prima de engenharia. Com
cerca de novecentos metros, ela possibilitava a travessia sobre as águas do Canal Puget Custou 75
milhões de dólares, um preço estrondoso para a época. Atraiu tanta atenção que uma companhia de
seguros local a utilizou como mensagem de propaganda, que dizia: “Tão seguro quanto a Ponte
Tacoma”. O anúncio ajudou a companhia crescer, mas somente por alguns meses. No dia 7 de
novembro de 1940, um forte vento começou a soprar, e ninguém sabe exatamente o que aconteceu
então. Uma hipótese é que por causa da disposição singular do terreno daquela região, o vento, preso
naquele local, teria na verdade o efeito de dobrar de velocidade. Portanto, o efeito do vento de 70
quilômetros por hora daquela tarde correspondia a uma velocidade de 140 quilômetros horários.

Qualquer que tenha sido a causa, a ponte começou a oscilar. Isso não era novidade — a mídia já havia
carinhosamente denominado a ponte de “Gertie Galopante”. Mas desta vez, a oscilação aumentou, até
que a ponte começou a oscilar, como uma lagarta em movimento. Diversos incidentes terríveis e
dramáticos aconteceram, quando motoristas saltaram para fora de seus veículos e se arrastaram pela
ponte, que agora se assemelhava a uma tábua de lavar roupa. Em poucos minutos, a gigantesca
estrutura fez-se em pedaços e despencou no canal. Felizmente, a única vida que se perdeu foi a de um
animal. A companhia de seguros, um tanto embaraçada, teve de contratar pessoas para percorrer todo
o noroeste dos Estados Unidos a fim de retirar o cartaz — “Tão seguro quanto a Ponte Tacoma”.
Quando a ponte foi reconstruída, em 1951, os engenheiros deram atenção especial ao que achavam ter
sido o defeito original: “insuficiente firmeza vertical e de torcedura nas vigas-mestras, que estavam a
apenas dois metros e meio de profundidade”.

Jesus terminou o seu sermão do monte com uma breve parábola. Não era acerca de uma ponte, mas se
ocupava com problemas de construção. A queda de uma das casas aconteceu porque os alicerces não
tinham sido encravados fundo na rocha.

Então, quando “caiu a chuva, transbordaram os rios, sopraram os ventos e deram com ímpeto contra
aquela casa.. . ela desabou, sendo grande a sua ruína” (Mateus 7:24-27).

A Bíblia deixa bem claro que qualquer tentativa de construir uma ponte sobre o abismo, mediante a
guarda da lei, está condenada. O propósito da lei é exatamente ampliar o abismo, não reduzi-lo.

Ora, sabemos que tudo o que a lei diz aos que vivem na lei o diz, para que se cale toda boca, e todo o
mundo seja culpável perante Deus, visto que ninguém será justificado diante dele por obras da lei, em
pela lei vem o pleno conhecimento do pecado (Romanos 3: 19-20).

Caminho do Esforço Maior

“Faremos maior esforço”, é um lema que está no ceme da mentalidade baseada no desempenho, e
descreve milhões de cristãos — sim, de filhos de Deus genuinamente nascidos de novo, que levam uma
vida diária de desespero. Caminhando por um ciclo aparentemente sem fim de fracasso, culpa,
arrependimento, confissão, perdão, restauração, tentando alguma coisa nova, só para ser seguida de
outro fracasso, mais culpa, outro arrependimento, confissão, perdão, restauração — e assim por diante,
ad infinitum. Ou talvez deveríamos dizer ad nauseum, uma vez que se enjoam e se cansam desse
esforço, e uma espécie de desilusão espiritual começa a tomar conta deles. Isso pode trazer diversas
conseqüências sérias, sendo uma delas a total exaustão física e emocional que provém do esforçar-se
mais para realizar mais. Algumas pessoas que vivem nessa situação de sobrecarga de estresse entram
em colapso, e experimentam o que comumente é chamado de esgotamento ou crise nervosa.

Outros, cansados dessa batalha perdida, acomodam-se numa zona sombria de fracasso e de depressão,
sempre procurando alguma nova elevação espiritual, que sempre parece conseguir escapar deles.
Alguns ficam irados com o que lhes parece ser uma consciência implacável, e um Deus que nunca está
satisfeito, e abandonam a fé. Embora exteriormente possa não parecer assim, essa fuga espiritual é, na
verdade, pior do que a crise emocional.

Outros ainda, abençoados com uma estrutura forte e com uma determinação obstinada, agüentam
firme, porém vivem com diversas combinações de problemas emocionais e espirituais. Esses são os
cristãos presos na armadilha do desempenho aos quais este livro se refere.

Qual é o erro básico do caminho de um maior esforço? Por que ele nunca funciona? Porque não se pode
atravessar um abismo em dois pulos! Temos apenas uma chance! Quando a Palavra de Deus diz que
“todos pecaram e carecem”, é exatamente isso o que ela quer dizer: carecem. Se a pessoa não
conseguir atravessar com um pulo, não chegará ao outro lado. E não faz diferença nenhuma se faltaram
dois ou cem metros — ou um centímetro apenas, para esse fim. Quando a pessoa não consegue chegar
ao outro lado, cai no buraco.

Em 8 de setembro de 1974 o dublê Evel Knievel tentou saltar o Canyon do no Snake, em Idaho. Antes
disso, Knievel ficara famoso por causa de suas proezas em pilotar motocicletas. Ele decolava de uma
rampa de madeira e, numa velocidade muito alta, voava sobre montes de cascavéis ou sobre fileiras de
carros. Várias vezes ele se machucou seriamente, e se orgulhava de ter quebrado todos os ossos
maiores do corpo, com exceção da nuca. A tentativa de voar sobre o temível abismo era o seu feito mais
ousado.

Naquele dia ele mostrou um cheque de 6 milhões de dólares, supostamente o adiantamento do seu
cachê. Esperavam-se 200.000 espectadores, e a façanha também seria transmitida pela TV de circuito
fechado. Na verdade, apenas algumas gangues de motociclistas, e cerca de 15.000 pessoas foram a
Twin Falls, para vê-lo voar por sobre o Canyon. Porém a sua moto voadora não conseguiu atravessar o
abismo. Felizmente para ele, o pára-quedas capacitou-o a flutuar até a margem do rio. Helicópteros de
resgate o trouxeram de volta, ferido e humilhado, mas sem ferimentos graves. O Livro do Ano de 1975
da Enciclopédia Britânica corretamente descreve o evento como “o fracasso mais espetacular do ano!”

Na verdade, essa é uma ilustração viva comum da falha humana mais comum: a tentativa orgulhosa e
maligna de atravessar o abismo moral e de se “tomar como Deus”. E uma tentativa condenada ao
fracasso, pois as Escrituras nos asseguram que não há modo de se atravessar esse abismo. Pelo fato de
sermos seres caídos, temos falta de poder e sempre ficaremos aquém de alcançar o objetivo. E não
importa o quanto nos esforcemos ou quantas vezes tentemos, sempre ficaremos aquém e cairemos de
novo. É realmente um círculo vicioso, e não há meio de rompê-lo com as nossas próprias forças.

Graças a Deus existe um caminho melhor: o seu caminho. A provisão graciosa de Deus em fazer uma
ponte sobre o abismo, o caminho da graça, é a única resposta. Mal posso esperar para falar com o leitor
acerca desse caminho.

Mas primeiro precisamos examinar um tipo extremo de cristianismo baseado nas realizações. E
comumente denominado de perfeccionismo, ou perfeccionismo neurótico. Essa é a forma mais séria da
doença. Vejamos onde são semeadas as sementes dessa doença, como ela se desenvolve, e algumas
das falsas curas propostas: soluções que nada resolvem, mas que passam a fazer parte do próprio
problema.

CAPÍTULO 6
AS CONSEQÜÊNCIAS DA
DESGRAÇA

Jesus vem com toda a sua graça,


Vem salvar uma decaída raça;
Objeto de nossa gloriosa esperança,
Jesus vem nos arrebatar.
Ele realizou a nossa salvação,
Ele comprou nossas almas cativas,
Ele nos reconciliou com Deus,
Ele nos lavou em seu sangue.
Agora somos seu direito legal,
Andando como filhos da luz;
Logo obteremos a graça,
De coração puro a sua face ver.

Creio que Deus designou a graça paterna como o principal modo de contrabalançar a Queda.
Entretanto, isso não significa que os cuidados paternos cristãos, até mesmo os melhores possíveis,
podem desfazer a Queda. O melhor lar não pode tomar a natureza de uma criança moralmente neutra
nem espiritualmente boa; tampouco pode garantir que essa criança automaticamente escolha o que é
correto. Os pais cristãos que se sobrecarregam de culpa precisam lembrar-se de uma coisa: Adão e Eva
foram as únicas pessoas em toda a história que receberam cuidado paterno perfeito, e mesmo assim
escolheram o caminho errado! Continuamos a ser pecadores decaídos, tanto por natureza como por
escolha, e assim continuamos necessitados da graça salvadora de Deus. A graça paterna não pode
remover as conseqüências da Queda, mas pode fornecer uma maior oposição a ela. Pois transmite o
amor ágape, e a graça imerecida, em termos concretos e compreensíveis. Na verdade, a graça paterna
opera segundo o mesmo princípio que Deus utilizou na encarnação: “E o Verbo se fez carne, e habitou
entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a sua glória, glória como do unigênito do Pai” (João
1:14). “O que era desde o princípio, o que temos ouvido, o que temos visto com os nossos próprios
olhos, o que contemplamos e as nossas mãos apalparam... a vida se manifestou, e nós a temos visto..,
o que temos visto e ouvido anunciamos também a vós outros...“ (1 João 1:1-3). As palavras que grifei
se referem aos sentidos físicos: visão, audição, sensação. Indicam experiências concretas, não conceitos
abstratos.

Certa mãe estava tentando tranqüilizar a filha pequena, ao colocá-la para dormir num quarto escuro.
“Meu bem, você não precisa ficar com medo. Lembre-se de que Deus está aqui com você.” Respondeu a
garotinha: “Eu sei, mamãe, mas preciso de um Deus que tenha pele.” As crianças não pensam segundo
conceitos abstratos mas de acordo com quadros concretos. Quando meu neto nos ouviu falar sobre
permitir que Jesus viva em nosso coração, ficou confuso: “Mas como é que ele entra no meu coração?
Será que ele entra pelo umbigo?”O mundo da criança é muito físico, muito literal. Idéias e conceitos
virão mais tarde. Para as crianças, as palavras precisam tornar-se carne e sangue, pele e corpo, face e
olhos que sorriem, pés que andam, mãos que tocam, braços que abraçam. As mais fortes influências
sobre elas vêm através de relacionamentos humanos vivos e reais com pessoas a quem consideram
importantes.

Os pais são o meio mais eficaz de comunicação de verdades, valores, conceitos e modo de vida, porque
encarnam essas coisas através de relações concretas. E este o motivo pelo qual dissemos que as
crianças aprendem uma linguagem de relacionamentos muito antes de proferir qualquer palavra. E é por
isso que a graça paterna é tão importante. Através dela temos a primeira experiência do genuíno,
embora imperfeito, amor ágape. Através dela podemos crescer, experimentando uma qualidade de
graça similar à que recebemos do próprio Deus. Essa amostra de amor e de graça, embora parcial, abre
o nosso apetite para o amor e a graça perfeitos de Deus. Mais do que qualquer outro fator, ela é
designada a fim de nos preparar para o advento da graça salvadora de Deus em nossa vida. A graça
paterna não garante a salvação, pois ainda podemos nos recusar a responder positivamente a Deus, ou
a receber a sua graça. O propósito central da graça paterna é preparar o caminho para o recebimento
da graça divina.

E exatamente por isso que a desgraça paterna é tão destrutível. Pelo fato de a graça conter o mais alto
potencial para ajudar, a desgraça contém o mais alto potencial para impedir. Os principais meios de
ministrar uma graça preventiva e preparatória podem tornar-se os principais meios de distorcê-la.

As Sementes do Perfeccionismo

Passemos agora a combinar várias verdades importantes das Escrituras com as da psicologia do
desenvolvimento. Esse exercício nos ajudará a compreender algumas das razões pelas quais nos
tornamos o que somos. Nesse processo deveremos descobrir as principais causas e conseqüências da
mais extrema e dolorosa forma do viver baseado no desempenho, geralmente chamada de
perfeccionismo.

Examinaremos também alguns dos falsos modos pelos quais as pessoas tentam solucionar o problema.
Admito minha dívida para com certos estudiosos e escritores geralmente classificados como psicólogos
sociais. Creio que a compreensão que alcançaram chega bem perto da compreensão bíblica, com sua
ênfase centralizada nos relacionamentos pessoais dentro da família e da comunidade.

Quanto mais envelheço e quanto mais pratico o aconselhamento, tanto mais me impressiono com o
insondável mistério da personalidade humana. Existe apenas Um, o próprio Senhor, que “conhecia a
todos. E não precisava de que alguém lhe desse testemunho a respeito do homem, porque ele mesmo
sabia o que era a natureza humana” (João 2:24-25). Somente ele, que é a Verdade, conhece a verdade
sobre a personalidade humana. O melhor que temos para oferecer são verdades acerca da verdade.
Oferecer mais do que isso é diminuir o mistério e reduzir a nossa responsabilidade. Ao fazermos isso,
diminuímos o fato de que em última instância somos responsáveis perante Deus pelas escolhas que nos
fazem o que somos. Tentar explicar é útil, mas nunca devemos explicar ao ponto de desfazer a questão.
Observe com atenção o quadro Origem e Desenvolvimento de um Perfeccionista, e examine todo o
processo, para obter uma impressão global. Se não compreende uma seção em particular, deixe-a e
continue a ler. Agora passaremos a dividir a figura em diversas partes, e apresentaremos cada uma
separadamente com detalhes.

Existe muita confusão entre os cristãos a respeito das palavras “eu” e “ego”. Tomando-se de forma
negativa, esses termos podem significar o ego pecaminoso, carnal e centralizado na própria pessoa, a
“carne”, que as Escrituras dizem ser necessário crucificar.

Utilizo os termos “eu” e “ego” no sentido positivo da personalidade básica, o “eu” que Deus designou
que a pessoa fosse: imortal, indestrutível e de valor eterno à vista dele. Significa a personalidade
humana básica, o “eu” peculiar com todas as possibilidades da personalidade em particular e com os
seus talentos.
O Deus do Universo, que não fez iguais nem sequer dois flocos de neve, determinou que cada um de
nós fosse um “eu” próprio, singular.

Sua personalidade é o que faz você ser você. No plano de Deus, é essa pessoa em potencial que,
através da salvação e da santificação, deve cada vez mais ser transformada na semelhança de Cristo
(2 Co. 3:18). Esse “eu” é feito tanto para a comunhão terrena quanto para a comunhão eterna com
Deus e com outras pessoas.

Mas esse “eu” não emerge de repente. Você e eu nascemos de pais humanos, e deles herdamos corpo,
mente e instintos acerca de muitas coisas, as quais foram codificadas em nossos genes. Além disso,
nascemos em famílias que criaram o ambiente e a atmosfera nos quais esse “eu” cresceria e se
desenvolveria. Deus planejou isso de modo que todos nós tivéssemos um conjunto inteiro de
necessidades, as quais teriam de ser satisfeitas a fim de que pudéssemos nos tomar as pessoas únicas
que ele queria que fôssemos. Essas necessidades vão desde a alimentação e proteção, até a segurança
emocional e o afeto. Na seção sobre a “Graça Paterna na Vida de Jesus”, no capítulo 3, vimos o modelo
desse conjunto de necessidades. As necessidades mais profundas são as de relacionamento com outros
seres humanos e, acima de tudo, com Deus. Se essas necessidades forem razoavelmente satisfeitas, o
nosso “eu” divinamente projetado se desenvolverá com o potencial de se tomar uma pessoa inteira.

AS NECESSIDADES NÃO SÃO SATISTEIFAS – DESGRAÇA PATERNA


IDIRETAMENTE DIRETAMENTE
Pela privação de nutrição física, alimentação Pela rejeição, ausência, ridículo, injustiça,
emocional, aceitação incondicional, segurança, mensagem mista (vínculos duplos), legalismo
sentido de pertencer, afeto, afirmação, disciplina excessivo, crueldade, pressão excessiva, maus
e instrução. tratos [verbais, emocionais, físicos, ou sexuais].

Examinemos mais perto algumas dessas necessidades divinamente implantadas, que precisam ser
satisfeitas para que ocorra um crescimento e um desenvolvimento saudáveis . Além de receber
alimento e cuidado físico, as crianças precisam sentir que são aceitas e amadas. Necessitam de um
senso estável e confiável de segurança, e do sentido de pertencer. Foram feitas para o amor ágape, que
inclui tanto a disciplina (estabelecimento de limites) quanto o afeto genuíno. E, acima de tudo, as
crianças necessitam de uma atmosfera em que sintam que essas necessidades são satisfeitas por causa
de quem são, e não por causa do que fazem.

E na qualidade dos primeiros relacionamentos interpessoais que as crianças recebem a primeira amostra
da graça, ou do seu oposto, a desgraça. E aqui que a boa semente da aceitação incondicional e
imerecida, ou a semente mortal da aceitação condicional e baseada no desempenho são semeadas. E
muito freqüente nesses primeiros anos serem implantadas profundas impressões acerca da vida, as
quais terão efeitos duradouros sobre o desenvolvimento da personalidade.

Em certos lares essas necessidades não são satisfeitas. Os exemplos mais óbvios são os lares onde o
alcoolismo ou o vício das drogas tomam a vida extremamente instável, e onde as crianças acabam tendo
de satisfazer as necessidades de seus pais. Ou então lares onde crueldade física, emocional e verbal são
comuns. Certamente todas as formas de abuso sexual (heterossexual e homossexual) são terrivelmente
prejudiciais, pois a sexualidade e a identidade com muita freqüência se desenvolvem juntas.
Um estudante universitário partilhou comigo que, desde quando era criança, tinha sido atacado pela
mãe. Sempre que ela perdia a cabeça, agarrava-o pelo braço, punha-o de pé e o lançava contra a
parede. Uma vez esse abuso provocou-lhe o deslocamento do ombro, e ele foi forçado a dizer ao médico
que tinha caído de uma árvore. Outra aluna, trêmula, descreveu-me como seus irmãos mais velhos a
violentavam sexualmente. Uma vez que isso geralmente acontecia quando ambos os pais estavam no
trabalho, ela sentia muita amargura acerca do fracasso deles de protegê-la do abuso ou das ameaças
que a silenciavam. O caso mais triste é o das crianças em cujos lares situações como essas existem lado
a lado com a participação na igreja e com um compromisso professo com o Cristianismo bíblico.

/Mas existem também as privações menos óbvias, nas quais a criança que está na fase de crescimento é
roubada do cuidado emocional e espiritual por modos mais sutis, talvez por um pai que externamente
tem todas as atitudes de cuidado, mas que interiormente rejeita a criança. Quantas vezes já não ouvi
declarações como: “O pessoal lá de casa me dava tudo o que eu queria: brinquedos, roupas, dinheiro,
mas nunca me deram amor e afeto. Eu trocaria tudo aquilo pelo conhecimento de que realmente me
amam.” O principal fator que faz com que uma criança se sinta rejeitada é o conhecimento emocional de
que não foi amada nem querida por ser quem era. Isso pode tomar a forma de negligência, desinteresse
ou falta de disciplina porque os pais não se importam o suficiente. Ou pode vir de um ângulo
completamente diferente. Freqüentemente ouço de filhos de pastores e missionários: “Nunca senti que
tivesse alguma importância, ou que se preocupavam comigo, motivados por quem eu era como pessoa.
A única coisa que realmente lhes interessava a meu respeito era como eu influenciaria a reputação
espiritual deles.”

Alguns pais usam a retirada do afeto como forma de castigo; ou a culpa, como meio de controle. Disse-
me uma senhora: “Minha mãe foi a agente de viagens das minhas jornadas de culpa, viagens
geralmente só de ida.” Talvez a forma mais sutil de amor condicional seja o uso de mensagens mistas e
de vínculos duplos. Uma das afirmações de Jesus, de maior profundidade psicológica, é:

“Seja, porém, a tua palavra: Sim, sim; não, não” (Mateus 5:37). Pais que constantemente dizem “sim” e
“não” ao mesmo tempo criam profunda confusão, e emoções contraditórias em seus filhos. Por exemplo,
quando a criança pergunta: “Mamãe, posso ir lá fora brincar?” a mãe não deve responder com um
confuso: “Sim, vá, mas lembre-se de que ficarei aqui limpando o seu quarto.” E muito mais saudável
dizer: “Sim, depois que você limpar o quarto (ou fazer a lição de casa)”, ou: “Não, preciso que você me
ajude hoje.”

São muitos os clássicos exemplos cômicos de vínculos duplos. O pai dá duas camisetas ao filho no Natal.
Quando ele usa uma delas, o pai lhe diz, em tom ofendido: “Oh, então você não gostou da outra?” Ou:
“Eu te amo, apesar de você ser imbecil, ou gordo, ou feio, ou mal-criado, ou apesar de você ser
menina.” Mensagens mistas deixam as crianças numa situação sem saída, na posição em que se “dará
mal se fizer e se dará mal se não fizer”. Essa situação leva-as a sentir que nada do que possam fazer
agradará aos pais, que não há modo de conquistar o seu afeto e aprovação.

Outra área em que muitos pais, cristãos sinceros, não percebem o quanto promovem o ambiente de
aceitação condicional e conquistada pelo desempenho, é a ênfase excessiva nos podes e não podes da
vida cristã. Certamente é responsabilidade dos pais ensinar aos filhos os mandamentos bíblicos de Deus.
Têm de fazer isso tanto por preceito, o que ensinam, quanto’ por exemplo, como vivem. Porém mais
crucial ainda é o espírito como esse ensino é ministrado. Em Efésios 6:4 e Colossenses 3:21, Paulo
adverte os pais a que não “provoquem à ira” nem “irritem” a seus filhos.

Essa passagem contém um importante princípio, o qual podemos colocar na fórmula: R+R—R=R+R.

Regras e Regulamentos menos Relacionamento é igual a Ressentimento e Rebelião.

As regras e os regulamentos e a sua imposição através da disciplina têm de ser inseridos no contexto de
relacionamentos amorosos e repletos de graça, ou provocarão frustração e ressentimento. E
perfeitamente necessário e adequado os pais imporem padrões cristãos e regras familiares mediante a
correção e a disciplina dos filhos. Mas devem deixar claro que as suas atitudes são motivadas por aquilo
que os filhos fizeram, e não por causa de quem são. Uma coisa é dizer: “Estamos fazendo isso porque o
amamos o bastante para não deixá-lo crescer fazendo isso.” Outra completamente diferente é dizer:
“Você é um menino desobediente”, ou: “Você é uma menina má”, ou: “Você sempre faz coisas desse
tipo”, ou: “Você quer ser como o quando crescer?”, ou: “Não sei por que tivemos você.” O primeiro
exemplo é a correção do comportamento errado, assegurando aos filhos que, apesar de terem
desobedecido a uma ordem, o relacionamento deles com você continua intacto. No segundo exemplo os
pais humilham e rebaixam os filhos como pessoas, e deixam implícito não somente a sua desaprovação,
mas também o fato de que não os aceitam. E por isso que lares cristãos legalistas e faltos de graça
podem ser emocionalmente destrutivos, mesmo que exteriormente todos pareçam estar fazendo as
coisas certas.

Não é como se a criança conscientemente decidisse ser uma pessoa diferente. Essa decisão ocorre bem
no íntimo da personalidade, abaixo do nível da consciência. Se pudéssemos colocá-la em palavras, seria
mais ou menos assim: “E evidente que não sou aceito nem amado como sou. Nada que eu faça parece
agradá-los. Então é melhor que me tome alguma coisa diferente, alguém diferente. Talvez então serei
aceito e amado.”

Então, aos poucos, vai surgindo um eu fantasioso e imaginário, um superego que pode estar à altura
das exigências e expectativas dos pais. Se esse processo tiver início quando a criança ainda for bastante
jovem, em pouco tempo o que o verdadeiro eu realmente pensa, sente ou deseja será ignorado, pois as
energias físicas, emocionais e espirituais serão gastas em atingir e sustentar o superego.

UM FALSO SUPER-EU SE DESENVOLVE

Uma imagem idealizada, um quadro fantasioso e falso de si mesmo é desenvolvido ao se tentar


satisfazer a essas necessidades, e assim ser agradável, aceito, amado e singular.

SER ESSE EU IDEALIZADO AGORA SE TORNA O ALVO PRINCIAPAL. ESTE ALVO CONSOME
TODAS AS ENERGIAS EMOCIONAIS E ESPIRITUAIS. É A BUSCA DE GLÓRIA.

Esse “eu” aos poucos passa do “eu sou SINGULAR” para “eu sou ESPECIAL”, até chegar ao “eu
sou MELHOR”. As minhas NECESSIDADES tornam-se EXIGENCIAS SOBRE OS DEMAIS: “Eu
tenho DIREITO”.

Todos nós temos medo de que os outros saibam quem realmente somos. Esse medo começou quando
Adão e Eva se esconderam de Deus por entre as árvores do jardim, e se esconderam um do outro
cobrindo-se com folhas de figueira (Gênesis 3:7-8). Esse medo inato de revelar o nosso verdadeiro “eu”
pode combinar-se com a necessidade de nos tomarmos um falso “eu”. Dessa forma, o pecado é, em
grande parte, complicado pelas emoções danificadas resultantes da desgraça, pois a busca de uma
personalidade falsa é uma paixão que a tudo consome. Isso vem a ser o que Karen Horney
apropriadamente denomina “a busca da glória”.

Nesse processo, o sentimento dado por Deus de que “sou singular” é distorcido em “sou especial”, e
então em “sou melhor”. Quando o superego se desenvolve, passa a “tenho direito”. As necessidades
foram transformadas em exigências, exigências para com Deus e para com os outros. “Já que sou tão
especial, tenho direito a um tratamento especial.” Quando essa consideração especial não é
apresentada, a pessoa pode ficar irada contra os outros e contra Deus.
Num processo desses, o eu real ou é negado ou é menosprezado, e não tem oportunidade de se
desenvolver. E por isso que, mais tarde, tais pessoas muitas vezes dirão: “Na verdade não sei quem
sou, e tenho medo de descobrir.” Experimentam um senso interior de vazio, de falsidade e um profundo
sentimento de solidão que nada parece preencher. Qualquer coisa que tentem é bloqueado pelo
superego e nunca alcançam o verdadeiro eu. A criação de um eu irreal e falso muitas vezes é o preço da
sobrevivência emocional, pois não existe outro modo de suportar a dor mental da rejeição. Mas a
alienação do verdadeiro eu é um preço terrível a pagar, e um trágico desperdício da personalidade
divinamente projetada “antes da fundação do mundo” (Efésios 1:4, 11).

