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1 Palavras Iniciais
Este trabalho está centrado em resultado de pesquisa realizada com os Tembé do Rio
Guamá que estão localizados na Terra Indígena Alto Rio Guamá, mais exatamente, no
município de Santa Luzia do Pará (JUCÁ ACÁCIO, 2020). Os Tembé do Guamá estão
inseridos em multilinguismo e assentados em uma área historicamente plurilíngue; são,
portanto, exemplares de áreas geolinguísticas enfocadas pela linguística de contato:
[...] assumimos – de acordo com um conjunto de especialistas – que a Linguística de Contato é um ramo
de estudos que enfoca áreas geolinguísticas que atestam, no mesmo locus, línguas distintas umas das outras
e com “poucos” representantes (falantes) em cada uma delas – no presente ou no passado em que se deu
(ou que ainda se dá) a formação do espaço sociocomunicativo. Nestas áreas verifica-se, portanto, uma
situação de multilinguismo/ plurilinguismo e de hibridismo cultural que caracterizou vastas áreas do globo
em fins do século XV, estendendo-se até o século XIX, ou seja, um período de pelo menos quatro séculos
no qual se deu a formação de áreas geolinguísticas que são conhecidas como “Novo Mundo”. (OLIVEIRA,
ZANOLI & MÓDOLO, 2019: 308).
1
Para detalhes sobre multilinguismo, colonialismo e pós-colonialismo, ver Deumert (2011).
comunicacional. Na seção três, revisitamos o conceito de português afro-indígena (uma
variedade de português brasileiro rural) apresentado na literatura especializada, inserindo o
português falado pelos Tembé do Guamá na definição revisitada do termo e como parte do
conjunto de variedades de português afro-indígena. Na seção 4, dedicamo-nos, também
ancoradas em Jucá Acácio (2020), a apresentar alguns fenômenos linguísticos do português dos
Tembé do Guamá que, como advogamos, confirmam ser essa variedade rural de português do
tipo afro-indígena. A seção cinco é dedicada às palavras finais.
2 Os Tembé do Guamá
Na história dos povos indígenas do norte do Brasil, atestam-se duas grandes etnias que
falavam (falam) línguas bem próximas: os Guajajara e os Tembé, ligados a uma língua de
ancestralidade que esses povos denominam de tenetehar. Assim, os Guajajara (habitantes do
atual Maranhão) e os Tembé (habitantes do atual Pará) se auto identificam como povos
tenetehar (RICARDO, 1985: 182).2 A cisão desses povos se deu no século XX.
Em Jucá Acácio (2020), a partir de mapa etno-histórico da região nordeste do Pará −
Nimuendaju ([1944] 2017) −, apontam-se áreas históricas dos Tembé e dos Guajajara. A partir
do mapa de Nimuendaju (op. cit.), Jucá Acácio (2020: 29-32) atesta oito grupos tembé em
deslocamento na região do rio Guamá e do lado esquerdo do rio Gurupi (no atual Estado do
Pará). Esses grupos formariam mais tarde os atuais grupos tembé conhecidos como Tembé de
Tomé-açu, Tembé de Paragominas, Tembé do Gurupi e Tembé do Guamá.
[...] após a delimitação da Terra Indígena Alto Rio Guamá (TIARG) em 1945, a Fundação Nacional
do Índio (Funai) ordenou a transferência dos Tembé que residiam do lado esquerdo do rio Gurupi
para o rio Guamá; no entanto a maioria deles se recusou a migrar.
[...] A Terra Indígena Alto Rio Guamá, doravante TIARG, foi identificada em 1945, mas só foi
homologada em 1993 pelo Decreto s/nº de 4.10.1993. (JUCÁ ACÁCIO, 2020, p. 37).
2
Importante mencionar que na história da ocupação do Brasil, os Guajajara e os Tembé localizavam-se em uma
área geopolítica que, no século XVII, era conhecida como Província do Grão-Pará − ver Santiago (2012: 1),
Moretti (2014: 1). Os indígenas da nação tembé estão localizados na Província do Grão-Pará desde o século XVIII
– Nimuendaju ([1944] 2017: 121), Valadão ([1952] 2001: n.p). Para mais detalhamentos sobre a Província do
Grão-Pará, ver Jucá Acácio (2020: 26-28).
Fonte: Jucá Acácio (2020: 37; mapa 4); o título, modificado, é nosso.
Fonte: Jucá Acácio (2020: 39; mapa 5); o título, modificado, é nosso.
Como se observa na Figura 2, as seis aldeias em destaque estão localizadas bem próximas umas
das outras − para detalhes da área, ver Jucá Acácio (2020: 42-53).
2.2 Contexto sócio comunicacional dos indígenas do Pará, destacando-se os Tembé do Rio
Guamá
3
O termo “bilíngue” pode definir indivíduos que possuem duas línguas −Megale (2005: 02). No entanto, segundo
a autora (op. cit.): “[...] deve-se incluir entre estes, indivíduos com diferentes graus de proficiência nessas línguas
e que muitas vezes fazem uso de três, quatro ou mais línguas” (MEGALE, 2005: 03).
4
“Acerca de language shift – a ‘situação B’ de línguas de contato atestadas em Winford (2003: 208-264) –, trata-
se de um fenômeno do contato linguístico estritamente ligado à aquisição de uma segunda língua – daqui em
diante, SLA [second language aquisition; “aquisição de 2a. língua” (L2)]. No entanto, não se está falando em
processos de SLA envolvendo ‘indivíduos’, mas sim de SLA de um grupo “inteiro” que adquire uma nova língua:
uma target language (TL; língua alvo)”. (OLIVEIRA, ZANOLI & MÓDOLO, 2019, p. 309).
