Turno: Tarde Professor: Gabriel Léccas _____________________________________________________________________________________
O COLAPSO DA EUROPA SOCIALISTA
(1985 – 1991) 1. A construção da potência soviética e de seu inaugurar o período conhecido como coexistência poder de polarização (déc. 1930 – déc. 1970) pacífica, em que as duas superpotências se com- prometeram com o abrandamento das tensões da A Rússia tornou-se socialista em 1917, a Guerra Fria. Apesar disso, seu governo contou partir do sucesso da revolução bolchevique. A com eventos de extrema tensão, como a crise dos partir de então, aos poucos, foi sendo construído o mísseis cubanos (1962), a ruptura sino-soviética modelo socialista no país. Com a morte de Lênin, (década de 1950), o esmagamento da Revolução subiu ao poder Josef Stalin, que projetava a ideia da Hungria (1956), que procurava reformar o socia- de um socialismo num só país – consolidar o lismo no país, e a construção do muro de Berlim socialismo internamente na Rússia –, ao contrá- (1961). rio de seu opositor Leon Trotsky, que tinha planos Sucedendo Khrushchev como primeiro se- de expandir de imediato a revolução – projeto cretário, subiu ao poder Leonid Brejnev. Entre os conhecido como revolução permanente. Dessa marcos de seu regime, está a Doutrina Brejnev, maneira, Stalin direcionou a Rússia para se tornar que defendia intervenções militares em diversos um polo de referência para o socialismo internacio- países ameaçados por forças anticomunistas – nal, a partir do fortalecimento de seu poder de pola- sobretudo os países periféricos. Além disso, prega- rização. A União das Repúblicas Socialistas So- va o aprofundamento das relações pacíficas viéticas (URSS), tomava forma aos poucos. com potências ocidentais, reforçando a ideia de Para tornar a Rússia uma superpotência coexistência pacífica. Com essa política, Brejnev capaz de polarizar as demais repúblicas envolvidas inaugurou a ideia de detènte (esfriamento), que no conceito de União Soviética, Stalin implementou contribuiu para relativa estabilidade internacional. a chamada Segunda Revolução Russa. Nesse Entretanto, não se pode esquecer da sangrenta processo, foram características centrais o amplo repressão do socialismo reformista da Tchecos- investimento em indústrias de base, além de lováquia (1968), onde o então presidente Alexan- modernização do exército, a partir do estímulo der Dubcek buscava construir um socialismo mais ao desenvolvimento bélico. Com essas reformas, humano: foi a chamada Primavera de Praga. a União Soviética tornava-se uma potência capaz de polarizar os demais países socialistas do leste 2. Mikhail Gorbatchev e a crise do socialismo europeu. soviético Com a morte de Stálin, em 1953, após meses de debates em torno do nome de seu su- Na década de 1980, após duas gestões cessor, foi escolhido Nikita Khrushchev para as- seguintes à de Brejnev, subiu ao poder o político sumir o cargo de primeiro secretário do Partido. Mikhail Gorbatchev. Naquele contexto, a União Khrushchev era um político que condenava os Soviética passava por profundas dificuldades excessos do governo stalinista (tortura, perse- econômicas. Os imensos gastos com a invasão guições, repressão). Portanto, assumiu um com- do Afeganistão, iniciada em 1979, além da inca- promisso de comandar a desestalinização da pacidade soviética de atingir a Terceira Revolu- Rússia, denunciando os crimes cometidos pela ção Industrial – que já se desenvolvia no mundo ditadura stalinista. No plano internacional, realizou ocidental –, trouxe complicações para o bloco so- negociações com o presidente John Kennedy para cialista. O modelo soviético foi, aos poucos, sendo me capitalista. A capital, Berlim, que fica do lado contestado e não era mais visto como moderno. oriental, também foi dividida, como no mapa acima. Nesse cenário, Gorbatchev empreendeu Só que o muro não começou a ser construído logo duas reformas principais: a perestroika e a glas- após os acordos diplomáticos que permitiram a divi- nost. A primeira se tratava da abertura econômica são, mas sim em 13 de agosto de 1961, 16 anos – a gradual abertura da economia russa para o ca- após o fim da guerra. pital estrangeiro. A segunda se tratava da transpa- Walter Ulbricht, homem forte do Partido rência política – o gradual processo de desburo- Comunista alemão e chefe de Estado da RDA, que cratização e de democratização do corpo político dois meses antes havia desmentido, em uma entre- soviético. Apesar de sofrer muitas críticas – e até vista, a construção de um muro separando Ber- mesmo uma tentativa de golpe – Gorbatchev deu lim, emitiu a ordem para iniciar a construção. Na prosseguimento às reformas