E essa a razão pela qual tantos cristãos participam de um jogo de comparações e nunca sentem que
estão “à altura”. Em vez de permitir que o eu planejado por Deus “cresça em tudo em Cristo” (Efésios
4:15), continuam tentando ser super-cristãos, que precisam ser melhores do que as demais pessoas. O
problema com essa atitude é que a pessoa sempre pode encontrar alguém que é ainda melhor do que
ela e, dessa forma, a luta para ser o melhor continua.

Algum dia esse falso eu precisa morrer para que o verdadeiro eu tenha permissão de viver e crescer
como antes. Nesse sentido, é preciso que um renascimento espiritual, morte e ressurreição aconteçam.

AS PRINCIPAIS CARACTERISTICAS DO SUPER-EU SÃO:

Necessidade Prioridades Necessidade Necessidade


de ser perfeito distorcidas de um bode expiatório ardente de provar

Chegamos, agora, às quatro principais características do superego.

• A necessidade de ser perfeito. O superego é uma super-pessoa que precisa fazer as coisas com
perfeição. Ou, pelo menos, devia ser capaz de fazê-lo. O sentimento é: “Se tão-somente eu pudesse
fazer e ser aquilo que eles querem, eles me aceitariam, me amariam e gostariam de mim.” A tragédia é
que eles muitas vezes são pessoas que jamais se satisfazem, ou que não sabem ao certo o que
desejam. O superego esforça-se cada vez mais a fim de agradá-los. A roda-viva do desempenho agora
está em funcionamento tendo “se tão-somente” como lema. Essa tentativa inútil produz um profundo
desespero na personalidade, o qual pode não vir à tona durante muitos anos.

Era isso o que estava acontecendo com Margarete, uma mulher de cerca de trinta anos de idade. Apesar
de sua dedicação a Cristo e de uma sólida vida devocional, o seu casamento e a sua família estavam
sendo abalados por causa das suas explosões de raiva sérios encontros com a depressão. Não levou
muito para descobrirmos que ela havia internalizado a voz de uma mãe perfeccionista e sempre
insatisfeita, e chegou ao ponto de pensar que era a voz da consciência e de Deus. Agora ela era o seu
próprio capataz implacável, exigindo de si mesma a perfeição, exatamente como os outros haviam
exigido. Mágoa, ira e culpa mantinham a roda-viva girando. Margarete precisava encarar as mágoas e
então perdoar aqueles que a tinham ferido.

Durante um de nossos encontros de oração pela cura de algumas memórias dolorosas, surgiu uma cena
que ela não tinha partilhado comigo. Ela disse que não queria examinar isso, mas enquanto estávamos
orando, Deus lhe deu a coragem necessária para enfrentar a dor. Ela era muito jovem e estava
estudando para o seu primeiro recital de piano. Queria executar a peça com perfeição, e por isso treinou
sem cessar, até decorá-la. No recital ela executou a peça com perfeição. Enquanto deixava o palco, o
seu professor de piano disse-lhe gentilmente: “Excelente Margarete, você executou a peça com
perfeição!” Ela ficou muito entusiasmada. Mas quando voltou para o seu lugar, ao lado da mãe, esta fez
uma pausa e depois sussurrou ao ouvido de Margarete: “O seu saiote estava aparecendo o tempo todo.”
Margarete chorava enquanto falava com Deus sobre isso e sobre muitas outras cicatrizes. O melhor de
tudo é que recebeu graça para perdoar, e também para ser perdoada pelos ressentimentos que
carregara durante tantos anos. Era a crise iniciando um processo de mudança, passando da vida sob a
lei para a vida sob a graça.

• A necessidade de um bode expiatório. Nem mesmo o superego consegue ser perfeito. Se


precisamos ver a nós mesmos como perfeitos, então só há uma solução: temos de ter alguém sobre
quem jogar a culpa. “Poderíamos ter, deveríamos ter, teríamos... se tão somente.” Se tão-somente a
mãe não tivesse feito isso... Se tão-somente papai não tivesse feito aquilo... Se tão-somente o irmão, a
irmã fossem diferentes... Se tão-somente aquele professor tivesse ou não tivesse... Se tão-somente o
pastor, a igreja tivesse. .. Se tão-somente Deus tivesse, não tivesse, fosse. .. Se tão-somente o marido,
a esposa, os filhos.. . A lista é infinita.

O único modo pelo qual o superego pode sustentar o mito de ser super é colocar a responsabilidade
pelo fracasso sobre alguém mais, ou sobre outra coisa. Mesmo as pessoas que parecem lançar toda a
culpa sobre si mesmas, interiormente crêem que a verdadeira falha é daqueles que fizeram que elas
fossem o que são.

E essa uma das principais razões por que é difícil conviver com pessoas perfeccionistas e de mentalidade
orientada para o desempenho. Aconteça o que acontecer, a culpa precisa ser colocada em algum lugar.
Essa necessidade destrói os relacionamentos.

• A necessidade ardente de provar a si mesmo. Ainda não aconselhei um perfeccionista que não
fosse profundamente irado. Quando entramos em contato com a ira de algumas pessoas, ela jorra como
um poço de petróleo até que experimentem graça nesse nível, o superego permanecerá irado, exigente,
e terá de dar provas a si mesmo. O perdão é de importância crucial para a cura dessa doença. O
perdão, dado aos outros e a nós mesmos, e recebido de Deus, diminui o ressentimento e nos ajuda a
tratar com a necessidade de provar que somos dignos de ser amados e aceitos.

• A distorção de prioridades e valores. O superego precisa provar que é superior, e dá-se a uma
busca incansável por um espaço onde possa fazê-lo. E aí que os valores distorcidos da cultura
pecaminosa exercem grande pressão. A ênfase terrivelmente exagerada nos esportes, nas notas, na
beleza física, na atratividade sexual, na espirituosidade, no sucesso (incluindo falsas idéias sobre o
sucesso espiritual), na riqueza material, nas coisas — a lista é interminável — tudo pode vir a se tomar o
centro inadequado em tomo do qual gira o superego.

Ou o superego pode inverter a lista e sentir-se superior pelo fato de não buscar nenhuma dessas coisas.
O superego pode fazer tudo o que conseguir para não conseguir. Pode buscar o estranho e o incomum e
especializar-se em ser diferente.

Já não me surpreendo mais com o valor falso, com a prioridade mal colocada, deslocada ou distorcida
que as pessoas utilizam para demonstrar que são diferentes, especiais e “super”. Quando nos
recusamos a aceitar e desenvolver o nosso verdadeiro ego em sua peculiaridade planejada por Deus,
pagamos as conseqüências de inventar e de desenvolver um falso eu. Muitos desses perfeccionistas
apegam-se com incrível tenacidade aos lugares em que se sentem diferentes e superiores. Muitas vezes
me dizem: “Mas se eu abrisse mão disso, me tomaria ordinário, exatamente como os demais.”
Freqüentemente respondo: “Bem-vindo. Entre para a raça humana!”

A TIRANIA DOS DEVERES

Eu DEVO ser capaz de ser o Super-Eu, mas NÃO consigo. Esse fracasso em alcançar
expectativas irreais e inatingíveis provoca frustração, depressão e ira, contra um
sentimento de injustiça. O resultado disso é...

Na luta por ser especial, o superego recebe uma motivação extremamente forte de um impetuoso senso
de “dever”. Nós devíamos ser esse tipo de eu, mas não conseguimos realizá-lo totalmente. Por quê?
Porque continuamos a estabelecer alvos inalcançáveis e padrões inatingíveis para nós mesmos. E,
estranhamente, se conseguirmos nos aproximar deles, os elevaremos ainda mais. Pense num
competidor de salto em altura nas Olimpíadas. Toda a vez que a marca é elevada, ele a ultrapassa. Por
fim, ele pula mais alto do que todos os outros e vence. Mas, em vez de colocar-se na plataforma central
e receber a medalha de ouro, ele ajusta a barra para ainda mais alto. Ele tenta diversas vezes e falha
em cada tentativa. Então se afasta abatido, sentindo-se como se tivesse perdido o campeonato. Muitos
perfeccionistas vivem desse modo. Esse senso de fracasso obviamente produz frustração e ira contra
outras pessoas, e freqüentemente também contra Deus. Enquanto viverem sob a escravidão da roda-
viva do desempenho, estarão irados. A vida parecerá desleal e Deus parecerá injusto. Isso provocará
uma variedade de sentimentos negativos.

As mágoas e as humilhações que os perfeccionistas sofrem mantêm acesas sua ansiedade e sua ira.
Nem toda a ira é dirigida para o exterior, pois os perfeccionistas vivem com uma combinação peculiar de
orgulho e de uma baixa auto-imagem. Eles sempre sofrem de uma auto-depreciação que provém de um
orgulho extraordinário. Têm medo de que outros descubram o terrível abismo que separa o seu eu real
do seu eu fantasioso, e então os rejeitem. Assim procuram antecipar-se ao público. Rejeitam a si
próprios, menosprezando-se antes que alguém mais o possa fazer. Dessa forma, o seu falso orgulho e o
seu superego ficam intactos.

Vemos essa orgulhosa rejeição própria acontecer todos os dias com os cristãos perfeccionistas que não
podem aceitar elogios sem começar a diminuir as suas realizações. Têm de nos impressionar com a sua
humildade, e não podem deixar que vejamos uma demonstração do seu orgulho!

Podemos ver que a baixa auto-imagem aumenta em intensidade e se toma cada vez mais séria ao
lermos o diagrama da esquerda para a direita. Ela vai desde os rebaixamentos mais ou menos normais à
esquerda, até as formas de auto-expiação, no centro — do tipo que A. W. Tozer descreveu como “a
penitência do arrependimento perpétuo”. A direita temos o nível patológico, no qual as pessoas infligem
dor ou sofrimento a si próprias, como espetar um alfinete ou cortar a pele, ou arrancar os cabelos.

O autodesprezo toma-se muito mais patológico nas diversas formas de lenta autodestruição: álcool,
drogas, fumo excessivo, distúrbios sérios de alimentação como a anorexia e a bulimia. O estado final,
naturalmente, é a autodestruição rápida do suicídio. Todo bom livro sobre o suicídio de adolescentes
inclui uma advertência acerca dos que pensam que têm de ser perfeitos e que não suportam viver caso
não o sejam. Todos nós temos testemunhado os resultados trágicos desse grau de ódio a si próprio,
mesmo nas vidas de alguns que estão sinceramente tentando ser bons cristãos.

• Como conclusão, examinaremos a classificação dKaren Horney das’ três falsas soluções
para o dilema da armadilha perfeccionista do desempenho, e os possíveis padrões de
personalidade que delas podem-se desenvolver. Enquanto as descrevemos resumidamente, tenha
em mente que são modos de vida, padrões globais com os quais encarar a vida e relacionar-se com as
pessoas. Embora pareçam diferentes entre si, essencialmente essas soluções são sistemas, baseados no
desempenho, de se viver “sob a lei”, em vez de viver “sob a graça”. Não são mutuamente exclusivas. As
pessoas podem ter traços de mais de uma estrutura de personalidade, mas em geral um tipo será
dominante com relação aos outros. Esses sistemas representam modos bastante exagerados e errados
com os quais tentamos satisfazer às
necessidades não atendidas do nosso
verdadeiro eu.
• Domínio descreve as pessoas que sentem uma necessidade excessiva de reconhecimento e de
admiração, e tentam conquistá-lo através de realizações superiores em alguma área da vida. Têm de ser
não apenas boas, mas as melhores. Isso lhes dá um senso de poder e de domínio sobre os demais.
Podem realmente sobressair em seu campo de atividade, e têm a tendência de menosprezar os que não
sobressaem. A sua tentação é inverter os valores cristãos de modo que usam as pessoas e amam as
coisas. Demonstram severidade, astúcia, ambição agressiva, insensibilidade aos sentimentos alheios,
habilidade de barganhar e de sobrepujar os seus oponentes. O que estão dizendo é: “Se sou forte e
domino as pessoas, elas não poderão me ferir.” E muito difícil para pessoas prejudicadas como essas
aceitar o amor e a graça, e remover a máscara de um falso e forte eu.

• Auto-anulação representa as pessoas cuja necessidade de aprovação é tão forte que farão qualquer
coisa para agradar os outros. Elas se especializam em ser submissas, em concordar com tudo e em
deixar que os outros tomem as decisões. Um amor que a tudo absorve lhes parece ser a resposta para
todos os problemas. Levam-no a extremo tal que jamais causam problemas. E paz a qualquer preço.
Raramente expressam uma opinião ou confrontam uma pessoa ou uma situação, pois sentem que
realmente não têm nada a contribuir. Esta é a atitude predileta de muitos cristãos, que tomam o vício da
fraqueza excessiva e o espiritualizam, transformando-o numa virtude, dizendo que é o modo cristão de
amar. Essa é talvez a maior falsificação do amor genuíno, que sabe ser rígido e sabe confrontar quando
necessário. As pessoas que se auto-anulam, na verdade, estão dizendo: “Farei qualquer coisa para que
você me ame; pois se você me amar, não irá me ferir.”

Pessoas desse tipo com freqüência unem-se a seus opostos, produzindo uma combinação triste e fatal,
que simplesmente alimenta dos problemas uns dos outros. O pior é que muitas vezes uma união dessas
é santificada e abençoada por alguns pastores e preletores que interpretam mal Efésios 5:21-24, e
incentivam esse tipo de relacionamento destrutivo e neurótico como sendo o plano de Deus para o
casamento. Muitas vezes é difícil para esse tipo de cristão aceitar a graça para si, pois se sente culpado
e amedrontado, e não consegue tratar com a liberdade que a graça traz.

• Resignação e indiferença caracterizam as pessoas que desejam ficar em paz. Sentem que, se não
participarem, ninguém poderá feri-las. A qualquer preço, têm de se afastar dos demais e não
demonstrar necessidade de dependência. Necessitam de muito espaço emocional, e as relações íntimas
do casamento podem ser tão dolorosas para elas a ponto de se tomarem intoleráveis. Muitas pessoas
que se anulam a si próprias, e que necessitam desesperadamente de proximidade e de afeto, casam-se
com esse tipo de personalidade, porque essas pessoas parecem ser do tipo forte e calado. Esse pode
tornar-se o tipo de casamento em que, em vez da complementação mútua das necessidades, os
parceiros impelem um ao outro para extremos ainda maiores. E necessário muita graça para salvar um
casamento desse tipo, mesmo quando os cônjuges são cristãos.

Neste capítulo examinamos a origem e o desenvolvimento das variedades mais extremas dos cristãos
baseados no desempenho, os perfeccionistas. Vimos também que toda tentativa para encontrar a
liberdade através dos nossos próprios esforços só nos afunda mais no lamaçal. Passemos agora à única
solução e única esperança: o maior dom de Deus — a graça.

CAPÍTULO 7
AS BOAS NOVAS

Jesus! o nome querido dos pecadores,


O nome dado aos pecadores;
Que dispersa todo o seu temor de culpa;
E transforma seu inferno em céu.
Oh, que o mundo pudesse provar e ver,
As riquezas da sua graça!
Oh, que os braços de amor que me envolvem
A toda humanidade abraçassem.

Por vários capítulos estivemos examinando as más notícias, o abismo moral, e a nossa total
incapacidade de transpô-lo..Agora vejamos as boas novas. Talvez você já tenha ouvido a seguinte
história sobre boas novas e más notícias.

Certo fazendeiro que passara por vários anos ruins foi falar com o gerente do seu banco.
— Tenho algumas boas novas e algumas más novas para lhe contar. Quais você gostaria de ouvir
primeiro? — perguntou ele.
— Por que você não me traz primeiro as más novas e acabamos logo com isso? — respondeu o
banqueiro.
— 0K. Com essa seca e a inflação e tudo o mais, não serei capaz de pagar coisa alguma da minha
hipoteca este ano; nem do principal, nem dos juros.
— Bem, isso é bem ruim.
— Fica pior. Também não serei capaz de pagar nada do empréstimo que tomei para comprar aquele
maquinário, nem do principal, nem dos juros.
— Nossa! Isso é mesmo ruim.
— E pior do que isso. Lembra-se de que também fiz um empréstimo para comprar sementes,
fertilizantes e outros suprimentos? Bem, também não posso pagar nada disso, principal ou juros.
— Isso é terrível, e é o bastante! Diga-me quais são as boas novas.
— As boas novas — respondeu o fazendeiro com um sorriso — é que pretendo continuar negociando
com você.

Existe uma teologia um tanto profunda nessa história, desde que invertamos os personagens. As boas
novas do evangelho são que, apesar da nossa total bancarrota moral, Deus continua a negociar
conosco.pesar da nossa situação desesperadora, Deus encontrou um modo de transpor o vão, de nos
restaurar, levando-nos a um relacionamento com ele próprio, e trazendo cura para as áreas danificadas
da nossa personalidade. Paulo, exultante, exclama: “Onde abundou o pecado, superabundou a graça”
(Rm. 5:20).

Paulo é o grande apóstolo da Graça. Das 155 referências do Novo Testamento à graça, 133 são dele. A
graça abre as suas epístolas, a graça as conclui, e a graça é a nota principal de tudo entre o começo e o
fim. O termo graça provém do latim gratia que é tradução de charis, em grego. No grego comum charis
significava graciosidade, benevolência, favor ou bondade. Podia também significar uma resposta
graciosa, ou grata, de alguém que recebeu um favor.

Paulo coloca charis no contexto das boas novas do evangelho cristão com o significado de favor
livremente concedido. Como ele atribui várias nuances de significado à palavra, charis realmente toma-
se algo multi-esplendoroso. Paulo emprega o termo especialmente para se referir ao que Deus fez por
nós em Jesus Cristo e por meio dele. Poderíamos dizer que graça é o amor de Deus agindo em nosso
favor, dando-nos livremente o seu perdão, a sua aceitação e o seu favor. Ela é motivada unicamente
pelo amor de Deus para conosco e não por causa de dignidade ou merecimento da nossa parte. A graça
é concedida livremente, é um favor imerecido. No significado cristão, a graça é, essencialmente, a
atividade redentora de Cristo. Não sendo algo feito apenas no passado, ela também opera no presente,
e continuará por todo o futuro. Isso significa que graça e somente graça é e sempre será a base do
nosso relacionamento com Deus. “Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós,
é dom de Deus” (Efésios 2:8). Essas palavras são verdadeiras para o mais vil e mais degradado pecador;
são igualmente verdadeiras para o mais maduro e glorioso santo. Essa base da graça nunca será
substituída por outra coisa.

O Caráter da Graça

Se a graça é livremente dada, se é um favor imerecido, então é de suprema importância que


compreendamos alguns fatos essenciais a seu respeito.

• A graça é imerecida. A graça não tem relação nenhuma com o nosso mérito ou demérito, com a
nossa pecaminosidade ou dignidade. Ao afirmar a Bíblia que a graça é livre, quer dizer que Deus é livre
para mostrar o seu amor e a sua misericórdia para conosco sem mesmo a menor limitação por causa do
nosso pecado. No momento em que a pessoa levanta a questão da indignidade e do imerecimento,
cancela a idéia da graça.
Jesus nunca usou a palavra graça, e de todos os evangelistas, somente João a empregou com referência
a Jesus (João 1:14, 16, 17). Toda a vida de Cristo foi uma demonstração ininterrupta do fato de que ele
oferecia a dádiva da salvação a todos, sem nenhuma consideração pelo merecimento deles. Ele era um
comentário vivo das suas próprias palavras: “Não vim chamar justos, e, sim, pecadores” (Mateus 9:13;
Marcos 2:17; Lucas 5:32). Diariamente ele encarnava a graça: amor, misericórdia e salvação oferecidos
gratuitamente a pessoas cujas vidas não tinham a ela de modo nenhum. Na verdade, é isso que sempre
ofendia as pessoas “justas” — nos dias de Cristo, e também nos nossos dias.

No segundo século, certo crítico do Cristianismo chamado Celsus disse que a idéia de Deus amar
pecadores — pessoas más — era “algo jamais ouvido em nenhuma outra religião”. Ele estava
absolutamente certo. E isso o que graça significa. E isso o que toma o Cristianismo diferente das outras
religiões; elas oferecem bons pontos de vista e bons conselhos: “Seja bom, endireite a sua vida,
purifique as suas obras, encontre-se, viva uma boa vida e então, é claro, pode vir a Deus. Então estará
agradando a Deus e ele o amará.” Somente o evangelho de Cristo é boas novas, a incrível mensagem
da graça. Como diz A. W. Tozer: “Graça é o bom prazer de Deus que o inclina a conceder benefício ao
que não o merece.” Durante as guerras napoleônicas um jovem soldado francês, cansado da batalha,
pegou no sono enquanto estava no posto de vigia. Foi levado à corte marcial, julgado e sentenciado à
morte. Sua mãe, desolada, conseguiu de alguma forma uma audiência com o próprio Napoleão. Caindo
aos pés do imperador, ela implorou que poupasse a vida do seu filho, explicando que era o seu único
filho e o seu único meio de sustento. Napoleão começava a se cansar das petições dela.

— Madame, seu filho não merece misericórdia. Merece morrer


— disse ele friamente. Ao que a mãe imediatamente respondeu:
— E claro que o senhor tem razão. E por isso que lhe estou pedindo que mostre misericórdia para com
ele. Se ele a merecesse, não seria misericórdia. Napoleão ficou tão tocado pela lógica da afirmação da
mulher que perdoou o soldado.

Se nós a merecêssemos, não seria graça. A graça é imerecida. E dom gratuito de Deus, completamente
não obstruído por nosso pecado, culpa e imerecimento.

• A graça é inconquistável. A graça não somente é imerecida, mas também inconquistável. Muitos
começam pela estrada da graça imerecida, dizendo: “E claro, Deus me aceita exatamente como sou. Sei
que sou totalmente imerecedor e não tenho nada que lhe oferecer a não ser meus pecados e fracassos.
Mas, a partir de agora, certamente ele espera que eu viva à altura de certos padrões de conduta.” E
então, assim como os gálatas, muitos que começaram na graça, sem intenção alguma, decidem que a
continuação do dom da graça de Deus depende do nosso bom desempenho. Presumimos, com sutileza,
que podemos conquistar ou ganhar a aprovação divina e preencher o abismo do desempenho com
obras. Não obras no sentido antigo, de bons feitos, ou trabalho duro, ou contribuições para causas de
caridade; conhecemos coisa melhor. Mas no sentido de utilizar os próprios canais da graça: a oração, a
leitura da Bíblia, o testemunho, o culto, e transformá-los em obras cristãs de desempenho. Tentamos
transformar a base da graça numa base de desempenho. Mas a base da graça jamais poderá ser
substituída por qualquer outra coisa. Essa tentativa inútil por parte de tantos cristãos é a origem das
suas lutas emocionais e espirituais.

Após muitos anos de ministério pastoral, no qual tenho tido o privilégio de aconselhar pessoas de
diversas raças e culturas, cheguei a uma firme conclusão de que ji última coisa que nós, os seres
humanos, entregamos a Deus é a admissão da nossa total incapacidade de salvar a nós mesmos.
Entregamos os pecados, as ambições, o dinheiro, o nome, a fama, o conforto; estamos dispostos a
sacrificar essas coisas e a rendê-las a Deus. Mas a coisa mais difícil, custosa e última que entregamos é
nossa confiança de existir algo que podemos fazer, o qual conquistará para nós um bom relacionamento
com Deu. A segunda estrofe do hino “Rocha Eterna” capta com muita beleza a nossa incapacidade.

Nem trabalho, nem penar,


Pode o pecador salvar;
Só tu podes, bom Jesus,
Dar-me vida, paz e luz.
Peço-te perdão, Senhor,
Pois confio em teu amor.
Enquanto a verdade transmitida por esses versos não se tomar uma realidade viva para nós, não
compreenderemos nem experimentaremos o significado bíblico de graça. autor de Hebreus nos lembra
que “sem fé é impossível agradar a Deus” (11:6). Significa isto que Deus não fica contente quando
tentamos substituir a salvação pela graça através da fé, pela justiça mediante realizações através do
desempenho. Deus não nos permitirá mudar os termos que estabeleceu para um relacionamento
aceitável e agradável consigo. “Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós, é
dom de Deus; não de obras, para que ninguém se glorie” (Efésios 2:8-9). “Não vem de vós... para que
ninguém se glorie” significa que Deus não partilhará a sua glória, nem permitirá que reivindiquemos
crédito por nossa salvação. A graça é uma dádiva. No momento em que tentamos pagar por ela, deixa
de ser graça.

• A graça é irretribuível. Alguns tentam transformar o dom da graça em salvação através de nota
promissória. Essa atitude é semelhante à tentativa de conquistar a graça, mas dá mais ênfase no futuro.
“Senhor, se tu me perdoares e me salvares, prometo que um dia te pagarei.”

Alguns tentam efetuar esse pagamento através da auto-expiação, recusando-se a perdoar a si mesmos
por pecados passados ou por fracassos; ou não se permitindo desfrutar os legítimos prazeres da vida.

Outros tentam pagar através do auto-sacrifício, que toma diferentes formas de ascetismo, como
constantemente abrir mão disso ou dar aquilo. Ou adicionar isso ou aquilo à vida como auto-disciplina.
Sempre me lembrarei de Rodney, um aluno que lutava para viver na graça. Tinha ele uma excelente
teologia mental da graça, mas continuava a sair do trilho em sua vida diária. Toda vez que ele vinha me
ver, a lista de coisas de que ele abrira mão para o Senhor havia aumentado. Certo dia ele chegou,
sentou-se com um suspiro de alívio, e disse:

— Bem, finalmente abri mão daquilo.


— Abriu mão do quê, Rod? — perguntei.
— Peguei o meu aparelho de som e atirei no lixo.

Preciso confessar que naquele momento a minha mente não estava totalmente concentrada na sessão
de aconselhamento. Havíamos acabado de chegar do campo missionário, e ainda não tínhamos
conseguido comprar um sistema de som. Meus filhos adolescentes destacavam esse fato na nossa lista
de “necessidades”. Terminada a sessão, saí correndo para o depósito de lixo da faculdade, mas já era
tarde. Alguém tinha resgatado aquele caro sistema de som do Rodney. Na próxima vez que o vi, Rodney
tinha ainda mais coisas a acrescentar à sua lista asceta.