5
“Atualmente, nas aldeias Tembé do rio Guamá, não se atestam mais falantes fluentes da língua tembé-tenetehar.
Alguns poucos idosos ainda guardam um vocabulário restrito de palavras e expressões [...]. Ao longo das últimas
décadas, a língua portuguesa se tornou a primeira língua dos indígenas do rio Guamá que é, atualmente, a língua
de comunicação diária desse grupo em casa, na escola e também em eventos diversos dentro e fora da Terra
Indígena”. (JUCÁ ACÁCIO, 2020: 266).
Observe o excerto abaixo que resume uma das questões da pesquisa de Jucá Acácio
(2020), enfatizando o processo de language shift da língua tembé-tenetehar para o português
em meio à comunidade de fala tembé do Guamá:
Ao objetivar uma descrição de aspectos etnolinguísticos do povo Tembé do rio Guamá, da situação
sociocomunicativa da área, da educação escolar indígena desse grupo e da descrição e análise de
aspectos da variedade de português vernacular dos Tembé do Guamá, busquei contribuir para o
alargamento da compreensão de que dezenas de etnias indígenas, como os Tembé do rio Guamá, se
encontram no processo de “language shift” (ou já realizaram o processo). Espero que este estudo
possa contribuir ainda para o aumento de pesquisas centradas em variedades de português faladas
por grupos indígenas ligados ao contato linguístico com comunidades de matriz africana, as
chamadas quilombolas, e ligados ainda a outras línguas indígenas e ao português do entorno em que
se localizam. (JUCÁ ACÁCIO, 2020, p. 275; o grifo é nosso).
Do excerto acima, chamamos a atenção para o fato de o português falado pelos Tembé do
Guamá estar associado ao contato linguístico e ligado a:
6
Segundo Mattos & Oliveira (2020: 1), o termo “variedades” pode se referir a comunidades de fala de português
em geral, a comunidades de fala com relações genealógicas com o português ou baseadas em contato com o
português como um conjunto de línguas crioulas.
entanto, com a questão de “inteligibilidade mútua” ao nos referirmos a “variedades de
português” em um dado continuum.
Como se observa no Quadro 1, uma característica importante das variedades de fala de
português afro-indígena é que o português falado nessas áreas linguísticas é “português L1”, ou
seja, o português é língua materna. Chamamos a atenção para esta característica, pois, em
algumas áreas de fala afro-indígena, a comunidade pode ter até perdido completamente a
memória de sua língua de ancestralidade, como é o caso da comunidade indígena de Almofala-
Tremembé/CE (SERAINE, 1955; OLIVEIRA & PRAÇA, 2013). Outras comunidades, embora
se considerem remanescentes de povos de fala africana, não mencionam terem falado outra
língua a não ser o português, como é o caso dos quilombolas de Jurussaca/PA (CAMPOS,
2014). Em comunidades como a dos Tembé do Guamá, o português é língua 1 (L1); embora
um pequeno conjunto de pessoas mais idosas ainda fale o tembé-tenetehar, essa língua indígena
não é mais a língua de comunicação do povo Tembé do Guamá, que reside em Santa Luzia do
Pará. Segundo o Quadro 1, é importante ainda afirmar que o conceito de português afro-
indígena é uma caracterização sócio-histórico-linguística que não está atrelada a questões de
auto identificação das comunidades que arrolamos como exemplares desse tipo de variedade
rural de português. No caso dos Tembé do Guamá, por exemplo, sua auto identificação é
indígena.
Fonte: elaborado pelas autoras − adaptação de Mattos (2019: 33); o título é nosso.
Conforme Sodré (2015: 145), o contato de negros com indígenas observa-se na relação entre os
remanescentes quilombolas de Narcisa e os indígenas tembé do Guamá, em razão das relações entre
índios e quilombolas que foram sendo amenizadas com o passar do tempo, abrindo espaço (sic)
7
Em Portugal, a variedade de português falada em áreas urbanas de Lisboa e de Coimbra são referidas como
“português padrão” − Raposo (2013: 401–428).
8
No Brasil, como resultado do Projeto NURC (Norma Urbana Culta) que foi criado nos anos 70 (ver SILVA,
1996), surgem gramáticas que objetivam publicar acerca do “português culto brasileiro”. Uma das referências que
apontamos é Castilho (2015), texto que introduz o primeiro volume da republicação (revista) da Gramática do
Português Culto Falado no Brasil.
9
Para detalhes sobre o português como língua pluricêntrica, ver Baxter (1992).
10
Sobre macro ancestralidades indígenas e africanas, Jucá Acácio (2020: 107) baseia-se em Oliveira, Zanoli &
Módolo (2019: 319).
alianças matrimoniais estabelecidas entre os dois grupos étnicos. Segundo a autora (op. cit. p. 145)
(sic) são observadas uniões conjugais em várias gerações entre os negros de Narcisa e os índios da
etnia Tembé, localizados na Reserva Indígena Alto Rio Guamá [...] (JUCÁ ACÁCIO, 2020, p. 112).
