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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO

O SOM NO CINEMA BRASILEIRO:


Revisão de uma importância indeferida

FERNANDO MORAIS DA COSTA

Tese apresentada como requisito parcial à


obtenção do grau de doutor em
comunicação social

ORIENTADOR: PROF. DR. JOÃO LUIZ VIEIRA

Rio de Janeiro
2006
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AGRADECIMENTOS
À minha mãe, ao meu irmão, à Sabina.
À João Luiz Vieira, mais uma vez pela orientação de todas as formas necessárias durante o
longo período que foram os quatro anos da confecção deste texto.
À Marialva Barbosa, que faz muito mais pelos alunos do que simplesmente resolver
questões
isso. relativas à pós-graduação e a quem eu, particularmente, devo muito mais do que
Aos professores que acompanharam este trabalho e que contribuíram através das mais
variadas formas de diálogo, mais diretamente a Roberto Moura, Miguel Pereira, Ismail
Xavier, Eduardo Santos Mendes,Tunico Amâncio, Andréa França, Simone de Sá, Hilda
Machado, Sheila Schvarzman, Silvia Oroz, Luiz Antonio Coelho.
À CAPES, à PROPP, à Faperj, por terem financiado este projeto. Aos arquivos consultados
e aos responsáveis pela sua manutenção, como a Cinemateca do MAM, a Biblioteca
Nacional, o Instituto Moreira Salles, a Sala Mozart de Araújo, no Centro Cultural do Banco
do Brasil do Rio de Janeiro.
Aos colegas do doutorado, do mestrado, da graduação por todas as conversas, pelo
interesse, pelas dicas de textos e filmes. Por terem pensado, em vários momentos e lugares,
este trabalho comigo, transformando as idéias que me interessavam em interesse comum. A
Mariana Baltar, Pedro Plaza, Mauricio Bragança, Leonardo Macário, Rafael de Luna, Luis
Alberto Rocha Melo, Kleber Mendonça, Geisa Rodrigues, Fabián Nuñez, Marina Caminha,
Marco Roxo, Ivan Capeller, Renato Doho, Aurélio e Emanuel Aragão, Roberto Robalinho,
Mauro Reis e tantos outros que acompanharam estes quatro anos nas nossas casas, nos
bares, nas ilhas de edição, nas salas de aula, nos carros, no jipe, nos ônibus, nos aviões, no
Rio, em Niterói, em Itaipu, em Porto Alegre, em Londrina, em Brasília, em Viçosa, em
Belo Horizonte, em Salvador, em Recife, em Ouro Preto, na Covilhã, em Lisboa, em
Havana, para onde nossos trabalhos nos levaram.
Aos alunos, que tiveram contato com os resultados da pesquisa enquanto ela ainda estava
em andamento, e não apenas encorajaram sua continuidade mas por vezes sugeriram
exemplos de filmes que de fato estão presentes neste texto.
Aos técnicos e editores de som com os quais tive contato, que me passaram a paixão
cotidiana em lidar com o registro sonoro, além de fazer com que eu convivesse com parte
viva da sonorização para cinema no Brasil.
A todos que, de alguma forma, me ensinaram a ouvir e a escrever, habilidades sem as quais
este trabalho não poderia ser realizado.
Aos que na família se esforçaram para que, dentro do espaço de três gerações, alguém
chegasse ao estado de exceção de ser pós-graduado. Assim, do avô paterno que veio de
Portugal para o Brasil para consertar tamancos, do avô materno que não sabia ler mas
conquistou a avó tocando sanfona no interior de Minas Gerais, sai um neto que vive hoje a
estranha sensação de ser o primeiro doutor da família, no Rio de Janeiro. Como a trajetória
desviou para isso seria difícil de ser explicado a eles, caso isso ainda pudesse ser feito, mas
de alguma forma é um fato, estranhamente.
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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 8

CAPÍTULO 1:PRIMEIRAS TENTATIVAS DE SONORIZAÇÃO 21

1.1. CHEGADA DO CINEMATÓGRAFO, CHEGADA DO FONÓGRAFO 21


1.2. OS CINEMATÓGRAFOS FALANTES 29
1.2.1. Primeira vinda 29
1.2.2. Segunda vinda 30
1.2.3. Volta de Hervet, e um surto de falantes 35
1.3. OS FILMES CANTANTES 39
1.3.1. Definição e paradoxo 39
1.3.2. Primeiros cantantes 40
1.3.3. 1909: consolidação e primeiros sucessos 47
1.3.4. Paz e Amor no Rio Branco, Serrador no Rio de Janeiro 55
1.3.5. 1911: fim dos cantantes 66
1.4. ÚLTIMOS APONTAMENTOS: DE RONDON A PIXINGUINHA 71
1.4.1. A questão do acompanhamento musical 73

CAPÍTULO 2: PASSAGEM PARA O SONORO 79

2.1. A DISCUSSÃO A FAVOR DO MUDO 79


2.1.1. O fã do cinema mudo e a ojeriza ao falado 80
2.1.2. Em Cinearte 89
2.2. A PRODUÇÃO DE FILMES SONOROS 109
2.2.1. A continuidade da produção paulista, e Coisas nossas 109
2.2.2. A produção sonora carioca, primeiros resultados 116
2.2.3. A relação com a música popular, sucesso do sonoro 125
2.3. NO BRASIL COMO EM OUTROS PAÍSES 131
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CAPÍTULO 3: O SOM DIRETO EM TODO LUGAR, A QUEBRA DOS


PARÂMETROS CLÁSSICOS 137

3.1. A CHEGADA DOS GRAVADORES PORTÁTEIS, E O FIM DE


UMA LONGA DICOTOMIA 137
3.1.1. Chegada no Brasil, primeiras produções: filmes de passagem,
o realismo e a língua falada nas telas 141
3.1.2. A passagem na ficção, som direto e dublagem 157
3.2. A MUDANÇA DE FORMA E CONTEÚDO 165
3.2.1. A voz sobre as imagens 177
3.2.2. A música ocupa tanto espaço quanto a imagem 186
3.2.3. Ruídos ocupam o lugar da música, ruídos sobre as vozes,
ruídos no centro 193
3.2.4. Todos os sons e o silêncio sobre todos eles 196

CAPÍTULO 4: A EXCELÊNCIA TÉCNICA CONQUISTADA E AS


PROPOSTAS ESTÉTICAS EXISTENTES 205

4.1. O CONTEXTO DE PRODUÇÃO E DENTRO DELE A PARTE QUE


CABE AO SOM 205
4.2. QUAIS QUESTÕES O SOM DO CINEMA BRASILEIRO TRAZ
ATUALMENTE? 212
4.2.1. Ainda naturalismo? A passagem para o hiper-realismo 213
4.2.2. Permanência da voz over 219
4.2.3. O português redescoberto nas telas 225
4.2.4. A proximidade com a música pop(ular) em outra chave 232
4.2.5. Mais espaço para os sons fora de quadro, para os ruídos,

para os silêncios, para os sons ambientes 238


CONCLUSÃO 248

BIBLIOGRAFIA 251

ANEXO

GLOSSÁRIO DOS APARELHOS DE GRAVAÇÃO E REPRODUÇÃO


CITADOS 263
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RESUMO

Afirmar a importância do som no cinema brasileiro, demarcando períodos onde mudanças


nos modos de inserir o som reconfiguraram o modo de fazer e de assistir filmes no Brasil.
Descrever as primeiras tentativas de sincronização, entre 1902 e 1911. Comentar, entre o
fim da década de 1920 e meados de 1930, a passagem definitiva para o cinema sonoro,
quando se gerou o modelo de sucesso das comédias musicais. Comentar a mudança de
paradigmas perpetrada pelo cinema brasileiro moderno, a partir da chegada dos
equipamentos portáteis para gravação de som direto. Por em questão o papel do som nos
filmes brasileiros contemporâneos. O que há de novo no modo atual de unir sons e
imagens?

Palavras-chave:
1. cinema brasileiro 2. som 3. análise
7

ABSTRACT

This work aims to reaffirm the central role played by sound in Brazilian cinema. It
describes periods when changes related to sound recording and editing transformed the
ways of making and watching films in Brazil. It details the first methods of syncronizing
sound and images between 1902 and 1908. It coments the end of the silent era and the
making of the first Brazilian sound films in the late 1920’s up to 1936, the period when the
first sucessfull musical comedies would be released. During the 60’s the arrival of portable
sound recorders would allow new ways of shooting, as well as new forms of assembling
sounds and images. It discusses the role given to sound in contemporary Brazilian films.
What novelties reside within their soundtracks?

Keywords:

1. brazilian cinema 2. sound 3. analysis


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INTRODUÇÃO

Há algumas décadas, vem sendo repetido um argumento que se tornou um senso


comum sobre o cinema brasileiro: o som é o que há de pior tecnicamente nos filmes
nacionais. Nos últimos anos, a busca pelo aperfeiçoamento técnico, a necessidade de se
estar a par das velozes adaptações tecnológicas da indústria cinematográfica, e o
subseqüente reflexo disso nos filmes fizeram com que esse velho paradigma começasse a
ser timidamente revisto. Uma aproximação cuidadosa da história do cinema brasileiro
mostra, porém, várias conjunturas onde o som não era rechaçado, nem tido como
desimportante. Ao contrário, houve momentos em que era, de forma irrefutável, central no
contato do espectador com o filme.

Esta tese tem o objetivo de afirmar, ao contrário do senso comum, a importância do


som no cinema brasileiro. De mapear períodos onde esta proposição se apresenta de forma
mais veemente. De descrever as primeiras tentativas de sincronização, a partir de 1902. De
atestar, no período entre 1908 e 1911, a importância da relação com a música, aferível no
modelo dos filmes cantantes. De comentar a passagem para o cinema sonoro, entre o fim da
década de 1920 e início da de 1930, afirmando o papel central novamente da proximidade
com a música, quando se gerou o modelo de sucesso das comédias musicais. De mostrar
como a partir da mudança de paradigmas perpetrada pelo cinema brasileiro moderno, em
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conjunto com a mudança de parâmetros na gravação do som direto, a partir de 1962, o som
seria inscrito nos filmes de diversas formas inovadoras, as quais, em conjunto com os
novos parâmetros de capturar da imagem, e tão importantes quanto estes, concretizaram
alternativas ao modelo narrativo dominante. De por em questão o papel do som nos filmes
brasileiros contemporâneos, nos quais, se por um lado, a almejada excelência técnica foi
alcançada, por outro a tentativa de mapear estéticas sonoras relevantes deve ser feita com
atenção. Uma observação rápida faria parecer que não há projetos estéticos relevantes no
cinema brasileiro feito hoje, no que diz respeito ao tratamento do som. Esperamos perceber
além disso.
Assim, este projeto de pesquisa tem como objetivo principal mapear o papel
desempenhado pelo som em pontos cruciais da trajetória do cinema brasileiro, ressaltando
sua importância, e diminuindo o esquecimento sobre o som frente à tematização sempre
central da imagem na teoria do cinema, que reverbera no Brasil o que ocorre no âmbito
geral. Porém, é também um objetivo delinear uma determinada conjuntura que nos parece
ser específica da produção brasileira e que faz aumentar essa desimportância.
Este estudo não é, não poderia ser, uma revisão dos, até aqui, quase oitenta anos de
cinema sonoro no Brasil. Se entendermos, como estamos fazendo, o chamado período
mudo como pertencente aos nossos estudos, por conta das inúmeras tentativas de união
entre sons e imagens, o intervalo de tempo a ser coberto passa a ser de mais de cem anos.
Por isso estão escolhidos apenas os quatro momentos citados acima, entendidos como
nodais para o desenvolvimento do som no cinema brasileiro. Sustentamos que as questões
pertencentes a cada período, a serem descritas rapidamente nesta introdução, são os fios

que usaremos para formar a tessitura que descreverá, assim, por elipses, parte dessa história
do cinema sonoro no Brasil. As questões de cada período trariam em si, portanto, as
especificidades de suas épocas, mas também indícios que permitem ver, a partir delas, o
quadro inteiro. A música, fundamental para o sucesso dos filmes entre 1908 e 1911, assim
como na década de 1930, terá seu papel reconfigurado na década de 1960 e novamente nos
últimos dez anos. Continuará a ser importante, embora passe a dividir espaço na trilha
sonora com outros sons, perdendo a onipresença dos dois primeiros momentos. As vozes,
que se encontravam atrás da tela na década de 1910, estarão no centro do quadro, unidas às
bocas de quem canta, na década de 1930, e sobre as imagens, fora da tela, ou dentro dela
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embora, pela primeira vez, na confusão das ruas, na década de 1960. Os ruídos, pouco
presentes nos dois primeiros momentos, se farão notar no cinema brasileiro moderno,
vindos da impureza da gravação exposta aos sons das ruas, ou colocados nos filmes de
modo a estarem livres da subordinação às imagens. O trabalho tecnicamente cuidadoso com
esse mesmo elemento será uma das marcas da produção contemporânea. O uso dos
silêncios como uma quarta potência dentro da trilha sonora se fará cada vez mais presente.
Reafirmar o reconhecimento de que o silêncio é parte fundamental da trilha sonora é
um dos objetivos subjacentes a este trabalho. No terceiro capítulo isso ficará claro, quando
mostrarmos a importância da presença de silêncios nas obras de, entre outros, Ozualdo
Candeias e Julio Bressane. Uma vez descrito, esse fenômeno nos levará à proposição de
que, além de portador de discurso, o silêncio pode ser entendido como polissêmico,
produzindo diferentes sentidos mediante sua utilização em diferentes épocas e contextos.
O som dos filmes brasileiros permanece pouco estudado. Não há textos que tratem
do assunto de forma ampla. O que há são trabalhos pontuais, e ainda assim, raros. Podemos
citar a tese de mestrado de Eduardo Santos Mendes, defendida em 1995, no Programa
Ciências da Comunicação, na USP, que analisa o som dos curtas-metragens produzidos em
São Paulo entre 1982 e 1992; a dissertação de Guiomar Pessoa Ramos, sobre O som ou o
tratado da harmonia, de Arthur Omar; e a recente dissertação de Guilherme Maia,
defendida em 2002, no Programa de Pós-graduação em Música da UNIRIO, sobre a música
nos filmes brasileiros que concorreram ao Oscar na década de 90. Há raros, esporádicos
esforços, como o texto O som no cinema brasileiro, organizado por Jean-Claude Bernardet,
na revista Filme e Cultura, em 1981. Bernardet, além de fazer uma breve introdução,

ordena uma série de depoimentos e entrevistas, formando uma espécie de dossiê. Dão sua
contribuição os precursores Luís de Barros e Humberto Mauro, Watson Macedo; Arthur
Omar, Vladimir Carvalho e Geraldo Sarno, expondo suas diferentes concepções sonoras
para o documentário; Leon Hirszman. Ainda compositores como John Neschling, Remo
Usai, Caetano Veloso, por conta principalmente do bom trabalho em São Bernardo, de
Leon Hirszman, Paulo Moura. E, por fim, técnicos, como Vitor Rapozeiro e Juarez
Dagoberto. Dada a escassez de trabalhos sobre o tema, essa compilação de entrevistas pode
ser, certamente, tomada como o maior esforço textual de comentar o som no cinema
brasileiro, tirante as dissertações (BERNARDET, 1981). Alex Viany publicara quatro anos
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antes, na revista Cultura, um ensaio intitulado Notas sobre o som e a música no cinema
brasileiro, no qual traça um panorama do período mudo e dos primeiros sucessos do sonoro
(VIANY, 1977). Não há mais do que esforços pontuais como estes. Evidentemente, apesar
da falta de estudos específicos, o som dos filmes foi comentado vez por outra na
bibliografia existente sobre o cinema brasileiro, tanto nos livros que enfocam a sua história
quanto naqueles que tratam da análise de filmes. Tais passagens também servirão de base
ao desenvolvimento desta pesquisa, dando-lhe sustentação.
Ainda raros, apesar de um notável crescimento a partir dos anos 80, prioritariamente
nos Estados Unidos e na França, os estudos sobre som no cinema, e sobre a dicotomia
central do processo de criação audiovisual, a união entre os heterogêneos som e imagem,
têm a importância de pôr em perspectiva a relevância do som nos meios onde se tende a
priorizar a imagem como preponderante. Esta preocupação, é evidente, não está restrita ao
pensamento sobre o cinema, mas permeia os estudos sobre comunicação. A acachapante
primazia da visão nos processos de produção de informação na sociedade ocidental
contemporânea deve não obliterar o pensamento sobre o som, e sim manter a lembrança de
seu potencial comunicacional e da sua presença a nossa volta. Esteja essa lembrança em
pontos de sobrevivência da oralidade, nas transformações no contato com a música, no
levante cada vez maior dos ruídos em torno do homem urbano contemporâneo, ou ainda na
rarefação do silêncio.
O primeiro capítulo tem como tema duas formas distintas de sincronização entre sons
e imagens no período de exibição e produção de filmes no Brasil que vai de 1902 a 1911.
Esta periodização não é aleatória. Seu início corresponde à primeira notícia de exibição em

terras brasileiras do chamado cinematógrafo falante, ou seja, a tentativa de sincronização


mecânica entre projetor e fonógrafo; seu final, ao término da produção dos filmes
cantantes, sincronizados de forma artesanal, com os atores dublando a si mesmos, de trás da
tela, no momento da exibição. As vindas dos cinematógrafos falantes compreendem o
período entre 1902 e 1908. Por motivos estruturais a serem aferidos no texto, subdivimo-
nas em três blocos. Uma primeira vinda isolada e breve em 1902, um período de maior
sucesso e duração, entre 1904 e 1906, e uma última vinda entre 1907 e 1908, quando um
surto de falantes foi interrompido pelo advento dos cantantes, que obtiveram melhor
aceitação junto ao público.
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Quanto à vinda dos cinematógrafos falantes, queremos fixar dois pontos. Em


primeiro lugar, uma análise cuidadosa de suas trajetórias pelo país indica a passagem
daqueles aparelhos por praticamente toda a extensão do território nacional. Este ponto é
importante, a fim de se evitar o erro metodológico costumeiro de restringir-se a análise de
um fenômeno nacional à sua análise nos principais centros econômicos. Mais do que isso,
veremos que tais equipamentos chegaram pelo norte do país, tendo as exibições em cidades
como Belém e São Luís precedência ao sul e à capital federal. O segundo ponto já trata da
passagem para os cantantes. O maior sucesso destes coloca já naquele início do cinema no
Brasil um interessante paradoxo: um sucesso da feitura artesanal, em detrimento do
progresso tecnológico, representado pelas tentativas de sincronismo mecânico.
Quanto aos filmes cantantes, localizados entre 1908 e 1911, queremos afirmar que
não só há indícios que conferem a maior parte dos filmes marcas que garantem serem eles
produtos nacionais, em detrimento da dúvida por vezes colocada de que a maioria era de
adaptações de filmes estrangeiros e apenas dublados no Brasil por ocasião de suas
exibições, como esse maior número de produções brasileiras é, feita uma pesquisa
detalhada, evidente.
Não havendo mais acesso aos filmes, o processo de levantamento de dados é
forçado a seguir o caminho das fontes secundárias, e a confiar nelas. A pesquisa de Vicente
de Paula Araújo, contida nos livros A bela época do cinema brasileiro (ARAÚJO, 1976) e
Salões, circos e cinemas de São Paulo (ARAÚJO, 1981) traz o levantamento em jornais e
revistas da época do que foi noticiado na imprensa carioca e paulista sobre os filmes
exibidos. Assim, quanto a estas a citação ao trabalho de Araújo será constante.

Recentemente, o lançamento de Imagens do passado: São Paulo e Rio de Janeiro nos


primórdios do cinema, de José Inácio de Melo Souza (SOUZA, 2004), descortinou novas
informações sobre o mesmo período. Os resultados da pesquisa de Souza vão, em alguns
aspectos, contra os de Araújo. Mais precisamente contra a idéia da bela época, ou seja, de
um período no qual a presença da produção nacional teria conseguido fazer frente à
presença estrangeira. A esse período se seguiria, ainda, uma espécie de invasão do produto
vindo de fora, gerando um cataclismo que teria impossibilitado a permanência dos filmes
brasileiros nas telas. Segundo a pesquisa de Souza, a idéia de uma invasão do filme
estrangeiro em 1911, o que poria fim a um ciclo, não se sustenta, uma vez que se descubra
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que o cinema europeu já detinha, desde muito antes, a hegemonia do nosso mercado
exibidor. Houvera um predomínio francês anterior ao estadunidense. O intuito do nosso
primeiro capítulo é menos discutir a validade dessas hipóteses de fundo econômico, sobre
ocupação de mercado, e mais analisar o fenômeno dos cantantes como uma estética
alternativa de unir sons e imagens de sucesso, este, de resto, indiscutível. Assim como
também segue sendo crível o fato desse modelo de sincronização ter sido deixado para trás
abruptamente. Não se trata de um estudo sobre a bela época, sobre a penetração dos filmes
nacionais no mercado exibidor, mas sim sobre, inseridos naquele período, os filmes
cantantes, sobre a voz por trás das imagens como agente de projeções já sonorizadas. Não
nos é central a discussão sobre a fatia do mercado ocupada por esses filmes, se 50% ou 5%.
Assim, imaginamos, as referências a ambas as pesquisas, de Vicente de Paula Araújo e de
José Inácio de Melo Souza, podem, neste trabalho, coexistir.
O método através do qual pudemos fazer o cruzamento das informações sobre
aqueles filmes se resume ao seguinte: quanto aos falantes, estabelecemos, graças à consulta
referente a outros estados, uma espécie de rede de informações que nos permitiu
reconstituir parte da trajetória daqueles aparelhos pelo país. Quanto aos cantantes, a
ordenação dos dados obedeceu aos critérios: data de lançamento, quem produziu, procura
por vestígios que assegurem tratar-se de produção nacional, conferência das informações
quando o filme é citado em mais de uma fonte. Às informações dos jornais uniram-se: a
catalogação feita pela Embrafilme, as informações contidas na bibliografia que os cita, e,
importante, matérias em periódicos da época não transcritos por Araújo, que trouxeram
informações relevantes, principalmente relacionadas a Paz e Amor. A pesquisa relacionada

ao mesmo filme apresenta também novidades decorrentes da busca nos arquivos da cidade
por partituras de músicas que tenham servido de trilha sonora para a produção
cinematográfica da época. De uma forma geral, a pesquisa no âmbito musical é uma
característica deste trabalho, seja por identificar no sucesso dos fonógrafos no Rio de
Janeiro, na virada de século XIX para XX, uma pré-condição para a aceitação posterior da
junção, nas salas de cinema, com os cinematógrafos, seja por mapear, o quanto tenha sido
possível, recorrendo às partituras e às gravações preservadas, as músicas que tiveram,
naquele momento, relação direta com o cinema.
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O segundo capítulo abordará a passagem do dito cinema mudo para o sonoro,


cobrindo um período que vai de 1927 a 1936, e dando ênfase aos seguintes aspectos: uma
análise da crítica sistemática ao cinema falado, e a conseqüente defesa da continuidade do
mudo, que no Brasil é o foco de duas publicações sobre cinema da época, os periódicos O
Fã e Cinearte ; a importância da relação com a música popular, com o aproveitamento em
larga escala, nos primeiros sucessos do cinema sonoro brasileiro, das estrelas do rádio, dos
sambas de maior sucesso, das marchinhas de carnaval de cada ano; a análise de um corpo
de filmes que demarca a passagem, desde as primeiras experiências, entre 1929 e 1930,
ainda com a sincronização em discos, o som gravado separado da película e sincronizado
no momento da exibição, até os sucessos das primeiras comédias musicais, já com o som
impresso na película de forma inseparável.
Sobre cada um desses aspectos, há pontos importantes que o texto tentará demarcar,
e que, neste momento, apenas comentamos rapidamente. A crítica contra o cinema falado
que surgia reverberava no Brasil questões discutidas na Europa e nos Estados Unidos, e
apresentava os seguintes argumentos: a essência do cinema estava relacionada ao poder da
imagem, e ao conceito, relevante na década de 1920, de fotogenia. Seria intrínseca ao
cinema uma determinada forma de registrar determinados corpos e objetos, de forma que
sua beleza na tela fosse latente à percepção do espectador. No que tange ao advento do
som, este surgia para manchar essa proclamada essência do cinema, sua “pureza” com a
contaminação de influências de outras artes (o diálogo viria do teatro, forma de arte eleita
como antípoda), e com uma aproximação, naquele momento indesejada, do realismo, o que
viria a inocular o efeito de uma aura de rostos e objetos que sua exibição muda

manifestava. Outro argumento contra o som defendia que enquanto não falaram, os filmes
carregaram o potencial de serem universais, pois a inexistência da barreira da língua
possibilitava a exibição de um filme de qualquer nacionalidade pelo mundo afora. Com os
diálogos, a exibição em outros países, de língua diferente, passava a ser um problema. Este
argumento logo será revertido em prol do filme falado no Brasil, pois se chega à conclusão
de que a necessidade do filme falado em português, e uma presumível preferência do
público por este, dará impulso à indústria nacional. Há a denúncia da invasão dos filmes
falados em inglês como ferramenta do imperialismo norte-americano; da necessidade, em
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um primeiro momento tida como absurda, das legendas, que impediriam quem não fosse
capaz de acompanhá-las de assistir aos filmes, restringindo o público.
Queremos discutir no momento dessa passagem a mudança da situação do
espectador frente à nova forma de exibição dos filmes, agora com o som unido às imagens.
Há declarações da época que descrevem aspectos dessa mudança. O silêncio do espectador
frente ao filme, que não era imperativo enquanto não houve som na tela, agora passava a
ser. O público de um país que ocupa uma posição periférica no mercado produtor de filmes
sofre o efeito de adaptações forçosas, caso das legendas, que desviam sua atenção do que
deveria ser a porção auditiva da percepção do filme, transferindo-a para a visão. Lê-se o
que se deveria ouvir. A outra alternativa, a dublagem, também atuaria como um fator que,
da mesma forma, deseduca o ouvido do espectador, pois ocorre na dublagem uma
simplificação da construção sonora do filme. Demais sons, que não os diálogos, são
aglutinados e têm seu volume reduzido, para que não se corra o risco de perturbar a clareza
da voz. Assim, as soluções dadas para resolver o problema do filme falado em idioma
estrangeiro empobrecem a percepção auditiva do espectador frente ao filme.
Em meio a essa série de modificações no modo de se fazer e de se assistir filmes,
São Paulo vê e ouve as experiências sonoras de Luis de Barros, a partir de 1929; assiste ao
sucesso de Coisas nossas, musical de Wallace Downey, lançado em 1931. O Rio de Janeiro
vê a construção dos estúdios da Cinédia, de Adhemar Gonzaga, produtora que seria
fundamental para a consolidação da transição para o cinema sonoro no Brasil, graças ao
sucesso dos musicais carnavalescos.
Devemos lembrar que esse uso da música popular como artifício, bem sucedido,

para levar o público às salas de cinema não se trata de um fenômeno exclusivamente


brasileiro. Há indícios da mesma relação na Argentina, em Portugal, em Cuba, no México,
entre outros. Assim como o samba atingia a categoria de emblema, na música, de uma
propalada unidade nacional, com reflexos no cinema, o mesmo acontecia com o tango, com
o fado, com o bolero.
Embora a historiografia sobre o cinema brasileiro tenha, em vários momentos,
descrito o momento da passagem para o sonoro, recentemente surgem novos dados sobre o
período, ainda não analisados. Coisas nossas, sempre citado como um dos primeiros
sucessos do cinema sonoro brasileiro, pode ter agora a sua trilha sonora analisada, graças à
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descoberta dos discos srcinais, que contêm seus sons, embora não haja vestígios de suas
imagens. Mulher, a segunda produção da Cinédia, de 1931, foi recuperado, imagem e som,
e lançado nos cinemas em 2004. Alô alô carnaval, o mais emblemático dos musicais
carnavalescos da produtora, tinha sido objeto do mesmo esforço, pouco antes. Filmes
desaparecidos como Alô alô Brasil, A voz do carnaval e Estudantes tiveram gravações de
alguns de seus números musicais também relançadas comercialmente. Ou seja, com o
sempre pequeno esforço de restauração que se consegue empreender, o conjunto dos
primeiros filmes sonoros brasileiros vem se tornando menos obscuro, e sua análise, mais
acurada.
No terceiro capítulo, comentaremos a chegada do equipamento portátil de gravação
de som, em 1962, que marca uma grande reconfiguração na forma de se gravar os sons de
um filme, e na apreensão destes por parte do espectador. Muito se fala sobre a importância
da chegada das câmeras mais leves, como ferramentas que possibilitam a saída das equipes
de filmagem para as ruas, mas pouco se comenta que esse quadro só está descrito de forma
completa com a menção do Nagra, o gravar portátil a que nos referimos. Sua chegada torna
mais complexo o processo de gravação de som e encerra uma dicotomia fundamental até
então. Com a falta de mobilidade dos grandes gravadores dos estúdios, a questão era: se
filmado em estúdio, o som é gravado direto, no momento da ação; se na rua, o som tem que
ser dublado.
A nova situação possibilita a gravação em externa, mas traz uma série de novos
problemas. Um microfone mal posicionado, não apontado com correção para a boca de
quem fala, faria com que o ruído de fundo, agora existente de forma preocupante, já que

estamos na rua, estivesse perigosamente mesclado à voz. Não se gravava mais os sons no
ambiente protegido dos estudos. O som dos filmes seria outro, sujo dos ruídos do mundo
real, técnicos e espectadores teriam que se adaptar. Não é à toa a utilização do som direto,
neste primeiro momento, pelos documentaristas, enquanto filmes ficcionais manteriam, por
algum tempo, distância do som direto das ruas, como descreveremos.
A possibilidade do som direto, uma vez que esteja se tornando prática habitual no
processo de filmagem, vai fundar uma nova dicotomia, uma nova relação com a dublagem.
Esta passa a ser vista de forma negativa, pois é encarada como a alternativa para um som
direto falho. O filme dublado passa a ser a confissão da falha técnica. Criam-se dois tipos
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de resistência: o som direto, sujo, não seria agradável de modo geral, seja pelas
interferências sobre a voz, seja por erros de captação que prejudicam a compreensão desta;
a dublagem é a confissão de culpa, além de não ser feita com o cuidado necessário,
quebrando assim o principal contrato assinado entre o espectador e o filme: o sincronismo
labial perfeito. A garantia da unidade, corporificada na união forjada mas necessária, e
imperceptível, da voz perfeitamente colada à boca de quem fala. Ainda assim, a maior parte
da produção ficcional permaneceria, por longo tempo, sendo dublada.
As questões sobre esse ponto são várias. Primeiro, este nos parece ser um momento
em que está sendo configurada uma histórica reação negativa do público com respeito ao
som no cinema brasileiro. O trabalho deve procurar desconstruir este senso comum, buscar
motivos que expliquem seu enraizamento, e apontar suas generalizações. Embora seja um
objetivo desse trabalho não se eximir de apontar para defeitos estruturais no modo de
produção brasileiro que venham a criar percalços para a boa qualidade sonora dos filmes,
por outro lado, não é difícil encontrar filmes dentro da conjuntura dos anos 60 e 70 que
alcançam alto nível técnico tanto quando se utilizam da dublagem quanto do som direto. A
análise de filmes de Luís Sérgio Person, de Joaquim Pedro de Andrade, entre outros,
demonstrará este ponto facilmente.
Outra questão, mais espinhosa, faz parte do capítulo. Até que ponto pode-se creditar
o estranhamento quanto ao som dos filmes a uma presumível incapacidade técnica, à falta
de infra-estrutura, e até onde se trata da falta de familiaridade com uma nova proposta
estética, por esta ser radicalmente oposta ao padrão? Explico: a questão da infra-estrutura é
clara. A pergunta é: afora um mito de srcem sobre a chegada do som direto ao Brasil,

centralizado no curso do documentarista sueco Arne Sucksdorff, no Museu de Arte


Moderna, em fins de 1962, do qual saem dois ou três alunos interessados em som, que
formação tínhamos (temos) de técnicos de som direto para cinema? De microfonista?
Tínhamos (temos) formação de editores de som? Em um momento, na década de 1970, em
que a finalização de som se complexificava nos Estados Unidos, começava a haver no
Brasil a pálida noção de que era necessária uma pessoa que cuidasse apenas da edição de
som, separando-a da edição de imagem.
Por outro lado, a questão de uma nova estética em formação, que tinha como ponto
central a negação da perfeição técnica nos moldes demonstrados pela indústria
18

cinematográfica norte-americana não pode ser desconsiderada. As declarações de Nelson


Pereira dos Santos nos congressos nacionais de cinema de década de 1950, de Glauber
Rocha e sua estética da fome, o manifesto de Julio Garcia Espinosa que sugeria para a
América Latina um cine imperfecto, de Ozualdo Candeias ao dizer que fazia fitas “ao
arrepio do cinema americano” vão colocar uma questão complexa para o entendimento da
imagem e do som dos filmes feitos sob esses novos parâmetros de produção. Há naquele
momento uma quebra difícil de ser comprendida, os filmes poderiam ser tomados como
imperfeitos tecnicamente, se analisados sobre o prisma do modelo dominante, externo, mas
extrair da precariedade das condições de produção novas saídas estéticas traduzia o que
seria o valor maior daqueles filmes. Ismail Xavier, Bernardet, em momentos diferentes se
duas trajetórias identificam este ponto de virada como o legado maior daquela produção. O
que queremos colocar é que se é corrente, dentro de um senso comum, a alegação de que o
som dos filmes de um longo período da cinematografia nacional é falho, muitas vezes falta
entender que, no mesmo período, uma libertação dos códigos hegemônicos de relacionar
sons e imagens trouxe uma quantidade considerável de novas propostas de junção dos dois,
e disso decorre que em muitos momentos, os quais o texto analisará, o som tem papel
primordial na narrativa. Citaremos filmes que dão exemplos de tais inovações; de novas
formas de situar a voz no filme, seja essa voz um narrador mais próximo de um modelo
tradicional, como em São Bernardo, de Leon Hirzsman (1972), ou uma sátira ao próprio
papel tradicionalmente dado ao narrador no cinema. O exemplo mais claro dessa sátira,
sempre comentada, é O bandido da luz vermelha, de Rogério Sganzerla (1969) 1. A
mudança no modo como as vozes se apresentam nos filmes está relacionada tanto à nova

1
Robert Stam cita a fragmentação da narração do filme brevemente no artigo On the margins:brazilian avant-
guard cinema (in: STAM, JOHNSON, 1982, p. 306-328). Ismail Xavier comenta mais detalhadamente a
multiplicidade de pontos de vista decorrente da figura de mais de um narrador em Alegorias do
subdesenvolvimento: cinema novo, tropicalismo, cinema marginal (XAVIER, 1993, p.72-75). Na verdade,
devemos dizer que, sendo aquele período o mais tematizado dentro do campo dos estudos sobre o cinema
brasileiro, muitas das análises contemplam, é evidente, a porção sonora dos filmes. Ismail Xavier comenta em
Sertão-mar: Glauber Rocha e a estética da fome , as funções da música, e da voz over, ou mesmo da
imbricação entre ambas, por exemplo, na obra de Glauber Rocha (XAVIER, 1983). A análise de Xavier sobre
o cinema brasileiro moderno inclui via de regra os aspectos sonoros dos filmes. Jean-Claude Bernardet cita a
importância dos novos modos de inserir a voz sobre as imagens, como nas suas análises dos documentários
das décadas de 60 e 70, também para citar um exemplo dentro de sua obra (BERNARDET, 2003). Grande
número de textos, a serem devidamente citados no momento oportuno, não desconsidera o som com agente
narrativo. Por outro lado, esse mesmo papel do som nunca é o objeto central da análise, como o é neste
trabalho. Faremos referência, portanto, a tais textos, acrescentando a análise de detalhes sonoros menos
comentados, sempre que for possível.
19

conjuntura técnica, no caso de poder ser gravada em qualquer lugar, longe da proteção dos
estúdios, quanto a um novo posicionamento estético, unida às imagens de formas diversas,
e diferentes dos padrões do cinema clássico. Comentaremos formas alternativas de inserir
nos filmes os ruídos, que deixam de ter a função evidente de investir as imagens de
naturalismo, e passam a ser também elementos responsáveis pela disjunção entre o discurso
das imagens e dos sons, artífices de modos mais complexos de união entre ambos. De
forma análoga encontra-se o uso da música, ainda fundamental na sua sobreposição às
imagens, mas dona, desta vez, de um discurso próprio. E não esqueceremos do uso, com
cada vez menos pudor, dos silêncios, das interrupções na trilha sonora que passam a ter
funções diversas dentro das narrativas, e que produzem efeitos também diversos sobre os
espectadores.
A parte final da tese discutirá o papel delegado ao som na produção brasileira
recente. A questão chave para o desenvolvimento da discussão passa a ser: uma vez
conquistada uma presumível excelência técnica quanto à captação e finalização de som no
cinema brasileiro, o que há de diferente de um padrão naturalista, quanto ao uso do som, na
produção recente? A década de 1990 possibilitou, como efeito de uma abertura de mercado,
a importação, em condições que nunca antes haviam sido tão propícias, de equipamento
digital comparável àqueles usados nos mercados cinematográficos norte-americano e
europeu. Houve uma corrida por parte de produtoras, estúdios e técnicos de gravação de
som no Brasil, pelo aparato que possibilitaria aos filmes deixar de ter, tecnicamente,
possibilidades inferiores de eficácia. Esta parece ser uma das razões para o começo, mesmo
no senso comum, do fim do argumento de que o cinema brasileiro tem no seu próprio som

um dos seus piores inimigos. A questão é: bom tecnicamente, o que diz de novo o som dos
filmes brasileiros recentes? A primeira vista, parecem ser poucas as propostas de união dos
sons e das imagens que fogem de um padrão que, ou repete antigos códigos naturalistas,
segundos os quais a narrativa está centralizada nos diálogos, ao passo que os demais sons,
músicas e ruídos, respondem por papéis redundantes com relação ao que a imagem já
informa, ou começa a repetir o que nas últimas décadas se configurou como um uso hiper-
realista dos sons, no qual mesmo seus exageros não os desvinculam de estarem ligados às
imagens de forma também redundante. O texto tentará entender como se dá a relativa
permanência, ou o retorno, desses padrões, ao mesmo tempo em que deverá buscar dentro
20

deles mesmos marcas contemporâneas, e ainda desvendar nos filmes recentes alternativas a
eles, usos dos sons que se destacam. A voz over permanece, serve tanto como ferramenta
para narrativas mais complexas como para as mais convencionais. A relação com a música
popular se dá em nova chave. A representação da língua falada no país é retrabalhada, há
um grupo de filmes que faz dessa questão tema central. O espaço dado aos ruídos cresce,
sejam eles agentes construtores da noção de realismo ou de hiper-realismo, ou
desempenhem funções normalmente dadas a outros elementos, como a música. Há filmes
que fazem dos sons situados fora de quadro o motor da narrativa. Pausas na trilha sonora,
momentos de silêncios, significam.
21

1.PRIMEIRAS TENTATIVAS DE SONORIZAÇÃO

1.1 CHEGADA DO CINEMATÓGRAFO, CHEGADA DO FONÓGRAFO

Nos momentos em que, dentro da bibliografia existente sobre o cinema brasileiro,


são enfocados os primórdios, há sempre espaço para os comentários sobre a variedade de
aparelhos que aportou em terras brasileiras entre os últimos anos do século XIX e os
primeiros do século XX. Alex Viany, no seminal Introdução ao cinema brasileiro, de 1959,

citava a famosa primeira sessão no Rio de Janeiro, do omniógrafo na Rua do Ouvidor, em 8


de julho de 1896. Jorge Capellaro e Paulo Roberto Ferreira sustentam que o ambulante
Vittorio di Maio fizera exibições, em Petrópolis, anteriores às do omniógrafo. 2 Viany
detectava a chegada, no ano posterior, dos cinematógrafos Edison e Lumière e do
animatógrafo. Paulo Emílio, no Panorama do cinema brasileiro, de 1970, comentava, de
forma análoga, a curiosidade da série de nomes que batizavam os primeiros projetores a

2
In: CAPELLARO, Jorge, FERREIRA, Paulo Roberto. Verdades sobre o início do cinema no Brasil. Rio de
Janeiro: Funarte, 1996.
22

funcionar em território nacional. Além do já citado animatógrafo, o biographo 3, o


vitascópio e os mais obscuros vidamotographo e o cineographo. (GOMES, 1986, p.39)
Vicente de Paula Araújo, em sua detalhada pesquisa contida em A bela época do
cinema brasileiro, detalha a passagem desses aparelhos pelo Rio de Janeiro. Lá estão
reproduzidas as notícias do Jornal do Comércio de 9 de julho de 1896 sobre a sessão do
omniógrafo (ARAÚJO, 1976, p. 75-76), da Gazeta de Notícias de 28 de março de 1897
sobre o cinematógrafo de Edison, e sobre o animatógrafo, na mesma Gazeta de Notícias,
em 4 de abril de 1897, citado como outra patente de Edison, trazido ao Rio de Janeiro por
Victor de Maio, um dos mais atuantes ambulantes responsáveis pela divulgação dos
primeiros projetores nestas terras. A essa lista, Vicente de Paula Araújo faz ainda um
acréscimo: a passagem, anterior aos dois últimos, do Kinematógrafo Portuguez, trazido
pelo Sr. Aurélio da Paz dos Reis, que deu exibições no Teatro Lucinda de 14 a 20 de
janeiro de 1897, com um programa que continha “vistas de Portugal e episódios da vida
portuguesa”. (ARAÚJO, op. cit. 78-80)
O que interessa a este trabalho é que esta catalogação dos primeiros projetores,
quando se estende até o ano de 1902, vai encontrar, no Rio de Janeiro, as primeiras
tentativas sistemáticas de sincronização mecânica entre imagens e sons, ou seja, entre
projetores e fonógrafos.4 Este sendo um dos nossos temas, em breve nos deteremos sobre
ele. Por enquanto, nos basta fazer um breve levantamento da chegada do fonógrafo. Para
compreender como logo o público carioca estaria assistindo à exibição conjunta de
projetores e fonógrafos, sincronizando-se pela primeira vez nas telas sons e imagens, é
preciso estar a par do sucesso que fonógrafos e gramofones já faziam no Rio de Janeiro.