Alguns tentam retribuir com o serviço. Tenho aconselhado a missionários, que com tristeza admitem que
a retribuição a Deus é a verdadeira motivação por trás do seu serviço sacrificial. A ênfase deles era no
quanto tinham “renunciado a fim de servir ao Senhor”. Mas em todos os casos, não encontraram alegria
nem realização. Em vez disso, havia uma espécie de ira contra Deus. Tinham feito o melhor que podiam
a fim de retribuir para Deus, mas ele não cumprira a sua parte no negócio, dando-lhes um sentimento
de recompensa.

Existe o caminho um tanto direto da escrupulosidade, tentar retribuir através de uma observância
meticulosa, detalhista, solícita e rigorosa da lei; leis divinas, leis humanas, leis sociais e culturais. Foi o
fato de reconhecer essa tendência em certos cristãos que levou o sábio Sam Shoemaker a dizer: “Os
convertidos de uma década podem tão facilmente se tornar os fariseus da década seguinte.”

Mas, estará você dizendo, “não se espera que vivamos à altura dos mandamentos de Deus e dos
princípios da sua Palavra? Não se espera que retribuamos a Deus com o nosso serviço e com os nossos
sacrifícios?” E a resposta a essas perguntas é um firme e positivo “sim”. A questão é o antigo problema
de colocar o carro na frente dos bois. Com toda a certeza, somos chamados a responder à graça com
obediência, serviço e sacrifício. Mas não devemos fazer essas coisas a fim de conquistar a graça de
Deus, ganhar a sua aprovação ou retribuir a ele, tentando equilibrar a folha de créditos e débitos.
Fazemos essas coisas agora porque Deus nos ama e nos aceita assim como somos, porque nos perdoa
livremente e nos restaura em sua família, apesar de não sermos dignos e de não o merecermos. Nós
não o fazemos para ganhar o seu amor, mas motivados pela gratidão por seu amor. Não para
conquistar a sua graça, mas em gratidão por ela.
A passagem mais importante das Escrituras sobre esse assunto, Efésios 2, termina com um versículo
que esclarece esse ponto: “Pois somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais
Deus de antemão preparou para que andássemos nelas” (v. 10). A ordem dos bois e do carro é bastante
clara; não somos salvos pelas boas obras mas para boas obras. Elas não são a raiz de nossa salvação,
mas sim seu fruto.

O Amor Incondicional de Deus

Se recuamos alguns versículos em Efésios 2, vemos o manancial da graça: “Mas Deus, sendo rico em
misericórdia, por causa do grande amor com que nos amou, e estando nós mortos em nossos delitos,
nos deu vida juntamente com Cristo, — pela graça sois salvos” (vs. 4-5). Graça é o amor de Deus em
ação para com aqueles que não o merecem. E este amor é manifestado como graça, oferecido a nós na
vida e morte de Cristo. Por isso Deus não diz:

Eu te amo por que...


Eu te amo visto que...
Eu te amo contanto que...
ou:
Eu te amarei se.
Eu te amarei quando..
Eu te amarei depois de...
Eu te amarei uma vez que.
Eu te amarei supondo que.

Qualquer afirmação desse tipo faria que o amor divino fosse condicional, significaria que o seu amor
seria causado por algo em nós: nossa atratividade, nossa bondade, nossa amabilidade. O inverso
significaria que poderia haver algo em nós que faria Deus parar de nos amar. O amor de Deus para
conosco é incondicional; não é um amor que algo bom em nós tenha suscitado em Deus. Ele brota de
Deus por causa da sua natureza. O amor divino é uma ação para conosco, não uma reação a nós. O seu
amor não depende do que somos, mas do que ele é. Ele ama porque ele é amor.

Nós podemos rejeitar o amor de Deus, mas não podemos fazer que ele pare de nos amar. Podemos
rejeitá-lo e, dessa forma, impedir que ele penetre em nós, mas não podemos fazer nada para
interromper o seu fluir de dentro de Deus. Graça é o amor incondicional de Deus em Cristo, concedido
livremente ao pecador, imerecedor e imperfeito.

Quero dar ênfase à palavra imperfeito para o bem dos cristãos orientados pelo bom desempenho, que
muitas vezes levantam uma importante pergunta: “Mas o que acontecerá se eu fracassar? E se eu cair?”
Sempre me lembrarei de um momento muito importante na vida espiritual de um dos adolescentes da
nossa igreja. Ele havia tomado a sua decisão pessoal ao lado de Cristo. Ele se esforçava muito mas,
assim como a maioria dos adolescentes, era atormentado pelos altos e baixos da vida cristã. Então
muitas vezes ele vinha à frente, ao altar de oração, durante a hora de apelo, no final dos cultos. Ele fez
isso de novo após um culto de domingo à noite dirigido por um evangelista convidado. Eu estivera
orando com esse rapaz, e agora estávamos sentados conversando junto ao altar. O rosto dele estava
bastante sério enquanto partilhava a sua determinação de conseguir desta vez. Então perguntou:

— Mas, e se eu fracassar? O que acontece se eu cair?


Respondi:
— Steve, eu o conheço bem. Provavelmente mais do que qualquer outra pessoa na igreja. Por isso acho
que posso garantir uma coisa: você vai fracassar, você vai cair. E daí?
Ele olhou para mim um tanto surpreso. Esperava que eu lhe desse segurança, não que lhe desse uma
garantia de fracasso. Como ele não respondesse, vi que estava pensando nas implicações do meu “e
daí?”
E então algo pareceu atingir-lhe. Era como se um flash iluminasse gradualmente o seu rosto.
Vagarosamente, ele começou a sorrir e a sacudir a cabeça.
— Ah... Acho que sei o que você quer dizer. Acho que estou compreendendo”, disse ele. — E claro que
vou falhar; certamente cairei. Mas isso na verdade não faz diferença nenhuma, não é?
E então o sorriso iluminou-lhe toda a face.
E claro que ele ainda passou por muito crescimento, mas essa foi a descoberta inicial do caminho da
graça. E a descoberta de que com a graça o fracasso não faz diferença alguma transformou a vida dele.
Dava gosto vê-lo crescer na graça. Mais tarde, ele se tomou um despenseiro da graça como pastor
durante onze anos, e agora, como professor de teologia sistemática num seminário, ensina sobre a
graça. Será que você está pensando na minha estranha resposta, de ter certeza de que ele fracassaria
por conhecê-lo tão bem? Acontece que sou o pai dele!

Fazer a pergunta: “E se eu fracassar ou cair?” é mais uma vez acorrentar o amor incondicional de Deus
e mudar a natureza da graça como favor imerecido e inconquistável. Se o nosso fracasso pudesse
impedir a graça, tal graça não existiria. Pois a base da graça é a cruz de Cristo, e na cruz todos nós
fomos julgados como fracasso total. Não é uma questão de fracassos eventuais aqui e ali. No que toca à
nossa habilidade de transpor o abismo moral, e conquistar a aprovação de um Deus santo, nós somos
fracassos totais. Na cruz todos nós fomos examinados e falhamos completamente!

E sobre isso que fala os primeiros capítulos de Romanos. Quer sejamos fazedores do bem, os judeus,
que guardam todos os mandamentos, quer sejamos pecadores totais que os quebram a todos, os
gentios, não faz diferença. Pois Deus em seu amor providenciou uma nova base para um reto (e justo)
relacionamento com ele: o favor livre, imerecido, não conquistável e impagável, graciosamente oferecido
a nós. Isso é graça. E é nossa, se a recebermos. Isso é fé. Portanto, nem se levanta a questão de nosso
fracasso ou sucesso. A base da salvação não é realizar, mas receber; não é desempenho perfeito, mas
fé confiante.

“Mas agora, sem lei, se manifestou a justiça de Deus testemunhada pela lei e pelos profetas; justiça de
Deus mediante a fé em Jesus Cristo para todos os que crêem; porque não há distinção, pois todos
pecaram e carecem da glória de Deus, sendo justificados gratuitamente, por sua graça, mediante a
redenção que há em Cristo Jesus... E se é pela graça, já não é pelas obras; do contrário, a graça já não
é graça” (Romanos 3:21-24; 11:6).

A Graça e o Coração

As principais bases para os cristãos orientados pelo desempenho não provêm da mente, lógica e razão.
A simples troca de conceito intelectual de graça não os livrará da prisão da vida no moinho do
desempenho. A graça pode começar para eles como um conceito doutrinário, mas tem de se
transformar numa experiência que no fim também satisfaça a suas emoções. A graça precisa realizar-se
completamente. Realizar é o ato ou processo de tomar-se real. Para que isso aconteça, a graça precisa
penetrar e permear o coração.

Existem muitos mal-entendidos sobre o que as Escrituras querem dizer com “coração”. Influenciados
pelo uso cotidiano do termo, temo-nos esquecido de que na Bíblia, “coração” significa todas as áreas e
funções da personalidade H. Wheeler Robinson, notável estudioso da Bíblia, analisou os diversos
sentidos em que são empregados os termos grego e hebraico para coração:

SIGNIFICADO A.T. N.T.


Personalidade 257 33
Estado emocional 166 19
Atividade intelectual 204 23
Vontade 195 22

É extremamente importante ver como a palavra coração é utilizada para expressar a personalidade
como um todo, ou uma das funções da personalidade. Ela representa o eu, a cidadela central de uma
pessoa, onde pensamento, percepção, sentimento, decisão e ação se influenciam uns aos outros, e são,
por sua vez, pelos outros influenciados.
Há lugares na Bíblia em que coração mostra a pessoa em relacionamento — tanto bom quanto mau.
Levítico 19:17 adverte contra odiar “teu irmão no teu coração”. Mateus 18:35 insta: “Do coração perdoa
a teu irmão”. Existem diversos versículos que descrevem pessoas que honram a Deus “com seus lábios,
mas seus corações estão longe” dele (Isaías 29:13; Mateus 15:8; Marcos 7:6). Nessas passagens o
coração é visto no grau de intimidade, sua proximidade ou distância. E claro, passagens que ordenam:
“Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração” implicam um relacionamento firme e íntimo com ele
(Deuteronômio 6:5; Mateus 22:37). Diz-se que os primeiros cristãos eram “um em mente e coração”, o
que descreve um relacionamento em que “ninguém considerava exclusivamente sua nem uma das
coisas que possuía; tudo, porém, lhes era comum” (Atos 4:32). Paulo expressou o seu relacionamento
especial com os filipenses, quando disse: “Vos trago no coração” (Filipenses 1:7). Não seria exagero
dizer que o coração é o manancial e a origem da nossa vida de relacionamentos. Graça no coração é a
fonte da qual jorra uma vida plena de graça. E isso significa que a graça precisa alcançar tanto os
sentimentos quanto os conceitos. Conforme diz William Kirwan:

As Escrituras consideram as emoções do coração como tendo grande importância. Porém o lugar das
emoções tem sido mal compreendido pela comunidade cristã evangélica. No máximo, as emoções são
meramente tolera- das. Mais freqüentemente, são tratadas como erradas ou pecaminosas. Na verdade,
grande parte da teologia cristã tem errado neste assunto... Conforme a Bíblia, as emoções e os
sentimentos têm um papel claramente definido na estrutura do pensamento cristão...

“Fatos” e “sentimentos” são parte do mesmo processo. A mente não separa os sentimentos dos fatos
nem os fatos dos sentimentos. A distinção entre os dois é pequena: todos os sentimentos são estados
de excitação psicológica e neurológica ligados a fatos.. . A Bíblia também não faz distinção entre fatos e
sentimentos... Nós não lidamos com fatos ou sentimentos, mas com fatos e sentimentos.. . Ao vermos
as emoções ou os sentimentos como um aspecto essencial do coração, percebemos que também são
parte essencial do nosso ser. Como parte essencial do ser, são de importância vital na vida do cristão.

A crença doutrinária numa teologia da graça, por mais importante que seja, não muda o modo pelo qual
os cristãos baseados em desempenho vivem. Grande número de pessoas que participam do serviço
cristão: pastores, evangelistas, professores e conselheiros, não entende isso. Como conseqüência,
tratam sincera mas erroneamente com os problemas a eles trazidos pelos membros das igrejas, apenas
no nível cognitivo: pregação, ensino, admoestação. Quando isto falha, o obreiro cristão, que obviamente
está em posição de autoridade sobre essas pessoas, rotula os problemas delas como pecado, rebelião,
incredulidade, desobediência, falta de submissão, egocentrismo, ou coisas semelhantes. Isso apenas
aumenta a culpa, a depressão e o desespero já existentes na pessoa ferida.,j Já chorei sobre cartas,
telefonemas e entrevistas que descreverei essa malhação verbal em nome de Cristo da parte de obreiros
cristãos. Tenho certeza de que o próprio Deus chora sobre esses esforços sinceros mas errados. As
palavras de Paulo acerca dos guardadores da lei são muito apropriadas: “Eles têm zelo por Deus, porém
não com entendimento” (Romanos 10:2).

Existe um caminho melhor: o caminho que a tudo abrange.

• A graça que cura, para as emoções danificadas do passado.

• Graça que reconstrói, para relacionamentos interpessoais destrutivos.

• Graça que reprograma, para padrões de personalidade distorcidos.

• Graça que recicla, para a transformação de mutilados em meios de ministério.

Para compreender e experimentar essa vida da graça, precisamos somente descobrir como aplicar a
graça aos problemas específicos da culpa, da baixa auto-estima, da falsidade, da ira e dos
relacionamentos pessoais,todos eles discutidos no capítulo 1.

“Espere um minuto”, protesta alguém. “Eu preciso de ajuda já. De acordo com o que tenho lido,
percebo que preciso fazer alguma coisa com relação aos meus problemas, mas tenho muito medo.
Preciso de ajuda exatamente para criar coragem a fim de enfrentar essas coisas.”
Tenho novidade para você. A mesma graça que estamos descrevendo pode fazê-lo forte o bastante, e
suficientemente corajoso para arrancar a sua máscara de superego e começar a olhar para o seu
verdadeiro eu. Pois é o seu verdadeiro eu que Deus ama e por quem Cristo morreu, o seu eu verdadeiro
com todos os seus pecados e falhas, que ele sempre conheceu e que jamais deixou de amar. Sentir isso
a nível instintivo lhe dará a coragem necessária para ver a si mesmo como verdadeiramente é. Como
ilustração, eu gostaria de contar uma notável história verídica que aconteceu durante a Segunda Guerra
Mundial:

Havia um homem de nome Stypulkowski, que lutou na resistência subterrânea polonesa de 1939 a
1944. Infelizmente, quando a guerra terminou, ele estava no lugar errado e na hora errada, e foi
capturado pelo exército russo. Ele e mais quinze poloneses foram levados à Rússia para serem julgados
perante o tribunal de crimes de guerra. Uma vez que alguns observadores ocidentais assistiam aos
julgamentos, era necessário confissão completa dos homens a fim de serem condenados por sua
suposta traição ao estado. Na verdade, com as suas táticas, tinham ajudado a derrotar o inimigo. Agora
estavam sendo acusados de terem ajudado os nazistas.

Antes do julgamento, os homens foram submetidos a rigoroso interrogatório para quebrantá-los mental,
emocional e espiritualmente, para destruir a sua integridade de modo que confessassem qualquer coisa
que lhes fosse pedida. Quinze dos dezesseis homens sucumbiram à exaustiva pressão. Somente
Stypulkowski não sucumbiu. E isso apesar do fato de que durante 69 das 70 noites ele foi brutalmente
questionado numa série de 141 interrogatórios. Ele não somente os suportou, mas também em certo
momento o seu interrogador se quebrantou e teve de ser substituído. Vezes sem conta os seus
atormentadores implacáveis examinaram tudo o que ele fizera ou não fizera, procurando temor e culpa.
O seu trabalho, o seu casamento, a família, os filhos, a sua vida sexual, a sua vida na comunidade e na
igreja, até mesmo o seu conceito de Deus.

Isto depois de semanas de uma dieta de fome, noites sem sono e calculado terror. Mais pérfido de tudo
foram as confissões assinadas de seus melhores amigos, todas elas o acusando. Seus torturadores lhe
disseram que o seu caso não tinha esperança, e já estava praticamente encerrado. Eles o aconselharam
a admitir a culpa, para que pudessem diminuir a sua sentença; de outra forma, seria morte certa.
Stypulkowski se recusou. Disse que não tinha sido um traidor e não poderia confessar algo que não
fosse verdade. Pleiteou inocência durante o julgamento; em grande parte por causa dos observadores
estrangeiros presentes, foi solto. O mais impressionante foi o modo completamente natural e
espontâneo com que ele testemunhou da sua fé cristã. Ele manteve a fé viva através da oração
constante, e todas as outras lealdades foram subordinadas à sua lealdade a Cristo.

E claro que ele possuía fraquezas. Os seus acusadores vez após vez destacavam essas fraquezas diante
dele, mas ele não se deixou abalar por causa delas. A razão da sua resistência é que diariamente ele se
apresentava a Deus e a seus acusadores em honestidade absoluta. Ele sabia ser aceito, amado de Deus,
perdoado e purificado. Portanto, sempre que o acusavam de algum erro pessoal, ele o admitia
livremente, até com alegria. E repetia humildemente:

“Nunca senti ser necessário justificar a mim mesmo com desculpas. Quando me mostraram que eu era
covarde, eu já sabia disso. Quando apontaram o dedo para mim com acusações de sentimentos
imundos e indecentes, eu já sabia daquilo. Quando me mostraram um reflexo de mim mesmo com todas
as minhas deficiências, eu lhes disse: ‘Mas cavalheiros, eu sou ainda muito pior do que isso.’ Pois,
percebe você, eu tinha aprendido que não era necessário justificar-me a mim mesmo. Alguém já tinha
feito isso por mim: Jesus Cristo!”

Visto que Stypulkowski podia ser totalmente honesto acerca de si mesmo perante Deus, foi capaz de ser
totalmente honesto acerca de si mesmo perante os seus acusadores. Ele podia admitir livremente as
suas falhas pessoais, pois sabia que na cruz todas elas tinham sido resolvidas.

Assim também acontece com todos nós. Quando percebemos que ao sermos “justificados mediante a fé,
temos paz com Deus, por meio de nosso Senhor Jesus Cristo; por intermédio de quem obtivemos
igualmente acesso, pela fé a esta graça na qual estamos firmes” (Romanos 5:1), encontraremos a
coragem para encarar a verdade acerca de nossas necessidades, e para experimentar a graça que cura.
CAPÍTULO 8
GRAÇA E CULPA

Meu divino Protetor,


Quero em ti me refugiar;
Pois as ondas de terror
Ameaçam me tragar!
Quase estou a perecer!
Dá-me a tua proteção;
Pois guardado em teu poder
Não receio o furacão.
Graça imensa em ti se achou
Para tudo perdoar;
Sangue teu se derramou,
Nele quero me lavar.
Fonte tu de todo bem,
Dá-me sempre de beber!
Confortar minha alma vem;
Queiras sempre me valer.

No capítulo 1 relacionamos os sintomas mais comuns que atormentam os cristãos que caem na
armadilha do desempenho: culpa, baixa auto-estima, falsidade, ira e dificuldades com relacionamentos.
Não é fácil separar esses elementos, pois se encontram intimamente entrelaçados à estrutura do modo
de vida da pessoa. Concentrar-se em apenas um dos problemas é como tentar puxar um fio solto de
uma peça tricotada, e descobrir que a peça inteira está-se desfiando.

E exatamente esse entrelaçamento que toma a estrutura tão forte e que dá a pessoas desse tipo as
suas formidáveis defesas contra mudanças. Eu acho impressionante o quanto as pessoas continuam
agarradas a um problema, mesmo depois de perceberem que ele é a causa da sua dor. E simples
demais dizer: “Gostam de sofrer”, pois a maioria não gosta. O seu sofrimento é genuíno e realmente
não têm prazer nele. Entretanto, é mais fácil agarrarem a alguma coisa familiar, com a qual se sentem
seguros ou acomodados, ainda que doa, do que deixá-la ir e enfrentar o desconhecido. A mudança é
ameaçadora; percebem que, se abrirem mão de alguma coisa terão de mudar todo o seu modo de vida.

Com freqüência, durante um profundo momento de oração pela cura, o Espírito Santo descerra a
cortina, e o aconselhando se toma consciente de uma questão decisiva. E literalmente como se Deus
tivesse colocado o dedo num fio em particular e deseja permissão para removê-lo. Mas a pessoa sabe
que permitir a Deus que remova o fio, a peça inteira se desmanchará. E quantas vezes tenho ouvido
pessoas exclamarem: “Mas não posso abandonar isso. Simplesmente não consigo. E a única coisa que
tenho. E a única coisa que é realmente minha!”

‘E por isso que, ao examinarmos alguns dos vários sintomas da vida na armadilha do desempenho, ao
olharmos para alguns fios da peça feita sem a graça, precisamos sempre lembrar-nos de que é um
padrão global. Nenhum fio pode ser retirado sem prejudicar o modelo.

Culpa Global

Os sentimentos de culpa, condenação, e de estar reprovado por Deus ocupam o primeiro lugar na nossa
lista. Isso porque a culpa geralmente é a força propulsora e também a principal motivação dessas
pessoas. Porém, o que exatamente é a culpa? O termo possui vários significados, e nos será útil
identificá-los. Assim como muitas outras coisas na vida, existem as boas novas e as más novas com
relação à culpa.
As boas novas são que a culpa é uma forma de dor mental. Como qualquer entendido em medicina nos
dirá, a dor é um dos nossos melhores amigos. E a parte mais preciosa do nosso sistema interno de
advertência. O Dr. Paul Brand trabalhou durante muitos anos entre os leprosos na Índia, e tornou-se
altamente habilidoso em cirurgias de reabilitação. Ele tentava restaurar as mãos dos leprosos,
carcomidas pela doença, de modo que estes, depois de curados, pudessem ganhar a vida. Descobriu
que o principal problema era o fato de os leprosos não sentirem dor, e assim sempre machucarem
seriamente as mãos ou os pés. Após toda a sorte de experimentos, descobriu também que não havia
modo de restaurar a sensibilidade à dor depois de ela ter sido destruída, e portanto, era preciso inventar
outros meios de advertência. O Dr. Brand considera a dor como parte de um sistema brilhantemente
projetado, e um dos dons mais impressionantes de Deus ao corpo humano. Mas também viu o outro
lado da dor — a sua crueldade — enquanto observava pacientes morrerem em insuportável agonia. A
culpa é uma espécie de dor mental e emocional que experimentamos quando nos sentimos responsáveis
por fazer, ou não fazer, algo que transgride os nossos padrões pessoais de moral. Nesse sentido, ela
também é um dom de Deus para os seres humanos decaídos e pecaminosos, e faz parte da sua graça
restritiva e redentora. As pessoas que não têm o sentimento de culpa são consideradas anormais. São
chamadas de sociopatas ou psicopatas, e muitas são perigosas. Em certo sentido, são leprosos morais e
espirituais que perderam a capacidade de sentir a dor da culpa, mesmo quando violam os padrões
morais mais básicos, ou cometem os crimes mais bárbaros. São como Charlie Starkweather, que, na
década de cinqüenta, empreendeu uma série de crimes através dos Estados Unidos, matando quatorze
vítimas inocentes. No seu julgamento, quando perguntado se sentia culpado, ele respondeu: “Não, foi
como matar coelhos!” Ele é um exemplo extremo de uma pessoa sem consciência, sem a capacidade de
sentir a dor da culpa.

Mas a culpa também pode ir ao extremo oposto e tomar-se um capataz cruel e destrutivo. E este o tipo
de culpa que prevalece na vida dos cristãos orientados pelo desempenho. Porque o sentimento de culpa
deles não é o normal e específico, que aparece quando a pessoa faz ou pensa alguma coisa errada. Pelo
contrário, é uma emoção vaga e generalizada. Quando pedi a um aconselhando que descrevesse o seu
sentimento de culpa, ele disse: “Para mim, ser culpado é um sentimento de globalidade.” Essa culpa
global é que responde pelo impulso moral e espiritual desses crentes. A pressão constante da culpa faz
que continuem tentando realizar e ser mais e mais. Apesar de todas as passagens das Escrituras que
conhecem, e de seus muitos esforços para “confiar e obedecer”, parecem ser incapazes de se livrar do
sentimento de culpa e de manter a segurança de que são perdoados e aceitos por Deus. Tentemos
identificar algumas das razões pelas quais essas pessoas acham tão difícil livrar-se das cadeias da culpa.

Vítimas de Vítimas

No capítulo 4, embora reconhecendo que todos os problemas humanos são resultado do pecado,
levantamos a seguinte questão:

“Mas pecados de quem?” Um dos passos fundamentais para se encontrar a liberdade da culpa
desnecessária é distinguir entre a aceitação da responsabilidade por nossos próprios pecados e a recusa
em assumi-la pelos pecados que outras pessoas cometem contra nós. Estudos feitos com o alcoolismo,
maus tratos de esposas, maus tratos de crianças e abusos sexuais, mostram que são muitas as
situações nas quais as pessoas são vítimas de outras vítimas.

Infelizmente, um fator que perpetua esses pecados de gerações “até aos filhos dos filhos” é que muitos
cristãos não se livram das cadeias de culpa associadas com eles.

Uma das ocasiões em que fiquei mais irado aconteceu anos atrás, quando um evangelista visitante
pregava numa série de conferências na igreja que eu estava pastoreando. Dolores, uma mulher jovem e
sincera, que freqüentava fielmente todos os cultos, era dirigida por profundos sentimentos de culpa e foi
se aconselhar com o evangelista. Pela primeira vez em sua vida ela conseguiu coragem suficiente para
falar que fora abusada sexualmente pelo seu pai. Esse abuso começou quando ela tinha seis anos de
idade e continuou até aos nove. Finalmente, ela não pôde mais suportar a situação e contou a sua mãe.
A mãe ficou furiosa, deu-lhe uma surra severa e acusou-a de ter “seduzido” deliberadamente o pai. Em
lágrimas dolorosas, Dolores contou toda a história ao evangelista. Então perguntou o que podia fazer
para se libertar desses aparentemente insolúveis sentimentos de culpa. Ele disse que ela jamais se
livraria desses sentimentos “até que se arrependesse perante Deus da sua própria responsabilidade na
questão”. Ela ficou completamente esmagada com esse conselho e quase entrou em colapso sob o novo
fardo de culpa.
Maravilho-me de que Dolores tenha conseguido vir a mim, outro pastor. E um tributo a seu absoluto
desespero e à graça de Deus. E tenho de confessar que fiquei tão irado com aquele evangelista que foi
difícil controlar-me. Desde então aprendi a não me surpreender com as coisas horríveis que passam por
“aconselhamento cristão” e “conselho espiritual”. E impressionante o quanto alguns “ajudadores” podem
ser cruéis, especialmente em se tratando de amontoar culpas ainda maiores sobre crentes que, com
dificuldade, conseguem sobreviver à carga que já estão carregando.