Jucá Acácio (2020: 270), citando Luz (2013) que disserta sobre as aldeias Frasqueira e
Itaputyre da TIARG, enfatiza o forte traço de miscigenação afro-indígena dos Tembé do
Guamá:
Os índios das aldeias Frasqueira e Itaputyre apresentam uma aparência física muito peculiar, cujas
características denotam o processo de miscigenação que caracterizou a sociedade brasileira. O traço mais
marcante, no entanto, parece ser de indivíduos de descendência afro-indígena, devido os intensos contatos
que estes tiveram com as populações de negros do Maranhão, que há algumas décadas passadas contraíram
matrimônio com os índios tembé, resultando numa população com características multiétnicas, apesar de
se reconhecerem como descendentes das tradições e da ancestralidade do povo tembé-tenetehara. (LUZ,
2013: 48; o grifo é nosso.)
Segundo relatos da auxiliar linguística ATB, quanto às festas de sincretismo religioso, atestam-se nas
aldeias do Guamá festas que comprovam sincretismo religioso, a exemplo das festas: (i) São Pedro que
acontece no mês de setembro na aldeia São Pedro; ii) o Círio de Nossa Senhora de Nazaré que ocorre no
mês de novembro na aldeia Sede; iii) Procissão da Via Sacra que acontece na época da Semana Santa,
momento em que são realizadas rezas nas casas dos indígenas; (iv) Festa de São Raimundo Nonato (santo
preto cultuado no catolicismo). Essa última também é encontrada no quilombo de Narcisa. (JUCÁ
ACÁCIO, 2020, p. 271).
Essas festas de sincretismo religioso atestadas na área dos Tembé do Guamá possivelmente se
devem aos intensos contatos que os Tembé tiveram com populações negras ainda na atual área
do Maranhão quando, junto aos Guajajara, formavam (antes de sua fusão como dois povos no
século XX) uma única nação (Tenetehar). Cunha & Araujo (2011) dissertam acerca das
comunidades quilombolas no Maranhão e sua relação sincrética com o catolicismo:
Ao contrário dos grupos cujo primeiro contacto com o cristianismo ocorreu através de missões, como os
grupos indígenas brasileiros, as comunidades quilombolas possuem uma relação com o catolicismo que,
muitas vezes, teve início em África (se pensarmos nos chamados Bantos que travam contacto com o
catolicismo português por volta do século xv, antes mesmo da “descoberta” do Brasil, e posterior tráfico
escravista para o Novo Mundo [...] o que faz com que o modo como reelaboram as práticas cristãs seja
específico. (CUNHA & ARAUJO, 2011, p. 330).
“[...] Desconhecem êles (sic) por completo o idioma de seus antepassados; falam e se expressam em todos
os atos de sua vida como os demais caboclos da região, e as únicas sobrevivências linguísticas que acusam
se encontram nos textos poéticos-musicais do seu folguedo [...]. (SERAINE,1955: 86).
Para Praça, Araujo & Oliveira (2013), as línguas cerimoniais são variedades de “línguas
híbridas” que podem apresentar palavras do português quinhentista, palavras do latim, palavras
do português moderno, palavras de línguas africanas, palavras de línguas indígenas e ainda
serem influenciadas pelo ambiente ecolinguístico da comunidade.
Quanto às linguagens cerimoniais entre os Tembé do Guamá, Jucá Acácio (2020: 271-
272) apresenta uma das mais famosas tradições desse povo: um rito de passagem conhecido
como “wyra’u-how”. Esse rito de passagem se divide em um conjunto de outros, cujo objetivo
é atestar a passagem da infância para a puberdade entre as meninas e meninos das aldeias.13 Em
meios à ritualística que compõe o “wyra’u-how”, atesta-se a língua cerimonial como se observa
no relato de Miranda & Rodrigues (2015), centrado em pesquisa na aldeia Itaputyr na TIARG:
A música é tocada e cantada por um grupo de homens adultos coordenados pelo Pajé juntamente com
o cacique da aldeia e com a participação de outros caciques de diversas aldeias na condição de convidados.
Sentam-se na Ramada formando uma coluna com as mulheres posicionadas atrás, cujo canto se caracteriza
como uma segunda voz. Na mitologia Tenetehara a música ritual resultou de uma troca com o mundo
sobrenatural. (MIRANDA & RODRIGUES, 2015: 40306).
11
“Ritmo pode ser descrito como um movimento coordenado, uma repetição de intervalos musicais regulares ou
irregulares, fortes ou fracos, longos ou breves, presentes na composição musical”. (SANTIAGO, 2021).
12
Para maiores detalhes sobre os Tremembé de Almofala, CE, ver Nascimento (2001).
13
Jucá Acácio (2020: 272) afirma, com relação a um dos elementos ritualísticos da festa conhecido como “Tocaia”
(período em que os adolescentes ficam reclusos por alguns dias), que essa prática se assemelha ao ritual de reclusão
para iniciação nas religiões de matriz africana como no candomblé.
província colonial: a do Grão Pará. Assim, o trabalho de Oliveira, E. (2015) evidencia que
atentar para os “tipos” de festas realizados por uma dada comunidade pode nos permitir traçar
o “ecossistema cultural” de uma determinada área, que pode estar difundido, inclusive, em áreas
geográficas que não estão contidas em um único Estado demarcado geopoliticamente. Esse é o
caso da manifestação cultural chamada de “torém/toré” que marca as relações interétnicas de
indígenas do nordeste brasileiro − De Oliveira (1998: 35-64); Messender (2017: 72); esse é
ainda o caso da festa “wyra’u-how” entre os Tenetehar.
