Você está na página 1de 216

O SOM DO FILME:

UMA INTRODUÇÃO
Reitor: Prof. Anísio Brasileiro de Freitas Dourado
Vice-Reitor: Prof. Sílvio Romero de Barros Marques
Pró-Reitor de Extensão: Prof. Edilson Fernandes de Souza
Diretora de Extensão Acadêmica: Maria Christina de Medeiros Nunes
Diretora de Extensão Cultural: Prof. Marcos Galindo
Coordenador de Gestão da Extensão: Demócrito José Rodrigues da Silva
Coordenador de Gestão da Informação: Prof. Wellington Pinheiro dos Santos
Coordenadora de Gestão Organizacional: Eliane Aguiar
Coordenadora de Gestão da Produção Multimídia e Audiovisual: Jowania Rosas de Melo

Diagramação:
Mannu Braga

Capa:
Bureau de Design

Revisão técnica:
João Baptista Godoy de Souza

Revisão:
Carmem Lúcia Batista
O SOM DO FILME:
UMA INTRODUÇÃO
Rodrigo Carreiro (organização)
Débora Opolski
João Baptista Godoy de Souza

Recife, 2014
Catalogação na fonte:
Bibliotecária Joselly de Barros Gonçalves, CRB4-1748

S693 O som do filme : uma introdução / organização : Rodrigo Carreiro ;


Débora Opolski, João Baptista Godoy de Souza ; revisão :
Carmem Lúcia Batista. – Recife : Editora UFPE, 2014.
215 p. : il., figs.

Inclui referências.
ISBN (broch.)

1. Cinema – Produção e direção. 2. Cinema – Estética. 3.


Cinema sonoro. 4. Som – Registro e reprodução. I. Carreiro,
Rodrigo (Org.). II. Opolski, Débora. III. Souza, João Baptista
Godoy de.

791.436 CDD (23.ed.) UFPE (BC2014-142)


AGRADECIMENTOS

Aos pesquisadores que têm participado, desde 2009, do seminário


da SOCINE dedicado aos estudos do som no audiovisual. Boa parte
do conhecimento reunido neste volume foi examinada e refletida no
âmbito desse espaço, fundamental para a expansão e a consolidação
da pesquisa sobre o som no audiovisual.

Aos docentes do Programa de Pós-Graduação em Comunicação


(PPGCOM) da UFPE, pelo incentivo e pelas ideias inspiradoras.

Aos professores do Departamento de Comunicação Social da UFPE


e do Bacharelado em Cinema e Audiovisual da UFPE, pelas discus-
sões saudáveis e divertidas nas quais muitas ideias interessantes que
aparecem no livro surgiram e se desenvolveram.

Aos alunos do Bacharelado em Cinema e Audiovisual da UFPE, com


quem muitos dos tópicos cobertos pelo conteúdo deste livro foram
discutidos e testados exaustivamente, em reflexões acadêmicas de
excelente nível.

Às famílias e amigos dos autores.


SUMÁRIO

Introdução 9

PARTE I – História e teoria do som no cinema 15


(Rodrigo Carreiro)

Capítulo 1 – Notas sobre a estética sonora do filme 16


Capítulo 2 – A história do som dos filmes 32
Capítulo 3 – Principais teorias de som no cinema 81

PARTE II – O som na produção cinematográfica 113


(João Baptista Godoy de Souza)

Capítulo 4 – A prática de captação do som direto 114

PARTE III – O som na pós-produção cinematográfica 169


(Débora Opolski)

Capítulo 5 – A prática de edição e mixagem de som 170


no audiovisual

Referências bibliográficas 210


INTRODUÇÃO

Comecemos por uma constatação: a literatura sobre o som no cine- 9


ma é bastante rarefeita no Brasil. Essa afirmação não é mera supo-
sição ou opinião subjetiva: trata-se de fato concreto, comprovado
inclusive por uma pesquisa de mestrado. A dissertação Os estudos
do som no cinema: evolução quantitativa, tendências temáticas e
o perfil da pesquisa brasileira contemporânea sobre o som cine-
matográfico, defendida por Bernardo Marquez, em 2013, na Uni-
versidade de São Paulo (USP), “disseca” esse fato em estatísticas.
No Brasil, até 2001, como o texto demonstra, não havia pesquisas
acadêmicas específicas em andamento que cobrissem o campo so-
noro do cinema. Nos nove anos seguintes, começaram a despontar
os primeiros esforços. Mas só a partir de 2010 que essa tendência
ganhou corpo e consistência efetivos.

O progressivo aumento das pesquisas na área, contudo, não foi con-


vertido de imediato em literatura disponível sobre o tema. Boa parte
da produção dessas pesquisas tem circulado pouco. Marquez de-
monstra que, desde 2003, o Brasil produziu pelo menos uma disser-
tação de mestrado por ano sobre o som cinematográfico (nos últi-
mos cinco anos, de fato, esse número foi bastante ampliado). Teses

Introdução
de doutorado também se tornaram mais comuns. Mas na maior par-
te dos casos, esse material permanece em difícil acesso, disponível
apenas em bibliotecas universitárias (ALVES, 2013).

Artigos publicados em revistas acadêmicas também aumentaram em


número, mas essas publicações, no Brasil, muitas vezes são aces-
sadas apenas por estudantes de pós-graduação e/ou professores.
Livros que tratam do assunto – certamente o modo mais seguro de
fazer a informação circular, e dar visibilidade a essas pesquisas –
continuam raros, refletindo uma tendência internacional. Em 2013,
um ano acima da média, foram publicados três livros acerca do
campo do som no Brasil. É muito pouco. Esse total é amplamen-
te inferior à quantidade de publicações dedicadas a tópicos como
fotografia, montagem, crítica cinematográfica e análise fílmica. Os
estudos do som no cinema têm sido, desde sempre, uma espécie de
10 patinho feio das pesquisas sobre a sétima arte.

Em paralelo, outro produto bastante raro no Brasil, na área de ci-


nema, são os livros-texto de caráter universitário. Um livro-texto,
para eliminar qualquer ambiguidade, consiste de uma publicação
destinada prioritariamente ao ensino do tema que ele aborda. Um
livro-texto universitário, portanto, constitui uma publicação que se
destina ao uso pedagógico, especialmente em cursos de graduação.

Nesse caso, mesmo que a quantidade de livros dedicados ao cinema


possa ser considerada razoável, no nosso país, o percentual desses
livros que tem algum objetivo pedagógico é bastante reduzido. Uma
olhada rápida na seção de cinema de qualquer grande livraria brasi-
leira revelará uma predominância de coletâneas de críticas, manuais
técnicos e volumes de ensaios destinados, em sua maioria, a estu-
dantes de pós-graduação e/ou professores, um público seleto e de
nível bem mais avançado do que o comprador típico do livro-texto
de graduação. O mais conhecido e utilizado livro-texto dedicado ao
cinema, escrito por David Bordwell e Kristin Thompson em 1979,
somente ganhou edição em língua portuguesa no ano de 2014,

O som do filme: uma introdução


muitos anos depois que edições em turco, vietnamita, tcheco e po-
lonês já circulavam nesses países. Esse exemplo demonstra como a
publicação de livros-texto sobre cinema, em português, é incomum.

A proposta do livro que você tem em mãos foi construída para ocupar
um espaço nessa interseção entre os estudos do som e a disponibili-
zação de livros-texto sobre o campo do audiovisual. O som do filme:
uma introdução pretende ser um livro-texto sobre o som cinema-
tográfico. Isso significa que este volume tem como público-alvo o
estudante de graduação de cursos de cinema e de audiovisual. Evi-
dentemente, isso não significa que pessoas de diferentes perfis devem
deixá-lo de lado. Espero que pessoas interessadas nas possibilidades
criativas relacionadas ao uso da voz, dos ruídos, da música e do si-
lêncio em filmes, vídeos e produtos audiovisuais diversos encontrem,
aqui, rico material de pesquisa. Mas enfatizo, também, o caráter pe-
dagógico da empreitada. Este livro tem a intenção explícita de ensi- 11
nar alunos de graduação alguns elementos básicos de história, teoria,
prática e estética do som nos meios audiovisuais.

Com esse objetivo em mente, o livro foi dividido em três partes. A


parte inicial corresponde aos três primeiros capítulos. O primeiro,
de caráter introdutório, fornece uma visão panorâmica, ampla, da
cadeia produtiva do som no cinema. Essa seção procura explicar
quais os componentes básicos da trilha sonora1 de um filme, quem
são os profissionais que cuidam do som no cinema e como eles se
relacionam hierarquicamente. O texto oferece, ainda, um resumo
bastante breve dos princípios de organização desses sons dentro de
uma produção audiovisual.

O segundo capítulo se debruça sobre a história do som no cinema.


Uma história que, a rigor, começa em 1895 (e não, como se poderia
pensar, em 1927, ano em que foi lançado o primeiro longa-me-

1 A expressão “trilha sonora” é tomada, neste livro, como sinônimo do conjunto completo de sons
presentes em um filme, incluindo diálogos, ruídos e músicas.

Introdução
tragem com som sincrônico pré-gravado), com uma série de expe-
riências de acompanhamento sonoro produzido ao vivo, durante as
seções de projeção. Esse capítulo pretende apresentar e discutir os
principais marcos cronológicos da evolução do uso do som no meio
audiovisual, dando destaque aos contínuos avanços tecnológicos
que permitiram o aprimoramento progressivo da qualidade de gra-
vação e da reprodução do som nos teatros. O capítulo não esquece,
contudo, de relacionar essas questões tecnológicas às implicações
estéticas que surgem como consequência, enfatizando também o
quanto a estética do som no cinema tem sido sensível às condições
socioeconômicas e culturais de produção dos filmes.

O terceiro capítulo realiza, por sua vez, uma síntese abrangente das
pesquisas e das teorias mais conhecidas que foram desenvolvidas
sobre o som cinematográfico, desde a década de 1920 até os dias
12 atuais. O texto enfatiza, de maneira bastante panorâmica, a contri-
buição dos principais teóricos clássicos do cinema ao pensamento a
respeito das possibilidades criativas oferecidas pelo som. O capítulo
apresenta o pensamento dos primeiros teóricos que se dedicaram
especificamente aos estudos do som, como Michel Chion, Claudia
Gorbman e Rick Altman. E oferece, ainda, um panorama diversifica-
do das pesquisas mais recentes sobre o campo de estudo, no Brasil
e no mundo.

Embora o projeto deste livro tenha sido concebido por mim, não o es-
crevi por inteiro. Cuidei apenas dessa primeira parte, com textos cen-
trados no campo da teoria e da história, minha especialidade. Se você
não me conhece, aqui vão minhas credenciais: sou responsável, desde
2009, pelas disciplinas de som do Bacharelado em Cinema e Audiovi-
sual da Universidade Federal de Pernambuco e professor do Programa
de Pós-Graduação em Comunicação da mesma universidade.

Para desenvolver os dois capítulos seguintes, que examinam e de-


talham a parte prática da área, optei por convidar dois respeitados
professores, especialistas nas áreas de captação de som direto e

O som do filme: uma introdução


pós-produção sonora. Além de pesquisadores respeitados e pro-
fessores experientes, ambos possuem vasta experiência de campo
nas suas respectivas áreas.

A segunda parte do livro (que contém o quarto capítulo) se debru-


ça sobre o som direto, isto é, o som registrado durante a fase de
gravação do filme, nas locações e, eventualmente, em estúdio. Essa
parte foi escrita por João Baptista Godoy de Souza, professor de
som do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da Escola de
Comunicações e Artes da USP desde 1999. João possui Mestrado e
Doutorado em Comunicação pela USP, além de um currículo longo
e respeitável como técnico de som direto em grandes produções
brasileiras. Ele foi responsável pela liderança das equipes de capta-
ção de som de longas-metragens diversificados, como Serra Pelada
(Heitor Dhalia, 2013), Hoje (Tata Amaral, 2011), Bróder (Jefferson
De, 2009), O Menino da Porteira (Jerê Moreira, 2009), Casa de 13
Alice (Chico Teixeira, 2007), Antônia (Tata Amaral, 2006) e Contra
todos (Roberto Moreira, 2002), dentre outros. João também desen-
volveu uma tese de doutorado que constitui, atualmente, o principal
material de referência para o ensino do som direto no Brasil.

A terceira parte, onde está o quinto capítulo, trata dos processos de


pós-produção sonora (edição de som e mixagem) e ficou a cargo
de Débora Opolski, professora do curso de Licenciatura em Artes
da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Graduada em Música e
Produção Sonora e mestre em Música – Teoria e Criação pela UFPR,
Débora tem um vasto currículo como editora de som, com atuação
em diversos filmes brasileiros de prestígio internacional. Trabalhou
na pós-produção de Tropa de elite 1 e 2 (José Padilha, 2007 e
2010), Ensaio sobre a cegueira (Fernando Meirelles, 2008), O chei-
ro do ralo (Heitor Dhalia, 2006) e Dois filhos de Francisco (Breno
Silveira, 2005), dentre muitos outros títulos.

Como primeiro livro-texto brasileiro especificamente destinado ao


ensino dos processos criativos relacionados ao uso do som no meio

Introdução
audiovisual, O som do filme: uma introdução certamente tem um
objetivo ambicioso. Apesar disso, e talvez paradoxalmente, é um
volume modesto em sua pretensão. O livro não pretende, de modo
algum, esgotar o tema abordado, naturalmente vasto. O caráter pa-
norâmico dos textos permite, sem dúvida, que cada uma das abor-
dagens propostas (história, teoria e prática do som no audiovisual)
seja aprofundada, em múltiplas direções, por publicações futuras.
Esperamos, nesse sentido, que este livro marque o primeiro passo de
uma jornada que promete ser longa e árdua, mas que nem por isso
deixe de ser divertida.

Boa leitura.

Rodrigo Carreiro
Recife, junho de 2014.
14

O som do filme: uma introdução


PARTE 1
HISTÓRIA E TEORIA DO SOM NO CINEMA
Rodrigo Carreiro
CAPÍTULO 1
NOTAS SOBRE A ESTÉTICA SONORA
DO FILME

16 1.1 Componentes da trilha sonora

A moça loira entra no toalete, fecha a cortina de plástico, abre o


chuveiro. De olhos fechados, respira profundamente enquanto a água
molha seus cabelos. De repente, um vulto surge por trás dela, visto
através da cortina translúcida. O desconhecido puxa as cortinas com
força e ataca a moça com uma faca. Ela tenta se defender com os
braços, contrai as pernas desesperadamente, resiste como pode, mas
não por muito tempo. Cai para frente, se agarrando à cortina como à
vida que se esvai. Tem os olhos abertos e vidrados. O sangue escorre
pelo ralo. O agressor sai rápido pela porta. A moça está morta.

A morte de Janet Leigh no chuveiro em Psicose (Psycho, Alfred


Hitchcock, 1960) talvez seja a cena mais conhecida de toda a histó-
ria do cinema. Ela já foi “dissecada” exaustivamente por dezenas de
pesquisadores. Sabemos que Hitchcock construiu toda a trama do
filme em torno dela e gastou metade do tempo disponível (duas se-
manas) para as filmagens apenas registrando as 70 posições de câ-
mera utilizadas na montagem final. Sabemos que uma dublê subs-

O som do filme: uma introdução


titui Janet Leigh em muitos desses planos. Sabemos que o designer
Saul Bass criou storyboards para toda a cena.

Agora, tente imaginar quão surpreendente ou impactante seria esta


mesma cena sem o som. Tente eliminar os gritos lancinantes de sur-
presa e de dor emitidos por uma das primeiras atrizes a ostentar o
rótulo de scream queen2. Procure apagar da memória o ruído impla-
cável do chuveiro que nunca para; a natureza segue seu curso sem
qualquer vestígio de hesitação. Esqueça os horríveis sons da faca
penetrando na carne da loira ou o terrível rangido da cortina arran-
cada do trilho, que não consegue mais sustentar o peso (morto ou
quase) da moça. E, especialmente, tente não lembrar dos trinados
agudos dos violinos de Bernard Herrmann, que simula ao mesmo
tempo o ritmo agressivo das facadas desferidas pelo assassino e o
tom agudo dos gritos de Leigh. Elimine também a melodia sinistra
dos violoncelos, executando um dos mais macabros exemplos de 17
diabolus in musica3 do cinema, enquanto os últimos traços de vida
desaparecem implacavelmente do reflexo do olho da vítima.

É inegável: sem os elementos sonoros, a famosa cena dirigida por


Hitchcock perde bastante de seu impacto afetivo. Isto é tão verda-
deiro que anos depois da realização do filme, os executivos da Uni-
versal (estúdio que financiou a obra) incluíram no DVD um segmen-
to especial que sugere ao espectador assistir à cena, sucessivamente,
com e sem a trilha sonora, para poder medir por conta própria o ta-
manho da influência do som no impacto emocional construído pela
união de imagem, música, voz e ruídos. O som não existe no filme
apenas para inscrever as imagens no tempo ou ampliar a aparência

2 O termo, criado nos anos 1930 por revistas de cinema que circulavam em Hollywood, era usado
para identificar atrizes que representavam com frequência papéis de vítima de filmes de horror, sendo
escaladas para esses trabalhos geralmente por terem a habilidade de gritar de modo agudo e forte.
3 Durante a Idade Média, a utilização de intervalos em quinta diminuta era vedada pela Igreja Católica
aos compositores, pois as dissonâncias instáveis que eles produziam eram consideradas diabólicas e
temia-se que, se executadas, elas poderiam atrair seres sobrenaturais e/ou demoníacos. No século
XVIII, esse intervalo musical ficou conhecido a partir dessa expressão em latim, que significa “o diabo
na música”.

Capítulo 1 – Notas sobre a estética sonora do filme


de realismo: ele faz muito mais do que isso. O som afeta a maneira
como percebemos a trilha visual, ajuda a guiar o olho do espectador
e induz a sentimentos, sensações e emoções que, sem ele, talvez
permanecessem ausentes.

A cena de Psicose (Figura 1) também é um exemplo muito bom para


iniciar este capítulo, que procura apresentar, de modo panorâmico,
a cadeia de produção sonora na realização audiovisual. Antes de
tudo, porém, é preciso enfatizar um detalhe importante. Em termos
coloquiais, a expressão “trilha sonora” (ou, em inglês, soundtrack)
é usada muitas vezes para se referir à coleção de canções utilizadas
em um filme e reunidas em um álbum. Tecnicamente, a expressão
é incorreta: profissionais e pesquisadores da área usam essa mesma
expressão para se referir ao conjunto completo de sons do filme.

18

[Figura 1]

Portanto, a trilha sonora de um filme – que também podemos cha-


mar de “banda sonora” – é composta por três elementos: a voz
(diálogos, narração, monólogos etc.), os ruídos (efeitos sonoros) e a
música. Alguns pesquisadores contemporâneos incluem os silêncios

O som do filme: uma introdução


nessa equação (COSTA, 2008), já que em muitos filmes o silêncio
exerce função narrativa.

A divisão da banda sonora em três partes não é aleatória. Ela reflete


a divisão de trabalho da área do som cinematográfico, que segue
um modelo implementado ao longo do período da transição do
cinema silencioso para o cinema sonoro (entre 1927 e 1932). Esse
modelo de produção estava consolidado, em Hollywood, no ano de
1933. Adotado por praticamente todas as escolas cinematográficas
ao redor do mundo, o modelo de produção sonora costuma dividir
o setor de produção da trilha sonora em três equipes distintas: uma
cuida dos diálogos; outra, dos efeitos sonoros (ruídos); a terceira, da
música. Mesmo que as equipes de produção sonora tenham aumen-
tado e se diversificado bastante, principalmente a partir dos anos
1970, esse modelo de divisão do trabalho ainda continua valendo,
com pequenos ajustes, em pleno século XXI. 19

Os três componentes da banda sonora são complementares e, curio-


samente, têm naturezas diferentes. Em uma rígida convenção narra-
tiva estabelecida desde os primórdios da arte audiovisual, os ruídos
e os diálogos têm um caráter mais realista – eles representam a
realidade de forma mais objetiva. No campo auditivo, correspon-
dem aos sons emitidos por aqueles elementos que vemos na tela ou
que estão em torno dela. Chamamos esses sons de diegéticos, pois
pertencem ao mundo ficcional habitado pelos personagens. Esses
personagens ouvem os sons tanto quanto nós na plateia.

Se um personagem joga uma pedra numa janela de vidro, o público


espera ouvir o som de vidro quebrando quando a pedra atingir a
janela (e, em geral, ouve mesmo). Quando os personagens falam, o
som está sempre em sincronia com o movimento labial; se não for
assim, o espectador pensará que se trata de uma falha de proje-
ção. Ruídos de motores, tráfego, pessoas, animais e outros objetos
que se movem são escutados normalmente, como se estivéssemos
olhando para uma janela da vida real.

Capítulo 1 – Notas sobre a estética sonora do filme


Muitas vezes, o som pode vir de fontes fora do quadro, ou seja, são
originados por fontes que não aparecem na tela, mas pertencem à
diegese, embora não estejam enquadradas pela câmera. Pense, por
exemplo, na filmagem de um jogo de futebol. Ouvimos a plateia que
está no estádio o tempo todo, embora a câmera possa estar focali-
zando apenas um jogador. Esses sons são chamados, logicamente,
de sons fora de quadro (em inglês, offscreen sounds).

Os sons fora de quadro, por sinal, são considerados extremamente


importantes para dar tridimensionalidade à narrativa, pois sugerem
a existência de todo um mundo ao redor do quadro em que é pro-
jetada a imagem do filme. Noel Bürch (1992, p. 117) insiste que o
som offscreen confere um realismo ao filme que é impossível de ser
conseguido de outro modo. A partir de 1975, com a chegada de
tecnologias de som surround (projetado através de caixas acústicas
20 colocadas atrás da plateia), como o Dolby Stereo, a importância do
som fora de quadro se tornou ainda mais central.

Existem exceções à regra dos ruídos realistas, mas são poucas. Tal-
vez a mais conhecida exceção esteja no filme Dogville (2003), de
Lars Von Trier, cujos cenários não têm nada de realista (os persona-
gens abrem portas invisíveis, e elas rangem; o cachorro é um círculo
desenhado no chão com giz, mas late). Mais recentemente, o longa-
-metragem A pele de Vênus (Venus in furs, Roman Polanski, 2013)
adotou o mesmo procedimento em alguns trechos: os personagens
se servem de café, colocam açúcar na xícara, mexem a colher e ou-
vimos todos esses sons, embora os objetos não existam, porque os
personagens são atores ensaiando uma peça teatral.

A cadeia produtiva do som de cinema é dividida em duas fases


centrais: produção e pós-produção. Na fase da produção, a equipe
é mais enxuta e liderada pelo técnico de som direto, que recebe a
incumbência de gravar os diálogos proferidos pelos atores nos sets
de filmagem. A tarefa principal dessa equipe é gravar as vozes dos
atores. Todo um conjunto de técnicas é colocado em prática para

O som do filme: uma introdução


minimizar os ruídos, desde a colocação de feltros, ou borrachas, nos
sapatos dos atores (para evitar que o barulho dos passos seja regis-
trado pelos microfones) até a instalação de mantas acústicas para
reduzir a reverberação e para minimizar os ruídos indesejados que
circundam o ambiente.

Em estúdio, a captação de som direto é mais simples, já que se


trata de um ambiente controlado e vedado para sons externos. Em
locação, contudo, o problema é mais complicado. Gravar uma cena
numa praça ou avenida pode inviabilizar a captação de som direto,
pois não há como isolar totalmente o barulho do tráfego ou das
pessoas que circulam na área.

O procedimento tradicional pede que os ruídos ouvidos na versão


final do filme sejam minuciosamente reconstituídos posteriormente,
em estúdio, por uma equipe (às vezes, bastante extensa) de editores 21
de som. Essa equipe tem a função de gravar – ou obter de outros
modos (por exemplo, comprando sons previamente gravados em bi-
bliotecas profissionais de ruídos) – todos os ruídos necessários para
sonorizar de forma adequada cada tomada gravada nos sets. É um
trabalho cuidadoso e demorado.

Alguns diretores, como Sergio Leone, não costumam (ou não cos-
tumavam) gravar sons nos sets. Eles optam por dublar tudo depois.
Curiosamente, há movimentos cinematográficos que dispensavam
sons gravados no set (como o neorrealismo italiano e todo o ciclo
de produção de spaghetti westerns, na Itália dos anos 1960-1970,
por causa do alto custo de produção que essa operação envolvia);
outros adotam isso, o som direto, como uma regra impossível de
quebrar, como é o caso do movimento Dogma 95, lançado na Dina-
marca nos anos 1990.

Uma vez que os diálogos são gravados durante as filmagens, a cons-


trução da segunda parte da trilha sonora (os ruídos) acontece na
fase da pós-produção, quando pelo menos quatro equipes de edi-

Capítulo 1 – Notas sobre a estética sonora do filme


tores de som trabalham. Uma dessas equipes (editores de diálogos)
limpa as vozes captadas nos sets, sincronizando-as e eliminando
ruídos e impurezas sonoras, realçando sílabas que soaram inade-
quadas, substituindo palavras incorretas faladas pelos atores etc.
Essa equipe também identifica os trechos inutilizáveis, acionando a
produção para reservar um estúdio de gravação para levar os atores
para lá. Uma segunda equipe (editores de dublagem) faz, então,
a dublagem (chamada em inglês de “ADR”, sigla para Automated
Dialogue Recording) de uma porção considerável de falas do filme.
Em média, 30% dos diálogos de filmes em Hollywood são regrava-
dos posteriormente às filmagens com ajuda de tecnologia de ponta
(BUHLER; NEUMEYER; DEEMER, 2010, p. 415). Há longas-metra-
gens em que 100% dos diálogos são refeitos.

A voz é considerada o elemento mais importante dentre todos os


22 componentes da banda sonora de um filme. A percepção humana,
por razões fisiológicas e, sobretudo, semânticas, tende a dirigir a
atenção das pessoas para a voz, procurando intuitivamente com-
preender o que está sendo dito. Pensando nisso, os sound designers
cuidam para que, na mixagem, a voz seja normalmente ouvida em
volume acima dos demais componentes da trilha sonora. A voz tam-
bém é posicionada sempre no canal central, entre os canais em que
o mixador pode posicionar sons. É principalmente por meio da voz
que acompanhamos o desenrolar da ação dramática.

Outros editores de som cuidam de ambientes (também chamados de


“backgrounds” ou “BGs”) e de efeitos sonoros pontuais (chamados de
“hard effects”). A diferença é considerável: os ambientes costumam
reunir uma grande massa sonora (ruídos de tráfego, restaurantes, shop-
ping centers, escolas etc.), em que a preocupação com a sincronia entre
som e imagem é menor. Ambientes sonoros situam a ação dramática
em determinado lugar. Já os efeitos pontuais são ruídos isolados (motor
de um carro que se destaca, sons provenientes de uma mesa do restau-
rante etc.) que, em geral, precisam estar perfeitamente sincronizados
com a origem do som que aparece em quadro no filme.

O som do filme: uma introdução


Dependendo do tamanho e do orçamento do filme, esses editores
podem constituir uma única equipe, ou dois times autônomos. Essa
equipe pode utilizar, às vezes, alguns sons gravados pela equipe do
som direto durante as filmagens. Por exemplo, em Ensaio sobre uma
cegueira (Fernando Meirelles, 2008), todas as locações usadas para
o filme foram disponibilizadas para que uma equipe pudesse pas-
sar dois ou três dias lá dentro, após as filmagens, produzindo uma
grande quantidade de ambientes para utilização na pós-produção.

Existe, ainda, outra equipe que trabalha com ruídos pontuais, sin-
cronizados com elementos da imagem. É a equipe do foley, prática
chamada no Brasil de ruídos de sala. Esse grupo de profissionais
– os artistas foley, ou artistas de sala – trabalha para planejar,
captar e gravar pequenos ruídos necessários para dar vida à trilha
sonora. Esses ruídos são quase sempre consequência da interação
do homem com o meio ambiente: passos, vidros quebrando, portas 23
batendo, farfalhar de roupas etc. Os profissionais que produzem es-
ses ruídos são chamados de sonoplastas ou de artistas foley (em ho-
menagem a um técnico de som chamado Jack Foley, que trabalhou
na década de 1930 nos estúdios Universal). Essas pessoas precisam
criar e gravar os sons em estúdio.

O roteirista Jean-Claude Carrière (1994, p. 34) afirma que o cinema


é o inventor do silêncio absoluto. Na natureza, segundo Carrière,
não existe esse tipo de silêncio, pois sempre há ruídos; no mínimo,
aqueles produzidos pelo corpo humano, como o bater do coração.
O silêncio absoluto só pode ser conseguido em estúdio.

Nos filmes que buscam por mais realismo, os ruídos também são
modulados e mixados cuidadosamente, para que a edição de som
possa simular, com exatidão, a forma como o ouvido humano os
percebe. Um belo exemplo está na sequência inicial de O resgate do
soldado Ryan (Saving private Ryan, Steven Spielberg, 1998), em
que as explosões deixam o protagonista momentaneamente surdo,
e a plateia, como ele, ouve em primeiro plano um forte zumbido

Capítulo 1 – Notas sobre a estética sonora do filme


sonoro, com os sons naturais abafados permanecendo em segundo
plano auditivo, bem ao longe. Steven Spielberg foi inspirado pelo
filme russo Vá e veja (Idi i smotri, Elem Klimov, 1985), que trans-
mite a sensação de desorientação do protagonista ao reduzir, por
vários minutos, o som a um zumbido.

Quando bem utilizado, o som pode contribuir discreta, mas decisiva-


mente, para transmitir sensações de personagens e informações não
verbais que tornam o filme bem mais complexo e interessante. Em O
poderoso chefão (The godfather, Francis Ford Coppola, 1972), quan-
do o personagem de Al Pacino vai matar um homem pela primeira
vez, ele hesita e vive um conflito interno poderoso. Enquanto está
sentado à mesa de um restaurante, com a possível vítima à sua frente,
ele gira os olhos, atordoado. Ao fundo, ouve-se o ruído dos freios de
um trem, que subitamente cresce e encobre todos os demais sons da
24 cena, até se tornar ensurdecedor. Quando ele saca a arma e atira, o
som do trem retorna a uma intensidade mais realista, compatível com
o ponto de escuta do personagem. Francis Ford Coppola e o sound
designer Walter Murch encontraram nos freios do trem um símbolo
poderoso para expressar a agonia interna do personagem.

1.2 A música

Música, quase sempre, busca sugerir ao espectador determinadas


emoções (tristeza, saudade, euforia, desespero, tensão, angústia
etc.). A música de cinema, pois, constitui uma espécie de comentá-
rio feito pela instância narradora, muitas vezes, sinalizando a inten-
sidade e a modulação emocional dos momentos em que é ouvida.
Trabalhada por um compositor, num departamento autônomo, fre-
quentemente, a música do filme tem natureza diferente dos ou-
tros sons, pois não pertence ao universo ficcional – quase sempre
é extra-diegética. Isso significa que os personagens da ficção não
escutam essa música; apenas os espectadores o fazem.

O som do filme: uma introdução


A música dos filmes é uma herança da fase muda do cinema, quan-
do as projeções eram acompanhadas por um pianista, ou por uma
orquestra, que precisava sublinhar o tipo de sensação desejada pelo
diretor em cada cena (melancolia, euforia, tristeza, desejo, suspense
etc.). É possível que, se o cinema tivesse sido inventado já com som,
a música não tivesse sido incorporada à linguagem dos filmes.

Na já citada cena de chuveiro de Psicose, os personagens não es-


tão ouvindo os violinos de Bernard Herrmann. Somente o público
ouve a música, que realça o suspense. Uma exceção a essa regra
pode ser encontrada no trabalho do diretor Wes Anderson, que
gosta muito de fazer os personagens ouvirem música em toca-
-discos, como no filme Os excêntricos Tenenbaums (The royal Te-
nenbaums, 2001), em que a música também é ouvida pelo público.
Neste caso, a música é diegética.
25
Da mesma forma que ocorre com o design de produção, a música
tem funções estéticas e narrativas. A função estética está sempre
subordinada à narrativa: não adianta ter músicas lindas que não
funcionem no contexto do filme que estamos vendo. Uma música
romântica dentro de uma cena de batalha não faz nenhum sentido.
Como já vimos, a função de sublinhar o sentimento de algum perso-
nagem constitui o uso mais comum da música. São muitos os filmes
em que ouvimos, por exemplo, uma melodia em tons menores. Esse
tipo de melodia, como os compositores sabem desde a Idade Média,
evoca sentimentos de melancolia, tristeza, saudades etc., enfim, a
sensação sentida por algum personagem, em geral. Música com ar-
ranjo agressivo comunica raiva, irritação. Música dissonante – em
que os tons musicais permanecem incompletos, sem se concluírem
completamente – sinaliza tensão, suspense. Em Psicose, os trinados
agudos dos violinos não apenas geram suspense, mas também imi-
tam os sons dos gritos de uma pessoa.

Utilizar a música para estabelecer o tom emocional de uma cena é


uma das convenções mais eficientes do cinema, mas funciona me-

Capítulo 1 – Notas sobre a estética sonora do filme


lhor quando usada com discrição. Preste atenção, por exemplo, no
tom de lamento que a música de O senhor dos anéis: a sociedade
do anel (The lord of the rings: the fellowship of the ring, Peter
Jackson, 2001) assume no momento em que o mago Gandalf morre.
O uso de câmera lenta e os closes dos rostos dos personagens, com
lágrimas, aumentam ainda mais a intensidade emocional do mo-
mento. Nesse ponto do filme, o sound designer optou por reduzir o
volume dos ruídos e das vozes, na mixagem final, para deixar que a
atmosfera da música conduzisse as emoções do espectador.

A função de preparar o espectador para o tom emocional de algu-


ma cena é mais complexa, mas também bastante utilizada. É nessa
função que se encaixa a ideia da criação de um tema-assinatura,
conhecido também como leitmotiv. O leitmotiv é um tema repetido
diversas vezes no filme e associado a um personagem, uma ideia,
26 um espaço físico, uma sensação. O tema de Tubarão (Jaws, Steven
Spielberg, 1975) é um bom exemplo. Após a primeira aparição do
animal, ao ouvirmos a soturna melodia de duas notas de John Wil-
liams, sabemos instintivamente que o tubarão está por perto. Não
precisamos vê-lo para saber que está ali.

Lembre-se, também, do tema principal da série O senhor dos anéis


(2001-2003), que ecoa por todos os três filmes com diversos arran-
jos, que variam de cena para cena. Além de criar a ideia de unidade
narrativa, o tema principal proporciona ao público uma ideia do
significado emocional daquele momento específico. Isso porque ele
modula seu arranjo para a intensidade emocional de cada cena, pois
o tema pode ser executado de forma calma ou agressiva, com violi-
nos ou violoncelos, em cadência rápida ou lenta.

Antecipar algo que está por vir é outra função da música de um


filme. Esse recurso é muito usado em filmes de horror, por exemplo.
Uma convenção bem comum consiste em simplesmente aumentar
gradativamente o volume de uma nota. Num filme de horror, isso
só pode significar duas coisas: (1) vem um susto por aí; (2) o diretor

O som do filme: uma introdução


quer lhe pregar uma peça, fazendo com que se encolha na cadeira
pela expectativa de um susto que na verdade não vai acontecer.

Em Desejo e reparação (Atonement, Joe Wright, 2007), boa parte


da música é acompanhada, de forma ritmada, pelo ruído das teclas
de uma máquina de escrever. Esse é um índice, uma pista de algo
que só será revelado no final – uma parte da história é criação de
uma escritora. Nesse caso mais raro, a música incorpora um elemen-
to narrativo da história.

Outro bom exemplo de música importante não apenas para criar


clima, mas para cumprir um papel fundamental como elemento nar-
rativo, está no filme expressionista alemão M – o vampiro de Düs-
seldorf (M, Fritz Lang,1931), em que o assassino em série assobia
uma canção toda vez que ataca alguma criança. Ao ouvir a canção
sendo assobiada, mesmo quando ainda não vemos o assassino e não 27
sabemos quem ele é, instantaneamente reconhecemos que ele está
por perto porque ouvimos o assobio. Ao final do filme, o crimino-
so é reconhecido e preso por um homem cego, justamente porque
este se lembra de ter ouvido o assobio alguns minutos antes de um
assassinato, ainda no começo do filme. Essa música é diegética: os
personagens a escutam, assim como a plateia.

Existem algumas convenções sobre arranjos musicais. Instrumentos


de corda (violino, violoncelo) são muito utilizados para criar melodias
românticas, sensuais ou de suspense, como no caso de Psicose. Usa-se
percussão e instrumentos eletrônicos modernos (guitarra, teclados)
para indicar ação, tumulto, agressividade, como acontece na maioria
dos filmes de ação. Os sons eletrônicos, especialmente se utilizados
em combinações atonais – ou seja, que dão importância igual a todos
os 12 tons, e não apenas a um ou dois, como na música tradicional
–, combinam bem com ficção científica porque trazem em si a ideia
de futuro, conforme o que ouvimos em Blade runner – o caçador de
androides (Blade Runner, Ridley Scott, 1982).

Capítulo 1 – Notas sobre a estética sonora do filme


Depois que as vozes (seja no som direto, seja na dublagem), os efei-
tos sonoros, os ambientes e a música estão prontos, chega a hora
do último processo da cadeia produtiva de som: a mixagem. Nesse
ponto, o supervisor de mixagem e seus assistentes reúnem todos os
sons do filme e realizam um cuidadoso trabalho de hierarquia sono-
ra, de tratamento acústico e de espacialização. Assim, o mixador faz
três coisas principais: (1) regula a relação de volume entre os sons;
(2) posiciona esses sons nos alto-falantes disponíveis dentro do sis-
tema escolhido (atualmente, a maioria dos filmes é mixada em seis
canais); (3) aplica efeitos, como reverb e compressão, de forma a re-
forçar a continuidade sonora entre os diversos sons e deixar a pers-
pectiva acústica compatível com a perspectiva imagética. Na Figura
2, o mixador Ricardo Cutz trabalha em uma sessão de mixagem.

28

[Figura 2]

Depois disso, o mixador ainda precisa finalizar a trilha sonora e


exportá-la para os diversos formatos em que ela será comercia-

O som do filme: uma introdução


lizada: digital para cinemas (seis canais); analógica para cinema
(quatro canais); para televisão (dois canais); para internet (até seis
canais, com compressão maior); para diversos formatos destina-
dos à venda (Blu-Ray e DVD, nos dois casos com diferentes níveis
de compressão sonora); uma trilha composta apenas por ruídos e
música – no caso dos filmes destinados a mercados externos ao
país de produção –, a fim de permitir que a dublagem nas línguas
estrangeiras seja possível4. Essa última fase encerra, em geral, o
trabalho de pós-produção de um filme.

1.3 Seis princípios sonoros

Segundo Robert Stam (2003), a construção da narratividade por


meio do som fílmico consiste na combinação criativa de seis princí-
pios sonoros específicos do meio audiovisual. Esses princípios não 29
surgiram espontaneamente, mas, aos poucos, se constituíram como
fortes convenções narrativas, a partir das experiências ocorridas, so-
bretudo, na primeira década do cinema sonoro. O conjunto de prin-
cípios regula a percepção do espectador. Esses princípios são:

» Continuidade – conseguida por meio da manutenção de uma base


sonora de ambiente, sem que haja mudanças bruscas nas caracterís-
ticas físicas do som, como timbre, intensidade e volume;

» Seletividade – só vozes e ruídos relevantes devem ser escutados,


para evitar que os sons se transformem numa massa difusa e confusa;

» Hierarquia – prevalência dos sons narrativamente importantes so-


bre os demais, apenas para dar impressão de realidade e continui-
dade temporal;

4 Esta trilha, chamada no Brasil de “banda internacional”, é conhecida no mercado estrangeiro como
M&E (music and effects).

Capítulo 1 – Notas sobre a estética sonora do filme


» Legibilidade – todos os sons selecionados na mixagem precisam
ser legíveis ao espectador, porém hierarquizados segundo o princí-
pio anterior;

» Motivação – distorções na percepção só são permitidas para ex-


pressar subjetividades de determinados personagens, não como re-
gra geral do filme;

» Invisibilidade – o equipamento de captação não deve aparecer na


tela, a não ser no caso dos documentários.

Os editores de som, o sound designer e o mixador do filme normal-


mente seguem esses seis princípios – rigidamente codificados ao
longo dos primeiros anos do cinema – capazes de reproduzir sons
pré-gravados em sincronia com as imagens (na década de 1930),
30 seja de modo consciente ou não, para pensar o conceito de cada
filme e realizar a mixagem entre voz, música e ruídos.

Ao longo dos próximos capítulos, cada uma das áreas do processo


de criação e de organização dos sons dos filmes será aprofundada5.
Também teremos oportunidade de compreender os contextos histó-
ricos e tecnológicos nos quais essa estética sonora foi desenvolvida
e consolidada.

Por último, ainda vale a pena observar que a estética sonora ouvida
nos filmes de maior orçamento, e que têm objetivos mais comerciais,
costuma ser um pouco diferente da trilha de áudio que está em fil-
mes mais obscuros, mais alternativos. O cinema comercial costuma,
principalmente desde os anos 19706, investir no preenchimento to-
tal do espaço sonoro disponível, evitando os silêncios, enchendo de

5 Para uma descrição mais pormenorizada desses processos, ler o clássico ensaio Sync Tanks, escrito
por Elizabeth Weis e disponível em http://filmsound.org/synctanks/.
6 Essa estética hiperrealista só se tornou possível nos anos 1970, graças às possibilidades tecnológicas
oferecidas pelos novos equipamentos disponíveis (microfones mais sensíveis, lavaliers) e pelos novos
sistemas de reprodução (Dolby Stereo, Dolby Digital), conforme veremos no próximo capítulo.

O som do filme: uma introdução


efeitos sonoros os canais surround e utilizando abundantemente
música de caráter não diegético. Filmes menos preocupados com
bilheteria costumam ser mais abertos à experimentação: os ruídos
soam mais naturais e exploram menos os canais traseiros (surround);
a música não diegética é discreta ou, muitas vezes, sequer existe.

31

Capítulo 1 – Notas sobre a estética sonora do filme


CAPÍTULO 2
A HISTÓRIA DO SOM DOS FILMES

32 2.1 O cinema silencioso (1895-1927)

O marco zero da história do cinema reconstitui um episódio bem


conhecido por qualquer cinéfilo bem informado. Ele aconteceu no
dia 28 de dezembro de 1895, no Grand Café, um restaurante loca-
lizado num prédio de vários andares localizado no Boulevard des
Capucines, em Paris (França). Era um sábado. Os irmãos Auguste
e Louis Lumière, inventores da máquina chamada de “cinemató-
grafo”, não estavam presentes. Preferiram não sair do conforto de
Lyon, onde moravam e dirigiam uma fábrica de material fotográfico,
para se aventurarem em uma atividade na qual não acreditavam.
Não parecia promissora a demonstração do protótipo de um novo
equipamento, que eles chamavam de “cinematógrafo”, o qual era
capaz de exibir pequenos filmes animados através da projeção con-
tínua, em uma parede, de um número de fotografias estáticas a
certa velocidade.

Naquela primeira sessão, apenas 33 pessoas estavam presentes.


A maioria dessas pessoas era pedestres atraídos por um propa-

O som do filme: uma introdução


gandista que distribuía panfletos em frente ao Café, anunciando
a exibição de fotografias animadas pelo preço de um franco. Os
curiosos assistiram a dez pequenos curtas-metragens, com dura-
ção de um minuto cada (alguns desses filmes sobreviveram à bar-
reira do tempo e continuam disponíveis: A chegada do trem à
estação (L’arrivée d’un train en gare de la Ciotat, Auguste e Louis
Lumière, 1895) e A saída dos operários da fábrica (La sortie des
usines Lumière à Lyon, Auguste e Louis Lumière, 1895). A sessão
não durou mais do que 20 minutos. Em seguida, um novo grupo
de transeuntes entrou para assistir à mesma sessão. Essa rotina
continuou ao longo daquele dia, sem muito sucesso. Logo, porém,
a novidade se espalhou. Em três semanas, os irmãos Lumière fatu-
ravam até 2.500 francos por dia.

Uma informação importante sobre a primeira sessão de cinema,


pouco citada em livros de história, é que aquelas exibições históricas 33
das fotografias animadas não estavam sendo feitas sem som. Preca-
vidos, Louis e Auguste Lumière haviam pensado nisso e contratado
um pianista que pudesse providenciar um acompanhamento sonoro
às imagens pioneiras. Foi assim a programação pioneira criada pelos
Lumière e assim continuou com a maior parte das exibições cinema-
tográficas realizadas ao longo das três décadas seguintes, quando
a tecnologia para exibir sons pré-gravados e sincronizados com as
imagens fílmicas ainda não estava disponível.

Esse dado histórico confirma um axioma importante: o cinema


nunca foi mudo. É precisamente por essa razão que muitos pes-
quisadores e professores de história do cinema preferem, atual-
mente, se referir ao período que vai de 1895 a 1927 (ocasião em
que foram exibidos comercialmente, pela primeira vez, imagem e
som sincronizados) como o período do cinema silencioso. O termo
silencioso, nesse caso, substitui a palavra “mudo” (mais popular
e, contudo, incorreta), com maior precisão histórica. Irving Thal-
berg, um dos grandes produtores pioneiros de Hollywood, chefe
do estúdio MGM e criador do comitê técnico estabelecido pela

Capítulo 2 – A história do som dos filmes


Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, em
1926, para estimular a cooperação entre os estúdios e tornar mais
fácil a transição tecnológica do cinema silencioso para o cinema
sonoro, confirma a informação e reforça a importância do som nas
primeiras exibições:

Nunca houve esse tal cinema mudo. Nós fazíamos o filme,


exibíamos numa uma sala de projeção e saíamos decepcio-
nados. Parecia horrível. Tínhamos grandes esperanças para
o filme, dávamos cada gota de suor por ele, e o resultado
era sempre o mesmo. Mas então o mostrávamos em um
teatro, com uma garota tocando piano, e isso fazia toda a
diferença no mundo. Sem a música, não existiria uma in-
dústria de cinema (THALBERG apud BUHLER; NEUMEYER;
DEEMER, 2010, p. 247).
34
Hoje em dia, é possível afirmar com segurança que a exibição de
filmes sempre foi ladeada por alguma forma de acompanhamento
sonoro. Nos primeiros anos do cinema, contudo, não estava esta-
belecida ainda uma indústria cinematográfica e nem uma cultu-
ra cinéfila, de forma que essas experiências sonoras podiam variar
drasticamente, por diversos motivos: o lugar de exibição, o país e
até mesmo o horário da sessão, dentre outros fatores, influenciavam
o tipo de acompanhamento sonoro escolhido (ou disponível). Um
teatro de vaudeville7, por exemplo, frequentemente exibia filmes
com acompanhamento musical providenciado por um pianista ou
por uma orquestra de câmara. Já nos espetáculos fílmicos itine-
rantes, nos quais pequenas companhias cinematográficas viajavam,
de cidade em cidade, levando um programa de pequenos filmes,

7 Os teatros de vaudeville constituíam uma forma de entretenimento popular bastante comum nos
Estados Unidos e nos países da Europa, durante o século XIX e o início do século XX. Essas casas de
show exibiam uma grande variedade de números rápidos (apresentações musicais, números de circo,
projeções de filmes, exibições de fotografias, espetáculos de dança, palestras, leituras de poesias) em
sequência, todas as noites.