e às conversações de madrugada do dia 13, começou a chama- paz. Comprometeu-se, ainda, com a redução dos da “Operação Muralha da China”: trens foram armamentos nucleares em nome da paz mundial. parados antes da fronteira, rodovias foram ocupadas [Contudo], “nem só de glasnost [transpa- pelos militares, e os soldados da RDA iniciaram a rência] perestroika [reestruturação] viveu o governo construção do muro, impedindo o tráfego de milha- de Gorbachev. As duas medidas políticas adotadas res de alemães de ambos os lados. Qual o moti- pelo homem forte da URSS desde 1985, quando vo? Apesar da travessia ser permitida a todos os chegou ao poder, diziam respeito mais à política alemães desde a divisão do país, havia um êxodo interna da URSS do que ao bloco comunista. Além considerável para o lado ocidental. do Pacto de Varsóvia, havia ainda a Doutrina Bre- O lado capitalista observou de longe, protes- jnev, que regulava o bloco comunista, orientando a tou de forma tímida, na boca de alguns dos líderes atuação de todos os Partidos Comunistas dos paí- políticos da época, mas não fez mais que isso. Ne- ses do bloco. Em 1988, ao anunciar que a URSS nhuma solução armada foi elaborada ou mini- abandonaria esta doutrina, Gorbachev dava sinal mamente pensada para a questão, até porque verde para que o Partido Comunista de cada país estávamos na Guerra Fria. Qualquer ordem agressi- controlasse a política de forma independente, sem va contra um dos lados teria resposta agressiva e qualquer intromissão do Partido Comunista soviéti- imediata do outro lado. co. Gorbachev já conseguia visualizar o co- lapso do regime comunista, o descontentamento de alguns (poucos) líderes políticos e de uma gran- de parte da população. Por seu discur- so libertador — mesmo que essa palavra soe forte demais vamos mantê-la aí – era aclamado pelo povo, que sabia que os regimes comunistas eram sustentados pela força do Estado Policial. Gorba- chev acalmou o ânimo dos governantes capitalistas e não interferiu nas mudanças propostas pelos líde- res do bloco, como os líderes húngaros Karoly Grosz e Miklos Nemeth, que abriram a primeira Ao todo, em 16 anos de divisão, a RDA con- brecha na “cortina de ferro” em 19 de agosto de tabilizava cerca de 2 milhões de alemães que sim- 1989, organizando um piquenique às bordas da plesmente foram para o lado ocidental e não volta- fronteira. Sim, você não está lendo errado, foi um ram. Havia sim um êxodo dos descontentes com o piquenique, que reuniu húngaros, alemães orientais, regime socialista, e a construção do muro veio para ocidentais e austríacos. sanar este problema. Postos de segurança foram montados, e as pessoas que tentavam atravessar o 3. A queda do Muro de Berlim e o fim da Guerra muro para o lado ocidental acabavam feridas, pre- Fria sas ou mortas. Ao todo morreram 80 pessoas, 112 ficaram feridas e milhares foram aprisiona- [Após a Segunda Guerra Mundial], A Alema- das na tentativa vã de atravessar para o lado nha foi dividida em dois países, a República Demo- ocidental. crática Alemã (RDA), conhecida como Alemanha O muro de arame farpado e concreto não Oriental, de regime socialista, e a República Fede- separou apenas geograficamente os dois países e a ral Alemã (RFA), ou Alemanha Ocidental, de regi- capital. Famílias foram separadas e nunca mais tiveram contato. Amantes, amigos, colegas de traba- A tal da “fuga” continuou nos meses seguin- lho nunca mais se encontraram. Os alemães orien- tes, e milhares de alemães orientais passavam pela tais perderam o direito de ter passaporte. Como a fronteira húngara sem sequer serem importunados passagem era liberada antes da construção do mu- pelos soldados. Oficiais da Alemanha Ocidental ro, era normal a pessoa morar em um lado e o tra- ajudavam na obtenção de registro e guiavam as balhar no outro, famílias moravam na capital e nas famílias, arrumavam emprego, comida e moradia. O regiões fronteiriças, mas tinham parentes dos dois êxodo de trabalhadores deixou o país sem mui- lados. Todos foram separados. As conexões telefô- tos padeiros, pedreiros, médicos, pintores, en- nicas entre os dois lados da cidade já estavam sus- fermeiros, funcionários da administração públi- pensas desde 1952, e foram retomadas apenas em ca, professores, camponeses. Pessoas saíam do 1971. trabalho para casa e não apareciam no outro dia Era a materialização europeia da Guerra para trabalhar. Os recursos já eram escassos, agora Fria, da Cortina de Ferro imposta pela URSS, pois os comunistas estavam perdendo a mão-de-obra além do muro em Berlim, o socialismo fechava que movia o país. suas portas para o ocidente. A fronteira da RDA Havia uma tensão crescente não só na com a RFA