De acordo com Ives-Felix, Nakayama & Barros (2018: 7), consideramos que a festa e a
língua cerimonial que integram os ritos do “wyra’u-how” são laborações etnolinguísticas
vibrantes dos Tenetehar, que englobam não apenas os Tembé do Rio Guamá e os Tembé do
Gurupi, mas também os Guajajara. Segundo os autores (op. cit.):
[...] as fronteiras Tentehar estão bem abertas, o trânsito de pessoas e de saberes é constante, e o Rito de
Iniciação Feminina Tentehar surge ressignificado, com a inclusão de novos elementos de acordo com o
contexto socioeconômico e histórico, a qual o grupo estar (sic) inserido. Consideramos que embora o povo
Tentehar e sua cultura se situem em um contexto fronteiriço, fluído e hibridizado, as linhas demarcatórias
entre eles e os outros estão bem demarcadas e as identidades social e cultural mantidas com certa autonomia
[...] (IVES-FELIX, NAKAYAMA & BARROS (2018: 7).
Jucá Acácio (2020, p. 267), ao propor que a variedade de português falada pelos Tembé
do Guamá esteja inserida no tipo de contato linguístico chamado de “language shift”, advoga
que essa prestigiosa minoria se encontra em um estágio rápido de mudança de língua (do tembé-
tenetehar para o português). Segundo a autora (op. cit.), atesta-se interferência moderada da
língua tembé-tenetehar (a língua de substrato) nessa variedade de português. Jucá Acácio
(2020) atesta ainda outras interferências no português dos Tembé do Guamá.
Sobre o conceito de “interferência”, apresentamos excerto de um texto clássico do contato
linguístico:
Nesta seção, selecionamos alguns dos fenômenos linguísticos do português dos Tembé
do Guamá descritos e analisados por Jucá Acácio (2020, p. 197-265). Nosso objetivo é enfatizar
o contato linguístico nessa área de fala de português, corroborando o português falado pelos
Tembé do Guamá residentes em Santa Luzia do Pará, como um tipo de português rural afro-
14“The term interference implies the rearrangement of pattern that result from the introduction of foreign elements
into the more highly structured domains of language, such as the bulk of the phonemic system, a large part of
morphology and syntax, and some areas of the vocabulary […]”. Weinreich ([1953] 1968: 1).
indígena; evidenciamos, portanto: (i) o contato da língua portuguesa com a língua tenetehar,
destacando um tipo de interferência da língua tenetehar atestado no sistema fonológico do
português dos Tembé do Guamá; (ii) o contato do povo Tembé com escravizados africanos,
apresentando interferência lexical da língua kikongo no português dos Tembé do Guamá; (iii)
o contato desse grupo com o português, possivelmente desde o Brasil colônia, ressaltando
palavras do português arcaico na variedade; (iv) apresentamos ainda a estreita ligação do
português dessa área indígena com o português rural do entorno.
Jucá Acácio (2020, p. 227, 228) apresenta possíveis casos de interferência da língua
tembé-tenetehar no português dos Tembé do Guamá; no entanto, nesta subseção, evidenciamos
a interferência do tembé-tenetehar em um padrão silábico do português afro-indígena dos
Tembé do Guamá.
Jucá Acácio (2020, p. 231-232) atesta uma restrição do padrão silábico CVC15 quando a
última consoante deste padrão é preenchida pelo fonema rótico /x/. A autora (op. cit.) observa
que o rótico na posição silábica de coda no padrão CVC é pronunciado pelo fonema /x/ em
variedades de português faladas no Pará; é este fonema, nessa posição específica do padrão
silábico CVC, que os falantes de português Tembé do Guamá evitam pronunciar por
interferência do quadro fonológico do tembé-tenetehar nessa variedade de português. Em Jucá
Acácio (2020, p. 2010-2011), observa-se que o sistema fonológico da língua tembé-tenetehar
não atesta o fonema /x/.16
No excerto abaixo, exemplifica-se a restrição do padrão silábico CVC no português
Tembé do Guamá quando a última consoante do padrão é o fonema rótico /x/; observe que a
restrição se dá em todas as posições desse padrão silábico na palavra:
• Restrição do padrão CVC com rótico /x/ na coda em posição inicial da palavra:
Ex.: (1) protuguês /pɾotugueꭍ/ < português [pox.tu.ˈgues]
• Restrição do padrão CVC com rótico /x/ na coda em posição medial na palavra como em:
Ex.: (2) embagando /eNbagaNdu/ < embargando [ẽ.bax.gã.du]
• Restrição do padrão CVC com rótico /x/ na coda em posição final de palavra como em:
Ex.: (3) entende /iNteNde/ < entender [ĩ.tẽ.dex]
(JUCÁ ACÁCIO, 2020, p. 232, dados renumerados; o negrito é nosso)
Observa-se que, no exemplo (1), o rótico /x/ na posição final da primeira sílaba CVC da
palavra “português” [pox.tu.ˈgues] não é pronunciado pelos falantes do Tembé do Guamá que
fazem uma transposição desse rótico para dentro da mesma sílaba; esse fenômeno de
transposição de um dado som em uma mesma sílaba é conhecido como “metátese”:17 protuguês
/pɾotugueꭍ/. Da mesma forma, no exemplo (2), o rótico /x/ na posição final da sílaba medial
15
C(onsoante)V(ogal)C(onsoante).
16
O quadro fonológico das consoantes e vogais do tembé-tenetehar apresentado em Jucá Acácio (2020: 210-211)
é baseado em Duarte (2007: 26).
17
Ver Jucá Acácio (2020: 231, nota 73).
CVC da palavra “embargando” [ẽ.bax.gã.du] também não é pronunciado. Em (2), os falantes
optam por apagar o fonema rótico /x/, pronunciando a palavra como: “embagando”
/eNbagaNdu/; ocorre uma mudança da estrutura silábica nesse caso: de sílaba CVC para CV.
