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se curva ao preço
Visita ao escultor Frans Krajcberg, no litoral baiano, flagra a persistência do combate sem
trégua contra o homem-predador
Tiago Queiroz/AE
O artista Frans Krajcberg
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sorriso cativante, Frans Krajcberg recebe a reportagem de braços abertos,
literalmente. Vê-lo caminhando sem anteparos, com postura reta e um jogo de
corpo surpreendente para seus 91 anos, emociona. É mesmo um duro na queda.
Por milagre. Há poucas semanas, esse que é um dos artistas plásticos vivos
mais importantes, com uma obra escultórica absolutamente original, esteve
internado no Hospital Albert Einstein, em São Paulo. Sem alarido, mas
causando preocupação. Além das enfermidades antigas, que vem tratando,
começou a ter desmaios. Montou-se uma operação silenciosa para transportá-lo
em avião cedido até o hospital paulistano. Todos os exames foram feitos. Novos
tratamentos prescritos. Dietas readequadas. E por fim um paciente bastante
franzino teve alta para voltar a Nova Viçosa, ao sítio onde construiu sua utopia.
Encontrá-lo bem e viçoso é quase um milagre.
Tempos depois, foi informado de que suas peças não só estavam mantidas de
forma inadequada como muitas apareceram rachadas, outras quebradas, outras
tantas descoradas e, para complicar o caso, o espaço estivera fechado por mais
de um ano à visitação pública, sem que o artista fosse informado disso. Assim
como Curitiba, sob nova administração, deixava o slogan ecológico para trás, o
mesmo acontecia com o entusiasmo do doador. Mas o auge do desencanto se
deu após um encontro em São Paulo com dirigentes do Boticário, quando estes
lhe informaram que a indústria de cosméticos assumiria a área onde se
encontrava o Espaço Frans Krajcberg e as obras teriam de ser retiradas de lá,
para destino incerto. Foi um baque. Krajcberg reagiu acionando a Justiça e ao
mesmo tempo os caminhoneiros de Nova Viçosa. Pagou do bolso para trazer de
volta à Bahia as obras doadas. Fez-se um imbróglio jurídico desde então.
Curitiba não abre mão da doação, que ele deseja cancelar, dando-lhe um prazo
para recuperar as obras e trazê-las de volta - primeiro de seis meses, depois de
dois anos. Agora a advogada Selma Ferraz, paulista, mas com escritório em
Curitiba, tenta novas estratégias jurídicas para dilatar esse tempo, evitando que
o cliente restaure uma centena de peças com a espada da lei pendendo sobre sua
cabeça.
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modesta, em R$ 300 milhões. Só o custo do restauro é estimado em R$ 20
milhões. A Justiça do Paraná inicialmente alegou que a recuperação poderia ser
feita em Curitiba, de “forma terceirizada”. Krajcberg jamais aceitaria. Seguir tal
sugestão seria tão infame quanto comparar seus trabalhos a cabides ou cadeiras
de pés quebrados. Desistam, srs. magistrados. Sentado no alpendre da casa do
alto do pequi, cuja vista do mar a mata dificulta, ouço-o falar que nem morto
permitirá a retirada das obras de lá. Pensa no futuro desse patrimônio quando
viajar a outros mundos, já que não deixa descendentes: uma fundação, museus
em outros Estados, além da doação (já feita) do sítio e de parte do acervo para a
Bahia? Hoje seus argumentos são banhados em mágoa: “Foi uma humilhação
completa. Além de encontrar meus trabalhos quebrados, o novo dono do parque
me disse para eu sair de lá. Tenho testemunhas disso. Eu fui a Curitiba ver o
estrago, lamentável... Que outro artista no mundo doou, de uma vez, 110
esculturas, fora relevos, fotos, livros? Quem? Quando fui retirar as peças, me
disseram para levar tudo, para não deixar nada, para limpar o lugar. Era meu
trabalho de anos! Onde vou encontrar a mesma pedra? Onde vou achar aquele
mesmo galho?”