O som do filme: uma introdução


era normal que um piano mecânico ou photoplayer8 providenciasse
sons para encobrir o barulho provocado pelo projetor.

Segundo James Buhler, David Neumeyer e Rob Deemer (2010, p.


247-248), a prática da produção de acompanhamento sonoro para
filmes, no período do cinema silencioso, pode ser dividida em três
fases distintas. Cada uma dessas fases tinha as projeções cinemato-
gráficas dominadas por um tipo diferente de casa de espetáculo, o
que por si só era um fator determinante no tipo de acompanhamen-
to sonoro fornecido para os filmes. As fases podem ser sintetizadas,
grosso modo, dessa maneira:

(1) Cinema pré-histórico (1895-1905): como as projeções cinema-


tográficas ocorriam em grande variedade de lugares (teatros, circos,
bares e restaurantes, igrejas etc.), a produção sonora era igualmente
heterogênea, sujeita a fatores subjetivos, como o gosto do dono do 35
lugar, o dinheiro disponível, o tipo de filme exibido, a cultura local.
Essas projeções sonoras variavam desde a execução de música por
um pianista ou organista até a narração de texto (providenciada
por um locutor), passando ainda por experiências rudimentares com
sonoplastia (produção de ruídos sincrônicos, produzidos por con-
trarregras situados atrás da tela de projeção). A prática heterogênea
também refletia a própria produção heterogênea dos filmes.

(2) Cinema nos nickelodeons9 (1905-1915): nessa fase de transição,


com o Nickelodeon se consolidando como o lugar hegemônico para
a projeção de filmes, a prática de acompanhamento sonoro passou
por uma primeira fase de institucionalização e unificação. Em geral,

8 Instrumento fabricado pela American Photoplayer Company, que reunia tubos de órgão, efeitos
sonoros (sirenes, buzinas, apitos, motores) e instrumentos de percussão, acionado por teclas, botões,
cordas e alavancas.
9 Nickelodeons eram pequenas casas especializadas na projeção de filmes curtos, exibidos em sessões
que duravam de 15 a 20 minutos, e que custavam (nos Estados Unidos) cinco centavos, ou um níquel,
tendo vindo daí o nome desses empreendimentos. Essas casas eram, em geral, localizadas em bairros
de trabalhadores e obtiveram muito sucesso até os primeiros anos da década de 1910, quando come-
çaram a ser substituídas por teatros de exibição de filmes maiores, mais luxuosos e bem localizados.

Capítulo 2 – A história do som dos filmes


na grande maioria dos casos, os filmes eram acompanhados por um
pianista ou um organista, que dispunha de partituras específicas
para cada situação dramática mostrada nos filmes e improvisava
a partir desses trechos de música. A produção de ruídos por sono-
plastas e/ou de narração ao vivo eram adotadas normalmente em
função de demandas específicas de cada filme ou produtor.

(3) Cinema nas salas de projeção (1915-1929): nessa terceira fase,


o cinema se estabeleceu como prática cultural da classe dominante,
e a indústria cinematográfica se desenvolveu, criando condições para
a homogeneização das práticas sonoras de acompanhamento dos fil-
mes. Aqui, a música orquestrada de estilo neorromântico europeu
(Gustav Mahler, Johannes Brahms, Richard Strauss) se tornou a for-
ma dominante de acompanhamento sonoro dos filmes. A execução
dependia do tamanho de cada teatro, podendo variar de um único
36 músico (em geral, pianista) até uma orquestra sinfônica completa.

É importante localizar a origem do uso de música orquestral de


origem europeia, em particular composições oriundas do neor-
romantismo (muito popular nas grandes capitais do século XIX
entre as classes altas), como uma tentativa deliberada, por parte
dos produtores de filmes e dos donos dos teatros nickelodeon,
para atrair a simpatia dos burgueses e aristocratas. No começo do
século XX, como se sabe, o cinema era considerado uma atração
popular menor, sem importância artística alguma, consistindo ba-
sicamente de mero passatempo sem valor cultural para plateias
ignorantes e, em sua maioria, analfabetas. A localização espacial
da maioria dos teatros nickelodeon (sempre próximos de estações
de trem e de metrô, destinadas à locomoção de trabalhadores)
favorecia esse tipo de preconceito.

Especialmente nas duas primeiras fases, ou seja, até meados da dé-


cada de 1910, uma variedade de experiências de acompanhamento
sonoro foi registrada por historiadores do cinema. Em teatros de
vaudeville, por exemplo, um dos programas mais populares consis-

O som do filme: uma introdução


tia na “canção ilustrada”. Essencialmente, eram números musicais
em que um cantor executava dois versos e dois refrãos, encorajando
a plateia a cantar junto em seguida. Esses números eram frequen-
temente apresentados com um acompanhamento visual (um pe-
queno filme produzido especialmente para a ocasião), constituindo
uma interessante experiência conjunta de música e cinema. Essas
experiências, às vezes, incluíam uma noção bastante precisa de sin-
cronismo entre a execução musical e o ritmo das imagens exibidas
na tela (BUHLER; NEUMEYER; DEEMER, 2010, p. 247), mas não se
pode afirmar que havia um padrão único:

Execução de música ao vivo durante uma projeção não sig-


nificava necessariamente uma correlação narrativa entre o
que era visto e ouvido. Poderia ser, muitas vezes, um mero
chamariz, uma vez que historicamente espetáculos popu-
lares eram anunciados via música, ou então um paliativo 37
para o silêncio das imagens e para o desagradável ruído do
projetor (MIRANDA, 2011a, p. 20).

Outra experiência curiosa registrada por Buhler, Neumeyer e Deemer


consistia da produção de efeitos sonoros (sonoplastia) ao vivo. Na
fase dos teatros de vaudeville, esta prática, às vezes, era utilizada por
certos produtores de espetáculo como diferencial entre a projeção
oferecida por seus teatros e pelos concorrentes. Em outras palavras,
como a demanda por filmes superava em muito a oferta, e os mes-
mos filmes eram frequentemente exibidos em teatros vizinhos, alguns
proprietários de casas de shows investiam na produção de efeitos
sonoros como elemento diferencial. Em geral, não se produzia muitos
sons; eram escolhidos alguns momentos específicos de cada filme e se
produzia efeitos sonoros específicos para cada um desses momentos.
Convém lembrar, também, que durante essa fase histórica, os filmes
não costumavam ter mais do que 20 minutos de duração.

A partir de 1915, com a indústria cinematográfica já consolidada e


o cinema reconhecido como prática social incorporada à cultura das

Capítulo 2 – A história do som dos filmes


elites – o reconhecimento do status artístico da sétima arte ainda
demoraria alguns anos, mas essa é outra história –, a sonorização
dos filmes começou a se aproximar de uma padronização real. A
essa altura, os filmes mais populares já tinham uma duração aproxi-
mada de duas horas, e a trilha musical orquestrada com melodias de
arranjo inspirado no neorromantismo europeu detinha a hegemonia.

Ainda na fase do vaudeville, enquanto o cinema se estruturava cada


vez mais como atividade industrial, cineastas e produtores se empenha-
ram em buscar uma padronização para as tentativas de sonorização do
filme. A mais intensa dessas tentativas tomou forma com as chamadas
cue sheets, ou livros de partituras, que indicavam, aos músicos encar-
regados de acompanhar as projeções, dezenas de trechos musicais ade-
quados para determinados tipos de cenas (romance, comédia, tensão,
perseguição, ação física etc.). Em 1909, a Edison Company já distribuía
38 um livro chamado Suggestion for music, com partituras que acumula-
vam dicas não apenas sobre como deveria soar a atmosfera de determi-
nadas cenas, mas também momentos de ênfase, ritmos e andamentos.

A popularidade das cue sheets, que se sofisticaram (chegan-


do a indicar não apenas fragmentos de obras que deveriam
ser tocadas, mas também a sua duração), motivou o merca-
do editorial a publicar compilações de partituras separadas
por categorias. Melodias do repertório erudito [...], peças
originais, temas populares e folclóricos eram organizados
de acordo com possíveis situações dramáticas: romance,
tensão, perseguição, melancolia e assim por diante. Deze-
nas destas compilações circulavam nos países europeus por
volta de 1910 e, em 1913 o primeiro volume do The Sam Fox
moving picture music foi lançado nos EUA, contendo apenas
peças originais de John S. Zamecnik, um ex-aluno de Dvorák
(MIRANDA, 2011a, p. 21).

Dois livros de partituras que se tornaram extremamente populares


no período foram Kinothek, compilado por Giuseppe Becce e pu-

O som do filme: uma introdução


blicado pela primeira vez no ano de 1919, e o mais longo de todos,
Motion picture moods for pianists and organists, organizado pelo
maestro Erno Rappë, em Nova York, em 1924.

De modo geral, nas duas primeiras décadas do século XX houve pou-


cas experiências com música escrita especificamente para filmes. O
compositor francês Camille Saint-Saëns detém a autoria de uma das
primeiras tentativas, por ter escrito 18 minutos de música original
para o drama histórico L’assassinat du duc de Guise, de Charles Le
Bargy e André Calmettes. A experiência, contudo, não funcionou a
contento, pois ainda “não havia métodos de sincronização da música
interpretada com o filme apresentado” (BERCHMANS, 2006, p. 101).

A primeira experiência com música autoral a chamar a atenção ocor-


reu com o score10, escrito por Joseph Carl Breil para o épico O nas-
cimento de uma nação (The birth of a nation, D.W. Griffith, 1915). 39
Supervisionada pelo próprio diretor, a trilha musical composta para
o filme foi uma das pioneiras a adaptar para o cinema o conceito do
leitmotiv11, instituído por Richard Wagner desde o século anterior
para espetáculos de ópera. Na opinião de Suzana Reck Miranda,
Breil buscou inspiração na ópera:

A música de Breil, cujo referencial valeu-se de procedimen-


tos da ópera wagneriana, dispôs de temas recorrentes para
as principais personagens (ou grupo de personagens), ações
e/ou ideias representadas. Manipulados de forma a cola-
borar para o entendimento da narrativa, estes temas, em-
bora ainda não apresentassem um elaborado grau de de-
senvolvimento, exploraram variações de acordo com novas
situações dramáticas [...]. De um modo geral, as passagens

10 O termo “score”, em inglês, se refere a toda a música originalmente composta para uma trilha
sonora, excluindo-se diálogos, ruídos e outros sons não musicais.
11 Tema musical associado, ao longo de um filme ou obra narrativa, a uma personagem, situação
dramática, objeto ou sentimento.

Capítulo 2 – A história do som dos filmes


próximas à reconstituição de fatos históricos foram articula-
das com melodias pré-existentes (desde trechos de obras de
Wagner a canções da Guerra Civil) e o núcleo ficcional, com
temas originais. (MIRANDA, 2011a, p. 23).

Na década de 1920, dois scores originais, que Suzana Reck Miranda


(2011a) destaca positivamente, foram: a trilha musical escrita por
Camille Erlanger para o filme La suprême épopée (Henri Desfontai-
nes, 1919), muito elogiada por diversos maestros envolvidos com
adaptação de música para cinema na época, e a música de Edmund
Meisel ouvida em O encouraçado Potemkin (Bronenosets Potyom-
kin, Sergei Eisenstein, 1925). Esta última, inclusive, já procurava
investir em dissonâncias e timbres mais ruidosos, abraçando uma
sonoridade mais moderna e menos apegada rigidamente ao neorro-
mantismo europeu hegemônico.
40
Nesse momento, diversas tecnologias que utilizavam som pré-gra-
vado em sincronia com a projeção de imagens já estavam chegando
a um nível de desenvolvimento que possibilitava o lançamento co-
mercial. Este desenvolvimento tecnológico permitia, tanto para os
estúdios quanto para os cineastas, um grau de controle muito maior
sobre a forma como seu produto, o filme, era apresentado. O cine-
ma estava prestes a incorporar o som sincrônico de forma definitiva.

2.2 Uma fase de transição (1927-1932)

Ao contrário do que muita gente pensa, o uso de som pré-gravado


em projeções cinematográficas não começou em meados da década
de 1920, mas muitos anos antes. Até os primeiros anos do século
XX, de fato, utilizar som mecânico acoplado a projeções cinema-
tográficas era tarefa inviável por motivos tecnológicos: as várias
maneiras de registrar o som não eram apropriadas para cópias co-
merciais, pois estavam baseadas em tecnologias de cilindros, como

O som do filme: uma introdução


o conhecido fonógrafo, inventado por Thomas Edison, em 1877. O
primeiro sistema de gravação em discos foi introduzido nos Estados
Unidos, em 1884, mas tinha qualidade sonora pobre em relação aos
sistemas de cilindros disponíveis na época.

Em 1903, um disco de doze polegadas só era capaz de reproduzir até


quatro minutos de sons. Aos poucos, com avanços sucessivos, tanto na
qualidade sonora quanto no tempo de duração da reprodução dos dis-
cos, as gravações em disco foram ganhando mercado, até tornarem-se
hegemônicas na década de 1910 (KLACHQUIN, 2010). Isso aconteceu
por causa da popularização de vitrolas, os primeiros toca-discos. Ainda
nos anos 1910, as vitrolas começaram a ser usadas para executar músi-
ca, acompanhando a projeção de filmes, em teatros de vaudeville com
poucos recursos. Mas essas experiências eram raras, porque a qualidade
do som era muito inferior ao som executado ao vivo por músicos, além
de haver problemas sérios com a sincronia entre som e imagem. 41

Em meados da década de 1920, contudo, a tecnologia havia avan-


çado o suficiente para que surgissem os primeiros sistemas capazes
de garantir a reprodução sincrônica de som pré-gravado e imagens
em película de 35 mm. Uma ampla variedade de tecnologias surgiu
naquela década. Em 1929, havia cerca de 200 sistemas de gravação
e reprodução mecânica de sons patenteados nos EUA. No entanto,
três delas se destacaram das demais.

O primeiro sistema a ser utilizado com sucesso foi o Vitaphone. De-


senvolvido no começo da mesma década pela companhia Western
Electric, o Vitaphone funcionava de modo mais ou menos simples:
um projetor de filmes era conectado mecanicamente a um toca-
-discos e os dois aparelhos funcionavam com um único motor, o
que garantia a sincronia entre som e imagem, mesmo se houvesse
oscilações na corrente elétrica, ocorrência comum naquela época.
Num primeiro momento, o grande desafio consistia em desenvolver
um sistema eficiente de gravação dos sons em disco, o que foi con-
seguido da seguinte maneira:

Capítulo 2 – A história do som dos filmes


No Sistema Vitaphone a gravação do som era realizada por
uma cabeça de corte eletromecânica com uma agulha que
vibrava conforme as variações elétricas recebidas e esculpia
um sulco num disco matriz, imprimindo uma representação
das ondas sonoras. A partir da matriz gravada eram feitas
as cópias para a exibição. Os discos utilizados tinham 12 ou
16 polegadas de diâmetro (aproximadamente 30 ou 40 cm)
e rodavam a uma velocidade de 33 ⅓ rotações por minuto,
permitindo gravações com no máximo 7 e 9 minutos de du-
ração, respectivamente. A gravação era feita em uma única
face do disco. (SOUZA, 2010, p. 35).

A banda dinâmica do Vitaphone, faixa de frequências sonoras que


o sistema de amplificação instalado nos cinemas era capaz de re-
produzir, era bastante estreita: eram gravados em disco apenas sons
42 entre 50 e 5.000 Hz12. Isso, contudo, não era um problema, já que
os sistemas concorrentes tinham banda dinâmica ainda menor. Além
disso, para filmes que não demandavam sincronia (números mu-
sicais registrados em filme ou curtas-metragens com música não
sincrônica), o Vitaphone funcionava bem (BUHLER; NEUMEYER;
DEEMER, 2010, p. 285). Mas dois problemas que ocorriam com
frequência tornavam difícil o uso comercial do Vitaphone. Em pri-
meiro lugar, quando o disco com os sons arranhava fazia a agulha
que reproduzia os sons saltar, ocasionando a perda da sincronia com
a imagem. O mesmo ocorria quando a película do filme se partia
durante a projeção, ocorrência também muito comum.

Tudo isso, aliado ao padrão de consumo de filmes ter se concen-


trado em longas-metragens, tornou limitada a vida do Vitaphone.
Para um filme de longa-metragem funcionar bem dentro do siste-
ma, era preciso máxima atenção do projecionista, que precisava ser
extremamente preciso na hora de trocar os rolos e os discos com

12 O ouvido humano é capaz de perceber sons entre 20 Hz e 20.000 Hz.

O som do filme: uma introdução


os diálogos. Qualquer pequeno atraso ocasionava uma dessincronia
que perdurava até o final do filme, desagradando os espectadores.

O problema na sincronia não existia nos dois principais concorren-


tes do Vitaphone, chamados, respectivamente, de “Movietone” e
“Photophone”. Nos dois sistemas, que tinham diferenças mínimas,
uma faixa monofônica de áudio era gravada no mesmo suporte
onde estava também a trilha de imagem, a película de 35 mm. A
diferença entre os dois sistemas era técnica: estava no modo como a
energia sonora, convertida em matéria fotossensível, era gravada na
película. No caso do Photophone, desenvolvido pela RCA, a área de
registro dos sons era variável; no Movietone, criado pela Fox, o que
variava era a densidade do material (SOUZA, 2010, p. 40).

A opção maciça de todos os grandes estúdios de Hollywood foi pe-


los sistemas chamados de “sound-on-film”. O Vitaphone foi descon- 43
tinuado ainda em 1929, pois já se provara uma tecnologia pouco
confiável e inadequada para os padrões estéticos já consolidados na
indústria cinematográfica. A Warner e a RKO optaram, então, pelo
Movietone. Todos os demais estúdios dos Estados Unidos preferi-
ram adotar o Vitaphone. A razão técnica para esse predomínio do
sistema desenvolvido pela Fox era simples: nele, a inteligibilidade
dos diálogos era maior (SOUZA, 2010, p. 40). Compreender o que os
atores estavam falando era, já naquela época, o objetivo principal
dos artífices do som do filme, já que é por meio dos diálogos que o
público costuma acompanhar a progressão da narrativa.

Mas ainda havia questões técnicas a serem resolvidas. Uma delas era a
dificuldade de montagem dos registros sonoros captados pela equipe
de som direto13. Nos primeiros anos de uso do sistema Vitaphone, o
som de uma cena tinha que ser utilizado na íntegra, mesmo que na
trilha de imagem o cineasta pudesse alterar o ângulo da câmera. No

13 Som direto é o som captado durante as filmagens.

Capítulo 2 – A história do som dos filmes


Vitaphone, a cena tinha que ser usada na íntegra, pela impossibilida-
de de interrupção da gravação do disco no momento da gravação. A
solução para o problema surgiu em meados de 1920, quando duas
câmeras diferentes passaram a ser usadas pelas equipes de filmagem:
uma para registrar a imagem, e outra, totalmente independente, para
registrar o som. Nascia, ali, o dispositivo mais comum de registro ci-
nematográfico, segundo o qual som e imagem de uma cena são gra-
vados por equipamentos autônomos. Esse problema foi solucionado
de outra forma nos sistemas Movietone e Photophone.

Uma dificuldade irremediável para a montagem das tomadas


sonoras com o sistema óptico era o deslocamento físico, de
20 fotogramas, existente entre a posição do registro sonoro
e o fotograma correspondente à imagem. Nas câmeras cine-
matográficas adaptadas para o registro óptico, a válvula de
44 luz estava posicionada 20 fotogramas abaixo da janela de
impressão da imagem. Essa disposição deslocada era neces-
sária para atender às necessidades particulares de cada um
dos registros. O registro fotográfico necessita de pequenas
interrupções do movimento de arraste da película para que
a imagem possa ser impressa, enquanto o registro do som
deve ser feito em movimento contínuo. Assim, a solução en-
contrada por Theodore Case foi instalar a válvula de luz, para
gravar o som, 20 fotogramas à frente da janela da câmera.
Nos projetores, o deslocamento entre a janela de projeção da
imagem e a célula fotoelétrica para a leitura do som óptico
era o mesmo. Na montagem das cenas com som óptico gra-
vado na câmera, o montador precisava sempre cortar o plano
20 fotogramas à frente do ponto escolhido para não perder o
texto correspondente. (SOUZA, 2010, p. 42).

Nos primeiros anos do cinema dominados pelo som, os problemas


técnicos eram muitos, e a furiosa competição entre empresas inte-
ressadas no monopólio dessa área fez com que os avanços tecnoló-

O som do filme: uma introdução


gicos se acumulassem de modo mais intenso e dramático do que em
qualquer outra época da produção cinematográfica. Foi dentro des-
se contexto que O cantor de jazz (The jazz singer, Alan Crosland), o
primeiro longa-metragem sonoro, estreou com grande sucesso nos
Estados Unidos, em 6 de outubro de 1927 (Figura 3). O filme era
apenas parcialmente sonoro e continha somente 354 palavras reci-
tadas por seus atores; era, em essência, um musical (BERCHMANS,
2006, p. 105). Esse era o ponto culminante de uma trajetória por
meio da qual, no início daquele mesmo ano, dois estúdios já haviam
se especializado em produzir curtas-metragens sonoros: a Warner
fazia números musicais e peças de vaudeville (usando o sistema Vi-
taphone), que não precisam de sincronia rígida; a Fox lançava news-
reels, pequenos noticiários, como reportagens de telejornal, produ-
zidos com o Movietone. Nos dois casos, essa produção era vista pelo
público como aperitivo das sessões de filmes em longa-metragem.
45

[Figura 3]

Capítulo 2 – A história do som dos filmes


A produção de O cantor de jazz foi muito complexa, como a maioria
dos outros feitos nos dois anos seguintes. Por causa das técnicas
limitadas de gravação, dos microfones, ainda incipientes e usados
para registrar os sons, e dos ruídos produzidos pelos equipamentos
de filmagem (especialmente a câmera e as lâmpadas de arco vol-
taico então utilizadas, que produziam um desagradável zumbido
intermitente), as cenas dos primeiros filmes sonoros tinham que ser
registradas em longos planos-sequência, já que não se podia editar
o som caso a sequência fosse cortadas em diversos planos. Além
disso, a câmera precisava ficar imóvel, pois tinha que ser colocada
dentro de uma pesada caixa de chumbo (o blimp), que servia para
abafar o ruído produzido pelo seu funcionamento. Esse peso todo
limitava severamente a movimentação da câmera.

Em 1927, os filmes silenciosos já haviam alcançado um padrão esté-


46 tico muito sofisticado, em termos de montagem e de movimento de
câmera. Na época, nada menos do que 84% dos filmes silenciosos
usavam extensivamente a técnica mais comum de montar diálogos,
o plano/contraplano. Em 1929, com a aparição dos filmes sonoros,
somente 16% dos longas-metragens continuou utilizando a técnica.
Além disso, nos filmes mudos, uma em cada seis tomadas tinha mo-
vimento de câmera móvel e, pelo menos até 1931, a movimentação
da câmera praticamente parou de ocorrer em filmes norte-america-
nos (BORDWELL; STEIGER; THOMPSON, 1985, p. 51).

Por causa do enorme retrocesso estético dos filmes sonoros, não


foram poucos os críticos da nova tecnologia desse tipo de filme. As
reações de cineastas e críticos de cinema foram severas. Charlie Cha-
plin, então o mais conhecido ator e diretor de cinema, recusou-se a
lançar filmes sonoros até os anos 1930. Os cineastas franceses René
Clair e Abel Gance se insurgiram contra o som fílmico, denuncian-
do que a nova tecnologia mataria a linguagem já consolidada do
cinema. Menos apocalíptico, em 1928, Sergei Eisenstein escreveu,
com Vsevolod Pudovkin e Grigori Alexandrov, um manifesto sobre o
cinema sonoro, alertando que o cinema retrocederia ao estágio de

O som do filme: uma introdução


teatro filmado se usasse o potencial do som sincrônico apenas para
sublinhar aquilo que já aparecia na trilha de imagens. Ele propunha
que os cineastas usassem a trilha de áudio para incluir informações
não contidas na imagem, tais como músicas e ruídos fora de qua-
dro, a fim de criar uma nova camada de significados que adicionasse
novas informações ao tecido narrativo.

Enquanto isso, toda a rede de teatros e de casas de projeção ao redor


do planeta teve que ser aparelhada para a exibição dos filmes sonoros.
Nos Estados Unidos, esse processo só foi completado no outono de
1929 (BUHLER; NEUMEYER; DEEMER, 2010, p. 293). Em outros paí-
ses, inclusive na Europa – então em dificuldades financeiras por conta
da primeira grande guerra e da instabilidade política que antecedeu o
segundo conflito mundial –, esse processo de atualização do parque
exibidor continuou ao longo da década de 1930. De modo geral, é
consenso entre os pesquisadores do período que os problemas técni- 47
cos oriundos da aparição do som sincronizado só foram efetivamente
solucionados entre os anos de 1932 e 1933.

Nesse período de transição, muitas limitações técnicas foram sendo


superadas aos poucos. Esse hiato de sete anos, contudo, não impe-
diu que muitas obras de sonoridade criativa fossem lançadas. Dentre
os filmes que utilizaram o som de modo mais criativo podem ser
mencionados o thriller M – O vampiro de Düsseldorf (Fritz Lang,
1931), em que o cineasta trabalhou cuidadosamente as transições
sonoras entre as cenas, além de inserir de modo minucioso os sons
de vozes dentro dos diversos ambientes, preocupando-se não apenas
com a reverberação correta de cada espaço físico, mas também dan-
do atenção especial a aspectos não textuais presentes nas vozes; a
comédia Ama-me esta noite (Love me tonight, Rouben Mamoulian,
1932), com uma maravilhosa sequência de abertura que orquestra
de forma quase musical os sons urbanos de Paris, instituindo uma
montagem ritmada e definida pelo som.

Capítulo 2 – A história do som dos filmes


2.3 Era de ouro (1933-1950)

Nos anos de transição do cinema silencioso para o cinema sonoro,


é fundamental destacar a atuação do já citado comitê técnico es-
tabelecido pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de
Hollywood. Em 1926, esse comitê atuou para concentrar os esforços
de diferentes estúdios em melhorias tecnológicas que possibilitas-
sem o estabelecimento de um conjunto unificado de procedimentos
técnicos que permitissem a superação de problemas de captação,
registro e pós-produção, oriundos da inserção do som no, então já
consolidado, sistema de produção de filmes.

Este comitê, liderado pelo produtor Irving Thalberg, executivo dos


estúdios Universal, no começo dos anos 1920 e depois chefe de pro-
dução da MGM, conduziu programas de pesquisa junto a diversas
48 empresas do ramo de equipamentos eletrônicos, tais como a RCA
e a General Electric, a fim de obter soluções técnicas para alguns
problemas que afetavam pesadamente a estética e a linguagem ci-
nematográfica alcançadas ainda na era do filme silencioso. Estavam
entre as prioridades dos estúdios o desenvolvimento de câmeras e
equipamentos de iluminação mais silenciosos, a obtenção de mi-
crofones melhores e a criação de um sistema de exibição sonora
de mais potência, que projetasse sons em uma faixa dinâmica mais
larga e, portanto, permitisse mais clareza e inteligibilidade.

Esses problemas eram graves. As lâmpadas de arco voltaico, que


produziam um zumbido constante, eram consideradas ultrapassa-
das. As câmeras utilizadas produziam tanto ruído que precisavam
ser instaladas dentro de caixas de chumbo, que por sua vez pesavam
demais e limitavam severamente os movimentos (o desenvolvimento
de gruas, equipamento muito popular até hoje, que permite elevar
e movimentar a câmera em todas as direções, ocorreu justamente
nessa época, para ajudar a solucionar o problema). Os microfones,
ainda rudimentares, eram grandes e pesados – por isso, difíceis de

O som do filme: uma introdução


esconder no cenário – e captavam sons indistintamente, de todas as
direções. Esses sons vibravam dentro de uma pequena faixa dinâmi-
ca que não superava os 5.000 Hz, ou seja, os sons de alta frequência
não eram registrados pelo equipamento.

Em 1932, em razão de uma série de avanços tecnológicos rápidos


e constantes, a maior parte desses problemas estava resolvida. As
lâmpadas de arco voltaico começaram a ser substituídas no início
da década de 1930. Em 1931, foi disponibilizado, pela primeira vez,
o microfone bidirecional, que era capaz de captar sons emitidos
apenas na frente e atrás da cápsula, o que favorecia a filmagem
de diálogos entre dois atores e permitia que as equipes de capta-
ção e de registro de imagens e sons se instalassem nas laterais do
cenário. Um pouco mais tarde, em 1936, a RCA começou a fabri-
car microfones unidirecionais, que gravavam apenas sons à frente
da cápsula (BUHLER; NEUMEYER; DEEMER, 2010, p. 310). Esses 49
avanços, combinados com a redução do tamanho do equipamento,
permitiam a captação seletiva de sons com uma qualidade melhor
e, também, davam mais liberdade para que os diretores dos filmes
pudessem organizar a encenação de forma mais livre: orquestração
dos movimentos de atores e da câmera.

Os problemas relacionados à projeção sonora nos cinemas existentes


eram mais complexos e demandaram mais tempo para serem resolvi-
dos. Para começar, a maior parte das salas de projeção da época não
tinha sido construída com projetos acústicos pensados para exibi-
ções com uso exclusivo de som gravado. Não podemos esquecer que
essas casas de espetáculo abrigavam, nos anos 1920, uma série de
shows com música ao vivo, recitais de poesia e espetáculos de circo.
Por isso, tinham estruturas que produziam muita reverberação. Isso
impedia os cinemas de projetarem filmes com muito volume, pois
a reverberação intensa muitas vezes prejudicava a inteligibilidade.

No que se refere a equipamentos, as salas de projeção dos anos


1930 eram programadas para projetar som monofônico, isto é, com

Capítulo 2 – A história do som dos filmes


apenas um canal. Desde meados dos anos 1920, quando foram
inventadas telas de projeção acusticamente permeáveis, os alto-
-falantes principais eram colocados atrás da tela. Em 1938, para
conseguir projetar os sons em uma faixa dinâmica de frequência
maior e, assim, obter maior clareza sonora e inteligibilidade, esse
canal único de projeção de sons passou a ter a saída dividida em
dois alto-falantes, sendo um destinado a receber frequências graves
e o outro destinado às frequências médias e altas. Dependendo do
tamanho da sala, cada teatro podia ser equipado com um número
que variava de dois a seis alto-falantes, que se pareciam, então, com
enormes cornetas de até dois metros de altura.

Um sistema de equalização das salas de projeção chamado Aca-


demy Curve foi instituído no mesmo ano. Era uma tentativa de
criar, em qualquer teatro, um padrão de projeção sonora mais ou
50 menos similar. Na prática, quanto mais agudo fosse o som, menor
era o volume percebido pela plateia. Esse sistema propunha uma
redução progressiva na frequência de resposta sonora dos sistemas
de alto-falantes, o que afetava de forma bastante radical os sons
de frequência mais aguda. Mesmo que isso prejudicasse bastante a
fidelidade aos sons originais, foi a forma encontrada por Hollywood
para manter a clareza dos diálogos, que se concentram em frequên-
cias médias, e a inteligibilidade sonora do filme como um todo. A
Academy Curve permaneceu como parâmetro de projeção sonora
até meados dos anos 1970.

O sistema de projeção sonora organizado na década de 1930 não


mudou durante a próxima década. Contudo, em meados dos anos
1940, uma alteração importante foi introduzida: o sistema ganhou
um terceiro alto-falante, de forma que as frequências sonoras agora
podiam ser projetadas em uma corneta específica para graves, outra
para médios e uma terceira para agudos. Essa inovação tecnológica
permitia uma definição maior dos sons e ampliava a inteligibilidade
dos diálogos. Apesar disso, as trilhas de áudio da grande maioria dos
filmes continuaram a ser monofônicas.

O som do filme: uma introdução


Todas essas inovações tecnológicas compartilhadas pelos grandes es-
túdios de Hollywood permitiram que, em 1932, as produtoras orga-
nizassem um sistema de produção sonora estável e unificado. A esse
sistema foi dado o nome simples de “re-recording” (BUHLER; NEU-
MEYER; DEEMER, 2010, p. 310). O re-recording (termo hoje usado
como sinônimo para mixagem) partia de um princípio praticado até
hoje pelos técnicos de som direto: o elemento mais importante a ser
registrado durante o período de filmagem é a voz dos atores. Todo o
resto – ruídos e música – pode ser registrado e introduzido na trilha
sonora depois, durante a fase de pós-produção. Regravar as vozes em
toda a sua complexidade (breves inflexões, pequenas falhas, sotaques
variados, timbres e texturas delicados, tudo isso mantendo a sincro-
nia labial de forma rigorosa) era uma tarefa dispendiosa, que tomava
tempo e dinheiro. Mais tarde, a partir do final dos anos 1930, com
a evolução de técnicas de gravação, a dublagem passou a ser prati-
cada de forma regular. Atualmente, calcula-se que pelo menos 30% 51
dos diálogos dos filmes realizados em Hollywood têm os diálogos
regravados meticulosamente em estúdio, na fase de pós-produção
(BUHLER; NEUMEYER; DEEMER, 2010, p. 415).

Naquele momento, de todo modo, instituiu-se um procedimento


em comum entre os estúdios: durante as filmagens, eram gravadas
apenas as vozes dos atores. Todo o set de filmagens era acustica-
mente isolado e tratado, para que permanecesse no maior silêncio
possível. Na cadeia de produção fílmica, isso fez com que, já em
1932, cada estúdio tivesse três departamentos separados para cuidar
do som dos filmes: um departamento de som direto (para gravar
diálogos), outro de efeitos sonoros (ruídos) e um terceiro de música.
O primeiro trabalhava na fase de produção; os outros dois, na de
pós-produção. Vem daí a forma como a maioria dos pesquisadores
do som no cinema divide o som dos filmes na atualidade, tratando-
-o com base nessas três categorias.

O departamento de produção de efeitos sonoros talvez tenha sido


a maior novidade estética incluída no processo de re-recording, na

Capítulo 2 – A história do som dos filmes


fase de transição do filme silencioso para o sonoro. Afinal, as gra-
vações de vozes e de música já vinham sendo pensadas desde os
primeiros testes de cada nova tecnologia. Nos primeiros filmes do
período 1928-1929, quando todos os sons (inclusive a música or-
questral) eram registrados ao mesmo tempo, ficou claro para cineas-
tas e técnicos de som que a produção e a gravação de ruídos, espe-
cialmente com o uso dos equipamentos rudimentares disponíveis na
época, interferiam gravemente na clareza dos diálogos. Dessa forma,
como a inteligibilidade da voz era o elemento mais importante da
trilha sonora, os ruídos foram deixados de lado por algum tempo.
Hoje, ao ouvir os filmes dessa época, é possível perceber como as
trilhas sonoras soam vazias, ocas, sem vida.

A solução para esse problema só surgiu a partir de 1929, depois que


a mixagem de dois, ou mais, sons gravados separadamente se tor-
52 nou tecnicamente possível. No mesmo ano, Jack Foley, um diretor
de segunda unidade, especializado em filmar planos-detalhes de
elementos dos filmes e que trabalhava para os estúdios Universal,
propôs uma experiência para os executivos do estúdio. Munido de
alguns objetos, ele levou alguns assistentes para o estúdio onde es-
tava sendo gravada a música original do filme Boêmios (Show boat,
Harry Pollard, 1929). O grupo ficou ao lado da orquestra, enquanto
esta gravava a música original, e produziu ruídos variados (passos,
ruído de roupa etc.) que foram gravados simultaneamente.

A prática foi um sucesso. Foley passou a chefiar o departamento de


efeitos sonoros da Universal, tendo aperfeiçoado a técnica ao longo
dos anos seguintes. Ele costumava gravar os ruídos de um rolo de
filme (aproximadamente 10 minutos) em uma única passada, em
tempo real, sempre com a ajuda de objetos artesanais que ele mes-
mo organizava. Para gravar passos de várias pessoas, usava bengalas
calçadas com sapatos (OPOLSKI, 2013, p. 35); costumava manter
uma toalha dentro do bolso da calça para produzir o farfalhar da
roupa de um indivíduo se movendo. Essa maneira de produzir ruí-
dos da interação do corpo humano com o meio ambiente foi copia-

O som do filme: uma introdução


da pelos demais estúdios e ficou conhecida pelo nome do artista:
foley. Filmes como Drácula (Tod Browning, 1931) figuram dentre os
primeiros trabalhos de Jack Foley.

As equipes dos dois primeiros departamentos eram normalmente in-


cipientes e bastante reduzidas. Nas filmagens, em geral, havia apenas
técnicos de gravação, que manipulavam e instalavam microfones no
cenário, e um diretor de áudio, que coordenava o processo. O depar-
tamento de produção de efeitos sonoros tinha poucos integrantes. O
mais numeroso departamento da produção sonora era o responsável
pela música. Os procedimentos eram divididos em duas áreas principais,
cada uma chefiada por um maestro: o primeiro era responsável por es-
crever a música original, enquanto o segundo escrevia os arranjos e, por
consequência, as partituras individuais para cada instrumento.

Por razões históricas, grande parte dos maestros que se envolveram 53


na criação de música original para filmes de Hollywood vinha da
Europa. Entre o final dos anos 1920 e o começo dos anos 1930,
quando esse sistema se consolidou, os países europeus viviam uma
forte crise econômica e, em termos políticos, vivenciavam a ascen-
são do nazismo na Alemanha. A instabilidade econômica e o clima
de perseguição política fizeram com que muitos europeus emigras-
sem para os Estados Unidos, em particular os oriundos de países
como a própria Alemanha e a Áustria, ambos com forte tradição de
formação sinfônica do estilo neorromântico (exatamente aquele uti-
lizado nos melodramas de Hollywood desde as décadas anteriores).

Foi precisamente por essa razão que o primeiro grande inovador da


música para cinema chegou aos Estados Unidos. Max Steiner nasceu
em Viena, em uma família de artistas. O avô dele era dono de um
teatro em Viena; o padrinho era o compositor Richard Strauss, um
dos últimos compositores do período neorromântico. Steiner apren-
deu piano ainda criança e estudou no conservatório da cidade – o
mais conhecido do mundo, na época. Aos 21 anos, já estava estabe-
lecido como compositor de sucesso.

Capítulo 2 – A história do som dos filmes


Emigrou para Londres durante a I Guerra Mundial, tendo traba-
lhado na capital inglesa como pianista durante cinco anos. Depois,
pressentindo a instabilidade que assolava a Europa, se mudou para
a Broadway e trabalhou como compositor e arranjador para es-
petáculos musicais por oito anos, em Nova York. Mudou-se para
Hollywood em 1929. Era conhecido como trabalhador incansável
e produzia rapidamente. Ao longo da carreira, assinou nada menos
que 290 trilhas sonoras originais. Foi indicado 24 vezes ao Oscar – a
partir de 1934, ano em que a Academia de Hollywood começou a
distribuir o troféu da categoria – e ganhou três vezes.

Steiner foi pioneiro na adaptação de técnicas normalmente oriundas


da ópera para o cinema. Além de trabalhar com eficiência a noção
de leitmotiv, ele propôs soluções simples e inventivas para reforçar a
sincronia entre a música e a imagem dos filmes. Em geral, as trilhas
54 de Steiner se destacavam pela descrição musical minuciosa e pela
maneira detalhada como ele pontuava as ações físicas dos persona-
gens vistos na tela. Essa técnica, também utilizada para substituir
efeitos sonoros sincrônicos, foi chamada de “mickeymousing”. Stei-
ner também abusava do ostinato14, introduzindo, às vezes, peque-
nas variações como forma de acentuar a tensão e o suspense.

O primeiro grande trabalho de Max Steiner foi a música de King


Kong (Merian C. Cooper e Ernest B. Schoedsack, 1933, Figura 4).
Graças aos produtores, Steiner teve à sua disposição quatro sema-
nas e uma orquestra de 80 integrantes – o dobro do tempo e dos
recursos para o normal da época. Críticos descreveram a partitura
original como uma sinfonia que, por acaso, era acompanhada de
um filme. A descrição é injusta, pois o trabalho de descrição musical
da partitura é notável, assim como o é o conceito do uso da música,
que não aparece na primeira parte do filme, passada em Nova York
e pontuada por sons urbanos. A música de Steiner, muitas vezes

14 Um motivo, ou frase musical, repetido insistentemente, quase sempre na mesma intensidade.

O som do filme: uma introdução


exótica e sombria, só aparece quando a ação dramática é transferida
para a ilha onde vive o macaco gigante. O filme se tornou, assim,
um excelente exemplo do uso de um conceito diegético para guiar
o arranjo e a construção rítmica e melódica da partitura.

55

[Figura 4]

Além de Steiner, outros maestros que se destacaram ao longo da


Era de Ouro dos estúdios de Hollywood e deram importantes contri-
buições para o desenvolvimento de uma estética musical específica
do cinema foram: Erich Wolfgang Korngold, imigrante austríaco
judeu que chegou a Hollywood fugindo da perseguição nazista e se
estabeleceu criando fanfarras grandiloquentes, identificadas com os
grandes filmes de aventura exibidos nas matinês; Alfred Newman,
norte-americano, diretor musical da Fox e criador da vinheta até
hoje usada nos filmes do estúdio, concorreu 45 vezes ao Oscar e ga-
nhou nove; Franz Waxman, alemão, especialista em música sombria
e, por isso, muito identificado com filmes de horror; Miklos Rozsa,
húngaro, primeiro compositor a incluir um instrumento eletrônico –
no caso, o theremin – em uma trilha sonora; Dimitri Tiomkin, russo,
especialista em westerns; Bernard Herrmann, norte-americano, pio-
neiro na incorporação de elementos da música moderna aos scores

Capítulo 2 – A história do som dos filmes


dos filmes de Hollywood e, portanto, um dos primeiros a se distan-
ciar do neorromantismo quase obrigatório para a época.

2.4 Som estéreo e modernismo (1950-1975)

As inovações tecnológicas que ocorreram nos sete anos (1927-1933)


em que durou a transição do cinema silencioso para o sonoro cons-
tituíram um período de mudanças extremamente aceleradas nos
campos do registro e da projeção de sons no cinema. Ao longo
da década de 1930, o ritmo vertiginoso dos upgrades tecnológicos
naturalmente caiu, mas aprimoramentos continuaram ocorrendo,
como já vimos. No entanto, nessas duas décadas, pelo menos um
aspecto importante a respeito da tecnologia usada para projetar
sons em salas de cinema não mudou: a trilha sonora dos filmes con-
56 tinuava monofônica, ou seja, projetada em apenas um canal sonoro.

Neste ponto, cabe um questionamento importante: de que maneira


a estereofonia poderia ajudar os diretores de cinema a contar his-
tórias de forma mais apropriada? Uma resposta possível pode estar
no exemplo dado por Carlos Klachquin, que foi por muitos anos
consultor da Dolby para a América Latina:

Mais de dois mil anos antes do cinema, o teatro clássico


grego usava alguns recursos interessantes, como colocar o
coro fora do palco, às vezes na parte superior do teatro, e
rodeando as arquibancadas. Dessa forma, colaborava para
melhor mergulhar o espectador e ‘envolvê-lo’, no duplo sen-
tido na palavra, na ação da peça. (KLACHQUIN, 2010).

O principal ganho trazido ao cinema pelo som estéreo, portanto,


estava na possibilidade de trabalhar com mais de um canal, proje-
tando diferentes informações sonoras ao mesmo tempo. Um sistema
de projeção estereofônico poderia, em tese, permitir aos cineastas

O som do filme: uma introdução


colocar diálogos e música em alto-falantes diferentes. Poderia, tam-
bém, permitir a espacialização do som dentro da sala: manipulando
corretamente a intensidade e a reverberação do som, um bom mi-
xador poderia criar a ilusão de movimento do som dentro da sala
de cinema. Tudo isso parecia muito promissor, mas ainda assim a
estereofonia demorou muito tempo para ser explorada em filmes.

A razão principal para este fato não era de ordem técnica, mas
sim uma questão financeira. A tecnologia estereofônica já estava
disponível desde 1933, quando a companhia telefônica Bell Labs
realizou um teste de gravação e transmissão de um concerto de
música sinfônica em dois canais. Em Nova York, no ano de 1940,
a mesma empresa, associada à AT&T, realizou uma demonstração
da tecnologia estereofônica para cinema. O sistema de gravação
desenvolvido por eles era capaz de registrar sons simultaneamente
em quatro pistas sonoras, sendo três de áudio propriamente dito e 57
uma utilizada como sinal de controle: a informação gravada nesta
pista controlava a relação de volume entre as informações sonoras
presentes nas outras três pistas (ALVAREZ, 2007, p. 26).

O primeiro sistema estereofônico utilizado no cinema tinha um fun-


cionamento muito parecido com a experiência da Bell Labs e da
AT&T. O sistema denominado Fantasound foi desenvolvido pelos
engenheiros da RCA, no mesmo ano de 1940. Também consistia de
três pistas sonoras de som ótico, registradas numa película de 35
mm, e uma quarta pista que servia de sinal de controle, definindo a
relação de volume entre as outras três. No entanto, a tecnologia de
gravação era superior (podia-se registrar uma orquestra em até oito
canais) e havia uma novidade: um botão, denominado “pan-pot”,
por meio do qual os técnicos de mixagem podiam criar rapidamente
a ilusão de movimento do som entre dois alto-falantes. O sistema de
projeção do Fantasound era bastante avançado, rodava a imagem
do filme em 35 mm de um lado, e continha um segundo filme ótico
com o registro das quatro pistas de som (KLASHQUIN, 2010).

Capítulo 2 – A história do som dos filmes


Dentro do teatro, os canais sonoros do Fantasound eram distribuí-
dos da seguinte maneira: direito, centro, esquerdo. Num primeiro
momento, os engenheiros da RCA discutiram diversas hipóteses. Po-
diam ter apenas dois canais ou podiam explorar um número maior.
Baseados em testes, definiram que três era o número mais adequa-
do. Em primeiro lugar, porque eles descobriram que precisavam de
um canal central para ancorar os diálogos de forma permanente
– eles perceberam rapidamente que não podiam deslocar as vozes
dos atores da esquerda para a direita, e vice-versa, sem provocar um
momento de desorientação na plateia. Manter os diálogos sempre
soando simultaneamente nos dois canais, evidentemente, não era
uma opção, pois isso eliminava o poder de sedução da estereofonia,
que era trabalhar a espacialização dos sons no eixo horizontal da
teta. Finalmente, levando em consideração o tamanho das salas de
cinema e a faixa dinâmica alcançada pelos equipamentos da época,
58 um número maior de alto-falantes não causava um efeito de espa-
cialização tão eficiente. Três era o número cabalístico.