Consegue você entender as camadas de culpa através das quais Dolores teve de trabalhar? Sua mãe
acusou-a de sedução; o evangelista, representando a voz de Deus, reforçou o juízo que a mãe fizera
dela. Por várias vezes tentei mostrar-lhe como era ridículo acusar uma menina de seis anos de idade de
seduzir um homem adulto. Mas ela sempre respondia “Devo ter feito alguma coisa errada.” Ou: “Eu não
devia ter sentado no colo dele, nem tê-lo abraçado tanto.” Ela simplesmente não conseguia admitir o
quanto a sua mãe e o seu pai tinham errado e o quão profundamente a tinham prejudicado. Ela parecia
decidida a continuar agarrada à culpa. Dolores é o exemplo perfeito de muitos cristãos feridos. Preferem
assumir toda a culpa por algo que outra pessoa lhes fez a que encarar a verdade acerca dessa pessoa.
Essa atitude é especialmente verdadeira quando os responsáveis são pessoas a quem querem amar e
respeitar, como pais, parentes importantes, professores, pastores ou cônjuges.

Estabelece-se um círculo vicioso e quase inquebrável de culpa quando nos apegamos a ela. Parece não
haver saída, porque a graça de Deus não tem como entrar. A sua graça somente entra quando
perdoamos àqueles que pecaram contra nós. E não podemos perdoar-lhes realmente até admitirmos o
quanto nos feriram, e então encararmos os nossos sentimentos para com eles. E isso é impossível
enquanto continuarmos assumindo a responsabilidade pelos pecados deles. O versículo que muitas
vezes ouvimos acerca da história de José, quando ele perdoou a seus irmãos é: “Vós, na

verdade, intentastes o mal contra mim; porém Deus o tornou em bem” (Genesis 50:20). Este é um
grande versículo, e corretamente enfatizamos a última parte. Mas não devemos desprezar a primeira:

“Vós, na verdade, intentastes o mal contra mim”. José encarou diretamente o mal que os seus irmãos
tinham cometido. Não o minimizou, nem o desculpou. Muitos hoje pensam erradamente que perdoar
significa fazer vistas grossas aos males cometidos contra nós; sentem que, ao agirem assim, estão
sendo crentes mansos e amorosos. Na verdade, essa atitude mantém fora o poder da graça. Além disso,
o Espírito Santo é o Espírito da verdade, que ativa a graça de Deus em nossa vida. Enquanto formos
desonestos em nosso coração, ele não nos poderá livrar dos nossos sentimentos de culpa e nos dar paz
duradoura. E por isso que muitas vezes precisamos de um pastor, de um conselheiro, ou de outra
assistência temporária, para que o Espírito Santo nos ajude a separar a culpa falsa da verdadeira. E
claro, significa também que quando as separamos, precisamos tomar responsabilidade total por nossos
pecado . No caso de Dolores, significava reconhecer a forma ruim pela qual fora prejudicada pela traição
dos pais. Então precisava perdoar-lhes, e pedir que Deus a perdoasse por causa do ressentimento que
sentia contra eles, pelo que lhe tinham feito. Nesse sentido, o verdadeiro perdão pela culpa real — tanto
deles quanto dela — pôde acontecer e de fato aconteceu. Foi o início de uma nova vida de paz interior
para Dolores.

Embora os detalhes da história do leitor possam ser diferentes dos de Dolores,g processo de identificar a
verdadeira responsabilidade e a culpa real pode ser por onde deva começar a sua peregrinação da
graça. Pois em nossa vida, como na vida de Jesus, “a graça e a verdade” sempre vão juntas (João
1:14).

Culpa Falsa

Existem situações nas quais precisamos distinguir a culpa verdadeira da falsa. Uma das maneiras que a
consciência da criança usa para desenvolver as idéias de certo e errado é mediante a internalização dos
padrões das pessoas que considera importantes. Ela deseja que essas pessoas a aprovem, e, portanto,
gradualmente incorpora os seus valores e os adota para si mesma. Esse processo corretamente dirigido
é a base do lar cristão e da educação das crianças na disciplina e na admoestação do Senhor. E também
o fundamento da educação cristã na Escola Dominical, no grupo de jovens e na igreja. Quando esses
padrões são baseados nas Escrituras, enraizados em relacionamentos de amor, e reforçados por
exemplos coerentes, o resultado é uma consciência cristã saudável.

Mas esse processo planejado por Deus também pode servir de meio para o desenvolvimento de uma
consciência prejudicada e supersensível, que pode atormentar os cristãos com um sentimento
esmagador de culpa. As vezes isso acontece por haver uma ênfase excessiva em pequenas regras e
regulamentações, no contexto da família e da igreja; ou quando a disciplina e o castigo pela quebra das
regras é desproporcional à sua importância. Lares, igrejas ou comunidades legalistas e carentes de
graça, muitas vezes produzem consciências deturpadas que prendem os cristãos na armadilha da
culpa.Anos atrás um de meus mestres disse-me algo que tenho visto confirmar-se em toda uma vida na
prática do aconselhamento. Disse ele: “Sempre que você vir zelo em excesso, procure problemas
emocionais.”

Tudo isso se toma ainda mais sério quando a consciência hipersensível é reforçada por ameaças
espirituais ou emocionais; isto é, quando a culpa é utilizada para controlar ou manipular as pessoas.

Essa ameaça pode desenvolver um sentimento destrutivo de culpa falsa, o qual pode prendê-las na
roda-viva do desempenho por muitos anos.

Cliff foi uma das pessoas mais dominadas pela culpa que já conheci. Ele era um ativista espiritual, com a
obsessão de estar constantemente ocupado no serviço do Senhor. Juntamente com essa obsessão,
havia um sentimento de que era impossível relaxar os seus esforços, mesmo por um momento, porque
isso não seria agradável a Deus. Ele tinha um sentimento estranho de sempre estar sendo observado.

Carregava um fardo quase insuportável pelas almas das pessoas com quem tinha contato: o destino
eterno delas era responsabilidade dele. Estava certo de que, se as perdesse, o sangue delas seria
requerido das suas mãos. Várias vezes ele foi salvo da iminência de um colapso emocional por alguns
amigos achegados, os quais praticamente o forçaram a tirar alguns dias de descanso, e lhe deram muito
apoio e amor. Mas isso, ao final das contas, só aumentou o seu sentimento de culpa; Deus devia estar
ainda mais incomodado e desapontado por ele não ter continuado tentando.

Levou certo tempo para que Cliff parasse de se auto-flagelar e partilhasse comigo a história da sua
família. Ela estava repleta de ameaças emocionais e espirituais, como costuma acontecer quando
nenhuma das formas comuns de disciplina ou de castigo físico é empregada no combate ao mau
comportamento ou na manutenção da ordem familiar. Em vez disso, a simpatia, a desaprovação e a
culpa são utilizadas como fatores de pressão emocional a fim de ditar até mesmo o comportamento
mais insignificante na família. A mãe de Cliff carregava forte complexo de mártir, e utilizava todos os
meios possíveis para controlar a família com a sua doença e com as suas indisposições nervosas. Para
tanto se fazia necessário um rodízio constante de médicos, as causas verdadeiras nunca foram
encontradas, a fim de prescrever o descanso e os remédios que a mantinham em vida. Cliff era o filho
mais velho. Sofrendo a carga maior do problema, logo se sobrecarregou com alguns fardos bem
pesados. “Eu achava que tinha de ser perfeito, e tinha de ajudar a manter as outras crianças na linha,
pois éramos tudo o que a pobre mamãe possuía. Eu tinha de fazer o dobro do trabalho a fim de livrá-la
de qualquer carga. Afinal, ela já estava sofrendo bastante de alguma doença terrível, provavelmente
algum câncer oculto que não foi encontrado, e por causa do marido que, embora na frente de outras
pessoas agisse como se importasse com ela, por trás era desatencioso, e não servia para nada. Uma
frase que ouvíamos constantemente era: Vocês nunca saberão o que eu tive de suportar com o seu pai,
mas isso é parte da obrigação de esposa. Todos nós, filhos, achávamos que essa era uma alusão a
problema sexual.”

Havia também a ameaça espiritual mais direta, porque tudo tinha conotação religiosa. Obedecer a ela e
agradar-lhe era obedecer e agradar a Deus; desobedecer-lhe era receber a desaprovação de um Deus
carrancudo. Nesse momento, a voz de Cliff estava carregada de emoção: “Na minha mente, Deus e
mamãe vieram a ser a mesma pessoa. Agora compreendo isso. E eu desejava desesperadamente amar
e agradar aos dois, quero dizer, a ela e a Deus. Mas não havia modo de amar a mamãe. Acho que na
verdade ela não desejava ser amada. Apenas desejava muita compaixão por causa do seu sofrimento
físico, e por ter casado com papai. E era impossível agradar-lhe, porque as suas necessidades sempre
mudavam. Pobre do papai! Agora sei que, realmente, só o vi através dos olhos dela. Na realidade, ele
era um cara paciente e muito legal.”

Cliff começou a perceber que não era Deus quem sempre o estava vigiando. Não era Deus que sempre
olhava por sobre os seus ombros a fim de criticar qualquer livro que ele estivesse lendo, questionar
qualquer opinião que ele emitisse, e reprovar qualquer atividade ou relacionamento do qual ele
participasse. Sim, parecia que era Deus, ele sentia como se fosse Deus, soava como Deus, mas não era
Deus. Era a voz de uma mãe instável e insaciável que se tinha internalizado na sua consciência. Essa voz
era tão profunda que Cliff havia entrado para o clube dos vigilantes, examinando tudo dentro de si a
respeito da sua vida espiritual. Quando ele orava, lia a Bíblia ou testemunhava, era como se estivesse
observando a si mesmo orar, ler ou testemunhar. Cliff fez-me lembrar de uma história absurda que ouvi
sobre um limpador de janelas de um edifício em Nova York. O limpador de janelas deu um passo para
trás, com o fim de examinar o seu trabalho! Achou engraçado? Não no caso de Cliff, pois houve
ocasiões em que ele quase destruiu a si mesmo com a sua interminável introspecção.

Levou um bom tempo para atravessarmos os diversos níveis da culpa de Cliff. Uma compreensão do
sistema pelo qual sua família funcionava ajudou-o a entender muitas coisas a respeito de si mesmo e
dos seus pais. Precisava dessa análise não a fim de culpar a alguém, mas para aprender a perdoar e a
amar. Ele precisava de confirmação e de encorajamento, enquanto aprendia a decidir contra seus
próprios sentimentos de culpa. Muitas vezes é impossível fazer isso sozinho. Embora saibamos que
estamos certos, as conhecidas vozes da culpa fazem que nos sintamos tão errados que quase nos
rasgam aos pedaços. Por isso precisamos do apoio de uma pessoa ou de um grupo, como um dos
passos necessários. Entretanto, a solução final não está em simplesmente reorientar as regras, ou
distinguir entre os padrões revelados por Deus e as opiniões humanas internalizadas.

A solução também não está em outra direção, coisa que a maioria dos conselheiros tem de aprender a
duras penas. A liberdade e a alegria não viriam por eu tomar o lugar da mãe dele, tomando-me uma
figura de autoridade ou um pai substituto, dizendo a Cliff como ele deveria viver. E fácil os obreiros
cristãos caírem nesse tipo de armadilha de dependência. Quando isso acontece, a cura toma-se parte da
própria doença. Lembre-se, somos apenas assistentes temporários do Espírito Santo. O alvo último é
ajudar as pessoas a receberem apoio da vida corporal da igreja, e aconselhamento diretamente do
grande Conselheiro, o Espírito Santo.

O problema mais profundo de Cliff e de muitos outros que, como ele, vem de uma situação de desgraça
paterna, é o um conceito antibíblico e carente de graça acerca de Deus. O Deus deles não é o Deus
gracioso que nos é revelado em Jesus Cristo. E um Deus instável, irracional e, acima de tudo, insaciável,
cuja aceitação e amor temos de conquistar mediante um desempenho perfeito. Juntamente com isso,
têm um conceito antibíblico e falso de graça acerca do relacionamento correto com Deus. Essa é uma
conseqüência natural, pois um conceito errado de Deus leva a um conceito errado do que Deus deseja
de nós. E um conceito errado do que ele quer de nós nos leva a uma idéia distorcida de como ele se
relaciona conosco e de como quer que nos relacionemos com eles Portanto, Cliff e eu trabalhamos
juntos, permitindo que o Espírito tirasse diversas camadas de conceitos distorcidos, e curasse muitas
emoções danificadas. Esse processo lembrou-me de uma ocasião em que um médico me informou que
eu necessitava de uma operação, mas que, antes de ele poder realizá-la, várias infecções secundárias
teriam de ser erradicadas.

Essa era também a situação de Cliff. Sem dúvida ele havia progredido bastante. A cruel intensidade dos
seus sentimentos de culpa tinha desaparecido, e ele era uma testemunha de Cristo muito mais atraente.
Mas na verdade ele não conseguia se libertar do sentimento dominante da reprovação de Deus. Após ter
ouvido um sermão no domingo sobre “Descansar no Senhor”, ele me disse, com um sorriso nervoso,
que a sua vida cristã podia ser mais corretamente intitulada “Pisando em Ovos”! Ele ainda vivia como se
a aprovação de Deus dependesse do seu desempenho, em vez da perfeição de Cristo.

De certa forma, o nosso trabalho de identificação da culpa real e a falsa tomou as coisas piores para ele.
Para os cristãos, e por favor, lembre-se de que é a eles que me dirijo, não é possível resolver o
problema da culpa de outra pessoa, dizendo: “Você deve sentir-se culpado por causa disto” e “Você não
precisa sentir-se culpado por causa disto.” Não é tarefa nossa condená-los por coisas que para nós
possam parecer falha em corresponder às exigências da lei. No momento em que condenamos, estamos
dizendo que cremos no oposto, isto é, que temos a capacidade de justificar a nós mesmos,
desempenhando todas as obras da lei. se é um evangelho de obras e não de graça. Pois graça é a boa
nova de que a correta relação com Deus não depende da nossa capacidade em guardar a lei. Em vez
disso, depende de admitirmos completamente que não somos capazes de guardar a lei; melhor ainda,
que não mais precisamos guardá-la. Pelo contrário, entramos em relação correta com Deus através do
que ele fez por nós em Cristo: “Porque o fim da lei é Cristo para justiça de todo aquele que crê”
(Rm. 10.4)

A esta altura pedi a Cliff que lesse e relesse Romanos numa tradução moderna. A próxima vez que nos
encontramos ele estava visivelmente transtornado. “Esse negócio da graça está mexendo comigo”, disse
ele, “e devo confessar que estou confuso. Na verdade a minha culpa parece pior, e não estou gostando
nada disso. Mas parece que é um tipo diferente de culpa.” Então Cliff contou-me uma história
interessante: “Não tenho certeza de compreender tudo isso. Seja como for, algum tempo atrás,
enquanto eu estava cantando o hino Maravilhosa Graça, dois versos me trouxeram sentido novo: Foi a
graça que ensinou meu coração a temer, e foi a graça que me libertou dos meus temores. Parei de
cantar e estava pensando sobre o paradoxo dessas palavras, quando dentro em mim, bem
silenciosamente, parecia que Deus tinha posto os braços amorosos ao meu redor, e dizia: Cliff, eu aceito
você e o amo neste instante exatamente como você é. Jamais experimentei tal sentimento de amor
incondicional. Foi incrível. Mas imediatamente senti-me transtornado, e interiormente disse a Deus,
quase irado: Bem, você pode me aceitar, mas eu não. Afinal, tenho certos padrões!”

Pelo fato de Cliff ter expressado os seus pensamentos em voz alta, ouviu e compreendeu o que de fato
havia dito. Isso o chocou, e o levou a perceber o que o pecado, a culpa, a graça e a salvação realmente
significam. Pecado e culpa são o cerne da doença; graça e salvação são a cura. E somente o Espírito
Santo pode, em última instância, realizar isso dentro de nós. Pois ao passo que a nossa consciência nos
acusa de quebrarmos os nossos padrões morais, ou as vozes internalizadas da desgraça nos encherem
de todos os tipos de culpa falsa, o Espírito Santo não nos condena havermos falhado em ser bons. Ele
nos convence, diz Jesus, “do pecado, porque não crê em mim” (João 16:9). A graça nos leva ao lugar da
verdadeira culpa, a verdadeira culpa do nosso único verdadeiro pecado: não crer em Jesus Cristo, e não
confiar nele para um relacionamento correto com Deus. Isso é o que aconteceu a Cliff no momento em
que percebeu que não eram seus muitos pecados, nem o seu sentimento de ser mau que o impediam
de encontrar paz com Deus. Era o seu orgulho, o seu sentimento de ser bom. Orgulho esse que, num
lapso de honestidade, efetivamente disse a Deus que o caminho de justificação através do desempenho
de Cliff era melhor do que o caminho da graça incondicional de Deus.

A graça resolve o problema da culpa, não parte por parte, mas dando toda uma nova base de
relacionamento com Deus, através de Cristo e da sua cruz. Graça significa que Deus recebe pecadores.
E isso que chocava as pessoas “boas” do tempo de Jesus: “Murmuravam os fariseus e os escribas,
dizendo: Este recebe pecadores e come com eles” (Lucas 15:2). Os fariseus eram o povo mais
moralmente justo da terra, possuindo obsessiva devoção em guardar a lei. Mas Jesus disse aos
discípulos que a sua justiça devia “exceder em muito” a dos fariseus, se quisessem entrar no reino dos
céus (Mateus 5:20). Qual era a diferença entre os discípulos e os fariseus? Não que os discípulos fossem
moralmente notáveis, e os fariseus não o fossem. A julgar pelas descrições, era exatamente o contrário,
pois os pecados morais dos fariseus estavam ocultos, ao passo que as falhas dos discípulos estavam
expostas. A diferença estava no seu relacionamento com Jesus. Os discípulos estavam com Jesus,
unidos a ele, e os fariseus não. O evangelho da graça diz que esse relacionamento de confiança com
Cristo é a única solução para o problema da culpa. Pois “já nenhuma condenação há para os que estão
em Cristo Jesus” (Romanos 8:1 ).

CAPÍTULO 9
GRAÇA E EMOÇÕES

Poderia eu ganhar alguma parte no sangue do Salvador?


Morreu ele por mim, que causei a sua dor?
Por mim, que até à morte o perseguiu?
Espantoso amor! Como pode ser possível
Que tu, ó meu Deus, morresse por mim?
Deixou ele o trono do Pai nas alturas,
tão livre, tão infinita a sua graça,
Esvaziou-se a si próprio de tudo menos do amor
E seu sangue derramou pela desamparada raça de Adão!
E tudo misericórdia, imensa e livre,
Pois, ó Deus meu, ela me descobriu.
Nenhuma condenação agora temo:
Jesus, e nele tudo, é meu!
Vivo nele, minha cabeça vivente,
E, vestido em divina retidão,
Corajoso me aproximo do trono eternal,
E peço a coroa através de Cristo, minha possessão.

Os cristãos orientados pelo desempenho geralmente possuem baixa auto-estima. O que queremos dizer
com auto-estima? E uma imagem mental de nós mesmos, uma colagem de retratos, entre os quais
incluem-se as nossas recordações, as nossas situações presentes, e os nossos futuros imaginários. Todo
o tipo de reflexões, avaliações e sentimentos acompanham os retratos, formando uma colagem
tridimensional em cores vivas e som estereofônico, gerando dentro em nós certos sentimentos acerca de
nós mesmos. Se essas avaliações e emoções na sua maioria são positivas, dizemos que temos urna boa
auto-imagem, ou que nos sentimos bem a respeito de nós mesmos. Se na maioria são negativas,
dizemos que temos uma auto-imagem ruim.

• Quando buscam aconselhamento, umas das primeiras coisas que as pessoas partilham é o
modo como se sentem a respeito de si próprias. A expressão de baixa auto-estima vai desde um
moderado “não gosto de mim mesmo” até um veemente “simplesmente não me agüento mais”.

Durante a Segunda Guerra Mundial, uma assistente social ajudou a evacuar crianças das áreas sujeitas a
bombardeios em Londres, levando-as de ônibus para um lugar mais seguro no interior. Certo dia,
quando tirava um garoto de quatro anos do ônibus, pediu-lhe:

— Filho, diga-me o seu nome.


O garoto, com tristeza, ergueu o olhar e respondeu:
— Eu não sou nada de ninguém.
A julgar por suas auto-avaliações, é assim que muitos se sentem a respeito de si mesmos.

Mas, por que a baixa auto-estima é tão comum entre os cristãos? Afinal, essa atitude vai contra todas as
doutrinas bíblicas sobre a adoção na família de Deus, sobre o tomar-se filhos de Deus e co-herdeiros
com Cristo. Se a auto-estima fosse puramente uma questão de crença intelectual, os cristãos teriam por
obrigação andar de cabeça erguida e sentir-se mais bem a seu respeito do que qualquer outro grupo de
pessoas. Por que é que tantos cristãos genuinamente nascidos de novo sofrem, e sofrem de verdade, a
dor da baixa auto -estima?

Autonegação e Autovalorização

Muitas pessoas estão completamente confusas acerca do que significa possuir urna auto-imagem cristã
saudável. Fazem tremenda embrulhada dos termos ego, auto-crucificação, autonegação, auto-respeito,
auto-estima, amor próprio, auto-resignação, humildade, orgulho e uma legião de outros conceitos
relacionados. Talvez devêssemos dizer bagunça, porque essa confusão certamente atrapalha a vida
cristã diária.

Lembro-me de duas mulheres de meia-idade que vieram em busca de ajuda. Bárbara sentia-se culpada
pelo fato de não conseguir “livrar-se de si própria”, tanto que cada vez que pronunciava o pronome “eu”
parava e se desculpava. Por fim, tentou eliminar da conversa o pronome da primeira pessoa. E claro, a
situação era cômica e impossível. Ela se sentiu bastante derrotada quando salientei que o seu esforço
não apenas a tomava mais egocêntrica, mas também me tomava mais consciente dela. Ela tinha ouvido
um sermão severo sobre a “crucificação do eu” baseado em Gl. 2:20. Quando pedi que lesse o versículo
devagar e em voz alta, e contasse nos dedos as palavras “eu” e “mim”, ela ficou totalmente surpresa em
descobrir que apareciam sete vezes. O versículo que mais fala de auto-resignação no Novo Testamento
acaba sendo o mais cheio de ego!

A segunda mulher, Judite, veio a perceber que a sua compreensão errônea da auto-estima estava
destruindo a ela e ao seu casamento. Como indivíduo, ela estava negando os dons que Deus lhe dera; e
como esposa, tinha falhado em se expressar ao marido, e, assim, tinha-se ressentido contra ele. Por
quê? Ela temia ser orgulhosa, e sentia que o único modo de evitar o orgulho era negar e crucificar a si
própria. Essa crucificação significava que devia considerar a si mesma como tendo pouco ou nenhum
valor, lembrar-se constantemente da sua inutilidade, e se auto-depreciar sempre. Ela achava que isso
era humildade.

A expressão: “Amarás a teu próximo como a ti mesmo” aparece nove vezes na Bíblia; uma vez a ordem
refere-se “ao estrangeiro que peregrina convosco... amá-lo-eis como a vós mesmos”. O mandamento é
apresentado duas vezes por Moisés (Levítico 19:18; 19:34), cinco vezes por Jesus (Mt. 19:19; 22:39;
Mc. 12:31, 33; Lc. 10:27), duas vezes por Paulo (Rm. 13:9; Gl. 5:14) e uma vez por Tiago (2:8). Ora,
é tecnicamente correto dizer que essas passagens realmente não nos ordena a amar a nós mesmos.
Porém a inferência clara em cada uma delas é que um tipo adequado de amor próprio é a base normal
do relacionamento com outros. O amor próprio não é ordenado, mas é presumido. Talvez não esteja
ordenado simplesmente porque presume-se que as pessoas a quem estão falando amem a si próprias e,
portanto, esse seria o padrão pelo qual avaliariam o seu amor pelos outros. Essa certamente é a
suposição do conselho de Paulo aos maridos em Efésios 5:28-29: “Assim também os maridos devem
amar a suas mulheres como a seus próprios corpos. Quem ama a sua esposa, a si mesmo se ama.
Porque ninguém jamais odiou a sua própria carne, antes a alimenta e dela cuida, como também Cristo o
faz com a igreja.” As Escrituras presumem que amor próprio, cuidado próprio e auto-estima adequados
sejam normais, e em lugar algum diz que odiemos ou negligenciemos a nós mesmos, ou que caiamos na
auto-depreciação.

Autonegação consiste em negar não o nosso valor próprio, mas a nossa vontade própria, e em
abandonar a busca de glória própria. A crucificação do eu é a nossa disposição em renunciar a nosso
ego carnal que se auto-gloria, e permitir que ele seja morto na cruz com Cristo. Não significa que
renunciemos ou depreciemos os dons que Deus nos deu; significa, sim, que os rendamos a Deus, para
serem utilizados para glória dele.

Orgulho, conforme o termo é empregado na Bíblia, é uma avaliação desonesta de nós mesmos. Paulo
adverte contra isso: “Porque pela graça que me foi dada, digo a cada um dentre vós que não pense de
si mesmo, além do que convém, antes, pense com moderação segundo a medida da fé que Deus
repartiu a cada um” (Romanos 12:3). Assim como Paulo nos lembra que somos salvos pela graça por
meio da fé, e isso não vem de nós, aqui ele nos lembra que a graça de Deus e a fé nos darão
igualmente uma avaliação honesta e precisa de nós mesmos. Em ambos os casos, o orgulho está
excluído, porque a graça e a fé são dons de Deus. Como Paulo pergunta incisivamente: “Pois quem é
que te faz sobressair? e que tens tu que não tenhas recebido? e, se o recebeste, por que te vanglorias,
como se o não tiveras recebido?” (1 Coríntios 4;7).

