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A última fronteira da arte que não

se curva ao preço
Visita ao escultor Frans Krajcberg, no litoral baiano, flagra a persistência do combate sem
trégua contra o homem-predador

16 de junho de 2012 | 16h 00


Laura Greenhalgh - O Estado de S.Paulo

Tiago Queiroz/AE
O artista Frans Krajcberg

NOVA VIÇOSA / BAHIA - Há 20 anos, na esteira da programação cultural em


torno da Conferência Mundial das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento, a Eco-92, o Rio de Janeiro abrigaria uma exposição de alto
impacto, porém de triste beleza. Chamava-se Imagens do Fogo o conjunto de
obras do artista Frans Krajcberg, manifesto estético inspirado na degradação de
florestas na Amazônia, no Paraná e em extensa faixa desde o sul da Bahia até o
Espírito Santo. Queria denunciar as queimadas, particularmente aquelas feitas
para liberar a terra ao plantio do eucalipto, que por sua vez alimenta a indústria
de papel e celulose. Há anos esse judeu polonês naturalizado brasileiro, um
sobrevivente do Holocausto, já vinha lidando com a irracionalidade humana
capaz de justificar a transformação do organismo vivo, a floresta, em matéria
calcinada. Seu trabalho foi visto por mais de 300 mil visitantes em questão de
dias. Pois 20 anos depois, quem há de dizer que o polaco estava errado?
Relatório divulgado pela ONU na abertura da Rio+20 dá uma noção do estrago:
em duas décadas, 4,4 bilhões de pessoas foram afetadas por algum desequilíbrio
ambiental do planeta. O número de mortos beira 1,3 milhão. E as vítimas de
queimadas, só elas, contabilizam 5,6 milhões de pulmões.

Agora, pausa, respire fundo. Têm cheiro de mar e mato as alamedas e os


pequenos bosques que compõem o Sítio Natura, no município de Nova Viçosa,
sul da Bahia. Um pedaço de terra onde Krajcberg vive desde os anos 1970,
devolvendo persistentemente a Mata Atlântica a uma faixa litorânea que já
encontrara em processo de degradação. Da BR-101, onde se divisa a entrada da
propriedade, veem-se três carcaças ósseas de baleia, certamente testemunhos
menos lisonjeiros que os esqueletos vistos em museus de história natural.
Depois, sítio adentro, poucas construções: quiosques com teto de sapê trançado,
o ateliê rústico, duas moradias - uma com pé-direito bem alto, onde funciona o
escritório, e outra erguida a 12 metros do chão, circundando um tronco de pequi
de 2,6 m de diâmetro. É o ninho de madeira onde o artista dorme e acorda todos
os dias. Num desses recantos o encontramos na terça-feira dessa semana, longe
dos holofotes e das salas de imprensa da Rio+20. Com seu boné inseparável e

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sorriso cativante, Frans Krajcberg recebe a reportagem de braços abertos,
literalmente. Vê-lo caminhando sem anteparos, com postura reta e um jogo de
corpo surpreendente para seus 91 anos, emociona. É mesmo um duro na queda.

Por milagre. Há poucas semanas, esse que é um dos artistas plásticos vivos
mais importantes, com uma obra escultórica absolutamente original, esteve
internado no Hospital Albert Einstein, em São Paulo. Sem alarido, mas
causando preocupação. Além das enfermidades antigas, que vem tratando,
começou a ter desmaios. Montou-se uma operação silenciosa para transportá-lo
em avião cedido até o hospital paulistano. Todos os exames foram feitos. Novos
tratamentos prescritos. Dietas readequadas. E por fim um paciente bastante
franzino teve alta para voltar a Nova Viçosa, ao sítio onde construiu sua utopia.
Encontrá-lo bem e viçoso é quase um milagre.