O rótico /x/ em posição final de sílaba CVC em final de palavra também não é pronunciado
como se observa no vocábulo “entender” [ĩ.tẽ.dex] em (3) que é pronunciado como: “entende”
/iNteNde/; nesse exemplo também se atesta uma mudança de estrutura silábica CVC para CV.
A descrição e análise da restrição do padrão silábico CVC no português Tembé do Guamá
quando a última consoante do padrão é o fonema rótico /x/ (observada por JUCÁ ACÁCIO,
2020) é ancorada por um conjunto de palavras pronunciadas por diferentes auxiliares
linguísticos moradores das seis aldeias pesquisadas da TIARG, o que perfaz 100% da área
geolinguística pesquisada.18
Ressaltamos que a restrição apontada no excerto acima no português dos Tembé do
Guamá não está diretamente ligada ao padrão silábico CVC da língua tembé-tenetehar − nessa
língua, esse padrão silábico é atestado − nem a esse mesmo padrão no português e na variedade
de português falada pelos Tembé do Guamá, que também atestam o padrão CVC. Essa restrição
no sistema fonológico dessa variedade de português afro-indígena se deve ao fonema rótico /x/
na posição de coda do padrão CVC por interferência da língua tembé-tenetehar que não atesta
o rótico /x/. (JUCÁ ACÁCIO, 2020, p. 233).
4.2. “Interferência” da língua africana kikongo na área lexical do português dos Tembé
do Guamá
Como já apontado na subseção (3.2), o contato dos Tembé com escravizados africanos
e seus descendentes já ocorria na área do Maranhão e antes da separação dos Tenetehar em dois
povos: os Guajajara e os Tembé. A área do atual Maranhão − que no século XVII pertencia a
uma área geopolítica denominada de Grão-Pará (ver nota 2) − é uma área de contato afro-
indígena como se atesta em vários textos (ver MIRANDA, 2018, p. 156, entre outros).
Como em outras áreas brasileiras, é difícil se apontar com certeza a proveniência dos
escravizados exportados para o Brasil e, no caso específico, para o “Grão-Pará”; no entanto,
segundo Bonvini (2008a: 30), a área austral africana limitada à costa oeste da África19 e só mais
tarde estendendo-se à costa leste (representada pelo atual Moçambique), representa as línguas
mais faladas no Brasil escravocrata e pelo maior número de escravizados. Ainda, segundo
Bonvini (2008a: 30-31), essa área é conhecida como a área das línguas do subgrupo banto que,
embora numéricas, são línguas tipologicamente homogêneas. Entre as línguas bantas trazidas
para o Brasil, e para o Grão-Pará, está o kikongo, uma língua do grupo banto congo, H. 10
18
Jucá Acácio (2020), dissertando sobre o português falado pelos Tembé do Guamá, que chama de PVTG
(português vernacular dos Tembés do Guamá), afirma o seguinte: “[...] os auxiliares linguísticos que produziram
os exemplos [...] atestam a faixa etária dos jovens (2 do sexo masculino e 5 do sexo feminino), adultos (3 do sexo
masculino e 1 do sexo feminino) e dos (sic) 2 idosas (do sexo feminino) o que corrobora ainda mais a hipótese de
que há uma restrição do padrão silábico CVC no PVTG quando a coda nesse padrão é o fonema rótico /x/.” (JUCÁ
ACÁCIO, 2020: 234).
19
A área austral africana limitada à costa oeste africana é representada atualmente pelos países: Congo, República
Democrática do Congo e Angola − Bonvini (2008a: 30).
(BONVINI, 2008a, p. 30). Jucá Acácio (2020) atesta 4 palavras do kikongo no português falado
pelos Tembé do Guamá que apontamos no Quadro 3 abaixo:
Ex.: (4) *MPTB: “Essa uma tá jita, pega outra pra ela”.
Ex.: (5) *RCTB: “Essa tua roupa tá jikita”.
Ex.: (6) *GJRTB: “Sai do sol mais essa cangula, menino”.
Ex.: (7) *RSTB: “Naquele tempo, os kupê num entravo nas nossas terra”.
Fonte: elaborado pelas autoras; adaptado de Jucá Acácio (2020: 253; quadro 19, exemplos
renumerados).
Jucá Acácio (2020: 255), baseando-se em Schuveter (2010: n.p), afirma que jita (4) em
kikongo significa “reverenciar”, “honrar”. Jucá Acácio (op cit) informa, no entanto, que o
significado de jita em português dos Tembé do Guamá é distinto do significado em kikongo,
pois refere-se a uma adjetivação: “pequena”, “miúda”.
Quanto à palavra jikita (5), seguindo também Schuveter (2010: n.p), Jucá Acácio (2020:
255) aponta o significado dessa palavra em kikongo: “fazer as tranças”, afirmando que, em
português dos Tembé do Guamá, jikita significa “justa”, “apertada”; assim, o significado de
jikita no português dos Tembé do Guamá tem relação com o campo semântico de jikita em
kikongo: “trança” relaciona-se a “apertada”.
O termo cangula (6), dicionarizado como kangula em kikongo (SCHUVETER, 2010:
n.p), significa “desfazer”, “desprender” nessa língua angolana; em português dos Tembé do
Guamá, cangula significa “pipa” (“papagaio”). Nota-se, portanto, que o significado de cangula
em português dos Tembé do Guamá também se aproxima do significado da palavra em kikongo:
“pipa” liga-se ao campo semântico de “desprender” (o significado de cangula em kikongo).