O sistema Fantasound foi desenvolvido a pedido de Walt Disney


para um filme específico: Fantasia (Norman Ferguson, 1940), um
filme de episódios, quase abstrato, cujo score explorava extensa-
mente a espacialização da música. O caráter quase experimental
do filme, contudo, contribuiu para seu fracasso comercial, o que
desestimulou os estúdios a investir na tecnologia. A razão principal
para que o Fantasound fosse abandonado, no entanto, foi mesmo
o custo proibitivo para a atualização do sistema de projeção sonora.
O teatro que decidisse investir na instalação do projetor especial e
dos alto-falantes tinha que desembolsar 45 mil dólares (ALVAREZ,
2007, p. 27). Para efeito de comparação, esse custo era nove vezes
maior do que o preço que uma sala de projeção tinha que pagar
para instalar o sistema Dolby Stereo, 35 anos mais tarde. Por fim,
quando os Estados Unidos entraram na II Guerra Mundial, em 1941,
a produção das fábricas de componentes eletrônicos teve que ser
redirecionada para os objetivos bélicos do país. As ideias ambiciosas
de um sistema estereofônico tiveram que ser adiadas por mais algum

O som do filme: uma introdução


tempo. A retomada dos projetos de estereofonia sonora aconteceu
a partir de dois fatos principais. O primeiro desses fatos ocorreu em
1948, graças a uma polêmica decisão tomada pela Suprema Corte
dos EUA. Naquele ano, a instância jurídica máxima do país decidiu
que os grandes estúdios de cinema não podiam mais monopolizar
toda a cadeia produtiva audiovisual, de ponta a ponta, pois isso
constituiria monopólio de um setor econômico, algo proibido pela
Constituição. A decisão obrigava todos os estúdios a vender as salas
de exibição. Dessa forma, Paramount, 20th Century Fox, Warner,
Universal e todos os demais estúdios optaram por concentrar seus
negócios em duas áreas prioritárias: financiamento de filmes e dis-
tribuição (BUHLER; NEUMEYER; DEEMER, 2010, p. 338).

Por consequência, a produção de filmes passou, cada vez mais, a


ser tarefa de produtoras independentes – empresas menores, muitas
vezes dirigidas por diretores ou atores de prestígio, que cuidavam de 59
selecionar e desenvolver projetos, do roteiro até a montagem final,
usando o dinheiro dos grandes estúdios, que, por sua vez, cuidavam
da distribuição e ficavam com a maior parte dos lucros oriundos das
bilheterias. Esse novo sistema de produção afetou, de modo geral,
toda a cadeia produtiva do cinema.

O segundo evento crucial foi a expansão vertiginosa da televisão. No


começo dos anos 1950, emissoras de televisão aberta disponibiliza-
vam programação audiovisual gratuita em toda a área continental
dos EUA. Para a maioria dos executivos ligados ao cinema, a tele-
visão era vista como uma ameaça ao negócio. O raciocínio parecia
simples: por que um espectador deveria sair de casa para pagar por
um ingresso e assistir a um filme se ele poderia ver de graça, e sem
sair do sofá da sala, uma programação audiovisual de bom nível? A
solução para esse impasse, segundo a lógica dos grandes estúdios,
consistiu em transformar os filmes em grandes eventos. Em outras
palavras, isso significa oferecer uma experiência audiovisual subs-
tancialmente diferente daquela a que o público tinha acesso em
casa. Essa experiência deveria ser provida por um massivo avanço

Capítulo 2 – A história do som dos filmes


tecnológico em todas as áreas: imagem e som deveriam receber up-
grades. As experiências que se seguiram incluíam projeções em telas
gigantes, em três dimensões (3D) e filmes coloridos.

No caso específico da trilha sonora, os estúdios se voltaram de ime-


diato para a estereofonia. Não apenas porque a tecnologia já estava
disponível, mas, sobretudo, porque parecia coerente com o conceito
do filme como evento. Assim, o primeiro sistema a concretizar a ideia
do filme-espetáculo surgiu em 1952: o Cinerama. Tecnicamente, o
Cinerama funcionava com três projetores de 35 mm interligados,
projetando uma imagem gigante em uma tela arqueada, com ângu-
lo de visão de 146 graus horizontais por 545 graus verticais, ou seja,
um antecessor do IMAX.

Na área do som, o sistema desenvolvido para o Cinerama gravava


60 e reproduzia os sons através de uma fita magnética15, sincronizada
com as três películas que reproduziam a imagem por meio de um
sistema especialmente desenvolvido para isso. O Cinerama era capaz
de reproduzir até sete canais independentes de informações sono-
ras. A fita era reproduzida por um projetor especial. A distribuição
espacial dos alto-falantes seguia o seguinte padrão: centro, direito
central, direito, esquerdo central e esquerdo. Os dois canais restan-
tes eram especiais e podiam ser manipulados, em cada projeção do
filme, por um engenheiro posicionado dentro da cabine de projeção.
Como duas opções principais, esse engenheiro podia enviar: (1) um
canal para as paredes laterais e outro para a parede traseira da sala
de projeção ou (2) um canal para a parede lateral direita e outro
para a parede lateral esquerda (ALVAREZ, 2007, p. 27).

A descrição do funcionamento do Cinerama dá uma boa pista do


motivo do fracasso do sistema: os custos de implantação eram in-
crivelmente altos. Apenas para providenciar a instalação de todos os

15 A fita magnética oferecia qualidade de reprodução sonora superior ao do som óptico (registrado
diretamente na película de 35 mm).

O som do filme: uma introdução


equipamentos necessários em uma única sala de projeção, o sistema
custava 100 mil dólares, 20 vezes o investimento necessário para
instalar o sistema Dolby Stereo em um cinema, vinte anos mais
tarde. Além disso, ainda havia o custo extra de manter um enge-
nheiro acústico trabalhando durante cada projeção de um filme. O
Cinerama não decolou, embora fosse tecnicamente o mais avançado
sistema projetado na década de 1950.

Outro sistema avançado, que surgiu como uma espécie de revisão do


Cinerama, foi chamado Todd-AO, que apareceu em 1955. Desenvolvi-
do para a Universal por um engenheiro acústico chamado Mike Todd,
esse sistema deixava de lado os três projetores de 35 mm para adotar
um único projetor de 70 mm. A nova tecnologia também projetava
imagens em uma gigantesca tela arqueada, com ângulo de visão de
128 graus. Os sons também eram registrados em uma fita magnética
acoplada ao projetor de imagens e eram distribuídos em seis canais 61
frontais (centro, centro-direito, centro-esquerdo, direito, esquerdo) e
um canal surround (paredes laterais e traseira).

Em resumo, o Todd-AO foi uma tentativa de baratear os altos cus-


tos de implantação do Cinerama, por intermédio da eliminação da
necessidade de três projetores e da presença do engenheiro nas pro-
jeções cinematográficas. No entanto, o custo geral de implantação
do sistema continuava alto demais, sobretudo devido ao uso da
tecnologia da fita magnética para reprodução sonora. Embora os
resultados alcançados fossem superiores, acusticamente, aos siste-
mas tradicionais de som óptico, o resultado foi um novo fracasso. O
Todd-AO só durou três anos. Estava extinto em 1958.

Enquanto isso, a 20th Century Fox desenvolvia o mais popular dos


sistemas elaborados para combater a ameaça da televisão. Em 1953,
o Cinemascope foi lançado por intermédio do longa-metragem O
manto sagrado (The robe, Henry Coster). Tecnicamente, o Cinemas-
cope (Figura 5) recuperava a solução estética do Fantasound, inves-
tindo em quatro canais independentes de áudio, sendo três frontais

Capítulo 2 – A história do som dos filmes


(centro, esquerda, direita) e um surround (laterais e traseiro). O sis-
tema da Fox também mantinha o uso de uma única película de 35
mm, o que barateava os custos de sua implantação, já que os pro-
jetores de imagem não precisavam ser trocados. A melhor novidade,
em termos de som, é que a película de 35 mm agora possuía tarjas
magnéticas, de forma que as pistas sonoras não eram mais ópticas,
e sim magnéticas, o que resultava em melhor qualidade de áudio,
especialmente nas altas frequências (agudos).

62

[Figura 5]

Para inscrever as quatro pistas de som óptico na película, a Fox pas-


sou a registrar as imagens com o uso de lentes anamórficas. Essas
lentes especiais captam a imagem em uma janela de proporção mais
comprida16, mas gravam essa imagem na película numa proporção
mais quadrada (1.37:1). A distorção na imagem é desfeita apenas
no momento da projeção final, quando a imagem passa por outra

16 No início, a proporção usada era 2.55:1, ou dois metros e 55 centímetros de largura para cada
metro de altura; após alguns anos, essa janela foi ajustada para 2.35:1, que permanece até hoje.

O som do filme: uma introdução


lente anamórfica que restitui a proporção original mais alongada.
Essa complicada operação matemática permitia economizar espaço
no negativo de 35 mm para inscrever nele os quatro canais de som
óptico: dois canais em cada lado da imagem, um canal entre as per-
furações da película e o frame e outro canal entre as perfurações e
a borda do filme.

O sistema Cinemascope era complementado, ainda, por alguns atra-


tivos tecnológicos que se ajustavam à perfeição ao conceito de fil-
me-espetáculo perseguido pelos estúdios. Um desses atrativos era
um novo sistema de cores saturadas, que deixavam a imagem re-
pleta de cores de tons resplandecentes. Essa ideia era uma resposta
direta à concorrência da televisão colorida, que entrou em operação
em 1954. Alguns filmes produzidos em Cinemascope também uti-
lizavam a inovadora tecnologia 3D, na qual a imagem era gravada
por um sistema de duas câmeras acopladas e, quando reproduzida 63
por um sistema especial de projetores e visualizada com a ajuda de
um par de óculos especiais, provocava no espectador a ilusão de ver
a tela em três dimensões.

Graças ao custo mais acessível e às inovações técnicas, que em-


purravam a experiência cinematográfica para um padrão inédito
e vigoroso de imersão do espectador na narrativa fílmica, o Ci-
nemascope foi um sucesso. Ainda em 1953, a Fox licenciou o
sistema para outros estúdios de grande porte: Columbia, Warner
Bros, Universal, MGM e Disney. Aos poucos, nos anos seguintes,
o Cinemascope seria substituído por um sistema rival, o Panavi-
sion, mas as alterações tecnológicas eram mínimas em relação às
novidades introduzidas pelo Cinemascope. É importante lembrar,
ainda, que, ao longo das décadas de 1950 e 1960, muitos outros
sistemas similares entraram em operação, como é o caso do Vista-
vision (desenvolvido pela Warner) e do Techniscope, sistema mais
barato, porém de qualidade técnica inferior, muito utilizado nos
filmes populares italianos dos anos 1960.

Capítulo 2 – A história do som dos filmes


No campo da gravação do som direto, as décadas de 1950 e 1960
viram o nascimento e a consolidação de uma marca suíça que iria
dominar o mercado de gravadores de som para filmes até meados
dos anos 1990. O gravador Nagra foi inventado pelo engenheiro
polonês Stefan Kudelski, em 1951, e constituiu o primeiro equipa-
mento portável capaz de gravar som com qualidade profissional. Ao
longo da década, Kudelski se dedicou ao aperfeiçoamento de sua
invenção, que culminou com o lançamento do Nagra III, em 1958.

O Nagra III foi o primeiro gravador portátil capaz de registrar sons


com qualidade profissional de cinema e de televisão. Equipado com
um modulômetro que permitia ao técnico responsável pela opera-
ção a checagem em tempo real do nível de intensidade de registro
do som, o Nagra III era leve e de fácil operação. Ele permitia não
apenas a captação de áudio em qualquer locação, mas também o
64 estabelecimento de um sistema de registro de sons composto por
um pequeno número de profissionais (de fato, apenas duas pessoas
podiam compor uma equipe de captação de áudio: uma para ope-
rar o gravador e outra para posicionar o microfone), situação que
barateava muito o custo de filmar fora de estúdios, pois o custo
do aluguel encarecia bastante a produção de filmes. O sucesso foi
tão grande que a RAI, emissora italiana de televisão, comprou 100
unidades do Nagra III, em 1959, para cobrir as Olimpíadas de Roma
do ano seguinte.

A invenção do Nagra é tida como um dos avanços técnicos funda-


mentais que permitiram o surgimento, no começo dos anos 1960,
de uma forte onda de produção de documentários – sobretudo na
América do Norte e na França – e de filmes ficcionais de baixo orça-
mento, produzidos fora do esquema estabelecido nos Estados Uni-
dos e que geraria movimentos cinematográficos importantes, como
a Nouvelle Vague francesa e os Cinemas Novos brasileiro e alemão.
Esses movimentos revelaram ao mundo diretores como Jean-Luc
Godard, François Truffaut, Glauber Rocha, Rainer Werner Fassbin-
der, Wim Wenders, dentre outros. O Nagra III, por sua vez, foi suce-

O som do filme: uma introdução


dido, em 1971, pelo Nagra IV-S (Figura 6), primeiro gravador por-
tátil estéreo, que podia registrar dois canais independentes de sons.

65

[Figura 6]

No campo da música para cinema, a maior inovação das décadas


de 1950 e 1960 consiste na introdução de influências da música
popular nos scores. Alguns compositores, como Elmer Bernstein e
Henry Mancini, começaram a introduzir elementos de jazz e rock
na música cinematográfica, em filmes como A embriaguez do su-
cesso (The sweet smell of success, Alexander Mackendrick, 1957) e
A pantera cor-de-rosa (The pink panther, Blake Edwards, 1963).
Na Europa, Ennio Morricone escreveu diversos scores que incorpo-
ravam influência não apenas do pop, incluindo temas com melodias
assobiadas, mas também da música concreta, em que ruídos prove-
nientes da diegese (sons de tiros, galopes de cavalo, chicotadas) são
incorporados às composições musicais como elementos rítmicos.

Capítulo 2 – A história do som dos filmes


2.5 Dolby Stereo e sound design (1975-1992)

A onda de cinema moderno que varreu a Europa, liderada por ci-


neastas-autores como Godard, Michelangelo Antonioni e Ingmar
Bergman, chegou aos Estados Unidos em meados dos anos 1960 e
causou um impacto dramático. Na época, o cinema experimentava
uma forte crise financeira, incluindo uma queda acentuada na ven-
da de ingressos, o que causou uma mudança geral nas diretorias dos
grandes estúdios. No rastro das mudanças, uma geração de jovens
cineastas – a primeira saída de faculdades de cinema – começou
a filmar, inspirada nos filmes franceses cheios de vigor e juventu-
de que chegavam aos EUA. Scorsese, Coppola, Peter Bodganovich,
John Milius, William Friedkin e Steven Spielberg, dentre outros no-
mes famosos, impulsionaram o cinema americano em outras dire-
ções. Era uma geração ligada em tecnologia, e a área do som foi
66 uma das mais impactadas pelas mudanças trazidas por ela.

Uma das inovações mais percebidas e, no entanto, menos notadas


pelo público, foi o uso cada vez mais frequente de microfones de la-
pela sem fio, também chamados de “lavaliers”. O modelo mais utili-
zado, ao longo da década de 1970, foi o Sony ECM-50, introduzido
no mercado em 1960 (SALT, 2009, p. 319). Esses microfones, geral-
mente colado com fitas adesivas especiais no peito, possuem uma
cápsula minúscula, que é fixada no corpo do ator. Eles transmitem
um sinal via rádio para um receptor externo, que fica plugado no
gravador. Apesar de terem uma desvantagem notável em relação aos
microfones unidirecionais comuns, pois a qualidade do som captado
é muito inferior, essas cápsulas diminutas oferecem a possibilidade
de gravar cada ator separadamente.

Robert Altman foi o cineasta que mais se beneficiou dessa novida-


de. Ele começou a testar o equipamento em 1971 e o adotou de
forma definitiva a partir de 1974. Muitos dos filmes que fez, como
Nashville (1975) e Cerimônia de casamento (A wedding, 1978),

O som do filme: uma introdução


tinham diversas cenas com 10 ou mais atores, simultaneamente, em
cena, muitas vezes falando linhas de diálogo sobrepostas. Altman
desenvolveu a técnica de microfonar com lavaliers cada um dos
atores, registrando um canal sonoro individual para cada um, com a
ajuda de dois gravadores sincronizados Steven Electronic 8-Tracks,
um gravador de oito canais, até então mais utilizado pelo mercado
musical. Depois, na pós-produção, os editores de diálogos podiam
mixar os diálogos sobrepostos com cuidado, a fim de alcançar mais
clareza e inteligibilidade.

A música neorromântica tradicional, que já convivia com o rock e


o jazz desde a década anterior, também começou a dividir espaço
com trilhas que consistiam de colagens de músicas pré-existentes.
Até então, eram raros os filmes que optavam pelo uso de música
não produzida especialmente para a ocasião. Stanley Kubrick que-
brou esse padrão com 2001 – uma odisseia no espaço (2001 – a 67
space odissey, 1968), assim como Dennis Hopper, em Sem destino
(Easy rider, 1969).

Outra tendência, nascida a partir de meados dos anos 1970, era a


produção de álbuns de canções, muitas delas não incluídas no filme
exibido nos cinemas; o objetivo central, evidentemente, era o mer-
cado musical, não o cinematográfico. Os embalos de sábado à noite
(Saturday night fever, John Badham, 1977) é o melhor exemplo dessa
prática: quatro das canções do álbum foram lançadas como singles
antes que o filme começasse a ser exibido. Essa estratégia impulsio-
nou não apenas as vendas do álbum, mas também atraiu mais gente
para ver o filme (BUHLER; NEUMEYER; DEEMER, 2010, p. 341).

Mas a grande inovação dessa fase foi, sem dúvida, a instituição de


dois sistemas desenvolvidos pela empresa norte-americana Dolby,
na primeira metade dos anos 1970. A primeira inovação apare-
ceu em 1971: era um sistema de redução de ruídos de gravações
magnéticas, denominado Dolby A-NR (o NR é a abreviação de
noise reduction, ou redução de ruídos, em bom português). A

Capítulo 2 – A história do som dos filmes


Dolby, fundada pelo engenheiro Ray Dolby, em 1965, já usava esse
sistema em gravações musicais, mas adaptou-o para a tecnologia
cinematográfica. Stanley Kubrick, que já era um cineasta obceca-
do por inovações tecnológicas, abraçou a causa e fez de Laranja
mecânica (A clockwork orange, 1971) o primeiro filme a utilizar
esse sistema.

O Dolby A-NR consistia de uma tecnologia capaz de reduzir o ruído


produzido por uma transcrição analógica feita de uma matriz para
uma cópia. A cada transcrição, gera-se em torno de 3 decibéis de
ruído (KLACHQUIN, 2010). Isso significa que a cada nova cópia, o
som original vai se degradando, pois ganha 3 decibéis a mais de
ruído. Por meio de um complexo tratamento eletrônico do processo,
o Dolby A-NR garantia uma redução de ruído da ordem de 10 a 15
decibéis. Aplicado ao longo de todo o processo de edição de som e
68 mixagem, o sistema garantia que a trilha gravada ao final do pro-
cesso soasse muito mais limpa e fiel aos sons originais.

O Dolby A-NR, porém, era uma tecnologia criada para atuar em mí-
dia magnética. A projeção cinematográfica, como já foi dito antes,
é gerada a partir de uma película óptica de 35 mm. Assim, ao lado
do sócio Ioan Allen, o proprietário da Dolby se dedicou, duran-
te quatro anos, a desenvolver um novo sistema capaz de aplicar a
técnica de redução de ruído à película cinematográfica. O sistema
deveria, ainda, ir além: permitir a estereofonia sonora a um custo
acessível. Àquela altura, em meados dos anos 1970, os executivos
dos estúdios e donos de cinemas já não temiam mais a ameaça da
televisão, tendo optado por deixar de lado os esforços no sentido de
desenvolver sistemas de reprodução sonora estereofônicos.

Em primeiro lugar, os engenheiros se concentraram em pensar no


número de canais sonoros independentes que podia ser colocado
numa película de 35 mm. Eles partiam do princípio de que não
poderiam trabalhar com outro formato de projeção de imagem, pois
isso aumentaria os custos de produção e de projeção dos filmes, o

O som do filme: uma introdução


que terminaria por inviabilizar o novo sistema, do mesmo jeito que
havia acontecido nos anos 1950, com os sistemas multicanais. De-
cidiram trabalhar com quatro canais: três frontais (direita, esquerda,
centro) e um surround (laterais e traseira), seguindo o padrão esta-
belecido com sucesso pelo Cinemascope.

Havia uma dificuldade que parecia instransponível. Na película de


35 mm, há um espaço mínimo de apenas 3 mm para inscrever as
pistas óticas de som. Gravar quatro pistas óticas nesse espaço era
impossível: “teríamos sérios problemas de alinhamento e estabilida-
de mecânica na leitura dos projetores” (KLACHQUIN, 2010). A solu-
ção foi usar um complicado sistema de codificação e decodificação,
que comprimia as informações sonoras dos quatro canais em apenas
duas faixas ópticas, usando uma intrincada combinação de redução
de decibéis e inversões de fases. Na sala de cinema, o projetor está
ligado a um decodificador capaz de: analisar o conteúdo das duas 69
pistas ópticas inscritas na película de 35 mm, reconstruir as infor-
mações sonoras para os quatro canais originais e aplicar o redutor
de ruídos Dolby A-NR, antes de distribuir essa informação sonora
para os alto-falantes (ALVAREZ, 2007, p. 31-32).

Dessa forma, além de permitir o uso de quatro canais sonoros inde-


pendentes, com nível de ruídos reduzido em no mínimo 10 decibéis,
o sistema Dolby Stereo ainda era capaz de oferecer uma resposta de
frequência próxima à capacidade da audição humana (de 20 Hz a
20.000 Hz). Em outras palavras: um filme gravado e projetado com
a tecnologia era capaz de oferecer quatro canais autônomos de áu-
dio, livre de ruídos incômodos gerados durante os processos de edi-
ção, mixagem e reprodução e com uma alta fidelidade desconhecida
pelos espectadores das salas de projeção da época. Isso tudo podia
ser conseguido com um investimento de apenas cinco mil dólares
para cada teatro que estivesse com alto-falantes novos ou 20 mil
dólares para a completa substituição do sistema sonoro (BUHLER;
NEUMEYER; DEEMER, 2010, p. 374).

Capítulo 2 – A história do som dos filmes


Mesmo assim, durante dois anos, donos de cinemas e executivos de
estúdios não demonstraram grande interesse. Apenas musicais utili-
zavam o novo sistema, de maneira relativamente burocrática. O filme
que deu visibilidade ao Dolby Stereo só surgiu em 1977: o primeiro
Guerra nas estrelas (Star wars: a new hope, George Lucas). A se-
quência de abertura do longa-metragem foi especialmente concebida
para apresentar, com estardalhaço, a mais ostensiva e inovadora ca-
racterística do sistema sonoro, que era a possibilidade de movimentar
o som através da sala de cinema. O filme de George Lucas abre com
uma tomada do céu estrelado. O ruído crescente de motores surge
nos alto-falantes traseiros. Esse ruído segue aumentando e se move
de trás para frente, até que duas naves espaciais entram em quadro
pelo lado superior direito, trazendo consigo o rugido do motor para
os canais dianteiros direito e central. Não foi preciso mais do que
alguns segundos para fisgar a imaginação de milhões de jovens ao re-
70 dor do mundo e fazer algumas centenas de executivos verem cifrões.
Dessa vez, a estereofonia chegara para ficar.

Em 1987, o sistema de redução de ruídos da Dolby sofreu um up-


grade digno de nota. O Dolby A-NR deu lugar ao Dolby SR (sigla
de spectral recording), que conseguia reduzir o ruído não mais em
10 ou 15 decibéis, mas em 25 decibéis, ou seja, quase 400 vezes a
energia bruta do ruído, um número estarrecedor. Esse sistema, asso-
ciado ao Dolby Stereo, continua sendo utilizado até hoje em filmes
de baixo orçamento – especialmente quando os produtores não têm
dinheiro para pagar a taxa de licenciamento cobrada pela empresa
–, pois “soa quase igual a um filme digital em relação à qualidade”
(KLACHQUIN, 2010).

De todo modo, é bom ter em mente que a mera presença de um


sistema redutor de ruídos e do Dolby Stereo não torna espetacular
qualquer som de filme. Mesmo nos anos 1970, era preciso, como
ainda o é, que os artífices cinematográficos passassem a devotar à
trilha sonora o mesmo planejamento cuidadoso de que a imagem
era objeto. Até então, o som de cinema era pensado de um ponto de

O som do filme: uma introdução


vista quase que estritamente técnico. A cena de abertura de Guerra
nas estrelas é um exemplo claro e evidente de que o potencial do
novo sistema sonoro era grande, mas exigia um trabalho de concep-
ção criativa para que se pudesse extrair dele tudo o que podia dar.

Foi nessa mesma época que surgiu a figura do sound designer. Esse
profissional era responsável por conceber, planejar e executar um
projeto criativo que permitisse ao filme extrair da banda sonora todo
o potencial que ela poderia oferecer. Em 1977, o termo ainda não
existia. Ele foi cunhado dois anos depois pelo braço direito de Fran-
cis Ford Coppola: um talentoso editor chamado Walter Murch, res-
ponsável pela edição de som e imagem de Apocalypse now. Murch
passara um ano inteiro concebendo e montando o som do épico de
guerra. Ele gastou outro ano trabalhando na montagem visual e foi
capaz de entregar um trabalho paradigmático. A sequência de aber-
tura – o delírio de um militar drogado num quarto de hotel vendo 71
uma floresta de palmeiras pegando fogo e confundindo o ruído de
um ventilador com os voos de helicópteros – permanece até hoje
dentre os usos mais criativos de som que se pode imaginar. Nela, o
ruído ritmado das pás dos helicópteros circula pela sala de exibição,
envolvendo o espectador completamente dentro da ação narrativa.

Murch (2004) criou o termo e foi o primeiro homem a receber cré-


dito de sound designer, mas já havia outros profissionais que exe-
cutavam a mesma tarefa. Desde meados dos anos 1950, os filmes
de Alfred Hitchcock, Jacques Tati, Robert Bresson e Sergio Leone,
dentre outros diretores sensíveis ao som cinematográfico, exibiam
trilhas sonoras criativas e inovadoras. Nos EUA, embora Guerra nas
estrelas não tivesse formalmente um sound designer, um engenhei-
ro acústico chamado Ben Burtt estava por trás da excelência do som
do filme. Para a franquia de George Lucas, Burtt criou um universo
sonoro de robôs, androides, veículos intergalácticos de todos os ta-
manhos, animais alienígenas e armas de raio laser usando a criativi-
dade e muito conhecimento técnico do potencial do Dolby Stereo.

Capítulo 2 – A história do som dos filmes


Graças a Murch e Burtt, no final dos anos 1970, a função do sound
design estava firmemente estabelecida. A partir de então, e ao longo
das próximas duas décadas, a divisão de trabalho na etapa da pós-
-produção sonora foi paulatinamente crescendo. A edição de som,
por exemplo, era feita até meados dos anos 1970 por um assistente
do montador: único profissional que criava e organizava os diálogos
e os ruídos presentes no filme e estava hierarquicamente subordinado
ao editor de imagens. Com a instituição do papel do sound designer,
a pós-produção de som passou a ser feita por um departamento in-
dependente. Aos poucos, a edição de som foi subdividida em pelo
menos três grupos: edição de diálogos, efeitos sonoros e ambientes.

A tecnologia Dolby Stereo também teve responsabilidade pelo au-


mento crescente do número de profissionais atuando na pós-pro-
dução sonora. Afinal, a partir de 1975, o número de canais sonoros
72 quadruplicou (de um para quatro), bem como a melhoria na respos-
ta de frequência dos alto-falantes instalados nas salas de exibição
abriu mais espaço para sons agudos. Essa nova situação favoreceu,
inclusive, a já tradicional produção de foley. Embora estivesse es-
tabelecida desde meados dos anos 1930, a produção artesanal de
ruídos originados da interação do homem com o ambiente (passos,
ruídos de roupa) ocupava um lugar marginal na produção cinema-
tográfica. No começo dos anos 1970, não havia nem dez profis-
sionais dedicados ao foley nos Estados Unidos (BUHLER; NEUME-
YER; DEEMER, 2010, p. 377). Esse cenário mudou completamente
nos anos 1980, quando o número de profissionais trabalhando na
pós-produção sonora de qualquer filme cresceu exponencialmente,
podendo chegar hoje a mais de 60 pessoas nas maiores produções.

Uma novidade que surgiu nos anos 1980 foi a influência dos videocli-
pes no cinema. Inicialmente ligado à indústria da música e visto mais
como uma peça de marketing do que de entretenimento, o videoclipe
alcançou um sucesso tão grande, por meio da popularidade da MTV,
que sua estética fragmentada passou a ser utilizada com bastante
frequência pelos montadores de cinema. Como consequência, filmes

O som do filme: uma introdução


narrativos passaram a ter longos trechos organizados em torno de
música, quase sempre canções populares. Flashdance (Adrian Lyne,
1983) e Top gun – ases indomáveis (Tony Scott, 1986) são dois dos
muitos filmes que ajudaram a popularizar a tendência.

2.6 O som digital (1992-hoje)

A digitalização das práticas relacionadas ao som cinematográfico


começou, de fato, bem antes dos anos 1990. Nas diversas tarefas da
fase de edição de som, na pós-produção sonora, processos digitais
foram sendo desenvolvidos ao longo de toda a década de 1980. O
primeiro uso de um processador digital para mixar efeitos sonoros
criados eletronicamente em uma trilha cinematográfica ocorreu em
1979, para o filme Star Trek (Robert Wise). Era mais um teste do
que o início real de operação de um procedimento de digitalização 73
da pós-produção sonora.

Nos anos seguintes, o computador pessoal foi introduzido de for-


ma massiva na vida cotidiana das pessoas, e o desenvolvimento de
novos hardwares e softwares com as mais diversas funções passou
a ocorrer cada vez mais depressa. Essa lógica, evidentemente, se
aplica ao setor do som cinematográfico. Nos anos 1980, técnicas
de gravação em mídias digitais começaram a ser utilizadas, pri-
meiramente na indústria da música, logo em seguida, na cadeia
produtiva do cinema. Na época, porém, não havia gravadores por-
táteis digitais. Portanto, procedimentos como dublagem (ou ADR),
foley e criação de efeitos sonoros foram os primeiros a se benefi-
ciar da tecnologia digital.

Já no início dos anos 1990, a tecnologia digital havia avançado o


suficiente para ser aplicada em todas as etapas da cadeia produtiva
do cinema. No som direto, surgiram em 1991, os primeiros gravado-
res digitais portáteis, que usavam uma tecnologia desenvolvida pela

Capítulo 2 – A história do som dos filmes


Sony em 1987, chamada DAT (sigla para Digital Audio Tape). Esses
aparelhos podiam registrar sons em fita, de forma digital, quase
sem contato físico entre a mídia de gravação e o gravador em si, o
que eliminava o chiado característico de qualquer gravação em fita
ou disco. Os gravadores DAT mais utilizados eram o japonês Fostex
PD-2 e o inglês HBB PDR1000PC (SALT, 2009, p. 354), ambos lan-
çados no ano de 1993.

Na mesma época, começaram a surgir, nos Estados Unidos, as pri-


meiras estações digitais de áudio (Digital Audio Workstations, ou
DAWs). De forma geral, pode-se dizer que eram interfaces especiais
que podiam ser acopladas a computadores (PCs ou Mac) com gran-
de poder de processamento e armazenamento de dados, equipados
com softwares especiais para edição e mixagem de som. Ainda na
primeira metade da década, a edição de som digital estava comple-
74 tamente estabelecida como procedimento padrão obrigatório para
pós-produção sonora. A DAW, líder do mercado, foi desenvolvida
pela empresa Digidesign e ganhou o nome de sistema Pro Tools.
Até hoje, esse híbrido de hardware e software domina o mercado
de edição e mixagem de som para cinema, sendo usado também no
mercado musical.

O último setor da cadeia produtiva a receber digitalização total foi


a reprodução sonora em salas de cinema. O primeiro sistema 100%
digital foi desenvolvido pela Dolby, e se chamou, obviamente, Dolby
Digital (Figura 7). Lançado em 1992, juntamente com o filme Bat-
man – o retorno (Batman returns, Tim Burton), o sistema era capaz
de reproduzir seis canais sonoros independentes: três frontais (di-
reito, esquerdo, centro), dois traseiros (esquerdo, direito) e um ex-
clusivo para graves (subwoofer ou low frequency effects, LFE, capaz
de reproduzir todos os sons com frequências entre 20 Hz e 120 Hz).
O mixador podia mover todos os sons à vontade entre esses canais.

O som do filme: uma introdução


[Figura 7]

75
A mesma configuração de reprodução estava disponível também no
principal sistema concorrente, desenvolvido pelos estúdios Universal
e denominado “DTS” (Digital Theater System). Em 1993, o DTS foi
disponibilizado, com grande alarde, por ocasião do lançamento de
Parque dos dinossauros (Jurassic park). O diretor, Steven Spielberg,
havia, inclusive, ajudado a desenvolver o sistema. O DTS tinha uma
semelhança curiosa com o antigo Vitaphone: era um sistema dual
media, ou seja, a imagem ficava gravada em uma mídia (película de
35 mm), e o som, em outra (duas unidades de CD-ROM). Os dois
aparelhos eram sincronizados.

Durante alguns anos, os dois sistemas foram utilizados nas salas


de projeção ao redor do mundo. Cada sistema tinha uma vanta-
gem distinta. O Dolby era mais barato, pois o som era gravado na
própria película de 35 mm, mais precisamente no espaço entre
os furos laterais da película, em minúsculos quadrados de 76 pi-
xels. Dessa forma, a película continuava mantendo as duas pistas
ópticas do som estéreo comum, como back up. Se a reprodução
digital falhasse, o decodificador automaticamente passaria a re-

Capítulo 2 – A história do som dos filmes


produzir o som óptico, sem interrupção da banca sonora. Por
isso, a atualização do sistema era barata e demandava apenas
a substituição do processador de sons que ficava acoplado ao
projetor de imagens.

A vantagem do DTS era a qualidade sonora superior. Como era gra-


vado em CD, as faixas originais de áudio no formato PCM tinham
que ser reduzidas em quatro vezes, enquanto no concorrente Dolby
Digital essa redução era de 10 vezes (ALVAREZ, 2007, p. 40-41). O
DTS também tinha o mesmo sistema de back up, que era justamente
o som estéreo normal da película de 35 mm. No entanto, a atuali-
zação do sistema era mais cara e, para piorar, a distribuição também
era mais cara, pois além de copiar e distribuir os rolos de filme, os
estúdios também precisavam copiar e distribuir os CDs contendo o
som dos filmes. Por isso, o Dolby Digital conquistou a hegemonia
76 no setor. É importante ressaltar, porém, que boa parte das salas de
cinema montadas nos anos 1990 e 2000 estava capacitada para
exibir filmes lançados nos dois sistemas.

Nos anos 1990, os microfones também receberam um upgrade con-


siderável, em virtude da digitalização de todas as fases da cadeia
produtiva do som cinematográfico. Como a projeção agora tinha
atingido uma faixa dinâmica e uma resposta de frequência realmen-
te larga, reproduzindo com fidelidade os sons mais agudos (tradi-
cionalmente os mais difíceis de reproduzir com precisão em salas de
cinema), os microfones tinham que ser capazes de captar os sons
com todas as suas texturas delicadas. Sennheiser e AKG, dentre ou-
tros fabricantes, lançaram vários modelos a partir de 1983.

De modo geral, hoje, a Sennheiser, a Schoeps e a Neumann são as


três marcas que dominam o mercado de microfones unidirecionais,
também chamados de “shotgun”. O modelo mais usado nos pri-
meiros anos do século XXI é o MKH-416, um shotgun curto bas-
tante versátil e resistente. Já a evolução técnica dos microfones de
lapela foi ainda mais notável. Tradicionalmente, técnicos de som

O som do filme: uma introdução


direto tendem a preferir os microfones aéreos, assim chamados
porque são operados por técnicos que os penduram em varas de
fibra de carbono e os seguram sobre as cabeças dos atores. Essa
preferência se dá porque esses microfones capturam os eventos
sonoros com maior fidelidade acústica e presença sonora. Os mi-
crofones de lapela, ao contrário, tendem a distorcer um pouco as
vozes dos atores e torná-las neutras, sem ambiência. Mas a me-
lhoria técnica das cápsulas minúsculas usadas nesses microfones
tem sido tão grande que o diretor inglês, Tom Hooper, decidiu, em
2012, gravar um musical inteiro com atores cantando ao vivo no
set, algo que nunca havia sido conseguido antes. Os miseráveis
foi inteiramente filmado dessa maneira; o uso intensivo do modelo
4071 do microfone de lapela da marca DPA possibilitou a captura
das vozes com qualidade acima da média. Nesse filme, o técnico
de som direto, Simon Hayes, decidiu afixar os microfones de la-
pela na parte externa da roupa dos atores para deixar o som mais 77
natural e menos abafado, evitando também os ruídos indesejáveis
produzidos pelo contato da cápsula com o tecido. Os microfones
foram, posteriormente, apagados digitalmente da imagem durante
a pós-produção.

No século XXI, o som no cinema já estava 100% digitalizado, mas


as inovações técnicas não pararam. Uma nova geração de gra-
vadores digitais portáteis chegou ao mercado a partir de 2002,
possibilitando a gravação multipista em múltiplos canais inde-
pendentes, registrados em mídia sólida (discos rígidos ou cartões
de memória), com timecode eletrônico embutido, o que garante
a sincronia instantânea entre o som e a imagem correspondente
– desde que a câmera usada, claro, também possua um sistema
de registro do timecode.

Curiosamente, os tradicionais Nagra começaram, nesse momento, a


perder a liderança do mercado de gravadores para cinema. Esse mer-
cado passou a ser dominado, ao longo da primeira década do século
XX, por duas empresas: a francesa Aaton, responsável pela linha

Capítulo 2 – A história do som dos filmes


de gravadores Cantar-X, cuja terceira geração foi disponibilizada
em 2014, rompendo pela primeira vez a barreira dos oito canais de
registro sonoro simultâneo; a norte-americana Sound Devices, líder
do mercado na virada da primeira década dos anos 2000 com o mo-
delo Sound Devices 788T, um gravador de oito canais digitais lança-
do em 2009. É importante ressaltar que ambas as marcas permitem
que seus gravadores operem em sincronia com outras unidades do
mesmo modelo, procedimento que amplia o número de canais so-
noros disponíveis para gravação ao infinito.

As novas tecnologias multicanais têm incentivado muitos técnicos


de som direto, desde o começo do século XXI, a combinar as duas
técnicas mais utilizadas na gravação de som em locação: microfones
unidirecionais operados por um técnico, por meio de uma vara de
fibra de carbono denominada “boom”, e microfones de lapela ins-
78 talados em cada ator ou atriz com fala durante determinada cena.
Atualmente, o padrão de gravação tem sido a utilização simultânea
das duas técnicas. Posteriormente, na pós-produção, o editor de
diálogos pode escutar todas as faixas gravadas e optar por usar
aquela que estiver em melhores condições acústicas ou combiná-las
da maneira que achar melhor.

Com as tecnologias digitais, não seria absurdo dizer que o céu é


o limite para os sound designers, técnicos de som direto e edito-
res de som. Mas e o que vem por aí? Já é possível antecipar algu-
ma tendência para o futuro? A resposta a essa pergunta é “sim”.
A próxima tendência parece ter saído (de novo) dos laboratórios
da Dolby. De olho no fim da película – as câmeras e projetores
de 35 mm pararam de ser fabricados em 2012, de modo que no
mundo inteiro os filmes são agora armazenados, distribuídos e
projetados em grandes arquivos digitais de alta resolução visual e
sonora –, a empresa lançou, em abril de 2012, um novo sistema
de reprodução multicanal para salas de cinema, que denominou
de Dolby Atmos (Figura 8).

O som do filme: uma introdução


[Figura 8]
79

Ao contrário de todos os outros sistemas anteriores, baseados em su-


portes sonoros analógicos, o Dolby Atmos é inteiramente digital. Por
isso, a empresa projetou um sistema adaptável a inúmeras configura-
ções de projeção, dependente de fatores como o tamanho da sala e o
número de alto-falantes disponíveis. Em tese, um teatro equipado com
o Dolby Atmos pode reproduzir até 128 canais sonoros independentes.
Em 2013, a maioria das 300 salas existentes no mundo adotava uma
configuração um pouco mais modesta, usando “apenas” 64 canais.

O primeiro longa-metragem produzido com a tecnologia foi Valente


(Brave, Mark Andrews e Brenda Chapman, 2012). De modo geral, a
maior vantagem do Dolby Atmos é que os mixadores ganham, agora,
o eixo vertical para trabalhar. Em outras palavras: todos os sistemas de
reprodução sonora existentes até 2012 podiam fazer o som viajar para
qualquer direção no eixo horizontal (para a direita, para a esquerda,
para frente, para trás). Com o Atmos, é possível fazer o som viajar para
cima e para baixo, pois há alto-falantes posicionados nesses lugares.

Capítulo 2 – A história do som dos filmes


Em 2014, contudo, a indústria cinematográfica ainda não parece
inteiramente convencida da abordagem oferecida pela Dolby. Em-
bora todos os grandes estúdios tenham lançado filmes mixados no
formato Atmos, o sistema ainda não foi adotado de forma massiva,
certamente não da mesma forma intensa que o Dolby Stereo e o
Dolby Digital foram recebidos respectivamente em 1975 e 1992. Um
dos motivos para essa desconfiança é o preço da conversão de um
teatro, que custa entre 30 e 100 mil dólares (SMITH, 2013). Outra
razão é o impacto da tecnologia na produção dos filmes: o aumento
do número de canais exige mais horas de trabalho por parte de edi-
tores de som e principalmente dos mixadores, situação que encarece
o custo total. Resta-nos esperar para ver o que acontece.

80

O som do filme: uma introdução


CAPÍTULO 3
PRINCIPAIS TEORIAS DO SOM NO CINEMA

3.1 Os ensaios pioneiros 81

As primeiras teorias do cinema surgiram em meados da década de


1910. Dentre os primeiros pesquisadores a teorizar sobre as ainda
incipientes práticas de produção e de consumo de imagens e movi-
mentos estavam o alemão Hugo Münsterberg e o italiano Riciotto
Canudo. Ambos tinham formação acadêmica em áreas inusitadas:
Münsterberg, um judeu nascido na antiga região da Prússia com
família ligada às artes, fez doutorado em Psicologia e também se
formou em Medicina, tendo assumido postos de professor nas uni-
versidades de Harvard (EUA) e Berlim (Alemanha). Já Canudo, crítico
de artes visuais, era físico e se estabeleceu como membro do círcu-
lo de pintores futuristas de Paris, onde ficou amigo de Guillaume
Apollinaire e Pablo Picasso.

Riciotto Canudo elaborou os primeiros escritos de cinema que se


aproximam da noção de teoria. De certa forma, embora não tenha
escrito especificamente sobre som, ele deu o tom que dominaria as
teorias clássicas do cinema surgidas nas décadas seguintes, as quais

Capítulo 3 – Principais teorias do som no cinema


influenciariam decisivamente as abordagens sonoras: em 1911, publi-
cou em Paris um artigo intitulado O nascimento de uma arte: ensaio
sobre a cinematografia. Esse foi o primeiro texto a reivindicar para
o cinema o status de arte – mais especificamente, de sétima arte.
Canudo sugeriu que o cinema seria uma espécie de arte total, uma
soma das propriedades expressivas das outras seis artes, reunindo a
dimensão plástica da pintura e da escultura, a dimensão narrativa do
teatro e da literatura, e a dimensão rítmica da música e da dança.

Münsterberg, por sua vez, era fascinado pelo cinema silencioso da


época. Embora tivesse uma posição respeitável como pesquisador
e professor de Psicologia, ele frequentava regularmente as salas de
projeção – às vezes, escondido, pois os integrantes da elite cultural
e econômica da época não gostavam de ser vistos nos nickelodeons
e teatros da época, localizados quase sempre perto de estações de
82 trens e frequentados sobretudo por operários e pessoas analfabetas.

Nessas sessões, Münsterberg desenvolveu a primeira teoria de cine-


ma (STAM, 2003, p. 45), apresentada num livro denominado “The
photoplay”. A teoria foi publicada em 1916, um ano antes da morte
dele, e baseada em um corpus reduzido de filmes, que ele vira nos
dois anos anteriores. Para Robert Stam (2003, p. 47), a teoria de
Münsterberg – na época pouco divulgada, e redescoberta princi-
palmente nos anos 1970 – antecipou abordagens posteriores de
diferentes teorias da recepção do filme, como o cognitivismo, a Psi-
canálise e até mesmo certas proposições oriundas da fenomenologia
de Maurice Merleau-Ponty e da filosofia de Gilles Deleuze.

Egresso da psicologia da percepção, Münsterberg ressaltou o papel


ativo dos processos subjetivos de recepção – ou seja, a consciência
do espectador – na interpretação na narrativa cinematográfica. A
percepção de cada membro da plateia era, para ele, fundamental
à transformação do filme em uma experiência estética individual,
apesar de o cinema ser uma arte coletiva:

O som do filme: uma introdução


A photoplay nos conta uma história humana apropriando-
-se das formas do mundo exterior, ou seja, espaço, tempo e
causalidade, e ajustando os acontecimentos às formas do
mundo interior, ou seja, atenção, memória, imaginação e
emoção (MÜNSTERBERG, 1970, p. 74).

Tanto Canudo quanto Münsterberg insistiam em tratar o cinema


como uma arte autônoma, reforçando a reivindicação do status ar-
tístico para a prática cinematográfica. Esse tema, presente em vir-
tualmente toda a teoria clássica do cinema, era importante para
legitimar o filme como obra de arte perante a elite cultural, que
então tratava o cinema como mero entretenimento sem valor. Com-
preensivelmente, os dois pesquisadores excluíram os processos in-
cipientes de sonorização já existentes na década de 1910 de suas
preocupações teóricas, pois esses processos eram oriundos de prá-
ticas paralelas ocorridas em tempo real durante a projeção, como a 83
execução de músicas ao vivo, a sonoplastia e a narração de textos.

As primeiras tentativas de teorizar sobre o uso do som no cinema


só vieram a ocorrer em meados da década de 1920, exatamente por
ocasião da transição do período do cinema silencioso para o cinema
sonoro (1927-1932). As profundas alterações tecnológicas exigidas
pela adoção de novos processos de gravação e de reprodução do
som restringiu uma série de técnicas de encenação e de montagem
que já estavam bem consolidadas entre os cineastas em atuação
no período. Os movimentos de câmera ficaram mais restritos, a li-
berdade de movimentação dos atores também, e os cortes rápidos,
característicos da época, também tiveram que ser sacrificados. Os
planos longos de câmera fixa tornaram-se, de repente, a norma, não
por livre escolha dos diretores, mas pela imposição técnica advinda
da presença, nos sets de filmagem, da aparelhagem de captação e
registro sonoro (microfones, gravadores etc.).