Certa vez alguém perguntou a Come ten Boom como ela aceitava os cumprimentos e elogios que lhe
eram constantemente lançados sem ficar orgulhosa. Ela disse que via cada cumprimento como uma
linda flor. Ela apreciava o perfume por um momento, e então a colocava num vaso juntamente com as
demais. Todas as noites, pouco antes de ir dormir, ela tomava o buquê e o entregava a Jesus, dizendo:
“Obrigada, Senhor, por deixar-me sentir o perfume das flores; todas elas pertencem a ti.” Ela havia
descoberto o segredo da humildade genuína.

Humildade significa que, embora eu goste de mim mesmo, e aprecie o reconhecimento dos outros, não
preciso provar o meu valor para Deus, para mim, nem para os outros. A auto-estima cristã saudável
descansa no firme fundamente de saber que somos aceitos, amados e apreciados pelo próprio Deus.
Esse conhecimento gera em nós uma humildade que nasce da gratidão pela graça imerecida, de Deus, e
que dele provém. Sentimentos de inferioridade, insegurança e inadequação não vêm de Deus, mas de
Satanás, como uma falsificação da verdadeira humildade.
Barreiras à Graça

Entretanto, como no caso da culpa, muitos cristãos concordam inteiramente com tudo o que
apresentamos acima e ainda assim continuam atormentados pelo senso de inutilidade e pela baixa auto-
estima. Apesar dos esforços constantes para memorizar os versículos certos, pensar positivamente e
“tomar-se quem são em Cristo”, no nível instintivo são incapazes de sentir-se bem a respeito de si
mesmos. Examinemos várias barreiras interiores à graça.

• A necessidade de perdoar a nós mesmos. Muitos cristãos sofrem de constantes ataques de


autodesprezo porque não perdoaram a si próprios as falhas morais do passado. Dizem: “Sim, sou
cristão. Creio que Cristo morreu pelos meus pecados e, portanto, creio que Deus me perdoou. Mas bem
no fundo continuo a chutar-me espiritualmente por alguma coisa. Deixo ligada uma cena de vídeo em
câmara lenta da situação específica e acabo me recriminando, e depreciando a mim mesmo.”

Já nos referimos à história de José. De como ele perdoou aos irmãos. Essa história contém diversos
incidentes notáveis. Um dos que revelam a sensibilidade incomum de José encontra-se no capítulo 45 do
Gênesis. José, lutando contra as próprias e torturantes emoções, acabará de revelar-se a seus irmãos,
que “ficaram aterrorizados na sua presença”. Eles se lembraram do seu hediondo crime contra José, e
perceberam que ele poderia tê-los executado a todos. Nesse momento tumultuado, José poderia ter-se
fechado em si mesmo, e ter sido dominado por suas próprias emoções. Em vez disso, com uma
percepção incrível da natureza humana, percebeu que os seus irmãos iam ter dificuldades em acreditar
no seu perdão e em aceitá-lo. Assim, deixando de lado o seu próprio interesse, ele se voltou para os
irmãos, desejoso de ajudá-los a receber o seu perdão. Disse-lhes: “Eu sou José, vosso irmão, a quem
vendestes para o Egito. Agora, pois, não vos entristeçais, nem vos inúteis contra vós mesmos por me
haverdes vendido para aqui; porque para conservação da vida, Deus me enviou adiante de vós”
(Gênesis 45:5).

Se José pôde dizer isso a seus irmãos, quanto mais Cristo, o nosso Irmão mais velho, diz a todos nós:
“Parem de se angustiar e de odiar a si próprios por causa de pecados passados. Eu sofri e morri por
todos os seus pecados. Mostrem que aceitaram a minha dádiva do perdão, perdoando a si mesmos. Ao
continuarem a depreciar a si próprios por causa dos seus pecados, não apenas estão insultando a minha
morte na cruz, mas na verdade também estão declarando que o poder dos seus pecados é maior do que
o poder de Deus; que vocês e seus pecados são tão poderosos que Deus não os pode transformar em
bem. Vocês estão de fato invertendo a Palavra de Deus, forçando-a a dizer: Onde a graça abundou,
superabundou o pecado!”

E essa área que muitas vezes precisa de tipos especiais de oração pela cura.’ Nesse tipo de terapia cristã
tentamos visualizar a Jesus ministrando às pessoas no lugar e momento da sua necessidade. Essa
visualização não é criação da imaginação humana. Ela sempre tem base bíblica, recria uma metáfora
real de Cristo ou um incidente da sua vida, conforme retratado nos Evangelhos. Deixe-me partilhar com
o leitor a experiência de uma mulher que recebeu o perdão total através da cura de algo em seu
passado que a mantinha presa:

Identificar algumas memórias dolorosas que bloquearam meu crescimento espiritual durante muito
tempo, me foi útil. Todos esses anos eu tinha atirado pedras à “mulher pecadora do meu passado”.
Voltar a situações específicas com Jesus me ajudou muito. A resposta dele foi: “Mulher, onde estão os
teus acusadores? Ninguém te condenou? Nem eu tampouco te condeno; vai-te, e não peques mais.”
Agora em cada situação digo a mim mesma o que Jesus diria. Ele é um Senhor e Salvador muito melhor
do que eu... Estes últimos meses têm sido muito mais fácil aceitar o aspecto “salvador” de Jesus. Ainda
é difícil aceitá-lo como “Senhor”. Mas examinar os meus problemas com figuras de autoridade tem
ajudado, e posso ver um progresso verdadeiro na cura dessa área também.

• A necessidade de perceber que não mais precisamos de sentimentos negativos. Muitas


vezes, quando pergunto a cristãos por que se prendem com tanta tenacidade à combinação de culpa do
passado e auto-desdém do presente, respondem: “Se não me sentisse desse modo em relação a mim
mesmo, provavelmente voltaria a cair no pecado. Preciso disso para manter-me na linha. Não sei o que
eu seria capaz de fazer sem isso.”
Que conceito errôneo e trágico acerca do lugar da culpa e da auto-condenação na vida do crente. Existe
um lugar definido para ambos na vida daqueles que estão fora de Cristo. E esse o principal propósito da
lei em suas vidas — não salvá-los pela obediência a ela, mas revelar-lhes os pecados, criar neles um
senso de condenação e perdição, e, dessa forma, levá-los à sua única esperança em Cristo.

Visto que ninguém será justificado diante dele por obras da lei, em razão de que pela lei vem o pleno
conhecimento do pecado... Antes que viesse a fé estávamos sob a tutela da lei, e nela encerrados para
essa fé que de futuro haveria de revelar-se. De maneira que a lei nos serviu de aio para nos conduzir a
Cristo, a fim de que fôssemos justificados por fé. Mas, tendo vindo a fé, já não permanecemos
subordinados ao aio (Romanos 3:20; Gálatas 3:23-25).

Uma vez que estamos em Cristo, a culpa, a condenação e o autodesprezo não mais são designados para
servir de principais motivadores para uma vida reta. Levará algum tempo para mudar, mas mais cedo ou
mais tarde o amor deve tomar-se a força motivadora do viver cristão.

Então não há lugar para a lei? Foi ela revogada? O que Paulo quer dizer com não estamos “debaixo da
lei, e sim da graça”? (Romanos 6:14-15) Jesus disse que veio cumprir a lei (Mateus 5:17); portanto, em
que sentido nós, os cristãos, estamos livres dela? Segundo Paulo estamos livres da sua maldição
(Gálatas 3:13), do seu poder coercivo (Romanos 7:7-9) e dos seus exigentes rituais (Gálatas 5:1-6). Mas
não estamos livres da sua intenção moral para com Deus, para conosco e para com as outras pessoas.
Entretanto, agora essa intenção moral é cumprida de modo totalmente diferente, “a fim de que o
preceito da lei se cumprisse em nós que não andamos segundo a carne, mas segundo o Espírito”
(Romanos 8:4). “De sorte que o cumprimento da lei é o amor” (Rm. 13:10).

Do ponto de vista bíblico, os cristãos que se prendem à culpa, à condenação e a um sentimento de


inutilidade auto-depreciativa estão vivendo sob a maldição, o aguilhão e o poder da lei. Essa atitude é
facilmente observável da perspectiva psicológica.

A idéia de que temor, culpa e auto-condenação nos guardarão de pecar e, portanto, nos concederão
gozo e paz interior, é totalmente contrária à experiência prática. Os que vivem dessa maneira estão
cheios de tormento interior, e são levados por fortes compulsões — inclusive estranhas e aparentemente
incontroláveis — exatamente na direção dos pecados que mais tentam evitar. Por quê? Porque a culpa e
a auto-condenação nunca tiveram a finalidade de ser a força motivadora da vida cristã. A emoção que
subjaz à culpa e ao ódio próprio é o medo. E o medo é, na verdade, a emoção mais egocêntrica de
todas. Portanto, quando o utilizamos como apelo para uma vida reta, ele somente nos torna mais
egocêntricos e mais ansiosos. Dessa forma, frustra o seu próprio propósito, e nos mantém afastados do
alvo que estamos tentando atingir.

Culpa e autodesprezo são motivadores de curto prazo, cuja intenção é arrancar-nos de nossos pecados
e levar-nos na direção de Cristo. Mas a longo prazo são motivadores muito ruins. Podem servir para a
corrida de 100 metros, mas a vida cristã é mais parecida com uma maratona de 42 quilômetros, a qual
devemos “correr com perseverança” (Hebreus 12:1).

Ao longo dos anos tenho visto o poder libertador de Cristo. Para utilizar as palavras do hino de Charles
Wesley: “Ele quebra o poder do pecado cancelado, ele deixa liberto o prisioneiro”.

Mas também tenho visto o outro lado da moeda — o poder cativante e restritivo do seu amor e da sua
graça.

Ao longo dos anos tenho observado que na hora decisiva não é o sentimento de culpa, nem a
condenação que nos manterá firmes. Antes, é o conhecimento instintivo da graça e do amor
incondicional de Deus por nós. Na expressão de Thomas Chalmers, é “o poder expulsivo de uma nova
afeição”.

A Graça que Leva ao Lar

A história de Evelyn ocuparia muitas páginas, pois Deus literalmente a resgatou de um cesto de lixo.
Abusos verbais, físicos e sexuais marcaram a sua infância. Um casamento na adolescência, para escapar
de seu lar, só fez trocar um conjunto de problemas por outro. Logo ela era uma jovem divorciada
tentando preencher uma necessidade quase insaciável por atenção e amor masculinos, pulando de um
caso a outro. E então, um colaborador cristão a apresentou a um grupo de comunhão carinhoso e
amoroso, e ela passou por comovente conversão. Ela sentia que Deus queria que completasse a sua
educação escolar. Foi enquanto estava na faculdade que ela veio em busca de aconselhamento. Além
das feridas dos seus primeiros anos, alguns dos seus próprios pecados passados haviam deixado
profundas cicatrizes na sua vida. Aos poucos, a graça salvadora, santificadora e restauradora de Deus
foi fazendo mudanças notáveis na personalidade de Evelyn. A área em que ela sabia que mais precisava
“vigiar e orar” era a sua necessidade quase compulsiva de homens. Ela percebeu que, em certo sentido,
ainda estava procurando um pai.

Evelyn formou-se e conseguiu um bom emprego como secretária. Pelo fato de ser responsável, e de
trabalhar duro, foi promovida a assistente pessoal do presidente da companhia. Isso significava muitas
horas de trabalho junto com ele no escritório, e também horas extras. Embora ele fosse um homem
casado, com família, ela se sentiu atraída para uma proximidade emocional com ele. A situação nunca
era mencionada, mas ambos percebiam o que estava acontecendo.

Certo dia, quando ele pediu que ela o acompanhasse numa viagem de negócios, ela bem no fundo do
coração sabia o que isso significava. Chorou e orou sobre isso perante Deus, mas aquele antigo vazio
parecia atraí-la para um redemoinho do qual não conseguia escapar.

Na segunda noite em que estavam fora, enquanto jantavam, o patrão expressou seus sentimentos por
ela. Ela respondeu que sentia a mesma coisa por ele. Aceitou o seu convite, e concordou em ir ao seu
quarto após a última reunião de negócios. Durante as reuniões da noite, uma luta horrível se travava
dentro dela. Mais tarde ela escreveu:

Era como um cabo-de-guerra, e eu era o cabo! Quando acabou, eu estava tremendo como uma vara
verde. Então uma grande paz interior assumiu o controle. Era realmente “a paz que excede o
entendimento”, porque certamente eu não podia entender o que fiz. Mas quando saímos juntos da
reunião, parei e disse: “um, admiro você mais do que qualquer outro homem que conheço. Quero tanto
estar com você esta noite que realmente estou ansiosa. Fui eu quem o incentivou. Perdoe-me. Mas é
que durante a reunião me lembrei de uma coisa. Lembrei-me de que certo homem de Kentucky falou-
me o quanto Deus me amava, e acreditei nele. E simplesmente não consigo ir contra esse tipo de amor.
Ele tem feito muito por minha vida e isso significa demais para mim.”

Evelyn havia descoberto o segredo: a percepção do amor incondicional e da graça imerecida de Deus,
que nos mantém firmes na tentação; não a culpa e a auto-condenação, mas a graça e o senso de auto-
estima que a acompanha.

Você já percebeu que os apelos que o Novo Testamento faz a uma vida reta e santa não são de lei, mas
de relacionamentos? Mesmo as passagens que contêm longas listas de pecados não indicam que a culpa
deve manter os cristãos sob controle. Quase sempre há um apelo para um relacionamento pessoal de
graça e amor. E a mesma base para guardar os mandamentos que Jesus nos deu: “Se me amais,
guardareis os meus mandamentos” (João 14:15). Muitos cristãos invertem esse ordem, levando-a a
significar: “Se guardardes todos os meus mandamentos, então eu vos amarei — talvez.” Uma vez que
temos o Espírito Santo em nós, o apelo amoroso a uma vida ética é poderoso. Como podemos pecar
contra o Espírito, e correr o risco de prejudicar o nosso relacionamento com ele?

Efésios 4:30 ordena: “Não entristeçais o Espírito de Deus, no qual fostes selados para o dia da
redenção”. E em 1 Tessalonicenses 5:19: “Não apagueis o Espírito.” Efésios 5:18: “E não vos
embriagueis com vinho, no qual há dissolução, mas enchei-vos do Espírito.” Não devemos substituir a
plenitude do Espírito com o álcool. O apelo não é que o medo, a culpa, e a condenação nos impeçam de
pecar, mas que tenhamos um relacionamento de amor, graça, e gratidão com a Pessoa do Espírito de
Deus. Não é: “Não quebre um mandamento impessoal”, mas: “Não prejudique um relacionamento
pessoal amoroso”.

A noção de que devemos nos apegar à culpa e ao autodesprezo a fim de não pecarmos e de sermos
motivados para a vida cristã, não é bíblica. Em geral, é conseqüência de um período anterior em nossa
vida em que exatamente essas emoções foram formas de aceitação condicional, utilizadas para “nos
manter na linha”. Essa transferência nos leva a alguns aspectos da baixa auto-estima que provêm de
emoções problemáticas. Consideraremos esses aspectos no próximo capítulo, e veremos como a graça
pode trazer cura e integridade.

CAPÍTULO 10
GRAÇA E AUTO-ESTIMA

Oh, deixa-me falar-te bem do meu Salvador,


Garanto que Jesus é verdadeiro:
Vós todos podeis encontrar o favor,
os que atendem ao seu chamado;
Oh, vem ao Salvador! Sua graça é para todos.
Então submetamo-nos a fim de a sua graça recebermos,
Caiamos a seus pés e contentes creiamos:
Todos nós somos perdoados por causa de Jesus;
Tomamos os seus méritos como o nosso direito ao céu.

Em dezembro de 1985, o articulista Bob Greene escreveu um artigo a respeito de um garoto de doze
anos que recebeu um cartão cruel de seus colegas de classe, O cartão, produzido e distribuído pela
Companhia de Chicletes Topps, tinha como título: “Prêmio ao Aluno Mais Chato”. Os colegas do garoto
escreveram o nome dele no cartão, e o deixaram sobre a sua carteira. Originalmente, Greene escreveu
porque achava errado que uma empresa vendesse esse tipo de cartão. A Companhia Topps rejeitou a
crítica dele, dizendo que era apenas uma espécie de sátira e um inocente “humor de insulto”.

Mas o Diretor da escola disse que esse incidente estava causando diversos problemas emocionais ao
garoto. O que mais impressionou a Greene foi a avalanche de correspondência que recebeu de seus
leitores adultos, falando de problemas permanentes que carregavam como resultado de tais “inocentes”
incidentes da infância. A maioria das pessoas ainda estava atribulada por um senso de baixa auto-
estima. A coluna de jornal de Greene recebeu o título “A Dor que Nunca Vai Embora”.

A única coisa que me surpreendeu na coluna de Greene foi a sua surpresa. Em maio de 1986 ouvi
George Gallup Jr. dizer que sua última pesquisa mostrava que um terço dos norte-americanos sofria de
baixa auto-estima. Ele achava que esta era a principal moléstia psicológica de nossos dias.

Vejamos como podemos cooperar com a graça a fim de remover os obstáculos internos que não nos
permitem ser curados dessa dolorosa moléstia.

Os Mortais “Eu sou”

Se somos verdadeiros filhos de Deus, nascidos de novo, o nosso senso de inutilidade e de baixa auto-
estima não provém de Deus, o grande Eu Sou. Pelo contrário, provêm de nossos próprios mortíferos “eu
sou”. Deixe-me explicar.

Você se lembra de como observamos que o lar é como um espelho no qual desenvolvemos os conceitos
que fazemos de nós mesmos? O modo como chegamos a ver a nós mesmos e a valorizar, ou
desvalorizar, a nós mesmos será baseado grandemente nas avaliações feitas pelas pessoas que têm
importância para a nossa vida. Isso é verdade especialmente nos primeiros anos de desenvolvimento.
Não há dúvida de que existem diferenças inatas entre as crianças. Desde o nascimento, algumas são
bastante sensíveis e possuem um radar embutido, o qual capta os detalhes mais minuciosos da vida
doméstica. Outras nascem com um tipo totalmente diferente de antena receptora, a qual parece
eliminar a estática.

Embora essas diferenças determinem o grau de reação das crianças, existem certas necessidades
básicas dadas por Deus, as quais são iguais para todos. Estou convicto de que a conseqüência isolada
mais séria da desgraça paterna é uma auto-estima seriamente prejudicada. Quer o prejuízo tenha sido
provocado intencionalmente quer não, direta ou indiretamente, de modo negativo através da privação,
ou de modo positivo pela rejeição, o resultado é um sentimento de inutilidade e de baixa auto-estima.
Os “você é” da parte dos pais tornam-se os “eu sou” da criança. Não quero limitar essa influência aos
pais ou padrastos, porque outros membros da família, os vizinhos, os colegas, os professores e os
líderes da igreja também desempenham importante papel nessa área. Entretanto, não há dúvida de que
o papel principal toca aos pais. Não que necessariamente expressem a sua rejeição mediante expressões
como: “Você é isso”, ou “Você é aquilo”. A mensagem é entregue por meio da sua personalidade global,
por uma conduta interior ou exterior, pelo sinal de radar que emitem.

Em um dos meus livros, trato desses “eu sou” como lemas da infância, os quais mutilam o
comportamento adulto, lemas como:

“Comporte-Se”, “Homem não chora”, e “Você jamais conseguirá”. Desde então, pessoas têm-me trazido
muitas outras dessas expressões rebaixadoras, que disseram ter contribuído para a formação de uma
opinião inferior a respeito de si próprias:

Você não tem o direito de se sentir assim.


Se você não puder dizer algo bom, não diga nada.
Por que você sempre faz isso?
Se há um modo errado de fazê-lo, você o descobrirá.
O que faz você ser tão imbecil? desajeitado? burro? vagaroso? bobo?
Tudo o de que você precisa é usar a cabeça de vez em quando.
Não posso acreditar que você tenha feito isso.
Por que você não pode ser como a sua irmã? irmão?
Sinto raiva só de pensar no que você vai ser.
Você vai ser exatamente como....
— Que diabos há de errado com você?
O que Jesus pensa de você, quando você faz aquilo?
Deus não pode amar meninos, meninas malcriadas.
Agora você terá de ser o homem da casa.
Não deixe ninguém perceber como você é na verdade.
Por que você não nasceu menino? menina?
Você já era um problema antes de nascer.
Desde que nasceu, você só tem sido um problema.
Gostaria que você nunca tivesse nascido.
Você é a única razão de continuarmos juntos.
Se eu achasse que você realmente está arrependido, talvez que eu lhe perdoasse.
Estou enjoada de você, ou: Você me deixa doente.
Como você pôde fazer isso, depois de tudo o que fizemos por você?
Você devia saber que não se pode confiar num homem, numa mulher.
Será que você não consegue fazer nada direito?
Não é de se admirar que você não tenha amigos!

Observe que a maioria dessas declarações não são críticas ou correções do que se faz, mas do que se é.
Isso é extremamente importante com relação à nossa auto-estima. Os psicólogos que realizaram
estudos especiais sobre a transmissão de segurança, criaram uma fórmula sobre impactos positivos e
negativos.

Um impacto positivo nos edifica como pessoas. Se foi aplicado por causa do fazer, o que você fez, vale 1
ponto. Se foi aplicado por causa do ser, o que você é, vale 10 pontos.

Um impacto negativo nos diminui como pessoas. Se foi aplicado por causa do fazer, conta 10 pontos. Se
foi dado por causa do ser, conta 100 pontos!

Minha experiência de aconselhamento confirma essa fórmula. As pessoas lembram-se de uma crítica
dolorosa isolada com grande viveza, ao passo que tendem a se esquecer de uma série de elogios. E
sentem muito mais profundamente uma declaração positiva ou negativa acerca do que são, do que uma
a respeito do que fizeram. Portanto, é fácil perceber por que os rebaixamentos do fato de ser podem
esmagar a nossa auto-estima. Eles nos atingem não simplesmente no exterior, a área do
comportamento; mas penetram fundo em nosso interior, onde se originam os conceitos e sentimentos
acerca de nós mesmos.

Se fossem apenas declarações isoladas, proferidas ocasionalmente por pais exaustos e exasperados, que
normalmente são bons e amorosos, não causariam tanto mal. Mas quando representam a atitude e a
atmosfera comum do lar, o efeito sobre a auto-imagem pode ser sério. Cada uma dessas afirmações é
uma mensagem básica que, de um ou de outro modo, diz: “Você é inútil, você é mau, você é culpado,
você é um fracasso, você nunca se dará bem na vida.” Estes “você é” podem tomar-se parte
permanente dos nossos “eu sou” — a voz interior da nossa auto-imagem — que então dirá: “Eu sou
inútil, eu sou mau, eu sou culpado, eu sou um fracasso, e nunca me darei bem na vida.”

Em um de seus excelentes livros, Gary Smalley e John Trent afirmam que a composição psicológica e
emocional humana é tal que precisamos do que a Bíblia chama de “bênção”. Esta é o conhecimento de
que alguém neste mundo nos ama e nos aceita incondicionalmente. Pelo fato de nossos pais serem tão
importantes para nós durante os anos de formação, necessitamos especialmente da bênção deles, e
somos prejudicados se não a recebemos Smalley e Trent especificam os cinco elementos bíblicos da
bênção: o toque significativo, a palavra falada, a expressão de alto valor, a descrição de um futuro
especial, e a aplicação de um compromisso genuíno.

Aqui, de fato, temos uma ótima descrição do que chamamos de graça paterna. Contraste 55O com as
expressões verbais da desgraça paterna que descrevemos. Ou acrescente algum outro comportamento
paterno que produza exatamente o oposto do toque significativo e do compromisso duradouro. As suas
conseqüências trarão mais “maldição” do que “bênção”.

• Alcoolismo. Existem cerca de doze a quinze milhões de alcoólatras nos Estados Unidos. ‘Os estudos
feitos sobre filhos adultos de alcoólatras confirmam que possuem sérios problemas com baixa auto-
estima, o que tem como resultado uma porcentagem alarmante reflete alta de eles ou se tomarem
alcoólatras, OU se casarem com alcoólatras.

• Lares desfeitos. Até o início da década de 1990, metade de todas as crianças d& Estados Unidos
virá de lares desfeitos pelo divórcio. Em janeiro de 1988 o governo norte-americano relatou que um
quarto de todas as crianças do país vivem em lares em que só um dos pais está presente.

• Filhos em casas vazias. A última pesquisa do lnstituto Harris relata que há treze milhões de
crianças que a cada dia, quando voltam da escola, encontram uma casa vazia. Esse número representa
um quarto dos lares norte-americanos. A mesma pesquisa afirma que os professores consideram esse
fato como a principal razão pela qual os filhos não vão bem na escola (Noticiário Vespertino da CBS, 2
de setembro de 1987).

• Abuso. E quase impossível acompanhar as estatísticas crescentes de espancamento de esposas, e de


abuso físico de crianças. O número de casos noticiados de abuso sexual de crianças dobrou em menos
de uma década. Em muitas circunstâncias, é o abuso verbal que tanto prejudica a auto-estima. A Bíblia
está certa, quando afirma que como pensamos no coração, assim nós somos. Paulo emprega uma
notável expressão em Efésios 1:18: “os olhos do vosso coração”. Sim, nosso coração realmente tem
olhos pelos quais vemos a nós mesmos desde as profundidades da nossa personalidade. E quando
vemos a nós mesmos do ponto de vista de destrutivos “eu sou”, então a nossa auto-estima é
influenciada a partir do centro do nosso ser.

Todos os fatores que temos descrito produzem auto-desvalorização e ódio próprio, os quais podem
continuar mesmo depois de nos tomarmos cristãos cheios do Espírito, de modo que então nos sintamos
como se também Deus nos estivesse reprovando. O primeiro passo para a cura é percebermos que Deus
sabe de onde vêm os sentimentos, e que está tão triste com isso quanto nós. Ele deseja trabalhar
conosco a fim de nos libertar desses sentimentos, pois não quer que os seus filhos desprezem a si
próprios. Na verdade, a nossa única esperança é adquirir todo um novo modo de ver para nós mesmos,
mediante os olhos da graça.
Sete vezes encontramos no evangelho de João os grandes “Eu Sou” de Cristo: o pão da vida (6:35), a
luz do mundo (8:12), a porta (10:7), o bom pastor (10:11), a ressurreição e a vida (11:25), o caminho,
a verdade e a vida (14:6), e a videira verdadeira (15:1). Jesus Cristo era o único que tinha o direito de
dizer: “Eu Sou”, porque de fato é o grande Eu Sou, vindo em carne humana. E Agostinho quem nos
lembra que não temos o direito de dizer “eu sou”, porque nunca simplesmente somos, mas sempre
estamos no processo de nos tomar. Que maravilhosa palavra de esperança! Pela graça de Deus estamos
nos tomando alguém diferente. Já é tempo de deixarmos para trás os velhos “eu sou”.