Caminhamos através da mata, entramos e saímos do quiosque que serve de


museu para esculturas e relevos e, com pouco tempo de prosa, Krajcberg puxa o
assunto que já virou bordão, além de tremenda batalha jurídica. “Vamos falar
sinceramente: eu fui humilhado. Não fui eu quem quis sair de Curitiba. Eles é
que me jogaram fora”, diz com seu sotaque gringo indefinido. Vamos então
começar a desenrolar o enredo notório: o Brasil da Rio+20 ainda não sabe como
preservar um artista maior. E, maior ele fica, maior o risco para sua obra. Em
2005, Krajcberg doou para Fundação Cultural de Curitiba um conjunto de 110
esculturas, reunidas numa área do Jardim Botânico da cidade. Foi um momento
de entusiasmo com a cidade administrada por Jaime Lerner, plugado no
binômio urbanismo + sustentabilidade - não à toa, Curitiba candidatou- se a
“capital mundial da ecologia”. Krajcberg vibrou com aquilo. Havia morado nos
anos 50 no Paraná, lá também presenciara a devastação das queimadas, depois
a drenagem dos sucos da terra pelos eucaliptais. Enfim, ver Curitiba dando
tanto apoio à preservação ambiental era algo digno de celebrar. E doar. Doar
muito.

Tempos depois, foi informado de que suas peças não só estavam mantidas de
forma inadequada como muitas apareceram rachadas, outras quebradas, outras
tantas descoradas e, para complicar o caso, o espaço estivera fechado por mais
de um ano à visitação pública, sem que o artista fosse informado disso. Assim
como Curitiba, sob nova administração, deixava o slogan ecológico para trás, o
mesmo acontecia com o entusiasmo do doador. Mas o auge do desencanto se
deu após um encontro em São Paulo com dirigentes do Boticário, quando estes
lhe informaram que a indústria de cosméticos assumiria a área onde se
encontrava o Espaço Frans Krajcberg e as obras teriam de ser retiradas de lá,
para destino incerto. Foi um baque. Krajcberg reagiu acionando a Justiça e ao
mesmo tempo os caminhoneiros de Nova Viçosa. Pagou do bolso para trazer de
volta à Bahia as obras doadas. Fez-se um imbróglio jurídico desde então.
Curitiba não abre mão da doação, que ele deseja cancelar, dando-lhe um prazo
para recuperar as obras e trazê-las de volta - primeiro de seis meses, depois de
dois anos. Agora a advogada Selma Ferraz, paulista, mas com escritório em
Curitiba, tenta novas estratégias jurídicas para dilatar esse tempo, evitando que
o cliente restaure uma centena de peças com a espada da lei pendendo sobre sua
cabeça.

Lembrando Chagall. Na berlinda está um acervo avaliado, numa cotação

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modesta, em R$ 300 milhões. Só o custo do restauro é estimado em R$ 20
milhões. A Justiça do Paraná inicialmente alegou que a recuperação poderia ser
feita em Curitiba, de “forma terceirizada”. Krajcberg jamais aceitaria. Seguir tal
sugestão seria tão infame quanto comparar seus trabalhos a cabides ou cadeiras
de pés quebrados. Desistam, srs. magistrados. Sentado no alpendre da casa do
alto do pequi, cuja vista do mar a mata dificulta, ouço-o falar que nem morto
permitirá a retirada das obras de lá. Pensa no futuro desse patrimônio quando
viajar a outros mundos, já que não deixa descendentes: uma fundação, museus
em outros Estados, além da doação (já feita) do sítio e de parte do acervo para a
Bahia? Hoje seus argumentos são banhados em mágoa: “Foi uma humilhação
completa. Além de encontrar meus trabalhos quebrados, o novo dono do parque
me disse para eu sair de lá. Tenho testemunhas disso. Eu fui a Curitiba ver o
estrago, lamentável... Que outro artista no mundo doou, de uma vez, 110
esculturas, fora relevos, fotos, livros? Quem? Quando fui retirar as peças, me
disseram para levar tudo, para não deixar nada, para limpar o lugar. Era meu
trabalho de anos! Onde vou encontrar a mesma pedra? Onde vou achar aquele
mesmo galho?”