Este rápido levantamento ainda nos é importante pois a comercialização dos fonógrafos no
Brasil está vinculada à comercialização do quinetoscópio de Edison, no país desde 1894,

3
O biographo foi desenvolvido por W. L. K. Dickinson e Herman Casler em 1895, ambos ex-empregados de
Edison, Dickinson tendo sido seu braço direito quando das pesquisas para o pioneiro quinetoscópio. Naquele
momento, concorrendo com seu ex-patrão, Dickinson é reportado por Laurent Manonni como tendo
suplantado com seu aparelho o sucesso do vitascópio de Edison, citado acima em seguida. O biographo teve,
segundo o francês, sua estréia em Pittsburgh, a 14 de maio de 1896. (MANONNI, 2003, p. 421-422) Já o
vitascópio, como se sabe, foi o primeiro projetor para exibição coletiva de Edison, já que a patente anterior, o
quinetoscópio, que será comentado mais à frente, era um aparelho destinado à fruição individual.
4
José Inácio de Melo Souza lembra que há testemunhos de que mesmo as exibições precursoras do
omniógrafo já teriam sido acompanhadas de um fonógrafo (SOUZA, 2004, p. 193). Como veremos, tal
tentativa de unir sons e imagens é inerente ao advento do cinema.
23

anterior à sempre citada vinda dos primeiros projetores coletivos, a partir de 1896. A vinda
tanto de um quanto de outro se conjuga na presença de Frederico Figner.
Máximo Barro já descrevera brevemente, em A primeira sessão de cinema em São
Paulo, a chegada deste tcheco que vinha dos Estados Unidos, e que percorrera o Brasil
primeiro com os fonógrafos, e três anos mais tarde, com os quinetoscópios. O trabalho
publicado a pouco por Humberto Franceschi sobre a Casa Edison, empresa de Figner que
viria a ser a pioneira em gravações fonográficas na América Latina, trata da vinda do
tcheco ao país em detalhes.
Figner, que vivia nos Estados Unidos desde 1882, naturalizado cidadão norte-
americano desde 1891 (mais tarde, se naturalizaria brasileiro), tivera seu primeiro contato
com o fonógrafo em 1889, em San Antonio, Texas. Já imbuído da idéia de descer aos
países latinos para comercializá-lo, Figner teria recebido, segundo Franceschi, “de um
judeu vendedor de vernizes” o conselho que selaria sua trajetória: “vá ao Brasil que você
fica rico”.
Cabe informar que Figner não estava meramente adquirindo os fonógrafos, e sim,
de acordo com a política de Edison, o direito de exibição nos territórios a serem explorados.
Assim, ficaria responsável pela sua distribuição aonde quer que com eles chegasse. Chega a
Belém do Pará, tendo saído de San Francisco em agosto de 1891. Vai, na seqüência, para
Manaus, e depois inicia o caminho para o sul. Exibe o fonógrafo em Fortaleza, Natal, João
Pessoa, Recife e Salvador, chegando ao Rio de Janeiro em 21 de abril de 1892.
(FRANCHESCI, 2003, p.17-18)
Franceschi lembra, e disso encontramos indícios nas pesquisas de outros autores,

que Figner não foi o pioneiro da introdução do fonógrafo no país. Inegável é que sua
difusão e o sucesso de suas vendas se devem ao tcheco. Exibições do aparelho, porém,
antes de sua chegada, há algumas.
No ano seguinte ao da patente tirada por Edison, e quatro meses após a sua primeira
exibição pública, o fonógrafo debutava no Rio de Janeiro, em uma das Conferências da
Glória, exibições periódicas de novidades, assistidas com freqüência pelo imperador D.
Pedro II, no Largo do Machado. A conferência em questão se deu em julho de 1878. O
exibidor, F. Rodde, faria outras demonstrações públicas do mesmo aparelho dias depois, a
26 do mesmo mês, na sua loja na Rua do Ouvidor. (FRANCESCHI, op. cit. P.19-20) Nos
24

anos seguintes, seguiriam havendo exibições esporádicas, antes da entrada de Figner na


praça, mais de dez anos após aquela primeira vinda. Vicente de Paula Araújo comenta que
em 1880, dois anos depois de ter tido o primeiro contato com o aparelho, D. Pedro II era
presenteado com um fonógrafo pelo romancista francês Gustave Aimard. (ARAÚJO, 1976,
p. 47)
Figner exibiria o fonógrafo por alguns meses, em 1892, em loja na Rua do Ouvidor,
167. No mesmo ano, partiria para divulgação em São Paulo, Campinas, Ribeirão Preto,
Piracicaba, e rumando para o sul, teria parado em Porto Alegre, Pelotas e Rio Grande,
saindo, na seqüência, do país, tendo estado em Montevideo e Buenos Aires. Estaria de volta
ao Rio de Janeiro no ano seguinte, mas dentro de pouco tempo partia para a Europa.
Nos EUA, em março de 1894, trava contato com a nova invenção de Edison, o
quinetoscópio, na Exposição de Chicago. Em um manuscrito de Figner está a descrição
desse projetor individual que se trata da primeira patente referente à execução de imagens
em movimento tirada por Edison. Franceschi e Barro transcrevem, em seus respectivos
livros citados, esta descrição, que define o quinetoscópio como:

um armário de 1m 20 de altura, por dentro do qual, sobre roldanas, se movia uma


fita igual as do cinema de hoje, com os mesmos quatro furos, e por cima do
armário, numa ponta, havia um buraco com um vidro de aumento por onde se
espiava. Entre a fita e a luz que estava por baixo, girava uma roda de folha de uns
25cm de diâmetro que tinha uma abertura de uns 4mm e produzia o efeito de
movimento, iluminando o quadrado da fita. Cada fotografia correspondia a uma
volta da roda, eram 16 fotografias por segundo. As fitas eram de 50 pés de
comprimento e as cenas eram pequenas. Lutas de boxe, brigas de galos, danças,
etc. (apud FRANCESCHI, op.cit. p.24)

Figner compra, segundo sua própria narração, “seis kinetoscópios e uns fonógrafos.
Aluguei metade da loja, 116, hoje 164 da Rua do Ouvidor, e os preparei para serem
expostos ao público.” Isto se deu em dezembro de 1894. Em 25 de abril de 1895, segundo
Barro, Figner estava com os quinetoscópios em São Paulo. Repetia a mesma trajetória para
o sul que fizera com os fonógrafos, até Buenos Aires. Em 1896, estava de volta ao Rio de
Janeiro, no mesmo endereço, onde exibia, além de quinetoscópios e fonógrafos, um
aparelho de raios-X, adquirido em Buenos Aires. Ainda em 1896, é o responsável, no Rio,
por um espetáculo de sucesso inusitado: a Inana, comentada por Vicente de Paula Araújo.
A imagem da mulher suspensa no ar que surpreendia o público se tratava, na descrição de
25

Franceschi, de uma engenhosa trucagem: a mulher em questão ficava deitada dentro de uma
caixa. Uma luz a suas costas, transpassada por um vidro a sua frente, para fazer a função de
lente, projetava sua imagem em um pano suspenso, perpendicular à caixa. (FRANCESCHI,
op.cit. p.26 e ARAÚJO, op.cit. p.69-60) Anos mais tarde, em 1901, estreava uma revista no
Teatro Recreio intitulada Inana, que ainda comentava o sucesso do espetáculo de
ilusionismo. É importante citar essa revista, pois aqui aparece pela primeira vez um
personagem que nos será central quando estivermos tratando dos anos de 1908 a 1911, e,
mais precisamente, dos filmes cantantes: a música da revista foi composta pelo maestro
Costa Júnior.

Sobre seus quinetoscópios no Rio de Janeiro, em 1894, Figner advoga para si,
segundo seus manuscritos, a idéia da junção que é tema principal deste trabalho, ou seja, a
união de imagens e sons. Diz Figner, citado por Franceschi:

como havia fitas como as de boxe, em que se viam pessoas gesticulando, e brigas de
galos, que também tinham espectadores que moviam os lábios, engendrei de colocar
ao lado do motor, dentro do armário, um fonógrafo com cilindros preparados para as
diversas fitas com falação e gritaria adequadas ou música para as danças, e assim
transformei o kinetoscópio em kinetophone. Era o cinema falado com o qual ainda
não se sonhara. (apud FRANCESCHI, op. cit. p. 24)

Aqui, é preciso desconsiderar, no mínimo, a suposição de que não se sonhara com o


cinema falado. É sabido que a junção de sons e imagens sempre fora um desejo de
Edison, como já expusemos em trabalho anterior, e que está amplamente documentada
por Laurent Manonni no recém-traduzido para o português A grande arte da luz e da

sombra. Basta citar o depoimento de Edison reproduzido tanto por Manonni quanto por
seu assistente e biógrafo Dickinson em History of the kinetograph, kinetoscope e kineto-
phonograph, documento de 1895:5

5
Re-editado pelo MoMA de Nova Iorque em fac-símile, em 2000. O nosso trabalho anterior, que já levantava
esta questão é a dissertação de mestrado defendida no mesmo Programa de Pós-graduação em Comunicação
da Universidade Federal Fluminense, em janeiro de 2003, intitulada Som no cinema, silêncio nos filmes – o
inexplorado e o inaudito.
26

No ano de 1887, me ocorreu a idéia de que era possível desenvolver um instrumento


que fizesse para o olho o que o fonógrafo faz para o ouvido, e que isso se daria pela
combinação dos dois. Ambos, movimento e som, poderiam ser gravados e
reproduzidos simultaneamente (apud DICKINSON, 1895)

Segundo Dickinson, o quinetoscópio deveria ser, desde o início, o quinetofonógrafo,


ou seja, deveria projetar, como explica Edison, não só imagens, mas também sons. Como
parte do investimento contra as dificuldades encontradas para concretizar a sincronização,
há registros, em 1891, ano da patente do quinetoscópio, da união do fonógrafo ao projetor.
Trata-se de uma carta, datada de 28 de maio de 1891, do jornalista Léo Backelant para o
periódico belga Hélios, publicada em 1 º de julho do mesmo ano, que chega a nós
reproduzida por Manonni. O repórter dá voz a Edison:

Com este novo aparelho, diz ele, será possível sentar na poltrona, em casa, na sala de
estar, e ver projetada numa tela toda uma companhia de ópera, com os artistas
interpretando, gesticulando, falando e cantando.
Para conseguir este resultado, Edison coloca diante do palco bem iluminado, durante
todo o tempo da representação, seu quinetógrafo conjugado a um fonógrafo. A
orquestra toca, a cortina se ergue, e a ópera começa. As duas máquinas trabalham
simultaneamente: enquanto o fonógrafo registra o som, o quinetógrafo toma uma
série de fotografias instantâneas a uma velocidade de 46 imagens por segundo (...)
Tendo assim obtido uma longa tira com uma infinidade de imagens fotográficas,
podem-se imprimir imagens positivas numa outra fita, e bastará fazer correr essas
imagens diante de um aparelho de projeção, tendo-se o cuidado de manter a mesma
velocidade (...) Junte-se a isso o mecanismo que faz acionar o fonógrafo e ter-se-á a
descrição completa do aparelho. (apud MANONNI, op.cit. 385)

O próprio nome utilizado por Figner, kinetophone, é o nome da patente de Edison,


tirada quando aparentemente é dada como solucionada a união entre os dois aparelhos. Em
maio de 1895, o quinetofone, junção do quinetoscópio e do fonógrafo, é exibido em Paris, e
em Bruxelas em agosto. Manonni mais uma vez fornece o registro:

O quinetoscópio hoje está ultrapassado. Edison inventou o quinetofone. Não apenas


podemos ver a dança da serpentina, mas ouvir a música que a acompanha. Vemos a
dança do ventre e ouvimos essa lânguida melopéia que implacavelmente nos
persegue na Exposition d’Anvers. Vemos Napoleão desfilar perante trinta ou mais
pessoas, todas agitando-se e debatendo-se ao som de marchas retumbantes e canções
patrióticas. O quinetofone Edison (...) obteve grande sucesso como novidade. E
verdadeiramente a variedade de espetáculos que vimos e ouvimos e a perfeição
artística com que tudo isso é apresentado são calculadas para despertar o espanto, a
admiração, o deslumbramento. (in: Hélios Illustré, n.128, 15 de agosto de
1895, p.127 apud MANONNI, op. cit. P. 395-396)
27

Assim, o que se pode dizer, é que mesmo Figner desconhecendo essa parte da
história, não se pode dar crédito ao pioneirismo de sua idéia.

Quanto aos fonógrafos, é grande seu sucesso no Rio de Janeiro, nos últimos anos do
século XIX e na passagem para o século XX. Tanto Franceschi como Araújo citam indícios
das exibições públicas. O cliente depositava uma moeda e tinha direito a ouvir uma
gravação. Figner permaneceria na Rua do Ouvidor com os fonógrafos até 1897, de lá se
mudando para a Rua Uruguaiana, 24. Deste período Vicente de Paula Araújo recolhe, da
Gazeta de Notícias, dois textos sobre o seu sucesso (ARAÚJO, op.cit. p.48-50). Seu irmão,
Gustavo Figner, cuidava dos negócios em São Paulo. Em 1899, a loja paulista encontrava-
se na Rua São Bento, 50. Em Salões, circos e cinemas de São Paulo , Vicente de Paula
Araújo transcreve notícia sobre a “audição de fonógrafos e gramofones, com depósito de
fonogramas nacionais e estrangeiros: bandas, orquestras, discursos, monólogos e
modinhas” (ARAÚJO, 1981, p. 260). Em 1900, Figner fundaria a Casa Edison, localizada

na Rua do Ouvidor, 107, e responsável, em 1902, pela primeira gravação fonográfica em


território brasileiro, o maxixe Isto é bom, com o cançonetista Bahiano. No mesmo ano, a
Casa Edison já exibia seu catálogo com 228 títulos. Vale lembrar que, assim como ocorrera
com os aparelhos, a técnica de gravação também não tardara em chegar ao Brasil. Poucos
meses antes, em agosto de 1901, Caruso e Sarah Bernhardt eram as estrelas dos primeiros
registros na Europa. (FRANCESCHI, op. cit. p. 43) 6

Evidentemente, outros negociantes e firmas surgiam na esteira do sucesso dos


fonógrafos, como, por exemplo, no Rio de janeiro, a Casa Bogary, situada na Rua do
Ouvidor, 69. Em São Paulo, aparecia, em 2 de fevereiro de 1897, um espetáculo que,
segundo seu anúncio, trazia o fonógrafo combinado pela primeira vez com a projeção de
filmes. Era o vitascópio de Edison. Dizia o informe, no Comércio de São Paulo daquela
data, reproduzido por Araújo:

6
Lembrando também que a relação entre os primeiros passos da indústria fonográfica e o cinema não é
exclusividade brasileira, no caso de Figner. O poderio da própria Pathé Frères começara com a
comercialização dos discos e dos fonógrafos, antes de expandir-se para o cinema, como informa José Inácio
de melo Souza (SOUZA, 2004, p. 166).
28

SALÃO DA PAULICÉA
EDISON’S PROFESSIONAL EXHIBITION
PROFESSOR KIJ & JOSEPH

A ÚLTIMA MARAVILHA

O VITASCOPE
Fotografia viva
Combinação com o moderno MICROFONÓGRAFO, de grande buzina, para ouvir-
se sem necessidade de tubinhos auditivos.
No Salão de Concertos da
PAULICÉIA
Rua quinze de novembro
Função permanente das 8 às 10 da noite.
Os intervalos serão preenchidos pela excelente orquestra da Paulicéia.
Esta maravilha científica, última criação do genial Edison, apresenta em tamanho
natural a reprodução fiel das cenas vivas da vida quotidiana dos povos e da natureza.
O novo fonógrafo que acompanha esta exibição é um moderno aperfeiçoamento
especial para este salão, que permite ouvir clara e distintamente, SEM
NECESSIDADE DOS TUBINHOS AUDITIVOS.
Magnífico e variado repertório de canto, bandas e orquestras, excêntricos, etc, etc,
em seis línguas diferentes.(apud ARAÚJO, 1981, p.15-16)

È um indício da chegada ao Brasil das tentativas de projeção de sons e imagens


unidos que Edison exibia desde 1895. Neste momento, Edison estava às voltas, como se vê
no texto, com as primeiras tentativas de solução de um problema fundamental para o
sucesso dos fonógrafos para as salas de cinema: a amplificação do som. Encontram-se
notícias correspondentes em outras partes do país. Em Alagoas, por exemplo, sabe-se de
exibições, em 1897, do motoscópio acompanhado de fonógrafo 7. Antes, em dezembro de
1895, a cidade já havia visto o quinetoscópio, que como sabemos, desde 1894 rodava o país
pelas mãos de Figner.8 Voltando ao anúncio de São Paulo, o Professor Kij, que trazia

7
O motoscópio, tendo exibições registradas em outras partes do Brasil, é provavelmentemutoscope
o , com
nome vertido para o português. Patente dos mesmos Casler e Dickinson do biógrafo, e como dissemos, ex-
empregados de Edison, trata-se de um aparelho, à maneira do quinetoscópio, para uso individual, e era
movido à manivela, posta em ação pelo próprio espectador. (MANONNI, op. cit, p.421) A notícia das
projeções acompanhadas de som procede, a princípio, pois é sabido que Dickinson herdara de Edison a
preocupação com a incorporação do som.
8
Não é demais lembrar que a peregrinação de Figner não constitui fato isolado nesses primeiros passos do
cinema no Brasil. Máximo Barro, em Na trilha dos ambulantes (São Paulo: Maturidade, 2000), descreve as
trajetórias de vários negociantes que viajaram pelo país apresentando a novidade das projeções de cidade em
cidade. Alguns nomes se sobressaem, como o do português Germano Alves, que entre 1897 e 1898 apresenta
o cinematógrafo em Niterói, Juiz de Fora, Ouro Preto, São João Del Rey, Porto Alegre; o italiano Vitor di
Maio, em Petrópolis antes da passagem por São Paulo que comentaremos na seqüência; Cunha Salles, que se
estabeleceria no Rio de Janeiro; Nicolay Faure, com exibições registradas em Curitiba, Petrópolis, São Carlos,
Pindamonhangaba; H. Kaurt, que passou também pelo interior de São Paulo, por Florianópolis, Maceió, São
29

consigo o vitascópio, seguiria na cidade pelos próximos anos como comerciante de


fonógrafos, visto que a experiência das projeções sonoras parece ter sido, neste primeiro
momento, um acontecimento esporádico. Kij era representante de Edison, como Figner. É
mencionado ainda, no mesmo período, entre 1897 e 1898, o nome de Carlo Barra, que
recebe da imprensa a alcunha de “o homem dos fonógrafos”.

Assim, independente dessas primeiras tentativas isoladas e, ao que tudo indica,


frustradas, de projeções sonoras, o sucesso concomitante dos fonógrafos e dos
cinematógrafos preparava seus públicos para o “aperfeiçoamento” do último, que viria em
breve. Estava por surgir uma junção mais bem sucedida das máquinas de reproduzir
imagens e sons, e que seria conhecida de forma genérica como o cinematógrafo falante.

1.2. OS CINEMATÓGRAFOS FALANTES

1.2.1. Primeira vinda

O termo cinematógrafo falante é encontrado em documentos da época se referindo


genericamente a diversas patentes que procuram concretizar, a partir de 1902, a união das
imagens e dos sons, mediante exibição sincronizada, por meio de cabos, de um projetor e
de um gramofone. Em 1902, há o registro de uma rápida passagem de tais aparelhos pelo
Brasil. Vicente de Paula Araújo encontrou em O comércio de São Paulo, de 14 de março
daquele ano, a seguinte notícia: “De Paris, escreve-nos o Sr. Vitor de Maio anunciando o

seu breve regresso a esta capital, onde exibirá o Phono-cynematographo , a última novidade
de Edison, isto é, reprodução de cenas animadas combinadas a um grande phonographo
automático”. (ARAÚJO, 1981, p.76) E, de fato, cerca de um mês e meio depois, Vitor Di
Maio apresentava a novidade no Salão Paris em São Paulo, na Rua São Bento, 77, batizada
de Cinephone, ou cinematógrafo falante, devidamente anunciada no Comércio de São
Paulo de 3 de maio de 1902. Há notícia de outra exibição no dia 18 do mesmo mês, sem
ficar claro se nesse ínterim houve outras sessões. Dentro do programa composto por seis

Luís; e, entre outros nomes, Edouard Hervet, francês que merecerá neste trabalho especial destaque, por sua
relação com as primeiras tentativas de sonorização.
30

curta-metragens, o programa de 18 de março cita como falante apenas um deles, a peça


Geneviève de Brabant.
Poucos dias depois, surgia em São Paulo aparelho similar, trazido pelas mãos do
ilusionista italiano Cesare Watry, e exibido no Teatro Sant’anna. O mesmo jornal, em 7 de
junho de 1902, anuncia: “Pela primeira vez em São Paulo, o verdadeiro e aperfeiçoado
Cinophon-falante, a maior surpresa do século” (apud ARAÚJO, 1981, p.83). Araújo
comenta o relativo fracasso do aparelho, que teria realizado apenas duas projeções. O
filmete com som era uma ária da Carmen, de Bizet.

Em 31 de julho, o mesmo Watry encontra-se no Rio de Janeiro, exibindo o mesmo


aparelho com a mesma programação, e com a mesma recepção calorosa da imprensa, desta
vez por conta da Gazeta de Notícias: “Pela primeira vez nesta capital a grande novidade do
dia: o Cinematógrafo falante exibirá trechos de diferentes óperas, entre outras, a Carmen de
Bizet.” (apud ARAÙJO, 1976, p.145)

Araújo estranha, também com relação aos espetáculos cariocas, que apesar do calor
da novidade o cinema falante de Watry tenha dado apenas três apresentações. Analisando-
se em conjunto as três exibições no Rio de Janeiro e as duas paulistas, constata-se um real
fracasso, tenha sido por desinteresse do público ou por funcionamento precário do aparelho,
o que é mais provável. Nunca é demais lembrar que as tentativas de sincronização entre
imagem e som, que perpassam todo o período de trinta anos posteriormente conhecido
como mudo, constituem uma longa trajetória de ações mal-sucedidas, de aparentes
sucessos, sempre efêmeros, até que, apenas no fim da década de 1920, o problema viesse a
ser solucionado de uma vez por todas, como veremos no segundo capítulo.

1.2.2. Segunda vinda

Uma segunda passagem dos cinematógrafos falantes pelo país é registrada entre
1904 e 1905. Vicente de Paula Araújo encontrou notícias de exibições no Rio de Janeiro e
em São Paulo. Porém, procurando por registros correspondentes em outras partes do Brasil,
encontramos o francês Edouard Hervet, o mesmo que estaria nas cidades citadas, chegando
31

antes no norte do país, com o Cinematógrafo Lumiére Aperfeiçoado, vulgo cinematógrafo


falante.

O pesquisador Marcos Fábio Melo Matos descobriu, entre os jornais A Pacotilha e


o Diário do Maranhão, o registro da temporada do francês em São Luís. Vindo de Belém
do Pará, Hervet estreava seu cinematógrafo falante no Theatro São Luís, no dia 30 de abril
de 1904, um sábado.9 As exibições constavam de uma conjugação do Cinematógrafo
Lumière com um Zoofone, concorrente da marca Gramophone. A Pacotilha de 02 de maio,
segunda-feira, critica o espetáculo, comentando que “a parte falada é um tanto quanto
desarmônica” e que “poderia ser melhor, o que não significa que seja má” (apud MATOS,
2002, p. 100).

No fim de semana seguinte, dias 07 e 08 de maio, Hervet volta a realizar suas


exibições. Na segunda-feira, A Pacotilha esclarece para os leitores que os defeitos durante
as projeções se deviam a uma falha no motor, impossível de ser reparada em São Luís. Há

ainda notícia de uma sessão em 13 de maio, uma sexta-feira. Em seguida, Hervet se dirige
ao sul do país. Seria encontrado no Rio de Janeiro, seis meses depois, em novembro.
(MATOS, op. cit. p. 101-102) É provável que, repetindo o trajeto de ambulantes anteriores,
como Figner, tenha parado em outras cidades rumo ao sul, demonstrando o aparelho,
conquanto ele funcionasse. Máximo Barro cita uma exibição de Hervet em Salvador, mas
não precisa a data. (BARRO, 2000, p. 119)

Aqui se coloca uma questão que achamos pertinente demarcar. Em oposição a uma
centralização no Rio de Janeiro e em São Paulo deste fenômeno das primeiras exibições
com sincronização mecânica entre sons e imagens, é importante notar a rota de Hervet, bem
como a de Figner, vindo do norte, aportando em Belém do Pará e percorrendo um caminho
que mapeia o norte e o nordeste antes de chegar ao sudeste, à capital do país. Nos casos em
que há um recorte nacional, existe sempre o perigo de circunscrever a história do cinema,
assim como qualquer manifestação cultural, àquele que foi historicamente construído como
o centro, seja cultural ou econômico, do país. No caso, é importante o esforço de abrir o

9
Máximo Barro encontrou indícios de uma sessão de Hervet, em 30 de março de 1904, em Manaus (BARRO,
2000, p. 119). Tendo Hervet estado em São Luís exatamente um mês depois, desenha-se um percurso factível
que, dentro desse intervalo de tempo, parte de Manaus, passa por Belém e se encontra, ao fim, no Maranhão.
O recente trabalho de José Inácio de Melo Souza cita a apresentação de Manaus, faz referência a Belém e
inclui no roteiro conhecido de Hervet pelo norte e pelo nordeste, Recife. (SOUZA, 2004, p. 205)
32

mapa até encontrar o fenômeno que é o nosso objeto de estudo espalhado pelos outros
estados, e ainda, neste caso específico, não só encontra-lo no norte, mas reconhecer esse
norte como seu ponto de partida. 10

Vicente de Paula Araújo encontra Hervet e seu Cinematógrafo Lumière


Aperfeiçoado no teatro Lírico, no Rio de Janeiro, em 26 de novembro de 1904, como
informado pela Gazeta de Notícias. A sessão, como as da primeira vinda, compunha-se de
vários curta-metragens, dentre eles um falante. Sucesso entre os curtas mudos fez o Cake
Walk infernal, de Meliès, que também havia sido exibido nas sessões maranhenses. O
falante era uma versão filmada da canção Bonsoir Madame la lune, cantada pelo Sr.
Mercadier. A Gazeta de Notícias exalta o sucesso da união do fonógrafo com o
cinematógrafo e, em crítica elogiosa, descreve o momento em que se ouvia a voz do cantor:

O assombro. Surge o célebre Mercadier, esse aclamado Mercadier que cumprimenta,


puxa o punho na paisagem lunar e começa, uma voz límpida e sonora:

Bonsoir, madame la lune,


Bonsoir
C’est votre ami pierrot
Que vient vous voir
Bonsoir, madame la lune,
Bonsoir

10
Evidentemente, a circulação de filmes provenientes da Europa n o norte e no nordeste não está desvinculada
dos processos industrializadores, e dos respectivos pontos de contato com a Europa, em cidades como Recife,
São Luís, Belém, Manaus. Marco Fábio Belo Matos lembra que São Luís já vivera no século XVIII um
período de precoce riqueza a partir da cultura e da exportação de algodão e de cana de açúcar. Mais tarde, na
passagem do século XIX para XX, contemporaneamente à chegada do cinema, um novo processo de
modernização ganharia o apelido de período da “loucura industrial”, e renderia à cidade a curiosa alcunha de
Manchester do norte. (MATOS, op.cit. p. 45-53) A riqueza advinda desses período manteve a elite
maranhense em contato permanente com a Europa, e a chegada de exibidores franceses à ilha de São Luís
pode ser entendida como parte desse diálogo. Sobre Manaus, é sempre comentada a expansão econômica
derivada da extração do látex, comumente chamada de Ciclo da Borracha. O maior emblema da riqueza desse
período, e do intercâmbio com a cultura advinda da Europa, é o Teatro Amazonas, inagurado em 1896. Como
lembram Selda Vale da Costa e Narciso Julio Freire Lobo, o cinema também seria beneficiário dessa
expansão cultural, com a construção, já no início do século XX, de salas como o Polythema, de 1904, e o Cine
Guarany, 1907, e com passagem pela capital amazonense de filmes da Gaumont e da Pathé, além dos
gramophones de Edison, em exibição pública lá como no sudeste. (COSTA, LOBO, 1986) O esforço de
mapear a passagem destas primeiras tentativas de cinema sonoro em uma área maior do que o eixo Rio-São
Paulo está em consonância com o trabalho de historiadores como Evaldo Cabral de Mello, que, através dos
estudos sobre a resistência pernambucana no século XIX em aceitar a centralização do império no Rio de
Janeiro, tenta escapar do que ele próprio chama de “Rio-centrismo”, a interpretação comum do nascimento do
país pela aceitação de parâmetros identificados unicamente com o sudeste. Para mais sobre o assunto, ver seu
livro A outra independência – o federalismo pernambucano de 1817 a 1824. (Editora 34, 2005)
33

Um nosso amigo exclama diante da oração: “se um tabaréu vê isto, acaba maluco”. O
público, porém, está mesmo maluco, pedindo bis. (Gazeta de Notícias, 27 de
novembro de 1904, apud ARAÚJO, 1976, p.163)

O cinematógrafo falante de Hervet ficaria no Teatro Lírico até 20 de dezembro.


Além de Bonsoir Madame la lune , exibiria, dentre seus curtas, os falantes Selon la saison e
La femme est um jouet, ambos cantados pelo mesmo Mercadier e Conversação telefônica,
com o Sr. Galipaux.

No ano seguinte, em 25 de fevereiro, um sábado, o mesmo espetáculo estava no


Teatro Apolo. O falante daquela sessão era, ainda, Bonsoir Madame la lune (Gazeta de
Notícias, 25 de fevereiro de 1905, apud ARAÚJO, 1976, p.169). Em 1º de março, Hervet
estréia em São Paulo, no Teatro Sant’anna, o mesmo aparelho e os mesmos filmes. No
decorrer daquele mês, o Comércio de São Paulo tece comentários elogiosos às exibições
(ARAÚJO, 1981, p. 113-114). José Inácio de Melo Souza encontra na imprensa da época

comentários sobre o sucesso financeiro da temporada do francês no Sant’anna (SOUZA,


2004, p. 205). De qualquer forma, tendo havido êxito ou não, a temporada paulista não dura
mais que o mês de março.

Com Hervet, como nas poucas sessões de 1902, de Vitor di Maio e Cesare Watry,
detecta-se um padrão do que foram essas primeiras projeções com imagens e sons
sincronizados. As atrações falantes daqueles programas se tratavam de um filme de um
rolo, ou seja, o tempo de execução da canção, inserido em uma sessão composta de vários
curta-metragens. O falante seria a atração principal do programa, muitas vezes encerrando a
sessão.

Hervet estará de volta ao Rio de Janeiro no fim do mesmo ano. Antes, Máximo
Barro encontra-o em Curitiba, com a notícia de uma sessão ocorrida a 06 de julho
(BARRO, 2000, p. 119). Em 09 de outubro, desta vez é o Teatro São Pedro que recepciona
o cinematógrafo falante em terras cariocas. Selon la saison, já exibido no início do ano,
ainda é a atração falante. Cabe lembrar que a falta de variedade dos programas se justifica
pela necessidade da importação desses filmetes europeus. Enquanto não houvesse
condições de empreender nova viagem à Europa e comprar outro lote de atrações o
34

empresário em trânsito pelo Brasil não tinha opção, a não ser conseguir o máximo de lucro
possível com o catálogo que tinha à mão.

No dia 4 de novembro daquele ano de 1905, o Teatro Lírico anunciava um


concorrente de Hervet: o Cinematógrafo Falante Pathé, da Empresa Candburg. A Gazeta de
Notícias do dia seguinte informa sobre a sessão, descrevendo um sucesso relativo de
público, que teria saído satisfeito, embora houvesse preenchido apenas cerca de um terço da
lotação da casa (apud ARAÚJO, 1976, p. 175). Segundo o jornal, aquele aparelho
permaneceu no Lírico até 15 de novembro. Os filmes falantes da empresa atendiam pelos
títulos: Berceuse, La fiacre, ambos cantados pela Mlle. Yvette Guilbert, A mosca , Cansam
as virgens, estes cantados pelo Mr. Galipaux, além dos velhos conhecidos do público Selon
la saison e La femme est um jouet.
Há registro do mesmo espetáculo da Empresa Candburg em São Paulo, no ano
seguinte, a 09 de maio de 1906, no mesmo Teatro Sant’anna que recepcionara Hervet. A

notícia é do Comércio de São Paulo, e está transcrita por Araújo. Fato importante é que o
texto faz propaganda do sucesso anterior em outras cidades, citando não só o Rio de
Janeiro, mas também Santos e Buenos Aires, no Teatro Polytheama. (ARAÚJO, 1981, p.
128). Esta informação é relevante por delinear partes do caminho percorrido nos seis meses
de intervalo entre as exibições cariocas e aquela chegada em terras paulistas. Máximo Barro
traz ainda a notícia de uma exibição da empresa em Campinas. (BARRO, op. cit. p. 119)

Confirmando a hospitalidade do Teatro Sant’anna para com os cinematógrafos


falantes, outra empresa, a Star Company, ocupa aquela sala, ao fim do mesmo ano de 1906,
estreando a 3 de novembro. O Comércio de São Paulo do dia seguinte elogia a qualidade da
exibição, nítida e sem trepidações, e noticia o sucesso de público. O Cinematógrafo Falante
Aperfeiçoado da Star Company permaneceria no Sant’anna até 2 de dezembro, um mês,
portanto. Barro encontra, sobre este aparelho, indícios de uma exibição em Curitiba, três
dias depois da despedida de São Paulo. (BARRO, op. cit. P. 119)

Este segundo ciclo dos cinematógrafos falantes, se podemos fechá-lo assim, que
dura desde abril de 1904, com a chegada de Hervet ao Maranhão, até a última notícia de
exibição sua, no fim de 1905, no Rio de Janeiro, mais os espetáculos dados aqui e ali pelas
empresas Candburg e Star Company, que chegam ao fim de 1906, descreve um êxito
35

expressivo, em contraposição às sessões esporádicas de 1902. Apenas no Rio de Janeiro,


por exemplo, trata-se de um período que, claro, sem ter sido de exibições contínuas, diárias,
compreende cerca de um ano e meio de projeções em que sons e imagens estiveram
sincronizados mecanicamente. São exibições que perpassaram o território nacional, pelo
menos, segundo os indícios levantados, de Manaus a Curitiba, de norte a sul.