A palavra kupê (7) está dicionarizada em kikongo − segundo Jucá Acácio (op cit), que
segue Schuveter (2010: n.p) − como “calção”, “calça curta”; em português dos Tembé do
Guamá, kupê significa “não indígena” ou “pessoa branca”. Assim o significado de kupê no
português dos Tembé do Guamá pode estar ligado ao do kikongo pelo fato dos indígenas
poderem ter associado a vestimenta “calção” a pessoas não indígenas. Essa vestimenta
possivelmente não era usada pelos indígenas à época que a palavra kupê passou a ser usada
pelos Tembé. Quanto a kupê é importante ainda ressaltar que essa palavra: “[...] extrapola a
variedade de português falada pelos Tembé do rio Guamá [...].” (JUCÁ ACÁCIO, 2020, p.
254). Segundo a pesquisadora (op cit), kupê é uma palavra falada entre outras etnias indígenas.
Na variedade de português falada pelo povo Gavião Parkatejê e Kyikatejê, o termo kupê é
pronunciado como kupẽ, também com o significado de ‘não indígena’ ou ‘branco.’” (JUCÁ
ACÁCIO, op cit).
Os termos em kikongo atestados no português dos Tembé do Guamá (Quadro 3) foram
identificados no corpus da pesquisa de Mara Jucá Acácio em gravações de fala produzidas por
indígenas pertencentes a duas das seis aldeias representadas na investigação. Segundo Jucá
Acácio (2020: 254): “A faixa etária dos falantes que produziram esses dados insere-se entre
dois jovens (do sexo feminino) e dois idosos (1 do sexo masculino e 1 do sexo feminino).”
Com relação aos vocábulos da língua kikongo atestados no português dos Tembé do
Guamá e descritos acima, achamos pertinentes destacar as palavras de Bonvini (2008b):
[...] no português falado hoje no Brasil, os vocábulos emprestados das línguas
africanas, pelo menos aqueles cujo empréstimo é mais antigo, foram submetidos a um
profundo remanejamento tanto no plano formal quanto no plano semântico. [...]
No plano semântico, a configuração semântica (semema) do empréstimo foi
submetida conjuntamente a dois fenômenos somente na aparência contraditórios, pois
na realidade são complementares: de um lado, certa perda em relação à semântica de
partida, de outro, uma reestruturação em profundidade, que geralmente chegou a um
enriquecimento real, tanto no nível do próprio semema quanto no das formas
derivadas. O que é atestado hoje no Brasil não é mais a realidade semântica africana
de partida, mas uma semântica nova, específica ao Brasil, e por isso “brasileira”.
Trata-se, além de tudo, de uma semântica evolutiva e inovadora ao mesmo tempo.
(BONVINI, 2008b, p. 142-143).
Em Jucá Acácio (2020), não se apresenta uma discussão maior acerca das quatro
palavras da língua kikongo atestadas no português dos Tembé do Guamá (Quadro 3) e esses
vocábulos merecem, de fato, uma maior investigação. Chamamos a atenção do leitor, ao final
desta subseção, para uma questão: os vocábulos do kikongo apresentados no Quadro 3 como
parte do vocabulário dos Tembé do Guamá não são atestados em levantamento de vocábulos
de origem africana no português brasileiro (PB) registrado por estudiosos dos séculos XIX e
XX; Alkmim & Petter (2008) apresentam um panorama do registro desses vocábulos. As
autoras (op cit) apresentam ainda um corpus lexical que foi organizado por elas a partir de uma
pesquisa do uso atual dos termos de origem africana no PB com fins de comparação com os
registros anteriores de vários estudiosos. O que nos intriga neste trabalho, centradas em Alkmim
& Petter (op cit), é que as quatro palavras da língua kikongo atestadas no português dos Tembé
do Guamá (Quadro 3) não estão arroladas no levantamento de palavras africanas no PB
realizado por estudiosos dos séculos XIX e XX; tampouco essas quatro palavras da língua
kikongo atestadas no português dos Tembé do Guamá estão inseridas no corpus lexical do uso
atual dos termos de origem africana no PB, apresentados por Alkmim & Petter (2008). Assim,
essas palavras africanas (Quadro 3) presentes no português dos Tembé do Guamá precisam de
maior investigação.
A história dos povos indígenas brasileiros − logo, a história dos Tembé do Guamá − está
ligada a contatos linguísticos com distintas línguas indígenas e africanas e também com línguas
europeias; a língua portuguesa é parte desse contexto plurilinguístico desde o período da
colonização. Jucá Acácio (2020, p. 251-252) apresenta interferência lexical do português
arcaico no português falado pelos Tembé do Guamá como se observa no Quadro a seguir:
Quadro 4: interferência lexical do português arcaico no português falado pelos Tembé do Guamá
Ex.: (8) *MPTB: “Eles num acredita mais na erva, dá uma dor, corre pá butica (botica)
Ex.: (9) *RSTB: “A gente ficou só bispando pra vê se a onça já tinha ido”.
Ex.: (10) *RSTB: “Perto do igarapé havia uma fronquera (tronqueira) grande.
Fonte: elaborado pelas autoras; adaptado de Jucá Acácio (2020: 251; quadro 18, dados renumerados).
Jucá Acácio (2020, p. 251) − que se apoia em Nascentes [1966] (2011) − descreve acerca dos
termos do português arcaico apresentados no Quadro 4. A palavra butica (botica) (8) é um
termo do português antigo, atestado entre alguns idosos Tembé Guamá com o significado de
“farmácia”. Bispando (bispar) (9) está relacionado ao temo “bispo”: aquele que vigia (suas
ovelhas). A palavra fronquera (tronqueira) (10) está dicionarizada como “passagem estreita na
estrada ordinária onde ficam os madeiros laterais de uma cancela”. Os Tembé do Guamá usam
o termo para se referir a uma reentrância de um tronco de árvore muito grande − como a da
árvore amazônica samaumeira − que é usada como proteção do sol e da chuva.20 (JUCÁ
ACÁCIO, 2020, p. 251-252).