Recentemente recebi uma carta de uma mulher que, embora fosse crente há muitos anos, lutava com a
baixa auto-estima. Escreveu ela: “Seis palavras do seu livro transformaram a minha vida: ‘O quanto você
significa para ele’. Eu sempre tinha pensado no quanto ele significava para mim, por isso nunca me
tinha passado pela cabeça que eu pudesse significar alguma coisa para ele. Quando essa mensagem
realmente penetrou o meu íntimo, modificou tudo o que eu sentia em relação a mim mesma!”

Deus não é como alguns pais cruéis ou neuróticos, que precisam rebaixar a seus filhos. Pelo contrário,
ele tem prazer em elevar os seus filhos e a ajudá-los a se sentir bem a respeito de si próprios. “Vede
que grande amor nos tem concedido o Pai, ao ponto de sermos chamados filhos de Deus; e, de fato,
somos filhos de Deus. Por essa razão o mundo não nos conhece, porquanto não o conheceu a ele
mesmo” (1 João 3:1). “Por isso, Deus não se envergonha deles, de ser chamado o seu Deus” (Hebreus
11:16).

É Preciso um Trabalho Interno

O baixo valor que atribuímos a nós mesmos não será curado por algo que possamos atingir ou obter
exteriormente. Essa cura terá de vir do interior, porque o problema tem raízes muito profundas.

Gastei deliberadamente muito tempo tratando dos efeitos destrutivos da desgraça sobre a auto-imagem.
Qualquer que seja a sua origem — lar, escola, igreja, comunidade ou cultura — as conseqüências são
um senso profundamente arraigado de inutilidade e de auto-desprezo. O termo comum que utilizamos
para esse estado, complexo de inferioridade, não o descreve de modo adequado. Quando alguém diz:
“Sinto-me inferior”, ou: “Sinto-me incapacitado”, é apenas mais uma versão do ‘á antigo jogo de
comparação que dá ênfase ao fazer. Muitas vezes significa ser inferior a alguém, porque são melhores,
ou inferior a uma tarefa. Esse sentimento de baixa auto-estima, pois, é conseqüência de a pessoa não
fazer bem alguma coisa.

O senso de inutilidade e de baixa auto-estima de que estamos tratando é muito mais sério porque inclui
o ser da pessoa. “Sou inútil e inaceitável, e as coisas que faço somente revelam o que realmente sou.
Os meus fracassos e comportamentos inaceitáveis simplesmente revelam aos outros o tipo de pessoa
que sei que sou.” Essas pessoas começam com o que julgam ser um fato incontestável: “Sou o tipo de
que ninguém conseguiria gostar de verdade”, O que fazem toma conhecido quem acham que são. Não
importa quanto sucesso alcancem, ou quanto progridam na sua carreira, ou quantos elogios recebam,
continuam não se sentindo nada melhor com relação a si mesmos. O sentimento de serem inúteis e
inaceitáveis vem em primeiro lugar; a baixa auto-estima já se encontra no seu ser, e quantidade
nenhuma de ações aceitáveis ou de valor a modificarão.

Não há outro modo de explicar o fato de que não aceitam o reconhecimento que os outros lhes dão de
realizações evidentemente bem-sucedidas, ou de atitudes bastante aceitáveis e cristãs. Ouvem o que
lhes é dito, mas não conseguem crer nisso, nem senti-lo no nível instintivo. Pelo contrário, recusam-se a
aceitar essas observações e, na verdade, utilizam-nas para aumentar o seu autodesprezo das maneiras
mais ingênuas. Será que algumas dessas frases soam familiar?

As pessoas estão apenas tentando fazer que me sinta bem, porque sentem pena de mim.
Sei que não é verdade, e ele está apenas me enganando. Não quero esse tipo de piedade.
Meu marido diz que sou bonita só para me fazer sentir melhor. Preferia que ele me dissesse a verdade
(isso muitas vezes dito por mulheres lindas).
Minha esposa diz que tem orgulho de mim, mas isso é só para fazer que eu me sinta bem (isso muitas
vezes dito pelos homens mais bem-sucedidos).
As pessoas dizem isso porque não me conhecem de verdade.
Provavelmente você não pensaria isso de mim se me conhecesse melhor.
Não me importa quantos elogios eu receba. Quando se começa com zero, não faz a menor diferença o
que é acrescentado; permanece zero.
Não foi realmente eu quem o fiz, foi o Senhor (modo comum pelo qual cristãos perfeccionistas, que
anulam a si mesmos, afastam os elogios, após terem feito bem qualquer coisa, como solos, sermões e
cultos).
Agradeço o que você está-me dizendo, mas afinal você é meu conselheiro! (Em tradução livre significa:
“Eu sei que você está tentando ajudar, mas não me está dizendo a verdade.”)

Pelo fato de esse profundo senso de baixo valor próprio vir do interior, nunca será resolvido por algo
fora de nós. Mesmo assim tentamos. Examinemos algumas das maneiras:

• A caça da realização. Muitos sentem que se tão-somente pudessem alcançar o sucesso em alguma
área do seu trabalho, provariam a si mesmos que têm valor. Então seriam aceitos e amados por Deus e
pelos outros, e então se sentiriam melhor a seu próprio respeito. Por isso se esforçam mais no trabalho,
têm um melhor desempenho, e podem até alcançar alto nível de sucesso, só para descobrir que
quantidade nenhuma do que possam fazer ou alcançar modificará o modo como interiormente se
sentem com relação a si próprios. A baixa auto-estima simplesmente não lhes permitirá aceitar a
reafirmação e o encorajamento apropriados. Assim, o círculo vicioso começa de novo, e as mandíbulas
da armadilha do desempenho os agarram mais fortemente que nunca.

Não é o meu desejo generalizar a partir da minha própria experiência, mas me parece que são mais os
homens que escolhem essa rota do que as mulheres. Os homens estão mais comprometidos no
trabalho, e naturalmente pensam que podem conquistar posição e auto-estima através dos esforços
próprios.

• A carência de afeto. Eu vejo mais mulheres tentando conquistar um senso mais alto de valor
próprio mediante o afeto e o amor que os outros lhes dão. Infelizmente, esse modo é tão insatisfatório
quanto o anterior. Como muitas das citadas expressões depreciativas indicam, a desconfiança própria
não lhes permitirá aceitar a oferta do afeto ou do amor. E quase impossível crerem que alguém possa
amá-las, quando se consideram tão indesejáveis, com pouco ou quase nada para oferecer em troca.
Mais uma vez se estabelece um círculo vicioso, que varia desde se sentirem super-ansiosas, super-
carentes, super-possessivas ou super-críticas, até super-afetivas, e às vezes até mesmo promíscuas.
Embora possa haver períodos de alívio temporário, essas pessoas com freqüência não conseguem
manter os relacionamentos dos quais carecem com tanto desespero.

Curando a Fonte

As fontes primárias do dano à nossa auto-estima precisam de cura, de conserto e reprogramação. E


aqui que se faz necessária a graça restauradora. Desejo tomar isto tão prático quanto possível, portanto
permita-me tomá-lo pessoal, e falar com você como se estivéssemos numa sessão de aconselhamento.
Aqui vão algumas das perguntas que eu faria:

• Você já encontrou e encarou os pontos dolorosos do seu passado, os quais você acha ser
as principais fontes da sua baixa auto--estima? E muito importante que você tenha a coragem
não só de olhar honestamente para as pessoas e incidentes, mas também de entrar em contado com os
sentimentos que os acompanham. Pesquisas sobre o cérebro provam definitivamente que as nossas
memórias não registram apenas as imagens mentais do passado, mas também as emoções originais
experimentadas nessa ocasião. Portanto, quando você achar que descobriu as feridas, as humilhações,
as privações ou as rejeições, permita a si mesmo sentir a respectiva dor e também as suas reações a
essa dor. Você não fará isso a fim de acusar outros ou a fim de fugir da responsabilidade. Fará isto para
encarar honestamente sentimentos que pode ter sepultado há anos.

O melhor modo de fazer esse exercício é partilhar os seus sentimentos com Deus e com alguma outra
pessoa, em oração. Mas não podemos confessar a Deus o que primeiro não admitimos a nós mesmos. A
partilhação com outra pessoa provoca um nível ainda mais profundo de abertura e de honestidade,
tanto para com nós mesmos quanto para com Deus. Esse tipo de abertura pode ser doloroso, e poderão
surgir sentimentos que lhe assustarão. Mas a graça, qualquer que seja o obstáculo, nunca é ofendida,
rechaçada ou retirada. E dada gratuitamente, sem conexão alguma com nossa bondade ou maldade,
mérito ou demérito.

A maior manifestação da graça é a cruz, e a cruz significa que Deus nos viu em nossa pior situação, e
nos amou ao máximo. Assim, armado com a coragem que a graça lhe pode dar, olhe diretamente para
as piores, mais dolorosas, mais humilhantes, mais abusivas e mais devastadoras “mensagens de
rebaixamento” da sua vida. Lembre-se delas, reviva-as em suas emoções, mas não pare por aí.
Abandone-as a Deus em oração, com perdão e rendição. E duvidoso que você possa fazer isso sozinho;
portanto obtenha a ajuda de um amigo íntimo, pastor ou conselheiro.

• Ao encarar e sentir a dor, você perdoou todas as pessoas implicadas? Por mais estranho que
pareça, o ódio e o ressentimento nos mantêm presos às pessoas e às dores do passado. Somente
perdão e o amor poderão libertar-nos tanto das memórias dolorosas quanto das críticas destrutivas do
passado. As vezes a experiência da graça restauradora sobrevém de modo incomum.

Arlene lutava contra uma opinião extremamente baixa de si mesma. Embora ótima cristã, que auxiliava
em diversas áreas da igreja, ela depreciava a sua vida espiritual. Muito do seu tempo de
aconselhamento girou em tomo da mãe, uma mulher profundamente religiosa, líder em sua
denominação, porém cujos modos super-críticos e perfeccionistas tinham caído como um rio constante
sobre Arlene. A medida que as feridas e as humilhações apareciam, veio juntamente uma espessa
camada de ressentimentos, a qual ela jamais tivera de encarar. Certo dia ela estava expressando tudo
isso de modo tão realista que só pude presumir que era algo que ainda continuava em seu
relacionamento com a mãe. Então lhe disse:

— Realmente me parece que você precisa cortar o cordão umbilical que a liga à mãe, e parar de deixar
que ela lhe alimente esses juízos de valor inferiorizantes.
Arlene pareceu um tanto assustada.
— Oh, sinto muito — disse ela — acho que não fui bem clara. Minha mãe está morta há mais de cinco
anos.
Fiquei embaraçado, e murmurei um pedido de desculpas. Percebi que Arlene se fechou durante o resto
da sessão, de modo que interiormente pensei: “Seamands, hoje você estragou tudo!”
Na próxima vez que Arlene veio, me disse:
— Percebo que você sabe que sou enfermeira, mas sabe onde é que faço a maior parte do meu
trabalho?
— Não, acho que não.
Eu ainda estava esperando alguma espécie de bronca pelo fiasco da semana passada.
— Bem, passo a maior parte do tempo na sala de parto. Já assisti centenas de vezes os médicos
cortarem o cordão umbilical. Por isso, na semana passada, quando você disse que eu precisava cortar o
cordão umbilical da minha mãe, isso realmente me deixou perplexa. Enquanto eu ia para casa, a única
coisa que podia vislumbrar na mente era um cordão de 1.600 quilômetros de comprimento, que ia daqui
até o túmulo da minha mãe na Flórida! Cheguei a sonhar duas vezes com esse cordão maluco. Você
estava certo. Esta semana passei muito tempo em oração, e encontrei a graça necessária a fim de
perdoá-la e pedir que Deus me perdoasse pelo ressentimento, e por tê-la culpado todos esses anos. E
estou maravilhada: não me estou alimentando mais das avaliações miseráveis que ela fazia de mim.
Estou começando a adquirir todo um novo senso de quem eu sou como filha de Deus, e estou
começando a me alimentar das opiniões dele sobre mim. E isso está começando a ser tremendamente
bom!”

Seria impossível dar ênfase suficiente à importância do perdão nesta questão. O perdão na voz ativa —
perdoar àqueles que foram injustos conosco e nos feriram; na voz passiva — receber o perdão de Deus
(e às vezes de outros) por nossas reações erradas às injustiças deles; e na voz reflexiva — perdoarmo-
nos a nós mesmos, e recusar-nos a continuar castigando-nos por pecados passados.

A maior barreira ao recebimento da graça é um espírito não perdoador. Isso é verdade especialmente
em relação à graça restauradora necessária para curar os sentimentos de culpa, de inutilidade e de ódio
próprio, profundamente arraigados. Deus nos criou de modo tal que ressentimentos ocultos — mesmo
quando não temos consciência deles — criam uma reação de culpa que gera uma reação de auto-
acusação e de baixa auto-estima. Muitas vezes não podemos encontrar a libertação desse círculo
vicioso, porque em um nível profundo não perdoamos verdadeiramente a alguém que precisa do nosso
perdão.

Muitos são incapazes de escapar desse círculo vicioso por si mesmos, independente de quanto se
esforcem ou orem. Se você está encontrando dificuldades nessa área, abra mão do orgulho, e procure
alguém que possa ser um “paracleto” humano para você, alguém que esteja ao lado e seja um
assistente temporário do Espírito Santo.

• Você se compromete agora a uma cooperação diária com o Espírito Santo a fim de que ele
lhe dê uma nova auto-imagem cristã? A graça que cura não é simplesmente uma dádiva para uma
crise momentânea. Ela pode começar com uma luz de compreensão interna, ou com um estado
emocional bastante elevado, no qual experimentamos o amor e a graça de Deus em nível mais
profundo. Eu jamais, de forma alguma, depreciaria esses altiplanos espirituais. Entretanto, pelo fato de
as emoções terem sido erroneamente super-enfatizadas em alguns círculos cristãos, muitos pastores e
conselheiros tendem a diminuir a sua importância. Existem ocasiões em que é necessária uma
experiência profundamente emocional para tirar a pessoa da inércia, soltar a sua mente de antigas
percepções errôneas, e liberar a vontade a fim de tomar decisões novas. Tenho visto Deus agir dessa
forma em muitas vidas.

Entretanto, embora possa começar dessa maneira, ainda há o trabalho árduo da ransformaÇà0
mediante a renovação da mente. Os antigos conceitos depreciativos tipo “eu sou” são duros de quebrar.
Uma cooperação diária, momento a momento, com a atividade complementar e instantânea do Espírito
Santo é essencial. Recentemente, quando fui operado do joelho, aprendi que a cirurgia era apenas
metade da cura. Fazer fielmente os exercícios que o fisioterapeuta me prescreveu era a outra metade, e
igualmente importante. O mesmo é válido para os exercícios terapêuticos que se seguem a uma
experiência dinâmica da graça curadora.

O Dr. Maxwell Maltz, autor de PsicoCibernética, e ex-cirurgião plástico, passou a ser conselheiro porque
descobriu que se as pessoas não modificassem a imagem interior que têm de si mesmas, alterar a sua
aparência não ajudaria muito. A pesquisa científica do Dr. Maltz demonstra que são necessários cerca de
vinte e um dias de repetição interior de idéias novas a fim de efetuar mudanças permanentes na visão
que as pessoas têm de si próprias.

Creio que essa é uma confirmação da ênfase bíblica sobre o despir o velho e revestir-se do novo
(Efésios 4:22-24), e da exortação a que pensemos em coisas puras (FilipenseS 4:8).Você pode querer
dar início a um período de três semanas no qual ouvirá o Espírito Santo lembrar-lhe de quem você
realmente — o seu verdadeiro “eu sou” e o seu “estou-me tomando”. Então pense os pensamentos de
Deus acerca de si mesmo, repetindo o que ele disser. Esse exercício trará muita alegria para os céus e
para você

CAPÍTULO 11
GRAÇA E
SENTIMENTOS NEGATIVOS

Jesus, unidos pela tua graça,


E uns dos outros cativos,
Com confiança buscamos a tua face,
E sabemos que nossa oração é ouvida.
Ajuda-nos a ajudar uns aos outros, Senhor,
A cruz uns dos outros levar;
Permite que cada um seu amoroso auxílio dê,
E sinta o cuidado de seu irmão.
A pressão é um elemento-chave da vida na armadilha do desempenho. Há a pressão de tentar viver
com um ego de que não se gosta, com um Deus que parece ser difícil de amar, e com outros com quem
não conseguimos conviver. Juntando-se tudo, temos a pressão de sentir-se preso numa armadilha, na
qual espera-se que correspondamos a exigências irrealistas e impossíveis que Deus, nós mesmos e
outros colocam sobre nós. E, como o ratinho na roda giratória da sua gaiola, quanto mais nos
esforçamos, mais depressa corremos; e quanto mais depressa corremos, mais temos de dar para tentar
acompanhar a roda. Esse sentimento de ter caído numa armadilha gera fortes emoções negativas que
nos mantêm emocionalmente perturbados e espiritualmente derrotados.

Raiva e Depressão

Ainda estou para aconselhar um cristão perfeccionista e baseado no desempenho que no fundo não seja
uma pessoa irada. Isso não significa que essas pessoas estejam sempre conscientes da ira ou que a
expressem abertamente. Com freqüência elas nos impressionam com seu controle e amabilidade. Mas,
quando as conhecemos melhor, quando se abrem e partilham o seu ser interior, inevitavelmente
descobrimos um foco de ira no fundo da sua personalidade.

Contudo, a maioria dos que vêm em busca de ajuda tem consciência da ira e sabe que é um problema
importante em sua vida. Lutam com ressentimentos e às vezes até com a raiva, e o seu temperamento
explosivo aparentemente incontrolável é o principal fator na ruptura das relações pessoais no trabalho,
na igreja, e especialmente no lar. Dão a aparência de pessoas iradas, e mais iradas consigo mesmas por
ser como são. E essa atitude, obviamente, cria um círculo vicioso que aumenta a culpa, a baixa auto-
estima, o senso de serem falsas: “O que seria de mim se descobrissem o que realmente sou, quando
tenho uma explosão contra minha mulher e meus filhos?”

Descobri que essa ira não resolvida, essa raiva congelada, é a principal fonte da depressão característica
da pessoa presa ao desempenho. Não é de admirar que muitos psiquiatras seculares se voltem contra a
religião quando vêem tantos pacientes depressivos que são cristãos meticulosos e demasiadamente
exigentes consigo mesmos. Afinal, se a base da nossa correta relação com Deus for o desempenho
perfeito, então temos de ficar deprimidos e cheios de dramáticos sentimentos de desespero. Pois então
estaríamos realmente presos numa armadilha sem saída — a injustiça última — que aumentaria o nosso
já existente círculo vicioso de emoções negativas.

Graças a Deus, a base do nosso relacionamento com ele é o perfeito desempenho de Cristo por nós — a
sua vida perfeita de obediência, e a sua morte perfeita pelos nossos pecados. E a nossa fé nele, a nossa
atitude confiante de receber o dom da sua retidão, apesar de todos os pecados e falhas que vemos em
nós mesmos, que nos salva do desespero e da depressão. Pelo bem daqueles que caíram na armadilha
do desempenho, deixe-me assegurar-lhe de que esse perdão não depende de um perfeito
arrependimento, ou de uma fé perfeita, ou de uma perfeita consagração de nossa parte. George
Whitefield costumava dizer que precisamos nos arrepender inclusive do nosso arrependimento. Isso é
verdadeiro com relação a todo ingrediente que faça parte da resposta humana à graça. Mesmo a nossa
fé precisa dizer a Jesus: “Eu creio, ajuda-me na minha falta de fé” (Marcos 9:24). E a nossa entrega
precisa ser entregue, porque não é uma entrega perfeita.

Vejamos algumas maneiras práticas de como a graça restauradora pode curar a nossa raiva e
depressão. Enquanto você lê, imagine que estamos conversando.

• Encontre e enfrente as fontes primárias de sua raiva, e permita que a graça do perdão
penetre nelas. É importante que você descubra quem e o que o enche com essa raiva e ira. Não são
necessariamente situações ou pessoas do presente que ativam a raiva. Em vez disso, através delas é
possível que você esteja se servindo da fonte principal da sua ira. Pessoas tomadas pela raiva são como
um painel de controle de telefone — através dos eventos do presente ligam-se a alguma ferida do
passado, e todo o sistema se acende. Um modo de se reconhecer isso é quando a resposta irada é
desproporcional ao estímulo da situação presente. Às vezes é difícil decifrar o complexo labirinto, e
encontrar a origem verdadeira.

Para Gladys e para o seu marido foi um segundo casamento. As experiências deles eram notavelmente
semelhantes — os seus cônjuges tinham simplesmente saído com outra pessoa, e deixado as crianças
com eles. Tinham ambos vivido como pais solteiros durante vários anos, encontraram-se na igreja,
casaram-se, e agora sentiam que Deus lhes havia dado uma maravilhosa ,segunda chance de formar
uma família cristã. Eram muito felizes juntos e as crianças se davam extraordinariamente bem. Havia
apenas um grande problema. Gladys não conseguia entender por que Mike, seu enteado, sempre
parecia irritá-la. Ele não era uma criança problemática, e era afetuoso e obediente. Mas Gladys tinha um
estranho sentimento de hostilidade para com ele, o qual a tomava ríspida e exigente demais.
Naturalmente, essa situação estava começando a prejudicar o casamento e a toda a família. Ela e o
marido haviam conversado sobre o assunto abertamente, e ela havia gasto muitas horas em lágrimas e
oração a esse respeito. Ela veio para aconselhamento, e oramos acerca do problema várias vezes, mas 6
mistério continuava.

Certo dia conversávamos sobre como o seu primeiro marido, Ted, um alcoólatra, a tinha maltratado. No
meio da conversa, ela ficou em silêncio. Percebendo que o grande Conselheiro tinha assumido o
controle, eu também me mantive quieto, e orava silenciosamente. Após algum tempo ela começou a
expressar-se, com longas pausas intercaladas:

— Eu acho que sei qual é o meu problema... Nunca percebi isso antes... Vejo um grande número das
características de Ted em Mike.. . Puxa vida, ele inclusive se parece um pouco com ele.
tem o mesmo tipo físico... e os modos... Não posso acreditar... Mike faz-me lembrar de Ted e essa
lembrança ativa bem no meu íntimo muitas mágoas enterradas... e só agora percebi que não perdoei a
Ted por completo pelo que ele fez comigo.

Gladys começou a chorar suavemente:

— Sabe, tenho extravasado os meus sentimentos no Mike, e ele é completamente inocente. Não é de
admirar que a situação nos tivesse deixado tão confusos.

Agora sabíamos sobre o que devíamos orar. Foi lindo ver a graça da cruz, que perdoa e cura, purificar
tanto as origens do passado quanto o estímulo presente da raiva de Gladys. Não passou muito tempo e
estavam desfrutando um novo nível de relação amorosa na família.

Algumas boas perguntas que fazemos são: A respeito de que exatamente estou com tanta raiva? Contra
quem sinto raiva? Por que isso (essa pessoa, situação) me faz ficar com tanta raiva? E essencial que
enfrentemos as raízes primárias do problema, e deixemos que a graça as cure.

Hebreus 12:15 contém a chave da questão em forma de advertência: “Atentando diligentemente por
que ninguém seja faltoso, separando-se da graça de Deus; nem haja alguma raiz de amargura que,
brotando, vos perturbe e, por meio dela, muitos sejam contaminados.” Tenho visto essa raiz de
amargura crescer na vida de centenas de cristãos. Pensavam estar fazendo a coisa certa, não dando
importância ao passado, e com isso concederam um tipo de perdão geral “a todos os que me feriram
alguma vez”. E como um manto, esse perdão cobriu mas não resolveu as mágoas e os rancores. Uma
raiz de amargura estava causando problemas, e deturpando uma série de relacionamentos. Quando a
graça de Deus foi aplicada, como um machado à raiz da árvore (Mateus 3:10), tanto os problemas reais
como a deturpação difusa foram tratados.

• Enfrente o seu sentimento explosivo de injustiça, e permita que a graça da aceitação o


desative. O cristão perfeccionista e preso na armadilha do desempenho, normalmente tem uma
sensibilidade exageradamente alta a qualquer coisa injusta ou desonesta. E como uma bomba-relógio no
seu interior, à espera de explodir ao mais leve contato com as injustiças da vida. Essas pessoas
freqüentemente defendem a sua sensibilidade irada, tentando transformá-la em virtude. Têm uma
necessidade insaciável de corrigir as coisas, de assumir várias causas, e lutar pelos seus direitos.
Normalmente existe uma ferida não curada em seu passado, uma ocasião em que foram feridas ou
humilhadas ou tratadas injustamente, a qual alimenta esse senso intensificado de injustiça.
Freqüentemente essas injustiças estendem até os primórdios dos anos de formação de nossa vida.

Com freqüência, a raiva cultivada em relação à injustiça se volta para cima e é dirigida contra Deus; é
acompanhada de um ressentimento oculto contra ele. Tais pessoas freqüentemente começam dizendo
que estão iradas com a vida. Mas quando examinam cuidadosamente a sua afirmativa, percebem que a
ira é, na realidade, contra Deus.

Certa vez, um dedicado cristão me disse: “Tive de enfrentar o penoso fato de que por muitos anos
tenho sentido raiva de Deus. Bem no íntimo eu o tenho culpado por muitas coisas em minha vida que eu
achava ser injustas. Eu amava a Deus, realmente o amava, e o servia, mas não gostava dele!” Muito
dessa raiva tinha que ver com o seu fracasso em aceitar o seu tipo de personalidade com seus próprios
dons e talentos. Ele havia desperdiçado vários anos dizendo “se tão-somente”, fazendo o jogo da
comparação, e irado com Deus por não ser como certo companheiro de trabalho na igreja. Quando
enfrentou e abandonou o seu ressentimento contra Deus, aprendeu a não apenas aceitar os dons da
personalidade que Deus lhe tinha dado, mas também a apreciá-los. No espaço de um ano, Deus
começou a usá-lo de uma nova maneira. As pessoas comentavam sobre a expressão diferente em seu
rosto — menos crítica, mais amável e atenciosa. Aos poucos ele se tornou uma testemunha mais
atraente de Cristo.