Mas Hervet, fora de cena desde dezembro de 1905, ainda voltaria, com o mesmo
negócio.

1.2.3. Volta de Hervet, e um surto de falantes

Em 16 de março de 1907, Hervet está de volta a São Luís do Maranhão, trazendo


mais uma vez, um cinematógrafo. A Pacotilha anuncia a estréia do aparelho dois dias
depois, na edição de 18 de março. Os exemplares do dia 22 do mesmo mês informam que
uma das fitas era uma Paixão de Cristo falante, exibida por ocasião da Semana Santa
(programa costumeiro, diga-se de passagem, por anos a fio, do qual encontra-se registro em
várias cidades), tendo sido motivo de grande êxito. O jornal anuncia a despedida de Hervet
na edição de 17 de abril de 1907, não se esquecendo de elogiar a derradeira sessão. (apud
MATOS, 2002, p. 102-104)

Edouard Hervet estava de partida, como na primeira vinda, para o sul. E,


exatamente como daquela vez, seria encontrado, seis meses mais tarde, na capital federal.

Vale ressaltar, antes deste texto deixar o Maranhão, que o estado participa (ou, se poderia
dizer, antecipa) do surto de falantes que chega ao país entre 1907 e 1908. Ainda em 1907,
entre os dias 14 e 16 de agosto, surge em São Luís o Cinematógrafo Gaumount, que, assim
como o aparelho de Hervet, seria encontrado mais adiante no sul. Foram, segundo os
registros da Pacotilha, três sessões, e o jornal não lhes poupa críticas. Em determinado
momento, comentando o sincronismo, ou a falta dele, a matéria diz que “a audição de uma
scena da Cavalleria Rusticana foi boa, apesar das falhas notadas, a princípio, na
combinação dos aparelhos”. Mais à frente, sem meias palavras, a conclusão é de que foi
“um verdadeiro desastre o Cinematógrafo Gaumont”. (apud MATOS, op. cit. p. 115)
36

Informação relevante sobre a partida da Companhia Norte-americana, este o nome da


empresa que dentre outras atrações exibia o Cinematógrafo Gaumont, diz que naquele 19
de maio de 1907, a empresa e o cinematógrafo partiam para o Ceará. Esta informação é
corroborada por Aloysio de Alencar Pinto, no artigo A música, o pianeiro e o cinema
silencioso. Aloysio comenta que Julio Pinto, exibidor em Fortaleza no início do século,
apresentava em 1907 “a novidade do cinema sincronizado com discos”, com um aparelho
da Gaumont. (PINTO, 1986, p. 42-46) O Cinematógrafo Gaumont será encontrado no Rio
de Janeiro apenas no ano seguinte, o que pressupõe várias paradas no caminho para o sul,
assim como se pode supor o mesmo a respeito de Hervet. Não estarem aqui detalhadas não
significa que exibições por outros estados sejam improváveis. Significa tão somente que
esta pesquisa não teve acesso a documentação tão detalhada referente a eles como teve com
relação ao Maranhão.

Há ainda, em São Luís a notícia de um outro cinematógrafo falante, vindo de

Belém, chamado apenas assim, sem identificação de firma ou de patente, que manteve
sessões no início de 1908, entre os dias 08 e 12 de fevereiro. Em março do mesmo ano,
chega da Europa o Cinematógrafo Falante da Empresa Fontenelle. 11 A Pacotilha anuncia o
espetáculo, explicando detalhadamente o funcionamento do aparelho:

Um apparelho, o electrophono, produz a ilusão de uma grande orquestra,


reproduzindo a voz humana com todas as tonalidades e inflexões. Funcciona pela
electricidade e o ampliador de sons é baseado na inflamação de gazes hydro-
carburados.
É ligado por um fio eléctrico ao cinematógrapho e por um telephono, de modo a
assegurar a derramage simultânea dos apparelhos e um dínamo differencial permite o
avanço ou o recuo
Serão exibidas do cinematographo
danças características para
dos adiversos
boa combinação
países e da scena. pelos artistas
canções
mais célebres acompanhados pelo Electrophono. O efeito produzido sobre as pessoas
ouvindo estas phono-scenas é prodigioso. O cinematographo é o melhor que tem
vindo ao Brasil, e o único admitido a funcionar nos grandes theatros de Paris. (A
Pacotilha de 26 de março de 1908 apud MATOS, op. cit. p.121-122)

11
Segundo Selda Vale da Costa, a Empresa Fontenelle, fundada em 1907, ano anterior ao evento que estamos
comentando, viria a ser a maior proprietária de salas de cinema em Manaus, constituindo uma supremacia
inquestionável até os anos 30. Pode-se supor que a grande novidade da empresa em 1908, o cinematógrafo
falante, tenha se apresentado, portanto, também na capital do Amazonas. (in: RAMOS, MIRANDA, 2000, p.
21)
37

O Cinematógrafo Fontenelle estreou em uma noite de sábado, 07 de março de 1908


e manteve sessões regulares até o dia 22 do mesmo mês. Um segundo período de exibições
ocorreu de 5 a 10 de maio. Digno de nota foi o sucesso, como no ano anterior, da Paixão de
Cristo falante, exibida, como de praxe, na Semana Santa. Matos sublinha que o
Cinematógrafo Fontenelle foi o que permaneceu por mais tempo na cidade, dentre o
conjunto de aparelhos de apresentações efêmeras, sempre de partida para outras capitais.
(MATOS, op. cit. p. 124)

Voltando a Edouard Hervet, já no Rio de Janeiro, sua reestréia na cidade está


documentada por Araújo, que reproduz a matéria da Gazeta de Notícias de 28 de agosto de
1907. As apresentações ocorreram no mesmo Teatro Lírico da vinda anterior. A notícia
explica a conhecida combinação de fonógrafo e projetor, e detalha o programa, composto
de 17 curta-metragens, divididos em três blocos. É mantido o padrão dos anos anteriores:
apenas um curta é falante, apresentado como atração principal da sessão. Desta vez, trata-se

da canção La juive, Rachel quand du seigneur, cantada por Gauthier, artista da Ópera de
Paris. Cabe ressaltar que no intervalo entre os blocos uma orquestra, regida por Luigi
Donati, entretinha o público. (ARAÚJO, 1976, p.201-205) O mesmo espetáculo provia,
portanto, acompanhamento sonoro mecânico, pelo fonógrafo em sincronia com o projetor, e
música ao vivo, pela orquestra, ressaltando, ao que tudo indica, que esta não acompanhava
os filmes, sendo executada apenas nos intervalos entre eles. Hervet manteria seu espetáculo
no Lírico até 07 de novembro, tendo permanecido em cartaz, portanto, por mais de um mês.
Os falantes faziam sucesso. Em 24 de novembro, outro empresário, iniciando seus negócios
com o cinema, exibe sua primeira fita falante. É William Auler, que, no seu Grande
Cinematógrafo Rio Branco, anuncia árias de óperas famosas cantadas pelos mais célebres
artistas europeus. Uma ária de Tamagno é a primeira fita a ser exibida. Estava entrando em
cena, com os falantes, aquele que seria, a partir do ano seguinte, o maior produtor e
exibidor dos filmes cantantes no Rio de Janeiro, dos quais falaremos bastante, em breve.
William é o nome adotado por Cristóvão Guilherme Auler, nascido em Petrópolis em 1865.
Segundo Hernani Heffner, após voltar dos Estados Unidos, onde passa a juventude, Auler
se aproxima do meio cinematográfico fornecendo cadeiras para as salas. Em 1907, como
dissemos, funda o seu cinema, localizado na esquina da Av. Visconde do Rio Branco com
Gomes Freire, pouco acima da Praça Tiradentes, como informa Evelyn Werneck Lima
38

(LIMA, 2000, p. 118). Mais tarde, reformado, o Rio Branco teria mais de 700 lugares, e
abrigaria os grandes sucessos dos cantantes até 1911, quando fecharia as portas. (in:
RAMOS, MIRANDA, 2000, p. 35)12

A inauguração do Rio Branco de Auler é parte de um contexto que, como nota José
Inácio de Melo Souza, determina o fim do período do cinema ambulante, com a construção
das grandes salas, aglutinadas, no caso carioca, na Avenida Central. Souza não deixa
esquecer que o aparecimento dessas salas maiores faz sentido dentro do projeto de
edificações imponentes na grande avenida aberta em 1905. O fim das obras do Teatro
Municipal data de 1909. Contígua à Avenida Central, a Beira-Mar estendia, em 1906, o
alargamento do centro, rumo aos bairros de Flamengo e Botafogo (SOUZA, 2004, p. 128-
129).

Há ainda notícia de um cinematógrafo falante no Rio de Janeiro antes do fim de


1907. Em 7 de dezembro, o Teatro São Pedro anuncia o aparelho pertencente à Empresa

Starcy, citado de forma enigmática como “o único do gênero na América do Sul”


(ARAÚJO, 1976, p. 220). Em 1908, a cidade continua a receber os falantes. O Cinema
Palace, de Labanca e Leal, na Rua do Ouvidor, 149-B, apresenta pela primeira vez, a 27 de
janeiro, o Chronophone Gaumont. A Gazeta de Notícias, de 28 de abril de 1908, informa
que o mesmo aparelho continuava em cartaz, naquela data, no mesmo cinema, e destaca “a
extraordinária precisão do sincronismo, garantindo assim a perfeição e certeza do
cinematógrafo falante” (apud ARAÚJO, op. cit. p. 244). Caso as exibições tenham sido
contínuas, supor-se-ia três meses de sucesso do falante no cinema de Labanca e Leal.

No segundo semestre, outros aparatos similares surgem no Rio de Janeiro. O Teatro


Lírico, que exibira, no ano anterior, o aparelho de Hervet, anunciava em setembro o
Sincronoscópio Lírico, cinematógrafo acompanhado de um zonophone. Há o registro de
que a fita falante desta ocasião era uma ária da ópera Amica, de Mascagni. (ARAÚJO, op.
cit. p. 266) Em 23 de outubro, o Cinema Pathé anunciava o seu falante, o Synchrophone
Pathé, de cujo programa constavam “projeções animadas, falantes, perfeitas! Trechos de
óperas, cançonetas, duetos, diálogos, etc. Combinação perfeita do som e da fita.”(Gazeta de

12
Não escapa à farta documentação de Vicente de Paula Araújo uma notícia, do início de 1905, sobre o
sucesso de Auler na indústria de móveis, com a sua premiada Fábrica Modelo em exposição na Rua do
Ouvidor, 116. (ARAÚJO, 1976, p.172)
39

Notícias de 14 de novembro de 1908, apud ARAÚJO, op. cit. p.272). Há notícia de um


Synchrophone Pathé em São Paulo, anunciado como o único aparelho falante da empresa
francesa na América do Sul, exibido no Propriedor-Theatre a 20 de outubro. (ARAÚJO,
1981, p. 162) É provável que se trate do mesmo aparelho, que teria assim seguido para São
Paulo logo após a exibição carioca. O último falante no Rio de Janeiro, em 1908, citado
pelos jornais é o Cinematógrafo Falante Gaumont, do qual já tivéramos notícia em São
Luís. Estreou no Cinema Colosso, em 3 de novembro.

Assim, observa-se, entre 1907 e 1908, um surto de cinematógrafos falantes que


tornou contumaz a reprodução mecânica do som por meio de fonógrafos nos cinemas,
prática que se impunha desde 1904. Porém, aquele ano de 1908 seria marcante por
compreender uma nova e inusitada forma de sincronismo, “uma outra dimensão na relação
entre imagem e som”, nas palavras de Lécio Augusto Ramos (in: RAMOS, MIRANDA,
2000, p.241), conhecida como os filmes cantantes.

1.3. OS FILMES CANTANTES

1.3.1. Definição e paradoxo

Os cantantes, ou pelo menos os títulos que alcançaram maior êxito, são citados de
passagem em toda a bibliografia que concerne os primórdios do cinema brasileiro. Alex
Viany cita tanto em Introdução ao cinema brasileiro quanto no artigo Notas sobre o som e
a música no cinema brasileiro, de 1977,13 o sucesso de A viúva alegre (1909) e de Paz e
Amor (1910). Paulo Emílio Salles Gomes dedica aos cantantes três páginas do Panorama
do cinema brasileiro (GOMES, 1986, p.46-49), metade desse espaço reservado a Paz e
Amor, embora cite vários títulos. Jurandyr Noronha, em No tempo da manivela (Rio de
Janeiro: Embrafilme/EBAL, 1987), dedica alguns parágrafos aos filmes já citados, e
comenta mais duas produções de William Auler, A gueixa e Logo cedo , ambos de 1910. O

13
In: Cultura. Brasília: Embrafilme, n.24, ano 6, janeiro/março, 1977.
40

trajeto das exibições dos cantantes é esquadrinhado pela pesquisa de Vicente de Paula
Araújo. Roberto Moura dedica a eles boa parte de seu artigo sobre a Bela Época.14 José
Ramos Tinhorão os cita em Música popular: cinema e teatro (Petrópolis: Vozes, 1972).

A definição de filme cantante é comum a todos esses textos: musicais de curta


duração dublados na hora da exibição pelos atores posicionados atrás da tela. José Inácio de
Melo Souza coloca que o fenômeno daqueles filmes cantados proporcionava um
“cruzamento cultural”, sendo uma prática “a meio caminho do cinema e do teatro” Souza
vê ainda uma relação causal direta entre a aprovação popular dos cantantes e as
insuficiências da projeção com acompanhamento sonoro mecânico, caso dos falantes,
patentes no recorrente sincronismo irregular (Souza, 2004, p.262-268). Teriam sido vários
os fatores que impediam um êxito maior por parte da sonorização mecânica. Os mais
comentados são a instabilidade da energia elétrica nos seus primeiros anos na cidade, o que
impossibilitava a necessária velocidade constante, e o desgaste das películas e dos discos

que reduziam a cada exibição a qualidade da imagem e do som, problema exacerbado pela
interminável repetição das mesmas sessões. Como forma de contornar esses contratempos,
a solução teria sido a busca de uma forma de sincronismo artesanal. Observa-se aqui um
interessante paradoxo, já nesses primeiros anos de atividade cinematográfica no Brasil: um
curioso abandono da tecnologia, substituída por um meio mais artesanal de exibição e de
sincronismo, que encontraria, junto ao público, sucesso muito maior do que o modelo
mecânico anterior.

1.3.2. Primeiros cantantes

Encontra-se, tanto na pesquisa pelos jornais feita por Vicente de Paula Araújo
quanto na catalogação da Embrafilme 15, o primeiro registro de uma produção que
corresponde aos moldes do filme cantante em São Paulo, em 1908. Comenta Araújo que
estreou no Íris Theatre, a 28 de setembro de 1908, a produção do Sr. Rubem Guimarães,
proprietário do cinema, A canção do aventureiro, ária do Guarani, cantado de trás da tela

14
In: RAMOS, Fernão.História do cinema brasileiro. São Paulo: Art Editora, 1987, p. 9-62.
15
Nos referimos ao Guia de filmes produzidos no Brasil – 1897 – 1910
. Rio de Janeiro: Embrafilme, 1984.
41

pelo barítono paulista Luís de Freitas, que teria arrancado “francos aplausos da platéia”. As
informações conferem com as da Embrafilme. Segundo Araújo, Rubem Guimarães, de
resto, havia sido “agente geral das loterias”, e mais tarde, partiria para Salvador (ARAÚJO,
1981, p. 159-161). José Inácio de Melo Souza ratifica essas informações, e acrescenta que
Guimarães iniciara os negócios com o cinema naquele mesmo ano, e no mesmo mês de
setembro. É curiosa, portanto, a opção por um filme cantante logo no início de sua
produção, e mais curiosa é a falta de registros de continuidade daquela tentativa de
sonorização. De 1908 a 1911, Íris Theatre figurou com um das mais bem sucedidas salas de
São Paulo. Em 1911, já estaria fazendo nova tentativa na capital baiana, onde chegou a ser
proprietário de um novo Íris (SOUZA, 2004, p. 207-217).

Prestar atenção a essa primeira, e inexplicavelmente isolada, produção paulista é


importante, pois sua presença solitária no ano de 1908 retifica uma informação que aparece
em grande parte dos textos que comentam os cantantes. Maria Rita Galvão, no livro

Crônica do cinema paulistano, confere a Francisco Serrador a primazia da produção de


cantantes em São Paulo. (GALVÃO, 1975, p. 22-23) A Serrador também é atribuído o
início das produções por Viany, por Paulo Emílio, e por demais textos que citam os seus.
Uma pesquisa detalhada encontra os primeiros cantantes de Serrador quase um ano mais
tarde, no fim de julho de 1909, quando Auler, no Rio de Janeiro, também já os produzia a
cerca de um ano.

O guia da Embrafilme marca a exibição, no Cinema Rio Branco, de Auler, de


Parait a la fenêtre, também citado por Araújo, a 3 de julho de 1908, tendo sido cantado ao
vivo pelo barítono Antonio Cataldi, ou seja, quase três meses antes da exibição paulista.
Era a primeira experiência cantante. Aqui, uma colocação: há dúvida sobre se este filme e
alguns dos que se seguiram são produções de Auler, os se o exibidor os teria comprado no
exterior, simplesmente os projetando dublados pelos cantores, no caso, Cataldi, o que
parece mais provável. Neste caso, não seriam produções nacionais, mas adaptações de
filmes estrangeiros. Seguindo com este modelo de exibição, Auler estréia no Rio Branco,
pela ordem: á ária O tu bell’astro incatatore, do Tannhäuser de Wagner, em 7 de julho;
Encanto do amor , em 21 de julho; Funniculi Funnicula, em 31 do mesmo mês; e Serenata
poética, em 14 de agosto. Sobre este último, há a indicação de ter sido cantado pelo mesmo

Cataldi e por Santucci. Em 24 de agosto, Auler exibe uma versão da Canção do


42

Aventureiro, do Guarani de Carlos Gomes. Este filme encontra-se creditado como uma
produção de Auler & Cia, cantada por Antonio Cataldi e Santiago Pepe, e, em princípio,
não se trata da mesma versão paulista, que estrearia no mês seguinte. Do Jornal do Brasil,
Araújo encontra a informação de que fora “tirada expressamente para o Rio Branco”.16

A canção do aventureiro, assim como o próximo filme a estrear no cinema de


Auler, Barcarola, traz consigo uma diferença em relação aos anteriores. Consta da ficha de
produção de Barcarola, trecho da ópera Os contos de Hoffmann, de Offenbach, ser esta
uma produção de Auler e Cia, com Antonio Cataldi no elenco, e com Julio Ferrez como
operador de câmera. O Jornal do Brasil de 1° de setembro de 1908, data da estréia, faz o
seguinte comentário, reproduzido por Araújo: “belíssima fita tirada ao natural em
Copacabana, no Arpoador”, informação que o guia da Embrafilme reproduz. (ARAÚJO,
1976, p.278).

A descrição da locação carioca, em conjunto com a indicação de Julio Ferrez como

operador de câmera, garante a este filme a condição de produção nacional, diferente


daqueles anteriores sobre os quais paira a conhecida dúvida. A se aceitar a informação dada
pelo Jornal do Brasil sobre A canção do aventureiro, este também estaria enquadrado na
mesma situação. Dentre os questionamentos postos por Jean-Claude Bernardet com relação
a uma suposta falta de rigor dos historiadores do cinema brasileiro ao tratarem dos
primórdios, alguns enfocam os cantantes. Bernardet coloca que a dúvida freqüente sobre se
eram aqueles filmes produções estrangeiras meramente dubladas no Brasil quando de suas
exibições inviabilizaria tomar os cantantes como fenômeno circunscrito aos limites do
cinema brasileiro. (BERNARDET, 1995, p.78) Nesta pesquisa estamos nos valendo da
informação, quando há, de que, uma vez que a câmera tenha sido operada por Julio Ferrez,
ou por qualquer outro operador que estivesse no país no momento da produção, isso é
indicativo de que o filme foi feito no Brasil. Neste caso, no Rio de Janeiro.

Além do que, a sugestão, contida no texto de Bernardet, de que a situação do filme


meramente adaptado constitui a maioria da produção de cantantes, só procede, sob análise
detalhada, no ano inicial de 1908. Quando analisarmos os anos seguintes, veremos que a
proporção se inverte. Encontramos, juntando informações de diferentes fontes, pouco mais

16
Todas as datas das exibições estão de acordo com o catálogo da Embrafilme, já citado.
43

de 30 filmes cantantes produzidos em 1908. Trinta e um seria o número exato desta


pesquisa, um número, claro, inconcluso, pois vestígios de outras produções podem sempre
surgir. A produção de Auler, neste primeiro ano, é hegemônica: 26 filmes. Duas outras
produções, Rapaz da Moda e Quebradeira são de Câmara, Corrêa e Cia, e há, como já
citamos, a experiência isolada paulista, de Rubem Guimarães. Do restante dos filmes não
foram encontrados dados sobre quem os produziu, abrindo-se, entre as possibilidades, a de
também serem do próprio Auler. Desse total, cerca de 20 estão no caso das possíveis
adaptações: não se encontra sobre eles indícios de que tenham sido filmados no Rio de
Janeiro. No que se refere aos outros, há a informação de que foram fotografados por Ferrez,
ou há informações adicionais, como é o caso de Barcarola e de A canção do aventureiro ,
ao serem citadas as locações.

Assim, resumindo, a pesquisa, ao analisar os dados da produção dos cantantes,


apresenta como resultados:

1) o encontro de indicativos que permitem afirmar quando se trata de uma


produção nacional.
2) A preponderância quantitativa dessa produção nacional frente às possíveis
adaptações de produções estrangeiras, exceto pelo ano de 1908.
Outros exemplos de operetas estrangeiras exibidas por Auler no Rio Branco, em
1908, são, pela ordem cronológica: La Boheme (a ária Vecchia Zimarra), lançada em 2 de
outubro; uma semana depois, Trio de Bocaccio, em 9 de outubro; Carmen, ária do
Toreador, em 13 de outubro, cantada por Cataldi; Caracolillo (Coplas do Café de Puerto
Rico), em 15 de novembro, cantada por Claudina Montenegro; Duo da Africana, em 20 de
novembro, cantada por Claudina Montenegro e Santiago Pepe; e, nos últimos dias do ano,
A Marselhesa, lançada em 27 de dezembro, e cantada por Cataldi.
Exemplos de filmes que trazem marcas de serem produções nacionais são: Duo de
los patos, dueto da zarzuela Marcha do Cádiz, cantado por Cataldi e tirado por Ferrez,
exibido em 21 de dezembro; Rapaz da moda , exibido em 27 de novembro, com música do
maestro Costa Jr. Rapaz da moda teve uma versão anterior à de Auler, já citada, exibida em
5 de novembro, no Salão Brasil, pela empresa Câmara, Corrêa e Cia. No mesmo cinema,
em 18 do mesmo mês, estreava outro cantante, Quebradeira, dos mesmos produtores. A
44

Gazeta de Notícias cita este último como uma produção brasileira, com música de Braz
Pepe. (apud ARAÚJO, 1976, p.274) A produção de apenas dois filmes por essa empresa,
não havendo indícios de outros, parece hoje ter sido uma possível aventura inspirada pelo
sucesso inicial de Auler. O citado Costa Júnior participara pela primeira vez dos
espetáculos de Auler semanas antes de Rapaz da moda, tendo sido responsável pela música
de Serenata Galante, lançado em 6 de novembro. Começava a colaboração com o cinema
do maestro que seria figura fundamental na produção dos cantantes, compondo a música
dos maiores sucessos por vir, e que formava com Ferrez e, nesse início, os cantores Antonio
Cataldi, Claudina Montenegro e Santiago Pepe o núcleo central da produção de Auler.

Costa Júnior trabalhara como maestro e compositor para o teatro de revista desde a
virada do século XIX para XX. Como é o caso dos demais maestros que prestaram serviços
a esses ramos de entretenimento, teatro e cinema, não é fácil encontrar informações sobre
suas trajetórias, esquecidos que são pela história da música brasileira, exceção feita talvez a

Paulino Sacramento, que veremos mais adiante. De qualquer forma, encontram-se


partituras de Costa Júnior nos arquivos de Mozart de Araújo, depositados no Centro
Cultural Banco do Brasil e nos documentos da Casa Edison de Figner. Por elas, tem-se uma
noção do que compunha sua obra. Dentre aquelas partituras arquivadas no Centro Cultural
Banco do Brasil, duas trazem a informação de terem sido compostas para revistas: a Valsa
de Vênus, para a revista Roxura, de cujo autor só se encontram no documento as iniciais
P.A. e o Tango do Jonjoca, para a revista de costumes A viúva Clark, de Artur Azevedo. As
demais partituras são também valsas, como Carresante e Esquecida, e tangos, como o
Carneiro Preto. Esta, Costa Júnior assina sob o pseudônimo de Juca Storoni. Há ainda o
dobrado General Roca. Também em tom militar, se encontra entre os papéis da Casa
Edison a Marcha Hermista, dedicada ao Marechal Hermes da Fonseca. Nos mesmos
arquivos estão as partituras das valsas Suspirando por ti e Coeur Blessé, além de uma
música intitulada Jongo de Prêtos, que marca curiosa aproximação do maestro afeito a
valsas, tangos e marchas com o ritmo negro mencionado no título. Como se sabe, o jongo,
uma das raízes do samba, é a música dos negros exilados do Vale do Paraíba que
encontrariam paradeiro na periferia do Rio de Janeiro, mais precisamente no Morro da
Serrinha, em Madureira. Ali nasceria, mais tarde, pelas mãos dos jongueiros descendentes
dos que lá chegaram, a escola de samba Império Serrano.
45

De Claudina Montenegro, temos as indicações, tiradas de depoimentos contidos no


livro já citado de Maria Rita Galvão, de que era uma espanhola radicada em São Paulo.
Esta informação justifica-se pela sua colaboração, no ano de 1909, com Serrador. Antes,
porém, seu trabalho com Auler lhe garante estadia no Rio de Janeiro, durante o ano de
1908. O mesmo texto conta com depoimento de Julio Llorente sobre Santiago Pepe,
descrito como “um belo exemplar do tipo latino, alto, moreno, grandes bigodes, figura
muito apreciada pelas mulheres”. (GALVÃO, 1975, p.22-23) José Inácio de Melo Souza
encontra Claudina Montenegro em 1900, como cantora do Teatro Recreio, interpretando o
Duo dos paraguas , que quase uma década mais tarde, teria sua versão como filme cantante.
Costa Júnior, no ano seguinte, estaria no posto de maestro do mesmo teatro. Souza observa
que, como Montenegro, outros cantores interpretariam, nos cantantes, números que já
apresentavam nos teatros da cidade desde a virada do século. Está assim, colocada a idéia
dos cantantes como adaptação para as telas dos números musicais já conhecidos pelo
espectador carioca (SOUZA, 2004, p. 270).

Julio Ferrez era filho de Marc Ferrez, um dos mais importantes fotógrafos a
documentar o Rio de Janeiro entre o fim do século XIX e o começo do XX. Quando
contratado por Auler, Julio Ferrez já tinha feito trabalhos expressivos para o cinema, como
Nhô Anastácio chegou de viagem, de junho de 1908, à qual Paulo Emílio Salles Gomes se
referia, no Panorama do cinema brasileiro, como “uma séria concorrente ao título de
primeira fita brasileira de ficção” (GOMES, 1986, p. 42). Concomitante à parceria com
Auler, fotografa para a Empresa Fotocinematográfica Brasileira A mala sinistra, baseado
em célebre crime, exibido em outubro de 1908. A firma, uma das principais produtoras de
sua época, era uma sociedade entre o empresário italiano Giuseppe Labanca e o português
Antonio Leal, que tinha nos filmes, via de regra, a função de operador de câmera. Leal,
antes de trabalhar com cinema, havia sido fotógrafo, desde 1902, da revista O Malho.

Bernardet coloca mais um questionamento sobre os cantantes, e sobre os estudos


que os têm como objeto de análise: a inexatidão em tratá-los como um fenômeno
genuinamente brasileiro, como alguns historiadores chegam a colocar. Em seu texto, ele
próprio dá exemplos de exibições semelhantes na Itália, ocorridas no mesmo ano de 1908.
As informações dão conta de que o produtor italiano Giovanni Pastrone exibira a Traviatta

e Ballo in masquera com “cantores atrás da tela e parafernália de latas com que se pretendia
46

produzir sons sincronizados”. Bernardet cita também o cômico italiano Leopoldo Fregoli,
que se esconderia atrás da tela para dublar, ele sozinho, vários personagens de seus
filmetes, exibidos pelo seu “Fregoligraph” (BERNARDET, 1995, p.94).

Vicente de Paula Araújo encontra notícia de uma vinda de Fregoli a São Paulo, em
julho de 1908, ocasião em que apresentara seus filmes no Teatro Sant’anna. Araújo destaca
o apelido dado a Fregoli, “o Mélies italiano”(ARAÚJO, 1981, p. 156) Este acontecimento
ocorre dois meses antes da primeira experiência cantante paulista, e no mesmo mês em que
Auler começava sua produção no Rio de Janeiro. Pode-se, no terreno das especulações,
imaginar a ligação entre os fatos. Independente disso, os exibidores nacionais mantinham
contato regular com a Europa, a fim de adquirir novas fitas, e não é improvável que tenham
vindo a saber dos espetáculos cantados.

Há indícios da mesma forma de exibição nos Estados Unidos. Rick Altman desvela
tais informações no artigo The silence of the silents.17 O empresário Lyman Howe exibia os

filmes não só com atores atrás da tela, mas também com ruídos cuidadosamente produzidos
para estarem em sincronismo com as imagens. Altman denomina o procedimento “behind
the screen” ou “ behind the sheet talking pictures”. Curioso é Altman estar tratando, como
no caso europeu, da mesma época, de 1908 a 1910. Convém dizer que o objetivo desse seu
estudo é demonstrar, em oposição a uma presumida hegemonia do acompanhamento
musical por piano ou orquestra, a pluralidade de soluções sonoras em filmes norte-
americanos daquele período. Altman detecta a utilização de ruídos, de vozes atrás da tela,
de narradores, de acompanhamento mecânico, de filmes projetados em silêncio, e, entre
tudo isso, do acompanhamento musical, que, segundo ele, só viria a se uniformizar bem
mais tarde, na década de 1920. (ALTMAN, 1996). Talvez, no caso estadunidense, o fato
dessas tentativas alternativas de sonorização surgirem por volta de 1908 tenha relação com
a perda de espaço no mercado da francesa Pathé. Richard Abel informa que o “galo
vermelho” chegara a ser responsável, até aquele ano, por cerca de 80% da rede exibidora, e
que a partir daquele momento perderia espaço rapidamente. Tratava-se de um processo de
“americanização” da produção e da distribuição de filmes, com intuito claro de diminuir a
participação francesa, o que ocasionou, no início, uma fragmentação do mercado, o

17
In: The musical quaterly. Cary: Oxford University Press. Vol. 80, n. 4, 1996. p. 648-718.
47

crescimento do número de nickelodeons, lojas tranformadas em pequenos teatros que


exibiam filmes por um níquel (5 centavos), e abriu espaço para a posterior tomada do
mercado por Edison. (ABEL, 2004, p. 216-241) É possível que esse ínterim tenha criado
condições propícias para o surgimento ou a expansão de formas de sonorização diversas.

Parece-nos fora de questão a idéia dos cantantes como um fenômeno genuinamente


brasileiro. O que parece poder ser colocado como específico do caso carioca é o sucesso
dessa forma de exibição, que como veremos, torna-se o principal modelo de relações entre
sons e imagens até 1911.18 No próprio caso dos Estados Unidos, em contraposição, Altman
detecta sua existência como mais um dos artifícios em meio a uma miríade de formas de
acompanhamento sonoro.

1.3.3. 1909: consolidação e primeiros sucessos

O ano de 1909 começa com a continuidade da produção de cantantes de Auler. O


primeiro filme de que se tem registro é Mignon, exibido no Rio Branco a 22 de janeiro.
Tratava-se da ária Romanza, elle ne croyait pas, da ópera que dá título ao filme, cantada,
como na maior parte dos filmes de 1908, por Antonio Cataldi. Na semana seguinte, a 29 de
janeiro, estreava Il Pagliaci, que apresentava trecho da famosa ópera de Leoncavallo, a ária
Vesti la giuba, com outro cantor, Constantini, esta sendo a primeira vez que surge seu
nome. Cabe ressaltar que este é um bom exemplo de filme que, a princípio, parece uma
mera adaptação de produção estrangeira, apenas dublada no Rio Branco pelo cantor, mas
que, no entanto, estamos colocando dentro da produção de Auler, uma vez que se encontra
o registro de Julio Ferrez como tendo operado a câmera. (EMBRAFILME, 1984, p.47)

Em 2 de fevereiro é exibido Juanita, cantado por Claudina Montenegro, que,


como Cataldi, seguia trabalhando com Auler. Logo após, entra em cartaz Chateau
Margaux, outro fotografado por Ferrez, e com a dupla Montenegro e Cataldi. Outros

18
José Inácio de Melo Souza lembra, por exemplo, uma curiosa falta de registros, no Brasil, sobre a presença
do narrador acompanhando os filmes sem som. Esse procedimento, citado por Altman, e, de resto, comum
não só nos Estados Unidos, mas na Europa, na Rússia, no Japão, parece não ter sido usual na exibição local.
(SOUZA, 2004, p. 165)
48

filmes, lançados alguns meses mais tarde, são Crispino e la comadre, em 4 de maio,
também tirado por Ferrez, com Claudina Montenegro e Santiago Pepe; Chiribiribi, lançado
doze dias depois, produzido com a mesma equipe; Torna a Sorento, sem indicação de
operador de câmera, e cantado pelos três artistas da companhia, Montenegro, Cataldi e
Pepe, exibido a 10 de junho; Tosca (a ária Vissi d’art, vissi d’amore, sucesso nos
fonógrafos da cidade), sobre a qual Araújo reproduz a seguinte nota publicitária: “Fita
tirada especialmente para o Rio Branco, com todos os requisitos e exigências de mise-en-
scene, desempenhando a parte de Scarpia o provecto ator E. Nazareth e Tosca por Ismênia
Matheus.” (ARAÚJO, 1976, p.303-304) O texto dá indícios de produção nacional, ou seja,
filmado no próprio Rio de Janeiro, atuado pelos próprios atores, e comenta o surgimento
nos cantantes de uma atriz de fama já consolidada no teatro e que viria a ser a estrela dos
maiores sucessos dentre aqueles filmes cantados, como Paz e Amor, Sonho de Valsa, entre
outros: Ismênia Matheus. Roberto Moura, citando Pedro Lima revela a trajetória desta atriz
que, vinda do estrangeiro, em meio uma turnê na América Latina se estabelece no Rio de
Janeiro. (MOURA, 1987, p. 44)

O segundo semestre de 1909 consolidaria o êxito dos cantantes de Auler, mas é


preciso comentar, ainda nos primeiros meses do ano, algumas produções de outras
empresas, poucas, porém relevantes. Destacam-se, entre a produção de Labanca e Leal de
1909, dois cantantes: Pega na chaleira, lançado no Palace em 14 de abril, e, em 27 de
julho, a primeira versão de A viúva alegre. Pega na chaleira é uma transposição para o
cinema da gozação contida no sucesso musical No bico da chaleira, de Costa Júnior, aqui,
mais uma vez sob o pseudônimo Juca Storoni. É conhecido o enredo da música baseado no
episódio, famoso na cidade, da peregrinação diária à casa do General Pinheiro Machado por
parte de senadores, deputados, juízes e postulantes a cargos públicos, e da bajulação destes
ao nome central da política brasileira daquele período. A edição de Fon-Fon de 3 de
fevereiro de 1909, citada por Araújo, explica o significado da expressão “pegar na
chaleira”:

Dizem que a sua srcem tem dum hábito doméstico – quando a criadagem quer
testemunhar amizade à patroa, ou a quer engrossar, há sempre um criado que tem o
porfiado interesse em ser o primeiro a pegar na chaleira para servir a dona da casa.
Assim, o termo significa adular, bajular.(apud ARAÚJO, 1976, 289)
49

O filme, e sua ligação com a música, também se encontram citados por Tinhorão,
em Música popular: cinema e teatro (1972, p. 276). A música de sucesso teve algumas
gravações, todas com a mesma melodia, embora com variações no título, por vezes Pega na
chaleira, por vezes No bico da chaleira, e mesmo na letra. Geraldo gravou-a como No bico
da chaleira, em princípio, o nome srcinal; a Banda da Casa Edison gravou uma versão
instrumental; e o célebre Eduardo das Neves, uma versão homônima ao filme, em que o
refrão é substituído por uma sonora e melodiosa gargalhada. 19 Franceschi dá como prática
corriqueira, naquela que era a primeira década de gravações fonográficas no Brasil, esse
reaproveitamento de uma mesma melodia com letras diferentes, em muito anterior à noção
de plágio, o que criava conjuntos de gravações muito parecidas, mas registradas sob títulos
diferentes. (FRANCESCHI, 2003, p. 98-99). A música de Costa Júnior é bastante simples,
e a curta letra tida como a srcinal diz:

Iaiá
Me deixa subir esta ladeira
Eu sou do bloco
Mas não pego na chaleira
Na casa do seu Tomaz
Quem grita é que manda mais

Quem vem de lá
Bela Iaiá
Ó abre alas
Que eu quero passar

Sou democrata
Águia de prata
Vem cá mulata
Que me faz chorar

A viúva alegre de Labanca e Leal é menos importante por si própria do que pela
polêmica que viria em seguida. Auler estrearia, menos de dois meses depois, uma versão
sua, que fez sucesso muito maior, incrementando a famosa rivalidade entre empresas que
levaram à tela diferentes versões das mesmas óperas filmadas, transferindo, inclusive, a
briga para os anúncios dos jornais, que visavam desqualificar a versão do concorrente. A
19
Estas gravações estão disponíveis no acervo de Humberto Franchesci, correspondente às gravações da Casa
Edison, depositados no Instituto Moreira Sales.
50

informação de que o filme de Labanca e Leal se compunha de três atos é indício do começo
de uma duração maior desses filmes musicais. O guia da Embrafilme diz se tratar este filme
de um média-metragem.