Na época, espalhou-se um medo generalizado de que essas limita-


ções de ordem tecnológica provocassem um retrocesso na lingua-

Capítulo 3 – Principais teorias do som no cinema


gem cinematográfica – então em franca evolução – até uma situa-
ção em que o cinema não ultrapassasse o estágio de mero registro
teatral das ações dramáticas encenadas pelos atores. Além disso, as
primeiras experiências de sonorização realizadas nos Estados Unidos
privilegiavam a voz de modo quase absoluto – os primeiros filmes
falados, ou talkies, preocupavam-se fundamentalmente em mostrar
os atores falando, o que levou rapidamente à consolidação de um
modelo de gravação que privilegiava a voz e desprezava todos os
outros possíveis componentes sonoros do filme, como os ruídos e,
até mesmo, a música. Fernando Morais da Costa resume o contexto
histórico dessa maneira:

Realizadores e teóricos europeus, como Sergei Eisenstein,


[Vsevolod] Pudovkin, René Clair, e mesmo o brasileiro atuan-
te na Inglaterra Alberto Cavalcanti, se manifestaram, a par-
84 tir daquele momento, em prol de um cinema que utilizasse
o som de forma que o novo elemento viesse a acrescentar
novas possibilidades narrativas. Tal argumento se colocava
em clara oposição ao uso redundante instaurado pelos tal-
kies americanos, que apenas ‘colava’ o som onde a imagem
já estava, com o agravante de limitar todos os possíveis lu-
gares e situações dentro de um filme onde o som pudesse
ser colocado, a um – de resto, óbvio: a boca dos atores e das
atrizes (COSTA, 2004, p. 14-15).

Assim, nessa fase, uma série de realizadores e críticos sentiu necessi-


dade de teorizar sobre o som no cinema. Robert Stam (2003, p. 76)
sintetizou algumas das primeiras reações à consolidação do modelo
de produção sonora então vigente. Elas foram unanimemente ne-
gativas: Gilbert Seldes (nos EUA) afirmava categoricamente que o
cinema sonoro fazia o cinema regredir ao modo teatral, enquanto
Germaine Dulac, na França, acreditava que o cinema puro era uma
arte muda. Abel Gance, já respeitado como diretor importante, aco-
lheu o som com hesitação, até mesmo com contrariedade.

O som do filme: uma introdução


Em um ensaio intitulado A arte do som, o diretor francês René Clair
resumiu com bastante propriedade as reclamações desse grupo. Ele
atribuiu a instituição massiva do cinema sonoro ao interesse co-
mercial dos grandes estúdios norte-americanos. Chamando o som
inscrito na película de “novo brinquedinho”, acusou os executivos
dos estúdios de olharem apenas para o lado financeiro do cinema,
desprezando, com isso, seu potencial estético e artístico. Ele lamen-
tou: “É tarde demais para os que amam a arte do cinema recusarem
os efeitos dessa invasão bárbara. Tudo que podemos fazer é tentar
reduzir as perdas” (CLAIR, 1985, p. 92).

De que maneira as perdas poderiam ser minimizadas? Para Clair, a


resposta estava na recusa ao filme meramente falado, o talkie, e o
investimento em um filme sonoro que apostasse mais em efeitos
sonoros e em música. No entanto, Clair acreditava que a mera imi-
tação de sons reais não era um caminho adequado a ser seguido. 85
Após assistir a pouco mais de 20 filmes sonoros, ele acreditava que o
melhor emprego de som no cinema estava nos desenhos animados,
onde a música de caráter mais descritivo estava sendo desenvolvida
de modo mais enfático. Ele seria, a partir de 1931, um dos cineas-
tas responsáveis pela produção de uma primeira geração de filmes
sonoros criativos e interessantes, junto a Rouben Mamoulian, Alfred
Hitchcock, Jean Renoir e Fritz Lang.

No Brasil, a reação negativa contra o cinema falado também acon-


teceu. Alex Viany (1959, p. 95-96) menciona os críticos Otávio de
Faria e Pedro Süssekind, que defendiam a primazia da imagem sobre
o som em textos publicados na revista O Fã, no final da década de
1920. No Recife, o filósofo e crítico Evaldo Coutinho tinha posição
ainda mais agressiva, acreditando que a instituição do som sincrô-
nico determinava a morte do verdadeiro cinema.

Uma abordagem mais requintada e menos agressiva dessa teoria foi


oferecida pelo teórico alemão Rudolf Arnheim. Apoiado em estudos
de percepção oriundos da Psicologia gestalt, ele defendeu, em tex-

Capítulo 3 – Principais teorias do som no cinema


to publicado no ano de 1938, o cinema silencioso como “a forma
definitiva e paradigmática da sétima arte” (STAM, 2003, p. 77). In-
tegrante ativo da corrente teórica dos formalistas17, Arnheim acre-
ditava que o melhor cinema era aquele que se afastava da mimese,
da reprodução fiel da realidade. Para o alemão, as representações
visuais que se afastassem mais do naturalismo estavam mais próxi-
mas do status de arte. Ele acreditava que os sons davam às imagens
uma materialidade não desejada por artistas que desejavam produzir
arte. Em resumo: se um filme tinha som, ficava mais parecido com o
mundo real e, portanto, mais distante da esfera artística.

Quando Arnheim escreveu sobre o som cinematográfico, contudo,


o texto historicamente mais importante sobre essa polêmica – e
certamente o mais influente, de uma perspectiva revisionista – já era
conhecido havia uma década: o manifesto assinado em conjunto
86 pelos cineastas soviéticos Sergei Eisenstein, Vsevolod Pudovkin e
Grigori Alexandrov. Na época, vale a pena lembrar, a Rússia esta-
va na vanguarda da produção cinematográfica, ao lado de Estados
Unidos, Alemanha e França. Publicado em agosto de 1928, o texto
escrito a seis mãos é curto e sintético, mas se tornaria um dos do-
cumentos pioneiros da teoria do som no cinema. Escrevendo em um
tom mais conciliatório do que as imprecações “vomitadas” pelos
escribas mais agressivos e ressaltando a instituição do som impresso
em película como uma conquista tecnológica importante, o trio de
diretores soviéticos lança um alerta para o possível uso “incorreto”
das possibilidades sonoras:

Uma concepção errada com relação às potencialidades desse


novo descobrimento técnico pode não apenas impedir o de-
senvolvimento e aperfeiçoamento do cinema como arte, mas
também ameaça destruir todas as suas atuais conquistas for-
mais (EISENSTEIN; PUDOVKIN; ALEXANDROV, 2002, p. 225).

17 A outra corrente importante da teoria do cinema é constituída pelos realistas, cujo principal nome
é André Bazin.

O som do filme: uma introdução


Classificando os filmes baseados em diálogos como mera satisfação
da curiosidade de espectadores inconsequentes, os três cineastas
apontam uma solução para o impasse: instam os colegas realizado-
res de todo o mundo a fazer um “uso polifônico” do som, investindo
fortemente na produção de sons assincrônicos (música e ruído, mas
também vozes), ou seja, que não estão em sincronia com a imagem.
Esses sons revelariam ao espectador todo um universo não apre-
sentado na tela. “Tratado como um novo elemento da montagem”
(EISENSTEIN; PUDOVKIN; ALEXANDROV, 2002, p. 226), o som fora
de quadro enriqueceria a imagem e tornaria mais poderosas, e mais
complexas, as informações narrativas disseminadas ao espectador.

Em 1929, escrevendo sozinho um texto mais longo e mais detalha-


do, e promovendo uma análise detalhada do primeiro filme sonoro
que havia feito, Pudovkin esclareceu melhor as intenções do mani-
festo original: 87

O conhecimento mais profundo do conteúdo do filme não


pode ser dado ao espectador simplesmente pela adição de
um acompanhamento de som naturalista; temos de fazer
algo mais. Esse algo mais é o desenvolvimento da imagem
e do som em cadências distintas. Eles [imagem e som] não
devem ser ligados por imitação naturalista, mas conecta-
dos como o resultado de uma interação de ações distintas.
Só por este método podemos encontrar uma forma nova e
mais rica do que a disponível no cinema mudo. (PUDOVKIN,
1985, p. 86).

Sua argumentação também influenciaria o trabalho de Eisenstein,


que passaria, a partir de então, a incluir a banda sonora dos filmes
como um elemento pertencente ao reino da montagem.

Os textos dos diretores e teóricos soviéticos se mostrariam mui-


to influentes nas décadas seguintes. Até hoje, a importância dos
sons fora de quadro é celebrada e enfatizada por pesquisadores,

Capítulo 3 – Principais teorias do som no cinema


cineastas, teóricos e sound designers das mais diferentes escolas. A
questão dos sons assincrônicos foi lembrada em 1939, por exemplo,
em outro texto clássico sobre o som no cinema e escrito pelo brasi-
leiro Alberto Cavalcanti. Na época, Cavalcanti desfrutava de enorme
prestígio entre cineastas e teóricos por sua participação destacada
na produção de documentários realistas na Inglaterra. Embora não
se destaque por sua originalidade, o ensaio de Cavalcanti chama a
atenção por aprofundar, de forma bastante articulada, as ideias so-
bre a importância dos sons assincrônicos para a narrativa cinemato-
gráfica, articulando ao mesmo tempo a defesa do uso não naturalís-
tico do áudio fílmico, o que faz de sua teoria um amálgama curioso
entre as ideias defendidas por Arnheim e pelos diretores soviéticos.

Para Alberto Cavalcanti, o cinema não deveria se limitar a reprodu-


zir a realidade, mas tampouco deveria se afastar demasiado dela. O
88 brasileiro ecoava a noção muito influente do oculocentrismo, dou-
trina que defende a primazia da visão sobre os outros sentidos no
século XX18: para ele, a imagem evocava o real, enquanto os sons
produziam sentidos não literais com mais facilidade. Por isso, Caval-
canti defendia que o som fosse utilizado de maneira expressiva, para
adicionar ao filme um conteúdo emocional mais preciso, algo que o
cinema silencioso jamais fora capaz de produzir.

3.2 Abordagens mais profundas

Mais cuidadoso e denso do que as tentativas anteriores de teorizar


sobre o som no cinema, o texto de Alberto Cavalcanti parece ter
exercido alguma influência na obra do teórico húngaro Béla Balázs,
muito respeitado por ter escrito a respeito de uma arte que conhecia
de dentro, já que trabalhou como roteirista para diretores alemães
importantes nos anos 1930, por exemplo Leni Riefenstahl e Georg

18 Jonathan Crary e Marshall McLuhan estão entre os teóricos mais influentes a defender essa teoria.

O som do filme: uma introdução


Wilhelm Pabst. Ainda na década de 1920, Balázs se filiou à corrente
dos críticos do cinema sonoro, mas logo abandonou essa posição
confortável e encontrou uma abordagem original. Conhecido por
ser o teórico que mais analisou (e elogiou) o uso do close-up no
cinema, Balázs escreveu um ensaio em 1945, ressaltando as possibi-
lidades expressivas do som.

O teórico húngaro defendia o som assincrônico e a importância dos


sons fora do quadro para a construção de um universo mais rico.
A originalidade de seu texto, porém, reside fundamentalmente em
dois outros aspectos. Em primeiro lugar, ele foi o primeiro teórico
a assinalar a importância emocional do uso dos silêncios dentro de
um filme, muitas vezes com funções afetivas para a narrativa. Além
disso, Balázs também ressaltou a importância dos pequenos ruídos
– os sons do cotidiano, ordinários, comuns – que normalmente,
por sua natureza monótona, podem passar despercebidos na vida 89
real, mas também pode e, mais do que isso, devem ser utilizados e
reforçados em seu uso cinematográfico. Nesse aspecto, o texto de
Balázs, ainda que pouco elaborado, possui uma carga de contem-
poraneidade que pouco encontra correspondência na teoria clássica
do cinema que se debruçou sobre o som.

Outro teórico clássico alemão a examinar rapidamente o uso do som


no cinema foi Sigfried Kracauer, estudioso que acumulou títulos de
graduação (era arquiteto, jornalista, sociólogo e engenheiro) e de
pós-graduação (doutorado em Engenharia), e tinha conexões com
membros da Escola de Frankfurt. Kracauer foi um dos principais
estudiosos do expressionismo alemão e soube contextualizar muito
bem as críticas severas dirigidas ao cinema sonoro na década de
1920. Para ele, os teóricos e cineastas que se opuseram ao som
sincrônico não estavam realmente recusando a presença sonora no
cinema, mas sim reagindo contra o predomínio massivo dos diálo-
gos na trilha sonora dos filmes (compreensivelmente, esses filmes
eram chamados de talkies). O ensaio de Kracauer é, entre todos os
escritos durante a fase clássica da teoria do cinema, o mais denso

Capítulo 3 – Principais teorias do som no cinema


e ponderado. Escrito em forma acadêmica, ele analisa e comenta
o que Eisenstein, Cavalcanti e Clair escreveram, antes dele, sobre o
som no cinema.

O raciocínio de Kracauer parte do princípio que o excesso de diálogos


aproxima demais o filme do teatro e, portanto, seria anticinemato-
gráfico. Ao contrário do que se pode imaginar, porém, Kracauer não
recorre à solução fácil de pedir filmes com mais ruídos e música. Ana-
lisando um corpo de filmes da época, ele sugere algumas alternativas,
tais como: retirar a ênfase dos diálogos por meio de táticas de ence-
nação, como destaque à casualidade da fala, assim, os personagens
não precisam estar o tempo inteiro falando sobre aspectos centrais da
trama, como ocorre nos filmes de Hollywood; dar ênfase em aspec-
tos não semânticos do discurso, ressaltando a qualidade acústica do
som da voz e não o significado das palavras; incluir o discurso vocal
90 dentro do contexto de um ambiente, por exemplo, dentro de um bar,
as palavras de um determinado personagem não podem estar proemi-
nentes demais em relação aos outros fregueses do lugar.

O mais influente ensaio sobre o som no cinema, publicado nos anos


1960, foi escrito por Noël Burch. Crítico norte-americano estabeleci-
do na França desde 1951, Burch teve participação ativa na consolida-
ção da revista Cahiers du Cinéma como o principal veículo cinéfilo do
planeta. No livro Práxis do Cinema, publicado em 1969, ele propôs
a aplicação da teoria marxista a tópicos sobre linguagem cinemato-
gráfica. Um dos capítulos – significativamente, talvez, o mais curto
– discute o som dos filmes a partir de uma abordagem dialética.

Utilizando principalmente exemplos extraídos de filmes produzidos


naquela mesma década, Burch tenta no texto dividir o som dos fil-
mes em categorias, tendo as oposições binárias como eixo central.
Logo na abertura do ensaio, ele aborda aquela que considera como a
principal dialética da prática cinematográfica: a oposição entre som
e imagem. Burch tenta desconstruir essa oposição, afirma que essa
dicotomia reside mais em uma identidade do que em uma oposição,

O som do filme: uma introdução


partindo do princípio (que hoje nos parece frágil) de que a imagem
possui uma natureza mais exata, enquanto o som seria ambíguo e
fugidio, especialmente os sons que não possuem correspondente
imagético, notadamente os sons fora de quadro, que Burch também
considera como um elemento potencialmente criativo e importante
para a construção de sentido no cinema.

Burch dedica bastante tempo a analisar duas dicotomias em particu-


lar: a) som direto x som pós-sincronizado – ele valoriza, especial-
mente, as características não semânticas dos sons, e por isso sugere
que a banda sonora construída cuidadosamente na pós-produção
tende a ser mais rica, embora nem sempre consiga estabelecer uma
textura adequada ao ambiente mostrado na imagem; b) plano geral
sonoro x close-up sonoro – essa última noção, que ele procura
delinear brevemente, lhe parece promissora.
91
O teórico já identifica, no texto, algumas tendências que o cinema
moderno começara, ainda timidamente, a adotar na prática, em espe-
cial a possibilidade de tratar os ruídos e efeitos sonoros como música,
ressaltando características como ritmo e timbre. Um dos exemplos
mais famosos que ele discute no texto vem de um filme brasileiro: Vi-
das secas (Nélson Pereira dos Santos, 1963), em que o rangido (nem
sempre diegético) de um carro de boi pontua a narrativa de maneira
musical. Burch termina o texto reconhecendo que o capítulo sobre
o som é o mais rudimentar do livro e justifica isso afirmando que o
uso do som dentro do cinema ainda é, nos anos 1960, muito menos
sofisticado e interessante do que a utilização da imagem visual.

Apesar do esforço de Noël Burch, a tentativa mais bem sucedida


de examinar concretamente o uso de sons em filmes só veio surgir
em 1979, sob a forma de um capítulo publicado no livro-texto
que se tornaria a obra mais adotada em graduações de cinema em
todo o mundo: Film art (no Brasil, A Arte do Cinema, publicado
pela Editora da Unicamp), escrito pelos teóricos norte-americanos
David Bordwell e Kristin Thompson. Professores da Universidade de

Capítulo 3 – Principais teorias do som no cinema


Madison-Wisconsin, os dois estão entre os mais conhecidos adeptos
da teoria cognitivista, uma abordagem que procura analisar os fil-
mes a partir da perspectiva da recepção, ou seja, dos espectadores,
levando em conta o funcionamento dos processos cognitivos do
ser humano. Film art está disponível em nove idiomas e vem sendo
atualizado pelos autores regularmente (sua décima edição foi publi-
cada em 2013).

Utilizando uma linguagem didática, algo natural, já que o público-


-alvo do livro é formado por estudantes de graduação, e recorrendo
frequentemente a exemplos para ilustrar sua taxonomia, Bordwell e
Thompson iniciam o texto com um desafio fortemente baseado na
ideia do oculocentrismo, hoje ainda mais influente do que na meta-
de do século XX, como vimos anteriormente:

92 O som é talvez a técnica [cinematográfica] mais difícil de


estudar. Estamos acostumados a ignorar muitos dos sons
que nos rodeiam. Nossa informação primária sobre o meio
ambiente vem da visão, de forma que na vida comum, o
som é muitas vezes apenas um pano de fundo para a nossa
atenção visual. Falamos que vamos assistir a um filme e que
somos espectadores de cinema, e esses termos sugerem
que a trilha sonora é um fator secundário [da experiência
do cinema]. Estamos fortemente inclinados a pensar o som
simplesmente como um acompanhamento para a real fun-
dação do cinema: as imagens em movimento. (BORDWELL;
THOMPSON, 2014, p. 265).

Ao longo do texto, contudo, se esforçam para eliminar essa ideia,


ressaltando que o som, muito além de apenas reforçar o significado
de uma imagem, pode alterar e interferir nesse significado de muitas
maneiras. De fato, como Bordwell e Thompson demonstram a partir
de uma abordagem cognitivista, o som muitas vezes pode induzir o
espectador a fazer de determinada imagem uma leitura específica.
Eles utilizam como exemplo uma sequência do filme Carta da Si-

O som do filme: uma introdução


béria (Lettre de Sibérie, Chris Marker, 1957), na qual a mesma cena
é repetida três vezes, acompanhada a cada repetição por uma nar-
ração em off diferente que, portanto, sugere três significados bem
distintos para a mesma cena. Nesse sentido, o ensaio antecipa, de
certa maneira, o conceito de contrato audiovisual, que o semiólogo
e músico francês Michel Chion cunharia alguns anos mais tarde.

Os autores americanos também analisam as propriedades acústi-


cas do som (intensidade, tom, timbre), explicam a divisão básica
da cadeia produtiva do cinema sonoro em três partes (voz, ruído,
música) e exploram diversos usos criativos do som em quatro di-
mensões diferentes (ritmo, duração, tempo e espaço). Eles também
propõem, quanto à relação do som com o universo ficcional, uma
divisão simples do som do filme em duas categorias básicas: sons
diegéticos – aqueles que os personagens do filme podem ouvir;
não-diegéticos – aqueles que existem fora da diegese, como a 93
maior parte da música dos filmes e, portanto, somente os espec-
tadores têm consciência deles. Nas edições mais recentes do livro,
Bordwell e Thompson ainda mantêm essa divisão básica, embora
reconheçam que muitos sons são difíceis de encaixar em uma ou
outra categoria, como muitos outros pesquisadores vêm demons-
trando desde então.

3.3 Tipos de som de filmes: uma proposta taxonômica

A primeira taxonomia dos tipos de sons ouvidos no cinema foi


proposta em novembro de 1976, em um artigo intitulado Ensi-
nando a trilha sonora (no original, Teaching the soundtrack),
publicado pela pesquisadora norte-americana Claudia Gorbman.
Ela propunha a divisão dos sons que podíamos ouvir, nos mais
diversos filmes, em três categorias amplas: os sons diegéticos, os
não diegéticos e os meta-diegéticos.

Capítulo 3 – Principais teorias do som no cinema


Da primeira categoria, fariam parte todos os sons existentes no uni-
verso ficcional onde se passa a ação, a diegese, ou seja, são diegéti-
cos todos os sons que os personagens da ficção conseguem escutar.

Do mesmo modo, os sons não diegéticos são aqueles que existem


apenas na instância narrativa, da qual os personagens não têm cons-
ciência, isto é, no nosso mundo, do lado de cá da tela. A maior parte
da música que ouvimos nos filmes e boa parte dos casos de narração
em voz over são dois exemplos simples e frequentes de sons não die-
géticos, notadamente quando o narrador não faz parte da história,
como ocorre em Barry Lyndon (Stanley Kubrick, 1975). Na famosa
cena do chuveiro de Psicose, por exemplo, os gritos e o ruído da água
caindo são diegéticos, mas os trinados agudos dos violinos eterniza-
dos na melodia de Bernard Hermann não são diegéticos.

94 A terceira categoria, que contempla os sons meta-diegéticos, é


mais complexa e ambígua. Na definição original de Gorbman, são
sons que transitam entre as duas outras categorias, sendo muitas
vezes de difícil definição. Em alguns casos, a narração em voz off
ou over pode se configurar como um monólogo interior, casos que
podem ser incluídos na categoria meta-diegética. Já na explica-
ção de Álvaro Barbosa, o som meta-diegético em geral “traduz o
imaginário de uma personagem normalmente com o seu estado
de espírito alterado ou em alucinação” (BARBOSA, 2000, p. 2).
Um bom exemplo de uso do som meta-diegético pode ser visto na
cena em que Michael Corleone (Al Pacino) vai matar pela primeira
vez em O poderoso chefão (The godfather, Francis Ford Coppola,
1972). Ele está dentro de um restaurante, tem uma arma no bolso
e está diante do homem que tentou assassinar seu pai, mas hesita,
pois é um sujeito honesto, íntegro, um militar condecorado que
vinha sendo preparado pela família para se tornar a face correta
da família Corleone. A vingança porá tudo a perder; a partir dali,
ele se tornará um homem perseguido pelas autoridades e terá que
abandonar a carreira militar.

O som do filme: uma introdução


O discurso meta-diegético aparece quando o ruído do freio do me-
trô, que não pode ser visto na imagem, surge em segundo plano e
cresce repentinamente, até tomar de assalto toda a cena, impedindo
o espectador de ouvir qualquer outro som, até mesmo a conversa
que está em andamento na mesa. Evidentemente, o ruído do metrô
não está apresentado de forma objetiva, mas foi exagerado para si-
nalizar ao espectador o estado de nervos alterado do personagem de
Pacino. Poderíamos dizer que o freio do metrô é uma representação
sonora meta-diegética do dilema de Michael Corleone.

Essa divisão básica em três categorias, proposta por Claudia Gorbman,


foi continuamente tornada mais complexa por outros pesquisadores,
que começaram, aos poucos, a identificar subcategorias para clas-
sificar a ampla variedade de sons presentes nas salas de cinema. A
própria Gorbman propôs uma subdivisão para a categoria dos sons
meta-diegéticos, chamando de “discurso onírico” a representação so- 95
nora “de uma experiência em que um personagem abandona o seu
estado sensorial normal da realidade, entrando num plano de per-
cepção emocional muito aproximado de um sonho, onde permanece
durante algum tempo” (BARBOSA, 2000, p. 3). Os ruídos ritmados
que Selma (Björk) escuta dentro da fábrica, nos trilhos do trem e na
cela da prisão de Dançando no escuro (Dancer in the dark, Lars Von
Trier, 2000) se tornam números musicais dentro do filme, mas essas
cenas se passam dentro da imaginação da personagem. São sonhos,
delírios que os demais personagens não percebem.

O livro de David Bordwell e Kristin Thompson, publicado em 1979,


expandiu a taxonomia proposta por Claudia Gorbman, adicionando
duas subcategorias que integravam a categoria dos sons diegéticos.
Para o casal de autores, os sons pertencentes à diegese podem ser
divididos em dois grupos: sons externos, aqueles que podem ser
ouvidos por todos, ou por parte, dos personagens da ficção; sons
internos, que só podem ser percebidos por um único personagem,
cujo ponto de vista está sendo adotado em dado momento pela
narrativa. Se um personagem conversar com outro, por exemplo, o

Capítulo 3 – Principais teorias do som no cinema


diálogo pertence à categoria dos sons externos. Mas se escutamos o
bater do coração de um personagem, como na cena do ataque car-
díaco do personagem de Rob Schneider em All that jazz (Bob Fosse,
1979), trata-se de um som interno – algo que somente ele consegue
ouvir. Em 1990, ao publicar seu livro mais importante (chamado
no Brasil de A audiovisão), Michel Chion propôs uma divisão des-
ses sons internos em outras duas subcategorias, denominando-as
de “som interno objetivo” (respiração e batimentos cardíacos, por
exemplo) e “som interno subjetivo” (vozes mentais, que no universo
ficcional não constituem verdadeiramente sons, mas são represen-
tados no filme em forma sonora).

Uma última subcategoria de som diegético foi chamada por Michel


Chion de “som ausente”, em contraposição ao que ele chamou de
“som presente”, que seriam todos os sons diegéticos, sejam internos
96 ou externos. Os sons ausentes, na verdade, não podem ser ouvidos;
no máximo, são ouvidos como um zumbido baixo que não conse-
guimos distinguir claramente. Os sons ausentes seriam, então, vo-
zes, ruídos e música gerados por ações que podemos ver, mas que
ocorrem tão longe da câmera (ou isoladas por vidros e materiais
translúcidos) que não podemos ouvir. As peripécias dos vizinhos de
James Stewart em Janela indiscreta (Rear window, Alfred Hitch-
cock, 1954) constituem um exemplo perfeito, já que nesse filme
estamos confinados no apartamento do personagem de Stewart e
quase não podemos escutar o que se passa nos demais lares, embora
sejamos capazes de enxergar todas essas ações. Janela Indiscreta é
um filme repleto de sons ausentes.

Todas essas categorias podem ser muito úteis no trabalho de


analisar e examinar detidamente o som de um filme, tarefa que
ocupa a vida de muitos pesquisadores do cinema. Evidentemente,
esse trabalho de classificação é complexo, sujeito a discussões, de
modo que um filme que trabalha o som de modo criativo provavel-
mente apresentará muitos elementos sonoros difíceis de classificar.
Pense na sequência de abertura de Apocalypse now (Francis Ford

O som do filme: uma introdução


Coppola, 1979), filme que inaugurou o termo sound design e é
até hoje referência inescapável de som de primeira qualidade no
cinema. Nessa sequência, o capitão interpretado por Martin Sheen
está trancado num quarto de hotel, em Saigon, enquanto espera
uma missão. Entediado, ele fica bêbado e tem visões e delírios.
Além da música The end (The Doors), a cena é sonorizada com
muitos ruídos de batalhas (tiros, gritos de dor) e aparece pontuada
pelo som das hélices de helicópteros que circulam o espaço sono-
ro, utilizando abundantemente os canais surround. Por vezes, esse
som se confunde com o ruído das hélices do ventilador de teto do
quarto, que está ligado. Ao final da sequência, quando o som das
hélices finalmente se estabiliza no canal central e se funde com o
burburinho da rua, percebemos que um helicóptero de verdade, e
não os aparelhos que aparecem nos delírios ou lembranças do mi-
litar, pousou em frente ao hotel. Desse modo, o som das hélices se
alterna entre várias subcategorias de som diegético (som externo, 97
som interno subjetivo) e a categoria mais ampla de ruído meta-
-diegético. Polêmico, para dizer o mínimo.

3.4 Gorbman, Chion, Altman: a santíssima trindade do som no


cinema

O termo sound design, ou desenho de som, surgiu em 1979. Essa


década testemunhou o surgimento e a consolidação de diversas tec-
nologias de gravação e reprodução sonora, como o Dolby Stereo,
que valorizaram esteticamente a trilha sonora de maneira bastante
enfática. Na mesma época, a pesquisa sobre cinema estava se pro-
fissionalizando, como afirma David Bordwell (2014). Até então, a
maior parte da pesquisa teórica ou historiográfica sobre o audio-
visual era feita por críticos de cinema, que escreviam para jornais
e revistas de grande circulação, ou por acadêmicos de outros cam-
pos (História, Filosofia, Antropologia etc.). Nos anos 1970, porém, a
consolidação dos cursos de cinema e de audiovisual possibilitou que

Capítulo 3 – Principais teorias do som no cinema


muitos professores se tornassem acadêmicos e fossem pagos para
pesquisar sobre cinema.

Esses dois fenômenos, juntos, propiciaram a aparição dos primei-


ros pesquisadores especializados no som cinematográfico. Até en-
tão, como vimos, muitos críticos e teóricos haviam opinado sobre o
tema, mas sem grande profundidade e, certamente, sem dedicação
exclusiva. Isso começou a ocorrer nos anos 1970, quando três pes-
quisadores imediatamente se destacaram nessa área, erigindo teo-
rias que formam, até hoje, a base do pensamento acadêmico sobre
o som no cinema. Juntos, eles formam uma espécie de santíssima
trindade da pesquisa sobre som no cinema. Eles são os norte-ame-
ricanos Claudia Gorbman e Rick Altman, e o francês Michel Chion.

Dos três, a primeira a emergir foi Claudia Gorbman. Como vimos


98 antes, ela publicou um artigo influente já em 1976, pouco tempo
depois de concluir uma formação eclética: é formada em Francês,
com mestrado e doutorado em Literatura Comparada. Desde então,
Gorbman se dedicou integralmente à pesquisa sobre a música no
cinema, enquanto dava aulas na Universidade de Tacoma (EUA).
Publicou, em quase quatro décadas de carreira docente, mais de 60
artigos, a maioria examinando diversos usos da música no cinema.

A tese principal de Claudia Gorbman, que a tornou conhecida como


referência mundial no estudo da música para cinema, apareceu no
livro Unheard melodies19, publicado em 1987. Tomando os filmes
de John Ford como estudo de caso, e debruçando-se sobre os scores
compostos por Max Steiner, Gorbman defendeu que a música sinfô-
nica neorromântica do período clássico de Hollywood (1927-1945)
permanecia, na maior parte do tempo, transparente para o espec-
tador, graças ao alto grau de sincronia com as imagens. A música

19 O termo original foi cunhado pelo poeta John Yeats. Uma tradução aproximada seria “melodias
inaudíveis”, expressão que sintetiza de maneira bastante eficiente a tese de Gorbman. Seu livro nunca
foi traduzido para o português. Ela preparou uma edição atualizada para lançamento em 2014.

O som do filme: uma introdução


da época não apenas pontuava detalhadamente as ações físicas,
substituindo por vezes os efeitos sonoros, mas também modulava
a ênfase emocional da narrativa, sugerindo ao espectador o modo
afetivo como ele deveria entender o enredo. Por causa disso, o es-
pectador teria pouca ou nenhuma consciência crítica da existência e
do efeito da música sobre sua percepção do filme.

Para Gorbman, a música típica do cinema narrativo clássico


contribui para o processo de Sutura porque estimula uma
espécie de fusão do sujeito com a diegese, fato que o levaria
a uma identificação narcisística com o filme. A música tem
esse poder porque envolve o espectador ao afastar aquilo
que pode atrapalhar o seu prazer. Ela acredita que isso ocor-
re tanto num campo semiótico (a música usa códigos cultu-
rais e conotações para colocar ou reforçar um significado na
imagem, afastando possíveis dúvidas do espectador), quan- 99
to psicológico (a música desvia a atenção do espectador em
relação ao dispositivo técnico do discurso cinematográfico,
amenizando brechas, descontinuidades temporais e espa-
ciais, entre outros). (MIRANDA, 2011b, p. 162).

Nos anos que se seguiram à publicação do livro, um grande número


de pesquisadores aceitou a tese de Claudia Gorbman, que se baseava
fortemente no conceito de sutura, muito em voga na teoria psicana-
lítica do cinema, em particular na França. Somente a partir dos anos
1990 essa tese passou a ser questionada por pesquisadores como
Caryl Flinn (1992) e Jeff Smith (1996). A primeira, embora aceitasse
a tese de Gorbman, preferiu enfatizar que a inaudibilidade da música
já era uma intenção de Richard Strauss quando este, no século XIX,
enfatizava a pontuação e a repetição sistemática de temas melódicos
(os leitmotivs) para reforçar ou sublinhar aspectos da diegese.

Jeff Smith, por sua vez, foi mais duro em sua crítica. Ele argumen-
tou que os processos cognitivos do espectador se alternam, durante
a fruição do filme, por várias modalidades de escuta, transitando

Capítulo 3 – Principais teorias do som no cinema


da consciência sobre a música à semiconsciência e a uma espécie
de estado de dormência, no qual a música pode não ser saboreada
com plena consciência, mas mesmo assim é percebida e influencia a
fruição das imagens, de forma que não estaria nunca transparente.
Vale observar que o artigo de Smith integra uma coletânea, organi-
zada por David Bordwell e Noël Carroll, intitulada Post-Theory. Esse
livro tem como objetivos declarados atacar a teoria psicanalítica do
cinema, da qual a tese de Gorbman é partidária e, ao mesmo tem-
po, reivindicar para o cognitivismo, filão teórico no qual a teoria de
Smith se baseia, o espaço aberto pela desvalorização da Psicanálise.

Em sua própria defesa, Claudia Gorbman sempre aceitou parcialmen-


te as críticas, defendendo que sua tese era válida especificamente
para os filmes da fase clássica de Hollywood, tendo sido cada vez mais
desafiada a partir da entrada do cinema na era moderna (anos 1960).
100 Gorbman jamais permitiu a reedição do livro, apesar de sua influência,
por considerar que ele deveria ser atualizado. Para ela, a música feita
para cinema, a partir dos anos 1970, passou a funcionar, em muitos
casos, como uma marca de autoria para muitos diretores, como Stan-
ley Kubrick e Quentin Tarantino. Além disso, o uso de canções popu-
lares e temas eletrônicos deu à música o poder de refletir identidades,
gostos e políticas, tantos dos personagens como da instância narrati-
va. O uso dado à música, nesses casos, se distancia bastante da noção
de transparência, tão afeita aos compositores dos anos 1930 e 1940.

Assim como Gorbman, Rick Altman também é oriundo da Literatura


Comparada. Professor da Universidade de Iowa (EUA), ele se espe-
cializou nos estudos dos gêneros fílmicos, em especial o musical, e
trabalhou profusamente na interseção entre essa especialidade e os
estudos de som, lançando livros sobre o gênero musical e sobre o
papel da música e do som nas primeiras décadas de cinema – um
rigoroso estudo historiográfico que ajudou a provar que o cinema
já trabalhava com som desde sua invenção, em 1895. Essa pesquisa
modificou muito do que se pensava sobre a utilização estética do
som no cinema dos primeiros tempos.

O som do filme: uma introdução


No início da carreira como pesquisador, em 1980, Altman foi res-
ponsável pela organização do primeiro volume inteiramente dedica-
do ao estudo do som no cinema: a edição de número 60 da revista
acadêmica Yale French Studies. Artigos de pesquisadores influentes
foram reunidos num volume que, revisado e atualizado, reaparece-
ria parcialmente em 1992 como um dos livros-textos fundamen-
tais para o estudo do tema nas universidades dos Estados Unidos:
a coletânea Sound theory, sound practice, publicada pela editora
Routledge. Na edição original da revista, a contribuição de Claudia
Gorbman consistiu de um inventário bastante denso e completo
sobre a literatura disponível a respeito do som no cinema.

Já na introdução do livro, Rick Altman apresentou seu artigo mais


influente, chamado Four and a half film falacies (em português,
Quatro falácias e meia sobre cinema). No texto, ele faz um ata-
que direto à posição secundária, e subordinada às imagens, em que 101
o som aparecia nos escritos de grande parte dos mais renomados
pesquisadores cinematográficos. Ciente da reivindicação, de muitos
profissionais e pesquisadores da área do som, de que deveriam ser
reconhecidos como criadores com o mesmo grau de importância da-
queles que trabalham com as imagens, Altman procurou descrever
e desmontar as quatro falácias (e meia!) que, segundo ele, servem
como argumento para as pessoas que defendem a primazia da ima-
gem sobre o som no cinema.

A primeira falácia, segundo Altman, é histórica e teria nascido nos


escritos de teóricos, críticos e cineastas que se insurgiram contra o
som na virada dos anos 1920 e 1930. Os argumentos dos detra-
tores do som indicavam que o cinema nasceu sem som. Por isso,
tendo o som vindo depois, seria secundário, apareceria apenas para
reforçar a mensagem de uma mídia que era, antes de tudo, visual.
Altman desmonta essa falácia afirmando que o som sempre existiu
na experiência cinematográfica e que apenas não era pré-gravado,
como acontecia com as imagens. Por isso, para ele, considerar que o
cinema puro não teria som é historicamente incorreto.

Capítulo 3 – Principais teorias do som no cinema


A segunda falácia seria ontológica e teria se originado nos escri-
tos de André Bazin e Rudolf Arnheim, já nos anos 1940, tendo
desde então se tornado presente de forma direta ou indireta no
discurso de muitos cinéfilos e pesquisadores. Essa falácia afirma
que o dispositivo cinematográfico ainda ofereceria uma expe-
riência cinematográfica se na hora de uma projeção houvesse um
defeito que impedisse a reprodução do som. Nesse caso, o filme
ainda poderia ser visto e compreendido como filme. No entanto,
caso o contrário ocorresse (a projeção de imagens falhasse e a
reprodução do som continuasse), a experiência do espectador
não poderia ser classificada como cinematográfica. Em outras
palavras, o cinema, em sua natureza, seria imagem em primeiro
lugar e som em segundo plano.

A crítica de Altman a essa falácia é minuciosa, embora sujeita a


102 contestação. Ele garante, em primeiro lugar, que a presença do som
interfere decisivamente na compreensão das imagens e, portanto, o
mesmo filme ofereceria duas experiências muito diferentes se exibi-
do com ou sem som. Além disso – e mais importante –, ele diz que
a reprodução de som frente a uma tela negra configuraria, sim, uma
experiência cinematográfica, mesmo que incompleta, como também
seria incompleta a experiência no sentido inverso.

A terceira falácia seria representativa. Segundo esse argumento,


quando as imagens constituíssem uma representação do real, o som
guardaria vestígios desse mesmo real. A trilha sonora seria não uma
representação, mas uma reprodução do real, guardando suas carac-
terísticas acústicas originais de uma maneira que as imagens não
conseguiriam. Essa falácia, de certo modo, não se sustenta em pleno
século XXI, época em que as trilhas sonoras (tomada aqui como a
reunião de vozes, efeitos sonoros e música) são articuladas meticu-
losamente a partir da união e do tratamento de uma miríade de sons
gravados separadamente. Altman enfatizou esse fato com bastante
veemência em seu texto.

O som do filme: uma introdução


A quarta falácia é chamada por Altman de nominalista. O argumen-
to central dela afirma que cada som, se analisado na singularidade
da reprodução, evoca um grau de subjetividade incontornável. Em
outras palavras, dependendo da posição onde está sentada para ver
o filme, cada pessoa ouve um determinado som de modo diferente
da outra, dependendo de muitos fatores: capacidade auditiva, espa-
cialização, tecnologia de reprodução, por exemplo. Além disso, diz
ele, é impossível capturar todas as minúcias de um evento sonoro
em uma gravação, seja qual for a tecnologia usada para isso. Os crí-
ticos que evocam essa falácia, normalmente, são oriundos de teorias
de recepção focadas no papel do espectador. Mas para Altman, o
argumento se aplica igualmente à imagem. Ele não serviria para as-
segurar a superioridade da imagem em função de uma suposta – e
não comprovável – objetividade do que os olhos veem.

Por fim, a meia falácia final é chamada de indexicalidade. Essa 103


falácia está fundamentada na ideia de que o cinema depende for-
temente de uma relação indicial entre o objeto representado e sua
representação fílmica. Para André Bazin e demais teóricos realistas,
a imagem constitui uma representação fiel do real. O som, ao con-
trário, desde muito cedo – no mínimo a partir de 1932 – tem sido
construído meticulosamente, não com base no registro gravado do
fenômeno sonoro em si, mas na organização em camadas de uma
miríade de eventos sonoros registrados sem qualquer relação com o
evento real. Música, narração, ruídos e dublagem são técnicas que
afastam a trilha sonora do caráter indicial que as imagens possuem.

O avanço da tecnologia, contudo, permite que essa falácia seja re-


batida com alguma facilidade no momento em que este texto está
sendo escrito. As técnicas de computação gráfica estão tão avan-
çadas, no século XXI, que imagens fotorrealistas inteiramente cons-
truídas em computador podem ser tomadas, por espectadores desa-
visados, como indiciais. Hoje, não é mais possível afirmar que uma
imagem, seja qual for, tem caráter mais indicial do que o evento
sonoro que lhe acompanha.

Capítulo 3 – Principais teorias do som no cinema


Apesar do esforço de Rick Altman para conceder à trilha sonora um
status de componente do discurso fílmico tão importante quanto
a trilha de imagens, foram os conceitos do terceiro teórico crucial
do som no cinema que constituíram o argumento mais forte para
aqueles que defendem essa paridade. O francês Michel Chion prova-
velmente é, desde meados da década de 1980, o nome mais conhe-
cido e celebrado dentre todos os pesquisadores da área.

Também oriundo dos estudos literários, Chion começou a atuar na


crítica cinematográfica nos anos 1970, tendo construído em para-
lelo uma carreira como músico concretista, isto é, usando ruídos
cotidianos na estrutura das composições. Escreveu por muitos anos
na revista Cahiers du Cinéma, onde foi, pouco a pouco, se especia-
lizando no estudo dos sons no cinema. Tornou-se posteriormente
professor na Universidade de Paris III. Influenciado pela psicoacús-
104 tica20, Chion realizou estudos detalhados do uso da voz e da música
no cinema, antes de sintetizar seu pensamento a respeito da impor-
tância do som para o cinema em um livro de 1990. A audiovisão,
traduzido em 1994 para o inglês por Claudia Gorbman21, tornou-se
rapidamente o mais respeitado e conhecido livro a respeito do som
cinematográfico.

O termo que dá nome ao livro de Chion sintetiza e nomeia o con-


ceito-chave de sua obra, que ele chamou de “contrato audiovisual”.
Por intermédio da palavra que funde num só termo os conceitos de
áudio e visão, Chion defende que o som, no cinema, só existe em
relação com a imagem, e vice-versa, porque durante o processo cog-
nitivo de recepção do filme, a trilha sonora ajuda a dirigir a atenção
do espectador para certas maneiras de compreender a imagem, do
mesmo modo que os componentes da imagem (o enquadramento, a

20 Disciplina que combina conceitos oriundos da física acústica e da psicologia, concentrando-se na


maneira como os processos cognitivos contribuem para a audição seletiva dos ouvintes.
21 Embora não tenha sido lançado no Brasil, está disponível em língua portuguesa por ter tido lan-
çamento em Portugal pela Editora Texto & Grafia.

O som do filme: uma introdução


composição visual, as cores, as formas, a disposição das figuras etc.)
também induzem a determinados modos de escuta.

Na base da teoria de Chion está o conceito que ele chamou de “valor


agregado” (1994, p. 5). Chion explica o valor agregado utilizando
um exemplo bastante simples. Ele exibe a imagem de três aviões
voando num céu azul e sem nuvens. Essa mesma imagem é acom-
panhada de narrações variadas que induzem diferentes leituras da
imagem. “Olhem quão rápido estão voando esses aviões” chama a
atenção para o movimento das aeronaves; “como o dia está bonito”
enfatiza o azul do céu; “onde está o quarto avião” desvia o foco de
atenção para aquilo que está fora do quadro visual.

Com essa explicação, Michel Chion foi capaz de, indiretamente, rei-
vindicar status igual de importância para o som e a imagem no
processo de codificação do discurso cinematográfico. Se uma trilha 105
de informações influencia o modo como a outra é percebida pelo
indivíduo, afinal, não faz qualquer sentido reivindicar a superio-
ridade de qualquer uma delas. É precisamente por isso que Chion
propôs uma metodologia de análise da trilha sonora no audiovisual
que sempre leve em consideração as imagens que são apresentadas
em conjunto com os sons. Para Chion, a análise específica dos ele-
mentos sonoros resultará sempre incompleta e insuficiente.

A fim de instrumentalizar essa análise, Chion examinou os diversos


usos do som no cinema e propôs uma série de conceitos acessó-
rios. Ele cunhou o termo “vococentrismo” (CHION, 1994, p. 5),
por exemplo, para nomear a tendência, presente na estética sonora
hegemônica no cinema narrativo clássico, de privilegiar sempre a
voz, em detrimento da música e dos ruídos. Chamou, ainda, de
“verbocêntricos” (CHION, 1994, p. 5) os filmes que se apoiam ma-
ciçamente no conteúdo semântico do discurso verbal para prover
o espectador de informações que ajudem a narrativa a progredir
dramaticamente.

Capítulo 3 – Principais teorias do som no cinema


Outro termo criado e popularizado por Michel Chion foi o conceito
de “acusmatismo” (CHION, 1994, p. 32). A voz acusmática, para
o francês, é aquela que surge descorporificada, ou seja, sem estar
associada a um corpo humano, o que provocaria no espectador sen-
sações de mistério e de sedução. Ao analisar filmes como Psicose
(1960), que enfatiza a voz da mãe que nunca aparece, e 2001 –
uma odisséia no espaço (1968), discutindo a voz do computador
HAL, Chion demonstrou como essas vozes emprestam personalida-
des e características humanas complexas a personagens que não
são necessariamente humanos ou que, talvez, nem mesmo existam
fisicamente.

Chion também cunhou a expressão “ponto de escuta” (CHION, 1994,


p. 89), propondo-a como análoga acusticamente ao termo “ponto de
vista”. Esse conceito tornou mais complexa a noção de ponto de vista,
106 ao sugerir, pela primeira vez na teoria do cinema, que a perspectiva
do espectador dentro na diegese poderia ser influenciada pela forma
como os sons posicionam esse espectador na geografia do filme – até
porque, muito frequentemente, as perspectivas visual e sonora diver-
gem bastante. O conceito seria depois revisado de forma incisiva. O
ponto de escuta, afinal de contas, pode não se referir somente à posi-
ção física do espectador na diegese, mas também ajuda a posicioná-
-lo de forma afetiva e/ou emocional no universo da ficção, não ape-
nas por meio dos sons diegéticos, mas também pelos sons oriundos
da instância narrativa (música, voz do narrador etc.).