Mas esse processo requereu considerável batalha, pois a essa altura ele agia como todos os cristãos
irados e deprimidos: Sentia fortemente que não conseguia orar — não devia orar — era mau demais.
Parecia que Deus estava bravo e desapontado com ele. Perdeu a percepção de Deus como amoroso,
pessoal, paterno, amigável, dadivoso e gracioso. De dentro de seu inferno emocional, percebia a Deus
não como o doador incondicional de amor, mas como alguém que negocia antes de abençoar. Desse
modo, enquanto continuava se esforçando — talvez ainda com mais afinco, parava de orar no sentido
mais profundo da palavra. Sentia não poder partilhar o seu verdadeiro eu com Deus, não quando se tem
tanta ansiedade, conflito e depressão. Se chega a orar, as suas orações são mecânicas e irreais.

Se você está preso nesse tipo de armadilha, tenho boas novas para você. A sua esperança está em olhar
para a cruz. Lá o Deus encarnado voluntariamente tomou sobre si todos os pecados, o sofrimento sem
sentido, a dor, as injustiças imerecidas do mundo. Lá ele suportou tudo o que o mundo inteiro —
inclusive você e eu — furiosamente pôde lançar sobre ele. Portanto, ele não se surpreende com nada
que agora lhe pudermos expressar sobre a nossa dor e sofrimento emocional.

Repetidas vezes tenho visto o milagre da graça que cura penetrar e diluir a ira, a raiva, e a depressão,
quando as pessoas voltam a falar com Deus em oração. Muitas vezes essas orações começam assim:
“Senhor, já faz muito tempo que não consigo falar contigo. Eu achava que não podia, com tudo o que
sentia a teu respeito.

Após a barreira do som ter sido quebrada e a comunicação ter sido restabelecida, a graça restauradora
começa a penetrar essas emoções negativas. Por fim, essas pessoas experimentam um influxo do amor
de Deus num nível mais profundo que nunca. Freqüentemente, a cura acontece com a ajuda de outros
seres humanos que nos compreendem e nos aceitam como somos — amigos, pastores, conselheiros, ou
um grupo pequeno.

Mas a parte mais maravilhosa disso tudo é que o próprio Deus trabalha amorosamente conosco a fim de
curar as nossas feridas, diminuir a nossa sensibilidade exagerada à injustiça, e transformar-nos de
lutadores em amantes, de defensores em reconciliadores. A sua graça restauradora remove os
obstáculos que durante tanto tempo nos privaram de experimentar a sua graça santificadora. Não
precisamos hesitar em expressar, através da oração, a nossa ira e depressão, mesmo quando dirigidas
contra ele. Ele já tinha conhecimento delas muito tempo antes de as confessarmos, e continua a nos
amar. Na verdade, é exatamente a sua graça trabalhando fielmente em nós que agora nos capacita a
admitir esses sentimentos e a renunciar a eles.

Temores e Compulsões

Algumas pessoas sofrem de temores estranhos e irracionais, ataques de pânico, pensamentos ou idéias
obsessivas, e compulsões incontroláveis. As pessoas atormentadas por esses sintomas geralmente são
tensas, nervosas, hipersensíveis, e possuem tendências para o alcoolismo, depressão e colapso nervoso.
Se você se identifica com essa descrição, a minha primeira palavra de graça é preveni-lo contra achar
que esses problemas sempre têm uma causa espiritual. Muitos estudos recentes revelam que às vezes
há causas neurológicas ou químicas por trás desses sintomas. E estranho que nós, cristãos evangélicos,
não hesitamos em tomar remédio contra diabetes, problemas da tireóide, ou pressão alta. Mas quando
se trata de depressão, ataques de pânico e coisas semelhantes, achamos que precisamos solucioná-los
somente através de meios espirituais. Na verdade, essa atitude por si mesma amplia os nossos ideais
irrealistas e os nossos alvos inatingíveis: “Se eu fosse realmente espiritual, então eu seria capaz de
resolver este problema.”

Antes de fazer esses ataques a si mesmo, verifique com um médico sobre causas médicas que possam
necessitar de tratamento ou medicação. E não permita que seus amigos cristãos super-espirituais lhe
ponham uma carga de culpa por você utilizar esse tipo de ajuda. Hoje é difícil imaginar, mas quando a
anestesia foi descoberta, muitos pastores trovejaram contra ela. Hoje, quando temos de ser operados,
damos graças a Deus por ela. Lembre-se: Deus criou todos os elementos do Universo. Se a medicação o
ajuda a viver uma vida cristã melhor, então receba-a também como um dom de sua graça. E claro, essa
atitude pode ser levada ao extremo; a resposta ao mau uso não é deixar de usar, mas usar de modo
correto.

A química desequilibrada, a teologia inadequada, e a graça insuficiente podem trabalhar conjuntamente


para exacerbar a armadilha do desempenho e do perfeccionismo. Uma alimenta-se da outra, tomando
difícil sabermos onde uma começa e a outra acaba. Pois sabemos que os padrões mentais e a
perspectiva espiritual influenciam a química do corpo. Não existe remédio mais poderoso do que a graça
e o amor. Uma experiência, a nível instintivo, de ser incondicionalmente aceito, perdoado e amado — a
graça de Deus — pode produzir milagres incríveis de transformação.

Paula, uma senhora de trinta e poucos anos, esposa de pastor, veio procurar ajuda com todo o conjunto
de problemas que temos descrito. Ela sofria de repetidos ataques de ansiedade desde os dez anos de
idade. Tinha uma longa história de sobrecarga de expectativas cristãs que achava que devia
desempenhar à altura. Os ataques de pânico, que duravam algumas horas ou vários dias, a
aterrorizavam, e sempre a deixavam fisicamente exausta, e profundamente deprimida. Entre seus
familiares havia casos de alcoolismo, colapso emocional e mortes traumáticas. Normalmente ela podia
controlar os seus temores, mas quando irrompia um ataque de pânico, era dominada pelo pensamento:
“Será que acontecerá comigo?” Nessas épocas ela era incapaz de dormir; então se sentia terrivelmente
culpada por não estar confiando em Deus. Era uma situação sem saída.

Trabalhamos juntos durante várias horas sobre a terrível pressão que o seu eu super-espiritual exercia
sobre ela. Ela leu e releu livros sobre a graça, e passamos tempo em oração. Com freqüência, ela dizia:
“A graça é tão difícil. E tão difícil deixar que Deus me ame. Sou cristã desde os doze anos, mas nunca
realmente cri que Deus amasse a mim, ao meu eu verdadeiro.” Juntos pesquisamos as raízes do
problema: não só um lar instável, desafeiçoado e carente de graça, mas também um pastor que era um
dos servos de Deus mais estritos e estóicos. Ela compartilhou inúmeras injustiças e sofrimentos, e
derramou muitas lágrimas de ira. Estas eram sempre seguidas de: “Tenho tanta vergonha de que você
me veja desse jeito.” Por fim, removidos os obstáculos, a graça alcançou a verdadeira Paula. E assim
que ela descreveu a si própria, quando lhe pedi que escrevesse o seu testemunho para mim:

Eu me lembro de que não tinha muita vontade de ir à sessão do Dr. Seamands naquela manhã. Eu
estava muito cansada. Os dois filhos acabavam de contrair varíola, e eu tinha dormido muito pouco nas
últimas noites. Mas talvez seja assim mesmo: Deus realmente pode operar quando estamos fracos,
cansados e completamente dependentes dele. Após partilhar com o Dr. Seamands, comecei a descer as
escadas, embora antes tivesse sempre tomado o elevador. Foi nessa caminhada escada abaixo que
Deus começou a falar comigo de um modo especial.

“Obrigada, Senhor, por teres rompido as barreiras”, eram as palavras que surgiram em meu coração.
Aos poucos começaram a brotar lágrimas, e quando cheguei ao carro a barragem se rompeu. Fiquei
sentada chorando, enquanto deixava Deus revelar-se a mim, enquanto permitia que ele ministrasse a
mim... Sim, o seu amor finalmente me estava atingindo. Eu estava experimentando o seu amor como
nunca antes.: Em meus pensamentos eu via Jesus com as crianças no colo, e eu, como uma criança,
estava andando em sua direção.

“Quero subir no seu colo, e ser amada por você” era o meu pensamento. Eu estava me achegando a
ele, e os discípulos me barravam dizendo: Ele está muito ocupado, muito cansado, vá-se embora. Mas
Jesus estendeu os braços para mim.. . Ousarei aceitar o seu abraço? . Oh! sim, deixarei que ele me ame
e me liberte.

Nada mais importa, exceto o amor de Deus. Ele realmente me ama! Seu amor penetra e permeia o meu
próprio ser. Obrigada, Senhor! Meu coração está repleto dessa alegria e paz. Quão maravilhoso é sentir
o teu amor. “Liberta-me, ó Senhor, da minha prisão feita e imposta por mim mesma, construída por
meus próprios conceitos errôneos acerca de ti.

Agora, muitas vezes me vem a idéia de que, assim como sempre amo meu próprio filho, mesmo quando
ele é mau.. . eu digo para ele: “Mamãe te ama sempre; você não tem de ser bonzinho para que mamãe
ame você.” E é isso o que ouço Deus dizer a mim: “Paula, você não tem de ser boazinha para que eu a
ame.”. Obrigada, Senhor, por finalmente chegar até a mim.

Foi assim que a graça chegou a Paula. Foi o começo de uma nova liberdade e de uma nova saúde física
e espiritual. Ela continua a ministrar a outros com um coração agradecido e repleto de graça. Não se
engane pela experiência comovente da crise que ela descreveu. Essa experiência só foi possível
mediante um longo processo que removeu os seus obstáculos interiores à graça — alguns dos quais se
encontravam em seus anos de infância. Que coisa tema e linda foi o Espírito capacitá-la a participar da
história que os Evangelhos contam de Jesus com as crianças. Essa participação trouxe a cura necessária
às feridas da privação e da rejeição, de modo que ela pudesse aceitar a graça de Deus. Creio
firmemente que existe uma experiência da graça restauradora feita sob encomenda para você também,
se, como Paula, permitir que Deus lhe ame exatamente como você é.

Graça Grupal

Deixe-me tratar agora de um dos mais importantes aspectos, embora terrivelmente negligenciado, da
graça que cura. Muitos dos piores obstáculos à graça de Deus provêm da desgraça de relacionamentos
pessoais não saudáveis e destrutivos de nosso passado. Por causa desse relacionamento, muitos dos
obstáculos serão removidos principalmente através de relacionamentos pessoais saudáveis e
construtivos no presente. E aí que a graça grupal entra em cena.

No coração da grande passagem sobre a cura em Tiago 5:13-20 encontram-se estas palavras:
“Confessai, pois, os vossos pecados uns aos outros, e orai uns pelos outros, para serdes curados” (v.
16). Alguém comentou que muitos cristãos e grupos de igreja inverteram esse conselho: confessam os
pecados uns pelos outros e então oram uns aos outros! Na igreja primitiva, a koinonia — uma
comunhão doadora e partilhadora — ia lado a lado com a doutrina, a oração, o culto e a Ceia do Senhor
(Atos 2:42). Uma vez que não possuíam templos, os crentes se encontravam principalmente em
pequenos grupos nas casas e em outros lugares adequados. A partilhação e a confissão, bastante
abertas, eram feitas ao grupo, que então apoiava a pessoa em suas lutas, com amor e oração. Foi só lá
pelo terceiro século que teve início a prática da confissão particular, a qual acabou resultando no “sigilo
do confessionário”, transformando-a em assunto estritamente privado. Dessa forma, com poucas e raras
exceções, a igreja perdeu o poder de cura da graça grupal.

Esse poder foi redescoberto em grande escala durante o grande Reavivamento Evangélico na Grã-
Bretanha, com os Wesleys. A Igreja Metodista não começou como igreja, mas como associações de
pessoas com idéias afins, ou “sociedades”. Estas eram pequenos grupos de cinco a dez pessoas,
liderados por leigos convertidos, que se reuniam semanalmente em “encontros de classe” a fim de
estudar as Escrituras, compartilhar e orar juntos. Os historiadores da igreja dão todo o crédito do
reavivamento à pregação de George Whitefield e John Wesley, ungida pelo Espírito, e aos inspirativos
hinos de Charles Wesley. Mas todos concordam em que foi o incrível poder desses pequenos grupos que
produziu tais transformações duradouras e, em última instância, “disseminou a santidade bíblica e
reformou a nação”.

Infelizmente, a maioria das igrejas hoje em dia tem desprezado esse enorme potencial de modificar
vidas, e organizações como os Alcoólicos Anônimos o assumiram. As raízes dos Alcoólicos Anônimos
podem ser traçadas através do Movimento de Oxford às primeiras sociedades metodistas. A sociedade
dos Alcoólicos Anônimos foi fundada pelo famoso Bili W., um alcoólatra cuja vida foi modificada pela
partilhação e pela oração dos encontros de grupo numa igreja anglicana. Embora algumas seções dos
Alcoólicos Anônimos tenham-se afastado das suas raízes cristãs, ainda usam o princípio grupal com
grande eficácia.

Já descrevemos uma das mais tristes e custosas conseqüências de uma vida orientada pelas realizações:
um sentimento de ser falso, hipócrita e alienado do nosso verdadeiro eu. Isso acontece porque esses
cristãos apresentam somente o seu superego às pessoas. Apresentam um eu público aos outros porque
é este o conceito que têm de si mesmos, no qual desejam que as pessoas acreditem. Na verdade,
existem egos públicos diferentes, apresentados para diferentes pessoas. Dessa forma, tomam-se tão
estranhos ao seu ego íntimo que não mais sabem quem e o que realmente são. E essa uma das
principais fontes da auto-depreciação e da ansiedade interior. Essa atitude mantém-nos sentindo como
hipócritas, e esgota o seu poder de viver e de testemunhar.

Pessoas que vivem deste modo literalmente venderam a alma, o verdadeiro eu, a fim de conquistar
aprovação, afeto ou elogio de outros. Quanto mais tempo estão na roda-viva do desempenho, mais
temerosos e reservados tendem a se tomar. O único modo de sair da roda destrutiva é permitir que
outros conheçam o seu verdadeiro eu. Todos nós nos lembramos da famosa máxima de Sócrates:
“Conhece a ti mesmo”. Creio que a verdade pode ser mais bem expressada assim: “Deixa-te ser
conhecido, e conhecerás a ti mesmo.”

Falamos muito sobre sermos honestos com nós mesmos e com Deus. E tentamos sinceramente, às
vezes desesperadamente, ser honestos em nossos momentos de leitura bíblica e oração. Mas o tipo de
honestidade e autoconhecimento que produzirá mudanças permanentes em nossa vida quase sempre
necessita de outra pessoa. E quando desvendamos o nosso verdadeiro e íntimo eu a alguém outro que
de fato chegamos a conhecer completamente a nós mesmos. Bem no íntimo podemos perceber
levemente a verdade sobre o nosso verdadeiro eu, mas podemos continuar a negá-lo ou a encobri-lo
com o superego — inclusive em oração. Entretanto, uma vez que realmente coloquemos a verdade em
palavras, e partilhemos com outra pessoa, toma-se cada vez mais difícil continuar enganando a nós
mesmos.

Sim, é a verdade que nos liberta — a verdade sobre Deus e sobre nós mesmos, que só Cristo nos traz
(João 8:32-36). E a parte principal dessa verdade sobre nós mesmos é comunicada quando, sacrificando
o nosso falso superego, permitimos que outros conheçam a verdade a nosso respeito. E aqui que a vida
corporal da igreja se toma o canal da graça. Ela nos cerca com a atmosfera de confiança da nossa nova
família de Deus, a qual nos dá a coragem de ser verdadeiramente conhecidos por nossos irmãos em
Cristo. Ser não somente conhecidos, mas também amados! O fato de sermos conhecidos e amados
como somos nos liberta de ter de ser alguém e algo que não somos. Dessa forma descobrimos o poder
que a graça grupal tem de transformar vidas.

Cristãos perfeccionistas e cristãos cuja mentalidade é baseada no desempenho necessitam de modo


especial dessa comunhão de amor e de aceitação, onde possam desvendar o seu verdadeiro ego sem
medo de desaprovação e condenação. Tentar libertar-Se da armadilha do desempenho somente pelo
esforço próprio é tão impossível quanto sair da areia movediça sem uma mão que ajude. Tiago 5:16
deixa subentendido que há problemas físicos, emocionais e espirituais que somente podem ser curados
quando partilhados com outros cristãos, e por estes levados em oração.

Esse grupo de oração pode começar simplesmente com uma outra pessoa — um amigo digno de
confiança, um professor de Escola Dominical, um pastor ou um conselheiro. E há coisas que só devem
ser partilhadas nesse ambiente confidencial. Entretanto, muitos de nós precisam partilhar e orar com um
pequeno grupo tão logo quanto possível. Há um poder maravilhoso e transformador de vidas nesse tipo
de graça grupal. Se você não conseguir encontrar um grupo desses, procure pelo menos outra pessoa,
talvez através dos seus contatos numa classe de Escola Dominical, e inicie um grupo, abrindo a sua vida
a essa pessoa. Então deixe que o grupo se amplie, mediante a inclusão de outra pessoa e mais outra.
Normalmente você poderá encontrar alguém que está procurando esse tipo de comunhão. Essa abertura
transparente, e oração em comum acordo (Mateus 18:18-20) dá início a uma espécie de fissão nuclear
espiritual, a qual gera grande poder. Ela explodirá e desintegrará as barreiras à graça em sua vida, e
permitirá que Deus o liberte para viver e amar no Espírito.
Graça Recicladora

O propósito último da graça é preparar-nos para a comunhão com Deus durante toda a eternidade, de
modo que verdadeiramente possamos adorá-lo, e literalmente “desfrutar dele para sempre”. Mas qual é
o propósito último da graça que cura, no tocante a nossa vida aqui na terra? E mais do que salvação,
santificação ou mesmo restauração à inteireza. O seu propósito último é tomar tudo o que á aconteceu
em nossa vida e transformá-lo nos propósitos de Deus para o bem. Tudo? Alguns estarão pensando em
coisas inefávelmente más e dolorosas que você, ou alguém mais fez com intenção maligna. Coisas que
de alguma forma o prejudicaram ou mutilaram, física, mental, emocional, ou espiritualmente. Algumas
coisas erradas que só poderiam ser chamadas de lixo. Será que Deus é capaz de transformar mesmo
essas coisas para o bem do homem e para a sua glória?

Com toda a força dentro em mim quero gritar um irrestrito “SIM”! Se nós, seres humanos, somos
capazes de criar plantas que podem reciclar o lixo, transformando-o em combustível, certamente Deus
pode fazer o mesmo. A parte mais gratificante do meu ministério tem sido observar Deus operar essa
transformação na vida daqueles que experimentaram a sua graça restauradora. Essas pessoas são
literalmente os curadores feridos e os ajudadores curados. Deus é capaz de tomar as suas mutilações e
transformá-las em bênçãos.

Em minha mente vejo um autêntico desfile de pessoas, literalmente uma “nuvem de testemunhas”, que
experimentaram todo o tipo de pecado, mal, sofrimento, desgraça e problemas emocionais que se possa
imaginar. Mas todas experimentaram a graça restauradora de Deus em nível profundo. Agora estão
ministrando a outras pessoas feridas, ajudando-as a sair das mesmas situações em que mais foram
atingidas.

Lembro-me de um grande número de cristãos abatidos, com graus variados de perfeccionismo;


legalistas, críticos, julgadores, aprisionados por preocupações e sentimentos de inutilidade, crendo em
conceitos errôneos acerca de Deus, e impelidos a buscar a aprovação de Deus e dos outros. Muitos
vieram buscar ajuda quando o seu sistema fortemente entrelaçado começou a se estraçalhar. Alguns
vieram durante um colapso emocional e espiritual ou logo depois dele. Outros tiveram de ser
hospitalizados sob cuidados psiquiátricos.

Não, não houve curas rápidas; com freqüência foi uma luta longa e árdua contra padrões bem
entrincheirados de uma vida baseada no desempenho. Mas por fim a graça rompeu as barreiras e se
tornaram crentes tranqüilos em vez de realizadores irredutíveis. Eu os comparo a pessoas que se
debatiam na água porque se sentiam como se estivessem afogando. E então, finalmente, foram salvos
quando começaram a crer e a vivenciar a graça — pararam com seus esforços inúteis e confiaram que a
água os sustentaria. Agora são ótimos nadadores e têm um ministério especial para com pessoas
capturadas na armadilha do desempenho. Pelo fato de entenderem e saberem o que é sofrer com suas
lutas, Deus os está utilizando para trazer liberdade aos cativos.

Então penso em todos os que foram vítimas de abuso sexual, incluindo o que talvez seja o mais
destrutivo de todos, o incesto. Em outro livro meu partilhei o testemunho de uma dessas vítimas, a sua
cura notável, e como Deus permitiu que ela levasse o pai moribundo a Cristo. Deus tem usado essa
mulher num impressionante ministério entre vitimas de incesto.

Enfatizo tudo isso porque simplesmente não há número suficiente de conselheiros profissionalmente
treinados para trabalhar com o número cada vez maior de pessoas feridas e magoadas. Deus deseja
levantar um grande exército de ajudadores curados, a quem possa usar como seus “assistentes
temporários do Espírito Santo”. E esse o propósito último da graça curadora em sua vida: transformá-lo
em um canal da graça que cura, para a vida de outra pessoa. Deixe-me partilhar com você uma carta de
um rapaz que Deus está usando dessa forma.

Quero lembrar-lhe da primeira linha do meu artigo no jornal, de um ano atrás. Isso foi cerca de uma
semana antes de você me levar ao aeroporto a fim de me mandar para casa: “Estou no ponto mais
baixo de minha vida. Sinto-me um fracasso total.”
Acho difícil crer que Deus pôde me modificar tão drasticamente em um ano. Nesta época, no ano
passado, eu estava repleto de ódio por mim mesmo, desesperado e sem esperanças. Hoje posso dizer
honestamente que gosto de mim mesmo; o futuro nunca pareceu mais radiante. A minha vida está a
ponto de transbordar de paz e alegria. A graça de Deus é o meu lema. Ele preenche qualquer coisa que
esteja faltando em mim com a sua graça. Ele é um Deus fiel! Eu sei que esta é uma condição
permanente para mim. Agora já faz seis meses que estou assim.

Esta tarde orei com um jovem que recebeu a Cristo em seu coração. Hoje à noite contei as minhas
andanças com o Senhor (depressão, pecados, fracassos e tudo o mais) para uma moça, para ajudá-la a
fortalecer a sua recém-encontrada fé em Jesus. Ambos nos entusiasmamos. Deus é um Deus tão fiel.
Estou-me aquecendo em sua graça!

CAPÍTULO 12
PANORAMA DA GRAÇA

Que devo fazer para a meu Deus amar,


Para o meu amado Deus louvar!
O comprimento, a largura, a altura provar,
E a profundidade da soberana graça.
A tua soberana graça a tudo se estende,
Imensa e inconfinável;
De séculos em séculos jamais termina,
Alcança toda a humanidade.
Por todo o mundo a sua amplidão é conhecida,
Larga como o infinito,
Tão larga que jamais deixará de alguém alcançar;
Ou teria passado por mim.

Restringir a graça de Deus a uma graça salvadora ou santificadora seria não entender a natureza da
abrangência global da ação do amor divino. Seria como olhar para a beleza espetacular do monte
Matterhom, e pensar que viu os Alpes; ou mostrar às pessoas uma foto do monte Everest, e dizer-lhes
que é o Himalaia. Esses dois picos são de beleza e altura excepcionais, mas estão rodeados por uma
impressionante cadeia de montanhas, que serve para ressaltar a sua grandeza.

E é isso o que acontece com a graça de Deus. Certamente, as experiências de “pico de montanha”
existem, mas a graça inclui uma ampla diversidade de “modos misteriosos” através dos quais Deus
trabalha “para operar as suas maravilhas”. Examinemos alguns dos níveis da graça que Deus nos
propicia.

Graça Geral

Muitos evangélicos sinceros nos dias de hoje estão ficando apavorados. Desejam ser verdadeiramente
bíblicos, e evitar todas as tentativas de diluir ou corromper a fé cristã. Infelizmente, caíram no extremo
oposto, e se esqueceram de um ensino muito importante das próprias Escrituras, de que “toda boa
dádiva e todo dom perfeito é lá do alto, descendo do Pai” (Tiago 1:17). Os maiores pensadores e
mestres cristãos, desde os primitivos pais da Igreja até Agostinho, Lutero, Calvino e Wesley, ensinaram
que tudo o que é verdadeiro, bom, belo e útil neste mundo é, na verdade, dom de Deus, independente
da sua procedência, ou de como tenha chegado aqui. Usaram muitos termos diferentes para descrever
essa idéia, mas todos a ligaram à graça e à compaixão que Deus tem pelo mundo todo.

No nível mais simples estão os dons cotidianos, que todos nós tomamos como coisas naturais, os quais
preservam a vida nesta terra. “Vosso Pai celeste”, disse Jesus, “faz nascer o seu sol sobre maus e bons,
e vir chuva sobre justos e injustos” (Mateus 5:45). “Benigno e misericordioso é o Senhor, tardio em irar-
se, e de grande demência. O Senhor é bom para todos, e as suas temas misericórdias permeiam todas
as suas obras” (Salmo 145:8-9).
Em um nível mais elevado alguns fatores básicos da natureza humana, como consciência, razão e
capacidade de pensar e de descobrir a verdade são dons de Deus. Paulo usa essa idéia ao afirmar que
todos são responsáveis perante Deus (Romanos 1:19- 20; 2: 12-15). E claro, essa verdade descoberta
não se encontra no mesmo nível que a verdade revelada de Deus. Ela não pode nos salvar, mas é
igualmente verdadeira, e proveio de Deus.

Recebo muitas cartas e telefonemas de cristãos sinceros que dizem algo mais ou menos assim:
“Obrigado pelos seus livros; eles me ajudaram muito. Mas não compreendo; parece que você crê na
psicologia.” Eu sempre respondo: “E claro que sim, e creio também na sociologia, na criminologia, na
urologia, na radiologia, nas ciências políticas, na matemática, na informática, na aerodinâmica, e em
muitas outras fontes de conhecimento, porque creio que Deus é a fonte de toda a verdade.” Esse é
apenas o modo pelo qual tento fazê-los apreciar todos os dons graciosos de Deus, mesmo aqueles que
possam nos ter chegado através de canais incomuns.