foi fechada; a Hungria e a Tchecoslová- Alemanha Oriental, mas também em outros países, quia foram obrigadas pelo Pacto de Varsóvia a e de diversas formas. Na Polônia, o Partido Soli- patrulhar suas fronteiras, cercando com arame far- dariedade, que surgiu na década de 1980 como pado e construindo postos de controle, a fim de evi- oposição aos comunistas, e que foi caçado pela Lei tar a fuga do lado oriental. Marcial, foi chamado para sentar na mesma mesa Existia uma quantidade considerável de que os comunistas para tratar do futuro da política diferenças entre o lado capitalista e o lado socia- do país. Na eleição democrática proposta pelo Par- lista, não só de natureza econômica, mas tam- tido Comunista, o Solidariedade venceu com sobras. bém ideológica, que acabava sendo usado para Nenhum comunista ganhou o direito a exercer car- legitimar o Estado socialista. O socialismo, de gos significativos no governo eleito pelo povo. uma forma bem simples, pregava a divisão igual do Na Tchecoslováquia, o ator e escri- capital obtido com o trabalho para todos, mas na tor Václav Havel liderava a Revolução de Veludo, prática não era isso que acontecia. Além das neces- uma linda manifestação pública que durou dias e fez sidades e das dificuldades financeiras, os morado- os comunistas tchecos praticamente desistirem de res do bloco socialista lutavam contra o policia- manter o regime de partido único e convocar elei- mento sistemático dos serviços militares em todo o ções diretas. Mas nem tudo eram flores. Na Romê- bloco. nia, Nicolae Ceausescu teve que ser deposto após Havia um ar pegajoso que impregnava Ber- a queda do muro de Berlim. Ele e sua esposa foram lim Oriental e todo o bloco socialista. A polícia secre- capturados, julgados em um tribunal clandestino e a ta estava infiltrada em todos os lugares e podia levar pena foi o fuzilamento. para a prisão qualquer morador que tentasse disse- Na Alemanha Oriental, em 9 de novembro minar ideias anticomunistas. Por isso o muro ao de 1989, Günter Schabowski, em sua habitual en- longo do tempo virou um símbolo, não só da Guerra trevista coletiva, quando costumava passar aos jor- Fria e da bipolaridade do planeta, mas era também nalistas as últimas medidas tomadas pelo Partido a expressão da pior característica do comunis- Comunista da RDA, informou uma decisão do con- mo stalinizado, o comunismo temido, que proíbe a selho de ministros em abolir as restrições de via- livre expressão e, no caso do muro, o livre ir-e-vir de gens para o oeste e autorizou os alemães orien- seu próprio povo. tais a ter novamente um passaporte válido. As Na Guerra Fria não havia apenas a corrida reações foram imediatas. Parte dos repórteres cor- espacial, armamentista e econômica. Existia tam- reram para fora da sala, e nas ruas, no fim de tarde, bém uma queda de braço para ver quem desisti- a população já rumava para os postos de controle. À ria de seu regime econômico primeiro. É fácil dar noite, milhares de pessoas aguardavam a aber- os louros da vitória aos americanos, como fez a tura dos portões. chanceler alemã, Angela Merkel, em um discurso Os postos de controle foram abertos aos proferido no Congresso americano em 2009, mas o poucos, pedaços do muro foram arrancados aos que muitos não sabem é que o muro ruiu de den- poucos, mas para aqueles que acreditavam na que- tro para fora. Na verdade, nem podemos considerar da lenta, que duraria décadas, os eventos acontece- como uma “fuga”, já que a fronteira foi aberta horas ram rápido demais. Os EUA e outros países do oci- depois. Mas fica o registro. dente não acreditavam no que suas emissoras de TV, baseadas na parte ocidental de Berlim, mostra- vam. O mundo não acreditava no que via. A reunificação alemã aconteceu em 1990, e a URSS sofreu seu colapso em 1991, ocasio- nando o fim do regime comunista na Europa. O resto é história. A reabertura política, a independên- cia de várias ex-províncias soviéticas, formando novos países. A construção do bloco europeu de comércio, a Comunidade Europeia. O Euro. Mas a queda do muro também provocou, por exemplo, a ascensão de Slobodan Milosevic na Iugoslávia, a guerra do Kosovo. As implicações da queda do muro ecoam até hoje, apesar da Europa não ser mais a mesma. O ato é carregado de simbolismo, e não é em vão, pois mudou o mundo, reconfigurando alianças di- plomáticas e encerrando, definitivamente, o que seria o “breve século XX” — segundo o historiador Eric Hobsbawm”. Um novo mundo surgiu após o fim da Guerra Fria, e as expectativas em torno desse novo mundo eram diversas. Otimistas e pessimistas, apesar de pensarem de maneira distinta, compartilhavam a mesma pergunta: que mundo teremos pela fren- te?