A firma Câmara, Corrêa e Cia repete a tímida investida do ano anterior, em que
produzira dois cantantes, e exibe mais um no Salão Brasil, em 23 de maio, O pronto,
segundo a Gazeta de Notícias, “tirada ao natural, representada e cantada pelo célebre
Eduardo das Neves, que a acompanha com um magnífico choro de violão”. (apud
ARAÚJO, 1976, p. 298) Tinhorão também comenta o filme, com os respectivos elogios a
Eduardo das Neves. Este, citado sempre como sendo o cançonetista mais popular da época,
ao lado do pioneiro das gravações Bahiano, começa sua trajetória como bombeiro, depois
palhaço do Circo Spinelli, assim como Benjamim de Oliveira, e também está presente,
como o Bahiano, nos primeiros registros da Casa Edison, da qual permaneceria como
empregado por mais de vinte anos, até a sua morte precoce, aos 45 anos, em 1919. Sua

modinha Santos Dumont, ou A conquista do ar, cujo primeiro verso “A Europa curvou-se
ante o Brasil” tornou-se dizer corrente no Rio de Janeiro, constitui um dos primeiros
sucessos da gravadora, e também está preservada na Coleção Franceschi, no Instituto
Moreira Sales. Por essa época, os primeiros anos do século XX, são recorrentes as notícias
de apresentações suas nos palcos da cidade. Seu filho, Cândido das Neves, daria
prosseguimento ao sucesso do pai pelas décadas de 1920 e 1930. O Salão Brasil
apresentaria ainda, em setembro, Sangue Espanhol, filme estrangeiro com Eduardo das
Neves atrás da tela, cantando e declamando. (ARAÚJO, 1976, p. 309)

Em 9 de setembro, Auler põe em cartaz aquele que seria o cantante de maior


sucesso até então, a sua versão de A viúva alegre. Júlio Ferrez operou a câmera, Costa
Júnior foi o responsável pelos arranjos musicais e pela regência da música de Franz Lehar,
e dublando os atores da Companhia Galhardo estavam Ismênia Matheus, Antonio Cataldi,
Mercedes Villa, Santucci. Aparece aqui o crédito de diretor, não encontrado anteriormente,
destacando-se esta função do operador de câmera, que, pelos indícios que se tem,
acumulava nos filmetes produzidos até então o trabalho de organizar a mise-en-scene. O
diretor de A Viúva alegre era Alberto Moreira. Auler anuncia na Gazeta de Notícias, de 28
de agosto de 1909, ser “a primeira vez no mundo que um cinematógrafo se vai exibir uma

opereta completa com solos e coros, como no teatro”. (apud ARAÚJO, 1976, p. 306) A
51

careta, de 2 de outubro de 1909, destaca a Viúva alegre de Auler como “o grande, ruidoso
sucesso da semana” e elogia o arranjo musical, “uma feitura delicada do maestro Costa
Junior” (Careta, n. 70, ano II). A matéria traz ainda duas fotos, reproduzidas por Araújo
(que curiosamente, tendo em vista a completude de sua pesquisa, não reproduz o conteúdo
da matéria). Na primeira das fotos, se vê uma das atrizes dançando observada por outros
personagens, e na outra, o ator Armando Vasconcelos cantando sua parte no primeiro ato.
(ARAÚJO, 1976, p. 290)

Em 25 de setembro, Auler publica na Gazeta de Notícias um aviso ao público em


que diz que “tendo surgido, de todos os cantos, várias viúvas alegres”, a única com coros e
solos de grande orquestra era aquela exibida em seu cinema (apud ARAÚJO, 1976, p. 309).
Sobre a referência a “várias viúvas alegres”, deve-se comentar que, além da sua própria e
da de Labanca e Leal, há notícia de mais uma, aparentemente exibida antes da de Auler, em
agosto, no Cinematógrafo Colosso, instalado no Teatro Carlos Gomes. Araújo comenta

tratar-se de uma “viúva alegríssima”, pois era do gênero livre. Alguns textos reputam essa
produção como sendo, provavelmente, de Paschoal Segreto, pelo fato do produtor e
exibidor, ao qual é creditado o pioneirismo do cinema no Brasil, estar dedicando-se, por
essa época, à produção dos chamados filmes livres, proibidos para menores, para
senhoritas, etc.

Em 13 de dezembro, com pouco mais de três meses em cartaz, A viúva alegre


fazia sua 300ª exibição. Naquele momento, Auler contabilizava 147.612 entradas vendidas,
recorde da época. (ARAÚJO, 1976, 315) Nos últimos dias do ano, a produção de Auler
estaria sendo exibida em São Paulo, no Polytheama de Francisco Serrador, fazendo seu
anúncio, inclusive, menção ao sucesso das 300 exibições cariocas. (ARAÚJO, 1981, 176-
177)

Cabe ressaltar que o fenômeno Viúva alegre de 1909 não esteve restrito aos
cinemas. Em 12 de maio, anterior, portanto, ao lançamento dos filmes, O Comércio de São
Paulo comenta ser aquela a opereta da moda: “Os mais belos trechos da partitura tornaram-
se populares, não havendo piano que não os execute, nem entusiasmo que não os assobie
com verdadeiro deleite”. (apud ARAÚJO, 1981, 165) Na virada do ano, Fon-Fon noticia
que o Circo Spinelli apresentou montagem sua da mesma peça. A matéria intitulada “A
52

viúva alegre no picadeiro” diz que “depois do sucesso nos gramophones, a feliz opereta
entrou para o domínio dos cinemas. Foi também o sucesso a que todos assistimos e que
continua em cartaz no Rio Branco. Pois bem, quando pensávamos que as fontes de sucesso
estavam esgotadas, surge-nos agora uma nova Viúva alegre no Circo Spinelli”. (Fon-Fon,
ano IV, 1° de janeiro de 1910) O artífice da montagem circense foi Benjamim de Oliveira,
tendo reservado para si próprio o papel de Barão Nielhaus. Hernani Heffner comenta o
grande sucesso da empreitada, e lembra que Benjamim de Oliveira tinha por hábito, desde
1903, encenar espetáculos teatrais no picadeiro, “desde pequenas pantomimas até tragédias
shakespearianas”. O sucesso desses espetáculos teria levado ainda Antonio Leal a filmar,
mais tarde, Benjamim de Oliveira como Peri, em Os guaranis, para a sua empresa com
Giuseppe Labanca. (in: RAMOS, MIRANDA, 2000, p.402-403)

A próxima produção de Auler, também de sucesso, seria A Gueixa, que estreava


no Rio Branco a 8 de novembro. O operador de câmera era Julio Ferrez, os arranjos e a

regência de Costa Júnior, sobre a música de Sidney Jones, o argumento de Alberto Moreira,
e a direção foi entregue a José Gonçalves Leonardo, ator e cantor famoso que entrava para
a trupe de Auler, começando naquele momento uma parceria que, durante alguns meses, se
refletiria de maneira expressiva na produção da companhia. No elenco, o próprio Leonardo,
Ismênia Matheus, Mercedes Villa, Antonio Cataldi e cerca de 40 atores, entre papéis
menores e figuração. Jurandyr Noronha reproduz uma foto com os atores principais em
seus figurinos orientais. (NORONHA, 1987, p. 15)

Em seguida, estréia Fandanguaçu, a 26 de novembro, trazendo Leonardo como


estrela, interpretando a música homônima, um maxixe de Eduardo Fábregas. O registro de
sua gravação consta dos primeiros documentos relativos à Casa Edison, e Humberto
Franceschi situa essa gravação de fato entre as primeiras da firma (1902, reiterando, é o ano
do início das gravações). A canção seria, assim, em alguns anos anterior ao filme. O
registro em questão ficou a cargo da Banda da Casa Edison, e consta do acervo preservado
de Franceschi. O próximo filme a estrear, Sphinx, a 6 de dezembro, é dos que menos se
encontra registrado, não tendo ficado para a posteridade como as demais produções de
Auler naquele fim de ano. Dela, sabe-se apenas o que se encontra no guia da Embrafilme: a
data da estréia, que foi fotografada por Ferrez e cantada por Amica Pelissier. Antes ainda

da virada do ano, Auler lança Sonho de Valsa, que repetindo a distribuição de funções de A
53

Gueixa, tem argumento de Alberto Moreira baseado na opereta de Oskar Strauss, e direção
de Leonardo. No elenco, além do próprio, Ismênia Matheus, Mercedes Villa, Amica
Pelissier, Antonio Cataldi, Santucci. As produções cresciam, o elenco de cada filme
passava a incorporar todas as estrelas da companhia, deixando para trás o modelo inicial
dos duetos ou trios. A estrutura de produção ganhava contornos mais definidos, com as
funções de argumentista e diretor mais claras, tiradas dos ombros até então sobrecarregados
do operador de câmera.

No anúncio da estréia de Sonho de Valsa, Auler advertia que o filme


permaneceria no Rio de Janeiro por apenas quatro dias, seguindo depois para Santos, onde
havia uma exibição já marcada para o dia 27 de dezembro. De fato, a exemplo de A viúva
alegre, há indícios de exibições não só de Sonho de valsa, mas também de A Gueixa, em
São Paulo nos primeiros dias de 1910, no Bijou Theatre, de Serrador. (ARAÚJO, 1976, p.
180)

Quando dessas exibições, Serrador já havia, ele próprio, embarcado na produção


de cantantes. Comentamos que sua fama de pioneiro não procede, pois teria havido uma
experiência em São Paulo no fim de setembro de 1908, e que, antes disso, Auler já
produzia no Rio de Janeiro. A produção do espanhol começaria, em relação àquelas, com
um ano de defasagem. Data de 28 de julho de 1909 a estréia do primeiro cantante de
Serrador, no Bijou Theatre. Notícia do Estado de São Paulo do dia seguinte, sem citar o
nome do filme, comenta com elogios o desempenho de Claudina Montenegro e Santiago
Pepe, contratados naquele momento por Serrador para as “fitas de cantos”. Como sabemos,
Montenegro e Pepe haviam trabalhado até então para Auler, no Rio de Janeiro. O texto
ainda informa que naquele dia 29 seria exibido “um novo programa” e que a voz de
Claudina Montenegro fazer-se-ia ouvir mais uma vez, no filme de canto Café de Puerto
Rico. (apud ARAÚJO, 1976, p. 172)
O filme não citado daquela primeira sessão poderia ser O duo da Africana, do
qual há notícia de exibição dois dias depois, 31 de julho, bem como da participação da
dupla Montenegro e Pepe (EMBRAFILME, 1984, p. 41). Tratava-se de um trecho da ópera
A africana , de Franz von Suppé. O dueto em questão já ganhara, como vimos, uma versão
de Auler no ano anterior. Os números do início da produção de cantantes por Serrador são
54

impressionantes. Após os dois títulos do fim de julho, em agosto o espanhol produziria


onze filmes dos quais se encontram registros. Eles estréiam no Bijou com poucos dias de
intervalo: o Duo da mascote, o Duo de los paraguais, Las zapatillas, o Duo de los patos, da
zarzuela Marcha do Cádiz, do qual Auler também fizera uma versão anterior; o Duo de
amor da Viúva alegre ; um dueto de Sonho de Valsa intitulado Tui-tui-tui-zi-zi-zi; um dueto
de Chateau Margaux; Chiribiribi, Crispino e la comadre (as três últimas também
posteriores a versões de Auler), El guitarrico e La educanda de Sorrento.

O que faz pensar que todos os filmes citados como sendo versões posteriores às
de Auler são realmente produções de Serrador, e não meras exibições em São Paulo dos
filmes cariocas, é a indicação, contida no guia da Embrafilme, do nome de Alberto Botelho
como operador de câmera, em todos eles. É esta mesma indicação que faz com que os
filmes de Serrador sejam assumidos como produções nacionais, não cabendo, neste caso, a
dúvida quanto às produções estrangeiras adaptadas. Araújo comenta que eram filmados por

Botelho no atelier da empresa de Serrador, na Rua Brigadeiro Tobias. Todos foram posados
e cantados atrás da tela por Claudina Montenegro e Santiago Pepe. Os filmetes eram
exibidos como complemento das atrações principais do Bijou. No Rio de Janeiro, na
mesma época, ou seja, setembro de 1909, os filmes de Auler já se encontravam um estágio
a frente, havendo ganho autonomia de atrações principais, sobretudo após o lançamento da
Viúva alegre.
Sobre os filmes de 1909, há ainda um destaque a se fazer. Nhô Anastácio chegou
de viagem, produção anterior da empresa Arnaldo e Cia, que já citamos, ganhava versão
cantante de Auler, renomeada Seu Anastácio chegou de viagem , e cantada por Leonardo.
Tinhorão comenta que apesar do último ter sido o ator no cinema, coube a Bahiano gravar a
canção em disco para a Casa Edison, posteriormente. (TINHORÃO, 1972, p. 246) Na
verdade, pesquisando a documentação da empresa, descobre-se que a gravação de Bahiano,
intitulada somente Seu Anastácio, é bem anterior, constando, como informa Franceschi, do
primeiro catálogo musical, posto à venda em 1902. A gravação também está disponível no
acervo de Franceschi e, como o filme, discorre sobre as dificuldades da chegada de um
caipira à cidade grande. A voz aguda de Bahiano por vezes canta, por vezes declama, como
que para realmente narrar as desventuras do personagem. Comentando os perigos da

capital, diz, por exemplo, que se Seu Anastácio “não morre de febre amarela, com certeza
55

traz novidade”. Assim, parece a música ter inspirado o filme, ainda mudo na versão de
1908, fato reparado pela versão posterior de Auler. Ainda, a canção de 1902 não parece ser
a descrição pioneira das andanças de Seu Anastácio. O reisado, ritmo que sobrevive no
interior do Ceará, tem como um dos seus personagens o senhor de mesmo nome, e que
também tem o papel na narrativa de contar as novidades vistas em viagem pelo estado. 20

Sobre os números gerais da produção de 1909, seriam cerca de 20 títulos de


Auler, 15 de Serrador, com destaque para a incrível afluência de agosto, três de Labanca e
Leal e um de Câmara, Corrêa e Cia, totalizando cerca de 40 filmes. Destes, em 29
encontram-se informações de serem produções nacionais, e em não mais que 10 faltam
indicações nesse sentido. Assim, como antecipávamos, já em 1909 não cabe a colocação de
que a maioria dos cantantes não pode ser enquadrada dentro da produção brasileira, ainda
que, até aquele momento, o tema mais recorrente ainda fosse a adaptação da opereta
européia. E, se Seu Anastácio chegou de viagem já trazia um tema caro às posteriores

discussões sobre a representação da identidade nacional, o caipira, o ano de 1910 reservava


o sucesso de outro: a sátira política.

1.3.4. Paz e Amor no Rio Branco, Serrador no Rio de Janeiro

1910 começa com um grande número de produções, tanto de Auler, no Rio de


Janeiro, quanto de Serrador em São Paulo. Auler colocaria em exibição nove cantantes
apenas em janeiro; Serrador, seis naquele mês, e oito no seguinte. A parceria com
Leonardo, iniciada no ano anterior, continuava a marcar a produção de Auler. Em 9 de
janeiro, estreava no Rio Branco Os efeitos do maxixe, com o cantor no elenco, Julio Ferrez
tendo operado a câmera. Uma semana depois, estréia No requebro, com o mesmo ator.
Alberto Moreira teria escrito o argumento deste especialmente para Leonardo. (ARAÚJO,
1976, p. 354) Sonho de Valsa, produzido no ano anterior com a mesma equipe, continuava
20
O mestre do r eisado e o coro entoam a seguinte letra: “Seu Anastácio, ele vem de viagem/ alguma coisa ele
há de contar/ Seu Anastácio/ que vem lá do Crato/ Seu Anastácio/ está cheio de carrapato/ Seu Anastácio/ que
vem do mulungu/ Seu Anastácio/ é ladrão de peru.” A transcrição da letra e sua partitura encontram-se
disponíveis em http://jangadabrasil.com.br A similaridade dos primeiros versos (“Seu Anastácio, ele vem de
viagem/ alguma coisa ele há de contar”) com a canção e com o título do filme parecem fechar um circuito de
parentesco.
56

em cartaz em 15 de fevereiro. A Gazeta de Notícias de 27 de janeiro de 1910 informa sobre


uma adaptação de produção estrangeira em cartaz no Rio Branco com encenação de
Leonardo, A viagem da família Panouillard em Luna Park. (apud ARAÚJO, 1976, p. 320)

As outras produções de Auler em janeiro são: La madrileña, cantada por


Mercedes Villa, câmera de Julio Ferrez, estréia no dia 10; outra versão de Il Pagliaci,
câmera de Ferrez, desta vez cantada por Amica Pelissier, lançada no dia 17; no dia
seguinte, La paraguaita, canção espanhola, cantada por Mercedes Villa; La revê passe ,
lançada no dia 22, interpretada por Pelissier. A mesma canta Vissi d’arte, vissi d’amore,
ária da Tosca que, como Il Pagliaci, já tivera versão anterior. Com câmera de Ferrez,
estréia no dia 25; A boêmia, na verdade, uma ária de La Bohème, estréia no dia 28; e
Tesoro mio, valsa cantada pela mesma atriz dos anteriores, lançada no último dia do mês.
Curiosa é a aparição, entre as últimas produções de 1909 e essas primeiras de
1910, de Amica Pelissier, que assume, em janeiro, o posto de cantora mais assídua atrás da

tela do Rio Branco, suprindo a ausência de Claudina Montenegro, que, como vimos, partira
para São Paulo, junto com Santiago Pepe, para trabalhar com Serrador. Curiosa porque,
depois do profícuo mês de janeiro com Auler, Pelissier é também anunciada por Serrador,
no mês seguinte, com grandes elogios, estando escalada para cantar, em São Paulo, Vissi
d’arte, vissi d’amore, tal como fizera no Rio de Janeiro. (O Estado de São Paulo, 14 de
fevereiro de 1910, apud ARAÚJO, 1981, p. 182) Desta vez, não está claro se seria uma
produção de Serrador, ou uma exibição do filme de Auler. De qualquer forma, cinco dias
depois, devido ao sucesso da primeira experiência, Amica Pelissier se encontrava em
situação análoga, cantando no Bijou, em 19 de fevereiro, Tesoro mio, da mesma forma sem
indicação sobre se era uma produção de Serrador, ou o filme de Auler. É curiosa na
produção de Auler a volta, nesse início de 1910, aos filmes de menor produção e menor
porte, após o sucesso de produções maiores no fim do ano anterior. Uma suposição seria se
tratarem de complementos curtos às sessões, ainda em voga, de Sonho de Valsa, já que
essas continuam sendo anunciadas no Rio Branco até fevereiro. De qualquer forma, a volta
desses filmes curtos parece se tratar de um interlúdio, pois a maior produção de Auler, e a
que alcançaria maior êxito, viria em breve.
57

Em São Paulo, Serrador retoma, em janeiro, seu modelo de produção de


velocidade impressionante. Alberto Botelho opera a câmera de todos os filmes daquele
mês, que contam com um novo interprete, o tenor Enzo Baninno. São exibidos: no dia 9, E
Lucevan e Stelle, ária da Tosca, de Puccini; no dia 17, La donna é mobille, a famosa ária do
Rigoletto, de Verdi; no dia 19, Questa o quello, outra ária do Rigoletto; dia 24, Tomba degli
avi mei, de Lúcia de Lammermor; dia 26, Dei mei collenti spiriti , da Traviata; no mesmo
dia, é citada a exibição de L’airoso, de Il Pagliaci; e ainda, sem data precisa, Lurge de lei,
da Traviata e Vesti la giuba, do Pagliaci.

A prevalência total de árias de óperas italianas na produção daquele momento de


Serrador sempre pode ser justificada pela maciça presença da imigração italiana em São
Paulo, naquele início de século XX, seu enorme público potencial. Historiadores que se
debruçam sobre o fenômeno chegam à conclusão que, na virada do século, o número de
italianos em São Paulo praticamente equivalia ao número de paulistas de nascimento. A

escolha de Serrador parece ser determinante para a aparição do novo cantor, Enzo Baninno,
um coerente nome italiano. Citando uma entrevista do empresário espanhol, Tinhorão traz
uma explicação de como funcionava o expediente dos atores que cantavam de trás da tela:

Os intérpretes – contava Serrador – sentavam-se em confortáveis banquinhos e


diziam seu diálogo, ou cantavam um pedaço de Leoncavallo ou Bizet, por meio de
canudos e funis de madeira ou papelão que atravessavam a moldura da tela,
espalhando assim os seus gorjeios, ou as suas gracinhas pelo recinto da platéia
(apud Tinhorão, 1972, p. 247)

O Bijou ficava pequeno para o sucesso dos cantantes. Em 26 de fevereiro de


1910, há a notícia da mudança de Serrador para o Rio de Janeiro. É a data em que a Gazeta
de Notícias informa estar estreando, no Teatro São Pedro, “o cinematógrafo cantante de
Serrador, o valente empresário que tanto sucesso tem alcançado em São Paulo”. (apud
ARAÚJO, 1976, p. 324). É mais do que conhecido o impacto da vinda de Serrador para a
capital federal, fato decisivo para a construção de um verdadeiro império constituído de
salas de exibição, que de São Paulo e Rio de Janeiro tomaria proporções ainda maiores,
espalhando-se por outras regiões. É também conhecido o impacto que o acordo do espanhol
58

com os exibidores estrangeiros, em 1911, teria sobre a produção nacional 21. O que parece
menos claro, por menos dito, é a importância do êxito da produção dos cantantes dentro da
sua própria trajetória de sucesso. Os cantantes nos parecem poder ser tomados, naquele
momento, como a mola mestra de sua mudança para o Rio de Janeiro.

No fim de março, por conta da proximidade com a Semana Santa, como de


hábito, os filmes sacros tinham suas versões cantantes. No Rio Branco de Auler, A vida de
Cristo era dublada pelos artistas da empresa, Ismênia Matheus, Amica Pelissier (de volta à
firma de Auler) e Mercedes Villa, além do coro. O Cinematógrafo Sant’anna apresentava
fita de mesmo nome, da Pathé Frères, “toda declamada”, de acordo com A Gazeta de
Notícias de 25 de março de 1910. (apud ARAÚJO, 1976, p. 326)
Em abril, Auler apresentava As faceirices de Rosa, “drama colorido artístico no
qual é cantada uma ária pelo barítono Antonio Cataldi e Laura Grassi”. Sem indicação de
data, há ainda, em 1910, o pouco citado Logo cedo. Tinhorão o coloca como sendo

produção de Auler, e Noronha reproduz dele uma foto, na qual três atrizes estão perfiladas.
(NORONHA, 1987, p. 16) Mas a produção cantante de maior sucesso estrearia no fim
daquele mês de abril. O filme citado por todos os textos que compreendem uma análise ou
mesmo um comentário sobre a bela época é Paz e Amor, que é lançado a 25 de abril de
1910, no Rio Branco. A direção ficou a cargo de Alberto Moreira, o argumento, de José do
Patrocínio Filho, sob o pseudônimo Antonio Simples, a música, de Costa Júnior, regente
da orquestra e do grupo de coros que acompanhava os cantores Ismênia Matheus, Amica
Pelissier, Mercedes Villa, Nana da Piedade, Laura Grassi, Luís Bastos, Antonio Cataldi e
Santucci, ou seja, toda a trupe ligada a Auler. O operador de câmera, curiosamente, era
Alberto Botelho, recém-chegado de São Paulo, e até então parceiro de Serrador. Aquela
seria a primeira vez que seu nome apareceria relacionado a uma produção de Auler,
substituindo o até então assíduo Julio Ferrez. Paz e Amor é anunciado como uma revista de

21
Até junho de 1912, a Companhia Cinematográfica Brasileira, da qual Serrador era o acionista majoritário,
compraria, segundo documento da própria empresa, reproduzido por José Inácio de Melo Souza, “quase todos
os mais importantes cinematógrafos da avenida Rio Branco, e quase a unanimidade dos filmes que se editam
em todo mundo”. Em 1914, as salas que exibiam fitas estrangeiras compradas para o Brasil por Serrador se
estendiam de Belém a Porto Alegre, contabilizando mais de 1.000 cinemas. (SOUZA, 2004, p. 225-231)
Serrador assumia o papel de exibidor, deixava a produção, e a inundação de fitas estrangeiras no mercado
exibidor, reconfigurado sob seu monopólio, tomava o lugar da produção nacional, que definharia.
59

costumes e atualidades, sendo tomada por alguns historiadores como uma adaptação para o
cinema da estrutura do gênero de espetáculo teatral em voga desde o fim do século XIX.

São conhecidas as reproduções de reportagens da época, principalmente as da


Gazeta de Notícias e da Careta, que constam da pesquisa de Vicente de Paula Araújo,
tendo sido comentadas em textos posteriores de um número considerável de autores. Essas
matérias fornecem a estrutura do filme, resumida como um prólogo, quatro partes, cinco
quadros e duas apoteoses, além de um resumo razoavelmente completo do enredo. O
personagem que ligava toda a trama era o caipira Tibúrcio d’Anunciação, figura retirada da
Careta, onde assinava semanalmente uma coluna de sátira à situação política da capital.
O enredo começa com Tibúrcio visitando o rei Olin I. Olin é, na verdade, como é
sabido, Nilo Peçanha, então presidente da república, seu nome invertido. A sátira ao
governo de Nilo Peçanha já está no título, que faz referência a um discurso do presidente.
Peçanha ao assumir teria declarado aos repórteres, sobre o bom trato com a oposição, que

“faria um governo de paz e amor”, no que se verifica uma espécie de tradição da política
brasileira, aferível nos discursos de presidentes da república. Vários personagens têm
nomes que remetem, sem necessidade de maiores elucubrações, a figuras proeminentes da
época. Mussiú Baboseira seria o denominado “poeta-profeta” Múcio Teixeira 22; Fifi, o
cronista Figueiredo Pimentel; Compadre Xícara, Pires Teixeira; Pajé Acioly, Nogueira
Acioly, governador do Ceará; os candidatos, sem menção direta a seus nomes, seriam Rui
Barbosa e Marechal Hermes. Alguns personagens são curiosas encarnações de entidades
como A Presidência, A Política, A Imprensa, O Chaleira. Voltando ao enredo, para guiar
Tibúrcio em sua visita ao reino, Olin oferece-lhe A Imprensa, personagem que o caipira
recusa como cicerone, por ser “dama muito faladeira”. O acompanhante a ser aceito surge
“de uma nuvem mágica”: Mussiú Baboseira. A Careta informa que nesse momento
acontecia um dos números musicais, com Baboseira cantando a música de Melo de Morais
À sombra de uma frondosa mangueira . Em matéria curiosamente não transcrita por Araújo

22
Araújo explica a complexa figura de Múcio Teixeira “escritor, poeta, diplomata, jornalista, teatrólogo e
político. Em 1910, possuía um consultório de ocultismo e magia onde, sob o pseudônimo de Barão Ergonte,
recebia enfermos, crentes e pessoas interessadas em conhecer o futuro. Suas receitas, invariavelmente,
começavam assim: Rua Visconde de Itaúna, 194, à sombra das sete palmeiras do Mangue”. (ARAÚJO, 1976,
p. 349)
60

e igualmente esquecida pelos demais textos, encontramos em Fon-Fon, de 30 de abril de


1910, a letra da referida música 23:

À sombra das sete palmeiras primeiras


Do luar à carícia, beneficia e langue
Revello a cidade, subtis frioleiras
Sou o esoterista do Canal do Mangue
Em curas ocultas, não há quem me exceda
Fazendo feitiços, não tenho rival
Com tanta limpeza não há quem proceda
Prophetizo a morte e a vida em geral.
Conheço o presente, desvendo o futuro
Do que prophetizo, perderam-se as contas
Amigo do inferno, pela vida juro
Porque com o diabo também tenho ponta
(Fon-Fon, 30 de abril de 1910, n. 18, ano IV)

A matéria traz um elogio à partitura de Costa Júnior, descrita como “muito


graciosa, leve, saltitante, sobressaindo as coplas do Tibúrcio, as de Vatapá e,
principalmente, a do coro que recebe Olin, acabando numa das mais recentes canções
populares”. Aqui, dois apontamentos. Tinhorão cita Ó abre-alas, de Chiquinha Gonzaga,
como uma das músicas de Paz e Amor. Poderia ser essa a canção popular em questão, até
porque estaria presente no início do filme, quando da apresentação de Olin/Nilo. A única
ressalva a ser feita neste caso é que a marchinha de Gonzaga não era recente em 1910,
sendo de 1899. Parte da letra referente a Vatapá, personagem de Mercedes Villa, está
transcrita na sinopse do filme dada pelo guia da Embrafilme. Segundo esta, ao encontrar o
personagem que representa Rui Barbosa, Vatapá cantava para ele, dando a receita:

Leva pimenta e dendê (...)


Leva pirão de farinha
Jiló picadinho, seu quigombô
Peixe desfiado ou galinha
Seu côco ralado, ioiô
(EMBRAFILME, 1984, p. 68)

23
Embora não t enha transcrito o texto, Araújo reproduziu as fotos contidas na matéria, seis no total, em
Salões, cinemas e circos de São Paulo. As fotos mostram Antonio Cataldi como Olin, Maria da Piedade no
papel de A Presidência, o personagem O Chaleira entre um juiz e um militar, as guardas civis, Mercedes Villa
no papel de Vatapá e Ismênia Matheus, como A candidatura. (ARAÚJO, 1981, p. 194, 203)
61

Ainda referente ao texto de Fon-Fon, quanto à música cantada por Tibúrcio


d’Anunciação encontramos, em dois arquivos diferentes, duas cópias da partitura
correspondente. Um exemplar se encontra na Biblioteca Nacional, outro nos arquivos de
Mozart de Araújo, depositados no Centro Cultural Banco do Brasil. Estão identificadas
com o título “Paz e Amor: canção sertaneja de Tibúrcio d’Anunciação na revista
cinematográfica. Letra de Antonio Simples. Música de Costa Júnior”. Acreditamos ser esta,
pela identificação, a canção título do filme, citada por João Luiz Vieira quando coloca Paz
e Amor e Nhô Anastácio chegou de viagem como antecessores, respectivamente, das
chanchadas das décadas de 1930 a 1950 e dos filmes onde o personagem do caipira é
central. (in: RAMOS, MIRANDA, 2000, p. 117) A canção realmente se trata de uma
modinha caipira bastante simples, e a letra de José do Patrocínio Filho diz:

QuemVousoudireitinho
eu e de onde
dizê venho
Maior revê-res que tenho
E que vim aqui fazê (quá!)
Sou o véio sertanejo da revista nacioná
E de há muito que desejo estas terras visitá

Ah! Tal e quá!


Ah! Ah! Tal e quá!

Arrumei minha quitanda


Minha roça deixei lá
Após, numa traquitanda
Neste mundão vim pará.

Ah! Tal e quá!


Ah! Ah! Tal e quá!
Tenho muíe, tenho fios
Tenho uma vacca e um cão
Tenho cafeses e mios
Quatro primas e um irmão

Ah! Tal e quá!


Ah! Ah! Tal e quá!

Não vim cá faze desorder


Sou um home simples chão
Um criado às suas order
Tibúrcio d’Anunciação
Ah! Tal e quá!
Ah! Ah! Tal e quá!
62

Estava apresentado o personagem. A última informação não encontrada em


outros textos senão na matéria de Fon-Fon é um trecho da música cantada pelo personagem
Chaleira. Diz o bajulador a quem o acompanha:

De gênio risonho, risonho e afável


Eu sou por princípio amável
E penso, sem me gabar,
No afan de fazer zumbaias
Ninguém me pode igualar
Foi o meu fado viver desta maneira
Dependurado no bico da chaleira
(Fon-Fon, op. cit.)

Trata-se de mais um aproveitamento do sucesso do próprio Costa Júnior, que


como dissemos, já tivera pelo menos quatro gravações diferentes e inspirara o filme do ano
anterior, Pega na chaleira. Apresentadas essas informações, voltemos à conhecida sinopse.
Após o aparecimento de Mussiú Baboseira, ele próprio e Tibúrcio começam a andar pela
cidade, ou, pelo reino de Olin. Caminham pelas avenidas, param em um café, onde “na
companhia de vários consumidores”, encontram Fifi, o colunista Figueiredo Pimentel,
redator de O Binóculo, cercado por várias damas. Seguem-se “a terrível banda alemã”, o
encontro com “o correio santificado”, representado por um carteiro de batina, e o encontro
com A Política. Em seguida, Tibúrcio estaria em um jardim, onde encontra a Viúva Alegre,
auto-referência ao sucesso do ano anterior. Na seqüência, passa pela Presidência, ladeada
por dois figurões que a disputam, e, adiante, por uma representação do gênero alegre, outra

referência ao próprio cinema. Encontram a personagem Vatapá. Provavelmente nesse


momento entraria a música da qual reproduzimos um trecho. O Largo de São Francisco
seria o cenário da próxima ação. Um orador dirige-se ao povo. Surge a personagem
Candidatura, argumentando que a balbúrdia é toda por sua causa. Em seguida, estarão,
Tibúrcio e Baboseira, na embaixada chinesa. Luís Gurgel do Amaral, citado por Araújo,
comenta a inusitada aparição do embaixador da China no Brasil, Liou-Shen-Sun, do
secretário Ou-ke-tsao e do adido Liou-Nai-Fang, descritos por ele como “três graves e
silenciosas figuras”, movendo-se como sombras pelas ruas da cidade. (apud ARAÚJO,
1976, p. 332). Aqui, um comentário. O Filhote da Careta citava, entre elogios feitos ao
63

filme, “as músicas saltitantes, as canções ridentes e os diálogos cheios de graça”. (apud
ARAÚJO, op.cit. p. 338) Havia, portanto, diálogos, além das músicas. O que queremos
enfatizar sobre o texto de Gurgel do Amaral é que se trata de um comentário que enfatiza a
percepção do silêncio como característica daqueles personagens, posto que já estavam
cercados por um enredo falante, cantante, sonoro enfim, sob vários aspectos. O argumento
por vezes encontrado na teoria sobre cinema de que só com o cinema sonoro o silêncio
pôde ser percebido, por contraste, como força narrativa, aqui se encontra retroagindo até
1910, uma vez que, quase desnecessário dizer, já naquela data, inclusa no que passaria a ser
denominado a posteriori o período do cinema mudo, os filmes já falavam, já cantavam e
tudo mais.

As notícias da época citam como último quadro do filme, ou como sua apoteose, a
entrada do porta-aviões Minas Gerais na Baía de Guanabara, fato ao qual realmente havia
sido dado grande destaque por parte da imprensa no ano anterior. O sucesso de Paz e Amor

é conhecido. É sempre citada a frase com a qual Vicente de Paula Araújo termina o seu
capítulo sobre o ano de 1910. Araújo diz ser aquele o filme brasileiro de maior
receptividade nas duas primeiras décadas de século XX. (ARAÚJO, 1976, p. 356) Em
setembro, Auler arrendava o Pavilhão Internacional para exibi-lo, anunciando-o como “o
maior sucesso cinematográfico do mundo” (apud ARAÚJO, op. cit. p. 346) Um ano após o
seu lançamento, em 23 de abril de 1911, Auler comemorava a marca das 1000 exibições.
(ARAÚJO, op. cit. p. 363) Há registros de exibições em São Paulo, em agosto de 1911, no
Teatro de Variedades, do empresário Salvatore Lazaro. (ARAÚJO, 1981, p. 200) Walter da
Silveira encontra registros de exibições na Bahia, no Cinema Jandaia, nos últimos meses de
1915, “cantado atrás da tela pelos mesmos atores que havia atuado diante da câmera”.
(SILVEIRA, 1978, p. 45) Ressalte-se a diferença de cinco anos entre a produção e essa
exibição. São citados também como tendo sido exibidos na mesma época A viúva alegre e
O conde de Luxemburgo, produção de 1911 que comentaremos mais a frente. 24 Carecem de

24
Walter da Silveira cita outras tentativas de sonorização na Bahia. No mesmo ano de 1915, o Teatro São
João ofereceu aos seus espectadores “magnífico espetáculo de cinema falado”, com o quinetofone de Edison.
Essa informação está de acordo com o fato de que, em 1913, Edison tinha anunciado volta de sua patente do
fim do século anterior, em versão mais bem acabada. Silveira comenta também a chegada em Salvador dos
films parlants da Gaumont, as phono-scènes, versões falantes de óperas européias. Segundo ele, algumas das
sessões desses filmes falantes da Gaumont completavam-se com produções nacionais, tais como Prática em
português do invento, e Canções populares brasileiras. (SILVEIRA, 1976, p.42)
64

explicação essas exibições cinco anos mais tarde, até por conta de Auler ter abandonado o
cinema no ano seguinte, 1911, como veremos.