Michel Chion foi um dos primeiros teóricos a discutir as possibili-


dades de uso dramático do silêncio como componente sonoro. Ele
observou que o silêncio não pode ser compreendido, de forma in-
gênua, como a ausência de sons. O silêncio seria produzido, na ver-
dade, por contraste; para existir, é preciso que haja uma dinâmica
acentuada na trilha sonora, com momentos de muita pressão sonora
(a amplitude do som, percebida pelo espectador como volume, deve
ser intensa) antes e/ou depois de instantes com baixa pressão sono-
ra. Esses momentos de silêncio podem produzir significados dramá-

O som do filme: uma introdução


ticos diversos, dependendo do roteiro e da condução dramática do
enredo. Alguns pesquisadores, como o brasileiro Fernando Morais
da Costa, professor da Universidade Federal Fluminense, desenvol-
vem, ou desenvolveram, projetos de pesquisa de análise dos usos do
silêncio nos filmes.

Outra contribuição importante de Michel Chion para os estudos do


som cinematográfico consistiu na proposta, feita por ele, de que o
processo cognitivo de apreensão dos sons do filme pelo espectador
pode se deslocar, ao longo da projeção, entre três modos de escuta,
que Chion denominou de causal, semântica e reduzida (CHION,
1994, p. 25). No primeiro modo, o espectador escuta toda a massa
sonora de forma mais ou menos uniforme, dependendo principal-
mente da imagem e da relação de intensidade entre os vários even-
tos sonoros para ganhar coesão, em geral, o mais intenso demanda
maior atenção. Neste modo de escuta, o espectador busca reco- 107
nhecer a fonte material – a causa – que gera um determinado som,
criando um processo cognitivo dinâmico que envolve o repertório
anterior de cada ouvinte.

No segundo modo, o espectador valoriza os aspectos semânticos


do discurso cinematográfico – a palavra demanda maior esforço de
compreensão do que os ruídos e a música. O terceiro modo é mais
raro: a escuta reduzida se dá quando o ouvinte conscientemente
dirige sua atenção para um elemento específico da massa sonora,
descartando os demais para analisar o elemento escolhido com toda
a atenção possível.

Por fim, também tem sido muito grande a contribuição dos estudos
de Michel Chion para a construção de toda uma tipologia dos sons
fora de quadro. Há muito se sabe – pelo menos desde o manifesto
coescrito por Eisenstein, Pudovkin e Alexandrov, publicado em 1928
– que os eventos sonoros produzidos por elementos não visíveis
na tela contribuem para dar verossimilhança e enriquecer a trilha
de imagens. Chion dirigiu sua atenção especialmente a esses sons,

Capítulo 3 – Principais teorias do som no cinema


dividindo-os em duas categorias: sons fora de quadro passivos, que
dão tridimensionalidade às imagens, mas não chamam a atenção,
e ativos, que provocam curiosidade ou suspense sobre sua origem
e, por isso, exercem papel mais importante na condução da trama.

A contribuição seminal desses três nomes estabeleceu, entre mea-


dos dos anos 1970 e início dos anos 1990, a base sobre a qual a
pesquisa sobre o som cinematográfico passou a se expandir regu-
larmente, tanto em número de praticantes quanto em variedade de
disciplinas acadêmicas. Nos Estados Unidos, teóricos como Kathryn
Kalinak passaram a oferecer perspectivas historiográficas a respeito
do uso da música nos filmes clássicos. A armênia Anahid Kassabian,
oriunda da semiologia da música, tem explorado essa perspectiva
original para discutir os processos de significação ativados pelas
sonoridades no cinema.
108
Já a psicóloga Annabel Cohen desenvolveu, em mais de duas dé-
cadas, uma pesquisa consistente sobre percepção auditiva e cogni-
ção musical. Por meio de levantamentos quantitativos e entrevistas
qualitativas, ela tem tentado explicar de que maneira os especta-
dores de filmes identifica padrões musicais, relaciona esse padrões
com emoções e sensações, atribui significados afetivos, históricos,
geográficos e assim por diante. Ainda trabalhando dentro da abor-
dagem cognitivista, Jeff Smith vem desenvolvendo, na Universida-
de de Madison-Wisconsin, uma abordagem focada nos processos
perceptivos do espectador. Smith focaliza especialmente as relações
estreitas entre as exigências comerciais da indústria cinematográfi-
ca, especialmente em Hollywood, e os padrões mais recorrentes de
composição musical para filmes e sound design contemporâneo.

Outros nomes importantes da área são: Robynn Stilwell (o artigo em


que esta autora examina a complexidade crescente da área ambiva-
lente entre sons diegéticos e não diegéticos, dentro do filme, está
entre os textos mais influentes produzidos neste século sobre o som
no cinema); Mark Kerins, que tem atuação destacada no mercado

O som do filme: uma introdução


como editor de som e vem estudando, principalmente, o uso do sur-
round e as maneiras como a estereofonia sonora na era digital tem
modificado os padrões sonoros dos filmes mais recentes; William
Whittington, pioneiro do debate sobre padrões estilísticos na área
de som, em interseção com os gêneros cinematográficos.

Na Inglaterra, Gianluca Sergi tem procurado discutir a progressiva


valorização dos ruídos nas trilhas sonoras dos filmes, desde os anos
1970, e Kevin Donnelly tem oferecido uma abordagem crítica ao
uso da música nos filmes. Muitos desses autores têm extrapolado a
discussão sobre o som nos filmes, dedicando-se também a discutir
as sonoridades de games, videoclipes, de vídeos amadores posta-
dos no Youtube, de séries contemporâneas de televisão e muitos
outros produtos audiovisuais. Um dos nomes mais influentes nessa
área é Carol Vernallis, cuja pesquisa pioneira sobre videoclipes tem
se expandido para outras formas audiovisuais circuladas através da 109
internet. A variedade de estudos sobre o som no cinema é grande,
e o acesso a livros e artigos tem sido cada vez mais facilitado pela
emergência de livrarias virtuais e revistas eletrônicas.

No Brasil, os estudos do som no audiovisual também têm crescido


bastante desde o final dos anos 1990. De fato, o volume funda-
dor dessa tradição em língua portuguesa, assim como aconteceu
nos EUA, foi o lançamento de um número de revista inteiramen-
te dedicado ao som: o número 37 da Filme Cultura, editado por
Jean-Claude Bernardet, em 1981, e intitulado Som e cinema. No
entanto, muitos anos se passariam até que a reflexão sobre o som
do filme efetivamente conquistasse espaço autônomo no seio dos
então incipientes estudos de cinema nacionais.

Um dos pesquisadores pioneiros na área é Fernando Morais da Costa


(Universidade Federal Fluminense), autor de um livro pioneiro que
resgata a história do som nos filmes brasileiros desde o final do
século XIX. Suzana Reck Miranda (Universidade Federal de São Car-
los) desenvolve uma pesquisa influente, na qual procura examinar

Capítulo 3 – Principais teorias do som no cinema


criticamente os principais pensadores do tema na atualidade, contri-
buindo para a divulgação do pensamento desses autores na língua
portuguesa. Eduardo Santos Mendes e João Godoy (Universidade de
São Paulo) e Ney Carrasco (Universidade de Campinas) trabalham
criticamente sobre som direto, edição de som e música no cinema
brasileiro, e oferecendo contribuição importante na área.

Dentre outros autores de destaque estão inclusos: Sergio Puccini


(Universidade Federal de Minas Gerais) e Márcia Carvalho (Faculdade
Paulus de Tecnologia e Comunicação), que trabalham com temas
variados relacionados ao uso do som em documentários e filmes
brasileiros recentes; Guilherme Maia (Universidade Federal da Ba-
hia), que pesquisa sobre filmes musicais e documentários brasileiros;
Leonardo Vidigal (UFMG), que desenvolve trabalho sobre a noção
de ponto de escuta; Luíza Alvim (Unirio), cuja pesquisa analisa ex-
110 tensamente o som na obra de Robert Bresson; Luiz Cláudio Casta-
nheira (Universidade Federal de Santa Catarina), que tem aplicado
metodologias e teorias oriundas dos estudos do som ao cinema;
Débora Opolski (Universidade Federal do Paraná), editora de som e
professora que vem se dedicando a discutir os métodos de trabalho
de sound designers brasileiros.

O principal espaço de debates que tem reunido esse grupo de pes-


quisadores é o seminário de estudos do som cinematográfico da
Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual (Socine).
Existente desde 2009, o seminário tem recebido estudiosos de di-
versas origens, inclusive internacionais, que, ao longo dos últimos
anos, souberam consolidar o espaço de discussão e a troca de expe-
riências de pesquisa e ensino no campo.

Os nomes citados têm contribuído efetivamente para ampliar o nú-


mero de textos disponíveis em português que, muitas vezes, exami-
nam e expandem o pensamento dos autores internacionais citados
anteriormente. Entre as publicações na área realizadas nos últimos
anos, valem menções especiais: o livro Som + imagem (2013), cole-

O som do filme: uma introdução


tânea de artigos, organizada por Simone Pereira de Sá e Fernando
Morais da Costa e que conta com textos inéditos de Claudia Gorb-
man e Carol Vernallis, além de ensaios de autores influentes, como
Will Straw e Angela Prysthon; o livro Introdução ao desenho de som
(2013), de Débora Opolski, que investiga o sound design inovador
do filme Ensaio sobre a cegueira (Fernando Meirelles, 2009); os
dois números dedicados inteiramente ao estudo som pela revista Ci-
berlegenda (Universidade Federal Fluminense), em 2011, compondo
uma coletânea rica, em que muitos dos autores citados aqui desen-
volvem aspectos de suas pesquisas.

111

Capítulo 3 – Principais teorias do som no cinema


112

O som do filme: uma introdução


PARTE 2
O SOM NA PRODUÇÃO CINEMATOGRÁFICA
João Baptista Godoy de Souza
CAPÍTULO 4
A PRÁTICA DE CAPTAÇÃO DO SOM DIRETO

114 4.1 A rotina de trabalho

Este capítulo apresenta uma sistematização da rotina de trabalho do


profissional do som direto e suas implicações com as demais áreas
técnicas da realização audiovisual. Como sabemos, som direto é o
som captado e registrado em sincronia com as imagens em uma
realização audiovisual. O vínculo da captação simultânea entre som
e imagem foi determinante no desenvolvimento dos procedimentos
de trabalho do som direto.

O advento do filme sonoro determinou mudanças nos procedimen-


tos de realização cinematográfica. Conforme Bordwell (1997, p.
334), no período da transição para o sonoro, novas práticas foram
estabelecidas para adequar a realização às necessidades de captação
e de registro do som. Em algumas situações o som direcionou as
estratégias de filmagem, como no emprego de múltiplas câmeras
na tentativa de driblar as limitações impostas pela tecnologia de

O som do filme: uma introdução


gravação do som em discos22. A tendência da indústria cinemato-
gráfica foi a de desenvolver tecnologia e adequar os procedimentos
de trabalho no sentido de inserir o som num esquema de produ-
ção já estabelecido. Os avanços tecnológicos buscaram: aumentar a
qualidade dos sistemas eletrônicos de captação e reprodução; criar
equipamentos (câmeras e luzes silenciosas, suportes para microfone)
e infraestrutura (estúdios acusticamente tratados) compatíveis com
as necessidades do registro de som que se inseria, como um novo
elemento narrativo, no sistema de representação solidamente cons-
tituído pelo cinema clássico de Hollywood.

A fidelidade na representação dos eventos acústicos é compartilha-


da por diversas áreas profissionais que lidam com a matéria sonora
(indústria fonográfica, produção radiofônica, espetáculos musicais
etc.), e a qualidade do som direto é igualmente orientada por esta
premissa. Porém, no som direto os procedimentos empregados estão 115
condicionados à captação simultânea da imagem que, via de regra,
determina que os dispositivos de captação estejam fora de quadro,
limitando o posicionamento dos microfones. É com esta rígida pre-
missa que se organiza o método de trabalho do som direto.

Numa realização audiovisual convencional, espera-se que o áudio


gravado pelo som direto: (a) tenha um registro de voz claramente
inteligível; (b) ocupe um plano sonoro verossímil à imagem cor-
respondente ou que possa ser manipulado em pós-produção para
alcançar esta verossimilhança; (c) entre os planos que constituem
uma sequência, tenha continuidade de timbre e adequação com o
espaço fílmico representado; (d) forneça os elementos necessários

22 A gravação dos discos do sistema Vitaphone era contínua e não permitia edição do material gra-
vado, obrigando que as tomadas sonoras fossem realizadas sem interrupção e a duração da gravação
era determinada pelo tamanho do disco empregado – 7 ou 9 minutos –. Se um ator errasse um trecho
do texto ao longo da tomada, a gravação era inviabilizada e a matriz era descartada. A necessidade
técnica da realização da tomada sonora sem interrupção impedia a aplicação do método tradicional
de filmagem: decupagem da cena em vários planos, com diferentes enquadramentos, para posterior
construção da unidade da ação por meio da montagem (multiple takes method).

Capítulo 4 – A prática de captação do som direto


para a edição de som, com os ambientes próprios das locações, com
os planos sonoros de cobertura e com os ruídos de características
especiais, difíceis de serem recriados na pós-produção.

No atual estágio da realização cinematográfica ficcional, os profis-


sionais responsáveis por essa função apresentam elevado grau de
especialização e atuam na maioria das vezes como freelancers no
mercado de trabalho. Os técnicos de som direto, como são denomi-
nados no Brasil, têm a incumbência de determinar os procedimentos
que objetivam a obtenção de registros sonoros com características
técnicas que permitam integrá-los à trilha sonora finalizada. Não
obstante as enormes diferenças orçamentárias existentes entre as
produções ao redor do mundo, que determinam estruturas de reali-
zação bem distintas, é possível localizar procedimentos recorrentes
que formam a base de uma prática de captação de som direto.
116
Neste capítulo serão apresentadas as diferentes configurações em-
pregadas na captação de som direto e as atividades práticas rea-
lizadas pelo técnico de som desde a preparação desenvolvida na
pré-produção até a etapa de captação propriamente dita.

4.2 Configuração técnica e constituição da equipe

A realidade orçamentária, o objetivo do projeto audiovisual e as


demandas do roteiro condicionam a configuração dos equipamen-
tos e a constituição da equipe responsável pelo registro do som
sincrônico. Além desses fatores, o tipo de suporte escolhido para o
registro da imagem é também determinante. Atualmente, quando se
trabalha captando a imagem em película usando câmeras cinema-
tográficas, obrigatoriamente o registro sonoro será feito separada-
mente, em um gravador de som independente, numa configuração

O som do filme: uma introdução


denominada de double system23. Em contraposição, nas produções
audiovisuais, em que câmeras de vídeo digital são usadas para regis-
trar a imagem, o som pode ser gravado conjuntamente no mesmo
suporte, constituindo o chamado single system24.

Nas produções em vídeo digital, a opção por gravar o som e a ima-


gem no mesmo suporte é uma decisão influenciada por questões
que dizem respeito a: os custos de produção; a maior ou menor
necessidade de ‘independência do técnico de som em relação à câ-
mera’; o tempo disponível para a pós-produção; e qualidade técni-
ca desejada, conforme apontam Alejandro Seba e Leandro Loredo
no texto Sonido directo – algunas consideraciones (2005, p. 64).
Diferentes configurações técnicas impõem ao profissional do som
diferentes condições de trabalho, como veremos a seguir.

Considerando as produções em vídeo digital, a opção por registrar o 117


som em double system significa arcar com custos de locação de um
gravador de som, além do custo obrigatório com a câmera de vídeo.
Apesar de existir uma infinidade de marcas e modelos de gravadores,
com imensa variação de preço, alguns projetos audiovisuais de baixo
orçamento só se viabilizam por meio de esquemas extremamente
econômicos, os quais suprimem itens que isoladamente represen-
tam um pequeno valor. Além do custo de locação, o double system
acarreta um custo a mais ao processo de realização audiovisual, pois
cria a necessidade de sincronizar som e imagem antes de iniciar
a edição; em contraposição, no single system som e imagem são
fisicamente sincronizados no momento da captação. Nos projetos
em que o tempo para a pós-produção é escasso, o carregamento do
material na ilha de edição já sincronizado é um argumento em favor
do single system.

23 A captação em double system foi uma prática dominante no registro cinematográfico desde o
advento da captação óptica em câmera separada da imagem em meados de 1929.
24 Na prática da realização, o termo é normalmente empregado em inglês.

Capítulo 4 – A prática de captação do som direto


A realização de matérias jornalísticas para a televisão tem como pre-
missa a configuração single system em função da maior rapidez no
processo de finalização. Considerando exclusivamente a qualidade
do áudio digital, sabemos que, embora “a taxa de amostragem25 e o
bit depth26 sejam similares nas câmeras de vídeo digitais e nos gra-
vadores de som, nestes últimos, por serem destinados exclusivamen-
te ao registro sonoro, contarão com conversores analógico-digital/
digital-analógico (AD/DA)27 de maior qualidade e outros acessórios
que garantem melhores resultados” (SEBA; LOREDO, 2005, p. 64)
no registro sonoro digitalizado.

Podemos esquematizar as diferentes configurações técnicas para a


captação de som direto, das mais simples às mais complexas, do
seguinte modo:

118 • Single system – som e imagem gravados no mesmo suporte.


a. Microfones conectados diretamente à câmera de vídeo.
b. Microfones conectados a um mixer portátil que se conecta
à câmera de vídeo.

• Double system – som e imagem registrados em suportes inde-


pendentes.
a. Microfones conectados a um mixer portátil que se conecta
a um gravador digital portátil. Equipamentos presos ao corpo
do técnico de som. Alta portabilidade.

25 Taxa de amostragem ou sampling rate é a frequência de amostras do som original, colhidas para
serem representadas numericamente. A taxa de amostragem normalmente empregada na captação de
som direto é de 48 KHz. Na indústria fonográfica, a taxa de amostragem utilizada na confecção dos
compact discs é de 44,1 KHz.
26 O bit depth é um dos parâmetros que determinam a qualidade do som digital. Bit depth é a mag-
nitude de cada número utilizado para representar o som contido em cada pequena fração de tempo
utilizada na amostragem – sampling rate – do sinal sonoro original. Quanto maior o bit depth, maior
o intervalo dinâmico alcançado pelo som digital. Atualmente, na captação de som direto são empre-
gadas taxas de 16 ou 24 bits.
27 Conversores AD/DA são microprocessadores que transformam sinais analógicos em sinais digitais
e vice-versa. A qualidade do processo de conversão analógico-digital/digital-analógica é determinada
pelas características técnicas desses dispositivos.

O som do filme: uma introdução


b. Microfones conectados a um mixer ou console de mixagem
que se conecta a um gravador digital. Equipamentos insta-
lados em plataforma fixa ou em um carrinho de som. Baixa
portabilidade.

A primeira configuração é a mais vantajosa em termos orçamen-


tários, porém limita muito o trabalho do técnico de som direto. O
controle de ganho do sinal de áudio fica localizado no corpo da câ-
mera, com difícil acesso para o técnico de som, impedindo correções
de volume durante a captação da cena. Nessa configuração não é
disponibilizado instrumento de monitoração visual do volume do
som captado e a monitoração auditiva é de baixa qualidade e desa-
jeitada, pois é feita por meio de uma longa extensão que conecta o
fone de ouvido do técnico de som à saída de fone da câmera. Além
dessas restrições, acrescenta-se o fato de que o número de microfo-
nes é determinado pela quantidade (geralmente dois) de canais de 119
áudio disponíveis na câmera, e não pelas necessidades da cena. Essa
configuração é usada apenas em produções de baixíssimo orçamen-
to e sem maiores pretensões em relação à qualidade do som.

Um arranjo ainda mais simples que esse pode ser constituído pela
fixação de um microfone no corpo da própria câmera, procedimento
pouco usual em realizações profissionais.

O segundo arranjo do single system, com a presença de um mi-


xer portátil, proporciona condições mais apropriadas ao trabalho do
técnico de som direto. É disponibilizada no mercado dos produtos
eletrônicos profissionais uma infinidade de modelos que atendem a
diferentes necessidades de captação. Entre as características básicas,
encontradas na maioria dos mixers, podemos citar: os potenciôme-
tros que permitem o ajuste de ganho individual para cada canal,
proporcionando o controle dinâmico do volume do áudio captado;

Capítulo 4 – A prática de captação do som direto


os filtros para a atenuação de baixas frequências; os VUs28 e/ou
os peakmeters29 que possibilitam a monitoração visual do nível do
áudio captado; e a saída de fone de ouvido com sinal transparente,
volume ajustável e ganho adequado que disponibilizam uma refe-
rência auditiva confiável do material captado.

Além dessas ferramentas fundamentais para o controle da capta-


ção, os mixers portáteis, com grande variedade de modelos, ofe-
recem até seis canais de entrada, possibilitando ao técnico de som
o emprego de um maior número de microfones para a execução
de estratégias mais complexas de captação. A maioria dos mixers
portáteis possui duas saídas principais mixadas (master output),
por meio das quais se envia o sinal de áudio para a câmera. A
principal limitação dessa configuração é a conexão física, feita por
intermédio de cabos, com a câmera de vídeo, situação que restrin-
120 ge o livre deslocamento e obriga o técnico de som a posicionar-se
em função das escolhas da câmera. Esse ‘cordão umbilical’ pode
tornar-se um estorvo em situações com deslocamento intenso da
equipe, como em gravações de rua ou festas populares, comuns
nas realizações documentárias que empregam o single system com
bastante frequência.

Uma configuração mais sofisticada desse sistema permite que a co-


nexão entre o mixer e a câmera seja estabelecida via rádio, supri-
mindo o ‘cordão umbilical’ que limita a movimentação da equipe.
No entanto, sistemas de radio transmissão eficientes são onerosos e
criam uma exigência desgastante: a contínua monitoração do siste-
ma de transmissão. Considerando que, o funcionamento do sistema
de transmissão via rádio é dependente do fornecimento de energia
de baterias internas dos transmissores e receptores, e que a inter-

28 VU é a abreviatura de Volume Unit, dispositivo padrão usado para medição do nível médio do sinal
de áudio. Instalado em diversos equipamentos de som, ele possui tempo de resposta semelhante à
audição humana, o que possibilita a avaliação da chamada “sensação de volume de um sinal de áudio”.
29 Peak Meter é um dispositivo de medição de intensidade sonora que reage instantaneamente aos
sinais que transitam no sistema, propiciam a monitoração visual dos curtos transientes elétricos.

O som do filme: uma introdução


rupção do sinal, pela queda de energia, pode invalidar uma cena,
cabe ao técnico de som, além de todas as atividades para a captação
do som, dedicar atenção contínua para garantir o funcionamento
ininterrupto do sistema de transmissão.

O double system possibilita a independência em relação à câmera e


é a configuração técnica mais complexa. A existência de uma plata-
forma específica para o registro do áudio desfaz o ‘cordão umbilical’
e possibilita maior controle sobre o registro sonoro com as ferra-
mentas adequadas para: a monitoração do áudio, o ajuste do nível
do sinal e a filtragem de baixas frequências.

Os equipamentos de som na configuração double system podem


ser estruturados num arranjo compacto, com os aparelhos presos
ao corpo do técnico de som direto, buscando o máximo de porta-
bilidade. Essa conformação é largamente empregada em produções 121
documentárias que normalmente exigem rapidez no deslocamento
e uma estrutura enxuta de captação. Normalmente nessas situações,
a equipe de som direto é constituída por um único profissional que
executa todas as funções exigidas para o registro do som. A imagem
1 da Figura 9, a seguir, ilustra a configuração double system empre-
gada na realização do documentário La terre et la peine (Frédéric
Létang, 1997). Num típico arranjo para a realização documentária,
o técnico de som realiza o registro sonoro, ao mesmo tempo em
que opera o microfone. Na foto, é possível ver o uso do microfone
direcional sustentado pelo boom30.

30 No Brasil, o termo boom é usado para indicar o dispositivo tubular leve, com extensão ajustável
e que suporta o microfone. O microfonista sustenta esse dispositivo com os braços, posicionando o
microfone para a captação do som. Nos Estados Unidos, o termo boom é usado para designar o su-
porte de microfone, normalmente construído sobre rodas, com uma longa vara metálica, que carrega
o microfone, sustentada por um eixo central. Esse sistema é operado pelo boom operator por meio de
manivelas; seu emprego é muito comum em gravações de sitcom. Fishpole ou mic boompole, termo
usado para designar o suporte de microfone leve, sustentado com os braços pelo boom operator.

Capítulo 4 – A prática de captação do som direto


[Figura 9]
122

Tecnicamente, essa configuração disponibiliza ao profissional do


som as ferramentas adequadas para a realização do trabalho à cus-
ta de um enorme esforço físico. Cuidar simultaneamente do regis-
tro sonoro e da operação do microfone direcional, carregando uma
considerável sobrecarga de peso – que pode chegar facilmente a dez
quilos –, exige disposição e resistência física.

Outra situação relativamente comum existe na realização documen-


tária, na qual, durante uma tomada, o técnico de som necessita con-
trolar o ganho do microfone. Dessa forma, com uma das mãos o
técnico suporta o boom, mantendo o microfone na posição correta
para a captação e com a outra faz o ajuste necessário para o controle
do nível de gravação. A imagem 2 da Figura 9 ilustra essa situação.

Na realização de longas-metragens ficcionais é empregada a con-


figuração double system com os equipamentos de som, normal-
mente, num arranjo de menor portabilidade com o técnico de som
direto trabalhando numa situação mais confortável. É comum a

O som do filme: uma introdução


disposição dos equipamentos sobre uma plataforma móvel deno-
minada ‘carrinho de som’, que permite que os componentes (mi-
xer, gravador, microfones) estejam conectados e prontos para uso.
O ‘carrinho de som’ possibilita a organização dos equipamentos e
acessórios que são utilizados corriqueiramente e permite pequenos
deslocamentos, com certa agilidade e pouco esforço, sem a ne-
cessidade de desmontar o sistema. Nessas situações, a quantidade
de equipamentos alocados é normalmente maior, dependente da
demanda e do orçamento da produção. São comumente empre-
gados: amplo conjunto de microfones; mixer de mesa; gravador
multipista; monitor de vídeo para referência visual da cena capta-
da; sistema de comunicação com o microfonista; sistema de rádio
para transmissão do áudio captado para a direção e continuísta;
entre outros. As necessidades de realização determinam o tipo de
arranjo técnico empregado, e a organização do sistema é funda-
mental para a eficiência do trabalho do som direto. 123

Na imagem 3 da Figura 9, a situação mais tradicional: o técnico de


som, durante a tomada de uma cena, mantém os equipamentos dispos-
tos sobre a plataforma móvel, ou ‘carrinho de som’, num típico arranjo
utilizado em longas-metragens. A composição da equipe de som direto
varia também em função da realidade orçamentária da produção, po-
rém, em geral, integram a equipe, além do técnico de som, ao menos
um microfonista e um assistente de som com funções que seguem um
protocolo rigidamente definido, como veremos adiante.

O emprego de arranjos de alta portabilidade não é exclusividade


de realizações documentárias. Demandas específicas na realização
ficcional exigem também esquemas ágeis e compactos. Entre os téc-
nicos de som direto da cidade São Paulo, é empregado o jargão ‘es-
quema voador’ para designar estas configurações. Nessas situações,
o técnico de som é assistido pelos demais componentes da equipe,
porém, no momento da captação, opera o equipamento num ar-
ranjo semelhante àquele empregado nas realizações documentárias.

Capítulo 4 – A prática de captação do som direto


Como pode ser visto na imagem 4 da Figura 9, durante as grava-
ções do longa-metragem Não por acaso (Philippe Barcinski, 2007)
foi utilizado o ‘esquema voador’ para ocupar o interior do porta-
-malas do veículo usado na realização da cena com diálogo.

A configuração dos equipamentos e as atividades desenvolvidas pelo


técnico de som direto devem ser entendidas como rotinas de um
método de trabalho que visa adequar-se às condições orçamentárias
e à proposta estética da realização. Esse método tem procedimentos
comuns que se repetem em realidades de produção muito distintas,
formando uma mesma base de trabalho compartilhada pela maioria
dos profissionais da área. Porém, esses procedimentos apresentam
aspectos particulares, desenvolvidos para solucionar as demandas
específicas de cada produção.

124 Trabalha-se com a ideia de método que vai além daquele emprega-
do pela ciência clássica, que entende o método como um programa
que normatiza previamente uma série de procedimentos que serão
realizados, prevendo erros evitáveis, objetivando um resultado pré-
-determinado. Esse sentido dado ao conceito de método é limitante
e, segundo Edgar Morin (2000, p. 335), resulta da degradação de
seu significado original, sofrido no seio da ciência clássica. Confor-
me afirma o autor, “na perspectiva clássica o método não é mais
que um corpus de receitas, de aplicação quase mecânica, que visa
a excluir todo o sujeito de seu exercício. O método degrada-se em
técnica porque a teoria se tornou um programa”.

Diante da infinidade de variáveis do processo de realização audiovi-


sual, sabe-se que um método de trabalho entendido como uma “re-
ceita de bolo”, mesmo se aplicada segundo um princípio rigoroso de
controle dos diversos procedimentos, é insuficiente para a intrincada
realidade dos processos de produção cinematográfica.

Para responder às demandas da realização audiovisual, entende-se


que método é algo mais dinâmico e deve ser compreendido a partir

O som do filme: uma introdução


do conceito apresentado por Morin no contexto da teoria da com-
plexidade, na qual:

[...] uma teoria não é o conhecimento; ela permite o conhe-


cimento. Uma teoria não é uma chegada; é a possibilidade
de tratar um problema. Em outras palavras uma teoria só
realiza seu papel cognitivo, só ganha vida com o pleno em-
prego da atividade mental do sujeito. É essa intervenção do
sujeito que dá ao termo método seu papel indispensável
(MORIN, 2000, p. 335).

Nesse contexto teórico, método e teoria complementam-se, “méto-


do é atividade pensante e consciente do sujeito” que reorganiza e
reconstrói o próprio conhecimento (MORIN, 2000, p. 339).

Assim, entende-se que o trabalho do técnico de som direto na reali- 125


zação de uma produção específica pressupõe opções de “estratégia,
iniciativa, invenção e arte” que se somam a uma base comum, his-
toricamente desenvolvida e reiteradamente aplicada, conformando
um método em contínua reconstrução.

No próximo tópico serão apresentadas as atividades fundamentais


que constituem o método de trabalho do técnico de som direto,
tomando como referência a realidade da produção cinematográfica
ficcional brasileira.

4.3 O método de trabalho

A denominação do profissional do som direto varia conforme o


país analisado. Nos Estados Unidos, esses profissionais são chama-
dos de production sound mixer ou sound recordist; na França, de
ingénieur du son; nos países de língua espanhola, de sonidistas.
Independentemente da nacionalidade e a despeito de diferenças

Capítulo 4 – A prática de captação do som direto


orçamentárias dos filmes nos quais trabalham, esses profissionais
empregam estratégias comuns, utilizando equipamentos similares e
lidando com problemas semelhantes no cumprimento das atividades
de captar e registrar o som das falas e demais sons produzidos pela
ação dos atores ou objetos envolvidos na mise-en-scène. Na equipe
de realização audiovisual, eles são os responsáveis por zelar pela
qualidade do registro sonoro sincrônico.

No atual momento da produção cinematográfica ficcional brasileira,


o técnico de som usualmente é contratado para atuar em duas fases
do processo de realização: na chamada “pré-produção” e na filma-
gem propriamente dita. Na pré-produção, o técnico de som direto
se incorpora à equipe para participar do processo de preparação da
filmagem. Durante essa etapa, serão definidas detalhadamente as es-
tratégias de trabalho que serão aplicadas posteriormente. Durante a
126 filmagem, no set, o técnico de som direto é o responsável por executar
os procedimentos da rotina de captação e registro do som sincrônico.

Durante a pré-produção, são feitas sessões de leitura do roteiro com


a participação dos responsáveis pelas diversas áreas técnicas que
constituem a equipe de realização (diretor, diretor de arte, assistente
de direção, fotógrafo, técnico de som direto, diretor de produção,
produtor de set, figurinista, entre outros). Essa análise técnica possi-
bilita que cada profissional defina as necessidades, em suas respecti-
vas áreas, a partir das indicações contidas no roteiro. Nesse momen-
to, o técnico de som direto detalha todas as demandas necessárias e
define as estratégias de captação, considerando os equipamentos, a
equipe e os materiais necessários.

O trabalho da pré-produção é decisivo para o sucesso da etapa seguinte,


pois é nesse momento que se define: quais as cenas com som direto; se
as cenas são simples, constituídas apenas por diálogos e ambientes; se
são cenas mais complexas, requerendo equipamentos específicos, como
nas apresentações musicais ou coreografias; se são cenas em situações
especiais de captação, como o interior de veículos em movimento. A

O som do filme: uma introdução


leitura detalhada do roteiro permite o planejamento das estratégias de
captação e a definição do número e do tipo de microfones, escolhidos
em função do número de personagens que interagem e da mise-en-
-scène pretendida, que serão necessários em cada cena.

Nessa fase, devem ser precisamente indicados os pontos de intersec-


ção com as outras áreas técnicas da realização que podem interferir
no trabalho do som direto e devem ser buscadas alternativas conjun-
tas para a criação de condições adequadas para a captação de som:

(a) com a fotografia: discussão do tipo de iluminação preten-


dida considerando a utilização de microfones aéreos operados
pelo boom;
(b) com a direção de arte e a cenografia: atenção na constru-
ção dos cenários e na escolha dos objetos cenográficos (mó-
veis e utensílios gerais), que não produzam ruídos indesejados 127
durante as cenas e auxiliem na absorção do som;
(c) com a produção de set: apontamento das possíveis ne-
cessidades de controle do tráfego de veículos e a supressão
de fontes sonoras indesejáveis, no caso de filmagens externas,
locações, ou mesmo em estúdios sem isolamento acústico;
(d) com o departamento do figurino: apontamento da ne-
cessidade de roupas e adereços que não produzam ruídos e
que possibilitem a ocultação dos microfones de lapela sem fio.

Um dos aspectos mais importantes dessa etapa é a compreensão da


proposta estética e do estilo da direção que serão materializados nas
ações concretas durante as filmagens (enquadramentos, movimen-
tos de câmera, mise-en-scène, estilo de atuação, entre tantas outras
variáveis à disposição da direção). O técnico de som direto deve
elaborar estratégias que corroborem as premissas da direção e que
permitam obter registros sonoros tecnicamente adequados e esteti-
camente coerentes com a proposta de realização. É também função
do profissional do som o alerta ao diretor/produtor executivo sobre
as proposições de direção que possam comprometer a captação de

Capítulo 4 – A prática de captação do som direto


som direto com qualidade técnica para integrar a trilha sonora final.
Na fase de pré-produção, além da análise técnica, o técnico de som
direto é responsável por avaliar as condições acústicas das locações
(casas, apartamentos, escritórios e galpões) potencialmente interes-
santes para a demanda do roteiro e para a proposta de direção. São
dois os parâmetros empregados nesta avaliação: o nível de ruído
ambiente e o grau de reverberação. O baixo nível de ruído ambiente
e um pequeno grau de reverberação são decisivos na escolha dos
locais de filmagem. Nessa etapa do trabalho, cabe ao profissional
do som apontar e solicitar soluções para melhoria das condições
acústicas das locações. Se o profissional entender que as condições
acústicas não apresentam os requisitos mínimos necessários para o
desenvolvimento do trabalho, deve vetá-las. Essa última situação
é muito delicada para o profissional do som, pois se uma locação
atende às demandas de todas as outras áreas, existe uma pressão, às
128 vezes pouco sutil, para que seja aprovada também pelo técnico de
som, mesmo que não atenda completamente às suas necessidades.

A última etapa conjunta da fase de preparação é constituída


pelas visitas técnicas31 a cada uma das locações previamente es-
colhidas. Essas visitas ocorrem pouco tempo antes do início das
filmagens. Em cada tec scout o diretor apresenta a proposta de
decupagem32 das cenas da locação. A decupagem apresentada
na visita técnica é uma informação preciosa, pois é a referência
mais palpável, desde o início da preparação, de como o diretor
pretende materializar a cena descrita no roteiro, permitindo que
cada departamento defina precisamente as necessidades para a

31 Visita técnica se origina de technical scout ou tec scout, termo usado na realização audiovisual
norte-americana para designar as visitas, organizadas pela produção, com todos os chefes de equipe
às locações aprovadas. Nessas visitas, cada departamento detalha as necessidades operacionais e ma-
teriais para a filmagem. Em geral participam das visitas o diretor, o assistente de direção, o diretor de
arte, o fotógrafo, o chefe de elétrica, o eletricista, o maquinista, o diretor de produção, o produtor de
set e o técnico de som direto. No cotidiano da produção brasileira, o termo é normalmente utilizado
em inglês.
32 O termo “decupagem” é utilizado com o sentido de processo de decomposição da ação em planos
que constituirão as unidades de montagem para a construção de uma sequência.

O som do filme: uma introdução


concretização da proposta de direção. A partir da decupagem, o
técnico de som direto revê as estratégias de captação elaboradas
durante a análise técnica e detalha os procedimentos para a rea-
lização da cena. Ainda durante as visitas, o técnico de som discri-
mina as intervenções necessárias para criar as condições acústi-
cas adequadas para a prática do som direto e solicita a execução
das tarefas aos departamentos responsáveis.

As intervenções acústicas visam aumentar o isolamento sonoro e


a diminuição da reverberação. Entre os procedimentos para a me-
lhoria das condições acústicas, pode-se destacar: colocação de vi-
dros antirruídos; fechamento de vãos para o exterior por meio de
construção de paredes de alvenaria; manutenção de portas e jane-
las; colocação de borrachas de vedação em janelas pré-existentes;
construção de grids33 para a sustentação de mantas acusticamente
absorventes. É durante o tec scout que o técnico de som, o gaffer34 129
e o produtor de set, definem conjuntamente a posição e a distância
do caminhão gerador para minimizar sua presença sonora durante a
filmagem. Também é durante o tec scout que é solicitada a atenção
dos departamentos de maquinária35 e eletricidade em relação ao
posicionamento dos reatores eletrônicos usados nos equipamentos
de luz e em relação aos pontos de entrada dos cabos de energia
para que não seja comprometido o isolamento acústico da locação.
As decisões tomadas nas visitas técnicas são definitivas; o que não
tiver sido previsto pelo técnico de som direto pode ser desastroso
durante a filmagem. Da mesma forma, as orientações de decupagem
assumidas pela direção devem ser mantidas para que a preparação
executada por cada departamento tenha validade.

33 Grid é o termo utilizado para designar uma estrutura quadriculada suspensa acima do cenário que
permite a fixação de refletores e outros dispositivos necessários para a realização cinematográfica.
34 Gaffer é o eletricista chefe, responsável pela coordenação das equipes de eletricistas e dos maqui-
nistas. É o profissional responsável pela execução da iluminação das cenas.
35  A “maquinária” é o departamento responsável pela instalação das estruturas para a fixação dos re-
fletores de luz e pela operação dos equipamentos que movimentam a câmera, tais como, dollys e gruas.

Capítulo 4 – A prática de captação do som direto


As estratégias de captação previstas na pré-produção serão efeti-
vadas durante a filmagem. Nessa etapa, a equipe de som é cons-
tituída pelo técnico de som direto, um ou dois microfonistas e
um assistente. Como chefe de equipe, o técnico de som responde
perante a produção executiva pela qualidade do trabalho e pela
eficiência de sua equipe. No set, as atribuições dos integrantes
da equipe seguem um esquema definido, que pode ser resumido
da seguinte forma: a) antes da tomada da cena, o técnico orienta
sua equipe na execução da estratégia de captação e durante a to-
mada; monitora o sinal, garantindo o nível correto de gravação e
avaliando a qualidade técnica e estética dos sons registrados; b) o
microfonista auxilia o técnico na implementação da estratégia de
captação, quando a opção for o uso do direcional suspenso pelo
boom, é ele quem garante o posicionamento correto do micro-
fone em relação à fonte sonora durante a tomada da cena; c) o
130 assistente de som é responsável pela montagem/desmontagem e a
organização dos equipamentos no set.

As estratégias de captação de som nas realizações ficcionais podem


ser ordenadas segundo quatro arranjos básicos:

• Microfone sustentado pelo boom por cima da cabeça dos


atores, posicionado sobre a linha superior do quadro;
• Microfone sustentado pelo boom abaixo da cabeça dos atores,
apontando para cima, posicionado sob a linha inferior do quadro;
• Microfone fixo (“plantado”), cobrindo uma área de captação
no interior do cenário;
• Microfone de lapela, preso ao corpo dos atores.

O uso do microfone (geralmente direcional) sustentado pelo boom


se apresenta como a opção preferencial dos profissionais do som
direto, especialmente em função da resposta obtida em relação à
captação da voz humana que soa “mais natural” quando comparada
à captação realizada com microfones de lapela. Essa representação
“mais natural” decorre das características de captação desses micro-

O som do filme: uma introdução


fones e são percebidas principalmente em dois aspectos: na fideli-
dade ao timbre original da voz e na preservação das características
acústicas do espaço onde a fonte sonora está inserida. Os microfo-
nes direcionais captam prioritariamente o sinal direto da voz que
chega até ele, captam também, porém em menor proporção, o sinal
do campo reverberante (resultado das reflexões das ondas sonoras
da voz) do espaço no qual a cena se desenvolve. Essa característica
imprime ao som da voz captada com os microfones direcionais a im-
pressão de pertencimento ao espaço representado na imagem. Essa
adequação entre a espacialidade do som da voz captada e a ima-
gem é denominada por Tomlinson Holman como “perspectiva do
microfone”. Segundo o autor, essa “perspectiva é a correspondência
entre o som gravado e as características da imagem, em particular a
equivalência da reflexão sonora e da característica reverberação em
relação ao que vemos” (HOLMAN, 2002, p. 87).
131
Entre as estratégias de captação com o uso de direcionais, o em-
prego do microfone sustentado pelo boom acima da cabeça dos
atores é a preferida pelos técnicos de som direto, pois resulta numa
sonoridade mais próxima daquela percebida quando se ouve uma
pessoa falando; portanto, é mais natural. Segundo Tomlinson Hol-
man, “nenhum sistema é capaz de capturar o som de fontes so-
noras reais em sua total complexidade espacial” (HOLMAN, 2002,
p. 13). Assim, resta ao técnico de som escolher uma posição de
microfone que permita uma captação que, ao menos, represente
a fonte sonora e garanta que ela seja reconhecida. O complexo
padrão de radiação da voz no ar determina que, mesmo mantendo
uma distância constante em relação à fonte, a voz captada pelo
microfone soará diferente, caso ocorra movimento da fonte em
relação ao microfone.

Assim, na prática, de acordo com Holman (2002, p.13), a posição do


microfone “preferida na maioria dos casos é sobre a cabeça do ator,
em frente à boca, num ângulo de 45° em relação ao horizonte, na
posição de boom mike”. Uma precisa operação do boom garante que

Capítulo 4 – A prática de captação do som direto


a posição do microfone seja uniforme em relação à fonte, mesmo
em situações de grande movimentação, permitindo a captação da
voz sem variações de timbre. A execução dessa estratégia depende
da competência do microfonista que, durante a tomada da cena,
carrega a qualidade do som captado literalmente em suas mãos.
David Lewis Yewdall aponta as habilidades e o conhecimento desses
profissionais para a execução da complexa tarefa de posicionar cor-
retamente o microfone usando o boom. Segundo Lewis:

O microfonista – boom operator – desempenha uma fun-


ção extremamente importante: se ele ou ela não colocar
o microfone na posição correta no momento exato, a voz
do ator ficará fora de eixo e soará fora do microfone. Não
existe plug-in algum que na pós-produção possa corrigir um
diálogo gravado fora de eixo. Fora de eixo é fora de eixo!
132 O microfonista deve ser forte e ágil, assim como, atento e
observador. Ele ou ela deve conhecer as posições exatas das
fronteiras invisíveis pelas quais o microfone não deve ultra-
passar, mantendo-se fora do quadro. O microfonista deve
também memorizar os fachos de luz de forma a não produ-
zir sombras sobre as superfícies que estão sendo fotografa-
das. (YEWDALL, 2007, p. 58).

Nessa estratégia, o sucesso da captação depende do desempenho do


operador de boom que, nas realizações cinematográficas ficcionais,
decora o texto da cena e as respectivas posições dos atores, ponto a
ponto, para obter o melhor resultado de captação. Segundo Holman
(2002, p. 90, tradução nossa), a operação de microfone (booming)
pode incluir “caminhar acompanhando o deslocamento dos atores,
movimentar lateralmente o ‘braço’ do boom entre dois atores, fazer
a rotação do microfone na ponta do boom”, buscando o melhor po-
sicionamento do microfone. Esses procedimentos devem ser preci-
samente realizados, conforme o autor, mantendo o “microfone fora
de quadro e as sombras do microfone ou do boom em posições do
cenário que não sejam fotografadas”. Além disso, a movimentação

O som do filme: uma introdução


do microfonista deve ser silenciosa e a manipulação do boom suave
para não provocar ruídos no microfone.

O uso do microfone suspenso pelo boom garante a correção da po-


sição do microfone em relação à fonte emissora. Em uma cena com
movimentação de atores, a manutenção do microfone na posição
mais adequada para a captação é garantida pela ação precisa do mi-
crofonista, que dinamicamente reposiciona o microfone por meio de
movimentos sutis, mantendo o eixo do microfone sempre voltado
para a boca dos atores. Essa estratégia possibilita a captação da voz
com intensidade e presença constante desde que o enquadramento
se mantenha nas mesmas proporções ao longo da cena.

Se as condições no set impedem a utilização do boom acima da ca-


beça dos atores, tanto pela falta de espaço para o posicionamento
do boom acima da linha superior do quadro quanto pela existência 133
de luzes que projetem sombras visíveis em quadro, a opção do téc-
nico de som é posicionar o boom abaixo da linha inferior do quadro,
apontando-o para cima em direção à fonte sonora. Essa opção tem
duas desvantagens evidentes em relação à primeira estratégia, são
elas: com o microfone mais próximo do peito, são enfatizadas fre-
quências médias e baixas e eventualmente perda dos agudos da voz
humana, as quais modificam o timbre, tornando-o mais cavo e menos
brilhante; a operação do boom por baixo é sempre mais difícil em
função da existência de objetos do cenário ou de outros atores em
cena, os quais obstruem a livre movimentação do boom, comprome-
tendo o posicionamento do microfone. Em função das circunstâncias
da filmagem, o técnico de som direto deve avaliar se o prejuízo cau-
sado pela mudança no timbre da voz é compensado pela melhoria da
relação entre o sinal direto e o ruído de fundo, quando optar por essa
estratégia. Uma situação que exemplifica essa condição é a captação
de diálogos com atores caminhando num piso coberto por cascalho.
Os microfones direcionais são muito sensíveis a esse tipo de ruído e
normalmente intensificam sua própria presença, gerando um registro
de voz fortemente contaminado pelo ruído de fundo. Nessa condição,

Capítulo 4 – A prática de captação do som direto


se o enquadramento da cena permitir, a estratégia de captação com
o direcional apontado para cima pode ser uma opção para tornar o
diálogo mais claro e inteligível.