Em Jucá Acácio (2020), não se apresenta uma discussão elaborada sobre os termos
destacados no Quadro 4. Como apontamos na subseção acima, pensamos ser necessário que se
amplie o estudo sobre essas palavras; seria importante, por exemplo, uma pesquisa maior a fim
de melhor se especificar o que a pesquisadora chama de “português arcaico”.
No processo de ocupação do Alto Rio Guamá, os Tembé atestam ligações com colonos
nordestinos, com caboclos paraenses, com quilombolas que saíram do Maranhão e também se
estabeleceram na região do Alto Rio Guamá. Assim, Jucá Acácio (2020, p. 207, 210, 26, 217,
255), ao descrever e analisar fenômenos linguísticos do português falado pelos Tembé do
Guamá, aponta interferências de variedades de português do entorno, além de ressaltar
fenômenos que são bem atestados em variedades diversas de português faladas no Brasil. Nesta
subseção, no entanto, chamamos a atenção para dois fenômenos linguísticos evidenciados em
áreas do entorno do português falado pelos Tembé do Guamá: (i) o alteamento de vogais e (ii)
as proformas pronominais esse um/ essa uma/ aquela uma.
• Alteamento de vogais
(i) Elevação da vogal média-alta /o/ que, em posição pretônica, se realiza como vogal alta
/u/, em ambiente nasal, como no exemplo:
(ii) Elevação da vogal média-alta /o/ que, em posição de sílaba tônica, se realiza como vogal
alta /u/, em ambiente nasal, como nos exemplos:
20
Ver imagem de uma samaumeira em Jucá Acácio (2020, p. 251).
paraense; no caso de vogais pretônicas, como exemplificado em (11), a elevação pode ou não
se dar nas variedades paraenses.
Assim, segundo Campos & Do Valle (2018), em muitas ocorrências, essas proformas
pronominais são itens lexicais livres, cuja referência ou antecedente não é local “[...] mas ora
apresentam propriedades pragmáticas que apontam para o discurso, fora do escopo da sentença;
ora são elementos dêiticos cuja referência remete à situação a qual o enunciado é produzido.”
(CAMPOS; DO VALLE, 2018, p. 252). Os autores apresentam alguns exemplos dessas
proformas como itens lexicais livres atestados na comunidade quilombola de Jurussaca:
(14) a. DOC. Tem uma senhora que é mais velha que vocês, a Dona Vicência, né?
b. INF. Ela mora lá em Tracuateua, mas eu acho que essa uma é que num conta mais nada. . . porque
ela tá muito velhinha já...
(15) a. DOC. Essa casa é do projeto do INCRA? Tem uma que tá bem bonita, atrás da casa do Genilson...
b. INF . ...pois olha... aquela uma, eles fizeru esta uma, não... ele agarrou mandou aumentar
tudinho.... [...]
(16) ... essas casa são das primeira, o valor de sete mil que veio... essas uma agora que nós tamo construindo
agora é o valor de quinze mil o projeto dela.
(CAMPOS; DO VALLE, 2018, p. 250).
Campos & Do Valle (2018) apresentam também exemplos que evidenciam que as
proformas citadas, apreendidas na Jurussaca/PA, atestam propriedades correfenciais. Abaixo,
destacamos um deles:
(19) Nós conseguimo (o documento) porque a gente descobrimu que nós tinha sangue de quilombo, porque
as três pessoa que se colocaru aqui (...). Foi [dos pessoal]i que chegaru no Maranhão, de lá [esses um]i
partiru pra cá. (CAMPOS; DO VALLE, 2018, p. 252).
21
“Tais expressões têm as mesmas funções das proformas pronominais dêiticas e/ou referenciais de terceira
pessoa. Assim, pautamos nosso estudo em Déchaine & Wiltchko (2002) que propõem uma tipologia bastante
abrangente para as proformas pronominais, a partir de três diferentes ‘comportamentos’ sintáticos: pro-DP, pro-
FP e pro-NP. As autoras defendem que pro-DPs são sempre argumentais, pro-FPs são argumentais e/ou
predicacionais e pro-NPs funcionam unicamente como predicados. Desse modo, as proformas que ocorrem na
variedade de Jurussaca parecem, também, apresentar uma simetria sintática com a proforma one, do inglês,
analisada por Déchaine & Wiltchko (2002)”. (CAMPOS; DO VALLE, 2018, p. 239-240).
No tocante ao quadro pronominal do português brasileiro, as proformas mencionadas
trazem também um aspecto interessante, pois, ao mesmo tempo que o PB perde o
clítico pronominal de 3ª pessoa (o, a), a variedade de Jurussaca parece criar proformas
com características sintáticas similares (às clíticas de 3ª ps.) e enriquecem a coluna
Forma Oblíqua do quadro gramatical, fazendo um paralelo com a tese da inexistência
de clítico de terceira pessoa na gramática do PB (cf. Galves 2001: 126). Vale ressaltar
que o estudo aqui apresentado ainda é bastante incipiente e carece de um maior
aprofundamento que possa lançar mais luzes sobre o comportamento pragmático e
morfossintático dessas proformas pronominais presentes nessa variedade de
português. (CAMPOS; DO VALLE, 2018, p. 252).