Na esteira do sucesso de Paz e Amor, Auler apresentava, em 10 de outubro, O


Chantecler, espécie de continuação daquele. Segundo a Gazeta de Notícias do dia da
estréia, o enredo tratava-se da visita de Tibúrcio d’Anunciação ao Chantecler, famoso
político, no caso, Pinheiro Machado, que lhe dá uma carta de recomendação para transitar
pela cidade. O filme terminaria com uma seqüência a bordo do Minas Gerais “para a qual
posaram mais de 600 pessoas”, e na qual um marinheiro recita “belíssima poesia, escrita
expressamente para o ato por Emílio de Morais”. (apud ARAÚJO, 1976, p. 348) Um dia
depois, estreava no Rio de Janeiro, no Cinema Soberano, Rua da Carioca, 49, a revista O
Rio por um óculo, anunciada pela Gazeta de Notícias como de O. Pontes e Avil. Tinhorão
atribui o argumento a Luis Peixoto e Carlos Bittencourt. Segundo Tinhorão, havia quadros
dedicados aos clubes carnavalescos Democráticos, Fenianos e Tenentes do Diabo.

(TINHORÃO, 1972, p. 278) A música estava a cargo do maestro Paulino Sacramento,


famoso pelo trabalho nas revistas de teatro, que vinha a contribuir para o cinema.
Sacramento, niteroiense nascido em 1880, compunha para as revistas desde 1898 e nelas
atuaria até 1925, ano anterior ao da sua morte. Segundo o verbete a ele dedicado na
Enciclopédia da música brasileira, fora “o mais atuante maestro do teatro de revista de sua
época, ao lado de Chiquinha Gonzaga”. Duas curiosidades sobre a sua trajetória, em
momentos quando o trabalho no teatro esteve próximo do cinema: entre 1905 e 1906 esteve
incumbido das músicas para os espetáculos teatrais da companhia de Segreto, no Teatro
Carlos Gomes; em 1906, assinava em parceria com Costa Júnior a revista O maxixe, para a
Companhia de Teatro São José.
Em 12 de outubro, a Gazeta de Notícias informava que Francisco Serrador
inaugurava seu cinema no Rio de Janeiro, O Chantecler, com a estréia de O cometa,
“revista nacional escrita, posada e encenada especialmente para a empresa”. O anúncio traz
o nome de Costa Júnior como responsável pela música e como “diretor artístico da
empresa”. (apud ARAÚJO, 1976, p. 350) A câmera fora operada por Julio Ferrez. Serrador,
ao que tudo indica, tirara ambos da empresa de Auler, dando fim àquelas longas parcerias.
Atuavam em O cometa Ismênia Matheus, vinda também das produções de Auler e Manoel

Pedro dos Santos, o Bahiano, pioneiro e astro das gravações fonográficas, sendo esta a
65

primeira contribuição sua, tardia, para o cinema de que se tem notícia. Sendo uma revista
que retratava o ano de 1910, ainda que a dois meses de seu fim, seu título se refere à
passagem do cometa Halley, e seus quadros traziam outros acontecimentos marcantes do
ano, como a ação dos mata-mosquitos, ainda as viúvas alegres, a presença dos marinheiros
estrangeiros, etc. Nos dias 2 e 3 de novembro, O Chantecler, de Auler, e O cometa, de
Serrador, comemoravam as suas centésimas exibições.
Em novembro, Serrador lançava A marcha do Cádiz, produzida com a mesma
equipe de O cometa. A direção aparece creditada a Henrique de Carvalho. O filme trata
“dos acontecimentos de 1910 que culminam com a implantação da república em Portugal”,
ou seja, a revolução que põe em fuga o rei Manoel II. (ARAÚJO, 1976, 353). Sobre o
mesmo assunto, Auler prometia para breve A república portuguesa ou cinco de outubro,
que viria a estrear no Rio Branco em 30 de janeiro do ano seguinte, dirigida por Alberto
Moreira, porém com substitutos dos antigos colaboradores nas demais funções: Agostinho

Gouveia e Domingos Roque substituíam Costa Júnior na música, Mário Alves era o cantor
principal. O argumento era de Domingos Margarinos. (ARAÚJO, op.cit. p. 358). Em
dezembro, o cinema de Serrador expunha ao público uma nova empreitada. Serrador exibia
no Rio de Janeiro seus cantantes produzidos anteriormente em São Paulo, a começar pelo
Duo da Africana , cantado por Ismênia Matheus e Soller. Anúncio na Gazeta de Notícias de
2 de dezembro explica que “a empresa inicia hoje a sua série de fitas cantantes que serão
interpretadas pelos seus artistas. A mais vasta coleção do gênero.” (apud ARAÚJO, op. cit.
p. 354)

Fechado o ano de 1910, encontra-se hoje catalogada uma produção de pouco mais
de 40 filmes. De Auler, há registros de quinze produções; de Serrador, englobando São
Paulo e Rio de Janeiro, vinte e três. Desse total, 31 são filmes produzidos no país, pairando
apenas sobre sete a dúvida quanto a serem, possivelmente, adaptações de produções
estrangeiras. Exacerba-se, assim, o predomínio, dentro da produção de cantantes, de filmes
nacionais.
66

1.3.5. 1911: fim dos cantantes

Dando seqüência ao recém-descoberto filão dos assuntos lusitanos, Serrador


estréia em seu cinema, a 10 de janeiro, A serrana, “opereta de costumes brasileiros e

portugueses, filmada na Fazenda da Freguesia, inteiramente cantada e bailada, sem


nenhuma declamação”, sendo também anunciada como “a primeira peça executada no
Brasil em cenários naturais”. A equipe é a mesma dos anteriores Cometa e Marcha do
Cádiz: Ferrez na câmera, Costa Júnior na música, Ismênia Matheus e Bahiano cantando,
entre outros. Serrador estaria anunciando, dentro de poucos dias, o sucesso do espetáculo e,
em 9 de fevereiro, a sua centésima exibição (ARAÚJO, op. cit. p. 357-359) Em 24 de
janeiro, o Cinema Soberano estreava outra revista, feitas nos mesmos moldes da produção
O Rio por um óculo , do ano anterior: 606. A equipe era a mesma: Argumento de Luis
Peixoto e Carlos Bitencourt, fotografia de Paulino Botelho, música de Paulino Sacramento.
Há registros do título completo ter sido 606 contra o espiroqueta pálido, para o qual
Tinhorão traz a explicação: fazia muito sucesso, na época, uma injeção com aquele nome,
ou número, fabricada pelo laboratório alemão Ehrlich para tratamento contra a sífilis,
vendida no país a partir de 1910. (TINHORÃO, 1972, p. 279)

Por conta do carnaval, Serrador lançava em fevereiro O cordão, mantendo


exatamente a mesma equipe. Os quadros mostravam a celebração na Avenida Central e a
terça de carnaval no Teatro Recreio. O filme é anunciado como “uma revista cinema-
carnavalesca”, com “cenas cinemocarnavalescas” (ARAÚJO, op. cit. p. 359). Por essa

época do ano, entra em cartaz José do fandango quer dançar sua modinha, do qual
encontramos somente a informação de ter sido cantada pelo Bahiano, sem haver indícios
precisos sobre a data de estréia ou sobre quem o produziu. A associação, naquele período,
de Bahiano e Serrador, pode fazer supor que se trate de produção do último.

No início de abril, Serrador estreava O conde de Luxemburgo, baseado na opereta


de Franz Lehar, o mesmo autor da Viùva Alegre, com Ferrez, Costa Júnior e Ismênia
Matheus nas mesmas funções. Na seqüência, em 24 do mesmo mês, Auler lançava versão
sua da mesma ópera, com o mesmo título, fotografia de Alberto Botelho e música de Assis
Pacheco e Luis Moreira. Auler parecia testar diferentes substitutos a cada filme para suprir
67

a ausência de Costa Júnior, este em posição confortável na empresa de Serrador, que


enfileirava êxitos. No elenco, encontravam-se, ainda, Mercedes Villa e Antonio Cataldi.
Nesse momento, a comentada rivalidade entre Auler e Serrador transparece nos jornais,
com anúncios insultuosos por parte de Auler, chamando o público para assistir o seu Conde
Luxemburgo, e não o do concorrente. Na Semana Santa, Serrador apresentava, no
Chantecler, Nascimento, vida, paixão e morte de Nosso Senhor Jesus Cristo, em versão
cantante: a música de Costa Júnior, “escrita especialmente para o filme”, é a principal peça
de divulgação. Entre as vozes, Ismênia Matheus. Neste ano de 1911, Salvatore Lazaro, já
citado por haver exibido os cantantes de Auler em São Paulo, estava no Rio de Janeiro. A
13 de abril, com grande alarido na imprensa, exibe na tela do Teatro São Pedro O Guarani,
produção cantante sua com Miguel Russomano no papel de Peri e Laura Malta como Ceci.
Em nota intitulada “Um filme importante”, a Gazeta de Notícias de 19 de abril comenta o
“fato extraordinário” de se tratar de uma versão cinematográfica da ópera de Carlos Gomes
praticamente completa, salvo por “pequenos cortes, apenas os indispensáveis para
organizar o filme”. (apud ARAÚJO, op. cit. p. 363)

Em 1º de junho, Auler lançava no Rio Branco aquele que é reconhecido como o


último cantante: A dançarina descalça , direção de Antonio Quintiliano, baseado na opereta
de Felix Albini, fotografia de Alberto Botelho, música a cargo do maestro Fernando
Barone, orquestra regida por Agostinho Gouveia, com Mercedes Villa e Antonio Cataldi.
Era um momento de mudanças radicais no circuito exibidor do Rio de Janeiro, citadas via
de regra como o principal fator responsável pelo fim do ciclo identificado como a bela
época do cinema brasileiro. É conhecida a argumentação de que longa-metragem
estrangeiro ganhava espaço cada vez maior no Rio de Janeiro, tendo como artífice, naquele
momento, Francisco Serrador, que abria ao produto vindo do exterior o seu circuito de
salas de cinema cariocas. Araújo coloca que o produto nacional não dispunha das
condições necessárias para competir com a massa de fitas estrangeiras que invadiam os
cinemas cariocas. (ARAÚJO, op. cit. p. 368) Dada a nova conjuntura, Serrador se
destacaria como exibidor. Auler é um dos primeiros a abandonar o cinema. Anúncio da
Gazeta de Notícias de 21 de julho informa o encerramento das atividades da empresa de
Auler no Rio de Janeiro.
68

O argumento da causa externa como a principal responsável pelo ocaso de


tamanha produção não é isento de questionamentos. Jean-Claude Bernardet aponta para a
falta de sustentação de tal idéia, sugerindo que estão por descobrir causas internas que
teriam tornado insustentável a continuidade da produção naqueles termos. A pesquisa de
José Inácio de Melo Souza segue direção similar, e demonstra que o cinema estrangeiro já
dispunha de espaço majoritário no mercado exibidor brasileiro mesmo antes de 1911, por
conta da grande penetração dos filmes da Pathé Frères, o que minora a idéia de uma
invasão naquele ano. Este trabalho não dispõe de subsídios para adentrar tal discussão,
ficando restrita sua análise à produção enquanto ela existiu. Fato é que há um cataclismo na
produção carioca no ano de 1911, dado que aquele é o momento do desaparecimento
“quase completo dos filmes de enredo nacionais”, como nota Araújo, e com isso, dos
cantantes, no que segue surprrendendo a idéia de uma falência abrupta de um modelo de
sincronização de grande sucesso junto ao público até o ano anterior.

Como derradeira notícia de acompanhamento musical no Rio de Janeiro, há a


informação de que o Cinema Odeon apresentava, em 13 de outubro, um aparelho falante da
Gaumont. O Fon-Fon de 10 de junho já trouxera matéria que anunciava a vinda do
Chronophone Gaumont, reproduzida por Araújo. (ARAÚJO, op. cit. p. 369) Era mais uma
tentativa de junção de fonógrafo e projetor a aparecer por estas terras. O aparelho viajaria o
país. Provavelmente é dele a notícia trazida por Walter da Silveira, quando das exibições na
Bahia, que já citamos.

Em 1914, há a notícia do quinetofone de Edison em São Paulo, em exibição no


Polytheama, de Serrador, a 3 de outubro, (ARAÚJO, 1981, p. 241) mas parece ter sido uma
experiência isolada, assim como, por exemplo, na Semana Santa de 1912, encontrava-se
em São Paulo uma exibição cantante no Bijou, também de Serrador. Tratava-se de uma
adaptação de O mártir do calvário, fita francesa colorida, acompanhada por um coro de 24
pessoas, “destacando-se as cantoras consagradas Ada Manery e Amália Rodrigues”.
(ARAÚJO, op. cit. p. 210). As notícias de acompanhamento sonoro por essa época são
esporádicas. De qualquer forma, o segundo semestre de 1914 marca o fim de um ciclo
também em São Paulo. Não se encontram, segundo Araújo, registro de filmes nacionais no
segundo semestre, graças a, entre outros possíveis motivos, uma sobretaxa na importação

de películas virgens por parte do Ministério da Fazenda. (ARAÚJO, op. cit. p. 248)
69

Quanto aos cantantes, o que esta investigação procurou demonstrar é que se


encontram em um primeiro momento na produção cinematográfica brasileira no qual o
som, em suas relações com a imagem, foi fundamental para o sucesso dos filmes, neste
caso, a música cantada de trás da tela. Esse momento chave engloba a consolidação de uma
passagem para a produção nacional de ficção; o aumento da metragem dos filmes; o
estabelecimento das funções mais demarcadas de diretor, de argumentista, e do maestro
como figura central na criação, posto que o aspecto sonoro tão importante estava todo em
suas mãos. A demarcação clara das funções estabelece um modelo mais sólido de
produção. Mantendo-se o recorte de analisar somente os cantantes dentro da produção do
período conhecido como bela época, chega-se ao número relevante de cerca de 120 filmes.
Desses, cerca de 80, ou dois terços, são produções nacionais. A passagem para uma
produção que começa a se mostrar como marcadamente brasileira nos parece, neste caso,
natural, no sentido de que não é um fenômeno que, naquele momento, se restringisse ao
cinema. A produção musical da época, se pode ser tomada como paralelo, também passa
por uma situação em que ainda há uma permissividade para com a incorporação dos mais
variados ritmos estrangeiros, vide a presença nas composições daquele momento, como é
exemplo a obra de Costa Júnior, de valsas, tangos, fox-trotes, etc. Ao mesmo tempo, dá
seus primeiros passos a indústria fonográfica no Brasil, e esta traz ao público as gravações
de marchas, de lundus, de maxixes, modinhas e demais ritmos nacionais, como são
exemplos as execuções de Eduardo das Neves e de Bahiano.

José Inácio de Melo Souza coloca que o período iniciado em 1907, com a
substituição dos cinemas ambulantes pelas grandes salas, teve como uma de suas maiores
conseqüências a formação de um público cinematográfico de elite, em contraposição ao
acesso mais democrático às salas que o modelo anterior permitia. Teria havido um processo
de seleção da população, dividida entre os segmentos desejáveis como transeuntes da
Avenida Central, e freqüentadores das grandes salas, e aqueles indesejáveis (SOUZA,
2004, p. 130-135). A opção por música erudita como acompanhamento dos filmes, desde
os falantes, que introduziam as árias e os cantores europeus ao público de cinema, seguindo
pelos cantantes, sob a regência dos maestros locais, pode ser tomada como mais um esforço
nesse sentido, embora a presença da música popular aos poucos se fizesse notar. Cabe
ressaltar que essa é uma via de mão dupla, já que se pode dizer que ao mesmo tempo os
70

filmes popularizavam a música erudita, aumentando o número de pessoas que tinham


contato com ela, dentro do ambiente, de qualquer forma menos sofisticado, das salas de
cinema. Miguel Serpa Pereira descreve as aproximações possíveis entre ópera e cinema,
percebendo analogias entre a narrativa cristalizada por Wagner e as convenções narrativas
que o cinema clássico deixaria como legado. A ópera wagneriana encerra em si um
discurso complexo, que a partir do experimento de “técnicas próprias de composição,
encenação, uso do texto, orquestração, buscava a integração entre as diversas formas de
expressão”. Trata-se do conhecido conceito de gesamtkunstwerk, a obra de arte total. A
ópera segundo os moldes de Wagner seria a união da música, da dança, da poesia, do
teatro, da pintura, integradas todas para construir uma só narrativa. O uso do leitmotiv, o
tema que se repete explicitando a unidade da estrutura; de deslocamentos temporais, como
recordações dos personagens; da luz direcionada apenas para o palco, mantendo o público
na escuridão; da localização da orquestra no fosso, “escondida”, posta do lado de fora da
encenação, todos são elementos srcinários da obra de Wagner, análogos com o que viria
ser a narrativa clássica e com a situação de se estar em uma sala de cinema. (PEREIRA,
1995) Não seria, assim, estranha a aproximação do cinema, em seus primeiros anos, com
um gênero musical com o qual tinha pontos em comum. Também relacionando a obra de
Wagner com o cinema, mas dentro do projeto maior que intula “arqueologia da escuta”
Ivan Capeller comenta o papel do compositor alemão em consolidar “a voz como objeto
sonoro dominante na modernidade”. Para Capeller, a arqueologia da escuta deve buscar
compreender as mudanças inseridas nos últimos cem anos, ou pouco mais, no modo
cotidiano como nos relacionamos com os sons a nossa volta. Tais mudanças se dariam a

partir das novas situações sonoras deflagradas com o registro elétrico de sons, com a
reprodução por meio de alto-falantes, telefones, fonógrafos, gramofones e mais tarde, pelo
rádio, pelo cinema, pela televisão. As novas formas de perceber os sons ao redor tornaria
mais complexo o exercício da escuta, criaria modos inéditos de compreeender a matéria
musical, os ruídos, as vozes. Estas últimas passariam a ter papéis centrais tanto nas
narrativas de natureza meramente sonora quanto nas audiovisuais. Para Capeller, as
inovações perpretadas pela ópera wagneriana, com o destaque dado para a porção verbal do
enredo, abriram caminho para outras narrativas vococêntricas. (CAPELLER, 2005)
71

Um outro ponto que nos parece ser importante quanto ao momento no qual se
insere a produção dos cantantes é que, dentre uma pluralidade de influências sentidas de
todos os lados na capital do país, pode-se ali vislumbrar o nascedouro dos signos que, bem
mais tarde, serão tomados como aqueles sobre os quais é possível discutir a formação de
uma procurada identidade nacional. Aquele é um momento, no Rio de Janeiro, anterior à
maior dessas demarcações, o processo de legitimação do samba, que ainda não nascera, e
que deixaria, na década de 1930, a clandestinidade rumo aos salões do Estado Novo, aos
estúdios da Rádio Nacional, servindo de ferramenta a um processo de hegemonização
cultural do país. Na primeira década do século, ainda há no Rio de Janeiro uma pluralidade
de ritmos, e os que tendem a se sobressair vão começando a moldar o imaginário carioca. O
cinema, naquele momento, também caminhava para certas definições de padrões de
produção e de temas que, apesar da interrupção abrupta, deixarão raízes.

Ainda, quando é comentado que o sucesso dos cantantes talvez não possa ser

tomado com um êxito da produção cinematográfica, por conta de seu parentesco com o
teatro de revista e com o canto, nos parece, ao contrário, tratar-se de um modelo de sucesso
cinematográfico que deva ser entendido dentro da forma que o cinema tomava naquela
situação. Não nos parece caber sobre aqueles filmes uma discussão que resvale para o
argumento do específico cinematográfico, de resto, posterior àquele momento. A discussão
da especificidade fílmica ganha maior corpo apenas na década de 1920, e não nos parece
poder ser aplicada a uma produção localizada entre 1908 e 1911.

1.4. ÚLTIMOS APONTAMENTOS: DE RONDON A PIXINGUINHA

Alguns apontamentos encerram este capítulo sobre os primórdios do


acompanhamento sonoro no cinema brasileiro. Relataremos a seguir três experiências
pouco comentadas. A primeira delas, pouquíssimo, ocorrida no ano de 1912, aquele tido,
como comentamos, como o da mais grave ausência de produção ficcional, no Rio de
Janeiro, por causa da cisma de 1911. Fora do Rio de Janeiro, e fora dos limites da produção
ficcional, encontram-se registros da famosa Comissão Rondon, que explorava o oeste do
72

país desde 1907, e que a partir de 1912 documentaria com câmeras de cinema as
populações indígenas, a começar pelo Mato Grosso. Jurandyr Noronha comenta este
aspecto cinematográfico da expedição, a cargo do cinegrafista Luis Thomaz Reis, mais
tarde major, operador de câmera até o seu falecimento, em filmagem, em 1940.
(NORONHA, 1987, p. 36-48) São sempre comentadas as imagens registradas na expedição
comandada por Rondon, mas pouquíssimo se comenta sobre as gravações de som que
também ocorreram a partir daquele ano de 1912. O técnico de gravação era o jovem
Roquette Pinto. Mesmo as fotos tiradas por Roquette Pinto são comentadas, mas não os
sons. Operava um curioso gravador portátil, mais uma patente de Edison, chamado
Dictaphone, que gravava em cilindros de cera. As gravações dos cantos dos índios
Nhambiquara e Parecis foram mais tarde ouvidas e transcritas por Villa Lobos, as partituras
dedicadas ao técnico de gravação. Trata-se de um uso pioneiro de gravador portátil, bem
como de gravação de som em locação, se se pode dizer assim. 25

Um pouco mais comentadas são duas experiências ocorridas em Minas Gerais. A


primeira de Paulo Benedetti, citado sempre por conta do filme, de 1915, Uma transformista
srcinal , por seu trabalho como fotógrafo na parceria com Vittorio Capellaro, da qual
resultariam, entre 1916 e 1920, O cruzeiro do sul, Iracema e O garimpeiro, e pela
associação com Pedro Lima e com Adhemar Gonzaga, no fim dos anos 1920, experiência
da qual surge Barro Humano. O fato que nos interessa neste momento é anterior a Uma
transformista srcinal e vem a se conjugar com a produção do filme. Instalado em
Barbacena desde 1910, o italiano Benedetti preocupava-se, afastado dos grandes centros,
com o sincronismo entre som e imagem. Produto de suas pesquisas é uma patente de 1912,
chamada Cinemetrófono, que consistia, segundo Lécio Augusto Ramos, “em dotar a
película de uma faixa extra na base do fonograma, na qual era impressa a partitura da
música de acompanhamento do filme, permitindo ao regente sincronizar os movimentos da
tela aos movimentos da orquestra”. (in: RAMOS, MIRANDA, 2000, p. 54) Dois anos mais
tarde, a tentativa de sincronismo tomaria um caminho menos engenhoso, aquele da
conhecida junção de projetor com fonógrafo. Segundo Lécio Ramos, Uma transformista
srcinal teria sido o único filme produzido por Benedetti demonstrativo desse processo. De
25
O gravador e os cilindros fazem parte do acervo do Museu Nacional. Estas informações tiveram espaço
recentemente no periódico Amigo ouvinte, da Rádio MEC, n.36, ano XI, abril de 2004. Há na matéria uma
foto do Dictaphone, bem como a reprodução de uma das partituras transcritas por Villa Lobos.
73

suas cinco partes, “três seriam cantadas pela machina cinematográfica e acompanhadas
pela orquestra” e duas teriam meramente “música descritiva com acompanhamento
orquestral” (idem, ibdem) Note-se a complexidade do acompanhamento sonoro assim
relatado, que parece ser composto de momentos em que o som estaria unido ao filme de
forma mecânica, e de situações, dentro da mesma projeção, onde a música da orquestra
preencheria os espaços. Benedetti ainda demonstraria, anos mais tarde, na famosa
Exposição Internacional do Centenário da Independência, em 1922, no Rio de Janeiro, um
novo sistema de sincronismo para cinema, provavelmente derivado, pela sua descrição, do
antigo Cinemetrófono, pois consistia, mais uma vez, de uma impressão extra na película
que indicaria para a orquestra o acompanhamento musical.

Situação análoga, por se tratar de uma tentativa de sincronismo localizada no


interior de Minas Gerais, ocorre algum tempo depois, por conta de Francisco de Almeida
Fleming. O mineiro de Ouro Fino, que na época de sua produção cinematográfica

encontrava-se em Pouso Alegre, é citado principalmente pela produção In hoc signo vincis,
de 1921. Nessa mesma época, desenvolvia uma aparelhagem por ele denominada América
Cine Fonema que, como em outras partes do mundo, tentava resolver a questão por meio da
união entre projetor e fonógrafo. Essa experiência é razoavelmente conhecida, tendo sido
citada por Alex Viany, em Introdução ao cinema brasileiro, (VIANY, 1959, p. 63) e por
Tinhorão, que comenta ainda a existência de uma série de filmes chamados Desafios à
viola, que teriam servido de teste para o invento. (TINHORÃO, 1972, p. 281)

1.4.1. A questão do acompanhamento musical

Havendo citado essas experiências esporádicas, gostaríamos de comentar, como


último ponto do capítulo, uma situação mais abrangente que parece perpassar esses
primeiros anos do cinema, e à qual ainda não demos a atenção devida: o acompanhamento
musical nas salas de exibição, por piano ou orquestra. A ênfase nos modos de
acompanhamento mecânico e no caso diferenciado dos cantantes não se deu por acaso. Um
dos intuitos desta linha de raciocínio era passar ao largo do senso comum que julga ter sido

o acompanhamento sonoro no dito período mudo provido por pianos e orquestras de


74

maneira homogênea. Quanto mais se pesquisa sobre a época, mais se descobre que essa
proposição não se sustenta. Ao contrário, parece ter havido uma pluralidade de formas de
sincronização, principalmente nos primeiros anos. Uma vez entendido que o
acompanhamento musical não teria sido preponderante, o próximo passo é perguntar: qual
teria sido o seu papel? Que indícios existem de situações onde aquele teria sido realmente a
trilha sonora dos filmes? Como já dissemos, Rick Altman demonstra que a hegemonia da
música como acompanhamento deu-se, nos Estados Unidos, apenas no fim do período
mudo, na década de 1920. Ponto chave para a investigação de Altman é a proposição de
que o fato de haver registros de pianos e orquestras nas primeiras salas de cinema não deve
corresponder a uma associação automática quanto ao acompanhamento das projeções.
Altman chega à conclusão, após detalhada pesquisa, de que muitas vezes os pianos e
orquestras somente estiveram em ação no intervalo entre as sessões, para distrair ou
recepcionar os espectadores que entravam e saiam. Muitas das orquestras às quais são
sempre atribuídas as trilhas sonoras das sessões estiveram localizadas, na verdade, na sala
de espera dos pequenos cinemas. (ALTMAN, 1996, p. 660-669) De forma análoga, no
Brasil, encontram-se vestígios dos dois casos: do acompanhamento das sessões e da função
complementar da sala de espera. Estes últimos tiveram, no caso brasileiro, grande
importância, como veremos. Na pesquisa de José Inácio de Melo Souza se encontra, pelos
depoimentos de espectadores remanescentes dos primeiros anos do cinema, a confirmação
de que pianos e pequenas orquestras presentes nas salas de cinema tocavam nos intervalos
entre as sessões. Souza encontra o citado Bahiano apresentando-se no palco do Moulin
Rouge em conjunto com exibições de filmes, mas apenas entre as projeções (SOUZA,

2004, p. 253).
Há situações, e enredos, que sugerem, desde os primeiros filmes exibidos no
Brasil, acompanhamento musical. Por exemplo, entre exibições de Segreto localizadas na
virada do século estão os filmes Dança de um baiano , de 1899, e Maxixe de outro mundo ,
de 1900.26 Hernani Heffner traz a informação de que na sala de exibições de Segreto havia
um piano. (in: RAMOS, MIRANDA, 2000, p. 519) Resta saber se ele acompanhava as
sessões, ou se, como nos primórdios do cinema norte-americano, atraía, da entrada , o
público. Ainda no ano de 1899, há, por exemplo, um anúncio do Progredidor, em São
26
O Salão de Novidades Paris no Rio, de Segreto, exibia filmes desde 1897.
75

Paulo, que informa que, em sessão ocorrida a 26 de abril, “foram executados vários trechos
de música pela excelente orquestra, e diversas fitas foram exibidas”. (ARAÚJO, 1981, p.
37) Note-se que o texto não deixa claro se os dois espetáculos ocorriam simultaneamente,
ou seja, se na verdade eram o mesmo. Trata-se de uma informação que pode dar margem a
interpretação análoga a de Altman, de que poderiam se tratar de eventos alternados, a
execução das músicas e a projeção dos filmes.
Casos em que os indícios de acompanhamento musical são mais claros acontecem
com os filmes sacros, exibidos, como vimos, nas semanas santas. Já citamos algumas de
suas versões cantantes, mas mesmo antes a música parece ter sido elemento importante
para a exibição daqueles filmes. Em São Paulo, no Polytheama, houve, a 27 de março de
1902, sessão de A peregrinação a Nossa Senhora de Lourdes. O anúncio do evento em O
comércio de São Paulo informa que “durante estas exibições tocar-se-ão trechos de música
sacra do Abade Peroni”. (apud ARAÚJO, 1981, p. 79) Este texto, diferente do que citamos

anteriormente, coloca a questão da simultaneidade. Há nesse sentido um depoimento citado


por Alex Viany e por Máximo Barro que descreve inusitado acompanhamento por
orquestra de um filme sacro. Quem conta é Humberto de Campos, narrando suas primeiras
impressões sobre o cinema, na infância em Camorcim, Ceará, 1906. O filme em questão
era Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo. Segundo Campos, o acompanhamento
não era contínuo, com a orquestra entrando apenas nos episódios mais pungentes da
tragédia religiosa. Campos se recorda, de forma curiosa, do impacto relacionado à ausência
de som em algumas partes, como no caso da cena em que Jesus era pregado na cruz: “Não
havendo ainda sincronismo, as pancadas dos martelos eram silenciosas, mas
impressionavam”. Comentando o trabalho da orquestra, narra:

Enquanto ele sobe para o monte sinistro e padece de todos os tormentos, a orquestra
faz soar em surdina as notas de um funeral. A situação é comovente. A música e os
quadros doem no coração. De repente, tudo se transmuda, Jesus vai ressuscitar.
Anjos de grandes asas levantam a pedra do túmulo. O Senhor aparece pairando como
uma sombra feliz. Ressurreição! Ressurreição! E a banda de música fazendo soar
todos os seus instrumentos de corda e de sopro ataca o ... Hino Nacional!
Foram estas as primeiras emoções que o cinema no meu norte longínquo e singelo
me forneceu.” (apud BARRO, 2000, p. 113-114)

Situação curiosamente análoga está descrita por José Inácio de Melo Souza.
Durante a Semana Santa de 1902, o Paulicéia Fantástica recebeu críticas por exibir A vida
76

de Cristo acompanhando a cena da crucificação com “o mais canalha dos maxixes”,


segundo a imprensa da época. Na cena da ressureição, tocava-se “uma horripilante marcha
fúnebre” (SOUZA, 2004, p. 195).

Outros casos nos quais se poderia supor acompanhamento musical são os filmes
de carnaval. Tinhorão encontra em 1906 o documentário Carnaval na Avenida Central. De
1908 em diante a produção de filmes análogos a esse se intensifica. O carnaval daquele ano
é documentado por várias das produtoras do Rio de Janeiro. Auler produz O corso das
carruagens e O corso de 19 de fevereiro . Labanca e Leal filmam O corso de Botafogo.
Marc Ferrez lança filme homônimo. Há ainda o Préstito do Clube dos Democráticos. No
ano seguinte, Labanca e Leal lançam Aspectos populares do Rio e Pela vitória dos clubes
carnavalescos, este, segundo Viany, um filme de ficção. (apud TINHORÃO, 1972, p. 276)
Até 1911, informações sobre filmes como esses são encontradas. 27 Não há, até onde esta
pesquisa avançou, indícios concretos de acompanhamento musical em suas exibições.

Ressalva seja feita, os filmes sobre o corso não necessitariam de música que sugerisse
maior realismo, uma vez que aquele tipo de celebração se resumia a um desfile de carros de
foliões que partiam da Praça Mauá e seguiam até o fim da praia de Botafogo. Há, inclusive,
depoimentos de participantes dos corsos menos antigos, ocorridos no final da década de
1920, que enfatizam o fato de não haver música, o evento bastando-se com os foliões
jogando, de cima dos carros, serpentinas e lança-perfumes. Tinhorão comenta, citando
Viany, um filme mais tardio, intitulado Carnaval cantado, de 1918, sobre o qual há
informação de acompanhamento musical. A “Grande orquestra e corpo de coroas” cantava
durante as projeções “os tangos e canções que mais sucesso fizeram neste ano”. O
interessante é que, segundo Viany, a orquestra e o coro estiveram, como se numa
reminiscência dos cantantes, atrás da tela. (apud TINHORÃO, op. cit. p. 280)

Forma menos popular, mas cujos indícios de existência são encontrados vez por
outra, é o uso de ruídos produzidos, assim como as vozes no caso dos cantantes, no
momento da exibição, simulando-se o sincronismo. Em 1912, no Íris Theatre de Serrador,
em São Paulo, utilizava-se um contra-regra para imitar os ruídos sugeridos durante os
filmes, “para lhes dar mais realidade”. O curioso é que a notícia nos chega em forma de

27
Posterior, mas dentro do mesmo escopo, em 1920, encontra-se o documentário O que foi o carnaval de
1920? de Paulino e Alberto Botelho, exibido recentemente no MAM, em 3 de julho de 2004.
77

reclamação. Araújo encontra matéria de O Pirralho de 20 de janeiro de 1912 que, de forma


irônica, comenta que “os que sentam na primeira fila ficam quase surdos com o barulho de
cavalaria produzido por um cavalo só”. (apud ARAÚJO, 1981, p. 206) Na Bahia, Walter da
Silveira comenta que o exibidor João Oliveira contratava, para o Cinema Jandaia,
sonoplastas “que imitavam tempestades, mares revoltos, duelos, tiros”. (SILVEIRA, 1978,
p. 22) No Paraná, Aníbal Requião, cineasta e exibidor pioneiro no estado, é citado por
Roberto Moura. Suas projeções teriam sido acompanhadas não só por pianolas e por um
oboé, mas também por repicar de sinos nas paixões de Cristo e ainda “por queima de
incenso nos filmes mais românticos” (MOURA, 1987, p. 27)

Mais indícios de pianos e orquestras conjugados às salas de exibição, além dos já


citados, encontram-se aqui e ali. O Íris Theatre, em São Paulo, anunciava em 1908 para
suas sessões “grande orquestra regida pelo maestro paulista Antonio Leal. Excelente piano
Steinway, de propriedade da empresa”. (ARAÚJO, 1981, p. 158) Mais uma vez, nada no

anúncio garante a execução de música concomitante ao filme. Em contraposição, anúncio


de 1911 do High-life garante, de modo irrefutável, a música sincrônica com a projeção de A
mulher do saltimbanco: “Este soberbo filme, para maior realce, será exibido com música
apropriada, arranjada pelo distinto maestro Modesto de Lima”. (in O comércio de São
Paulo de 18 de fevereiro de 1911, apud ARAÚJO, 1981, p. 113) De Belo Horizonte, cidade
que viu o fonógrafo e o cinematógrafo chegarem junto com a sua própria fundação, há a
informação de que o Cinema Comércio tinha sua própria orquestra, regida por José
Nicodemos. O ano é 1909, e a orquestra compõe-se de cerca de dez pessoas, havendo entre
os instrumentos violoncelo, contrabaixo, violino, flauta, além dos cantores.28 No Maranhão,
Matos encontra notícias de orquestras em salas de exibição em 1907, no Teatro São Luís, e
em 1908, com regência a cargo do maestro Ignácio Cunha. (MATOS, 2003, p. 113)

Como se vê, há alguns indícios que garantem a utilização da música como trilha
sonora, embora em boa parte dos casos haja a possibilidade, análoga ao resultado das
pesquisas de Altman, de sua função ter sido outra. Tinhorão comenta longamente não só a
existência, mas a importância da música das salas de espera no Brasil. À parte seu texto, há
informações de que, por exemplo, o Radium-Cinema de Serrador, em São Paulo, contratou

28
Informações e foto em SILVA, Maria Carmo Costa.O fim das coisas. Belo Horizonte: Prefeitura
Municipal/Secretaria Municipal de Cultura, 1995.
78

em 1912 uma orquestra de senhoritas para a sua sala de espera. O Odeon, no Rio de
Janeiro, procedeu da mesma forma. Há um registro fotográfico de uma orquestra de
senhoritas no Pathé, também no Rio de Janeiro, em 1912. São cinco as musicistas,
localizadas dentro da sala, no mezanino. 29 João Luiz Vieira encontra na Cinearte de 28 de
abril de 1926 uma referência à orquestra que tocou na inaguração do novo Odeon, em 3 de
abril: “uma bella orquestra de 15 figuras, fora dois maestros, executou a overture”. A
reportagem sugere a abertura e o acompanhento musical da sessão, ressaltando que,
daquela vez, os músicos não se encontravam na porta do cinema. (VIEIRA, 1986, p. 30)
Segundo Tinhorão, na década de 1920 houve, por parte dos cinemas cariocas um grande
aproveitamento dos músicos de choro, tanto para acompanhamento dos filmes como para
entreter o público nas ante-salas. Tinhorão destaca como habilidade fundamental desses
músicos a ser aproveitada pelo cinema o improviso, a capacidade para produzir a trilha
sonora à medida que se olhava para a tela, acompanhando o desenrolar do enredo. Segundo
Tinhorão, a contratação de grande número de músicos para tocar nas salas de espera
contribuiu para ser quebrada a barreira entre os músicos eruditos e os populares. Ernesto
Nazareth, talvez o exemplo máximo da união dos dois universos musicais, tocou na sala de
espera do Odeon. O jovem Villa Lobos teria tocado seu violoncelo nas ante-salas dos
cinemas. Radamés Gnatalli, que viria a prestar enorme serviço à composição e arranjo de
músicas para cinema, trabalhara como pianeiro no Cine Colombo, em Porto Alegre. Vindo
para o Rio de Janeiro, em 1924, para continuar os estudos de música, também toca nos
cinemas cariocas. Em 1919, o Grupo do Caxangá, formado em 1914, e tendo entre seus
integrantes Donga e Pixinguinha, é contratado para tocar na sala de espera do Cinema

Palais. Estreavam em 7 de abril, reduzidos a oito integrantes, mudando de nome para Os


oito batutas. Mas, estando acerca da década de 1920, nos aproximamos do segundo
capítulo, no qual comentaremos a união dos sons e das imagens no momento em que se
encaminhava para um termo definitivo, quando o cinema falado seria o culpado de uma
grande transformação.