A história beira o absurdo para museólogos como Claude Mollard, um dos


realizadores do Centro Georges Pompidou em Paris, expositor de longa data de
Krajcberg e responsável pela criação de um pequeno museu em homenagem ao
artista, em Montparnasse. É um luxo para os franceses ter o conjunto de obras
de um criador que quase não vende seus trabalhos, tornando-os tão mais caros
quanto mais raros no mercado das artes. Assim como Krajcberg concordou em
ceder um acervo permanente a Paris - franqueado à visitação pública -, Paris
também o recompensou com um apartamento permanentemente a sua
disposição. Para rever as obras quando queira. É nos meses do verão baiano,
intenso demais para a pele fina, alva e marcada por lesões sérias - seriam fruto
das longas exposições ao sol colhendo raízes no mangue? - que Frans Krajcberg
se muda para Paris. É a cidade onde viveu na juventude, a família já dizimada
pelos nazistas. Só no mundo, foi recebido por Léger, Braque, Chagall...

“Fui estudar na Alemanha com Willi Baumeister, pintor e grande nome da arte
moderna, quando a guerra acabou. Mas Willi, de quem fiquei amigo, disse ‘olha,
Krajcberg, vai embora, aqui não é lugar para você’. Então escreveu uma carta de
recomendação a Léger e lá fui eu. Não falava uma palavra de francês. Só
conseguia conversar em russo com a mulher do Léger...Foi quando procurei
Marc Chagall em sua casa. Contei que conhecera sua família em Vitebsk (Bielo-
Rússia), mas não tinha notícia de parente dele. Eu também tinha esperança de
que algum parente meu o tivesse procurado em Paris. Nada. Chagall chorou
muito... depois me disse para ir embora de Paris, que tomasse o Brasil como
destino. Eu vim. E vim para fugir do homem, da destruição, da guerra. Uma
mulher húngara, com parentes em São Paulo, pagou minha passagem de navio.
Só que ela comprou bilhete de terceira classe para mim. E ela mesma viajou de
primeira. Ficamos separados no navio. Separados no desembarque em Santos.
Separados sempre. Nunca mais a vi.”

Chagall teria chorado de novo se soubesse de outra fonte de mágoas do amigo,


além do caso da esculturas em litígio. Com obras contadas em museus na
Europa e nos Estados Unidos, e outras tantas contadas em mãos de particulares
(“resisto a vender minhas peças, afinal preciso de pouco para viver e manter o

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trabalho”), Krajcberg já foi vítima de oito assaltos em Nova Viçosa. Conversa
delicada, noto que ele não se demora no tema. Não cita nomes. Não detalha
cenas. Apenas aponta para os policiais militares que hoje se revezam em turnos
no sítio, por determinação do governo da Bahia, para fazer sua segurança. Sabe-
se que sete dos assaltos coincidiram com suas temporadas em Paris. E no
último, o mais ousado, encapuzados apareceram com metralhadoras. Barra
pesada. Há quatro presos e as investigações prosseguem. Várias esculturas de
Krajcberg foram roubadas. Um desenho de Paul Klee, presente da filha do
artista, desapareceu. Assim como uma tela de Chagall, ou “um belíssimo
Chagall”, como só a vítima é capaz de atestar.

Um legado. O criminosos ainda cometeram a desumanidade de levar uma


medalha de ouro, derradeira lembrança da mãe de Krajcberg. Algo que o
acompanhou pela vida, dos fronts da guerra, no Exército polonês, às tardes de
sol, no litoral baiano. Ao contrário da mulher do navio, jamais havia se separado
da pequena joia.

“Minha mãe foi líder do Partido Comunista na Polônia. Era uma militante, por
isso estava sempre presa (fala e acha graça de si mesmo). Ela me inspirou a
participar politicamente, você sabe que fui da extrema esquerda. Quando era
criança, eu já gostava da natureza. Mais tarde, a natureza me deu força para
seguir vivendo. Junto com minha mãe, a natureza me fez entender que a arte
deve participar. Não pode ser de outro jeito. Hoje, quando vou a Paris vejo uma
crise cultural enorme. Nos Estados Unidos, ninguém pergunta mais que arte se
faz. Apenas quanto custa. Só vejo imitações do século 20, nada de novo, é
lamentável.”