O grande teólogo e reformador João Calvino escreveu muito acerca do mérito da cultura “terrestre” do
homem, a qual inclui toda a “política civil, a economia doméstica, todas as artes mecânicas, e as
ciências liberais”. Ele até se referiu a escritores, filósofos e poetas pagãos, dizendo:
Se cremos que o Espírito de Deus é a única fonte da verdade, não devemos jamais rejeitar nem
menosprezar a verdade em si, onde quer que apareça, a não ser que queiramos insultar o Espírito de
Deus... Toda a verdade é de Deus, e conseqüentemente, se homens ímpios disseram qualquer coisa que
seja verdadeira e justa, não devemos rejeitá-la, pois veio de Deus.

O que Calvino chamou de “graça comum”, John Wesley incluiu dentro da “graça previamente”,
reconhecendo a Deus como o autor de toda a sabedoria e entendimento da humanidade. Mas todos
eles, na verdade, remontam a Agostinho, que criou a expressão:

“despojar os egípcios”. Com essa expressão, ele queria dizer que nós, cristãos, temos o direito de
receber a verdade onde e como Deus a dê para nós.

O exemplo mais impressionante disso está na própria Bíblia. Pregando em Atenas, Paulo citou filósofos e
poetas não cristãos. Quantas vezes já ouvimos alguém se referir às belas palavras das Escrituras: “Pois
nele vivemos, e nos movemos e existimos” (At. 17:28). Não percebemos que Paulo estava citando um
filósofo pagão da sua época!

Por que enfatizamos o conceito primário e generalizado da graça? Para que estejamos abertos a fim de
permitir que Deus fale conosco de qualquer modo que ele escolher. Não precisamos ter medo de nada
útil que venha através desses canais. O fato de Deus nos ter dado a revelação especial de si próprio em
sua Palavra, podemos testar tudo pelas Escrituras. Não significa que necessariamente encontraremos
tudo na Bíblia, com as palavras que usamos hoje. Antes, a nossa preocupação deve ser se uma idéia
está ou não de acordo com os princípios bíblicos. Poderemos receber com gratidão a Deus tudo o que
satisfaça a esse teste.

Muitos me perguntam: “Onde na Bíblia fala sobre a cura interior, ou sobre a cura de recordações?”
Geralmente respondo: “Está no mesmo capítulo que diz que a minha filha sofreu uma operação de
apendicite de emergência, a qual salvou a sua vida!”

.Sim, agradecemos cada nova verdade, compreensão, invenção ou descoberta que nos vêm de campos
como a medicina, a psicologia, a sociologia e qualquer outro ramo do conhecimento humano. E claro
que há pessoas más que podem usar essas verdades para fins pecaminosos. O mesmo avião que
carrega missionários que vão levar o evangelho ao mundo, pode ser usado para lançar bombas, e matar
essas pessoas. A resposta ao mau uso não é o desuso. Como cristãos, Deus requer que usemos todos
os dons que ele nos deu, para a sua glória e para o bem dos homens.

Graça Restritiva

Se Deus tivesse abandonado a criação e suas criaturas após a Queda, permitindo às conseqüências do
pecado exercerem efeito total, a raça humana jamais teria sobrevivido. Seu amor e compaixão são
demonstrados através de muitas formas do que tem sido chamado de graça restritiva.
Embora o pecado tenha prejudicado muito o nosso poder de razão, Deus não permitiu que ele fosse
destruído. Assim, mesmo seres humanos não salvos e não regenerados possuem esse maravilhoso dom
de Deus — uma mente capaz de raciocinar, pensar, lembrar, imaginar, descobrir e inventar. Muito acima
e além de todas as outras criaturas, nós, os seres humanos, podemos entender a relação entre causa e
efeito. Não, não podemos pelo raciocínio encontrar a Deus, nem efetuar a nossa própria salvação. Não
temos nem sequer o poder de viver à altura do melhor que podemos pensar. Mas Deus, operando
através do dom da razão, ajuda a manter o pecado sob controle.

A Bíblia sugere que os governos humanos, que criam e impõem leis, são agentes de Deus que
restringem o poder do mal no mundo. Paulo afirma isso claramente em Romanos 13:1-7, e destaca que
a autoridade humana é “ministro de Deus para teu bem. Entretanto, se fizeres o mal, teme... pois é
ministro de Deus, vingador, para castigar o que pratica o mal” (v. 4). Pedro escreve de modo similar em
sua primeira epístola (2:13-14). E preciso lembrar que ambos estão escrevendo acerca de um sistema
que muitos considerariam cruel e às vezes maligno: o Império Romano. Mas eles mesmo assim o
consideram “um agente de Deus” para o bem. EU tinha dúvidas sobre isso até que passei por uma
experiência missionária bastante incomum.

A Índia tornou-se uma nação independente em 1947. Todos os estados nativos uniram-se ao novo
governo, com a exceção do estado de Hyderabad, onde nós estávamos. O país tentou resolver a
questão por todos os meios pacíficos e medidas diplomáticas possíveis, porém sem sucesso. Finalmente,
em 1948, o Governo enviou o exército para I-lyderabad e assumiu o controle pela força. Mas a tomada
foi um pouco bem-sucedida demais, e capturaram a nossa cidade um dia antes do programado. Então o
exército acampou-se fora da cidade, e ficou esperando que a nova equipe da administração civil
chegasse. Contudo, essa equipe só chegou no dia seguinte.

Portanto, vivemos vinte e quatro horas numa cidade de 35.000 habitantes sem governo algum. Aquela
noite as lojas e as casas foram saqueadas e queimadas. Naqueles dias os alimentos eram racionados, e
o armazém central, onde estavam guardados os cereais, foi saqueado. Vi a natureza humana sem a
restrição imposta pela lei e pela ordem, e é algo que espero não ver nunca mais. Aprendi que qualquer
tipo de governo, mesmo que ruim, é melhor do que nenhum governo. Não importa o país ou a cultura,
pois as mesmas coisas aconteceram durante as terríveis revoltas dos anos 60, em Detroit, em Chicago e
em Los Angeles. Agora entendo o significado daquelas passagens bíblicas, e compreendo quão
importante é a graça restritiva de Deus. Será que alguma vez já paramos para agradecer a Deus a sua
graça restritiva, que estava operando em nossa vida muito antes de chegarmos a conhecê-lo como
nosso salvador? A sua graça restritiva não somente nos guardou de pecar mais, mas também evitou que
fôssemos vítimas de males ainda maiores.

õ Dr. E. Stanley Jones declara que o primeiro nome dos cristãos foi “aqueles que pertenciam ao
Caminho” (Atos 9:2; 19:23; 24:22). E claro que a referência é ao caminho da salvação, mas Stanley
Jones amplia a idéia, levando-a a significar o caminho de Deus, o modo certo para tudo — o modo de
pensar, sentir e agir. E o modo que Deus escreveu na natureza de todas as coisas no Universo, de
maneira que a vida se reduz a duas alternativas básicas: aquilo que é o Caminho e aquilo que não é o
Caminho. E o caminho cristão sempre é o caminho certo, e o caminho não cristão sempre é o caminho
errado.

Por que acontece assim? Porque Deus impôs ainda outras leis externas sobre nós, como os Dez
Mandamentos? Não, porque Deus entreteceu essas leis na estrutura do Universo. O caminho é algo
dado, nós não o produzimos, nem o construímos; ele simplesmente está aí, na natureza das coisas. E
nós temos de aceitar esse caminho e seus princípios, ou seremos feridos. Assim não quebramos as leis
escritas na natureza das coisas; apenas quebramos a nós mesmos sobre elas. Quando caímos de um
edifício, não quebramos a lei da gravidade; ao atingir o solo, apenas a demonstramos. E essas leis
embutidas são manifestações da graça preventiva de Deus; são barreiras construídas na beira do
precipício a fim de impedir-nos de ir adiante Stanley Jones menciona um cirurgião que confirmou esse
princípio: “Descobri o reino de Deus na ponta do meu bisturi. Ele está dentro dos tecidos. O que é certo
moralmente, sempre é saudável fisicamente.”

Tenho usado a idéia do Dr. Jones durante muitos anos em meu ministério de aconselhamento,
mostrando às pessoas como o Universo opera ou a nosso favor, ou contra nós. Lembro-me de uma
mulher casada que partilhou comigo a sua paixão por outro homem e a grande tentação de ter um caso
com ele. Ela era cristã, e o Espírito Santo foi fiel em controlar os seus impulsos. Mas agora ela estava
começando a racionalizar, e eu podia ver que era apenas uma questão de tempo até que ela cedesse. E
claro que ela conhecia os mandamentos bíblicos contra essa atitude, mas estes não pareciam ser
suficientes para detê-la. Eu estava tentando levá-la a ver como as leis morais de Deus, embutidas em
nós, operam em todos os nossos relacionamentos pessoais, e que esse caso estava condenado à
futilidade e frustração. Eu continuava a explicar: “Você pode escolher levar esse caso adiante, mas o
Universo não a apoiará. Você está indo contra ele, e ele irá contra você.” Depois de algum tempo ela
começou a ceder à tentação e a descer a ladeira escorregadia em direção a um envolvimento sério.
Graças a Deus, antes disso acontecer ela se encontrou à beira de um colapso físico e emocional. Quando
voltou ao meu gabinete, ela disse: “Não acreditei em você quando me disse que o Universo não me
apoiaria. Mas você estava certo. Muitas coisas têm acontecido, para me atormentar — em meu corpo,
em minha mente, em minhas emoções e em meus relacionamentos pessoais e familiares.”

Ela descobriu o que Stanley Jones escreveu quase meio século antes: “O mal é o contrário da vida. E a
vida tentando viver contra si própria. E isso não pode ser feito... é urna tentativa de viver contra a
natureza da realidade, e sair ileso. E tentar o impossível. O resultado é inevitável: colapso e
frustração.”2 Este incidente lembra-me um velho provérbio, supostamente usado pelos marinheiros:
“Aquele que cospe contra o vento, cospe em seu próprio rosto.”

Õ apóstolo Paulo é a ilustração bíblica perfeita dessa forma da graça. Enquanto ainda era chamado de
Saulo, foi confrontado pelo Cristo ressurreto, no caminho de Damasco: “Saulo, Saulo, por que me
persegues? Dura coisa é recalcitrares contra os aguilhões” (Atos 26:14). Jesus estava usando uma figura
comum da vida do mundo antigo. Quando sobre um novilho era colocado o jugo pela primeira vez, ele
tentava se libertar, escoiceando. Mas ao fazê-lo, somente se feria mais num prego afiado, o aguilhão,
colocado ali exatamente para esse propósito. Quanto mais ele dava coices contra o aguilhão, mais forte
era a dor. Era o aguilhão que o levava à submissão. Infelizmente, com muita freqüência nós temos de
aprender da maneira mais difícil, e Deus embutiu o seu aguilhão da graça em todas as coisas da vida, O
versículo 12 do capítulo 3 de 1 Pedro é uma citação do versículo 46 do Salmo 34: “O rosto do Senhor
está contra aqueles que praticam males”.

Esse “estar contra” o mal encontra-se inscrito em todas as coisas da vida. Quando compreendemos essa
realidade, vemos a ira de Deus de modo completamente diferente. Descobrimos que o juízo divino é, na
verdade, uma forma da sua misericórdia. Nós o compreendemos como o outro lado da moeda do amor
de Deus, manifestado em sua graça restritiva. E um dos caminhos graciosos que Deus usa para nos
afastar do pecado, e nos atrair a si mesmo, a fim de nos redimir e restaurar.

A Graça que Busca

Finalmente chegamos à graça de Deus que nos procura para nossa salvação. E claro que por todas as
diferentes formas de graça temos dito que o propósito central de Deus é levar-nos a todos nós ao
arrependimento, à fé e à nova vida em Cristo. “Ele é longânimo para convosco, não querendo que
nenhum pereça, senão que todos cheguem ao arrependimento” (2 Pedro 3:9). Portanto, é esse o
desígnio de Deus que está entrelaçado na estrutura total da vida. Mas chega o momento em que
podemos de fato sentir a sua graça que busca, operando de modo mais específico.

Muitos se esquecem de que por trás do conhecido “nós amamos porque ele nos amou primeiro” (1 João
4:19) há uma verdade ainda anterior. Nós o buscamos porque ele nos buscou primeiro. Ao longo dos
séculos, os teólogos têm percebido que um dos principais modos pelos quais Deus nos busca é através
da criação em nós de uma sede por buscá-lo. Até mesmo nós, os cristãos, visto que somos seres
humanos, tendemos a desprezar essa verdade e a nos tomar egocêntricos em nossos testemunhos.
João nos diz em seu evangelho (1:43) que “Jesus resolveu partir para a Galiléia, e encontrou a Filipe, a
quem disse: Segue-me”. Dois versículos adiante (1:45), ele diz: “Filipe encontrou a Natanael, e disse-
lhe:

Achamos aquele de quem Moisés escreveu... Jesus, o Nazareno”. Que contraste interessante! Filipe
afirma ter “achado” a Jesus. Na verdade Jesus é quem o tinha achado! A graça incitadora significa que
Deus sempre é o primeiro a entrar em cena, muito antes de até mesmo pensarmos nele.
Devemos sempre lembrar-nos de que quando falamos sobre “buscar a Deus”, ou “procurar a verdade”,
ou “seguir a luz”, a única razão pela qual fazemos qualquer uma dessas coisas é que Deus já está
operando em nossos corações, instigando-nos com a sua graça que busca.

Enquanto eu apresentava uma série de conferências sobre a vida espiritual, numa universidade, certo
rapaz veio se aconselhar comigo. Como muitos outros filhos de pastores, ele se estava rebelando contra
a fé dos pais e contra a sua própria experiência de conversão, na infância. Com muita vergonha, ele me
contou a sua história. Em sua tentativa de fugir de Deus, ele deliberadamente saiu com uma moça que
era conhecida no campus universitário por sua moral desregrada. Disseram que iam passar o fim de
semana em casa, mas acabaram num motel distante, passando juntos a noite.

Entretanto, aquilo que ele tinha imaginado como uma noite de prazer extasiante veio a ser
completamente diferente. Agora ele se sentia culpado, vazio e, pior que tudo, abandonado por Deus. Ele
continuava a me dizer: “Não consigo encontrar a Deus novamente.” Continuei a responder: “O que você
realmente quer dizer é que não consegue fugir dele.” Ele me pediu que lhe explicasse o que eu disse,
pois era o oposto do que ele sentia. Abri a Bíblia no Salmo 139:7-8, passei-a a ele, e lhe pedi que lesse.
Ele começou a ler:

“Para onde me ausentarei do teu Espírito? para onde fugirei da tua face? Se subo aos céus, lá estás; se
faço a minha cama...“ Ele parou. Eu disse: “Continue, termine a leitura.” Ele prosseguiu,
vagarosamente: “Se faço a minha cama no mais profundo abismo, lá estás também”. Eu perguntei: “A
quem você acha que encontrou naquele quarto de motel?” Ele pareceu intrigado: “Não entendo. Você
quer dizer a... a garota?” Respondi: “Não, não. Quero dizer Deus. Você não percebe que quando tentou
fugir de Deus, naquela noite no motel, você correu diretamente para ele? Na verdade, Deus nunca
esteve mais perto do que nessa ocasião.” Grandes gotas de lágrimas começaram a escorrer-lhe pela
face. Logo estávamos orando àquele que jamais parou de buscar o seu filho desobediente. O amor de
Deus nunca mudou, somente a sua estratégia.

As vezes Deus nos busca, deixando-nos ir. Deixando-nos seguir o nosso próprio caminho, e permitindo
que soframos as suas inevitáveis conseqüências, na esperança de que o nosso sofrimento nos levará de
volta a ele.

No mais excelente capítulo de busca das Escrituras, Lucas 15, vemos essa realidade muito claramente.
No caso da ovelha perdida e da moeda perdida há uma ação direta até que o perdido seja encontrado.
Mas no caso do filho pródigo não é assim. O pai fica em silêncio — não fala com o filho. Parece inativo
— não o impede. Não o busca, indo atrás dele. Ele o busca permanecendo quieto, e deixando-o ir a um
país distante, onde algum dia uma “grande fome” acontecerá, e ele “começará a passar necessidade”, e
talvez venha a “cair em si”.

Nos anos setentas um jovem de nome Andy veio procurar ajuda. Ele chegara ao “fim da picada”, estava
numa profunda depressão, e estava pensando em se suicidar. Enquanto ouvia a sua história, não pude
deixar de pensar na parábola do pródigo, contada por Jesus. Na minha mente eu acompanhava o
paralelo passo a passo. Andy tinha fugido de um bom lar, tinha-se envolvido com drogas e começado a
perder o controle da bebida. Antes de se matricular na faculdade Asbury, ele tinha vivido com um grupo,
numa cidade do Leste. Os três amigos e as duas garotas partilhavam tudo — casa, comida e sexo. Mas
a vida se desmoronou. Agora ele estava vazio, e desgostoso de tudo.

Antes de perceber o que eu estava dizendo, deixei escapar:


“Sabe, Andy, você fez tudo o que o filho pródigo fez, exceto comer a comida dos porcos.” Ele pareceu
assustar-se, e ficou em silêncio. Comecei a me desculpar, achando haver dito algo errado, mas o
Espírito Santo estava bem na minha frente.

— Oh não — disse ele — acabo de me lembrar... até isso eu fiz!


Agora era a minha vez de parecer assustado.
— O que é que você está dizendo?
— Bem, fui ao grande festival de rock de Woodstock, em 1969. Você se lembra de que a multidão era
enorme (mais de 400 mil), a comida acabou, e quase morremos de fome. Mas ninguém conseguia sair
para comprar comida. Então finalmente helicópteros sobrevoaram, e atiraram ração macrobiótica para
porcos, em pacotes enormes. E todos nós apanhamos os pacotes, e comemos com nossas próprias
mãos.

Andy, lembrando-se do gosto da comida, soltou um desgostoso “aargh”.

Depois disso, faltava apenas um incidente da parábola para que Andy completasse o paralelo: a viagem
de volta à casa do pai. Não demorou muito para que essa parte da história também se cumprisse!
Graças a Deus por seu imutável amor e por sua graça fiel, que alcança toda situação humana.(s vezes
Deus nos busca, permitindo que o pecado e o mal vão longe demais. Ele permite que a situação chegue
ao ponto de haver uma inversão nas conseqüências. E usa essa oportunidade para nos persuadir e nos
conquistar através da graça dolorosa.

A Graça Salvadora

Finalmente, existe a ação direta do Espírito de Deus que busca, sobre o espírito humano. A esta, todas
as influências das formas anteriores de graça são reunidas, e a pressão da presença imediata de Deus
toma-se evidente na consciência da pessoa. E esse o momento supremo do encontro divino-humano.
“Eis-me aqui!” diz Jesus, em Apocalipse 3:20: “Eis que estou à porta e bato; se alguém ouvir a minha
voz, e abrir a porta, entrarei em sua casa, e cearei com ele e ele comigo.” O Espírito Santo de Deus está
do lado de fora, batendo e falando. Ele também está dentro de nós, abrindo nossos ouvidos de modo
que possamos ouvir, e dando-nos a vontade e a capacidade de responder. E ele quem nos oferece o
dom da fé, de modo que possamos confiar, apesar de todos os nossos temores e hesitações. Tudo
provém da graça de Deus. Até mesmo a “fé” não “vem de vós, é dom de Deus” (Efésios 2:8)

Um grande exemplo dessa graça divina que persegue é dado por John Bunyan, o autor de O Peregrino.
Em outra de suas obras, ele nos fala da ocasião em sua vida em que estava fugindo de Deus. Bunyan
chama a essas ocasiões de “ataques de vôo”. Diz que nesses momentos, quando literalmente fugia de
Deus, certo versículo do livro de Isaías vinha continuamente à sua mente. Era tão vívido e real à sua
memória que era como se a passagem de fato lhe estivesse clamando: “Desfaço as tuas transgressões
como a névoa, e os teus pecados como a nuvem; toma-te para mim, porque eu te remi” (Isaías 44:22).
Escreve ele: “Isto fazia com que eu parasse por um momento, e, por assim dizer, olhasse para trás de
mim, para ver se podia discernir que o Deus da graça me seguia com um perdão nas mãos.” Que
quadro impressionante da graça perseguidora de um Deus amoroso. Não pensemos que esse tipo de
iniciativa direta por parte do Espírito de Deus esteja limitado aos tempos passados. Repetidas vezes
tenho sido surpreendido por ela. Fui de novo surpreendido quando uma senhora partilhou comigo a sua
história.

Linda agora é esposa de pastor, e uma cristã radiante e cheia do Espírito. Mas ela não veio desse tipo
de formação — muito pelo contrário. Foi uma criança espancada, abusada física e sexualmente por seus
próprios irmãos, e pelo padrasto. Isso a deixou com profunda vergonha e baixa auto-estima, que a
fizeram despencar ainda mais fundo no pecado. Por fim, ela fugiu de casa e acabou, com dezoito anos
de idade, na cidade de Nova York. Ela estava sozinha e tinha poucos amigos. Certa noite, literalmente
numa toca do maligno, ela estava num quarto, sentada numa cadeira. Estava praticamente nua, e sobre
a cama havia um casal praticando o ato sexual. Então um sentimento devastador de solidão e culpa a
atravessou. A terrível percepção de onde estava e de quem era, e o fato de que ninguém realmente se
importava a esmagou. Subitamente, percebeu o total egoísmo da situação — todos estavam usando um
ao outro e usando a ela. Isso a atingiu como um raio, e a encheu de terrível escuridão, depressão e
desespero.

Mas no meio dessa situação veio (o que ela chamou de) um sentimento ofuscante da presença de Deus.
Surgiu o pensamento dentro dela, como uma voz interior: “Eu te amo, eu sempre amei e sempre
amarei.” Ela se virou, ajoelhou-se junto à cadeira e, colocando a cabeça nas mãos, começou a soluçar.
“O Deus, preenche o meu vazio. Por favor, ama-me da forma como sempre desejei ser amada.” Esse foi
o começo. Dentro de um mês ela experimentou uma conversão comovente. Ela me disse: “Experimentei
um transbordamento, um sentimento do perdão completo de Deus. E acima de tudo, aquilo que eu
realmente queria durante toda a minha vida:

um coração limpo.” Nascida de novo e restaurada, ela conseguiu ajuda, voltou para casa, e se
reconciliou com a mãe. Por fim tomou-se um instrumento através do qual Deus alcançou diversos
membros da família.

Observamos a graça em algumas de suas formas mais importantes. Nelas e através de todas elas não
podemos deixar de ser atingidos pela iniciativa divina. Deus sempre está em primeiro plano. Muito antes
mesmo “da criação do mundo” (Efésios 1:4) a sua graça já nos tinha em mente. E embora o Calvário
tenha acontecido em tempo e lugar definidos na história, Jesus foi “o Cordeiro que foi morto, desde a
fundação do mundo” (Apocalipse 13:8). Creia-me, temos sido recipientes da graça (humanamente
falando) há muito tempo atrás. O caminho da graça não é uma reflexão posterior da parte de Deus. E o
caminho, o único caminho que Deus planejou.

Graça Última

Essa mesma graça será, em última instância, a nossa única base para a comunhão eterna com Deus na
vida do porvir. No último versículo do último capítulo do último livro das Escrituras, Ap. 22:21, João ora:
“A graça do Senhor Jesus seja com todos.” Podemos ter certeza de que cada membro do povo de Deus
que o estará servindo e adorando por toda a eternidade, estará lá somente por uma razão — porque foi
recipiente da graça — o amor de Deus dado gratuitamente ao que é indigno e não o merece. Não há
outra base para entrar no reino de Deus — aqui na terra ou no céu.

Como adolescente, freqüentei muitos cultos de verão, os quais aconteciam nos grandes acampamentos
de santificação. Sentado nos desconfortáveis bancos de madeira, os pés tocando a serragem no piso da
tenda, eu ouvia com muita reverência os grandes evangelistas da época. Sempre serei grato por suas
mensagens repletas da graça. Lembro-me de muitas vezes ter ouvido descrições de como seria quando
entrássemos pelas portas dos céus. Inscrito sobre o arco de entrada, assim nos diziam, estariam estas
palavras: “Quem quiser pode vir”. Mas, após termos entrado, se olhássemos para trás, para o portal,
veríamos as palavras: “Porque pela graça sois salvos”.

A Casa dos Habsburgos dominou o império Austro-Húngaro desde 1273, e a família foi um dos principais
poderes políticos da Europa até a Grande Guerra de 1914-1918. O funeral do imperador Franz-Josef 1
da Austria aconteceu em novembro de 1916. Foi o último dos grandiosos funerais imperiais a ser
realizado.

Os Habsburgos estão sepultados na cripta da família, localizada no porão do mosteiro dos capuchinhos
em Viena. No dia do funeral, toda a corte reuniu-se com vestes totalmente brancas, tendo os chapéus
cobertos com plumas de avestruz. Uma banda militar executou melancólicos hinos fúnebres e uma
antífona de Haydn. O cortejo abriu caminho, serpeando por escadas iluminadas com tochas flamejantes,
carregando o caixão coberto com as cores imperiais, preto e dourado. Finalmente alcançou as grandes
portas de ferro da cripta, atrás das quais estava o Cardeal-Arcebispo de Viena, juntamente com o seu
séquito de altos oficiais da igreja.

O oficial encarregado da procissão era o Mestre de Cerimônias da corte. Ao chegar à porta cerrada e
bater com o cabo da espada cerimonial, ele estava seguindo uma cerimônia prescrita desde tempos
imemoráveis.

— Abram! — ordenou ele.


— Quem vem lá? — entoou o Cardeal.
— Trazemos os restos de sua majestade imperial e apostólica, Franz-Josef 1, pela graça de Deus
imperador da Austria, rei da Hungria, defensor da fé, príncipe da Boêmia-Morávia, Grão-Duque de
Lombardia, Veneza, Estítia... — e assim por diante, desfiando os trinta e sete títulos do imperador.
— Não o conhecemos — respondeu o Cardeal, do outro lado da porta. — Quem vem lá?
— Trazemos os restos de sua majestade Franz-Josef 1, imperador da Austria e rei da Hungria — esta
forma bastante abreviada só era permitida nas mais difíceis emergências.
— Não o conhecemos — foi novamente a resposta do Cardeal.
— Quem vem lá?
— Trazemos o corpo de Franz-Josef, nosso irmão, pecador como todos nós!
Com isso as maciças portas abriram-se vagarosamente, e Franz-Josef foi levado para dentro.
Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus.

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