29
A foto está reproduzida no já citado artigo A música, o pianeiro e o cinema silencioso, de Aloysio de
Alencar Pinto, em Filme e cultura, n.47, agosto de 1986.
79

2. PASSAGEM PARA O SONORO

2.1. A DISCUSSÃO A FAVOR DO MUDO

É conhecida a briga contra o cinema falado nos EUA e na Europa, no final da


década de 1920, bem como o papel das revistas sobre cinema brasileiras da época, que
fizeram reverberar aqui a discussão que acontecia fora. Paulo Emílio Salles Gomes
comenta a posição de Cinearte dentro de um contexto no qual, em suas palavras, todos,
indústria, comércio, crítica, diretores, intérpretes, eram contra o falado (GOMES, 1974, p.
346). Ismail Xavier descreve a famosa truculência do periódico O Fan em sua campanha
contra o som, e chega à conclusão de que Cinearte adotava uma posição mais pragmática à
medida que surgiam as primeiras indicações de que o cinema seria, de forma irrevogável,
sonoro (XAVIER, 1978, p. 195-241). Alex Viany, já em 1959, contextualizava a discussão
brasileira dentro da internacional, e comentava sobre “as páginas e páginas gastas com
imprecações, xingamentos e lamentações” contra a mudança, em O Fan (VIANY, 1959, p.
95).
80

2.1.1. O fã do cinema mudo e a ojeriza ao falado

O Fan foi a publicação regular do Chaplin Club, cineclube fundado a 13 de junho


de 1928, por Plínio Sussekind Rocha, Octávio de Faria, Almir Castro e Claudio Mello,
então jovens universitários, com formação de colégios católicos da zona sul do Rio de
Janeiro.30 A publicação teve apenas nove números, entre agosto de 1928 e dezembro de
1930. É notória a posição do ídolo norte-americano daquele grupo de estudantes contra o
cinema falado. Era natural, portanto, que o acompanhassem na tomada de posição contra a
radical mudança no processo de feitura dos filmes que começava a se impor naqueles
últimos anos da década de 1920. Nas palavras de Ismail Xavier:

“Estamos em 1928, e a sombra do falado mobiliza em todo o mundo a campanha de


idealistas em defesa da arte do silêncio. Na América, um cineasta lidera a heróica
resistência, Charles Chaplin. O nome de Chaplin batiza uma “instituição brasileira” que
comprometeu sua existência na batalha contra o filme falado” (XAVIER, 1978, p. 200)

1928 é um ano chave para a discussão sobre a permanência do mudo, pois no ano
anterior a Warner Brothers teria os primeiros sucessos da sua experiência com o Vitaphone,
o sistema de gravação de som para cinema em discos, executados em sincronia com o filme
projetado. Percebe-se, pela descrição, que o Vitaphone, apesar dos melhoramentos, seguia
ainda a idéia posta em prática desde as primeiras tentativas de sincronização, vistas no
capítulo 1. Aquele sistema havia dado os sues primeiros frutos ainda em 1926, com a
estréia da aparelhagem em Don Juan, em 6 de agosto, em New York. Mas passaria para a
história, graças ao sucesso estrondoso de bilheteria, O cantor de jazz, exibido pela primeira
vez mais de um ano depois, em 6 de outubro de 1927. Era o início do período no qual a
sincronização por discos viria a se constituir em um passo firme para o conquista do cinema
sonoro.31

30
Esses dados sobre a fundação do cineclube e sobre a formação de seus membros encontram-se no verbete
Chaplin Club, escrito para a Enciclopédia do cinema brasileiro por João Luiz Vieira (RAMOS, MIRANDA,
2000, p. 119)
31
Para um detalhamento das pesquisas com o Vitaphone, ver GOMERY, Douglas. The coming of sound:
technological change in tha American film industry. In: WEIS, Elizabeth, BELTON, John. Film sound –
theory and practice. New York: Columbia University Press, 1985. p. 5-25.
81

O primeiro número de O Fan passa ao largo das críticas diretas ao cinema falado,
embora afirme ser o cinema uma arte visual. Ainda não citava a possibilidade de mudança
daquele pressuposto, mudança que, àquela altura, já se encontrava em andamento. No
número seguinte, a briga já está colocada de forma explícita. O artigo Contra o filme
falado, de Octávio de Faria, não poupa críticas aos experimentos até aquela hora
centralizados na Warner Brothers. Para Faria, tratava-se da “idéia monstruosa de intercalar
diálogos aos filmes da Warner”, da “cegueira do cinema ao se lançar em tal abismo”, de
“uma invasão que ninguém evita”, esta última frase citando o jornal argentino La nación,
preocupado com a chegada da novidade norte-americana às salas de cinema de seu país.
Faria comenta que “o cinema, que vinha escapando milagrosamente do colorido” parecia
não poder escapar da palavra. Diz, em seu manifesto pela manutenção da antiga ordem das
coisas: “o cinema é a arte do preto e branco. Arte muda. Arte dinâmica. Arte visual. Não
admite o colorido – da vida real. Não admite a palavra – do teatro. Não admite o canto – da
ópera”. Dirá, no mesmo artigo, que “em uma palavra, o filme falado é um erro”, que é “o
maior inimigo que o cinema teve até hoje”, que a palavra trazia uma indesejada
“aproximação com o teatro. A volta à teatralidade” (O Fan, n. 2, outubro de 1928, p.3).
O número quatro, de abril de 1929, traz como matéria de primeira página a
transcrição de uma entrevista com Chaplin ao La nación, intitulada, em inglês, Charles
Chaplin attacks the talkies, na qual está postulada a sua famosa negação dos diálogos. Diz
Chaplin: “a voz no cinema seria inútil a meu ver. O cinema é uma arte pantomímica. A
palavra nada deixará à nossa imaginação”. E acrescenta: “porque não o teatro, então?” Mais
a frente no texto, segue a desenvolver seu argumento:

“A voz rompe a fantasia, a poesia, a beleza do cinema e de seus personagens. Os


personagens do cinema são seres de ilusão, e sua natureza deriva precisamente do silêncio
em que vivem. Imagine você qualquer das atrizes que conhecemos falando na tela. Que
desastre, meu Deus! As atrizes não devem falar, devem ser belas, nada mais é calar a boca.
Porque as atrizes servem quando não são inteligentes. Ou quando são muito inteligentes.
Porém, isso é uma exceção raríssima e, ademais, pouco desejável”.

Ao fim da entrevista, o comentário dos articulistas brasileiros exalta a pertinência


das “observações preciosas” de seu ídolo (O Fan, n. 4, abril de 1929, p.1) Nos meses
seguintes, a briga contra o falado vai sendo alçada à questão central da revista. O editorial

do sexto número, de setembro de 1929, intitulado Uma attitude, tem a preocupação de


82

defender a posição tomada pelos articulistas, no momento em que os primeiros filmes


falados norte-americanos eram exibidos no país, no caso em São Paulo, como veremos na
seqüência. O mesmo número traz o artigo de Octávio de Faria Eu creio na imagem,
dedicado ironicamente “a todos aqueles que crêem na palavra e no som”. Trata-se de um
texto mais ambicioso que os anteriores, ao procurar, com base na filosofia, afirmar a
preponderância da imagem frente ao som. Nietzsche e Bergson são citados com este
propósito. Diz Faria: “eu creio na imagem. Na imagem toda-poderosa. Que não admite o
som e não pode conceber a palavra”. Faria trata a “invasão” das imagens pelas palavras
como a ação de “um intruso que perturba o ritmo, um parasita”. O texto, ao resumir, em
conjunto com os anteriores, alguns dos argumentos recorrentes da briga contra o cinema
falado, conduzida neste caso por palavras de um rancor desmedido, merece uma análise
mais detida. Diz o articulista: ‘uma pessoa pode falar. É o teatro. É a vida. Uma imagem
não pode falar. É o cinema falado”. Em outro ponto, dirá: “Há, em todo caso, que agradecer
à Europa de não ter aceito o filme falado. A evasão para o filme sonoro é, dos males, o
menor” (O Fan, n. 6, setembro de 1929, p.3-4).
Os argumentos expostos até aquele momento pela publicação brasileira constituem
um inventário das questões que podem ser tomadas como recorrentes dentre os que
mantinham esperanças na continuidade do filme sem diálogos. A primeira das questões que
queremos sublinhar resume-se exatamente à última palavra de uma das frases de Faria:
“falado”. Muitas vezes, no conjunto de reclamações contra o advento do som, o vilão não
era a introdução do som ele mesmo, e sim o padrão de uso desse som imposto aos
mercados europeu e latino-americano pela indústria estadunidense, ou seja, o excesso de

diálogos. O predomínio destes do início ao fim da película. A nova situação da narrativa


ficar presa a eles. Entre as primeiras experiências com o Vitaphone, entre 1926 e 1927, e a
virada da década de 1920 para 1930 não foi difícil para os produtores norte-americanos
perceberem que a voz sincronizada às bocas dos atores era o modo de encaixar os sons
sobre as imagens que fazia o público correr às salas de exibição. Se, em 1927, O cantor de
jazz era falado apenas em determinados momentos, com ênfase nos números musicais
cantados por Al Jolson, no segundo semestre de 1929 todos os grandes estúdios já haviam
feito a transição para o filme dialogado do início ao fim. Quando Octávio de Faria diz que
na Europa o filme sonoro constituía um mal menor do que o falado norte-americano, está
83

referindo-se a um momento anterior ao domínio dos mercados do outro lado do Atlântico


pelos talkies. Mesmo para o radical crítico de O Fan, a opção dos filmes trazerem, em
parceria à sua imagem santificada, música e ruídos que a acompanhassem não parecia
causar mácula tão violenta quanto aquela inoculada pelos diálogos, que descentralizavam
das imagens o poder de narrar. A própria utilização dos termos “cinema falado” e “cinema
sonoro” traz a idéia de uma dicotomia que parecia clara quando dos primeiros contatos de
cineastas e teóricos europeus com o modelo falado que vinha da América. René Clair
escreveria, em 1929, em Londres, um artigo intitulado, em inglês, The art of sound , no qual
expunha a diferença entre o “cinema falado” que os norte-americanos apresentavam, um
cinema que tratava somente de utilizar as palavras, e o “cinema sonoro” a ser feito pelos
europeus, aquele que deveria conter em sua trilha sonora um espaço maior para músicas e
ruídos (CLAIR, 1985, p. 92-95). A famosa Declaração sobre o futuro do cinema sonoro,
assinada em conjunto por Eisenstein, Pudovkin e Alexandrov propõe, com o famoso
contraponto, um modelo de uso de som oposto ao excesso de diálogos em sincronia, e
critica a invasão daqueles filmes à Europa (EISENSTEIN, 1990, p. 217-219). Talvez o
maior consenso da crítica dos primeiros anos do cinema sonoro seja menos um
posicionamento contra o advento do som em si e mais contra o predomínio dos diálogos
como única alternativa viável para um mercado ávido por capitalizar a mudança na forma
dos filmes.
Relacionado ao excesso de diálogos, outro ponto recorrente nas críticas que
transcrevemos da publicação brasileira, e que está presente em grande parte dos textos que,
mundo afora, condenaram o som é a aproximação do cinema com outras formas de arte, e,

dentre elas, com o teatro. Esse verdadeiro pavor do que parecia, aos olhos dos críticos, um
retrocesso, explica-se, em parte, pela luta imediatamente anterior, naquele incipiente campo
da crítica e da teoria cinematográfica, por tentativas de definição do que seria específico ao
cinema como expressão artística. Fora preciso lapidar uma teoria que afastasse o cinema do
amálgama que, nos primeiros dez, quinze anos do século XX, a projeção de filmes formou,
como visto no primeiro capítulo, com cantores líricos sobrepondo suas vozes às imagens,
com a projeção em salas de teatro antes da construção dos espaços destinados
exclusivamente a exibir filmes, e demais elementos que confundiam os limites entre
cinematografia e representação teatral. Para aqueles críticos, o filme cuja narrativa
84

estivesse centrada não mais nas imagens, mas no diálogo, e mais ainda, cuja decupagem
estivesse escrava das cenas dialogadas, nas quais se abria mão de virtuosismos de câmera já
presentes nos últimos tempos do mudo para enquadrar os atores falantes em planos gerais
fixos e planos próximos, também fixos, de seus rostos, parecia trazer um retrocesso aos
tempos da confluência com o teatro, e um desperdício dos avanços conquistados.32 Robert
Stam cita um manifesto futurista de 1916, em inglês, The futurist cinema, que clamava por
“uma arte autônoma”, que não deveria jamais imitar o teatro. No mesmo contexto, Fernand
Léger buscaria “um cinema puro”, cujo objetivo seria desprender-se dos elementos que não
fossem “puramente cinematográficos”. Louis Delluc postulava ser o cinema “a arte da
visão, assim como a música é a arte da audição”, uma forma de arte que deveria “nos
conduzir a uma idéia visual constituída de vida e movimento, à concepção de uma arte do
olho” Já em 1927, ano do primeiro sucesso falado da Warner, Abel Gance dizia, em L’art
cinematographique, que “era chegado o tempo da imagem” (apud STAM, 2003, p. 50-51).
A idéia de uma busca pelo que seria a essência do cinema, encontrada no
pensamento da segunda metade da década de 1910 e da década seguinte, trazia a reboque o
pressuposto de que tal essência só poderia se encontrar dentro do domínio da imagem, e de
sua manipulação, fosse pela impressão de velocidade, fosse pela montagem, ou por uma
determinada característica do objeto retratado que só pudesse ser aferida pela mediação da
câmera, e pela conseguinte impressão na película. Esta última condição consiste na
definição de um conceito central para esta discussão, o de fotogenia. Haveria um modo de
ser retratado inerente ao objeto, mas também ao meio. Jean Epstein, em De quelques
conditions de la photogenie, de 1924, descreveria a fotogenia como “qualquer aspecto das

coisas, seres, ou almas cujo caráter moral seja realçado pela reprodução cinematográfica”
(apus STAM, 2003, p. 50). Há uma palavra chave na declaração de Epstein: moral. A essa
noção de que a câmera deve retratar determinado objeto segundo determinados preceitos
vigentes está relacionada, por exemplo, a declaração de Chaplin na entrevista citada
quando diz que as atrizes devem, na tela, apenas ser belas, e não falar. Lembramos que
Epstein, comumente identificado com os defensores da imagem como depositário da

32
Sobre essa questão, um momento de bom humor, não em O Fan, mas em Cinearte. Na coluna intitulada
Talkies, surge, em forma de piada, a pergunta: “Como os americanos poderão chamar demoving
‘ pictures’
uma scena com duas pessoas paradas a conversar por mais de cinco minutos?” (Cinearte, 28 de agosto de
1929, p. 29)
85

essência do cinema, passaria a reconhecer, em textos posteriores, a importância do som.


Em Vanguarda e técnica revisa e resume a posição antiga, ao dizer que “as películas
faladas encontraram a oposição com que se julga sempre a todas as novidades” e que os
defensores do cinema mudo “acusavam a palavra de submeter o filme ao julgo do teatro e
da literatura”. Passado aquele primeiro impacto, estaria por nascer uma vanguarda que
perceberia “os pensamentos e sonhos do homem, o canto dos bosques e do mar, o
crescimento das plantas, o grito das montanhas. O desencadeamento dessa magia depende
unicamente do pequeno trabalho que daria apontar novas variações à técnica da gravação
sonora”. (EPSTEIN, 1957, p. 99) Em O cinema puro e o cinema sonoro, Epstein sugere
contra a lentidão que a palavra imprimia à narrativa um maior aproveitamento dos ruídos,
segundo ele intrinsicamente mais ágeis em expressar o pensamento; defende o uso do
contraponto entre sons e imagens, em pensamento análogo ao de Eisentein, contra o uso
mais corriqueiro, quando vozes e ruídos “duplicamente estupidamente” o que as imagens já
mostram; especula, em O plano sonoro ampliado, sobre a contribuição que sons alterados,
ralentados ou acelerados, modificados em suas freqüências para soarem mais graves ou
mais agudos, dariam aos filmes.33
Àquele ponto da confusão sobre a entrada do som para, supostamente, macular a
pureza da imagem cinematográfica está relacionado outro, também aferível na entrevista de
Chaplin: a recusa, naquele momento, de uma aproximação maior com o realismo. Os seres
na tela seriam feitos de ilusão, viveriam no silêncio, e suas vozes romperiam tal fantasia,
diz o cineasta. Note-se que essa posição era comum tanto à indústria norte-americana
quanto aos teóricos e cineastas de vanguarda europeus. Rudolf Arnheim dizia que a

introdução do filme sonoro trazia para o cinema uma “naturalidade superficial” (apud
STAM, 2003, p. 77). Assim, resumindo, naquele primeiro momento, para os detratores da
passagem para o sonoro a ameaça parecia ser tamanha que viria a macular o cinema por
conta de: afastá-lo de sua natureza imagética; contaminá-lo com impurezas de outras artes,
dentre elas o teatro, eleito como a mais danosa; aproximá-lo de um realismo que, da mesma
forma, desmistificaria uma determinada aura que só poderia existir no domínio das imagens

33
Todos os textos citados encontram-se complilados em Esprit de cinéma. Tivemos acesso a uma edição em
espanhol, traduzida como La esencia del cine (Buenos Aires: Ed. Galatea/Nueva Vision, 1957). A tradução
para o português dos trechos utilizados é nossa.
86

silenciosas. A crescente consolidação do cinema sonoro viria a despertar novas críticas, que
se somariam a estas, e que veremos mais à frente.
No Brasil, o processo de afirmação do sonoro parecia estar em marcha com a
exibição dos primeiros falados norte-americanos. Em abril de 1929, estreava em São Paulo
Alta traição, título nacional para The patriot, de Ernst Lubitsch. Ficariam famosos os gritos
de Emil Jannings, “Pahlen! Pahlen!”, chamando o personagem de Lewis Stone. Sérgio
Augusto comenta que a Paramount teria decidido, depois de o filme rodado, incluir, por
meio dos discos, alguns ruídos, música sincronizada com as ações e poucas intervenções
vocais, como a citada. Após dezesseis dias em cartaz no cinema paulista da própria
Paramount, Alta traição dava lugar a Anjo pecador, este já com diálogos em maior número
(AUGUSTO, 1989, p. 75). Curiosamente, os sons de Alta traição passariam em branco na
resenha feita por O Fan. Mais atenção ao filme daria o grupo relacionado a Cinearte.
Adhemar Gonzaga e Pedro Lima, mais Paulo Benedetti, iriam do Rio de Janeiro a São
Paulo para assistir ao filme de Lubitsch. Já o primeiro falado a ser exibido em terras
cariocas não foge à crítica de O Fan. Almir Castro foi o responsável pelo texto sobre
Melodia da Broadway (Broadway Melody), dirigido por Harry Beaumont, que estreava a
22 de junho de 1929. Dois meses, portanto, depois da estréia do falado em São Paulo. A
primeira sessão contou ainda com dois curta-metragens: um, com o cônsul do Brasil em
New York, Sebastião Sampaio, explicando que os presentes assistiriam a “uma projeção
sonorizada”; o outro, uma sucessão de três números musicais, apresentados pela cantora
lírica Yvette Rugel. Na seqüência, o musical norte-americano, da MGM (AUGUSTO,
1989, p. 76). O texto de Almir Castro, intitulado Atravez de Broadway melody, segue a

linha geral do periódico, e não poupa críticas ao filme falado. “Este artigo é um protesto”
principia. “Protesto contra todos aqueles que ao sair de Broadway melody disseram muito
pasmadamente que não iriam mais aos filmes mudos (...) sim, por que Broadway melody
diverte. Eu me diverti vendo o filme, do mesmo modo que poderia me distrair vendo a
última revista de Aracy Cortes”. É curiosa esta passagem do texto que assume o
distanciamento e a má vontade que o crítico, e o periódico, deveriam ter quanto a um
cinema popular. Talvez isso possa ser tomado como mais um motivo para o desgosto com
o cinema sonoro. Com o som, com as músicas cantadas por ídolos na tela, o cinema estaria
a um passo de popularizar-se de forma ainda não vista. Chaplin era popular, é evidente,
87

mas mesmo suas comédias adquiriam, para seus fãs escritores, um estatuto de arte do qual
o musical norte-americano exibido na tela do Palácio parecia passar ao largo. No fim do
texto, Castro faz uma confusa ressalva ao sonoro que se encaixa no argumento, já
comentado, de que não seria o som em si o vilão da história, mas os diálogos. Diz o crítico:

“Se os filmes fossem iguais aos de outrora, somente com a diferença de se ouvir tudo o
que se dizia e todos os sons ambientes, seria errado, seria imbecil, mas seria suportável. E
foi nessa base que muita gente defendeu os talkies. Mas nunca se fez isso. Mas o verdadeiro
ideal seria que víssemos os filmes sem música, completamente mudos, livres de todas as
desvirtuações. As imagens puras.” (O Fan, n. 6, setembro de 1929, p.6)

O sétimo número abre o ano de 1930, e traz pela segunda vez a posição contra o
falado como tema do editorial, intitulado 1930. O texto reclama do “difícil ano de 1929” e
espera um 1930 melhor, “com a vitória do silencioso”. Havia, naquele momento, uma
esperança de que o público se cansaria do falado, que este não passava de um modismo e
que “a vitória dos anti-talkistas seria uma questão de tempo”. Já com o mercado se
curvando rapidamente à exibição sonorizada, o editorial se preocupa em reiterar a opinião
do periódico: “a nossa atitude continua a mesma. Absoluta oposição” (O Fan, n. 7, Janeiro
de 1930 p.1). O argumento do cansaço do público frente ao falado é ainda o tema do artigo
A instabilidade dos talkies, naquele mesmo número. A mesma esperança seria tema de
discussões em Cinearte, como veremos.
Esta sétima edição traz ainda a crítica ferrenha àquele considerado a primeira
experiência de longa-metragem sonorizado no Brasil: Acabaram-se os otários, de Luis de
Barros. Falaremos da comédia de Barros, sonorizada de forma quase artesanal, por uma
adaptação do esquema de discos, mais à frente. Por enquanto, nos basta destacar que
Octávio de Faria é o responsável pelo texto que, se habitualmente já era intolerante com os
falados que vinham de fora, desta vez é ainda mais violento contra a possibilidade do
cinema falado feito no país. O filme de Barros é, segundo Faria “ridículo”, “incrível de
patetice, de idiotice, de abobalhamento”. Para ele, o problema não parece estar somente no
fato de se tratar de um filme falado, mas em ser, desgraça maior, uma comédia falada. Diz
Faria que o caminho da comédia para o cinema brasileiro “é um erro que é preciso
combater de todas as maneiras” (O Fan, n. 7, Janeiro de 1930, p.8). Aqui está externado
88

com clareza o posicionamento contra um cinema popular já encontrado na crítica de


Melodia da Broadway, agora exacerbado por se tratar de um filme brasileiro.
Os dois últimos números trazem o indisfarçável sentimento de que a batalha contra
o som encaminhava-se para a derrota. Há, na oitava edição, de junho de 1930, a transcrição
do manifesto de Eisenstein, Pudovkin e Alexandrov, precedido de um texto irônico, que diz
ser aquele “o evangelho dos que ainda esperam alguma coisa do som”. No mesmo número,
é curiosa a presença do artigo A imagem e o som, de Enio Pontes, que relativiza a
importância do advento do sonoro, minimizando-a, ao mesmo tempo em que a aceita.
Pontes diz que os próprios artigos anteriores da revista exageram a importância dada ao
cinema sonoro; que este não deveria ser tomado como o cinema do futuro; que deveria ser
visto com a naturalidade com a qual se vê um progresso tecnológico; que seria uma solução
momentânea da indústria norte-americana com o intuito de chamar mais público para as
salas de cinema (O Fan, n. 8, junho de 1930 p. 34-42). Ismail Xavier tem a informação de
que os argumentos não teriam convencido Octávio de Faria e Almir Castro, que
protestariam contra o artigo, embora sua publicação fosse aceita (XAVIER, 1978, p. 225).
O nono e último número, publicado com uma demora de seis meses com relação ao
anterior, nega no editorial que os responsáveis pelo periódico estivessem desanimando.
Octávio de Faria escreveria um último artigo, chamado Transformações do mundo pelo
cinema sonoro. Apesar do próprio título reconhecer a inexorável mudança, seu autor reitera
a resistência: “cada dia mais o cinema sonoro me repugna”. Mais à frente, lamenta a era
perdida: “as nossas antigas noções de lógico, de agradável, de inteligente, e muito mais, de
cinematográfico, de fotogênico, não valem mais nada. Nada mais significam” (O Fan, n. 9,

dezembro de 1930, p. 64-66).


Assim terminava a luta de O Fan contra o cinema falado. Como diz Ismail Xavier,
“abandonando a cena depois de dois anos de intensa pregação em nome da arte do preto e
branco e do silêncio. Os talkies ganham a guerra, o cinema fala e O Fan silencia”. Ainda
segundo Xavier, Octávio de Faria admitiria mais tarde que a vitória do cinema falado fora a
principal razão para a dissolução do Chaplin Club, e do fim do seu periódico. (XAVIER,
1978, p. 200).
89

2.1.2. Em Cinearte

Em Cinearte também reverbera a discussão sobre o falado. A revista fundada por


Adhemar Gonzaga e Mario Behring em 1926, porém, acompanha o processo de forma mais
completa. Desde seu primeiro ano mantém correspondentes nos EUA, e estes dão notícias
das primeiras experiências com o Vitaphone. A relação de Cinearte com a passagem para o
sonoro, expressa em artigos entre 1926 e 1931, é, de certa forma, contraditória. As
primeiras matérias sobre o Vitaphone trazem certo fascínio com a novidade tecnológica,
mas logo a posição da revista estaria resumida à crítica contra o falado, contra os talkies
que invadiam São Paulo e Rio de Janeiro. Mais tarde, a possibilidade do filme falado em
português seria bem vista, por trazer uma esperança de conquista de público pelo cinema

brasileiro. Fundada, como aponta João Luiz Vieira, tendo como modelo a norte-americana
Photoplay, e dedicada a ser um meio divulgador do star system holywoodiano, Cinearte
logo estaria fazendo a defesa do cinema brasileiro, pela coluna de Pedro Lima (VIEIRA,
1987, p. 132). Assim, a briga contra o falado que vinha de fora estaria no cerne da
contradição de haver uma idéia de protecionismo dentro de um periódico claramente
fascinado com o cinema norte-americano. Ismail Xavier nota que o cinema falado passa a
ser “uma rusga com o cinema americano, até então tido como modelo” (XAVIER, 1978, p.
195).
Em 17 de novembro de 1926, a coluna Correspondência da América, escrita por
Arthur Coelho, comenta a já citada estréia de Don Juan. “O Vitaphone fez a sua aparição
triunfal em New York (...) Com esta estréia, estava iniciada uma nova era na indústria de
filmes”, diz Coelho. O articulista comenta o fato do filme “não ser todo vocalizado”,
contendo falas apenas em alguns trechos, o que, como já vimos, ainda demoraria a ser
resolvido. Coelho enxerga ainda, naquela primeira exibição, um problema que seria alvo de
algum debate na revista quando da chegada dos filmes falados ao Brasil: quando for
exportado, como fazer para traduzir o texto? O filme deverá ser legendado? ( Cinearte, 17
de novembro de 1926, p. 6)
90

No mês seguinte, há outro artigo sobre as experiências sonoras nos EUA, de Raul
Toledo Galvão, correspondente da revista em New York, intitulado Ainda o Vitaphone. O
texto se divide entre elogios e preocupações relativas à gravação e à exibição sonora. É
exaltada a sensibilidade dos microfones, “os atores podem estar a grande distância”, e a
eficácia da reprodução nas salas de cinema: “o alto-falante é tão bem localizado que o som
parece sair da tela (...) o aparelho pode ser instalado em qualquer cinema (...) os dois
aparelhos [projetor e toca-discos] trabalham com o mesmo motor. O resultado é de uma
igualdade matemática”. Mais adiante no texto, o que era uma qualidade do alcance do
microfone vem a constituir um problema: “as palavras foram fielmente reproduzidas, e com
a mesma fidelidade, mais de 100 sons foram ouvidos (...) martelos do lado de fora do
estúdio, o relógio do cameraman e outros não identificados”. Estabelecia-se assim, com a
gravação de som em um set de filmagem, a ordem do silêncio absoluto da equipe, de tudo e
de todos, no estúdio e nos seus arredores. Entrevia-se a necessidade de isolamento acústico
para os estúdios. Tudo isso, novidades facilmente tomadas como dispendiosas, e que até
então não tinham razão de ser. A matéria traz ainda um depoimento de Samuel Warner,
sobre uma outra adaptação tão preocupante quanto as anteriores: “ficamos desapontados
quando descobrimos o quanto é limitado o número de artistas que podem figurar em
ambos, câmera e gravador” ( Cinearte, 8 de dezembro de 1926, p. 22-23). É conhecido o
impacto da chegada do som sobre os elencos dos estúdios. E se a estrela, fotogênica como
soe, não fosse também, para tomar emprestado um termo cunhado por Michel Chion meio
século mais tarde, fonogênica? Mais ainda, o que fazer com a pluralidade de sotaques dos
atores estrangeiros presentes na indústria norte-americana? O público aceitava os traços

estrangeiros dos atores e atrizes europeus e latino-americanos, mesmo porque estavam


sempre justificados pelos papéis desempenhados por eles, codificados dentro das
narrativas. Aceitaria, porém, seus sotaques, as “imperfeições” de seu inglês?
Ainda sem penetração no Brasil àquele momento, a adaptação para o sonoro fica,
por algum tempo, esquecida por Cinearte. Em julho de 1927, há um artigo intitulado Os
filmes devem falar? que recolhe opiniões de produtores estadunidenses, mostrando as
muitas dúvidas e a imprecisão sobre aquele início de cinema sonoro. De modo geral, não se
acreditava, em 1927, que o cinema do futuro fosse falado em sua totalidade. Jesse L. Lasky
acreditava que o advento do som:
91

“torna possível aos pequenos cinemas o oferecimento de números musicais que certamente
dão mais força ao programa cinematográfico. Mas eu duvido muito que ainda venhamos a
ter filmes falados no sentido em que se deve tomar o filme falado, isto é, com os atores
representando e dizendo seus papéis. Pode ser que vejamos um ou outro nessas condições.
Mas nunca passará disso”

O tempo provaria estarem equivocadas as duas previsões. Provavelmente, ao se


referir à música nos pequenos cinemas, o norte-americano pensava na diminuição da mão
de obra, ao se trocar um grupo de músicos por um disco, mas, ainda assim, a idéia do
barateamento não seria real. A adaptação para um esquema de filmagem e de exibição
sonoras não traria vantagem alguma aos pequenos produtores e exibidores. Pelo contrário,
o encarecimento da empreitada sonora sepultaria os pequenos e concentraria o êxito de uma
nova fase nas mãos daqueles que pudessem, em termos financeiros, acompanhar as
mudanças. Quanto à descrença no filme totalmente falado, em cerca de dois anos, como já
comentamos, não teria mais lugar. Douglas Fairbanks, partilhava, porém, naquele

momento, da mesma desconfiança, embora visse com bons olhos o progresso tecnológico:

“Dentro dos próximos anos, devemos esperar muitos novos aperfeiçoamentos para a arte
moderna, e não ponho em dúvida que a música e o som terão as partes mais importantes.
Quando digo som, não me refiro ao filme falado. O diálogo pode e não pode ser o resultado
último das experiências atuais. A sincronização perfeita pela música marcará o fim de todas
as experiências que se fazem atualmente em favor do cinema falado”.

Note-se nas palavras de Fairbanks o mesmo discurso já encontrado em O Fan, e de


resto, recorrente na época, de que se o falado parecia constituir malefício, a adaptação
sonora que levasse em conta música e ruídos pareceria mais branda, e menos prejudicial.
Irving Thalberg se dividia entre não acreditar na substituição do mudo pelo falado e a
preocupação com a satisfação da audiência: “o público cinematográfico sempre pediu
variedade no seu divertimento predileto, e até hoje tem sido satisfeito. O cinema falado é
um novo meio de satisfazer essa exigência”. O artigo traz testemunho de Samuel Goldwyn,
famoso pela segurança de suas opiniões contra o falado: “quando as imagens na tela
começarem a falar, a ilusão de realidade, em vez de aumentada, será diminuída. Com
silêncio e trevas é muito mais fácil a gente sentir o drama que se desenrola na tela”. Note-
se nesse testemunho, mais uma vez, a reação contra o realismo. Da mesma forma,

reverbera no artigo outro argumento reincidente: “Venham os filmes falados e coloridos, e


92

nós retrocederemos até o teatro”, diz Clarence Brown (Cinearte, 20 de julho de 1927, p.
12).
Faz-se um novo longo silêncio sobre o assunto. No segundo semestre de 1928,
porém, a discussão ganha fôlego, tendo em vista que, como dissemos, os filmes falados
norte-americanos não tardariam a chegar. A adaptação para o sonoro em terras brasileiras
passará a ganhar espaço em editoriais e na coluna Cinema brasileiro, de Pedro Lima. Antes
da discussão em si, uma nota naquele espaço traz uma informação curiosa: a exibição, nos
estúdios de Paulo Benedetti, no Rio de Janeiro, de uma produção sua de 1916, Uma
transformista srcinal , citado no capítulo anterior como uma experiência sonora
precursora. Lima se mostra, no artigo, surpreso com o filme “musicado e synchronizado”,
“todo ele cantado” da década de 1910. “Para o tempo em que foi feito”, diz “denota um
progresso extraordinário (...) Agora que tanto se fala de filmes com voz própria, esta
reminiscência cinematográfica nos faz pensar o que não seriamos hoje, se todos esses
empreendimentos tivessem sido aproveitados” (Cinearte, 12 de setembro de 1928, p. 6).
No editorial do mesmo número estão postas algumas questões quanto à adaptação
aos filmes falados que vinham de fora. Há, naquele momento, a descrença na possibilidade
de produzirmos filmes falados. Esta seria uma discussão cabível “aos países produtores”,
diz o texto. “A nós, mercado quase que exclusivamente exibidor, cabe discutir a parte que
nos interessa”. E a parte que nos interessava era como fazer compreensível a fala em língua
estrangeira: “Em primeiro lugar, ninguém irá ao cinema ouvir um filme em inglês. Logo o
texto tem que ser traduzido”. Daí, dois caminhos, ambos passíveis de crítica. A legenda,
ainda uma mera especulação, e alvo, pouco adiante, de grande discussão, ou a dublagem, a

não menos estranha sobreposição de vozes em português sobre a imagem, criticada no


texto: “alguém falará por eles [os atores]? Ao passo que eles agitarão os lábios, apenas sem
a emissão de som?” Perguntavam incrédulos os editores de Cinearte.
Incrédulos também quanto à adaptação das salas brasileiras para o sonoro, os
editores sustentam que a discussão, na verdade, ficaria para mais tarde, dado que nem ao
menos éramos capazes de exibir um filme falado. A conclusão do artigo é de que, frente ao
problema da língua, o filme silencioso constituía uma vantagem. “Toda a gente
compreende o que vê, e por isso os analfabetos podem freqüentar o cinema”. É evidente,
cartelas, ou intertítulos, existiam, mas seriam, segundo os editores, dispensáveis, apenas
93

auxiliando a compreensão, não sendo para esta, indispensáveis. (Cinearte, 12 de setembro


de 1928, p. 3) Tornando-se legendado cada diálogo, a cada plano, aí sim o filme passaria a
ser inviável para que não pudesse acompanhar a leitura. O editorial da semana seguinte
prossegue com os mesmos argumentos: “nós continuamos a expor nossas restrições e
dúvidas quanto ao completo êxito dessa transformação. A popularidade do cinema vem
justamente de ser o filme igualmente compreensível, acessível a todos os povos (...) no dia
em que tivermos o filme falado, essa popularidade tenderá a desaparecer”(Cinearte, 19 de
setembro de 1928, p. 3).
Estava colocado, então, mais um argumento que surgiria vez por outra na briga
contra o falado, e que vem a se acrescentar aos citados anteriormente: a fala viria para
desconstruir o mito do cinema como arte universal, inteligível ao redor do planeta pela
ausência da barreira da língua, e, ingenuidade maior, acessível a todas as camadas da
sociedade. Da elite letrada, transeunte da avenida que cortava a capital federal, aos
analfabetos.
A citada crítica ao realismo está presente, em edição do mês seguinte, no
depoimento do diretor norte-americano Herbert Brenon, que faria coro a Chaplin, a
Goldwyn. Desta vez, porém, a tal reclamação não estaria apenas centrada no uso da voz,
mas estendida aos ruídos a serem acrescentados aos filmes: “o público não quer ver as suas
ilusões pessoais demolidas por essa realidade, sob a forma de bater de portas, do tilintar de
telefones, do rumor fragoroso dos bondes, de todos os barulhos e vozes, enfim, desse
mundo do qual ele procura fugir de vez em quando”(Cinearte, 17 de outubro de 1928, p.
34).