Quando as condições do set impedem a opção pelo boom, em


função de um plano geral muito aberto ou, numa situação opos-
ta, num espaço muito reduzido que impossibilita a operação do
boom, pode-se optar pela colocação de um microfone fixo (“plan-
tado”) que não seja visível em quadro e que faça a cobertura para
a captação do som de uma determinada área da cena. Essa estra-
tégia não permite a realização de ajustes na posição do microfone
durante a cena e o técnico de som fica dependente do posiciona-
mento dos atores para a captação das falas. Em uma proposta de
realização convencional, com cenas rigidamente ‘marcadas’, o ator
coloca-se nessas ‘marcas’, favorecendo as necessidades da capta-
134 ção da imagem e do som. No entanto, produções que optam por
cenas improvisadas diminuem a viabilidade dessa estratégia. O uso
de um microfone “plantado” acrescenta uma variável ao processo
de captação (o posicionamento dos atores), sobre a qual o técnico
de som direto não exerce real controle.

Quando as condições de filmagem inviabilizam a captação do som


utilizando o microfone sustentado pelo boom, o técnico de som deve
lançar mão dos microfones de ‘lapela’, presos ao corpo dos atores.
Esses pequenos microfones são, na maioria das vezes, colocados sob
as roupas dos atores, enviando o sinal de áudio para o gravador atra-
vés de um sistema de transmissão via rádio; por isso, são comumen-
te chamados de ‘microfones sem fio’. Planos gerais que impedem a
colocação do boom próximo à fonte sonora, situações de filmagem
ruidosas ou com muita reverberação, podem ser resolvidas com o
emprego dessa estratégia. A vantagem dessa opção é a proximidade
do microfone em relação à fonte sonora que permite, mesmo em si-
tuações acústicas adversas, a captação da voz com forte presença do
sinal direto em relação ao ruído de fundo, independentemente das
mudanças de enquadramento. A voz captada por esses microfones,

O som do filme: uma introdução


em geral, tem sonoridade de menor qualidade quando comparada à
sonoridade obtida com os microfones direcionais.

No entanto, a principal crítica a esses microfones está relacionada à


sua representação sonora. Tomlinson Holman (2002, p. 91) consi-
dera que “essa é a última opção de captação, pois apesar de o ator
poder ser ouvido, exceto em casos de muito ruído de fundo, não
existe absolutamente nada de natural em relação à perspectiva so-
nora reproduzida por este arranjo”. Com a captação feita por lapelas,
as vozes mantêm-se sempre num primeiro plano independente da
movimentação e da posição do ator em quadro, resultando numa voz
“desencarnada da imagem”. Em cada ator, com linha de diálogo em
cena, deve ser instalado um microfone de lapela, pois, em geral, os
microfones de lapela só captam a voz do ator no qual está instalado.

As principais dificuldades encontradas pelo técnico de som, em rela- 135


ção ao uso dos microfones de lapela, são as seguintes:

• A necessidade de esconder o microfone, às vezes sob vá-


rias camadas de roupas, modifica o timbre da voz captada
com a perda de frequências agudas, tornando-a ‘apagada’
ou sem ‘brilho’.

• Os atritos da roupa próximos ao microfone, ou diretamente


sobre a cápsula do lapela, são captados como ruídos extre-
mamente fortes, narrativamente injustificáveis, que compro-
metem a captação da voz. O uso de roupas adequadas e a
correta colocação do microfone são fundamentais para evitar
esse problema. O ruído provocado pelo atrito das roupas sobre
a cápsula do microfone é o maior temor do técnico de som ao
optar por essa estratégia. Não existe um procedimento mágico
que solucione esse problema. É uma variável aleatória sobre a
qual o técnico exerce pouco controle. Cenas com muita movi-
mentação dos atores potencializam esse problema.

Capítulo 4 – A prática de captação do som direto


• O movimento de um ator ou o contato físico entre os atores
durante a tomada da cena pode gerar choques mecânicos,
que serão convertidos e intensos ruídos, contra a cápsula dos
microfones, colocadas normalmente na altura do tórax dos
atores. É comum a ocorrência dessa situação durante a cena
sem que nunca tenham acontecido durante os ensaios. No
calor da ação, esses eventos são de difícil controle e, quando
ocorrem simultaneamente com a fala, inviabilizam o som di-
reto captado.

• O tipo de cápsula do microfone de lapela e a proximidade


em relação à fonte podem gerar uma captação com sinal dis-
torcido ou com variação de timbre. Se num momento da cena,
o ator projetar muito a voz, a intensa pressão sonora pode
provocar a saturação do sinal elétrico na cápsula e gerar a
136 distorção do som captado, desfigurando completamente a voz
registrada. A impossibilidade de afastamento da cápsula du-
rante a cena deixa o técnico sem controle sobre essa situação.
A movimentação da cabeça do ator gera mudanças no timbre
da voz captada se a cápsula do microfone de lapela estiver
colocada no centro do tórax. Ao movimentar a cabeça lateral-
mente durante a fala, a fonte sonora se aproxima e se afasta
do microfone, gerando perceptíveis mudanças no timbre e na
intensidade da voz captada. O problema será ainda maior se
a movimentação de cabeça for para cima e para baixo, nes-
sa situação, com a cabeça posicionada para cima, a voz fica
‘fora do microfone’ (off-mike); com a cabeça posicionada para
baixo, a fonte sonora fica colocada muito próxima da cápsula
do microfone, enfatizando as baixas frequências e alterando
fortemente o timbre da voz.

• Os sistemas de radiotransmissão, que enviam o sinal de áudio


do microfone de lapela à plataforma de gravação, são poten-
ciais fontes de problemas na qualidade do som captado, entre
os mais comuns podem ocorrer: perda momentânea do sinal

O som do filme: uma introdução


de transmissão (dropout); interferência com outras fontes de
radiofrequência (telefones celulares, sistemas de comunicação
usados pela equipe); demasiada compressão no sinal de áu-
dio para a transmissão via rádio. A qualidade dos sistemas de
transmissão é diretamente proporcional ao custo de aquisição.

A estratégia de captação com microfones de lapela via rádio é nor-


malmente carregada de tantos inconvenientes que a sua adoção é
feita quando não resta outra opção. Nessas circunstâncias, o técnico
de som abre mão das sutilezas de uma representação sonora com
maior adequação acústica, possibilitada pelos microfones direcio-
nais, a favor de um registro sonoro limpo e inteligível, propiciado
pelos microfones de lapela. Cenas improvisadas, com vários atores
contracenando, são situações nas quais os microfones sem fio se
tornam ferramentas de trabalho preciosas para o técnico de som
direto. Dependendo da complexidade da cena, o técnico de som 137
pode combinar livremente cada uma das estratégias descritas para
viabilizar a captação do som direto.

A nova tecnologia de gravadores digitais portáteis multipista tem


fomentado a tendência do uso dos microfones de lapela concomi-
tantemente ao boom como segurança ou reforço do registro sonoro
captado pelo microfone direcional. A tecnologia multipista permite
a captação de várias fontes em canais separados, gerando registros
sonoros independentes que podem ser usados complementarmen-
te na pós-produção. Registros independentes de várias fontes si-
multâneas modificam um procedimento fundamental no método
de trabalho do técnico de som direto: a monitoração da qualidade
do registro sonoro. Na prática usual historicamente estabelecida do
som direto, o registro sonoro era feito em uma ou, no máximo,
duas pistas. Mesmo operando com vários microfones simultâneos,
o técnico fazia a mixagem das fontes e a resultante sonora era mo-
nitorada precisamente durante a gravação. Na captação em multi-
pista, o técnico de som precisa desdobrar-se em ‘multiorelhas’ para
avaliar precisamente as várias pistas registradas simultaneamente. É

Capítulo 4 – A prática de captação do som direto


uma mudança paradigmática na prática de trabalho do som direto.
A monitoração de vários canais independentes é um procedimento
ainda não padronizado pelos técnicos de som. Diferentes soluções
são aplicadas, indicando uma reestruturação do método de trabalho.
Alguns técnicos optam por ouvir os microfones de lapela enquan-
to o microfonista monitora o direcional que está operando; outros
trafegam pelas várias pistas durante a gravação, buscam ouvir um
trecho de fala de cada microfone e criam um ciclo de monitoração,
muitas vezes, pouco preciso.

O potencial trazido pelos gravadores digitais portáteis multipista es-


timulou o surgimento de propostas de edição que tendem a priorizar
o uso dos microfones de lapela em detrimento dos microfones dire-
cionais. Em linhas gerais, essa tendência defende que a sonoridade
mais ‘limpa’, obtida pela captação com os microfones de lapela,
138 permite maior liberdade no processo de edição, reduzindo os incon-
venientes ruídos e “espacialidades” que acompanham as captações
realizadas com os direcionais. A reconhecida falta de espacialidade
na voz captada pelos microfones de lapela é, nessa proposta de edi-
ção, compensada por meio da utilização de processadores de som
que, durante a mixagem, acrescentam a reverberação necessária na
voz para a criação de uma reverberação coerente com a imagem.

Foge do interesse desse trabalho discutir a pertinência técnica ou


estética dessa proposta de edição, o que interessa a este trabalho
é discutir como essa opção interfere no trabalho de captação de
som direto. A opção por captar o som direto de um projeto cine-
matográfico de longa-metragem, utilizando essencialmente micro-
fones de lapela, limita o espaço de atuação do profissional do som,
restringindo-o a uma dimensão ainda mais técnica. A participação
criativa do profissional do som se dá a partir da escolha das diferen-
tes estratégias de captação, do emprego de diferentes microfones
direcionais (com ‘colorações’ próprias) e das inúmeras intervenções
acústicas nos espaços de filmagem que imprimem no som direto
uma textura particular, que resulta da sensibilidade do profissional

O som do filme: uma introdução


do som. A restrição dessa atuação reduz o potencial criativo e nor-
matiza a rotina de trabalho do técnico de som.

No set de uma realização cinematográfica ficcional, a captação do


som direto é estruturada a partir de um conjunto de procedimentos
regulares que visam à qualidade do registro do áudio sincrônico.
Esses procedimentos são dinamicamente empregados pelos mem-
bros da equipe de som, constituindo-se em uma rotina de trabalho.
As diferentes realidades de produção geram adaptações dessa roti-
na, porém não a modificam substancialmente. Os procedimentos de
captação estão em consonância com a preparação realizada durante
a pré-produção, que envolve, entre outras decisões: a escolha e o
tratamento acústico das locações; a definição das estratégias e a
configuração do aparato técnico; a infraestrutura de produção.

Serão sistematizados, a seguir, os principais procedimentos que ca- 139


racterizam a rotina de trabalho da equipe de som direto.

• Montagem, checagem e configuração dos equipamentos.


No início do dia de trabalho é realizada a montagem dos
equipamentos (cabeamento de todos os dispositivos que serão
utilizados), quando é testado o funcionamento de cada um.
O técnico de som: (a) gera sinais de referência a partir de ge-
radores de frequência de som do próprio sistema; (b) testa a
qualidade do áudio que chega aos fones de ouvido; (c) ouve
a resposta de cada um dos microfones que serão empregados
na cena, avaliando a fidelidade da captação; (d) monitora,
atentamente, a existência de algum ruído elétrico (hum) in-
desejável que possa trafegar no sistema e busca eliminá-lo.
Empregando a tecnologia atual para o registro sonoro (gra-
vadores digitais multipista), o técnico de som faz a checagem
da configuração dos parâmetros para a digitalização do som;
organiza o roteamento das entradas de sinal para os canais de
gravação; configura os dispositivos de contagem de tempo e
envia o sinal de timecode para a câmera.

Capítulo 4 – A prática de captação do som direto


• Posicionamento do equipamento. A base de trabalho do
técnico de som direto é montada em local estratégico que
permite a visualização da cena ou, no mínimo, o acesso rápido
ao set. O posicionamento do equipamento também considera
a passagem dos cabos para o microfonista e para o vídeo as-
sist36 de forma prática e segura.

• Avaliação das condições acústicas do set. Antes de iniciar


as tomadas de cena, o técnico de som direto faz uma var-
redura para localizar fontes sonoras indesejadas e organiza
esforços para eliminá-las. São checados: refletores ou rea-
tores elétricos utilizados na iluminação da cena; sistema de
ar condicionado; objetos de cena ruidosos (geladeiras, com-
putadores, mesas e cadeiras); o posicionamento do gerador
de energia elétrica. Quando o set está montado em locações
140 ou estúdios com tratamento acústico deficiente, o técnico de
som avalia a necessidade de aprimoramento nas intervenções
acústicas, tais como: a colocação de mantas de som extras em
janelas e portas para reduzir os ruídos externos; a disposição
de mantas de som no entorno da cena para minimizar a re-
verberação. O técnico de som também monitora a existência
de ruídos pontuais externos que necessitem da intervenção da
produção para silenciá-los.

• Controle sobre o ruído produzido pela atividade da equipe.


Durante a captação dos diálogos, mesmo com uma experiente
equipe de filmagem, é necessária a atenção do técnico de som
direto para combater os ruídos produzidos pela atividade da
equipe de realização. Um controle cuidadoso é realizado, soli-
citando a cooperação dos profissionais envolvidos, para evitar
a presença de ruídos provenientes da operação de equipa-
mentos como dolly e grua ou mesmo o ruído provocado pela

36 Vídeo assist é o sistema de vídeo que registra a imagem e o som da tomada e permite ao diretor
assistir a cena captada.

O som do filme: uma introdução


movimentação da equipe durante a captação da uma cena
com câmera na mão.

• Controle sobre o ruído produzido pelos atores em cena.


Ao gravar os diálogos, o técnico de som dedica especial aten-
ção sobre os ruídos produzidos pela ação dos atores em cena.
Na busca por diálogos inteligíveis e ‘limpos’, o técnico de som
interfere na realização da cena na tentativa de minimizar a
produção de ruídos que prejudiquem a clareza das ‘falas’, tais
como: as batidas de porta e a manipulação de objetos ruido-
sos (talheres, pratos, panelas). O técnico de som atua direta-
mente sobre a fonte geradora de ruídos tentando suprimi-la,
por exemplo: o ruído proveniente da batida de uma porta é
diminuído com a colocação de feltros autoadesivos nos ba-
tentes e com a lubrificação das dobradiças; copos e xícaras
são tratados com borrachas autoadesivas ou fita dupla face 141
de silicone; o ruído dos passos é normalmente reduzido por
meio da colocação de feltros autoadesivos nas solas dos sa-
patos ou por intermédio da colocação de carpetes/mantas de
som no caminho que será percorrido pelos atores e mem-
bros da equipe que necessitem deslocar-se durante a cena.
Esse procedimento parece contraditório, pois normalmente os
ruídos relacionados com a ação dos personagens serão pós-
-sincronizados durante a edição de som, porém, dessa forma
é alcançada total independência entre as ‘falas’ e os ruídos
para o controle de nível e equalização que ocorrerão durante a
mixagem. Quando os ruídos de cena são incontroláveis, o téc-
nico de som solicita a colaboração dos atores para que o texto
não seja proferido durante a ocorrência dos ruídos (como as
batidas de porta, por exemplo). Sempre, por meio do diretor
ou do assistente de direção, o técnico de som roga aos atores
delicadeza e cuidado ao manipular louças, talheres e outros
objetos de cena ruidosos. Em certas situações é necessário
solicitar aos atores maior projeção de voz.

Capítulo 4 – A prática de captação do som direto


• Definição da estratégia de captação. A definição da estraté-
gia de captação é feita a partir da análise das condições acús-
ticas do set, da mise-en-scène e do enquadramento definido
pela direção. A estratégia de captação prevista na pré-produção
é colocada em prática, adequando-se às condições objetivas en-
contradas no set. A implementação da opção do uso do micro-
fone direcional operado pelo boom é feita conjuntamente pelo
técnico de som e pelo microfonista, definindo, entre outros: o
melhor posicionamento do operador de boom; a movimentação
e a angulação do microfone; a área de cobertura e o desloca-
mento a ser realizado pelo operador. A necessidade de reposi-
cionamento de peças do cenário (como lustres e móveis, por
exemplo), para permitir a livre movimentação do boom durante
a cena, é negociada com a direção de arte e com a direção de
fotografia. A aplicação de estratégias híbridas é avaliada com o
142 microfonista a partir dos ensaios da cena.

• Colocação dos microfones de lapela. Quando os microfones


de lapela com transmissão via rádio são necessários, o técni-
co de som comunica a assistência de direção, que determina
o momento no qual a cápsula do microfone de lapela e o
radiotransmissor serão instalados no ator. A instalação deve
ser feita com cuidado, evitando que a cápsula fique coberta
por tecido pesado e livre do atrito das roupas sobre ela. O
transmissor de radiofrequência é firmemente afixado no cor-
po do ator por meio de cintos elásticos, evitando que ele se
movimente ou se solte durante a cena. A colocação do trans-
missor sob a roupa do ator deve ser feita com muito respeito
para evitar constrangimentos. Quando necessário, é solicitada
a ajuda da figurinista ou da camareira para realizar a coloca-
ção dos transmissores no corpo das atrizes. O técnico de som
deve informar a necessidade de uso do microfone de lape-
la e pedir a colaboração dos atores, os quais, normalmente,
sentem-se incomodados com a presença desse equipamento
junto ao corpo; em particular, atrizes com figurino mais justo.

O som do filme: uma introdução


Em situações como essa, é necessário encontrar soluções para
acomodar o transmissor confortavelmente sob a roupa, sem
prejudicar a aparência da atriz.

• Realização de ensaios. O técnico de som direto solicita sem-


pre a realização de ensaios antes da realização da tomada da
cena. Durante o ensaio, o técnico de som avalia se a estra-
tégia de captação escolhida é adequada. O ensaio é o único
momento, antes da tomada da cena, no qual a condição de
silêncio no set se aproxima daquela que existirá durante a
captação. Essa condição de silêncio alcançada para o ensaio
possibilita ao técnico de som avaliar, entre outras coisas: a
existência de alguma fonte sonora indesejável que não tenha
sido percebida antes; se a ação envolve a manipulação de ob-
jetos que produzam ruídos indesejáveis. Durante o ensaio, o
microfonista conhece a movimentação dos atores em cena, o 143
momento das falas e as correções necessárias para o posicio-
namento do microfone.

• Checagem do nível de ruído ambiente. Antes de ‘rodar’


o som, após a ordem de comando dada pela assistência de
direção para gravar, o técnico de som deve avaliar por alguns
segundos (com o set livre do ruído da equipe de filmagem) o
grau de silêncio do ambiente. O técnico de som ouve breve-
mente, através dos fones de ouvido, o nível de ruído do am-
biente e determina se as condições são adequadas ao registro
sonoro. Ele foca a atenção para qualquer ruído indesejável,
tais como: carros, motos ou aeronaves em aproximação. Só
após a constatação das condições adequadas, ele inicia a gra-
vação e anuncia que ‘o som está rodando!’.

• Captação monofônica dos diálogos. A captação dos diálo-


gos pelo som direto é monofônica mesmo com o emprego de
múltiplos microfones e plataformas de gravação multipista.
Usualmente, na captação das vozes não interessa a criação de

Capítulo 4 – A prática de captação do som direto


uma representação que localize a posição da fonte sonora no
espaço. Essa localização é obtida na pós-produção durante a
mixagem com a panoramização dos elementos sonoros. Po-
rém, geralmente os diálogos são mixados para serem repro-
duzidos pelo alto-falante posicionado no centro da tela, nas
salas de exibição.

• Relato dos problemas de captação. Qualquer problema du-


rante a captação que inviabilize a utilização do plano de som
é prontamente informado à direção e devidamente anotado
no relatório de som. O técnico de som busca explicar as causas
do problema e propor alternativas que permitam corrigi-lo.

• Captação de ‘coberturas’ de diálogos. O técnico de som


indica a necessidade da realização da captação de trechos cur-
144 tos do diálogo (pick up wild lines), que porventura tiveram a
qualidade comprometida durante a tomada da cena em fun-
ção da ocorrência de algum ruído inconveniente (batida de
uma porta, buzina de um carro). As coberturas de som podem
ser usadas na edição, substituindo os trechos de diálogo dos
planos com problemas.

• Captação do ruído de fundo. Após a tomada da cena com


diálogos, o técnico de som grava o ruído de fundo (room
tones ou presence fill) do local onde a cena foi captada, uti-
lizando o mesmo microfone empregado na tomada. Os room
tones são fundamentais para o processo de edição dos diálo-
gos, fornecendo elementos sonoros para a ocultação dos cor-
tes entre os planos de som editados ou para preencher trechos
de diálogo que porventura venham a ser dublados. Dependen-
do das condições de filmagem, o técnico de som pode realizar
a captação do som ambiente, estereofonicamente, para pro-
ver a pós-produção com matéria-prima para a construção das
paisagens sonoras que acompanham os diálogos e os demais
elementos na constituição da trilha sonora finalizada.

O som do filme: uma introdução


• Captação de ruídos particulares. O técnico de som indi-
ca a necessidade da captação dos ruídos de objetos ou de
máquinas pertencentes à cena, os quais possam ter interesse
narrativo ou dramático. No set, o registro à parte de ruídos
particulares proporciona, à edição de som, elementos sono-
ros com timbre genuíno e espacialidade coerente com a das
vozes captadas pelo som direto; fornece matéria-prima que
enriquece as possibilidades de articulação entre som e imagem
estabelecida pela montagem. Na gravação do ruído captado
no set fica impressa a indicação de pertencimento ao espaço
do qual se origina. Além do valor estético, esse procedimento
pode resultar em grande economia no processo de edição de
som, porém a sua realização é dependente de disponibilidade
de tempo durante a filmagem.

• Confecção do relatório de som. Durante as tomadas de 145


cena, o técnico de som direto registra em boletins impres-
sos – com diagramação adequada ao suporte de gravação
utilizado –, as informações sobre o processo de captação,
as quais serão posteriormente usadas para orientar os pro-
fissionais da montagem e da edição de som. Nos boletins de
som, como é possível ver na Figura 10, são indicados, entre
outros: a configuração dos parâmetros de digitalização do
som; a plataforma de gravação utilizada; as sequências, os
planos, as tomadas realizadas e os respectivos microfones
utilizados; o roteamento empregado nos gravadores mul-
tipista; a realização de coberturas, gravações de ambientes
ou ruídos; todas as observações relevantes sobre a qualida-
de dos registros sonoros. Os boletins de som são os mapas
de gravação que trazem as principais informações sobre o
som captado.

Capítulo 4 – A prática de captação do som direto


146

[Figura 10]

Durante a tomada da cena, a principal atividade do técnico de


som é avaliar a qualidade do registro sonoro. A qualidade do
som direto é caracterizada pela fidelidade ao fenômeno acús-
tico que representa, pela inteligibilidade da voz e pelo grau de
editabilidade que possui. A qualidade do som direto é checada
dinamicamente pelo técnico de som durante a tomada da cena.
Após finalizar a tomada, o técnico pode solicitar a conferência
do material gravado, no entanto, o ritmo intenso do set impõe
que a avaliação da gravação seja feita durante o processo de cap-
tação. O julgamento deve ser certeiro, os problemas com a cap-
tação precisam ser explicitados claramente para a direção, assim
como as alternativas para resolvê-los. Esse é o momento crucial
do trabalho de captação, o qual exige certeza e determinação do
profissional do som direto.

O som do filme: uma introdução


Mesmo dispondo de indicadores visuais para o controle da intensi-
dade do sinal que trafega no sistema captação-gravação, tais como
VU ou Peak Meter, o principal equipamento utilizado para moni-
torar a qualidade da captação é o fone de ouvido. Essa ferramenta
disponibiliza a resposta acústica do áudio que é gravado, fornecen-
do os dados para que a sensibilidade auditiva do técnico julgue a
adequação do registro sonoro. O fone de ouvido é um equipamento
fundamental à percepção do técnico; ele deve oferecer uma resposta
plana37 ao longo do espectro de frequências da audição humana38
e garantir forte isolamento acústico do mundo circundante. Além
dessas características técnicas fundamentais, a ‘personalidade’ so-
nora do fone deve ser familiar ao técnico, pois é a partir do estímulo
acústico fornecido por esse equipamento que o profissional do som
avalia todo o sistema de captação/registro e julga a fidelidade do
áudio em relação à fonte sonora original.
147
A obtenção de condições adequadas para captação de som no set
está na dependência do conjunto de ações tomadas ao longo da
etapa de pré-produção. As orientações do técnico de som, na esco-
lha das locações, nas intervenções acústicas determinadas, na cons-
trução dos cenários, na escolha de figurinos adequados, estimulam
a atenção e organizam os esforços de todas as áreas técnicas em
relação às demandas do som direto. No entanto, durante a filma-
gem, as relações de trabalho estabelecidas no set são fundamentais
para conquistar a cumplicidade e o apoio da equipe técnica para as
necessidades do som direto.

A tendência do som direto é a de ser tratado como órfão no set.


O resultado da predominância da imagem sobre as atividades da
equipe de filmagem obriga o técnico de som direto a desenvolver

37 Resposta plana é a característica de um sistema de áudio em captar ou reproduzir um sinal sem


alterar a intensidade das frequências que o compõe.
38 Espectro de audição é o intervalo de frequências, audíveis para os seres humanos, que se estende
de 20 a 20.000 Hertz.

Capítulo 4 – A prática de captação do som direto


estratégias de trabalho que garantam as condições para a captação
de som sem colidir com as necessidades da fotografia e da direção
de arte. Para não reforçar o estigma de ‘estorvo’ da filmagem, a
equipe de som direto deve antever situações problemáticas e tentar
resolvê-las antes que o set esteja pronto para filmar. Buscar silenciar
fontes sonoras no momento que o diretor vai gravar é mortal para
as relações entre o técnico de som e a direção. Assim como solicitar
a mudança de posição do caminhão gerador, depois que todos os
cabos de força tiverem sido estendidos, cria uma situação de intenso
atrito com a equipe responsável. A presença do técnico de som e do
microfonista no set durante a preparação para a tomada da cena é
uma maneira de demonstrar a disponibilidade para o trabalho e de
orientar os demais técnicos sobre as necessidades da captação de
som. Assim, acompanhar o posicionamento dos refletores de luz no
set, indicando a necessidade de espaço para operação do boom e,
148 logo que os refletores são acesos, identificar os equipamentos cau-
sadores de ruídos e buscar uma solução para o problema são pro-
cedimentos de set que conquistam a colaboração da equipe técnica
para as necessidades do som.

A equipe de som acompanha a marcação da cena, indicando ao di-


retor e ao fotógrafo as demandas do som direto para a realização da
tomada e buscando soluções negociadas que atendam às necessida-
des de todas as áreas. Atento aos ensaios, o técnico de som organiza
as ações de reforço do tratamento acústico e identifica a existência
de ruídos provocados pela movimentação dos atores ou da equipe
técnica. A habilidade do técnico de som em alcançar o apoio das
demais áreas, mantendo um ambiente agradável de trabalho, é fruto
de uma concepção de trabalho, que entre outros aspectos, entende
que: a atividade de realização cinematográfica é uma ação coletiva;
o resultado final é mais importante que o resultado de cada uma das
áreas técnicas em separado; o som direto é influenciado e depende
de todas as outras áreas para a sua efetivação; a negociação é a
forma mais eficiente para resolver os impasses no set.

O som do filme: uma introdução


4.4 A opção pelo som direto

Como está sendo visto ao longo deste capítulo, a clareza, a limpeza


e a homogeneidade que caracterizam a qualidade do registro sonoro
direto só são alcançadas com condições apropriadas de filmagem.

O profissional responsável por zelar pelo registro sonoro é o técnico de


som, no entanto, a criação das condições para filmar com som direto
deve ser entendida como uma atividade coletiva da equipe de realiza-
ção, e não como uma “penitência” executada isoladamente por um
único profissional. Nas produções em que a opção pelo som direto é
valorizada pela direção, o compromisso da equipe de filmagem com as
condições de trabalho do técnico de som é maior. A equipe se organiza
na busca de bons resultados para o som e para a imagem. Nessas cir-
cunstâncias, o técnico de som é visto como um integrante da equipe
técnica, o qual orienta os esforços para a criação das condições de cap- 149
tação, propondo soluções para os problemas e estabelecendo os limites
técnicos do registro sonoro. Respeitado na função que desempenha, ele
é assumido como um colaborador para o desenvolvimento do trabalho
coletivo, ao contrário do entendimento comumente verificado no seio
da realização audiovisual, em que o técnico de som normalmente é
tratado como um obstáculo para o cumprimento do cronograma de
produção e responsabilizado pelos atrasos, como se o som direto fosse
um apêndice e não fizesse parte do processo de realização.

É indiscutível que filmar com som direto torna o set mais complexo
e demorado, pois são mais variáveis que precisam ser satisfeitas si-
multaneamente. Além das necessidades da imagem, há, também, as
necessidades do som; portanto, a demanda de tempo para obtenção
do resultado desejado é maior. Os diretores que valorizam a opção
do som direto reconhecem as vantagens estéticas e orçamentárias
do direto sobre o dublado e, compreendendo as limitações técnicas
da captação de som, estabelecem procedimentos de filmagem que
possibilitam o registro sincrônico.

Capítulo 4 – A prática de captação do som direto


A seguir, serão analisados alguns procedimentos de direção que in-
fluenciam na qualidade do som direto.

4.4.1 Sobreposição das falas

O usual recurso de decupagem/montagem39 de uma sequência


com diálogo em campo e contracampo, com a câmera assumindo
“o ponto de vista de um, ora de outro dos interlocutores, for-
necendo uma imagem da cena através da alternância de pontos
de vista” (XAVIER, 1984, p. 26), pode gerar sérios problemas de
montagem se durante as tomadas dos planos individuais ocorrer
a sobreposição das falas. Na medida em que é quase impossí-
vel que os atores acavalem as falas sempre no mesmo ponto
de uma tomada para outra, essas sobreposições aleatórias vão
150 restringir os pontos de corte para a montagem da sequência.
Isso quer dizer que, se num determinado plano, além da fala do
ator que é visto em quadro, é ouvida a voz sobreposta daquele
que está fora de quadro ou de costas para a câmera. O corte
para a alternância de ponto de vista deverá ocorrer de tal forma
que no plano seguinte (fala do ator) que passa a ser visto, con-
tinue exatamente do mesmo ponto em que foi ouvida no plano
anterior. Essa amarração criada pela sobreposição das falas dos
dois atores durante a captação pode inviabilizar a montagem
pela inexistência de pontos de corte. A forma convencional de
direção cria a sobreposição dos diálogos durante a montagem
com total liberdade para a escolha do momento de corte. Nessa
opção de direção, durante a tomada da cena, o ator que está de
costas para a câmera movimenta a boca sem emitir som, enquan-
to o ator que está enquadrado frontalmente emite sua fala. Na
montagem, a sobreposição das falas é forjada com a inserção de
trechos do áudio do plano do enquadramento frontal, no plano

39 Na acepção empregada por Ismail Xavier (1984, p. 28).

O som do filme: uma introdução


de imagem em que o ator está de costas. Com esse procedimento
de direção, o técnico de som capta o som direto do ator que está
em quadro sem a presença da voz daquele que está de costas ou
fora de quadro. Desde que não impeça a compreensão do texto,
a sobreposição das falas durante a tomada da cena não se confi-
gura num problema para o som direto. O cuidado do técnico de
som em alertar sobre o acavalamento das falas está relacionado
com a montagem e é, em última análise, uma opção de direção.
Se por necessidade de uma atuação mais natural o diretor optar
pelo acavalamento das vozes, o técnico de som deve cuidar para
que as falas sejam captadas com a mesma presença, independen-
temente de o ator estar dentro ou fora de quadro, pois, caso os
atores consigam reproduzir a sobreposição do texto sempre no
mesmo ponto, a montagem da sequência não será dificultada
pela diferença na intensidade ou na textura das vozes.
151

4.4.2 Figuração silenciosa

Captar o diálogo dos atores principais em cenas com a presença


de grande contingente de figurantes pode tornar-se um problema
para o som direto. Normalmente, em cenas como essas é pressu-
posta a compreensão das falas e, portanto, o padrão de qualidade
da captação do som direto segue o protocolo convencional: obter
um diálogo nítido e o mais destacado possível do ruído de fundo.
Figurantes profissionais conseguem simular conversas convincen-
tes de forma silenciosa, o que permite ao técnico de som obter
uma relação adequada entre o sinal direto e o ruído de fundo.
Durante a montagem, a pós-sincronização de um ambiente sonoro
com vozerio constante, captado durante a própria filmagem ou
gravado na dublagem, permite reforçar a materialidade das ações
da figuração em cena. No momento da tomada da cena, o técnico
de som grava o diálogo ‘limpo’, prestando atenção para que a po-
tência da emissão e a intenção das vozes dos atores sejam coeren-

Capítulo 4 – A prática de captação do som direto


tes com o nível de ruído do vozerio que existirá após a sequência
montada, garantindo verossimilhança à atuação. A tendência da
atuação em uma situação como essa é a gradual diminuição no
volume da voz em função do baixo nível de ruído no momento da
captação; no entanto, os atores devem “falar alto, acima do nível
de ruído que não existe lá” (HOLMAN, 2002, p.108). Alguns dire-
tores apontam que as ações de uma figuração silenciosa não são
convincentes, provavelmente pelo baixo grau de profissionalismo
da figuração empregada, e por isso optam por ações reais, com
emissão de falas que resultam na produção de intenso ruído de
fundo. Sob essas condições, que decorrem da opção de direção, a
qualidade do som direto será comprometida.

4.4.3 Ações potencialmente ruidosas


152
Quando o som direto é valorizado, as cenas potencialmente rui-
dosas são planejadas conjuntamente pelas áreas técnicas envolvi-
das com o objetivo de encontrar soluções que satisfaçam as suas
necessidades. Cenas do cotidiano doméstico, com os personagens
preparando ou realizando alguma refeição, por exemplo, são fre-
quentes e muito problemáticas para a captação do som direto. A
manipulação de utensílios de cozinha de metal e de vidro (pane-
las, pratos, talheres) geram intensos ruídos e são desastrosos para
a captação de diálogos simultâneos. A solução para a realização
de cenas como essas envolvem, entre outros procedimentos: uma
decupagem adequada; a atenção dos atores para o momento exa-
to entre a execução das ações e a emissão das falas; a escolha de
objetos de cena que contribuam com a minimização dos ruídos.
Com um pouco de atenção, é possível perceber o emprego desses
procedimentos em diversas realizações audiovisuais. Para ilustrar
essa situação, foi escolhido um trecho do filme Momento de deci-

O som do filme: uma introdução


são (The turning point, Herbert Ross, 1977)40, no qual os proce-
dimentos para garantir a captação do som direto são facilmente
percebidos. Na cena, há a esposa, interpretada por Shirley MacLai-
ne, na cozinha com uma espátula na mão preparando uma refei-
ção. Enquanto mexe continuamente o alimento na frigideira, ela
conversa com seu marido, interpretado por Tom Skerrit, que está
sentado ao fundo de quadro, em frente a um balcão de madeira,
servindo-se de café. O diálogo é contínuo. As ações realizadas em
cena poderiam facilmente prejudicar a captação das falas se não
fossem executadas considerando o som direto. Para servir-se de
café, as ações do ator são cuidadosas e ocorrem nos intervalos
das falas. O movimento de mexer o café com a colher é feito sua-
vemente, e a cafeteira de vidro é colocada sobre um apoiador de
tecido, estrategicamente colocado à frente do ator, que amortece
o impacto sobre o balcão sem provocar nenhum ruído. A ação da
esposa misturando o alimento na frigideira surpreende pelo baixo 153
nível de ruído produzido. Isso é possível graças à leveza dos movi-
mentos e à utilização de uma espátula de silicone que não produz
ruído ao entrar em contato com o metal da frigideira. Objetos de
cena apropriados, como o apoiador de tecido para a cafeteira e a
espátula de silicone, são soluções simples que resultam do traba-
lho integrado da equipe, viabilizam a mise-en-scène e garantem
as condições para a captação dos diálogos.

4.4.4 Opção de decupagem e a viabilidade do som direto

Certas demandas de roteiro (como as cenas em que se vê em qua-


dro: carros, máquinas ou motores em real funcionamento) podem
prejudicar a inteligibilidade do diálogo captado pelo som direto.
A presença de elementos cênicos ‘barulhentos’ gera, normalmente,

40 Momento de decisão conta a história de duas bailarinas, Deedee e Emma, que seguem caminhos
diferentes na vida, a primeira constitui família e a outra carreira profissional. O contato entre as duas é
reatado quando Emilia, a filha de Deedee, tem a chance de dançar na companhia pertencente a Emma.

Capítulo 4 – A prática de captação do som direto


planos sonoros com nível de ruído de fundo muito próximo do nível
do registro das falas. Em situações extremas, esse ruído de fundo
pode ocasionar o mascaramento total da voz ou, no mínimo, res-
tringir a possibilidade de edição do material, pois ao integrar uma
sequência, o corte de cada plano revelará a interrupção do ruído de
fundo que dificilmente será o mesmo para as diferentes posições
que o microfone ocupou em cada tomada. Uma solução para camu-
flar essa descontinuidade sonora é aplicar, durante a edição, o mes-
mo ruído de fundo, ao longo dos vários planos da sequência, para
criar a impressão de continuidade. O limite desse recurso é dado
pelo nível total do ruído, resultante da soma do ruído pré-existente
no som direto mais o que foi pós-sincronizado na edição. O efeito
pode ser uma sequência insuportavelmente ruidosa, comprometen-
do a compreensão das falas proferidas e obrigando a dublagem do
som direto durante a pós-produção.
154
Por razões estéticas ou orçamentárias, a dublagem é evitada por
alguns diretores que buscam soluções de filmagem que viabilizem
a captação do som direto, mesmo com a existência de elementos
ruidosos em cena. Diretores que valorizam o uso do registro direto
decupam a cena de forma a adequar a filmagem às necessidades da
captação do som direto. Um exemplo desse procedimento pode ser
percebido na sequência Despedida na plataforma do início do filme
A testemunha (Witness, Peter Weir, 1985)41. Uma breve descrição
desta sequência, acompanhada de imagens (Figuras 11 e 12), per-
mitirá a identificação dos procedimentos de decupagem que garan-
tiram o registro das falas pelo som direto em uma cena em que um
trem está chegando à plataforma da estação.

A Despedida na plataforma é constituída por dezoito planos42. No

41 A testemunha (Witness) narra a história de um garoto Amish que testemunha um assassinato


que envolve corrupção policial. A sobrevivência do menino depende da ação de um honesto policial,
interpretado por Harrison Ford.
42 As imagens deste livro que ilustram esta sequência descrevem os primeiros 16 planos, descartando
os dois últimos.

O som do filme: uma introdução


plano 1, acompanha-se a caminhada de Daniel na plataforma da
estação até o encontro com a família Amish. A câmera caminha com
Daniel, revelando os passageiros que aguardam a chegada do trem,
a linha férrea e, ao fundo, a família Amish. A caminhada termina
quando Daniel toca as costas de Eli, o avô. Ouvimos um ambiente
calmo e com vozes indistintas; a voz de Daniel com mais destaque,
ao cruzar por duas mulheres na estação; o apito curto de uma bu-
zina distante; e uma música etérea com timbre eletrônico que sua-
vemente permanecerá até o final da sequência.

No plano 2, a câmera aponta para fora da plataforma e ao fundo


vemos a linha férrea. Vemos e ouvimos Eli cumprimentando, com
certa surpresa, Daniel, que responde ao cumprimento, e em seguida,
de forma reverente, cumprimenta Rachel que educadamente res-
ponde. A posição particular da câmera permite perceber que as falas
(“Guten morgen!”) mantêm perfeito sincronismo labial com as fon- 155
tes emissoras. Ouvimos, ainda, em off vozes femininas indistintas
um pouco mais distantes e a música que continua.

No plano 3, a câmera numa posição mais baixa e apontando em


diagonal para a plataforma, mostra Samuel, que atento acompa-
nhava o dialogo dos adultos. De costas, vemos Daniel abaixando,
dirigindo sua atenção ao garoto. Ouvimos a voz de Daniel, sem
referência de sincronismo labial, dizendo “So, first time to the big
city?”. Samuel movimenta a cabeça afirmativamente. As vozes, do
diálogo das mulheres, continuam sendo ouvidas ao longe.

No plano 4, a câmera, na mesma altura do plano anterior, aponta


para o interior da plataforma. Vemos e ouvimos Daniel dizendo, a
Samuel, com entusiasmo: “You’ll see so many things”. Vemos a
fonte emissora da fala e percebemos o perfeito sincronismo labial. O
diálogo das mulheres continua, e a música sofre pequena variação
aumentando a densidade emocional.

No plano 5, com a câmera na mesma posição do plano 3, vemos

Capítulo 4 – A prática de captação do som direto


Samuel e ouvimos a voz de Daniel, em off, dizendo a Samuel: “Close
your eyes”. A música continua com densidade emocional elevada.

No plano 6, com a câmera na mesma posição da do plano 4, vemos


e ouvimos os ruídos provocados pela movimentação de Daniel, que
busca um objeto guardado no bolso. Muito distantemente, começa
a ser ouvido o ruído cadenciado das rodas metálicas sobre os trilhos,
indicando que a composição ferroviária se aproxima da plataforma.

No plano 7, a câmera apontando para baixo, vemos em detalhe a


mão de Daniel sobre a mão de Samuel, entregando uma peça de
madeira com o desenho de um cavalinho branco. Ouvimos Daniel
dizendo: “Open”. Ouvimos ruídos provocados pela movimentação
das mãos e a interjeição de surpresa de Rachel ao ser revelado o
presente. Em perfeita continuidade, o ruído cadenciado das rodas
156 metálicas sobre os trilhos torna-se mais presente, indicando que a
composição ferroviária continua se aproximando da plataforma.

No plano 8, vemos e ouvimos a reação de felicidade de Samuel,


que agradece efusivamente: “Danke!”. Vemos Rachel abaixada e
sorrindo ao lado do filho. Em continuidade com o plano anterior,
ouvimos o ruído cadenciado, que fica gradualmente mais intenso,
das rodas do trem. Um apito grave e intenso atrai a atenção de
Rachel e Samuel, os quais desviam o olhar para a direção na qual
o trem se aproxima.

O plano 9, com a câmera apontando na diagonal oposta à do pla-


no 3, num enquadramento maior, revela a chegada à estação da
imponente locomotiva que puxa a composição. Vemos e ouvimos
o trem. O início do plano é sonoramente preenchido pelo apito
que ressoa desde o plano anterior e pelo estalar cadenciado das
rodas metálicas sobre os trilhos. Vemos Samuel correndo pela pla-
taforma, ouvimos seus passos e, com extrema clareza, ouvimos a
voz de Rachel, que está fora de quadro, pedindo atenção ao filho:
“Samuel, careful!”.

O som do filme: uma introdução


No plano 10, vemos Rachel sorrindo, admirada com a alegria de Sa-
muel. Em total continuidade de ação com o plano anterior, vemos
o trem em movimento, passando as costas de Rachel. O ruído das
rodas metálicas sobre os trilhos mantém a mesma cadência e inten-
sidade do plano anterior. Sem falar, Rachel sorri largamente.

No plano 11, a câmera aponta para o interior da plataforma. Vemos


Daniel, que dirige a atenção a Rachel, falando suavemente: “You
come back soon.”. Ouvimos em off o estalar cadenciado do trem em
continuidade com plano anterior.

No plano 12, vemos Rachel olhando fixamente em silêncio para Da-


niel. O trem continua em movimento atrás dela, porém o estalar das
rodas sobre os trilhos tem a sua cadência reduzida, torna-se menos
intenso e compartilha o espaço sonoro com estridentes guincha-
dos metálicos provenientes do atrito causado pelo acionamento dos 157
freios. O som revela que a composição está prestes a parar.

No plano 13, com enquadramento semelhante ao do plano 11,


apontando para o interior da plataforma, vemos Daniel em silêncio,
sorrindo e acompanhando com o movimento de cabeça a saída de
Rachel, que caminha em direção ao filho. Com forte presença sono-
ra, ouvimos em off a voz de Rachel chamando: “Samuel”. A cadên-
cia e a intensidade das rodas metálicas diminuem significativamente
e são totalmente mascaradas pelos guinchos metálicos da frenagem
que se estendem até o final do plano. Após a voz de Rachel, ou-
vimos o ruído de liberação de ar das válvulas dos compressores do
sistema de freios.

No plano 14, com a câmera apontando para a mesma direção da


do plano 9, num enquadramento mais próximo, vemos Samuel
em frente à porta do vagão do trem que se encontra completa-
mente parado. Alguns passageiros descem pela escada, deixam o
vagão e cruzam o quadro. Com a mesma intensidade, mantendo
continuidade direta com o plano anterior, é ouvido o ruído das

Capítulo 4 – A prática de captação do som direto


válvulas de ar dos freios, o qual eficientemente reforça a com-
pleta parada do trem e une os planos com fluidez. Vemos Rachel
aproximar-se, um pouco aflita e cuidando do filho; ouvimos seus
passos no piso da plataforma e os passos metálicos de Samuel
subindo a escada do vagão. Na despedida com o sogro, vemos
e ouvimos o conselho enfático, proferido por Eli: “And you be
careful out among the English”, ao qual Rachel retribui sorrindo.
Rachel sobe no primeiro degrau da escada do vagão e dirige o
olhar em direção a Daniel.

No plano 15, a câmera aponta na direção oposta da plataforma,


ponto de vista de Rachel. Vemos Daniel olhando para Rachel e
cumprimentando-a simpaticamente. Ouvimos ruídos metálicos, de
pequena intensidade, provenientes de passos nas escadas de acesso
aos vagões. A música, que se manteve presente desde o início da
158 sequência, é agora percebida pela ausência de outras informações
sonoras mais significativas na trilha sonora.

No plano 16, a mesma posição de câmera e a continuidade direta da


ação do plano 14 indicam que é um mesmo plano de captação que
foi desmembrado em dois planos pela montagem. Vemos Rachel re-
tribuir ao cumprimento e encaminhar-se ao interior do vagão. Além
dos ruídos provocados pela movimentação da personagem, percebe-
mos um ruído metálico mais intenso indicando ações paralelas que
não são visualizadas.

O plano 17 mantém a mesma posição de câmera do plano 15. Vemos


Daniel reagir ao olhar de Rachel e, com expressão marota, encaminha-
-se para fora da estação. Por meio do som inicia-se a partida do trem.
Ouvimos dois disparos de ar das válvulas dos compressores do sistema
de freios, seguidos de um ruído metálico que remete ao sistema de
engate, sucedido por mais dois disparos de ar – com o mesmo ritmo
dos anteriores, porém mais intensos –, completando sonoramente a
preparação para a saída do trem. A caminhada de Daniel coincidente-
mente só se inicia após o segundo par de disparos de ar.

O som do filme: uma introdução


No plano 18, a câmera baixa, próxima à linha férrea, revela a lo-
comotiva que já está em movimento. Ouvimos os estalos metálicos
das rodas sobre os trilhos iniciando seu compasso ritmado. A música
que permaneceu discreta ao longo da sequência assume novo ar-
ranjo, torna-se mais imponente, estimulando novas sensações para
o início da viagem. Fim da sequência.