No Japão. Que outro motivo, se não a avidez por dinheiro, levaria quadrilhas a
investirem contra um homem de 91 anos, cuja obra promove a elevação do
humano, sem entrar no mérito do valor estético, da arte enquanto arte?
Krajcberg não exagera ao imaginar que, se anunciasse a venda de suas obras,
provocaria uma pororoca entre marchands, galeristas, colecionadores. Em
pouquíssimo tempo esvaziariam o Sítio Natura. Levariam até as galinhas. Mas,
alto lá, isso não está nos planos. Não faz sentido. Não combina com a
simplicidade do alpendre da casa-ninho, com vista imediata para uma
mangueira e duas castanheiras, barulho do mar ao fundo. Não mudaria a vida
quase monástica, a dieta a base de peixe e chá, entremeada por leituras e
momentos de ver tevê, afinal, é preciso saber das notícias, “quer me dizer por
que aquela mulher matou o marido e o picou em pedaços?”.

No escritório do sítio, Krajcberg pede à secretária Marlene que nos mostre


imagens da cerimônia de um prêmio que recebeu em março, no Japão, o Enku
Grand Award, o mais importante do país. Deixou-o tão contente, ele que já foi
premiado nas bienais de São Paulo e Veneza. Mas foi, até hoje, o único
estrangeiro a receber o Enku. Imagens projetadas e lá está o velho e bom
Krajcberg com seu bonezinho, de paletó, mas sem gravata, discursando com seu
jeitão jovial. Recebeu também uma bela escultura como troféu, na cerimônia.
Guardou-a no apartamento em Paris, “ah, deixa lá”. Desapego total. Em breve
segue com seu bonezinho para João Pessoa, artista convidado para inaugurar
um centro cultural na cidade. Na abertura da exposição, no dia 26, confirma-se
a presença de Dilma Rousseff. Krajcberg reforça “a presidente vai chegar às 9 da

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manhã”, e assim os funcionários do sítio se desdobram para despachar, com
todo cuidado, a mostra - esculturas, relevos, muitas fotografias...

O Baixinho embrulha, desembrulha, embrulha de novo as imensas toras


krajcbergueanas, e se pensam que ele é do departamento de pacotes, enganam-
se. Baixinho é um ex-marceneiro que há 14 anos trabalha no ateliê em Nova
Viçosa. Cria do mestre, hoje trabalha sob sua orientação no desenvolvimento
das peças e ainda se encarrega de acondicioná-las quando saem de lá. Creiam,
não é fácil empacotar uma escultura de raízes retorcidas em braços que se
emaranham, em troncos cheios de erupções, em filetes ciliares que se movem ao
vento, tudo ali parece feito para complicar a vida do Baixinho. Mas ele consegue
vestir as peças com plástico-bolha e por fim enfiá-las em imensos engradados de
madeira. Baixinho sabe que “seu Krajcberg” não anda desenhando, prefere sair
para fotografar a natureza, afinal as flores mudam todos os dias, então todos os
dias há o que fotografar. Que em vez de pigmentar a madeira, hoje ele
descarrega imagens no computador. E que embora tenha abandonado as hábeis
manobras com o maçarico, como fazia no passado e como um dia ensinou
Baixinho, contenta-se agora em orientar as mãos dos assistentes. A verdade é
que o mestre não tem desenhado. Num momento a sós, arrisco a pergunta,
quase paralisada pela timidez, pelo respeito ou por ambos: por que parou de
desenhar, Krajcberg? “Eu fui humilhado... Não tenho vontade.”

O artista entre peças de porte longo, como as feitas a partir do caule da palmeira TIAGO
QUEIROZ/AE

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