O editorial desse mesmo número traz como sugestão à passagem para o sonoro o
mesmo paliativo indicado por Douglas Fairbanks e por tantos outros. Ao invés do falado,
“o filme intermédio entre o mudo e o falante, o filme musicado, desde que a reprodução da
voz e dos sons seja perfeita, será acolhido com fervor”(Cinearte, 17 de outubro de 1928, p.
3). Exemplos de “filmes musicados” e de sua acolhida fervorosa não tardariam por surgir,
com as estréias dos primeiros musicais norte-americanos no Rio de Janeiro, cerca de seis
meses mais tarde, como já vimos. Quanto à crítica de poucas semanas antes, de que não
tínhamos ainda salas adaptadas aos filmes sonoros, a edição de 3 de outubro traz a notícia:
a Paramount pretendia inaugurar, em breve, o Vitaphone em São Paulo, em seu cinema na
94

Brigadeiro Luis Antônio (Cinearte, 3 de outubro de 1928, p. 32). O ano de 1928 encerrava-
se assim, pleno de especulações. Em 1929, os editores e articulistas assistiriam a chegada
do sonoro ao país, e teriam argumentos para que as especulações ganhassem corpo.
Logo a nove de Janeiro, a coluna de Pedro Lima comenta a diminuição momentânea
da produção norte-americana, graças à adaptação para o falado, e sugere que aquela
conjuntura trazia para o filme nacional a possibilidade de ganhar espaço no mercado
interno (Cinearte, 9 de Janeiro de 1929, p. 4). O famoso tom nacionalista impresso na
coluna de Lima, comentado por todos os pesquisadores que se debruçaram sobre as páginas
de Cinearte, como Paulo Emílio Salles Gomes, Ismail Xavier, João Luiz Vieira, logo
encontraria no cinema falado no Brasil uma esperança. Mas, àquela hora, tudo o que se
referia ao som no cinema ainda era alvo de críticas. É assim no texto de Otávio Gabus
Mendes, que, de São Paulo, resenha Alta Traição. Curiosamente, o início do texto, que
trata especificamente do filme, só lhe faz elogios, sem mencionar o som:
“Indiscutivelmente, um dos melhores, se não o melhor filme já feito”. No decorrer do
artigo, o som ganha atenção. São famosas as palavras de Mendes34:

“Ouvi o falado...Eu não gosto dele. Não que eu não achasse interessantíssimo o discurso do
cônsul brasileiro em New York, movietonizado35. E nem que eu não apreciasse a emoção
dramática intensa daqueles ‘Pahlen!!!’ que Emil Jannings gritava com tanta emoção e
medo. São, na verdade, efeitos que deixam a gente chocados pelo imprevisto e
impressionados por causa desse mesmo efeito. Mas o cinema silencioso é o cinema que,
verdadeiramente, é o cinema. A synchronização do Vitaphone ainda não é perfeita. Eles
ainda não regulam bem o fade out e o fade in dos sons, mas em geral agrada. Eu creio que
seja uma esplendida novidade para se comentar após um filme como Broadway melody ou
The singing fool, com cantos, danças, coros e demais coisas que agradam a vista e deliciam
os ouvidos. Mas o filme todo falado, como já se faz nos EUA? Será bom, mas o outro é
bem melhor” (Cinearte, 24 de abril de 1929, p.12-13)

No número de 10 de julho, Pedro Lima dá notícias das produções que estão sendo
rodadas. Ufanista, comenta: “o público pergunta: qual será o próximo filme nacional?” O
próprio Lima responde: “em São Paulo, já deve estar quase terminado Às armas , um filme

34
Citadas, por exemplo, por Paulo Emílio Salles Gomes (1976, p. 346)
35
Aqui, a primeira referência ao sistema que desbancaria a sincronização em discos do Vitaphone. O
Movietone traria uma solução irrefutável à junção dos sons com as imagens. Graças ao processo de leitura
ótica, o som seria impresso na película, o que determinava o fim do problema dos dois suportes separados,
filme e disco, que não garantiam a união absoluta dos dois materiais, imagem e som. 1929 é o ano em que,
nos EUA, o Movietone desbanca o Vitaphone. Note-se que a referência de Mendes é sobre o curta-metragem
que, como vimos, acompanhou a primeira exibição sonora carioca. Este já teria sido gravado, e exibido, não
com os discos, mas com o som ótico.
95

de elemento patriótico 36. Temos ainda Enquanto São Paulo dorme, com Irene Rudner
como estrela, cuja filmagem está quase terminada”(Cinearte, 10 de julho de 1929, p. 4-5).
Curiosa esta menção a Enquanto São Paulo dorme, de Francisco Madrigano, sem fazer
qualquer referência ao som. Alex Viany comenta ser aquela produção uma das primeiras a
ser sonorizada em São Paulo (VIANY, 1959, p. 98). Luiz Felipe Miranda, no verbete sobre
Madrigano para a Enciclopédia do cinema brasileiro , confirma tal informação e acrescenta
ter sido o Vitaphone o sistema utilizado (RAMOS, MIRANDA, 2000, p. 349).
O editorial do mesmo número traz, pela primeira vez, um elogio ao cinema sonoro.
Dizem os editores: “O filme sonoro veio abrir novos horizontes à cinematografia sob um
ponto de vista que até aqui não abordamos: o cinema educativo. O filme destinado a
instruir, não somente a divertir”. O texto chama o cinema sonoro de “este progresso
realizado no campo cinematográfico”. Comenta ser ele uma ferramenta para que “a Europa
possa ver renascer as suas cinematografias”. Lamenta que “nós nos limitemos ao papel de
consumidores. Nem por isso podemos permanecer indiferentes diante dessas possibilidades
do filme sonoro, que talvez venha a ser o auxiliar mais poderoso para a cura da chaga que
nos aflige: o analfabetismo”. Os editores comentam que “filmes mudos nos EUA e na
Europa com propósitos educativos, com professores narrando sobre as imagens, agora
falarão por si mesmos”(Cinearte, 10 de julho de 1929, p. 3). Curioso como esta declaração
está em desacordo com a outra, que já citamos, em editorial anterior. Naquela, as legendas,
que acompanhavam o cinema falado vindo de fora, segregariam mais ainda os que não
sabiam ler. Aqui, a justificativa para a mudança de posição parece ser o vislumbrar da
produção nacional, embora isto não esteja, ainda, dito.

No editorial seguinte, em 17 de julho, é citado o êxito dos falados que começam a


chegar, ao mesmo tempo em que é comentada, pela primeira vez, uma situação estranha,
mas que parecia não impedir o sucesso:

“Como em São Paulo, o cinema falante está fazendo vivo sucesso nesta capital, e apesar dos
vários defeitos que vários lhe notam as multidões se sucedem à porta do Palácio Theatro
(...) O cinema falado caiu no gosto do público e mesmo aqueles que não pescam uma
palavra de inglez vão se deixando atrair pela novidade, enchendo a platéia” (Cinearte, 17 de
julho de 1929, p. 3).

36
Dirigido pelo mesmo Otávio Gabus Mendes, o correspondente paulista.
96

Eis a situação à qual nos referimos. Durante os meses seguintes, ou seja, de julho de
1929 em diante, os filmes falados em inglês foram exibidos no Brasil sem qualquer
adaptação referente ao idioma, o que, para espanto dos críticos, não impediu que o público
corresse para um espetáculo no qual não se entendia o que estava sendo dito. Tratava-se de
uma fruição da parte sonora cujo prazer, despertado pela novidade, era tão grande que se
prescindia, de bom grado, da compreensão das palavras. João Luiz Vieira comenta que, no
atribulado ano de 1929, as dificuldades no mercado interno norte-americano em se adaptar
ao falado seriam aumentadas pela quebra da Bolsa de Valores de New York, em outubro, e
o resultado dessa conjuntura seria um desleixo pela necessidade de adaptações dos falados
para o mercado externo, relegando as platéias que ao redor do mundo recebiam os falados
exportados sem entender inglês a um segundo plano (VIEIRA, 1987, p. 135). Durante os
próximos meses, o fenômeno de os filmes serem exibidos sem que se levasse em conta o
singelo fato de serem falados em língua estrangeira perturbaria os articulistas de Cinearte.
Se um editorial de um ano antes colocava que ninguém iria a um filme falado em inglês,
agora a situação os surpreendia. Em 9 de outubro, o editorial dizia: “não pode haver nada
mais idiota do que uma pessoa gastar seu dinheiro para assistir a um divertimento que
acabará forçosamente por aborrecê-la, desconhecedora do idioma em que são sonorizados
os filmes”(Cinearte, 9 de outubro de 1929, p. 3). Convém lembrar que assistir a uma
manifestação artística em língua que não se entende não foi um privilégio do público de
cinema no Brasil daquele período. Na ópera, há, é evidente, um texto dito pelos cantores e
um libreto no qual esse texto pode ser acompanhado. No Brasil, no entanto, criou-se o
costume de dar atenção somente à melodia, desprezando o texto. A música popular,

especialmente aquela cantada em inglês nunca precisou ser entendida pela maior parte de
seu público no Brasil, que, da mesma forma, satisfaz-se com a melodia e a performance do
cantor estrangeiro, e prescinde das palavras.
Dentro daquele cenário, era esperado que, passada a novidade, o público se
cansasse, e passasse a recusar o cinema que não entendia. Em outubro, Pedro Lima começa
a diagnosticar esse cansaço. Em coluna do dia 23, dirá: “Nós no Brasil, apenas queremos
um cinema que todos possamos ver, ouvir e entender”(Cinearte, 23 de outubro de 1929, p.
4).
97

O cinema falado configuraria uma nova situação para o espectador não apenas
naquele primeiro momento, em que não se entendia o que os personagens diziam na tela.
Artigo de Otávio Gabus Mendes, de 28 de outubro, notava a nova necessidade de se estar
em silêncio durante a exibição, agora que era havia sons na tela a serem ouvidos. Diz
Mendes, não sem ironia:

“o cinema passou a ser o espetáculo da audição. Comportemo-nos nele como na ópera.


Silenciosamente. Agora os artistas cinematográficos falam e cantam, e precisam ser
ouvidos. A platéia deve ser rigorosamente silenciosa (...) Silêncio com a boca, com os pés,
com as poltronas (...) Já teríamos notado como é forte a bateria das músicas americanas que
acompanham os filmes sonoros? Então para que tamborilar com a bengala no chão ou com
os dedos na poltrona? Incomoda os vizinhos.”

Mais à frente, e mais irônico: “agora é proibido conversas (...) São as evoluções,
bem diz o anúncio”(Cinearte, 28 de agosto de 1929, p. 20). Estaria por vir ainda outra
adaptação. O momento no qual não se entendia o que se dizia na tela seria sepultado com a
37
tardia, mas eficiente, opção pelas legendas, solução de início desacreditada. Em editorial
de 21 de agosto, está expressa a incredulidade, já manifestada antes, quanto ao espectador
dispor-se a ler o que estava sendo dito. Fato é que as legendas, em breve, provariam a sua
funcionalidade junto ao público. Sérgio Augusto traz a informação de que Benedetti teria
sido o responsável pela sugestão delas junto aos escritórios da MGM no Rio de Janeiro
(AUGUSTO, 1989, p. 76). Funcionais ou não, padrão totalmente aceito de adaptação ao
texto estrangeiro na tela até hoje, cabe a nós ressaltar que não estavam sem razão os críticos
brasileiros ao reclamar da estranheza do processo.
José Gatti, sobre a forma de se assistir um filme no Brasil falado em língua

estrangeira, faz a pergunta: “ver ou ler cinema?”. Gatti diz que aquele processo de
aceitação das legendas fez com que o público brasileiro de cinema passasse por um
“processo de reeducação. A leitura dos diálogos ao pé do quadro veio a conformar um
estilo nacional de se ver cinema: os espectadores lêem o texto para depois escrutinarem o
resto do quadro – se tiverem tempo para tanto” (GATTI, 2000, p. 94). Podemos pensar que
a adaptação às legendas tem um efeito colateral ainda maior, se concordarmos que, se a

37
Nesse meio tempo, haveria outra tentativa, com penetração pequena no Brasil: as versões em outras línguas
dos filmes norte-americanos, para o mercado externo. A indústria estadunidense faria versões em francês, em
alemão, em espanhol, completamente refilmadas para serem lançadas nos países respectivos. Para o Brasil,
foram tentadas versões em espanhol, o que, evidentemente, não deu certo.
98

apreensão das imagens fica reduzida, o mesmo talvez aconteça de forma mais radical com a
apreensão sonora do filme. O espectador que acompanha as legendas está redirecionando
para o visual uma compreensão que deveria ser auditiva. Ler, e não ouvir, os diálogos
significa transferir o entendimento da narrativa dos ouvidos para os olhos, significa deixar
de prestar atenção ao que deveria ser escutado. Assim, podemos dizer que, mais do que
uma reeducação visual, acostumar-se a ler legendas implica em uma deseducação auditiva
nas salas de cinema. Pode-se pensar que os espectadores de cinema dos mercados que
sejam mais importadores do que produtores dos seus próprios filmes tendem a,
forçosamente, centralizar a apreensão dos filmes no aspecto visual, mais do que se não
fossem obrigados a ler o que deveriam ouvir.
Fato é que a alternativa às legendas, a dublagem, tampouco é solução ideal. O
italiano Gian Luigi de Rosa contrapõe vantagens e desvantagens de ambos os métodos. A
perda das vozes srcinais seria evidentemente o maior problema agregado à dublagem. A
eterna subordinação às regras de sincronismo já seria inerentemente fadada ao fracasso, não
por suposta inabilidade dos dubladores, mas pelas diferenças nas próprias estruturas das
línguas. Por outro lado, com a dublagem estaria preservada a oralidade, e com ela a
apreensão auditiva do texto por parte do espectador. Com as legendas, estão mantidas as
vozes srcinais, mas o espectador, como notou José Gatti, pouco presta atenção a elas. As
legendas resumiriam ainda, via de regra, o texto srcinal, simplificando o sentido. De Rosa
lembra que há razões históricas para que a dublagem, diferentemente do caso brasileiro,
tenha tornado-se o padrão de adaptação dos filmes estrangeiros em sua Itália natal, bem
como em outros países europeus. De Rosa nota que todas as maiores economias européias,

como Itália, Alemanha, França, Espanha, Inglaterra, optaram pela dublagem. A prevalência
da legenda se daria em países de menos aporte econômico, como Portugal, Grécia, Bélgica,
a Escandinávia. O italiano lembra que o cinema sonoro chega à Europa no momento em
que vários países eram dirigidos por regimes extremamente nacionalistas, e que a
imposição da dublagem tem ligação direta com isso. No caso italiano, uma lei de 1930, já
no regime fascista, obrigava a dublagem dos filmes estrangeiros, como forma de evitar o
contato do povo com a língua externa. Situação análoga a essa seria verificável em outras
99

nações.38 A partir do pós-guerra, os EUA passariam a pressionar os mercados europeus


para se renderem à legendagem, mas o fato é que, ainda hoje, a maior parte dos filmes
estrangeiros em solo italiano, alemão, francês, espanhol, segue sendo dublada. Geraldo
Santos Pereira lembra que houve tentativas no Brasil de instituir-se a dublagem
compulsória. Em 1960, o senador Geraldo Lindgren apresentou projeto de lei que propunha
que “filmes editados no estrangeiro fossem gravados no Brasil, na língua portuguesa” e que
mesmo o “fundo musical ou as partes musicadas fossem também gravadas por orquestras
brasileiras”. Mais tarde, em 1969, o decreto-lei n.603 de 2 de junho daquele ano alterava o
decreto que criou o INC, propondo ao instituto “formular normas destinadas a tornar
obrigatório o uso do idioma nacional em filmes estrangeiros que forem exibidos nos
cinemas existentes no território brasileiro.” O INC jamais formulou as regras para tal
adaptação, e a questão foi abandonada. Pereira lembra ainda que a discussão era levada
adiante por pressão de parte da classe cinematográfica, dos dubladores, e que tinha
precedente no caso televisivo, veículo para o qual a dublagem obrigatória já fora instuída.
(PEREIRA, 1973, p. 105-106) Há hoje, em 2006, uma nova tentativa no mesmo sentido em
trâmite do Congresso Nacional.39 Voltaremos, no capítulo seguinte, à questão da dublagem.
Outra adaptação, esta não por parte do espectador, mas concernente à própria
exibição, preocupava os articulistas de Cinearte. Com as projeções acompanhadas por
discos, chegava ao fim a época das orquestras nas salas de cinema. Otávio Mendes critica,
em 31 de julho, a mudança, em São Paulo. No mesmo número, há a notícia da chegada da
sincronização mecânica à Curitiba. O editorial de 7 de agosto comenta o fim das
orquestras, sem saudades. Sobre a falta de sintonia rotineira entre o que era executado pelas

orquestras e que era exibido nas telas, os editores reclamam:

“os proprietários das salas de exibição culpavam os diretores de orquestra que durante
meses mantinham os mesmos programas, sem variar, fossem quais fossem os filmes (...) o
filme sonoro dispensa a orquestra. Queixam-se do fato os músicos que vão sendo aos
poucos dispensados. O filme sonoro trouxe, entre outras coisas, a possibilidade da boa
música, magnificamente executada por orquestras imensas e afinadas, executando trechos
adequados, feitos alguns especialmente para o filme, de sorte a acabar com essa eterna
tortura para o ouvido em favor da vista a que nos íamos habituando pouco a pouco, contra a

38
Gian Luigi de Rosa teceu os comentários citados em palestra na Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro, em 1 de setembro de 2005.
39
O deputado Nilson Mourão (PT-AC) apresentou no início de julho um projeto de lei que tornaria
obrigatória a dublagem de todos os filmes estrangeiros exibidos em terras brasileiras, com previsão de multa
diária para os exibidores em caso de descumprimento da lei.
100

nossa vontade. Era o regalo de um dos sentidos com o sacrifício do outro. Lamentamos o
sacrifício dos que tinham a sua atividade empregada nas orquestras de cinema, mas manda a
verdade que se diga que a desaparição destas nem uma saudade deixará no
público”(Cinearte, 7 de agosto de 1929, p. 3).

Não que a projeção acompanhada por discos fosse isenta de críticas. Em 4 de maio,
o artigo Problemas do cinema falado comenta a ineficácia daquela forma de sonorização,
ainda nos EUA. O texto narra um improvável caso no qual a mocinha reagiria a más
notícias dizendo: “É terrível isso! Não lhe posso dizer outra coisa!” Pois neste momento, o
disco agarra, e seguem-se indefinidamente as repetições: “É terrível isso! Não lhe posso
dizer outra coisa!” De qualquer forma, e piadas à parte, frente ao turbilhão de mudanças
causadas pela chegada do sonoro, começaria a mudar também a opinião dos que escreviam
em Cinearte. Pedro Lima, impressionado, de qualquer forma, com o sucesso de público do
filme estrangeiro, já proclamava em julho: “O cinema falado está aí. E vai ficar”(Cinearte,
17 de julho de 1929, p. 4). Em agosto, os editores desculpavam-se pelas imprecações
anteriores: “as observações que daqui temos feito sobre o filme sonoro têm feito com que
muita gente nos acredite absolutamente infensos ao mesmo. Não há tal”(Cinearte, 14 de
agosto de 1929, p. 3).
A falta de adaptação à língua nacional pelos filmes estrangeiros fará com que os
articulistas vejam com esperança a produção de filmes falados em português. O editorial de
21 de agosto afirma: “insistimos em que parece chegada a melhor ocasião, a grande
oportunidade para tentarmos em grande escala a cinematografia nacional”(Cinearte, 21 de
agosto de 1929, p. 3). É dentro dessa conjuntura que Pedro Lima se convence da
necessidade do filme sonoro feito no Brasil. A continuidade da produção muda seria um

retrocesso, pois “o público preferirá o pior filme falado americano do que o melhor filme
que pudermos produzir, se este for silencioso”(Cinearte, 7 de agosto de 1929, p. 4).
O fato é que, contrário às esperanças de indústrias nacionais mais fortes, o falado
contribuiu de forma decisiva para a hegemonia do filme norte-americano. O editorial de 2
de outubro comentava os esforços europeus contra a conquista de seus mercados pelos
talkies. Quinze dias mais tarde, o mesmo espaço trazia notícias de patentes de
equipamentos sonoros alemães e franceses, numa tentativa de fugir à importação do
Vitaphone e do Movietone. João Luiz Vieira nota que “com a chegada do som, a produção
foi reduzida, e não aumentada, como pensavam os mais otimistas. Aumentados foram
101

apenas os custos, não só da produção de novos filmes, mas, principalmente, de adaptação


técnica das salas de exibição, fortalecendo-se ainda mais a dependência tecnológica em
relação aos Estados Unidos, e provocando o fechamento de muitos cinemas ligados a
exibidores de menor porte” (VIEIRA, 1987, p. 135). Paulo Paranaguá desenvolve um
raciocínio análogo, no qual está compreendida a situação em toda a América Latina: “basta
ver a data em que o cinema começou a falar no continente para medir o quanto foi difícil
ultrapassar os novos problemas técnicos, econômicos e estéticos, uma verdadeira barreira
do som para as cinematografias dependentes”. No Brasil, as primeiras experiências de
longa-metragens são de 1929; na Argentina, de 1931, assim como no México; no Peru, de
1934, bem como no Chile; na Bolívia, de 1936; em Cuba, de 1938; na Venezuela, apenas
de 1939, dez anos depois do Brasil, por exemplo, e treze anos após as primeiras
experiências norte-americanas (PARANAGUÁ, 1984, p. 39).
A citada experiência brasileira de 1929 também é assunto do segundo semestre
daquele ano, em Cinearte. Em 17 de julho, Pedro Lima anuncia:

“Luis de Barros voltou (...) em carta que nos endereçou, participa-nos de ter quase terminado
dois filmes, intitulados Uma encrenca no Olimpo e Acabaram-se os otários, ambos cantados e
sonoros. Nas comédias, Tom Bill e Genésio Arruda, os protagonistas, criaram dois tipos que
manterão em uma série de comédias. Dia 15 deve ter Luis de Barros também iniciado as
filmagens de um drama falado, cantado e sonoro, cujo título provisório é O emigrante, tendo
como principal intérprete Vicente Caiaffa.” (Cinearte, 17 de julho de 1929, p. 5).

Na semana seguinte, Otávio Mendes, na coluna De São Paulo, faz comentário


similar, e acrescenta uma informação técnica curiosa, mas ainda obscura: “Luis de Barros,
dentro de poucos dias, lançará em São Paulo, com a interpretação de Genésio Arruda e
Tom Bill, dois filmes falados e synchronizados (...) Aproveitando as qualidades de
mecânico de seu sócio Tom Bill, tratou de inventar o melhor sistema para synchronizar e
fazer falar os filmes” (Cinearte, 24 de agosto de 1929, p. 28).
Não se encontram registros posteriores de Uma encrenca no Olimpo nas relações de
filmes lançados na época, nem na autobiografia de Luis de Barros ou nas revistas. É
provável que o filme não tenha sido finalizado. Por outro lado, Acabaram-se os otários é
sempre citado como o primeiro longa-metragem sonorizado no Brasil.40 A sincronização

40
Alex Viany o cita como “o primeiro filme completamente sonorizado”, explicando que o comentado
Enquanto São Paulo dorme teria som em apenas algumas cenas. O texto de Viany traz ainda a informação de
102

teria ficado a cargo de um aparelho, como diz o texto de Mendes, inventado na própria
produtora de Barros e Bill. O nome do aparelho é informado em Cinearte quando da crítica
do mesmo Mendes sobre o filme, em 18 de setembro. Diz ele: “Luis de Barros encontrou
um sistema, Sincrocinex, que julga ele suprirá a deficiência, ou antes, a lacuna até aqui
existente no cinema brasileiro, e ainda, oferece a vantagem de não precisarmos recorrer aos
aparelhos da Western Electric ou da Radio Corporation” Seguem-se, no texto de Mendes,
elogios e críticas ao filme, e ao sincronismo:

“Acabaram-se os otários narra as aventuras de um caipira e de um italiano que vêm a São


Paulo. Compram um bonde. São depenados num cabaré. E assim, desiludidos, voltam para
o interior. O synchronismo do filme às vezes é bom. Às vezes mau. Às vezes péssimo. As
canções de Paraguassu são esplendidas e estão muito bem synchronizadas. A canção de
Genésio também. Mas o trecho do cabaré, todo falado, é péssimo, porque dá a impressão
exata de que se está assistindo a um espetáculo em que só figuram ventríloquos. A scena de
Bill, no palco, levando pastelão na cara e tocando piston, e aquelas risadas todas chegam a
cacetear de tão sem graça e ridículas” (Cinearte, 18 de agosto de 1929, p. 21).

No mês seguinte, Pedro Lima, tendo visto o filme, concorda que o sincronismo é
inconstante, ratificando as críticas de Otávio Mendes. Acabaram-se os otários estreava no
Santa Helena em 2 de setembro de 1929, ficando em cartaz, em São Paulo, até 28 de
fevereiro do ano seguinte (BERNARDET, 1979). O cartaz dizia: “vocês vão rir como
nunca riram com Tom Bill e Genésio Arruda em Acabaram-se os otários. Uma engraçada
comédia falada e cantada em portuguez. Com as aventuras de Bentinho Samambaia e
Xixillo Spicafuoco”.41
Tom Bill e Luis de Barros tinham se conhecido anos antes, quando Barros
procurava por artistas de teatro. Encontrou em Santos aquele que chamaria mais tarde, em
sua autobiografia, de “um completo artista”, que fazia “evoluções em um monociclo,

que Moacir Fenelon fora o técnico de som, e que adaptou a aparelhagem da fábrica de discos Columbia, para
a qual trabalhava. Viany dá espaço à crítica deO Fan, que tachara as piadas do filme de “pachoucadas
ridículas”, de “insanidades” e que citara nominalmente Procópio Ferreira, com as “suas graças empalhadas”
(VIANY, 1959, p. 98-99).
Tinhorão cita a utilização de Carinhoso, de Pixinguinha, “como fundo musical” (TINHORÃO, 1972, p. 282).
Sérgio Augusto comenta a primazia da empresa de Barros e sócios, chamada, como o aparelho, Sincrocinex,
na busca pelo cinema sonoro brasileiro. Ainda segundo Augusto, uma produção anterior da empresa, o curta-
metragem A juriti, já com Paraguassu, teria sido “um balão de ensaio” do seu improvisado sistema de
sincronização (AUGUSTO, 1989, p. 81).
41
Ambas as informações sobre o período de exibição e sobre o cartaz segundo BERNARDET, Jean Claude.
Filmografia do cinema brasileiro – 1900 -1935. Jornal O Estado de São Paulo. São Paulo: Governo do
estado/Secretaria de Cultura, 1979)
103

tocava piano e cantava umas gostosíssimas cançonetas”. Barros contrataria Bill para um
“teatrinho de variedades” montado em um espaço contíguo ao Teatro Santa Helena. Para
parceiro de Bill, empregaria Genésio Arruda. A dupla encenaria esquetes, e a “disparidade
de seus físicos”, leia-se Bill muito alto e Genésio muito baixo, era, segundo Barros, um dos
ingredientes que fariam o sucesso da dupla, primeiro no seu “teatrinho”, depois em seus
filmes (BARROS, 1978, p. 88-89).
É conhecida a história de que Acabaram-se os otários teria nascido de uma aposta
encampada por Barros. Quem narra é o próprio:

“Um dia, encontrando na rua o Sr. Bruno, que era, naquele momento, diretor das Empresas
Cinematográficas Reunidas, que estava entusiasmado com o cinema sonoro, que acabara de
chegar, lhe disse, confesso que para gozá-lo:
- Sr. Bruno, não é só americano que faz filme falado, eu também vou fazer um.
Ele acreditou, e continuando com seu entusiasmo:
- Vai? E como se chama o filme?
E para gozá-lo ainda mais, respondi:
- Acabaram-se os otários.
-Fui.
Eu faço negócio
Conversa vai,noconversa
escuro. Vamos ao de
vem, saí escritório.
lá com negócio fechado e data marcada para a
estréia do filme!”

Segundo Barros, para solucionar o problema, ele se lembraria de sua estada na


França, nos estúdios da Gaumont, onde presenciara tentativas de sincronização em disco,
como as descritas no capítulo anterior: o cantor gravando a voz antes e dublando a si
próprio para a câmera, na seqüência. Na exibição, “com um simples toca-discos unido ao
projetor, com um amplificador na cabine, bastava colocar um fio ligando o alto-falante
debaixo da tela, o que amplificava tudo” (BARROS, 1978, p. 104-105). Barros comenta

que a diferença entre o rolo de filme, de dez minutos, e os discos usados então, de 78
rotações por minuto, que alcançavam somente três minutos de reprodução, fazia com que o
projecionista tivesse que pular de um projetor para o outro a cada fim de disco. Segundo
ele, em breve suas produções se adaptariam ao disco de 33 rotações, os mesmos utilizados
pelo Vitaphone. Os dez minutos nos quais transcorria o disco de 33 rpm eram os mesmos
do rolo de 270 metros de filme. A sincronização tornava-se menos trabalhosa. Ainda sobre
a sincronização de Acabaram-se os otários, Barros admite ter havido uma falha no dia da
estréia, que terminaria por postergá-la para o dia seguinte. Não se conseguia fazer a
manivela do projetor rodar na mesma velocidade que a do toca-discos. O sincronismo seria
104

impossível, com imagens e sons correndo em velocidades diferentes. No dia seguinte,


mudado o projetor, conseguir-se-ia exibir o filme (BARROS, op.cit. p. 105-106).
Moacir Fenelon, citado por Viany como o técnico de som responsável pela gravação
dos discos, tem papel central na empreitada pelo início do cinema falado no país.
Curiosamente, Barros diminui o papel de Fenelon na produção do filme, dizendo tê-lo
contratado “para acompanhar e instalar os aparelhos nos cinemas, e só para isso”, tirando,
em declaração de 1978, o crédito de técnico de som dado por Viany e por outros
(BARROS, op.cit. p. 106). O próprio Fenelon creditava para si um papel maior, condizente
com a afirmação posterior de Viany, de “sonografista” do filme, ou seja, de responsável
pela gravação de seus sons.42 De qualquer forma, o mineiro de Patrocínio, com vinte e seis
anos à época das filmagens de Acabaram-se os otários, que vinha de uma formação de
técnico de som das gravadoras Columbia e Parlophon, se tornaria, como diz Sérgio
Augusto, “o maior expert do assunto entre nós”(AUGUSTO, 1989, p. 82). O assunto, a
gravação de som para cinema. Seria Fenelon o responsável pelo som dos vindouros, e mais
à frente comentados, Coisas nossas, de Wallace Downey (1931); Estudantes (1935), Alô
alô carnaval (1936), ambos parcerias do mesmo Downey com a Cinédia; e das produções
da Sonofilmes, empresa de Downey e Alberto Byington no Rio de Janeiro, fundada em
1936, na qual permaneceria até 1941. Em setembro daquele ano, seria um dos sócios
fundadores da Atlântida (RAMOS, MIRANDA, 2000, p. 233).
Ainda sobre Acabaram-se os otários, Jurandyr Noronha comenta, com
ilustração de seis fotos, algumas passagens do filme, com destaque para a comentada cena
da compra do bonde por Bill e Arruda. Vincenzo Caiaffa propõe a ambos o negócio.

Genésio pergunta a Bill se ele não tem “algum” para completar o montante necessário.
Tom Bill hesita, mas entusiasmado com o estado do bonde, concorda. Sobem, achando-se
os donos do veículo, e partem satisfeitos. “Estava quebrado”, diz Noronha, “o tabu do som”
(NORONHA, 1987, p. 244-249).
Cinearte ainda daria espaço, no fim de 1929 e em 1930, ao fim da discussão a
respeito do falado. A adaptação das nossas salas se consolidava; os primeiros filmes
sonoros feitos no Brasil surgiam. O argumento de que o filme falado em português traria o

42
Em depoimento para A cena muda, citado por José Inácio de Melo Souza no verbete sobre Fenelon para a
Enciclopédia do cinema brasileiro (RAMOS, MIRANDA, 2000, p. 233)
105

público para o lado da produção nacional parecia coerente. Otávio Mendes vaticinava, em
23 de outubro: “É uma tolice querer lutar contra a realidade esmagadora. O cinema falado
venceu. Está acabado. Não é preciso mais discussão sobre este ponto” (Cinearte, 23 de
outubro de 1929, p. 30). O mesmo crítico defendera, semanas antes, a produção nacional
falada, tomando como argumento o sucesso de Acabaram-se os otários: “Se Luis de
Barros, com um modesto aparelho de sincronismo e com um filme mais modesto, leva
verdadeiras turbas ao Santa Helena...” (Cinearte, 25 de agosto de 1929, p.20). O editorial
de 6 de novembro também admite a vitória do cinema sonoro, e diz que “o dever do crítico
fica sendo não deixar escapar a nova ocasião de reforçar o cinema brasileiro, fazendo
filmes falados em português” (Cinearte, 6 de novembro de 1929, p.3).
Mendes e Lima detectam, em 13 de novembro, o aumento de uma reação contrária
do público aos filmes estrangeiros. Em 4 de dezembro, Pedro Lima decreta: “o cinema
falado em língua estrangeira não precisa de leis, ele cairá por si. Repelido pelo público (...)
Só há uma solução para o cinema. É o filme nacional. Falado, mas em língua nacional. A
não ser assim, é uma bobagem” (Cinearte, 4 de dezembro de 1929, p.4). Quanto à menção a
leis, Lima estava se referindo a uma discussão posta em pauta pela própria revista, quando
da publicação, em 6 de novembro, de uma mensagem do Centro Acadêmico Candido de
Oliveira, uma faculdade de direito carioca, “solicitando à câmara uma regulamentação
rigorosa que defenda o nosso patrimônio artístico (...) considerando que os filmes sonoros e
falados constituem uma manifestação do imperialismo americano, pretendente a impingir-
nos o idioma e os temas musicais estrangeiros” (Cinearte, 6 de novembro de 1929, p.6). 43
Mesmo decretado o fim da discussão, os exemplares de 1930 ainda dariam algum

espaço às últimas controvérsias. No número do primeiro dia do ano, há a crítica,


desfavorável, do famoso Cantor de jazz, exibido tardiamente no Brasil. No editorial de 22
de Janeiro, ainda surge a dicotomia ‘falado ou apenas sonorizado com músicas e ruídos’:
“Nós brasileiros torcemos o nariz para o filme dialogado, admitimos o sincronizado”
(Cinearte, 22 de Janeiro de 1930, p.3). Em outubro daquele ano, encontra-se uma entrevista
de Sergei Eisenstein, intitulada Messias ou ameaça? Nela, o russo desenvolve argumento
que tem, com aquela diferenciação, pontos de concordância:

43
Ismail Xavier citara, em seu estudo sobre a revista, esse documento, como exemplo de um, de início
improvável, anti-americanismo em Cinearte (XAVIER, 1978, p. 193)
106

“Cinema falado? Para mim os diálogos são brincadeiras infantis, diante da pujança de um
microfone. As fitas devem se mover e ter ação. Não podem se restringir a ser imitações de
teatros, que, por sua vez, sempre foram apenas a mais pobre imitação da vida. O “som”, no
entanto, é diferente. Bem posto em uma fita é simplesmente maravilhoso. Quando
pudermos colocar em nossas fitas os sons da própria vida, os sons que não são nacionais e,
no entanto, capazes para todos os povos do mundo, então poderemos ter certeza de que
estamos fazendo fitas perfeitas, afinal. O som da chuva caindo sobre as lajes, o respirar da
turba, os gritos
machinas, de alegria
os modernos e dedador,
deuses e o mais aídramático
humanidade, de todos ostudo”
teremos conseguido sons,(Cinearte,
os sons das
15
de outubro de 1930, p.12).

Eric Von Stronheim já tivera reproduzido depoimento em que sustentava a mesma


antipatia quanto aos diálogos, mais precisamente contra o excesso deles, nos filmes norte-
americanos, como um fenômeno que diminuía o potencial do som nos filmes: “É um real e
grande invento. Mas está sendo aplicado da forma mais ridícula e estúpida possível. Porque
a voz é novidade, tome voz e mais voz e mais voz. Não há controle. Nem mesmo medida.
Diálogos à beça. Falatório em penca” (Cinearte, 11 de setembro de 1929, p.22).