Jucá Acácio (2020, p. 245) apresenta dados do português falado pelos Tembé do Guamá
em que atesta as proformas pronominais descritas e analisadas por Campos & Do Vale (2018)
como itens lexicais livres. A seguir, apresentamos exemplos:
Ex.: (14) *RRSTB: “Aquela uma é minha filha”. “Ela/aquela é minha filha”.
Ex.: (15) *NSSTB: “Essa uma ficou de dar um refrigerante”. “Ela/essa ficou de dar um refrigerante”.
Jucá Acácio (2020), não apresenta exemplos dessas proformas pronominais com propriedades
correferênciais no português falado pelos Tembé do Guamá. No entanto, maiores investigações
em dados do português falado nessa área afro-indígena podem evidenciar alguns exemplos.
Assim, ao final desta seção, ressaltamos que o português falado pelos Tembé do Guamá
residentes em Santa Luzia do Pará é resultado de contato linguístico; fenômenos linguísticos
atestados nessa variedade de português nos auxiliaram a corroborar que esta área de fala atesta
um tipo de português rural afro-indígena, evidenciado pelo:
5. Palavras Finais
Penso que a continuidade de estudos sob esse enfoque pode auxiliar a melhor se compreender que os povos
indígenas que mudaram (ou estão mudando) seus falares de uma língua indígena para o português não
perdem de forma alguma sua auto-identidade indígena. Pelo contrário [...] povos como os Tembé do rio
Guamá estão cada vez mais conscientes de sua herança cultural indígena e isso se atesta pelas ações que
vêm empreendendo em prol de recuperarem suas tradições e até mesmo sua língua de ancestralidade.
Falarem português “tembé” é outra grande marca de sua pujança em meio a outras prestigiosas minorias
indígenas do Pará, da Amazônia e do Brasil. (JUCÁ ACÁCIO, 2020, p. 275).
Assim, nas seções acima, ao corroborarmos que o português falado pelos Tembé do Guamá
integre o conjunto de falares de português rural do Brasil chamado de afro-indígena, o fizemos
na certeza de que essa variedade de português é hoje parte de um rico ecossistema cultural que
pode ser chamado de “ecossistema cultural tenetehar”.
6. Referências Bibliográficas
ALKMIN, Tania & PETTER, Margarida. 2008. Palavras da África no Brasil de ontem e de
hoje. In: FIORIN, José Luiz; PETTER, Margarida M. T. (Orgs.). África no Brasil: a
formação da língua portuguesa. São Paulo: Contexto, p, 145-178.
BAXTER, Alan.1992. Portuguese as a pluricentric language. In: CLYNE, Michael (Ed.).
Pluricentric languages: differing norms in different nations. Belin/ New York: Mouton de
Gruyten, p. 11-23.
BONVINI, Emilio. 2008a. Línguas africanas e o português falado no Brasil. In: FIORIN, José
Luiz; PETTER, Margarida M. T. (Orgs.). África no Brasil: a formação da língua
portuguesa. São Paulo: Contexto, p, 15-62.
BONVINI, Emilio. 2008b. Os vocábulos de origem africana na constituição do português
falado no Brasil. In: FIORIN, José Luiz; PETTER, Margarida M. T. (Orgs.). África no
Brasil: a formação da língua portuguesa. São Paulo: Contexto, p, 101-144.
CALVET, Louis-Jean. 2006. Estilo oral. In Queiroz, S. (Org.). A Tradição Oral. Belo
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CUNHA, Ana Stela de A.; ARAUJO, Paulo Jeferson P. de. 2011. Resizing Congo: Iberian
frontiers of devotion. Anál. Social, 199, p. 329-346. Disponível em
<http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0003-
25732011000200007&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 10 fev. 2021.
LUZ, Helder C. 2013. Desenvolvimento Sustentável na Amazônia: uma análise nas aldeias
frasqueira e Itaputyre da Reserva Indígena Tembé do Alto Rio Guamá (RIARG).
Dissertação (Mestrado). Universidade Federal do Pará.
MATTOS, Ana Paulla B. 2019. Kalunga: An Afro-Brazilian Portuguese Variety. Tese
(Doutorado em Linguística). Aarhus University.
MATTOS, Ana Paulla B. & OLIVEIRA, Márcia S. D. 2020. Kalunga in the lusophone context:
A phylogenetic study. Journal of Portuguese Linguistics, 19(1), p. 1-24.
Mara Sílvia Jucá Acácio possui graduação em Letras pela Universidade Federal do Pará,
Mestrado em Linguística pela Universidade Federal do Pará e Doutorado pela Universidade de
São Paulo na área de filologia e língua portuguesa. É professora da Universidade do Estado do
Pará (UEPA) e também pesquisadora do CNPq pelo Grupo de Estudos Indígena na Amazônia
(GEIA), subgrupo de Linguagens Indígenas na Amazônia Ocidental (Programa Saberes
Indígenas na Escola).
Marcia Santos Duarte de Oliveira possui graduação em Letras pela Universidade de
Vassouras (FUSVE/RJ), Mestrado em Linguística pela Universidade de Brasília (UnB),
Doutorado em Linguística pela Universidade de São Paulo (USP), pós-doutorado na
Universidade de Coimbra (Portugal). É professora e pesquisadora da Universidade de São Paulo
e também pesquisadora do CNPq (Bolsa de Produtividade de Pesquisa; Modalidade PQ- Nível
2). É coordenadora do “Projeto Libolo” em conjunto com Carlos Figueiredo (Univ. de Macau).