“Fui estudar na Alemanha com Willi Baumeister, pintor e grande nome da arte
moderna, quando a guerra acabou. Mas Willi, de quem fiquei amigo, disse ‘olha,
Krajcberg, vai embora, aqui não é lugar para você’. Então escreveu uma carta de
recomendação a Léger e lá fui eu. Não falava uma palavra de francês. Só
conseguia conversar em russo com a mulher do Léger...Foi quando procurei
Marc Chagall em sua casa. Contei que conhecera sua família em Vitebsk (Bielo-
Rússia), mas não tinha notícia de parente dele. Eu também tinha esperança de
que algum parente meu o tivesse procurado em Paris. Nada. Chagall chorou
muito... depois me disse para ir embora de Paris, que tomasse o Brasil como
destino. Eu vim. E vim para fugir do homem, da destruição, da guerra. Uma
mulher húngara, com parentes em São Paulo, pagou minha passagem de navio.
Só que ela comprou bilhete de terceira classe para mim. E ela mesma viajou de
primeira. Ficamos separados no navio. Separados no desembarque em Santos.
Separados sempre. Nunca mais a vi.”
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trabalho”), Krajcberg já foi vítima de oito assaltos em Nova Viçosa. Conversa
delicada, noto que ele não se demora no tema. Não cita nomes. Não detalha
cenas. Apenas aponta para os policiais militares que hoje se revezam em turnos
no sítio, por determinação do governo da Bahia, para fazer sua segurança. Sabe-
se que sete dos assaltos coincidiram com suas temporadas em Paris. E no
último, o mais ousado, encapuzados apareceram com metralhadoras. Barra
pesada. Há quatro presos e as investigações prosseguem. Várias esculturas de
Krajcberg foram roubadas. Um desenho de Paul Klee, presente da filha do
artista, desapareceu. Assim como uma tela de Chagall, ou “um belíssimo
Chagall”, como só a vítima é capaz de atestar.
“Minha mãe foi líder do Partido Comunista na Polônia. Era uma militante, por
isso estava sempre presa (fala e acha graça de si mesmo). Ela me inspirou a
participar politicamente, você sabe que fui da extrema esquerda. Quando era
criança, eu já gostava da natureza. Mais tarde, a natureza me deu força para
seguir vivendo. Junto com minha mãe, a natureza me fez entender que a arte
deve participar. Não pode ser de outro jeito. Hoje, quando vou a Paris vejo uma
crise cultural enorme. Nos Estados Unidos, ninguém pergunta mais que arte se
faz. Apenas quanto custa. Só vejo imitações do século 20, nada de novo, é
lamentável.”
No Japão. Que outro motivo, se não a avidez por dinheiro, levaria quadrilhas a
investirem contra um homem de 91 anos, cuja obra promove a elevação do
humano, sem entrar no mérito do valor estético, da arte enquanto arte?
Krajcberg não exagera ao imaginar que, se anunciasse a venda de suas obras,
provocaria uma pororoca entre marchands, galeristas, colecionadores. Em
pouquíssimo tempo esvaziariam o Sítio Natura. Levariam até as galinhas. Mas,
alto lá, isso não está nos planos. Não faz sentido. Não combina com a
simplicidade do alpendre da casa-ninho, com vista imediata para uma
mangueira e duas castanheiras, barulho do mar ao fundo. Não mudaria a vida
quase monástica, a dieta a base de peixe e chá, entremeada por leituras e
momentos de ver tevê, afinal, é preciso saber das notícias, “quer me dizer por
que aquela mulher matou o marido e o picou em pedaços?”.
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manhã”, e assim os funcionários do sítio se desdobram para despachar, com
todo cuidado, a mostra - esculturas, relevos, muitas fotografias...
O artista entre peças de porte longo, como as feitas a partir do caule da palmeira TIAGO
QUEIROZ/AE