159

Capítulo 4 – A prática de captação do som direto


160

[Figuras 11 e 12]

A sequência descrita é marcada pela concisão de informações e pela


clareza na construção do espaço diegético. A precisa decupagem es-
truturada pela direção e a habilidosa articulação entre sons e imagens,
estabelecida pela montagem, permitem que as intenções sutis que
estimulam a progressão da narrativa se revelem na ação dos persona-

O som do filme: uma introdução


gens e descrevam, de forma econômica, a imponente chegada e saída
do trem na plataforma. Por meio da aplicação rígida das regras de
continuidade física entre os planos, cria-se a impressão de uma ação
contínua, possibilitando a compreensão do espaço físico representa-
do. A relação complementar estabelecida entre os sons e as imagens
antecipa algumas informações visuais, dinamizando o discurso narra-
tivo, potencializando e unificando os planos de imagem por intermé-
dio do estabelecimento de fluxos sonoros contínuos.

Coerente com a representação naturalista adotada pelo filme, a se-


quência Despedida na plataforma é construída segundo os códigos
da decupagem clássica43 que, com rigorosa manutenção das “famo-
sas regras de continuidade”, busca “estabelecer uma combinação de
planos de modo que resulte uma sequência fluente de imagens”,
tornando a montagem invisível a serviço da criação de uma forte
impressão de realidade (XAVIER, 1984, p. 24). 161

Antes de analisarmos especificamente como as opções de decupagem


permitiram a captação de som direto na cena, destacamos a impor-
tância que a trilha sonora desempenha nessa sequência, resultante
da habilidosa articulação, estabelecida pela montagem, entre os sons
e as imagens. Em perfeita continuidade, a ação do trem (aproxima-
ção, chegada e parada) é descrita de forma ágil e econômica. Para
descrever a chegada do trem são usados apenas três planos com a
imagem do trem em movimento (planos 9, 10 e 12). O restante da
ação é representado por ruídos naturalistas, portanto, identificados
ao objeto “trem” que, precisamente dispostos ao longo da sequência,
dinamizam a ação representada. A presença do trem é constante, sua
aproximação é construída a partir do plano 1, quando é ouvido um
apito distante. A chegada do trem na plataforma é feita inicialmente

43 Como definido por Ismail Xavier, “o que caracteriza a decupagem clássica é seu caráter de sistema
cuidadosamente elaborado, de repertório lentamente sedimentado na evolução histórica, de modo a
resultar num aparato de procedimentos precisamente adotados para extrair o máximo rendimento dos
efeitos da montagem e ao mesmo tempo torná-la invisível” (XAVIER, 1984, p. 24).

Capítulo 4 – A prática de captação do som direto


pelo som, por meio do ruído cadenciado das rodas que são ouvidas
distantemente no plano 6 e que se prolonga em continuidade até o
plano 13, quando é substituído pelos ruídos das válvulas de ar dos
freios que indicam a completa parada da composição.

No final do plano 8, o ruído de um apito mais intenso chama a


atenção, reforçando a proximidade do trem e provocando a reação
de olhar dos personagens, o que impulsiona a narrativa a revelar,
pela primeira vez no plano 9, a imagem do trem entrando na pla-
taforma. A reação dos personagens no final do plano 8 evidencia a
articulação entre som e imagem determinada pela decupagem que
previu, para a situação de filmagem, o momento correto da reação
de olhar dos personagens, criando a impressão, após a montagem
com o apito pós-sincronizado, de continuidade espaço-temporal.
Durante a filmagem, os atores ouvem e reagem a um apito de trem
162 que só existirá após a sequência montada e sonorizada. A impressão
da chegada do trem em ação contínua é construída pelo conjunto
de ruídos pós-sincronizados associados ao trem que estabelecem
um fluxo sonoro constante, unificando os planos de imagem. A
mesma concisão é percebida na representação da parada do trem,
a qual é construída inicialmente apenas pelo som nos planos 11
e 12 – com a substituição progressiva do estalar das rodas pelos
sons metálicos e, posteriormente, pelo ruído das válvulas de ar até
a extinção de todos os sons que indicam o movimento do trem. A
imagem do trem, já estacionado na plataforma no início do plano
14, ratifica sua parada.

A opção em filmar a cena em vários planos é uma escolha da di-


reção que, entre outras consequências, propicia condições para a
captação dos diálogos pelo som direto. A mesma ação, filmada em
plano sequência, com o trem chegando em tempo real, inviabilizaria
a captação de som direto. Decupar a sequência em planos permite
à direção estabelecer os momentos e os enquadramentos para os
diálogos. A partir desta definição, os planos com captação de diálo-
gos – nos momentos em que o trem está presente na diegese – são

O som do filme: uma introdução


enquadrados de forma a não revelar a sua imagem, podendo ser fil-
mados sem a presença real do trem, evitando os ruídos indesejados
e garantindo ao som direto uma captação “limpa” das falas. Com a
mesma lógica de decupagem, nos planos em que vemos a imagem
do trem em movimento, com a presença real do objeto, não existe a
ocorrência de falas com referência de sincronismo labial e, portanto,
a tomada da cena não necessita da captação de som direto. Essa
lógica de decupagem é verificada ao longo da sequência.

O início do diálogo no plano 2 (cumprimentos entre os personagens),


ocorre num momento da diegese em que o trem está distante da
plataforma e, portanto, não existe restrição em relação à posição da
câmera. A linha férrea é revelada sem a presença do trem, possibilitan-
do a captação simultânea dos diálogos. A continuação da cena, com
o diálogo entre Daniel e Samuel (planos 3, 4, 5, 6, 7 e 8, nos quais o
trem completa a aproximação da plataforma), é filmada sem revelar 163
a direção da linha férrea da qual o trem se aproxima. Esse posicio-
namento de câmera desobriga a presença real do trem, permitindo a
captação dos diálogos. O ruído das rodas cadenciadas que ouvimos
na sequência montada é pós-sincronizado, permitindo total controle
dos níveis relativos das vozes e dos ruídos durante a mixagem.

No plano 9, com a presença real do trem na plataforma, a voz que


ouvimos está em off, portanto, sem necessidade de captação de
som direto na tomada. Nos planos 11 e 12, com a imagem do trem
em movimento, a solução da decupagem é deixar Rachel reagir em
silêncio, eximindo a necessidade de captação de som direto. A fala
de Daniel no plano 11 é o exemplo emblemático dessa opção de
decupagem. A voz emitida com pequena intensidade, coerente com
a ação e intenção do personagem, ocorre no momento da diegese
em que o trem, muito próximo a ele, está em movimento na plata-
forma. No entanto, o enquadramento escolhido (câmera apontando
para o interior da plataforma) permite que a cena seja rodada sem a
presença real do trem, garantindo as condições necessárias para que
o registro da fala, mesmo com baixa intensidade, seja inteligível.

Capítulo 4 – A prática de captação do som direto


Considerando a realidade do mundo físico, a presença tão próxima
do trem em movimento e o ruído por ele produzido exigiriam que
o personagem projetasse a voz com um pouco mais de intensidade
para ser ouvido. Contudo, no contexto da diegese, a ação é veros-
símil. As falas finais (o conselho do avô) são proferidas com o trem
em quadro. Porém, a hábil decupagem coloca o trem já estacionado,
possibilitando que durante a tomada da cena a locomotiva esteja
desligada sem produzir ruídos.

Mesmo que parte da sequência tenha sido dublada, o que não pa-
rece, a análise realizada não se invalida. A decupagem estabelecida
pela direção possibilita que os planos com fala sincrônica sejam
captados independentemente da presença real do trem. A articula-
ção estabelecida pela montagem com a pós-sincronização dos ruí-
dos cria a ilusão de continuidade da chegada do trem. A decupagem
164 da sequência Despedida na estação denota a prioridade da direção
pelo registro sonoro direto, criando condições adequadas para a
captação de falas inteligíveis nessa complexa situação de filmagem.
Filmar com som direto obriga a realização de escolhas que viabili-
zem o trabalho de captação.

4.5 O espaço de trabalho do som direto

A rotina do método de trabalho do som direto se caracteriza pela


aplicação sistemática de procedimentos que visam criar as condições
necessárias para a captação do som sincrônico. Integrando a equi-
pe de realização, o técnico de som direto define, junto às demais
áreas técnicas, as demandas operacionais e infraestruturas para a
obtenção das condições que viabilizem o trabalho. A conquista da
atenção e o cuidado da equipe de realização para as especificidades
do som no processo de realização cinematográfica são condições
necessárias para a obtenção de um bom som direto.

O som do filme: uma introdução


A singular circunstância da captação do som em sincronia com a
imagem, subordinado às necessidades da composição visual e do en-
quadramento da cena, cria um vínculo de dependência entre o som
direto e as demais áreas técnicas da realização. Somente o trabalho
conjunto da equipe, assumindo o som direto como parte integrante
do processo de realização e respeitando as particularidades físicas
da matéria sonora, possibilita a superação dos inerentes obstáculos
ao processo de captação e registro do som direto. A opção por filmar
com som direto implica em procedimentos específicos que harmo-
nizem as áreas técnicas envolvidas no processo de realização, escul-
pindo as condições necessárias para a captação sincrônica do som.
Como o conflito original da captação de som direto é insuperável,
com o posicionamento do microfone tradicionalmente definido pela
imagem, as opções de direção e produção determinam o espaço de
atuação do técnico de som, influenciando profundamente a quali-
dade do som direto. Esta compreensão do processo deve orientar o 165
trabalho de direção na escolha de locações silenciosas e decupagens
adequadas para que cenas, com diálogos essenciais para a condução
da narrativa, possam ser captadas garantindo a essência do trabalho
do som direto: a inteligibilidade da palavra falada.

No método de trabalho do som direto, a captação e o registro da


voz ocupam posição de destaque, tornando-se, no set, o principal
foco de atenção do técnico de som. A tendência natural da voz em
destacar-se de qualquer massa sonora e organizar a percepção au-
ditiva ao seu redor é a justificativa sensorial dada por Michel Chion
para o vococentrismo da trilha sonora cinematográfica. A presença
da voz atrai a atenção do ouvinte que busca extrair seu significado.
A importância da voz no som cinematográfico está principalmente
associada ao conteúdo semântico que veicula (CHION, 1994). Por
sustentar a expressão verbal e se constituir como o principal veículo
da ação narrativa, a inteligibilidade da fala se torna o aspecto cen-
tral no método de trabalho do técnico de som direto. A importân-
cia ocupada pela voz se manifesta em cada etapa do processo de
constituição da trilha sonora cinematográfica. Na captação do som

Capítulo 4 – A prática de captação do som direto


direto a intensidade e a presença das falas são controladas artificial-
mente em relação às demais fontes sonoras, como forma de com-
pensar a falta de referências que permitem ao espectador/ouvinte,
numa escuta direta, isolar a voz do diálogo dos ruídos circundantes
e extrair seu significado. O método de trabalho do som direto prio-
riza a busca pela inteligibilidade sem esforço da palavra falada, por
meio de procedimentos sistemáticos de controle e supressão dos
outros elementos sonoros.

A homogeneidade da trilha sonora cinematográfica, fundamen-


talmente da voz (nos primeiros tempos do sonoro) que, segundo
Altman, reforçava a invisibilidade da montagem e potencializava o
caráter ilusionista da representação cinematográfica clássica, con-
solidou o método de captação do som direto. Assim, os parâmetros
que caracterizam a qualidade técnica do som direto na atualida-
166 de decorrem do código de representação estabelecidos pelo cine-
ma clássico, o qual determina um registro sonoro limpo, claro e
homogêneo, com a atenção voltada para a perfeita compreensão
da palavra falada. Esses parâmetros orientaram o desenvolvimento
das ferramentas técnicas que satisfizessem às demandas de trabalho
e foram internalizados na prática profissional como características
inerentes ao som captado sincronicamente (ALTMAN, 1992b).

Nos procedimentos empregados pelo técnico de som direto, é con-


siderada a característica peculiar do som que, diferentemente da
luz ao se propagar, contorna e envolve os objetos, determinando
um comportamento “indisciplinado” da matéria sonora. Em com-
paração com a imagem, as fronteiras do “quadro sonoro”, durante
a captação, não são tão precisas quanto as do quadro da imagem
delimitado pela câmera. Assim, ao contrário do que imagina o senso
comum, o emprego dos microfones direcionais, mesmo os hiper-
cardioides, apenas atenua os ruídos que se encontram fora do eixo
de captação do microfone, porém não consegue suprimi-los com-
pletamente. Para o técnico de som direto, a única forma efetiva de
“delimitar o quadro” sobre o som desejado (a voz) é aproximando

O som do filme: uma introdução


o microfone da fonte (a boca do ator) para que as palavras sejam
captadas com intensidade predominante e mascarem o ruído am-
biente circundante. Os avanços tecnológicos, com a tendência geral
à miniaturização dos dispositivos de captação, permitindo o desen-
volvimento dos pequenos microfones de lapela (possíveis de serem
escondidos sob a roupa dos atores) e o aprimoramento dos sistemas
de radiotransmissão do sinal de áudio captado pelos microfones,
disponibilizaram ao técnico de som ferramentas para a superação
da tradicional limitação imposta pela imagem para a colocação do
microfone na melhor posição de captação em relação à fonte sonora
na realização cinematográfica ficcional. Estas ferramentas contem-
plam as especificidades físicas da matéria sonora e respondem à
demanda técnica/estética do som sincrônico.

Os microfones de lapela sem fio, associados à recente aquisição tec-


nológica, disponibilizada pela indústria eletrônica (gravadores portá- 167
teis digitais multipista) criam sistemas de captação e registro sonoro
que satisfazem a necessidade original do cinema clássico: a almejada
sonoridade das falas em contínuo close up. Ao garantir uma captação
com presença destacada e o registro independente das vozes, estas
ferramentas respondem à demanda original do som direto de pro-
piciar a perfeita inteligibilidade da fala, respeitando a convenção de
manter o microfone fora do campo de visão da câmera.

O espaço de atuação criativa do técnico de som direto na realiza-


ção cinematográfica ficcional não é tão evidente quanto às outras
áreas envolvidas na produção, tais como: a fotografia ou a direção
de arte. A invisibilidade da matéria sonora não facilita a percepção
da atuação criativa que o profissional do som sincrônico pode de-
sempenhar na equipe de realização. Além disso, os procedimentos
constituintes da rotina básica do som direto, por mais importantes
que sejam para a qualidade do registro sonoro, são desprovidos de
qualquer pretensão artística. A rotina de controle e supressão das
fontes sonoras indesejadas (interrompendo as atividades periféricas
no set; silenciando solas de sapato, xícaras e pratos; solicitando que

Capítulo 4 – A prática de captação do som direto


os atores controlem os ruídos produzidos durante a cena) é funda-
mental para a obtenção de um bom som direto e está presente na
prática de trabalho desde o início deste ofício. Estes procedimentos,
ainda que necessários e importantes, implicam apenas na repetição
de um protocolo que, no máximo, exige a atenção e o cuidado do
técnico de som, mas nenhuma competência criativa.

No entanto, contrapondo-se a esta dimensão estritamente mecânica


do trabalho do técnico de som, podemos afirmar que a aplicação
do conjunto destes procedimentos, associados à escolha dos micro-
fones; a distância do microfone em relação à fonte; ao controle da
reverberação, entre outras possíveis decisões, conformam a textura
sutil do som direto, que possibilita a este registro reforçar a im-
pressão de pertencimento de uma fonte sonora ao espaço do qual
emana. Mesmo assumindo a dependência do som direto em relação
168 às demais instâncias da realização cinematográfica (demandas de
roteiro, opções de direção), a sonoridade (qualidade impalpável) da
gravação, resulta das escolhas do profissional do som direto.

Se a referência básica para os procedimentos de trabalho do técni-


co de som é explicitada como a procura por um som em contínuo
close up, uma atuação sutil – invisível, inclusive, para a maioria
dos componentes da equipe de realização cinematográfica –, que
depende da sensibilidade, da experiência e do potencial criativo do
profissional do som direto, busca a fidelidade da voz com a preser-
vação da particular textura do espaço de onde esta voz emana para
alcançar uma representação sonora adequada à imagem captada
sincronicamente.

O som do filme: uma introdução


PARTE 3
O SOM NA PÓS-PRODUÇÃO
CINEMATOGRÁFICA
Débora Opolski
CAPÍTULO 5
A PRÁTICA DE EDIÇÃO E MIXAGEM DE
SOM NO AUDIOVISUAL44

170 5.1 O som no cinema

O cinema é uma arte nova, e em constante ascensão, que progri-


de e se adapta facilmente às necessidades da sociedade e da sua
época. Em pouco mais de 100 anos, passamos pelo cinema mudo
e pela inovação da inserção do som nos filmes, convivendo com
uma constante evolução das técnicas e possibilidades de integra-
ção entre som e imagem.

O cinema é chamado de “arte audiovisual” porque o som é com-


preendido como um dos elementos constituintes do filme. Muitos
pesquisadores, dentre eles Luiz Manzano (2003, p. 18), afirmam
que mesmo antes de 1927 o cinema não era mudo, pois a constru-
ção cinematográfica propunha sons que não estavam sendo ouvi-
dos, mas eram sugeridos para o público. Além disso, pianistas ou
orquestras comumente interpretavam músicas durante as proje-
ções, acompanhando as imagens. O fato é que o cinema se tornou

44  Uma versão diferente deste capítulo está disponível também no livro Introdução ao desenho de
som, da autora, publicado em 2013 pela Editora da UFPB.

O som do filme: uma introdução


comercialmente audível em 1927 com O cantor de jazz (The jazz
singer, Alan Crossland, 1927), quando os expectadores puderam,
pela primeira vez, ouvir sons sincronizados com a imagem em uma
tela de cinema. A partir de então, sendo possível a sonorização de
imagens, pesquisas se desenvolveram em busca da melhor forma
de utilizar o som em colaboração com a cena. Na prática, foi aí
que surgiram a produção e a pós-produção de som para filmes,
bem como o desenho de som.

No extra do filme A identidade Bourne (The Bourne identity, Doug


Liman, 2002), intitulado A velocidade do som, Christopher Assells
e Per Hallberg, editor de efeitos e sound designer, respectivamen-
te, falam a respeito do processo de construção do som do filme. O
extra apresenta uma cena de perseguição, na qual o carro utilizado
por Matt Damon (Jason Bourne) é tratado como um elemento so-
noro de grande importância. Os artistas ressaltam que na estética 171
de criação sonora escolhida para o filme A identidade Bourne, o
som ouvido não é gravado ao mesmo tempo em que as imagens
são filmadas, com um microfone que segue os atores. A maior parte
é acrescentada na última etapa da pós-produção do filme, depois
de a montagem das imagens já ter sido finalizada. O termo som,
nesse caso, não se refere apenas à música, a qual é acrescentada
posteriormente, mas aos sons constituintes da cena, como diálogos,
ambientes, objetos sonoros da cena, sound effects etc.

Existem diversas linhas de pós-produção de som que seguem estilos


de manipulação e de trabalho diferentes. Algumas delas utilizam ao
máximo o material captado pelo técnico de som direto, tanto para
o diálogo quanto para o foley e demais efeitos sonoros. Outras uti-
lizam apenas os diálogos do material gravado no set de filmagem
e recriam os sons de foley e efeitos sonoros, pois primam por um
total controle dos elementos durante a mixagem e por reforçar um
processo de recriação sonora. Essa será a metodologia descrita neste
capítulo. A pós-produção de som pode ser feita seguindo qualquer
uma dessas duas formas porque precisa ser adaptada às exigências

Capítulo 5 – A prática de edição e mixagem de som no audiovisual


e às características do filme, bem como ao tempo e ao orçamento
destinado para essa etapa.

Independentemente do processo escolhido para realização do traba-


lho, devemos lembrar que o som do audiovisual deve se relacionar
à proposta criativa da obra. No artigo de Randy Thom (1999), De-
signing a film for sound (ou Desenhando o filme para o som), ele
afirma que o trabalho do sound designer não é somente criar sons
com boa qualidade sonora; ao contrário, o bom profissional desen-
volve uma criação narrativa e dramática. Segundo o autor, uma das
maneiras possíveis para realizar esse feito é desenhar o filme para o
som ou escrever o roteiro com o som em mente, para permitir que
este exerça influência nas decisões criativas desde o início da con-
cepção da história. Na animação Kung Fu Panda (Mark Osbourne
e John Stevenson, 2008), esse tipo de colaboração é claramente
172 percebida. A espacialização dos objetos caindo, na cena da despensa
da cozinha, aos 43 minutos, é exemplo do trabalho conjunto entre
a imagem e o som proposto por Thom na construção da história. A
cena só pôde ser realizada porque o som foi inserido como elemento
narrativo ainda na elaboração do roteiro.

O objetivo deste capítulo é discutir as implicações relacionadas à


reconstrução do som, de forma que o espectador entenda o discur-
so sonoro como parte da história. A seguir falaremos sobre como
podemos dividir em etapas a pós-produção de som, para fins de sis-
tematização do processo de trabalho, visando fornecer informações
a respeito das principais funções desenvolvidas e do modo como
os procedimentos são realizados. Nossas ideias sobre a construção
sonora serão embasadas, na medida do possível, em exemplos de
longas-metragens e relatos de profissionais da área.

O som do filme: uma introdução


Edição de som

Na estrutura sobre a qual nos propomos a falar, a pós-produção é


o momento em que o desenho sonoro do filme se concretiza, mo-
mento em que novos elementos sonoros são criados e adicionados à
imagem, tais como: vozerio (também chamado de walla), dublagens
(ADR, ou Aditional Dialogue Recording), efeitos sonoros e música.

De acordo com Wyatt e Amyes (2005, p. 1), o termo pós-produção


de som refere-se à parte do processo que compreende a edição, a
mixagem e a masterização da trilha sonora. Dentre os objetivos da
pós-produção, os autores citam:

(1) Melhorar o fluxo da narrativa, localizando o espectador em


relação ao ambiente, ao tempo e ao período por meio do uso
do diálogo, da música e dos efeitos sonoros; 173
(2) Adicionar impacto;
(3) Completar a ilusão de realidade e a perspectiva por meio do
uso de efeitos sonoros, além de utilizar equalizadores e reverbs
artificiais para recriar a acústica do ambiente na mixagem;
(4) Completar a ilusão de irrealidade e fantasia por meio do uso
de desenhos sonoros específicos e processamento de efeitos;
(5) Completar a ilusão de continuidade em cenas que foram
gravadas descontinuamente;
(6) Criar ilusão de profundidade e de espacialidade, situando
os elementos sonoros no estéreo/surround;
(7) Corrigir problemas do som direto, editando ou substituin-
do diálogos na pós-produção e usando processadores na mi-
xagem para aumentar a clareza do som, diminuindo ruídos
indesejáveis;
(8) Entregar a trilha sonora final com as corretas especifica-
ções e formatos.
Esses objetivos são atingidos por meio de uma edição e pos-
terior mixagem precisa e criativa.

Capítulo 5 – A prática de edição e mixagem de som no audiovisual


A partir de agora, descreveremos os elementos sonoros que com-
põem a cena na criação do sound design. Com essa tarefa, pre-
tendemos que o leitor consiga identificar os aspectos relativos à
dramaticidade sonora, gerada ou induzida pelo som composto para
a cena. Dividiremos os elementos sonoros em três grandes grupos:
um constituído pelos diálogos; outro, pelo foley; e o terceiro, pelos
efeitos sonoros (excluindo o foley).

Na prática do trabalho de edição de som essas diferentes catego-


rias de elementos sonoros são criadas por uma pessoa ou por um
grupo de pessoas. Cada um desses grupos possui um supervisor
de som que é, por sua vez, subordinado ao supervisor de som do
filme. Junto ao supervisor de som temos o mixador e o compositor
da música.

174 O número de profissionais envolvidos na pós-produção do som


é grande devido ao grau de detalhamento do trabalho. A equipe
varia de acordo com a necessidade45, mas a composição e a estru-
turação da mesma podem ser baseadas no organograma descrito
na Figura 13:

45 Segundo o banco de dados IMDb, no filme citado anteriormente A identidade Bourne, a equipe
de som foi composta por 47 pessoas.

O som do filme: uma introdução


ADR Mixer Foley Mixer

Editor de ADR Artista de Foley

Editor de diálogo Supervisor de ADR Editor de Foley Editor de efeito

Supervisor de Supervisor de efeito


Editor de música Mixador
diálogo Sound-designer

175

Supervisor de som
Compositor
Sound-designer

[Figura 13]

Certamente, poderíamos inserir algumas dezenas de funções interme-


diárias, que na prática podem existir em algumas produções. Porém,
essa é uma tabela que contém as funções básicas desempenhadas.
Importante lembrar que em caso de produções pequenas, algumas
funções normalmente são acumuladas pelo mesmo profissional.

Grupo 1: Diálogos

A função do editor de diálogos é fazer com que as falas dos atores


apresentem-se da forma mais inteligível possível para o mixador.
Segundo Purcell (2007), são suas funções:

Capítulo 5 – A prática de edição e mixagem de som no audiovisual


(1) Entender e organizar o material que, na maioria das ve-
zes, é denso, confuso e volumoso devido a quantidade de
dias de filmagem;
(2) Suavizar as transições entre as tomadas de som;
(3) Resolver problemas de articulação e sobreposição de vozes
feitas pelos atores;
(4) Eliminar ruídos indesejados, como barulhos de boca (sali-
vação excessiva) e bater dos dentes;
(5) Observar detalhes sonoros que se adicionados ou elimina-
dos podem ajudar na construção do personagem;
(6) Eliminar ruídos externos desnecessários, como barulhos
provenientes das outras pessoas presentes no set, passarinhos,
motores de máquinas (ar condicionado, geradores) ou qual-
quer outro som que prejudique a inteligibilidade da fala;
(7) Substituir falas comprometidas por problemas técnicos
176 como distorção, saturação, barulhos de microfones de lapelas
ou batidas de microfones booms;
(8) Determinar, com o supervisor de dublagem, o que pode ser
salvo pela edição e o que precisará ser regravado no processo
de dublagem (ADR);
(9) Separar em pistas diferentes os efeitos resultantes do som
direto do diálogo, para que possa ser realizada uma boa trilha
de música e de efeitos (M&E);
(10) Preparar o material, assim como acompanhar a pré-mixa-
gem de diálogo, pronto a realizar todas as mudanças necessá-
rias requeridas pelo mixador. (PURCELL, 2007, p. 3).

No entanto todas essas funções podem ser resumidas a uma só:


de acordo com Amyes e Amyes (2005, p. 158), um bom editor de
diálogos é aquele que possui habilidade e sensibilidade suficientes
para corrigir os defeitos das falas com o apoio das tomadas de som
alternativas, de maneira a tornar as correções imperceptíveis por
parte do espectador, ou seja, alterando a performance do ator o
mínimo possível. O grande desafio, assim como nas outras tarefas
relacionadas ao cinema, é manter a continuidade que não pode ser

O som do filme: uma introdução


quebrada em momento algum, para que o espectador não perceba a
informação como falsa, mas sim, possa apreender o mundo ficcional
que está sendo representado. A edição de diálogos é responsável
por amenizar as transições entre as tomadas de som, suavizando a
descontinuidade inerente.

Para que a realização dessas tarefas seja possível, é necessário que


alguns recursos básicos estejam disponíveis: Open Media Frame-
work (OMF)46, Edit decision List (EDL)47 de áudio e vídeo; o material
de som bruto – resultado da gravação do som direto, boletins de
som e roteiro. Ou seja, o editor precisa ter em mãos tudo o que é
relativo ao som proveniente da gravação e da ilha de edição de ima-
gem para que o trabalho possa ser iniciado.

O departamento de diálogos é o único da pós-produção de som


que tem contato direto com o material gravado no set de filma- 177
gem. Concluímos, portanto, que o material resultante de efeito
e foley não é proveniente do som direto. Em situações em que
os problemas das falas não podem ser resolvidos por meio de
técnicas de edição e de processamento de som, o editor recorre
ao material bruto em busca de tomadas de som alternativas. É
necessário que se tenha o material bruto de som mesmo que as
tomadas já estejam definidas pelo editor de imagem. A monta-
gem define a sequência de planos do filme e, por consequência,
gera uma obrigatoriedade direcional para o som. No entanto, o
editor de imagem escolhe tomadas que proporcionam continui-
dade de imagem para a cena, já o editor de diálogo seleciona as
melhores tomadas em busca de uma continuidade para o som,
de forma a alterar o mínimo possível a performance do ator já
definida na montagem.

46 Formato de arquivo que permite a comunicação de material digital por programas e interfaces
distintas.
47 Arquivo de texto onde estão listados todos os cortes feitos pelo montador.

Capítulo 5 – A prática de edição e mixagem de som no audiovisual


Uma edição de diálogos contínua e limpa é fundamental, pois pos-
sibilita liberdade para o acréscimo de qualquer efeito desejado pelos
editores de efeito e de foley, sem que estes se restrinjam às limita-
ções presentes nos diálogos dos atores. Ao mesmo tempo, precisa-
mos lembrar que uma boa captação de som direto é imprescindível
para que o editor consiga realizar essa tarefa.

Caso seja impossível a edição de alguma cena, ou até mesmo de


uma só palavra, podemos recorrer ao processo de dublagem. De
acordo com Watt e Amyes (2005, p. 158), a dublagem pode ser
requerida por parte do editor, caso os diálogos apresentem alguma
dessas características e nenhuma possibilidade de resolução:

(1) Nível de sinal do ruído de fundo muito intenso com rela-


ção ao nível da voz;
178 (2) Ruído de fundo inapropriado para a cena;
(3) Ruído de câmera intenso em determinado ângulo, confor-
me a proximidade dos microfones;
(4) Ruídos estranhos ao diálogo provindos do equipamento de
filmagem;
(5) Efeitos sonoros com muita intensidade sobrepostos à fala;
(6) Som captado fora do eixo do microfone;
(7) Sobreposição de voz dos atores, quando apresentarem ca-
racterísticas distintas;
(8) Qualidade de gravação imprópria, como ocorrência de dis-
torções.

Comprovado algum desses problemas, os atores são requisitados


para uma sessão de dublagem, na qual ouvem a própria voz e re-
petem a fala de acordo com as instruções do diretor. Na maioria
das vezes, é dada a instrução para que o ator repita o texto com a
mesma interpretação e entonação. No entanto, podem ocorrer casos
em que o diretor possui a intenção de modificar a interpretação do
ator com a dublagem.

O som do filme: uma introdução


Durante a sessão de gravação de dublagem, o responsável pela gra-
vação, seja ele o supervisor ou o editor de diálogos, além de atentar
para a qualidade sonora e auxiliar o diretor com relação à perfor-
mance, não deve perder o foco das questões relativas a pronúncia,
projeção e entonação do ator. Tais cuidados são essenciais para uma
dublagem eficiente, pois o objetivo é torná-la o mais próxima pos-
sível das falas do som direto, mantendo o conceito de continuidade
e de similaridade.

Na Figura 14, observe o recorte de uma sessão de edição de diá-


logos e verifique a disposição dos elementos sonoros. Nas pistas
identificadas como “DX” temos as vozes dos atores, na pista no-
meada “FILL” temos o preenchimento do fundo com ambiente da
cena. Esta sessão de edição de som pertence ao filme Besouro (João
Daniel Tikhomiroff, 2009).
179

[Figura 14]

Capítulo 5 – A prática de edição e mixagem de som no audiovisual


Apesar da obrigatoriedade definida pela montagem de imagem e
das restrições impostas pela gravação já realizada com os atores, a
edição de diálogos pode ser somente técnica ou técnica e criativa.
A inserção de eventos sonoros relativos à voz humana pode susci-
tar sensações mais intensas no espectador do que o uso de sons de
foley e efeitos. O som da voz humana é tão rico em detalhes que
mudanças sutis, como a escolha de palavras com menos transientes
de ataques, auxiliam na construção do caráter do personagem.

As características físicas, biológicas e psicológicas de uma pessoa


podem ser transmitidas pela voz. Existem técnicas de análise psi-
cológica que possuem como principal objeto de estudo o contorno
da linha vocal. No meio musical sabemos que a gravação da linha
melódica do cantor pode perder a continuidade se realizada em
etapas ou dias diferentes, mesmo que os procedimentos, técnicas e
180 equipamentos sejam idênticos. As características da voz variam de
acordo com a hora do dia, com os acontecimentos, com os alimen-
tos ingeridos, enfim, até mesmo com eventos que a priori sejam
considerados alheios à emissão vocal.

Um caso clássico da importância da voz na caracterização do perso-


nagem relacionada ao timbre remonta ao início do cinema falado.
Antes da presença da voz do ator no cinema, o espectador construía
as características vocais apenas pela aparência física do persona-
gem. Com o advento da fala, muitos atores da época tiveram que
se adaptar às novas regras e muitas vezes perderam trabalhos por
não mais se encaixarem nas normas exigidas pelo novo sistema. O
filme Cantando na chuva (Singing in the rain, Stanley Donen e
Gene Kelly, 1952) desenvolve o enredo sobre uma dessas situações.
A mocinha do filme é atriz e possui uma voz aguda e estridente que
não se encaixa ao perfil físico da personagem. A solução encontrada
pela atriz para continuar interpretando os papéis das mocinhas foi
substituir a própria voz pela de outra mulher que possuía um timbre
mais agradável, ou seja, realizar um processo de dublagem.

O som do filme: uma introdução


O exemplo citado é fictício, porém baseado em histórias que foram
comuns na época. Hoje requisitos básicos precisam ser cumpridos
para que o ator interprete um papel. Além da fisionomia, caracterís-
ticas fisiológicas de emissão da voz (timbre) e regionalismos (sota-
ques) possuem relativa importância.

No caso da pós-produção de som, a edição de diálogos deve atentar


para características da voz ou da emissão do ator que possam cola-
borar para a construção do personagem e ressaltá-las.

No filme Cidade dos homens (Paulo Morelli, 2007), o assistente de


edição de diálogos, João Caserta, atentou para dois fatos durante
o processo: (1) existiam muitas tomadas de som de choro e balbu-
cios de Cleyton, filho de Acerola, no material do som direto bruto;
(2) o conflito de Acerola com o filho era crucial para a construção
do drama que gira em torno das mudanças e responsabilidades da 181
vida adulta. Refletindo a respeito, resolvemos inserir expressões de
Cleyton em alguns momentos do filme. Do ponto de vista estético,
obtivemos pontuações sonoras que contribuíram para a constru-
ção da narrativa e da realidade das cenas. Os resmungos da criança
soam como um relógio despertador. O filho está presente e Acerola
não pode fugir dele. O apelo à presença da sonoridade do balbucio
infantil, nesse caso, retrata um exemplo de auxílio na construção
da narrativa, inserindo um elemento para fornecer informações de
reforço ao receptor da mensagem.

No filme Chega de Saudade (2007), a diretora Laís Bodanzky preferiu


neutralizar ao máximo o ‘s’ natural da língua da atriz carioca Maria
Flor para a personagem Bel. Dessa forma, a edição de diálogos foi res-
ponsável por escolher as tomadas de som menos carregadas de sotaque
ou dublar falas, atentando para a interpretação, que não pudessem ser
substituídas, primando pela neutralidade da emissão vocal.

Portanto, a edição de diálogos pode ser uma tarefa técnica, no en-


tanto, o trabalho permite outras possibilidades. A utilização da voz

Capítulo 5 – A prática de edição e mixagem de som no audiovisual


como objeto sonoro, a relação das características do som da fala
com os traços particulares de cada personagem e as possibilidades
de criação artística que os processos de dublagem dos atores e/ou
vozerio permitem fazem das vozes elementos importantes na cons-
trução da narrativa do filme.

Grupo 2: Foley

A prática de reproduzir os sons da cena em sincronia com a imagem


denomina-se “foley”, em homenagem ao seu idealizador Jack Foley.
Nascido em 1891, em Nova York, e falecido em 1967, na Califórnia,
Foley deixou como legado a invenção dessa técnica. Assim que che-
gou à Califórnia, seu primeiro contato com cinema foi trabalhando
como dublê de personagens, ainda na época do cinema mudo. Du-
rante a primeira guerra mundial, mudou-se para uma pequena cida-
182 de chamada Bishop. O espírito empreendedor de Jack e o interesse
no crescimento da pequena cidade, fez com que ele convencesse
os comerciantes do local a investir na indústria do cinema. Devido
à propaganda feita do local, em pouco tempo, o vilarejo tornou-se
locação de superproduções.

O final da década de 1920 marcou uma revolução nas técnicas cine-


matográficas. A Warner Brothers desenvolveu o sistema Vitaphone
e investiu em pesquisas para o sincronismo de efeitos sonoros e de
músicas com a imagem. Don Juan (Alan Crosland, 1926) se tornou
um marco do cinema sonoro, pois foi o primeiro longa-metragem
a utilizar o sistema Vitaphone. Porém, foi em 1927 que o filme O
cantor de jazz apresentou ao público a grande inovação: sequências
de diálogos sincronizados. Na ocasião do lançamento do filme, a
Universal tinha acabado de filmar Boêmios (Showboat, Harry Pol-
lard, 1927) ainda nos métodos antigos, em forma de cinema mudo.
Jack percebeu a oportunidade que surgia com o novo sistema da
Warner e propôs um trabalho experimental de inserção de eventos
sonoros no filme.
De acordo com Yewdall (2007, p. 403), a técnica de inserção de

O som do filme: uma introdução


efeitos sonoros foi sendo aperfeiçoada, de modo que ficou difí-
cil buscar em bancos de som elementos sonoros apropriados para
cobrir os movimentos sutis e delicados, principalmente no que diz
respeito aos objetos de cena (props). Da mesma forma que os diálo-
gos, os efeitos sonoros foram tão bem recebidos pelo público que se
criou a necessidade da audição desses efeitos. Jack Foley, de modo
a aperfeiçoar a técnica, iniciou o procedimento de gravação dos
passos dos atores em sincronismo com a imagem, da forma como é
feito hoje. Portanto, ele foi o pioneiro do processo de regravação de
sons em sincronia com a imagem. Jack interpretava todos os sons
relativos a determinada cena em tempo real e de uma só vez, pois a
possibilidade de edição sonora ainda era limitada; Yewdall (2007, p.
403) usa para esse processo o termo sound direct-to-picture.

André Azoubel define foley como os sons resultantes da interação


do personagem com o meio, os quais precisam ser gravados em 183
sincronia, reafirmando os movimentos visuais dos atores e refor-
çando a intenção dos personagens (informação verbal)48. Segundo
Purcell (2007, p. 32), o foley é responsável por auxiliar a narrativa,
acrescentar cor e textura sonora às cenas, bem como ajudar a es-
conder erros de filmagens e problemas nas falas, principalmente
quando as dublagens estão em questão. Nesses casos, o processo
cria a ambientação necessária para que os diálogos regravados não
soem falsos.

Definindo foley como os sons resultantes da ação do ser humano,


esses movimentos sonoros são divididos em três grupos: (steps) pas-
sos, (clothes) roupa e (props) objetos de cena. Juntos os sons for-
mam um contraponto, criando a ambiência sonora da ação principal
e auxiliando na construção da ficção.

Os sons captados pelo som direto são utilizados apenas para som

48 Informação fornecida por André Azoubel, em fevereiro de 2009.

Capítulo 5 – A prática de edição e mixagem de som no audiovisual


guia. Em vez de reproduzir fielmente os sons de cada cena, os artis-
tas de foley recriam os sons dramaticamente, muitas vezes usando
fontes sonoras diferentes. Flores (2006) afirma que “não é o uso
do mesmo objeto ou da mesma fonte sonora, que garante a pos-
sibilidade de um som ser expressivo, que tenha um valor enfático.
Isto se deve mais à qualidade do som intrinsecamente, ou seja, às
suas qualidades enquanto ‘objeto sonoro49’[...].” (FLORES, 2006, p.
112). O supervisor de foley é o profissional que possui a habilidade
de perceber quais sons são esteticamente importantes para a obra e
de que forma eles precisam ser regravados para que desempenhem
a função desejada.

Existem três etapas para a produção dos sons de foley: o spotting,


a gravação e a edição. Logo após a definição do conceito sonoro do
filme, iniciamos o trabalho da produção dos sons de sala. O filme
184 com o som guia provindo da edição de imagem é analisado para
realizarmos um spotting: um levantamento de todos os sons que
necessitam ser gravados. Em primeiro lugar, são definidos os pares
de calçados para cada um dos personagens principais. Depois, o som
da roupa que complementa o andar e os possíveis adereços: pul-
seira, brinco, colar ou algo que seja característico e contribua para
demarcar e definir o caráter do personagem. Em seguida, os objetos
da cena que compreendem a parte mais complexa, tanto pela varie-
dade de objetos utilizados quanto pela dificuldade de se produzir
determinados timbres e intenções.

Com a lista em mãos, o artista de foley possui duas tarefas. Primei-


ro, ele vai para a sala de gravação, estuda, pesquisa e experimenta
os sons dos mais variados objetos em busca de uma sonoridade
ideal. Em seguida, assiste ao filme outras vezes, estuda os perso-

49  O termo objeto sonoro, utilizado pela autora, denota o sentido criado por Pierre Schaeffer na
década de 50. Em uma analogia simples com objetos luminosos, Schaeffer diz que “o que o ouvi-
do escuta não é nem a fonte, nem o ‘som’, mas verdadeiramente objetos sonoros, do mesmo jeito
que aquilo que o olho vê não é diretamente a fonte, ou mesmo a sua ‘luz’, mas objetos luminosos”
(SCHAEFFER, 1993, p. 72).

O som do filme: uma introdução


nagens e ensaia os movimentos para que a gravação seja realizada
mais rapidamente. Azoubel relata que alguns artistas experientes
- como Vanessa Theme Ament50, com a qual teve a oportunidade
de trabalhar na Columbia College, em Chicago - costumam gravar
sequências de eventos sonoros em apenas uma tomada de som.
A experiência profissional é tão grande que o artista de foley fica
com os objetos em mãos ou perto dele e do microfone e, em tem-
po real, executa os movimentos, sem que seja necessário parar a
tomada de som para a troca de objetos ou para reposicionamento.
Jack Foley desenvolveu métodos semelhantes. Para gravar o som
dos passos de muitas pessoas juntas, ele utilizava várias bengalas
‘calçadas’ com diferentes sapatos.

A gravação é iniciada, e nesse momento o artista de foley con-


centra-se para interpretar dramaticamente o movimento dos ato-
res em sincronia. A sala de gravação é, na verdade, um depósito 185
de objetos dos mais variados tipos, tamanhos e materiais e possui
diversos tablados: madeira, taco, concreto, cerâmica, terra, areia,
carpete etc. Além disso, contém uma televisão ou uma tela onde
a imagem pode ser projetada para que o artista observe e siga
sonoramente os movimentos que vê. A Figura 15 mostra uma
sessão de gravação de foley no estúdio 1927, com o artista An-
derson Tieta51.

50 Autora do livro The foley Grail: the art of performing sound for film, games and animation.
51 Durante as aulas, nas práticas de gravação de foley, é comum ouvirmos a pergunta: “professora,
não precisa bater claquete?”. Talvez esse seja o momento de esclarecer isso, pois da forma como a
gravação é feita, dentro de um programa de gravação de som e em sincronia com a imagem, não ne-
cessitamos de claquete, pois o editor de foley recebe o material sonoro já sincronizado com a imagem,
de acordo com a precisão do artista de foley.

Capítulo 5 – A prática de edição e mixagem de som no audiovisual


Figura 15
186

As decisões relacionadas a timbre, escolha do material, interpretação


e carga dramática atribuída aos sons são responsabilidade do artis-
ta. Essas decisões são de extrema importância para a construção de
uma trilha sonora interessante e rica em detalhes. Os sons de foley
reforçam o movimento dos atores, atribuindo uma carga emocional
humana à imagem da tela. Elisha Birnbaum (2005), artista de foley,
fala da importância da carga emocional atribuída à interpretação do
som relacionado ao movimento dos atores em cena:

É muito importante ter-se um sentimento para com o pró-


prio filme. Você precisa estar envolvido com os personagens
na película. Meu objetivo é criar no estúdio um som que
seja crível e que vá casar ou incrementar o som direto. Você
tem que ser criativo, inventar sons, experimentar, e você tem
que abrir sua memória para reconhecer os sons que você
quer criar. Estou sempre ouvindo os sons ao meu redor e,
mesmo hoje, com muitos anos de experiência, ainda estou

O som do filme: uma introdução


descobrindo novos sons. Também acho que ser uma espé-
cie de ator também ajuda, especialmente ao gravar passos.
Você tem que ser capaz de reconhecer os movimentos de
corpo do ator na tela e repetir esses movimentos. Se você
tiver sucesso, irá soar como se tivesse sido gravado em loca-
ção. Também é muito importante ser capaz de focar comple-
tamente na ação que está acontecendo na tela e repetir es-
ses movimentos. [...] Os ruídos de sala são aquilo que torna
uma trilha sonora rica. Imagine uma cena com diálogo, mas
sem passos, sem sons de utensílios, sem ruído de mexida de
roupa, nenhum outro som gerado pelo ser humano, e sem
sons específicos que não existem e devem ser criados no es-
túdio a partir do nada. Uma trilha sonora de filme soa vazia.
O foley acrescenta um sentido de realidade ao filme, dá vida
a ele. (BIRNBAUM apud MANZANO, 2005, p. 52).
187
Depois da gravação, vamos para a etapa final que diz respeito à
edição dos sons gravados. O editor de foley possui duas tarefas
principais: cuidar da sincronia e usar a criatividade.

No que diz respeito ao sincronismo, devemos atentar para a sincro-


nia relativa, pois algumas vezes o sincronismo perfeito não é fun-
cional. Quando o ator realiza vários movimentos que produzem sons
semelhantes ou com características sonoras parecidas, evitamos a
confusão auditiva do ouvinte suprimindo ou deslocando levemente
um dos sons para que o todo seja compreendido. Na segunda ta-
refa que está relacionada à criatividade do editor, devemos utilizar
a sensibilidade. Uma técnica comum é a utilização de mais de um
elemento para a obtenção da sonoridade desejada. O ato de sentar-
-se em uma cadeira, por exemplo, pode ser criado somando três ele-
mentos: o impacto de uma roupa dura, o impacto em uma madeira
e o impacto em algo mais suave como uma almofada. Os níveis de
intensidade desses três sons são ajustados pelo editor para que o
mixador compreenda a ideia sonora relativa ao movimento.

Capítulo 5 – A prática de edição e mixagem de som no audiovisual


O filme Moça com brinco de pérola (Girl with a pearl earring, Peter
Webber, 2003), adaptado do romance de Tracy Chevalier - que por
sua vez é inspirado no quadro do pintor holandês Johannes Ver-
meer, do século XVII -, além de possuir uma trilha sonora muito bem
construída, composição e orquestração da música original dialogando
com a narrativa, possui um trabalho de foley que merece destaque.

O filme inicia apenas com a música e a imagem de uma tela preta.


Aos 11 segundos, um som aparece com a música, ainda antes de
vermos o primeiro frame de imagem. Três segundos depois, o som é
identificado, pois vemos a primeira imagem: a personagem descas-
cando uma cebola. Na sequência, intercalando planos de apresen-
tação do ambiente ao espectador e closes nos movimentos de Griet
(Scarlett Johansson), ouvimos os sons do manuseio dos alimentos:
o corte do repolho, da cebola, da cenoura, da beterraba, a faca
188 e o prato em contato com a mesa. A cena termina a 1 minuto e
26 segundos, após a chegada da mãe da menina na cozinha, com
a certeza de que a primeira parte do mundo sonoro do filme foi
apresentada para o espectador. Assim como os props, os passos da
personagem Griet são resultado de uma interpretação carregada de
dramaticidade e significado.

Grupo 3: Efeitos

Compõem os efeitos todos os outros sons acrescentados ao filme


que não são, necessariamente, gravados em sincronia com a ima-
gem. Alguns autores incluem o foley na categoria dos efeitos, po-
rém, essa inclusão acontece quando do uso generalizado do termo:
todo som que não é música, nem diálogo é efeito sonoro. No nosso
caso, trataremos o foley separadamente.

Os efeitos são divididos em três categorias, de acordo com a função


desempenhada: (1) backgrounds, os sons que compõem os ambien-
tes, (2) hard effects, efeitos que são possíveis de serem vistos pelo

O som do filme: uma introdução


espectador, relativos a uma fonte sonora on frame; (3) sound ef-
fects, que são os efeitos não literais, não indiciais e que não devem
ser submetidos a escutas causais, pois não são representativos.

5.2 Sons do ambiente

O objetivo da composição do ambiente, além de auxiliar na locali-


zação sonora geográfica e espacial do espectador, é criar uma inde-
pendência para os sons, possibilitando a utilização criativa de sons
distintos de maneira simultânea. Yewdall diz que a mágica da com-
posição do background ocorre quando pares de arquivos estéreos
são sobrepostos, pois essa ação faz com que um novo arquivo seja
criado. “Dois sons tocados juntos não são 1+1=2. Eles se transfor-
mam em 1+1= 3 ou 4. Eles se tornam um novo som por completo”
(YEWDALL, 2005, p. 303). 189

Para fins didáticos, vamos dividir esse estudo na apresentação do


ambiente (BG) e dos eventos pontuais do ambiente (BG-FX), que
juntos compõem a ambientação da cena.

O background, comumente chamado BG, nada mais é do que o


som ambiente de determinada cena, sempre denso e contínuo, sem
eventos sonoros pontuais que possam se destacar. Se a ação se pas-
sa no centro de uma cidade, provavelmente o BG será construído
por sons contínuos de movimentação de carros e por pessoas con-
versando. Ao contrário, se a atriz principal encontra-se em meio a
uma floresta admirando árvores, flores e toda a natureza, o BG será
constituído por sons de grilos, pássaros, vento, água de um riacho
que corre ali por perto etc.

No caso do BG, os arquivos utilizados são, em sua grande maioria,


constituídos por um som constante. A utilização de um arquivo de
ambiente que contenha mar e pássaros juntos, por exemplo, fica

Capítulo 5 – A prática de edição e mixagem de som no audiovisual


limitada em relação a possibilidades de edição, equalização e mixa-
gem, devido à amplitude de frequências distintas dos dois sons e à
obrigatoriedade da presença constante de sons de mar com o canto
dos pássaros. Por outro lado, se tivermos dois arquivos separados,
a possibilidade de controle aumenta significativamente, pois caso a
câmera filme o mar, podemos ter um leve acréscimo na intensidade
desse som; caso filme o céu, ou árvores próximas da praia, podemos
intensificar o som dos pássaros e, dessa forma, caracterizar a cena
de forma mais clara.

Na edição, os arquivos são agrupados por semelhança de sons e com-


binados de forma a criar uma boa espacialização. Cada grupo de BG é
criado para funcionar sozinho, como um ambiente. Podemos ter quan-
tos grupos de ambientes forem necessários, dependendo da necessida-
de e da possibilidade de criação permitida pela cena. Um plano-sequên-
190 cia longo, sem ação, fixo em algo ou que contemple a paisagem, por
exemplo, abre espaço para que os sons do ambiente apareçam. Muitos
tipos de som são utilizados simultaneamente ou de forma intercalada
durante o longa-metragem. Em momentos de muita ação, os sons am-
bientes podem ficar em segundo plano. Porém, nas cenas específicas
em que a imagem está localizando o espectador na cena, o ambiente
ganha espaço para demonstrar a riqueza da construção de vários sons
ou a simplicidade de um som bem escolhido.

Quanto aos sons usados como BG-FX (background effects), Flores


(2006, p. 115) os denomina de “ruídos-sinal”, por serem indiciais.
São sons isolados e específicos que exercem a função de situar o
espectador em determinada sequência, de forma que geralmente
aparecem em maior quantidade no início da cena, quando o espec-
tador precisa de informação sonora para situar-se na trama. Schafer
(2001, p. 185) usa o termo evento sonoro para representar tais sons.
Um evento sonoro é um objeto sonoro que leva em conta os aspec-
tos referenciais e semânticos do som, não somente as suas caracte-
rísticas físicas e psicofísicas.

O som do filme: uma introdução


Yewdall (2005, p. 203) ressalta a importância do ambiente, afirman-
do que esses são os únicos sons presentes do início ao fim do filme.
Diálogos, dublagens, sons de foley e efeitos não estão presentes o
tempo todo. Dado esse fato, os sons ambientes, segundo ele, são
vitais na pós-produção de som.

O processo de edição sonora para ambientes também começa pelo


spot. É necessária uma primeira apreciação do filme para apreender
a perspectiva do espectador, aquele que assiste ao filme uma única
vez, para captar as cenas importantes e as possibilidades de cria-
ção sonora geradas por filmagem e montagem de imagens. Nesse
caso, o spot consiste em um levantamento dos ambientes onde a
ação acontece, com propósito de captar os detalhes importantes e
relacioná-los com a trama.

Vejamos o roteiro abaixo para realizar um exercício de criação: 191

PLANO 1 – Praia 30”

Plano geral da praia ao amanhecer. O ponto de vista é subjetivo, do alto


de um prédio beira mar. A cidade está amanhecendo de frente para o mar.

PLANO 2 – Favela 20”


Uma câmera parada foca, em plano médio, pessoas descendo o morro de
uma favela. Os assuntos são os mais diversos. A população está descendo
o morro em direção à cidade para iniciar o dia de trabalho.
PLANO 3 – Cozinha de um apartamento 40”
Família toma café da manhã.
PLANO 4 – Cozinha de um barraco na favela 30”
Família toma café da manhã.

Suponhamos o spot de ambientes para essas cenas imaginando que


os cortes sejam abruptos, sem transições, e que a história se desen-

Capítulo 5 – A prática de edição e mixagem de som no audiovisual


volva com o objetivo de demonstrar o contraste existente entre as
famílias de classe média e as famílias de classe baixa do Brasil.

O primeiro plano pode ter um grupo de BG com sons de trânsito


leve e um grupo com pássaros urbanos. Na escadaria da favela po-
demos ter um grupo de pássaros, trânsito um pouco mais pesado
e um grupo de vozerio, todos eles densos, compostos por bastante
eventos sonoros. No apartamento podemos ter um BG silencioso,
com apenas um room tone, para criar um contraste com o plano
anterior. No quarto plano, novamente o mesmo grupo de pássaros,
o grupo de trânsito e o vozerio usado no plano 2. Dessa forma,
podemos sugerir ao espectador que esse barraco fica próximo da
escadaria do plano 2, pois possui como base o mesmo ambiente.

Depois de estabelecidas as massas sonoras, ou os backgrounds,


192 iniciamos a inserção dos ruídos-sinal. No primeiro plano podemos
ter uma moto passando da direita para a esquerda, seguida de
um pássaro que canta três vezes na direita. O corte para a favela
deve ser realizado com a inserção imediata de vários ruídos-sinal,
como um cachorro grande que late no surround direito, respon-
dido imediatamente por um cachorro de pequeno porte e latido
agudo na direita frontal. No surround esquerdo, podemos ter uma
fonte pequena de água escorrendo durante a cena e, por fim, o
canto de dois pássaros na esquerda da frente. No café da manhã
do apartamento, podemos ter apenas o som de um motor de ele-
vador, que não precisa necessariamente estar no início da cena. No
momento do corte para o barraco, ambientamos novamente com
muitos eventos. A fonte não existe mais, pois era característica do
ambiente da escada, então podemos colocar duas mulheres con-
versando no surround esquerdo, o som de vassoura contra o chão
na esquerda da frente; crianças brincando na direita frontal. Esses
eventos citados como ruídos-sinal são eventos sonoros de curta
duração temporal e que exercem função de pontuação, colorindo
o BG inserido anteriormente.

O som do filme: uma introdução


A construção do ambiente para as cenas de um filme segue esse
tipo de raciocínio. No entanto, o exemplo acima citado excluiu a
influência dos elementos sonoros que não desempenham a função
de ambientação. Para a proposta do exercício, estamos supondo que
sejam planos de apreciação e localização do espectador no ambiente
sem nenhuma ação principal acontecendo.

Partindo para análise de exemplos, vejamos o filme Desejo e repa-


ração (Atonement, Joe Wright, 2007). Nesse filme, a trama acon-
tece devido ao sentimento de culpa de Briony (Saoirse Ronan), que
quando criança depõe contra o namorado da irmã em uma situação
de estupro sem ter certeza de que ele era realmente culpado. Retra-
ta cenas de relacionamento familiar juntamente à confusão mental
da irmã mais nova perante o relacionamento da irmã mais velha.
O início da trama se passa no verão em uma casa de campo e a
ambientação ressalta essas características da narrativa e da imagem 193
de forma bem sucedida. O zumbido de moscas e abelhas está sem-
pre presente, enfatizando as reclamações dos personagens sobre a
temperatura elevada do local. As cenas externas da casa merecem
destaque, como podemos ouvir aos 10 segundos ou aos 26 segun-
dos, pois são ricas em eventos sonoros naturais, tais quais grilos,
pássaros, moscas e timbres de ventos diferenciados.

Da mesma forma, no filme Tropa de elite (José Padilha, 2007), te-


mos locais que são caracterizados pela ambientação, como as cenas
de treinamento do Bope. Leandro Lima, técnico de som direto do
filme, realizou gravações extras de ambientes, dos locais escolhidos
como set de filmagem. Essas gravações foram utilizadas na pós-
-produção, pois a ambientação da locação escolhida para o treina-
mento era acusticamente muito interessante, bem característica e
permeada por animais exóticos. O material foi essencial para criar
um contraste de ambientação entre as cenas de treinamento do
Bope e as cenas de centro urbano.

Capítulo 5 – A prática de edição e mixagem de som no audiovisual


5.3 Hard effects

A definição de hard effects, segundo Holman (2002, p. 180), é


simples: vê-se um carro, ouve-se um carro. Os hard effects são
todos os efeitos que não são produzidos diretamente pelo ho-
mem, como os de máquinas, automóveis, armas de fogo, aviões
ou elementos difíceis de serem criados em sincronismo pela equi-
pe de foley. Em contraposição ao que definimos em foley, diría-
mos que são sons não resultantes de interação direta do homem
com o meio e que, por isso, não precisam ser gravados em sin-
cronia com a imagem.

De modo diferente ao que acontece com o foley, a edição dos efei-


tos pode começar logo no início do trabalho, pois muito do material
já existe em bancos de sons específicos. Quando gravações são ne-
194 cessárias, o spotting pode ser feito mesmo com o filme em processo
de edição de imagem, pois não existe necessidade de sincronia com
a imagem no momento da gravação do som, apenas de estudo e
compreensão da sonoridade. Essas gravações são posteriormente ar-
mazenadas em bancos de sons próprios e, devido a isso, é importan-
te que o objeto da gravação seja registrado por completo, para que
possam ser úteis em situações diversas. Segue uma relação de sons
que devem ser captados, baseada no proposto por Yewdall (2005, p.
194) no caso de um carro específico:

• porta do motorista abrindo e fechando;


• porta do passageiro abrindo e fechando;
• porta-malas abrindo e fechando;
• porta-luvas abrindo e fechando;
• capô do carro abrindo e fechando;
• cinto de segurança – caso seja característico;
• ligar e desligar o carro;
• ligar e acelerar o carro em velocidades diferentes;
• frear o carro algumas vezes;

O som do filme: uma introdução


• captação dos ambientes interno e externo do carro em movimento;
• carro circulando em superfícies diversas: asfalto, calçamento,
terra etc.

É importante ressaltar que a intenção do som não pode ser esque-


cida. A gravação de todos os sons listados acima, com pelo menos
três níveis de intensidade diferentes de interpretação, faz com que
os sons possam ser utilizados em situações diversas. Determinado
som, mesmo que proveniente de uma fonte sonora adequada pode
não combinar com a imagem se não estiver gravado com a intenção
apropriada.

Para a edição, utilizamos sons provindos de basicamente quatro


meios: (1) gravações realizadas especificamente para o filme, com-
provada a necessidade no spotting; (2) bancos de som próprios; (3)
bancos disponíveis no mercado para compra, tais quais Hollywood 195
Edge e Sound Ideas; (4) sons captados pelo técnico de som direto.

No clássico Era uma vez no oeste (Once upon a time in west, Ser-
gio Leone, 1968), ouvimos, durante toda a primeira cena do filme,
o rangido de um moinho de vento que só consegue ser identifica-
do aos 3’58”, quando a imagem do moinho aparece pela primeira
vez. O efeito sonoro criado para o movimento das pás do moinho
de vento antecipa a imagem, intrigando o ouvinte durante quatro
minutos até se apresentar efetivamente na narrativa, fazendo jus à
característica de efeito sonoro on frame, visível pelo espectador. A
cena é longa e lenta e o som do rangido do moinho pode se tornar
irritante pela constância. O som permanece até os 5’30”, quando é
interrompido por dois minutos, retornando aos 7’30”. O retorno do
efeito sonoro acontece logo depois da resolução da problemática
do personagem com a mosca, que também irritava com seu zunido,
sendo uma lembrança auditiva ao espectador de que o som irritante
continua ali. O moinho é esquecido aos 8’56”, quando a chegada
do trem na estação desloca a atenção do espectador para a ação.

Capítulo 5 – A prática de edição e mixagem de som no audiovisual


O filme Cartas de Iwo Jima (Letters from Iwo Jima, Clint Eastwood,
2006) retrata a batalha entre o Japão e os EUA durante a Segunda
Guerra Mundial, pela posse da ilha de mesmo nome. A equipe de
sound design ganhou Oscar de melhor edição de som. No caso dos
hard effects, vamos falar do trabalho de criação dos efeitos para as
bombas e os tiros, que inclusive auxiliam no desempenho da função
de ambientação do local. O filme foi realizado com A conquista
da honra (Flags of four fathers, Clint Eastwood, 2006), e a equipe
de efeitos trabalhou na gravação de bombas e tiros pensando nas
necessidades sonoras das duas histórias. Alan Murray, supervisor de
edição de som, relata em Yewdall (2005, p. 185) que a gravação
dos efeitos sonoros foi feita com vários microfones em diferentes
posições para captar as características dos sons de acordo com a
distância do ouvinte. Posteriormente, as tomadas de som foram so-
madas e mixadas para que gerassem o som do tiro ou da bomba por
196 completo. Efeitos sonoros de guerra são ouvidos do início ao fim do
filme, estrategicamente posicionados.

5.4 Sound effects

A criação de sound effects é baseada em outra concepção. Esses


efeitos não remetem a nada real nem a nenhum objeto de cena.
Eles são concebidos para serem efeitos dramáticos e não signifi-
cantes – no sentido de representar algo físico. São criados pelo
sound designer a partir de processamento e síntese digital. Os
sound effects são sons não literais, pois não estão diretamente
associados a ações, situações ou objetos físicos. Dessa forma, ocu-
pam a mesma função que a música: são sons criados com objetivo
dramático e narrativo para determinada montagem de imagens52,
Ben Burtt afirma:

52 A proximidade dos sound effects com a música aumenta à medida que a composição musical uti-
liza instrumentos não convencionais e adentra no campo da música eletroacústica.

O som do filme: uma introdução


Penso no som como sendo literal e não-literal. O lado literal
é como o diálogo, quando você vê alguém falando. Do outro
lado, você tem a música como o não-literal – como uma coi-
sa muito abstrata, uma artificialidade, um estilo. Em algum
lugar entre os dois estão os efeitos sonoros. (BURTT apud
SONNENSCHEIN, 2001, p. 197).

De modo geral, essa definição resume muito do que já falamos até


agora. Temos os diálogos, o foley, os ambientes e os hard effects
que, mesmo utilizados de forma dramática, são rapidamente remeti-
dos a uma escuta causal e à busca pela fonte sonora física. No caso
dos sound effects não existe necessidade de busca e associação,
pois as características dos sons utilizados não sugerem ao ouvinte
associações literais.

A criação desses sons acontece de duas formas: (1) processamento e 197


manipulação de sons naturais com o intuito de modificar as carac-
terísticas físicas dos mesmos, descaracterizando-os e dificultando a
escuta causal; (2) manipulação e criação de ondas sonoras prove-
nientes de fontes eletrônicas ou digitais.

A primeira dificuldade encontrada por editores de efeito no processo


de composição dos sound effects é a questão da ausência de repre-
sentatividade. Assim como retratado pelo sound designer Eduardo
Virmond, trabalhar com sound effects é um desafio, pois o processo
de criação, edição e composição é diferente dos outros efeitos. Quan-
do se trata de ambientes ou hard effects compostos literalmente, um
pouco de bom senso da parte do editor faz com que a criação sonora
seja coerente com a imagem e com a narrativa (informação verbal)53.
Porém, quando o objetivo da edição são os sound effects, da mesma
forma que em composição musical, é importante a definição de um
conceito ou a escolha de um tema que conduza a criação.

53 Informação fornecida por Eduardo Virmond, em janeiro, 2009.

Capítulo 5 – A prática de edição e mixagem de som no audiovisual


A composição dos sound effects está mais relacionada com a nar-
rativa e com elementos fílmicos (luz, figurino, cenários e efeitos
visuais) do que com aspectos de referencialidade à fonte sonora.
Para tanto, o sound designer deve atentar para a criação de efeitos
sonoros que dialoguem com os aspectos relacionados à trama e co-
laborem na criação de “climas” (alegria, suspense, horror) dos mais
variados nas cenas.

Embora os sound effects sejam apresentados de forma semelhante


aos efeitos visuais, em momentos onde a narrativa exigir ou permitir
uma fuga sonora ou visual da realidade, eles possuem naturezas di-
ferentes. Um efeito visual geralmente é acompanhado de um efeito
de som, mas o contrário nem sempre é válido; efeitos sonoros são
acrescentados a todo o momento no filme independente do uso de
efeitos visuais.
198
Citaremos três possibilidades de uso do sound effects: (1) em con-
junto com efeitos visuais diversos para reforçar momentos de irrea-
lidade; (2) sublinhando títulos, cartelas e créditos, para estabelecer
sonoridades temáticas relacionadas à história do filme; (3) reforçan-
do foley e hard-effects para adicionar impacto e reforçar climas de
suspense, tensão, alegria etc.

No filme A última profecia (The mothman profecies, Mark Pelling-


ton, 2002), os efeitos sonoros criam um clima de suspense desde
o início, quando aparecem sublinhando o efeito visual da libélula.
Logo em seguida, também pontuam o título do filme e terminam
quando da primeira interferência ouvida no telefone por John (Ri-
chard Gere).

A 1h01’ do filme Huckabee’s – a vida é uma comédia (I heart Huc-


kabees, David O. Russell, 2004), o investigador pede ao personagem
Albert (Jason Schwartzman) que escute o que ele quer dizer. Duran-
te o relato da história, as faces dos personagens se transformam em
peças de quebra-cabeça e se deslocam, flutuando e misturando-se

O som do filme: uma introdução


no ar. Logo em seguida, quando essa “parada no tempo” é inter-
rompida pela continuação da história, as peças do quebra-cabeça
caem no chão e as faces dos atores são recompostas. Sublinhan-
do esse efeito visual, temos um efeito sonoro pontual, inserido na
composição musical, que acompanha o movimento e desempenha
claramente a função de ressaltar o efeito de imagem. A espacializa-
ção dos sound effects no surround faz com que o espectador, assim
como os dois personagens que atuam no momento, fiquem imersos
na suposta “parada no tempo”. No retorno à realidade, os sons vol-
tam a existir somente nas caixas frontais, como na maioria das ou-
tras cenas do filme. Variações desses efeitos, sonoros e visuais, são
usadas durante todo o filme, inclusive no menu principal do DVD.

O filme Cidade dos Homens apresenta os sound effects ressaltando


sons figurativos. O desfecho do filme começa com o bando do Ma-
drugadão se preparando para invadir o morro. A cena é tensa, resul- 199
tado de um conflito de forças físicas e psicológicas, já que a disputa
pelo morro ocorre em meio ao abalo da amizade dos personagens
Acerola e Laranjinha. Ao ruído do motor das Vans, usadas pelo ban-
do para subir o morro, adicionamos um efeito de som grave que faz
com que o espectador note ainda mais a presença dos automóveis,
de forma a reforçar a tensão da cena. No filme A última profecia,
podemos ouvir aos 7’24” um efeito de som grave adicionado ao
impacto da cabeça de Mary sobre o vidro na hora do acidente. Nes-
ses exemplos, verificamos que sound effects de frequências graves
podem ser somados aos sons de foley e aos outros efeitos sonoros
quando o editor pretende reforçar a tensão, aumentando a expecta-
tiva do ouvinte com relação a determinado acontecimento.

Para finalizar a explicação sobre edição de som, observe na Figura


16 o recorte de uma sessão de edição com poucos elementos e vi-
sualize a distribuição horizontal (os sons dispostos na linha do tem-
po) e vertical (relação estabelecida entre eles) dos eventos sonoros. A
primeira pista (nomeada DX + ADR na coluna à esquerda) contém os
diálogos e as dublagens. As três pistas seguintes (FY) contêm os sons

Capítulo 5 – A prática de edição e mixagem de som no audiovisual


de foley. Em seguida há cinco pistas de sound effects (SFX), e depois
três pistas com ambientes e efeitos de ambientes (BG + BGFX). Não
existem hard effects nessa cena do filme A poeira dos pequenos
segredos (Bertrand Lira, 2012).

200

[Figura 16]

5.5. Mixagem

Depois da edição de som, todo o material sonoro chega ao mixador,


que é o profissional responsável por ajustar os níveis de intensidade,
equalizar e espacializar corretamente os sons, para que estes se tor-
nem integrados à imagem.

De acordo com Holman (2002, p. 1999), mixar significa destilar


e purificar o som gravado por meio de processos de manipulação
sonora, fazendo com que cada elemento seja representado na tri-
lha sonora da melhor maneira possível. Segundo Amyes (2005, p.
233), existem dois aspectos da mixagem que podem ser discutidos:
o técnico e o criativo. De acordo com ele, o aspecto técnico consiste

O som do filme: uma introdução


na junção ideal entre som e imagem, proporcionando perspectivas
sonoras e visuais corretas. O objetivo é proporcionar ao espectador
a impressão de que cada som ouvido provém da imagem que está
sendo vista na tela. Já no aspecto criativo, a mixagem pode auxiliar
no sentido de produzir maior coesão, enfatizar sentimentos e situa-
ções como a dramaticidade, beneficiando a imagem.

De acordo com Amyes, são funções da mixagem:

(1) Ressaltar a imagem e os efeitos visuais;


(2) Adicionar perspectiva tridimensional;
(3) Ajudar a localizar geograficamente a imagem;
(4) Adicionar efeito dramático;
(5) Criar contrastes por mudanças de intensidade sonora;
(6) Deixar o som inteligível, fácil para ouvir e compreender,
independentemente do meio em que ele esteja sendo repro- 201
duzido (AMYES, 2005, p. 234).

É importante ressaltar que o mixador não cria sons sozinho. Um


bom trabalho, tanto técnico quanto criativo, depende necessaria-
mente de uma edição sonora consistente. Grosso modo, podemos
dizer que a edição é responsável por criação e inserção do evento
sonoro, enquanto a mixagem é responsável por colocar os eventos
na perspectiva correta da imagem54.

Em cenas com pouca movimentação, poucos atores, planos uni-


formes, sem situações que necessitem de mudança de perspectiva
sonora, o trabalho da pós-produção de som e, por consequência,
do mixador, pode passar despercebido pelo ouvinte. No entanto,
existem situações em que o som tem importância significativa para
que a ação aconteça.

54 Vale a pena lembrar que um filme é resultado de trabalho em conjunto. No caso do som, existe
uma interdependência das etapas, portanto, as escolhas técnicas e estéticas devem ser realizadas em
concordância.

Capítulo 5 – A prática de edição e mixagem de som no audiovisual


Suponhamos a seguinte cena:

PLANO 1 – (QUARTO – janela e porta fechada)


Menina sentada na cama lê um livro.
Menina ouve algo ao longe, como se alguma torneira estivesse semiaberta,
gotejando.
* Usa a localização sonora espacial para identificar de onde vem o som e
nesse momento o espectador precisa ouvir o som da mesma perspectiva
sonora que o personagem, para que entenda o porquê da leitura do
livro ter sido interrompida.

Menina fecha o livro, levanta da cama, calça o chinelo e começa a


andar em direção à porta do quarto, ainda ouvindo a goteira.

Abre a porta e a intensidade da gota d’água aumenta, ela percebe a


gota mais presente.
202 Continua andando pelo corredor e a cada passo a goteira chega mais
perto do personagem.

PLANO 2 – (ÁREA DE SERVICO – porta fechada)

A câmera faz um close da torneira do tanque da área de serviço.


* Ouvimos em primeiro plano a goteira e, ao longe, os passos da menina
se aproximando do local. O espectador está dentro da área de serviço.

PLANO 3 – (PORTA – lado de fora da área de serviço)

Menina para em frente à porta, pega o trinco, puxa a maçaneta e abre


a porta.
* Nesse instante ouvimos a goteira com mais intensidade sonora e me-
nos reverberação, pois a personagem achou a fonte emissora do som e
está no mesmo ambiente que ela.

Uma cena como a descrita acima precisa de som para existir. Exem-
plo de uma história que utiliza o som como um elemento atuante,
fundamental para o desenvolvimento da narrativa. A ação da meni-
na é movida pelo evento sonoro; logo, se não existisse o evento, não

O som do filme: uma introdução


existiria a ação. Nesse caso, qualquer ouvinte percebe a importância
do som para a cena e, portanto, da edição e da mixagem. Retrata-
remos alguns procedimentos para que o leitor possa construir uma
ideia do trabalho do mixador.

Para mixar uma cena, esse profissional faz uso de processadores de


som e trabalha com ajustes de nível dos eventos sonoros. Processa-
dores de áudio como compressores, equalizadores e reverbs, além
de utilizados para controlar o nível e corrigir mudanças de timbre,
podem criar diferentes perspectivas e ambientação para as mudan-
ças de plano da cena, alterando tempo e tonalidade dos sons. Tal
afirmação é enfatizada por Huber e Runstein (1997, p. 349): méto-
dos de processamento de sinal são frequentemente usados em todas
as fases da produção de áudio, exercendo controle sobre o nível de
amplitude (variação de dinâmica) e sobre o conteúdo espectral do
som (equalização). Da mesma forma, eles são utilizados para criar 203
outros tipos de efeitos especiais, tais como atrasos no som (delay),
alterações no tempo e na altura.

Os processadores são divididos em dois grupos: os que controlam o


nível do sinal e os que modificam o espectro de frequência do som.
De acordo com Holman, os “processos que afetam principalmente a
resposta de frequência do sinal são secundários em relação aos que
controlam o nível da intensidade sonora” (HOLMAN, 2002, p. 202).

Segundo Holman, definir o nível de intensidade de cada elemento é


certamente o trabalho mais importante a ser realizado na mixagem.
Os elementos precisam ser sobrepostos de forma natural, mantendo
entre si boa relação de nível de sinal. Holman continua:

É necessário ter os elementos sonoros nivelados entre si,


um em relação ao outro. Dessa maneira, de forma geral, os
elementos de foley terão menor nível em relação aos ele-
mentos de diálogo, para que assumam sua própria relação
na mixagem. (HOLMAN, 2002, p. 202).

Capítulo 5 – A prática de edição e mixagem de som no audiovisual


Portanto, durante as pré-mixagens a intensidade de cada elemento
deve ser definida de acordo com o nível de volume do elemen-
to adicionado anteriormente, para que obtenhamos um resultado
equilibrado.

O aumento de alguns decibéis em determinados trechos da fala pode


modificar a carga dramática atribuída ao personagem. Suponhamos
um interrogatório. Um acréscimo no nível de intensidade da fala da
pessoa que está inquirindo gera uma intensidade dramática maior
para a cena. O aumento do nível e, por consequência, da pressão
sonora do som, desencadeia um processo físico de resposta no es-
pectador, fazendo com que ele entenda a informação de forma mais
agressiva. O contrário também acontece, a diminuição da pressão
sonora em determinadas falas pode ajudar a ressaltar sutilezas e
caracterizar personalidades desse gênero para o personagem.
204
A equalização talvez seja a forma mais recorrente de processamento
utilizada na edição e na mixagem. Primeiro, porque é comum que
a gravação não capte o timbre correto ou desejado pelo mixador
e, segundo, porque é difícil um controle de ruídos externos: luzes
elétricas, geradores próximos e até mesmo ondas estacionárias do
ambiente de gravação não são frequências desejadas no espectro
geral do som.

O equalizador, em sua forma mais simples, é um processador que


possibilita realizar mudanças no espectro do som, controlando a
amplitude de basicamente três bandas de frequências (grave, média
e aguda), sendo que a quantidade de bandas de frequências varia de
acordo com o equipamento utilizado. De acordo com Huber e Runs-
tein (1997, p. 351), a “equalização é definida pelo ato de aumentar
ou diminuir certo número de decibéis de determinada frequência”.

O espectro de um som diz respeito às relações existentes entre as


frequências formantes e a frequência fundamental do som. De
acordo com Roederer (2002, p. 21), o espectro seria “[...] a pro-

O som do filme: uma introdução


porção em que outras frequências superiores, chamadas ‘harmô-
nicos superiores’, aparecem misturadas entre si, acompanhando a
frequência fundamental”. As relações entre os harmônicos de um
som variam de acordo com as formas de ondas das frequências
que compõem os mesmos. Basicamente, existem quatro tipos pri-
mários de formas de onda: senoidal, quadrada, triangular e dente
de serra. Essas podem representar sons puros ou complexos. Sons
puros, os senoidais, não existem na natureza e, portanto, só po-
dem ser produzidos com osciladores. Soam desinteressantes por-
que são resultado de um movimento harmônico simples do tímpa-
no humano, possuem frequência, amplitude e fase constantes. As
outras três formas de onda são resultado de sons complexos, que
são compostos pela soma de vários outros que também podem ser
puros ou complexos.

Os equalizadores na pós-produção são usados para: 205

(1) Eliminar frequências indesejadas;


(2) Deixar os sons mais compreensíveis, colocando cada um
em um determinado espectro de frequência;
(3) Modificar o timbre de voz das dublagens, com propósito
de que soem idênticas ou ao menos similares ao som direto;
(4) Criar perspectivas no som e adequá-lo ao plano de ima-
gem, nesse caso, quando utilizado com processadores de re-
verberação de ambiente;
(5) Alterar os sons por razões criativas, produzindo efeitos
especiais ou ressaltando bandas de frequências significativas
para situações dramáticas, como em sound effects.

Tanto os processadores de nível do sinal quanto os que afetam a


resposta de frequência do som não mudam o tempo de duração do
som, portanto são processos realizados por adição de sinal digital. Já
os efeitos de reverberação trabalham com um processamento digital
chamado “multiplicação de sinal”. Por esse motivo, é comum que es-
ses sejam os últimos a serem inseridos na finalização do áudio.

Capítulo 5 – A prática de edição e mixagem de som no audiovisual


De modo geral, reverbs e delays são usados para adicionar reverbe-
ração artificial ao som. Além disso, alguns deles possuem parâmetros
que possibilitam novas alterações em bandas de frequência e níveis
de sinal. Muitas vezes os parâmetros escolhidos para a reverberação
modificam o espectro de som de forma indesejada. Segundo Roede-
rer (2002, p. 210-211), sempre que um som é exposto a algum tipo
de reverberação, o espectro sonoro é afetado, pois os coeficientes de
absorção dos materiais do ambiente estão diretamente relacionados
às frequências dos sons. Devemos levar em conta, por exemplo, o
fato de que as frequências graves geralmente reverberam mais que
as agudas – por causa do coeficiente de absorção – e esse fato po-
deria resultar em uma sobra de graves na curva de resposta do som.
Portanto, sempre que a reverberação resultar em desequilíbrio de
frequências, o mixador pode alterar novamente o espectro do som
dentro do próprio reverb.
206
A primeira função destinada ao reverb é a de simular determinados
ambientes, auxiliando a percepção do espaço e a localização do ou-
vinte; porém, de acordo com Amyes (2005, p. 229), a “reverberação
adiciona cor, caráter e interesse para o som e algumas vezes pode
adicionar clareza”. Um som reverbera, em maior ou menor intensi-
dade, de acordo com:

(1) O campo de propagação;


(2) Os possíveis anteparos que encontra pelo caminho;
(3) As características dos materiais que compõem as superfí-
cies refletoras.

A reverberação é o resultado de várias reflexões da onda sonora


emitida. Dessa forma, podemos supor que é mais comum que se
note a presença da reverberação em ambientes fechados do que
em ambientes abertos. No entanto, é importante lembrar que em
ambientes abertos também existe som reverberante, mesmo que em
menor quantidade.

O som do filme: uma introdução


A reverberação na pós-produção é tão utilizada quanto a equa-
lização, principalmente para uniformizar as descontinuidades da
gravação. Esses processadores podem suavizar descontinuidades
sonoras que acontecem devido a vários motivos, dentre eles: (1)
justaposição de planos fechados e abertos; (2) situações em que
o ator se encontra mais próximo ou mais distante da câmera e
do microfone.

Dificilmente os processadores são utilizados isoladamente. O ajuste


de nível sonoro, normalmente acontece assistido pela equalização e
pela reverberação. O uso de apenas um deles não é suficiente para
construir a complexidade sonora a que nossos ouvidos estão expos-
tos no mundo. No audiovisual, podemos ouvir dois sons com espec-
tros de frequência idênticos, mas se ambos não estiverem igualmen-
te espacializados, nossa percepção auditiva os reconhecerá como
sons distintos. A percepção não isola parâmetros e, por causa disso, 207
precisamos tratá-los de forma conjunta. Para solucionar problemas
de espacialização, a reverberação raramente funciona sozinha. Da
mesma forma, para tratar sons com espectros diferentes, a equaliza-
ção pode falhar se for usada de forma isolada.

Do ponto de vista estético, a mixagem pode auxiliar a edição so-


nora, aperfeiçoando detalhes de perspectiva, timbre e nível sonoro
entre os elementos. Ao mesmo tempo, pode confundir a percepção
do ouvinte quando não mantém essas relações de forma coerente.

Em muitas cenas do filme já citado Desejo e reparação, ouvimos


diálogos que soam estranhos, descolados da imagem. Num primeiro
momento, essas falas induzem o espectador a pensar que existe
algo errado com o diálogo, mas um ouvinte mais atento logo per-
cebe que o problema aparece junto com as falas que tiveram que
ser dubladas. Num primeiro momento, é possível desconfiar que
tenha havido problemas com a interpretação dos atores, já que as
reações dubladas pelos personagens soam descoladas da imagem e
dos outros elementos sonoros. Como já comentamos quando fala-

Capítulo 5 – A prática de edição e mixagem de som no audiovisual


mos sobre a edição, muitas vezes, a questão não está na intensidade
sonora, mas sim na intenção, na expressividade do som.

Porém, depois de analisar os casos separadamente, percebemos que


o problema resulta da equalização e da reverberação escolhida pelo
mixador. Talvez o problema venha da captação, pois as gravações
podem ter sido feitas muito próximas do microfone. Em casos de
proximidade demasiada na captação, efeitos de proximidade acarre-
tam em dificuldades para o mixador, no momento em que é neces-
sário criar perspectivas sonoras. Porém, o relevante é que o resultado
sonoro final das dublagens, principalmente em reações e respirações
pontuais em meio aos diálogos55, geram um estranhamento auditivo
para o espectador, por problemas de equalização e de espacialidade.

Uma mixagem, dentro do processo de edição de som que relatamos,


208 precisa ocorrer em etapas para que seja realizada com sucesso. Devi-
do ao volume de elementos sonoros, normalmente começamos com
pré-mixagens, nas quais se ajusta as relações entre os elementos
internamente, de acordo com a divisão que fizemos neste capítulo.
Primeiro acontece a pré-mixagem de diálogo, na sequência a pré-
-mixagem de foley, seguidas pela pré-mixagem de ambiente e as-
sim, sucessivamente56. Cada uma das pré-mixagens é feita com base
nos parâmetros definidos na anterior. Finalizadas as prés, acontece
a mixagem final, na qual não é mais necessário pensar nas relações
internas entre os elementos sonoros, apenas no equilíbrio de uma
pré-mixagem em relação à outra.

O gráfico a seguir (Figura 17), adaptado de Tomlinson Holman


(2002, p. 196), ilustra resumidamente o processo de edição e mixa-
gem de som descrito neste capítulo.

55 É possível verificar esse tipo de problema acústico observando as falas do personagem Robbie
(James McAvoy) aos 10’20” e aos 12’00”.
56 Não necessariamente nessa ordem. A primeira pré-mixagem é a de diálogo; as outras variam de
acordo com a concepção estética do desenho de som.

O som do filme: uma introdução


Diálogos Foley BG Hard effects BG-FX SFX

Pré-mix Pré-mix Pré-mix Pré-mix Pré-mix Pré-mix

Diálogo Foley BG Hard effects BG-FX SFX

Diálogo Efeitos Música

Mixagem Final
209
[Figura 17]

Capítulo 5 – A prática de edição e mixagem de som no audiovisual


REFERÊNCIAS

A PRIMEIRA sessão de cinema. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 27


dez. 1975. p. B1.

ALTMAN, Rick. Introduction: four and a half film falacies. In: ALT-
MAN, Rick (Org.). Sound theory, sound practice. London: Routled-
ge, 1992a. p. 35-45.

ALTMAN, Rick. Sound space. In: ALTMAN, Rick (Org.). Sound theory,
210
sound practice. London: Routledge, 1992b. p. 46-64.

ALVAREZ, Mariano Gabriel. A estereofonia digital: uma abordagem


sobre a técnica, o padrão e a linguagem sonora cinematográfica
norte-americana no período de 1991 a 2001. 2007. 89f. Dissertação
(Mestrado em Comunicação) – Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo. São Paulo, 2007.

ALVES, Bernardo Marquez. Os estudos do som no cinema: evolução


quantitativa, tendências temáticas e o perfil da pesquisa brasileira
contemporânea sobre o som cinematográfico. 2013. 180f. Disserta-
ção (Mestrado em Comunicação) – Escola de Comunicações e Artes
da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2013.

BARBOSA, Álvaro. O som em ficção cinematográfica. In: Reference


documentation for the sound and image undergraduate degree. Es-
cola das Artes da U.C.P. Lisboa, 2000. Disponível em: <www.abar-
bosa.org/docs/som_para_ficcao.pdf>. Acesso em: 7 jun. 2014.

O som do filme: uma introdução


BERCHMANS, Tony. A música de filme: tudo o que você gostaria de
saber sobre a música de cinema. São Paulo: Escrituras Editora, 2006.

BORDWELL, David. La introducción del sonido. In: BORDWELL, Da-


vid; STAIGER, Janet; THOMPSON, Kristin. El cine clásico de Holly-
wood. Barcelona: Paidós, 1997. p. 331-356.

BORDWELL, David; STEIGER, Janet; THOMPSON, Kristin. The clas-


sical Hollywood cinema: film style & mode of production to 1960.
New York: Columbia University Press, 1985.

BORDWELL, David; THOMPSON, Kristin. A arte do cinema: uma


introdução. Campinas: Editora da Unicamp, 2014.

BUHLER, James; NEWMEYER, David; DEEMER, Rob. Hearing the


movies: music and sound in film history. New York: Oxford Univer- 211
sity Press, 2010.

BÜRCH, Noel. Práxis do cinema. São Paulo: Editora Perspectiva,


1992.

CHION, Michel. Audio-vision: sound on screen. New York: Colum-


bia University Press, 1994.

CLAIR, René. The art of sound. In: BELTON, John; WEIS, Elizabeth
(Orgs.). Film sound: theory and practice. New York: Columbia Uni-
versity Press, 1985. p. 92-95.

COSTA, Fernando Morais. A inserção do som no cinema: percalços


na passagem de um meio visual para audiovisual. In: ENCONTRO
NACIONAL DA REDE ALFREDO DE CARVALHO, I., 2004. Anais...,
Rio de Janeiro, 2004.

COSTA, Fernando Morais. O som no cinema brasileiro. Rio de Janei-


ro: Editora 7 Letras, 2008.

Referências
EISENSTEIN, Sergei; PUDOVKIN, Vsevolod; ALEXANDROV, Grigori.
Declaração sobre o futuro do cinema sonoro. In: EISENSTEIN, Ser-
gei. A forma do filme. São Paulo: Jorge Zahar Editores, 2002.

FLORES, Virginia. O cinema: uma arte sonora. 2006. Dissertação


(Mestrado em Música) – Escola de Música da Universidade Federal
do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2006.

FLORES, Virgínia. O cinema: uma arte sonora. São Paulo: Annablu-


me Editora, 2013.

GORBMAN, Claudia. Unheard melodies: narrative film music. India-


napolis: Indiana University Press, 1987.

HANDZO, Stephen. Appendix: a narrative glossary of film sound


212 technology. In: WEIS, Elisabeth; BELTON, John (Orgs.). Film sound:
theory and practice. New York: Columbia University Press, 1985. p.
383-425.

HOLMAN, Tomlinson. Sound for film and television. Boston: Focal


Press, 2002.

HUBER, David; RUNSTEIN, Robert. Modern recording techniques.


Boston: Focal Press, 1997.

KLACHQUIN, Carlos. O som no cinema. Associação Brasileira de Ci-


nematografia (website), 1º jun. 2010. Disponível em: <http://www.
abcine.org.br/artigos/?id=121&/o-som-no-cinema>. Acesso em: 25
mar. 2014.

MANZANO, Luiz. O som no cinema: da edição de som ao sound


design – evolução tecnológica e produção brasileira. 2005. Tese
(Doutorado em Comunicação) – Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo. São Paulo, 2005.

O som do filme: uma introdução


MANZANO, Luiz. Som-imagem no cinema. São Paulo: Perspectiva, 2003.

METZ, Christian. A significação no cinema. São Paulo: Perspectiva, 2007.

MIRANDA, Suzana Reck. A clássica música das telas: o uso e a for-


mação do tradicional estilo sinfônico. Ciberlegenda, Rio de Janeiro,
v. 1, n. 24, p. 19-28, 2011a.

MIRANDA, Suzana Reck. O legado de Gorbman e seus críticos para o


estudo da música no cinema. Revista Contracampo, Rio de Janeiro,
n. 23, p. 160-170, 2011b.

MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Bertrand


Brasil, 2000.

MÜNSTERBERG, Hugo. The film: a psychological study. New York: 213


Dover Publications, 1970.

MURCH, Walter. Num piscar de olhos: a edição de filmes sob a


ótica de um mestre. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 2004.

OPOLSKI, Débora. Introdução ao desenho de som: uma sistematiza-


ção aplicada na análise do longa-metragem Ensaio sobre a ceguei-
ra. João Pessoa: Editora da UFPB, 2013.

PUDOVKIN, Vsevolod. Asynchonism as a principle of sound film.


In: BELTON, John; WEIS, Elizabeth (Orgs.). Film sound. New York:
Columbia University Press, 1985. p. 85-91.

PURCELL, John. Dialogue editing for motion pictures. Focal Press


publications, 2007.

ROEDERER, Juan G. Introdução à física e psicofísica da música.


São Paulo: Edusp, 2002.

Referências
SÁ, Simone Pereira de; COSTA, Fernando Morais da (Orgs.). Som +
imagem. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013.

SALT, Barry. Film style & technology: history and analysis. London:
Stardword, 2009.

SCHAEFFER, Pierre. Tratado dos objetos musicais. Brasília, DF: Edi-


tora da UnB, 1993.

SCHAFER, Murray. A afinação do mundo. São Paulo: Unesp, 2001.

SEBA, Alejandro; LOREDO, Leandro. Sonido directo: algunas consi-


deraciones. In: Kane 02 – Ciudad Universitaria. Buenos Aires: Im-
prenta Triñanes, 2005. p. 62-70.

214 SMITH, Jeff. Atmos, all around. Observations on film art (blog).
1º maio 2013. Disponível em: <http://www.davidbordwell.net/
blog/2013/05/01/atmos-all-around-a-guest-post-by-jeff-smith/>.
Acesso em: 28 mar. 2014.

SONNESCHEIN, David. Sound design: the expressive power of mu-


sic, voice, and sound effects in cinema. Estados Unidos: McNaugh-
ton & Gunn, 2001.

SOUZA, João Baptista Godoy. Procedimentos de trabalho na capta-


ção de som direto nos longas-metragens brasileiros Contra todos
e Antônia: a técnica e o espaço criativo. 2010. Tese (Doutorado em
Comunicação) – Escola de Comunicações e Artes da Universidade de
São Paulo. São Paulo, 2010.

STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. Campinas: Papirus, 2003.

THOM, Randy. Designing a movie for sound. Iris Magazine, Iowa,


n. 27, p. 9-20, 1999. Disponível em: <http://www.filmsound.org/
articles/designing_for_sound.htm>. Acesso em: 17 maio 2014.

O som do filme: uma introdução


VIANY, Alex. Introdução ao cinema brasileiro. Rio de Janeiro: Insti-
tuto Nacional do Livro, 1959.

WEIS, Elisabeth. Sync tanks: the art and technique of postproduc-


tion sound. Cineaste, v. 21, 1995. Disponível em: http://filmsound.
org/synctanks. Acesso em: 11 jun. 2014.

WYATT, Hilary; AMYES, Tim. Audio post production for television


and film. Boston: Focal Press, 2005.

XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: a opacidade e a trans-


parência. São Paulo: Paz e Terra, 1984.

YEWDALL, David Lewis. Practical art of motion picture sound. Bos-


ton: Focal Press, 2007.
215

Referências
O som do filme: uma introdução

Design Gráfico
Bureau de Design da PROEXT
Manu Braga

Formato
15,5 x 22 cm

Tipografia
Frutiger 57 Condensed
FrutigerLTStd
Libre Semi Serif SSi
Libre Serif SSi

Papel
Miolo: Pólen - 90g/m2
Capa: Triplex 270 - g/m2

Montado e impresso na oficina gráfica da

Rua Acadêmico Hélio Ramos, 20 - Várzea


Recife | PE CEP: 50.740-530 Fax: (0xx81) 2126.8395
Fones: (0xx81) 2126.8397 | 2126.8930
www.ufpe.br/edufpe - edufpe@nlink.com.br - editora@ufpe.br

Você também pode gostar