Quando é dito, como fora por Viany, que as revistas brasileiras deram a sua
contribuição a uma briga contra o falado que se espalhara pelo mundo, não se lhe pode tirar
a razão. Porém, comparando o caso brasileiro com o de uma outra revista, norte-americana,
de relevância no mesmo período, a posição contra o falado no caso estrangeiro parece ter
sido menos homogênea. Os críticos de Close up tomaram a passagem para o sonoro como
um de seus temas naqueles últimos anos da década de 1920. Ernest Betts incorpora a crítica
dura ao diálogo, no artigo Why talkies are unsound, de abril de 1929, embora expandindo
seu argumento para a crítica ao som em geral, ainda defendendo que a real eloqüência do
cinema residia no silêncio (Close up, vol. IV, n.4, abril de 1929, in: DONALD,
FRIEDBERG, MARCUS, 1998, p. 89-90). No mesmo volume, porém, Jean Lenauer faz
uma apaixonada defesa do som como novo material cinematográfico, no artigo The sound
film: salvation of cinema. Lenauer admite ter errado, ao passar o ano anterior, 1928,
tomando parte nas fileiras dos detratores do som. Cita o manifesto de Eisenstein, Pudovkin
e Alexandrov, reproduzido na própria revista, como em O Fan, em outubro de 1928; cita
Pirandello, que, em entrevista na Alemanha, dissera que “o filme sonoro deveria expressar
de forma cinematográfica apenas os sons que não pudessem ser traduzidos em palavras” 44.

44
tradução nossa do inglês: “the sound film should express cinegraphically only parts of sound which cannot
be rendered in words”
107

Acerta ao dizer que o filme sonoro criaria uma maneira de atuar mais comedida, pois os
gestos poderiam dividir espaço com as palavras. Erra ao vaticinar que o cinema falado em
excesso desapareceria. Encerra o artigo com o argumento de que, se não baseado na
palavra, o cinema sonoro poderia ser tão internacional quanto o mudo fora (idem, p. 87-
88).
Kenneth MacPherson viu sua opinião mudar em favor do som ao assistir Blackmail,
de Hitchcock. MacPherson cita a famosa seqüência em que o grito da garota assassinada,
na rua, torna-se o mesmo grito da zeladora, dentro do prédio. Um som unia dois planos, se
metamorfoseava na trilha sonora de ambos. Influenciado por aquela edição sonora, o crítico
teoriza sobre um uso do som que não seja um mero acompanhamento das imagens, nem o
contraponto pensado pelos russos. A idéia do acompanhamento reduzia o som a um
segundo plano, hierarquizado pela imagem; o contraponto trataria de separar demais os
dois elementos, quando Hitchcock mostrava um modo de uni-los, fisicamente e em
importância. MacPherson diz que:

“as pessoas ainda não começaram a falar, mais ainda, a pensar, sobre o som da mesma
forma que falam, e escrevem, na Close up ou em qualquer lugar, sobre a imagem. Pois
precisam. A teoria do som e do audiovisual é tão complexa quanto, e de vários modos,
similar. O som jamais deve ser pensado separado da imagem. Ele deve ser, a partir de
agora, inseparável, e para sempre, sonoro e visual. A construção de uma estética
audiovisual deve ser encampada.” (Closeup, vol. IV, n.9, outubro de 1929, in: DONALD,
FRIEDBERG, MARCUS, 1998, p. 91-93).45

O que acontecera com o crítico de Close up aconteceria mais cedo ou mais tarde
com todos os analistas de cinema que deixassem de tomar contato apenas com os
difamados talkies norte-americanos, e se vissem diante das primeiras obras primas do
cinema sonoro, que não tardariam. Alex Viany comenta que em 1930 seriam produzidos
filmes que, como o Blackmail que citamos, não deixariam dúvidas quanto ao potencial do
som: Hallelujah, de King Vidor, nos EUA; O anjo azul, de Josef Sternberg, na Alemanha
(no ano seguinte, M, o vampiro de Dusseldorf, de Fritz Lang); Sous les toits de Paris, de
René Clair, na França. Carl Dreyer, faria, em 1927, O martírio de Joana d’Arc, ainda

45
Tradução nossa do srcinal em inglês: “People have not yet begun to speak, far less to think, of sound in the
same way as they think now and write in Close up and elsewhere of vision. They must. The theory of sound
and sound-vision is just as complicated, and in many ways similar. Sound must never be thought alone. It
must now be inseparably and forever sound-sight. The construction of sound-sight aesthetic must be taken im
hand”
108

mudo, mas, segundo Viany, já interessado no som. Em 1931, lançaria Vampiro, o seu
primeiro sonoro. No Brasil, diz Viany, o potencial trazido pela mudança para o sonoro,
identificado sem demora nos artigos de 1929 em Close up, por exemplo, custaria a ser
compreendido (VIANY, 1959, p. 97-98). Ismail Xavier diria, mais tarde, que não foram
poucos “os viúvos” do cinema mudo no Brasil, “mesmo depois de décadas de cinema
sonoro” (XAVIER, 1978, p. 220).
Curiosa faceta da briga contra o falado foi identificada por José Ramos Tinhorão e,
mais recentemente, pela inglesa Lisa Shaw46. Luis Silva compunha, em 1930, a letra O
cinema falado, para ser cantada sobre a melodia de Eu ouço falar, de Sinhô, como remarca
Tinhorão (TINHORÃO, 1972, p. 241). A letra não poupa críticas à novidade:

Eu ouço falar
E com muita razão
Que o cinema falado
É uma exploração

O povo gasta o dinheiro


Para nada compreender
É uma enorme gritaria
Que nos faz ensurdecer
Acabaram com a música
Que ao povo alegrava
Para ouvir inglês
Era só o que faltava!

Este cinema falado


É uma grande cavação
Tirando dos pobres músicos
O seu próprio ganha-pão
Deixando muitas famílias
Sem ter nada o que comer

FoiOotal
quecinema falado
veio aqui fazer

Da mesma forma, em 1933, Noel Rosa, que mais tarde teria seu papel como
compositor para o cinema, com a canção-título de Cidade mulher, de 1936, dizia:

O cinema falado
É o grande culpado
Da transformação

46
O trabalho de Shaw, apresentado no III Encontro da SOCINE, está publicado sob o título A música popular,
a chanchada e a identidade nacional na era Vargas (1930-1945) em Estudos de cinema: SOCINE II e III. São
Paulo: Annablume, 2000. p.105-116.
109

Dessa gente que sente


Que um barracão
Prende mais que um xadrez
Lá no morro, se eu fizer uma falseta
A Risoleta
Desiste logo do francês e do inglês

A gíria que o nosso morro criou


Bem
Mais cedo
tarde a cidade deixou
o malandro aceitoudee usou
sambar
Dando pinote
E só querendo dançar o fox-trot

Não deve ser esquecido, como não foi por Tinhorão, que o comentário contra o
cinema falado na música popular deve ser tomado como uma evidente defesa dos valores
regionais, mas também no sentido de uma reação ao número de músicos subitamente
desempregados com a já comentada substituição das orquestras e dos conjuntos que
tocavam em cinemas pelos discos, crítica clara na letra de Luis Silva. Silva não deixa
também de notar o fato do povo não entender o que se dizia na tela.

2.2. A PRODUÇÃO DE FILMES SONOROS

2.2.1. A continuidade da produção paulista, e Coisas nossas

Como último tópico relacionando Cinearte à passagem para o sonoro, cabe ressaltar
que após o espaço dado a Acabaram-se os otários, a Sincrocinex, de Luis de Barros,
continuaria tendo as suas produções noticiadas. A 30 de abril de 1930, Pedro Lima
anunciava: “Messalina e Lua de mel são os dois novos filmes de Luis de Barros, já em
exibição. O primeiro, Messalina, tem no elenco Gerta Walkyria, Mado Myrka, Vincenzo
Caiaffa, Nelson Oliveira e Remo Cesaroni. E o outro, Lua de mel, é interpretado por
Genésio Arruda, Tom Bill e Rina Weiss, todos já conhecidos de Acabaram-se os otários.
São ambos filmes falados e cantados em brasileiro (...) não deixa de ser louvável o esforço
de Luis de Barros, produzindo filmes falados exclusivamente com os nossos recursos
(Cinearte, 30 de abril de 1930, p.4). Luis Felipe Miranda, no verbete sobre Menotti Del
Picchia, parceiro de Barros, roteirista de Acabaram-se os otários e de Messalina, faz
110

menção aos ruídos e à música deste último (RAMOS, MIRANDA, 2000, p. 427). Na
Filmografia do cinema brasileiro, Bernardet informa sobre a exibição de ambos no mesmo
Santa Helena de Acabaram-se os otários, entre abril e maio de 1930. Lua de mel e
Messalina formavam um único programa. O primeiro, uma comédia de curta-metragem,
abria a sessão.
Mais citado do que ambos seria a produção noticiada no mês seguinte. Em 23 de
maio, Pedro Lima informava que “Luis de Barros iniciou a filmagem de mais uma
produção para a sua Sincrocinex, que é uma paródia do filme O pagão e nela tomam parte
Genésio Arruda e Vicente Caiaffa” (Cinearte, 28 de maio de 1930, p.4). Apenas no fim do
ano, há na revista notícia do lançamento do referido filme, agora já com o nome: “ O babão
é o título do novo filme de Luis de Barros, todo musicado e falado” (Cinearte, 10 de
dezembro de 1930, p.4). Alex Viany informa que Genésio Arruda parodiava Ramon
Novarro, o galã do musical norte-americano, “de cuecas, com sotaque de caipira paulista”
cantando a paródia de Pagan love song, canção do filme srcinal:

Neste bananar
Terra tropicar
Um amor babão
Vem ao coração

Viany cita ainda Jurandyr Noronha, que lembrava da marcha Dá nela, de Ary
Barroso, sucesso do carnaval daquele ano na voz de Francisco Alves, também presente na
trilha sonora (VIANY, 1959, p. 115-116). João Máximo traz a informação de que o autor
das músicas do filme, sob o pseudônimo Chico Bororó, era o maestro e compositor erudito
Francisco Mignone. Chico Bororó era o pseudônimo já usado antes da incursão pelo
cinema, para assinar as cantigas populares que Mignone produzia paralelamente à carreira
de concertista. Mignone é, além disso, mais um nome, dentre os outros que já citamos, que
viveram a experiência de, no início da carreira, ter tocado acompanhando sessões mudas
(MÁXIMO, 2003, p. 125). Sérgio Augusto resume a história de O babão. Genésio (Zé
Babão) passava o filme a cantar para sua amada, Conchita (Luly Málaga), alvo também das
pretensões de Tom Bill (Don Chipola) (AUGUSTO, 1989, p. 82-83). Bernardet informa
sobre a estréia, em 12 de Janeiro de 1931, na sala azul do Odeon. Nos anúncios, a duração:
111

“duas horas de gargalhadas”; e a garantia de ser “todo sincronizado, falado, cantado,


musicado”, com “cenas piramidaes e canções gozadas” (BERNARDET, 1979). No cartaz,
reproduzido por Rudolf Piper, informações similares e, em alguns casos, não confiáveis: “o
primeiro filme brasileiro de metragem: falado, cantado e musicado. O romance de um
moço moreno e seus complicados amores com uma hespanholita salerosa. Scenas hyper-
romanticas, sesquipedaes e canções semi-trágicas, funambulescas, pyramidaes” (PIPER,
1977, p. 65).
Não citadas por Cinearte ficam outras produções paulistas sonorizadas da época. Da
própria Sincrocinex, O amor não traz vantagens, de 1929, com Genésio Arruda, Vicente
Caiaffa e Rina Weiss, curta-metragem “cômico e cantado”, exibido no Santa Helena como
complemento de Acabaram-se os otários (BERNARDET, 1979 e BARROS, 1979, p. 252).
Fragmentos da vida, de José Medina, teve elogiada, em O Estado de São Paulo , a
“sincronização caprichosíssima”. Estreava em 6 de dezembro de 1929, na sala vermelha do
Odeon (BERNARDET, 1979). José Inácio de Melo Sousa comenta o sucesso do filme, que
percorreu todo o circuito paulista de Serrador (RAMOS, MIRANDA, 2000, p. 371). Em
1930, Genésio Arruda e Tom Bill ainda apareceriam no curta-metragem Canções
brasileiras, que estreou no Cine Rosário, a 27 de outubro, tendo sido exibido
esporadicamente até o ano seguinte (BERNARDET, op.cit). Os dois estariam novamente
juntos em O campeão de futebol, de 1931, dirigido pelo próprio Genésio, contando ainda
no elenco com o maior astro do futebol da época, Friedenreich. Em 1931, há a produção da
pequena Glória filme, Mocidade inconsciente, dirigida por Caetano Mataró. O Estado de
São Paulo a anunciou como “falada, cantada, musicada, sincronizada pelo sistema

Vitaphone”. No elenco, Francisco Scolamieri, Estela Marion, Walkiria Moreira. Estreava


na sala azul do Odeon, a 13 de abril de 1931.
Também não noticiada pela revista, há uma experiência em São Paulo que, segundo
os registros existentes, é bastante anterior às primeiras tentativas de Luis de Barros. Bentevi
é um curta-metragem sonorizado com discos, experiência de Paulo Benedetti com a canção
de Paraguassu, ainda em 1927. Tinhorão cita entrevista do próprio intérprete, que se
lembrava de ter sido utilizado na ocasião o Vitaphone, e de ter cantado, além de Bentevi,
Triste caboclo (TINHORÃO, 1972, p. 249). Ainda segundo Tinhorão, dois personagens
chamavam para si a responsabilidade de ter sido o responsável por aquela gravação
112

pioneira: Moacir Fenelon, segundo depoimento seu, colhido em 1941, e José e Vicente Del
Picchia, respectivamente irmão e sobrinho de Menotti. Alex Viany faria, em 1959,
referência ao filme, citando Paraguassu, mas não a direção de Benedetti, nem o técnico de
som (VIANY, 1959, p. 98). Hernani Heffner cita Benedetti, e confere ao curta-metragem a
primazia na gravação em discos no Brasil. (RAMOS, MIRANDA, 2000, p. 438).
Além das participações em Bentevi e em Acabaram-se os otários, Paraguassu
estaria presente em um curta-metragem de 1931, chamado Mágoa sertaneja, de Wallace
Downey, que contava ainda no elenco com Batista Júnior e Catalano (TINHORÃO, 1972,
p. 283). Na seqüência, Downey, Paraguassu e Batista Júnior estariam envolvidos no longa-
metragem que seria o maior sucesso dentre aquela produção paulista sonorizada. Em 23 de
novembro de 1931, estreava no Rosário Coisas nossas. Seria exibido naquele cinema até
fevereiro do ano seguinte. No Rio de Janeiro, estreava no Eldorado a 30 de novembro, uma
semana depois do lançamento paulista. O Estado de São Paulo o anunciaria como “a
consagração definitiva da indústria brasileira de filmes. O maior recorde de bilheteria deste
ano, incluindo filmes de todas as procedências e nacionalidades” (apud BERNARDET,
1979). Cinearte também o noticia com entusiasmo. Pedro Lima diz, uma semana antes da
estréia: “Coisas nossas, o primeiro filme verdadeiramente todo falado em brasileiro, todo
filmado e gravado ao mesmo tempo no Brasil, vai em breve ser apresentado no Rosário, em
São Paulo” (Cinearte, 18 de novembro de 1931, p.4). Em 2 de dezembro, o anúncio é ainda
mais carregado de nacionalismo: “Byington e Cia. apresentam Coisas nossas. Nossos
costumes, nossa música, nossas canções, nossos artistas. Um filme brasileiro, falado e
cantado, feito no Brasil” (Cinearte, 2 de dezembro de 1931).

Coisas nossas é sempre citado como o primeiro sucesso do cinema sonoro


brasileiro. Paulo Emílio Salles Gomes o diz textualmente no Panorama do cinema
brasileiro (GOMES, 1986, p. 72). Hernani Heffner diz o mesmo, e situa o lançamento do
filme como o auge do processo de sincronização por discos, juntamente com Ganga Bruta,
posterior e que veremos mais à frente (RAMOS, MIRANDA, 2000, p. 519). Alex Viany
fizera referência a ele, cometendo o equívoco de afirmar que Noel Rosa fora o responsável
pelo samba-título (VIANY, 1959, p. 98). Tinhorão mais tarde lembraria que o filme é que
inspirou Noel Rosa a compor o samba, lançado em 1932, citando depoimento de
Almirante, companheiro de Noel no Bando dos Tangarás (TINHORÃO, 1972, p. 252).
113

Sérgio Augusto comenta a influência direta do sucesso de Melodia da Broadway e


de Acabaram-se os otários como elementos inspiradores de Coisas nossas (AUGUSTO,
1989, p. 87). Lisa Shaw e João Máximo fazem coro à idéia da inspiração no musical norte-
americano (SHAW, 2000, p. 106 e MÁXIMO, 2003, p. 121). João Luiz Vieira estabelece
outro ramo de filiação ligado ao filme ao colocar que Coisas nossas abriria caminho para a
posterior seqüência de filmes carnavalescos cariocas, quando da mudança de Downey para
o Rio de Janeiro (VIEIRA, 1987, p. 141). Wallace Downey, o diretor, um “norte-americano
esperto”, nas palavras de João Luiz Vieira, chegara a São Paulo em 1928, para ser diretor
artístico da Columbia Discos. Partindo para o cinema, associaria-se a Alberto Byington
Júnior, e levaria consigo o técnico de gravação Moacir Fenelon.
Sempre citado, embora dado como um dos inúmeros filmes perdidos da história do
cinema brasileiro, Coisas nossas foi por vezes alvo de especulações. Em 1995, ocorre um
fato inusitado. São encontrados no Rio Grande do Sul os discos com a trilha sonora do
filme, mas seguem não havendo vestígios de suas imagens.47 A gravação de sons e imagens
em suportes diferentes possibilitaria, mais de 60 anos depois, essa recuperação cindida,
parcial do filme. Assim, pode-se hoje fazer uma incomum descrição que prescinde
totalmente das imagens e precisa confiar apenas nos sons, e nas informações externas ao
filme, como textos sobre ele. A trilha sonora encontrada ratifica muitas dessas informações,
e faz contestar algumas outras. Sérgio Augusto comenta uma passagem na qual um
personagem, debaixo do chuveiro, cantaria Singin’ in the rain (AUGUSTO, 1989, p. 87).
Bernardet cita um apresentador que diria ser aquele filme feito por incompetentes, que o
fotógrafo seria cego, o técnico de som surdo, o que ilustraria o argumento seu da

“autodegradação implícita na paródia” (BERNARDET, 1991, p. 81-82). A trilha sonora,


como foi encontrada em 1995, não contem nem uma nem outra passagem. De fato, há, após
uma fanfarra que abre o filme, provavelmente a música dos créditos iniciais, um narrador.
Em seu texto, porém, não há autodegradação, mas tons de exaltação nacionalista, e a
explicação, também orgulhosa, do processo de sincronização, além da apresentação do
primeiro número musical:

47
Como um evento relacionado aos 100 anos do cinema, o Governo do Estado do Rio Grande do Sul lançaria
em cd a trilha sonora do filme. Os discos srcinais encontram-se no Museu de Comunicação Social Hipólito
José da Costa, em Porto Alegre.
114

Minhas senhoras e meus senhores, apresentamos hoje um filme genuinamente brasileiro,


em que não só os artistas que tomam parte são brasileiros, mas também a música e os
músicos são brasileiros. Muitas fitas são feitas tirando primeiro o filme e gravando depois o
som, ou gravando primeiro o som e tirando depois a fita. Mas este filme é feito pelo
processo verdadeiro, filmando e gravando o som simultaneamente, trabalhos feitos em
nossos estúdios, no Brasil. Agora, vamos apresentar Helena Brito de Carvalho, cantando
uma canção de Marcelo Tupinambá,Esse jeitinho que você tem. Senhora Helena.

A primeira canção do filme é uma modinha que traz, há um só tempo, uma


lembrança de raízes interioranas e a impostação da voz de um canto mais rebuscado, das
cantoras da metrópole. O refrão, “esse jeitinho que você tem, é o jeitinho de querer bem”
repetido algumas vezes, se destaca. Na seqüência, temos o primeiro dos esquetes encenados
por Procópio Ferreira e Batista Júnior, citados por Alex Viany, por Sérgio Augusto. Neste,
há uma terceira voz, aguda, destoante das outras duas, graves. Os três tentam ensaiar uma
serenata, para a namorada de um deles. Um violão e um “pistão” acelerados além da conta,
desafinados, fazem do ensaio uma piada. Uma segunda tentativa, mais desafinada ainda,
descamba para uma briga entre os três. Findo o esquete, mais um número musical. “Oh
minha Juracy, depois que isso acabar, oh Juracy, eu vou ficar com saudades de ti”, cantam
vozes masculinas em coro. A canção emenda em outra, na qual uma voz feminina 48,
impostada, acompanhada por uma viola, faz uma exaltação do interior:

E nas matas do sertão,


Canta e geme o sabiá,
Tristes mágoas de meu pobre coração,
Canta e chama o meu amor,
Que já não está

Mais uma música na seqüência, Tico tico no fubá, em versão instrumental. Ainda sem
intervalo, uma dupla caipira pergunta: “cadê meu galo, que cantou no meu canteiro? Galo
danado pra fazer mó balhureira, canta, canta a noite inteira, não deixa ninguém dormir”.
Após a seqüência de quatro músicas, novo esquete. Paraguassu é interpelado para, a
contra gosto, cantar “uma chorosa daquelas, para a freguesia. Aquela, por exemplo: ‘nunca
mais um verso meu terás, nunca mais, nunca mais’. Isso é bonito, meu irmão” diz o
requerente. Paraguassu, a princípio resoluto, capitula. Canta, a voz grave, a música pedida.

48
Os t extos que trazem informações sobre o elenco citam a participação de duas duplas caipiras. Sérgio
Augusto nomeia Calazans e Rangel. Tinhorão, Jararaca e Ratinho. Quanto às vozes femininas, além da
referida Helena Pinto de Carvalho, Zezé Lara, Corita Cunha, Stefânia Macedo. (AUGUSTO, 1989, p. 215 e
TINHORÃO, 1972, p. 283)
115

É aplaudido no fim. A apresentação acaba. “Tá muito bom, mas eu tenho o que fazer”, diz
um dos espectadores. A locação do esquete que se segue é uma barbearia. As conversas
entre o barbeiro e o cliente tematizam a política, ou a falta de interesse nela (“política? Ah,
não me interessa isso não”); o trabalho, ou a falta de interesse nele (“Ah, não dou para isso
não”), futebol. Há piadas de barbeiro. Alguém pergunta: “cadê o cachorro que estava
aqui?”. Dali a pouco, ouvem-se os latidos do cachorro. O quadro, mais uma vez, termina
em briga, com a alegação de que o barbeiro estragara o cabelo do cliente. Paraguassu volta
a aparecer cantando, acompanhado do violão:

Saudade,
Que fere mas não deixa cicatriz,
Saudade,
Deste bem que nos tortura,
E ao coração maltrata com doçura.
Vivendo cá no campo ou na cidade,
Se sofre a angústia imensa da saudade

Há, na seqüência, um monólogo sobre o mesmo tema. Conta uma história em que o sujeito
conhece a moça em uma festa de São João. Um ano depois, na mesma festa, casa-se com
ela. No próximo ano, estaria chorando a viuvez. No tempo presente, chora as lembranças.
A próxima musica parodia a própria dramaticidade com que a saudade vinha sendo tratada.
Uma dupla caipira canta:
Saudade,
A gente tem, mas não é muito.
Saudade,
A gente tem só dos defunto.
De quem foi e não volta para amolar,
A gente que precisa trabalhar

Segue um novo monólogo, repleto de ufanismo e de aliterações: “um pequeno,


religioso silêncio, para que de dentro dele levante, em um vôo leve, a verde voz do Brasil.
A verde voz do vento veloz varrendo a selva úmida, cantando de folha em folha”. A seguir,
uma voz feminina entoa a embolada “A rosa do bandalelê”, e emenda, anunciando “com
uma interpretação toda sua”, a próxima música, que denuncia:

Nego geme todo dia,


Nego panha de sangrar.
Folga nego
116

- Branco não deixa.


- Se vier, pau vai levar

No último esquete, uma viola introduz a conversa de dois caipiras. O longo


monólogo parece não sair do lugar: “como vai Janjão? Janjão? Morreu. E o Barnabé?
Também morreu. E a Januária? A Januária? Casou. Ô cumpadre! Então está bem feliz com
o marido...Casou, e morreu”. Resolvem, por fim, “cantar um samba”, com o sotaque
interiorano que atravessa o filme: “Eu num posso vê mulher, que fico todo arrepiado! Com
os óio correndo água, e o coração escangaiado”. Emendam um chorinho, que é a música de
encerramento.

2.2.2. A produção sonora carioca, primeiros resultados

Em um filme carregado com o modo de falar e de cantar do interior de São Paulo,

no qual as nossas coisas, mais do que nunca, estão identificadas com a raiz interiorana, os
ritmos cariocas do fim pareciam ser sintomáticos do próximo porto do diretor norte-
americano. Com o sucesso, Downey viria para o Rio de Janeiro, onde, mais tarde, a
associação com Adhemar Gonzaga seria fundamental para o prosseguimento da estreita
relação entre música popular e cinema, como veremos. Antes de nos determos sobre
Gonzaga, outro personagem parece ser fundamental para a adaptação ao sonoro em terras
cariocas: Paulo Benedetti, já citado pelas experiências sonoras anteriores, do longínquo
Transformista srcinal , de 1916, e do curta-metragem Bentevi, com Paraguassu, em 1927.
A experimentação do italiano no Rio de Janeiro deu-se em setembro de 1929, em seu
estúdio na rua Tavares Bastos, 153, no Catete. Benedetti faria uma série de curta-metragens
musicais com músicos populares. Almirante, citado por Tinhorão e por Sérgio Augusto,
lembrava, em 1963, de sua participação na empreitada. O Bando dos Tangarás gravaria
quatro músicas, dublando seus próprios discos para a câmera, entrando, assim, as imagens
em sincronia com as músicas pré-gravadas. Almirante, Noel Rosa, João de Barro e os
demais integrantes apareciam cantando, vestidos de sertanejos, as emboladas Galo garnizé
e Bole bole, o lundu Vamos falá do norte, e o cateretê Anedotas (TINHORÃO, 1972, p. 251
e AUGUSTO, 1989, p. 78). Por ocasião da exibição dos filmes em São Paulo, no mês
seguinte, Bernardet encontra, no Estado de São Paulo, menção a outros títulos: Café com
117

leite, cantado por Jararaca e Pinto Filho; Estoy boracho, “tango espanhol cantado por Lídia
Ramos”; Mary, valsa cantada pelo tenor Francisco Perri; Yayá e Jura, o sucesso de Sinhô,
cantados por Aracy Cortes; Deliciosa, “valsa cantada e tocada pelo príncipe do violão
Oswaldo Vianna”; Guerra aos mosquitos, “falado em português pelo artista cômico Pinto
Filho” (BERNARDET, 1979). É interessante como o conjunto de canções que ilustraram o
experimento de Benedetti, naquele fim de década de 1920, ainda compõe um quadro de
diversidade rítmica característica da cena musical carioca durante as duas primeiras
décadas do século XX, comentada no primeiro capítulo, por ocasião dos cantantes. Era,
ainda, um momento anterior ao processo que alçou o samba a, primeiro, manifestação
cultural carioca por excelência, e segundo, à condição de ritmo nacional. Há, nos filmes de
Benedetti, vestígios da duradoura convivência entre popular e erudito. Se nas primeiras
tentativas de sonorização, na primeira década do século XX, assistiu-se a um predomínio
da ópera européia, e mais tarde, à música fronteiriça entre o erudito e o popular dos
maestros que passaram das revistas de teatro para o cinema, nos filmes de Benedetti a
mistura continua a existir. Em meios às, como classificadas por Almirante, emboladas,
lundus, cateretês e sambas, há valsas e tangos. O cinema, nas primeiras tentativas de unir
músicas já existentes às imagens, parecia dar sua contribuição ao painel da famosa
diversidade de ritmos anterior à construção, homogeneizante, de símbolos culturais
nacionais, tentada na vindoura década de 1930, com o esforço centralizador do Estado
Novo.
Assim como Benedetti, o produtor Adhemar Gonzaga demonstrara, naquela
segunda metade da década de 1920, interesse pelo som no cinema. Fora a São Paulo, com o

próprio Benedetti assistir a Alta Traição. Como fruto da união entre os dois, mais o grupo
ligado a Cinearte, dá-se, em 1929, a realização de Barro humano, dirigido por Gonzaga,
produzido por Pedro Lima e Álvaro Rocha, fotografado por Benedetti. Barro humano é um
dos primeiros filmes brasileiros a ter composta para si uma trilha sonora específica para ser
tocada acompanhando a exibição. A partitura para orquestra ficaria a cargo do maestro
Alberto Rossi Lazzoli, e continha, segundo Lécio Augusto Ramos, indicações precisas por
parte de Gonzaga sobre a ambientação a ser sugerida (RAMOS, MIRANDA, 2000, p. 547).
João Máximo traz informação similar, destacando a sugestão de temas específicos para
personagens e ações (MÁXIMO, 2003, p. 128-129). Em 1929, Gonzaga viaja, pela segunda
118

vez, para os EUA. Dentre os interesses, o cinema sonoro, naquele momento já realizado
por lá, e alvo de primeiras tentativas e de especulações por aqui. Pedro Lima aguardava, no
Brasil, a volta de Gonzaga, bem como o veredicto sobre “o cinema de palavras” (Cinearte,
29 de setembro de 1929, apud GOMES, 1976, p. 348). Gonzaga escreveria de lá para
Humberto Mauro, dizendo: “vá preparando eletricidade, rádio, etc, pois o cinema falado
ficou mesmo” (apud GOMES, idem).
Em 15 de março de 1930, Gonzaga funda a Cinédia, situada em São Cristóvão. Sua
primeira produção ainda é um filme sem acompanhamento sonoro. Lábios sem beijos, que
teve a direção entregue a Humberto Mauro, depois de uma primeira versão inacabada
dirigida pelo próprio Gonzaga, era lançado, nas palavras de Alice Gonzaga, quando “o
filme silencioso vivia seus últimos tempos”. Estreava a 10 de novembro de 1930, no
Império, no Rio de Janeiro, e em fevereiro do ano seguinte, em São Paulo. De fato, mesmo
no Brasil, as experiências com o sonoro já estavam em curso. Pode-se dizer que o tardio
filme mudo parece necessitar do som que não possui. As primeiras cenas servem de
exemplo de uma forma de decupagem característica do período mudo, decupagem que o
sonoro simplificaria. Após os planos iniciais, que prenunciam um temporal no Rio de
Janeiro, vemos uma casa. De uma das janelas, canta um rapaz. De outra, uma jovem
desaprova o seu canto. A montagem paralela dos planos dos dois mostra o sujeito que
contorce todo o rosto, o maxilar, os lábios, no esforço de, por imagens somente, parecer
desafinado. A moça, por sua vez, parte de uma expressão assustada para o gesto de tampar
os ouvidos, fazer caretas de desaprovação. A falta do som e a necessidade de traduzir-se
para o discurso das imagens uma piada que seria sonora tornavam complexas as atuações e

a decupagem.
A segunda produção da Cinédia, Mulher, teria direção de Otávio Gabus Mendes, o
antigo colaborador de Cinearte em São Paulo. As filmagens começariam em 19 de Janeiro
de 1931. A estréia aconteceria em 12 de outubro, no Cinema Capitólio. O roteiro era
assinado por Gonzaga e Mendes. Humberto Mauro fazia as vezes de fotografo e de ator. O
filme foi sonorizado para a exibição. O responsável pela gravação dos discos foi Luis Seel.
A música, composta para o filme, ficou a cargo, mais uma vez, de Alberto Lazzoli. Tal
música, feita para estabelecer pontos de sincronismo com a imagem, entra e sai de acordo
com o corte das seqüências, simula sincronia com passos e com demais ações. O
119

funcionamento conjunto de imagem e música fica evidente, por exemplo, no plano detalhe
do violão no qual uma das cordas se rompe, ao que, na música, uma pausa brusca reforça o
rompimento. Tal uso da música pode ser percebido como exemplar de um momento de
passagem do mudo para o sonoro. Embora presente o tempo todo sobre as imagens, não é
mais simplesmente a música que acompanha os filmes sendo externa a eles, tocada por
músicos no momento da exibição, e que lograva criar vínculo com a projeção. Neste caso, a
união mais estreita com as imagens, pelos discos, e por ter sido composta para encaixar-se
nelas, possibilitava certo refinamento no sincronismo que constituiria um dos passos
necessários para a concretização do sonoro. A falta de diálogos, a opção apenas pela
sincronização da música, ainda em 1931, pode ser explicada pela conjunção dos modos de
entender a função do som por parte do diretor e do produtor. Mendes mostrara em Cinearte
não ser simpático ao filme falado. Gonzaga, na época, se alinhava aos partidários da
solução intermediária “sonoro sim, mas jamais falado”49.
O próximo filme do estúdio de Gonzaga seria o mais célebre dentre aquela
produção, e seria lembrado, com relação ao som, como uma experiência resolvida de forma
inconclusa. Ganga bruta, direção de Humberto Mauro, roteiro de Gabus Mendes,
fotografia de A.P. Castro, teve uma produção atribulada. O início das filmagens data de 2
de setembro de 1931. O filme, porém, só estrearia quase dois anos mais tarde, em 29 de
maio de 1933, no Alhambra. Essa demora foi crucial para a indefinição quanto ao
tratamento sonoro dado ao filme. Lécio Augusto Ramos e Hernani Heffner explicam que
“Ganga bruta foi concebido como um filme silencioso, que seria acompanhado por uma
trilha musical própria, gravada em discos e sincronizada durante a projeção (assim como

ocorrera com Mulher). Superada, porém, a rejeição inicial, o filme falado acabou se
firmando de vez no mercado brasileiro. Essa realidade se afirmou quando Ganga bruta já
estava quase concluído, mais ainda assim Gonzaga decidiu acrescentar algumas falas ao
filme, gravadas com o equipamento Vitaphone” (RAMOS, MIRANDA, 2000, p. 131). A
adaptação dos diálogos, de alguns ruídos e das músicas foi feita por Bichara Jorge. A
música foi composta por Radamés Gnatalli e Heckel Tavares. Gnatalli, já citado no
primeiro capítulo, como “pianeiro” nos cinemas de Porto Alegre e do Rio de Janeiro,

49
Declaração que consta do verbete sobre a Cinédia para aEnciclopédia do cinema brasileiro, redigido por
Lécio Augusto Ramos e Hernani Heffner (RAMOS, MIRANDA, 2000, p. 130-132).
120

estreava como compositor para cinema, iniciando uma carreira que seguiria até a década de
1980, com a música de Eles não usam black tie, de Leon Hirzsman (1981), e que inclui
pontos altos como Argila, do próprio Humberto Mauro (1940), Rio 40 graus (1954), A
falecida, também de Hirzsman (1964). São dele as partes orquestradas, o batuque que serve
de trilha sonora à briga no bar e a melodia de Teus olhos...água parada. Heckel Tavares
compôs a canção tema, com letra de Joracy Camargo, e os temas Coco de praia n.1 e Coco
de praia n.2. Tavares, alagoano de Satuba, faz parte do grupo de compositores que, como
Gnatalli, na década de 1920, criava um modelo musical que unia popular e erudito. Desde
1921 no Rio de Janeiro, teria passagem breve pelo teatro de revista. Ainda nos anos 20,
suas composições, como Suçuarana e Casa de caboclo , já traziam a marca do folclorista
que mais tarde percorreria o país, registrando motivos folclóricos e adaptando-os às suas
canções.
A adaptação forçada ao som foi alvo de críticas já na época, nas páginas de
Cinearte: “Ganga bruta não é um filme propriamente falado, mas não é silencioso: tem
ruídos, falas, músicas e melodias que exprimem situações e muitas são as cenas silenciosas
que falam mais do que a voz do Movietone” (Cinearte, 15 de abril de 1933 apud
GONZAGA, 1987, p. 40). Sobre o fato de um filme lançado em 1933 ainda trazer
indefinições sobre o uso do som, Paulo Emílio Salles Gomes afirmava, no Panorama do
cinema brasileiro, ser Ganga bruta “um belo exemplo de um cinema morto” (GOMES,
1986, p. 40). João Luiz Vieira diria que o filme “já estava completamente defasado com
relação à sua técnica sonora, falado apenas em alguns momentos e com ruídos que não se
aproximavam do padrão sonoro mais realista, já demonstrado nesse mesmo ano pelas

produções norte-americanas” (VIEIRA, 1987, p. 139).


De fato, a trilha sonora de Ganga bruta traz a confusão resultante da indefinição
quanto ao procedimento sonoro a ser usado. Há falas completamente ausentes; há legendas
em determinados momentos; dublagem por meio de discos, principalmente em frases
curtas, risadas ou quando os personagens estão longe da câmera ou de costas. Há alguns
poucos ruídos: o tiro disparado no crime que dá início à trama; o som do trem; dos martelos
da obra; da cachoeira. Há uma ou outra passagem de diálogos mais longos, mas durante
longos intervalos de tempo a música predomina, sem interferência de diálogos. A música
estabelece, em determinados momentos, relações mais estreitas com a imagem. Na
121

seqüência de abertura, a música de casamento faz uma pausa sincronizada com o plano
detalhe da mão da noiva. A pausa instaura assim, um instante de maior dramaticidade,
diferenciando este plano dos demais da seqüência. A festa na fazenda é acompanhada pelo
violão, em concordância com a imagem. Próximo ao fim, a Ave Maria que serve de trilha
sonora ao novo casamento começa com um arranjo de sinos, sobre os sinos na tela. Há uma
passagem em que a música deve ser mais claramente diegética, com uma personagem
cantando Taí, o sucesso de 1931 na voz de Carmem Miranda.
Ganga bruta nos parece ser o mais claro exemplo de um filme de passagem entre o
mudo e o sonoro. Esse período de passagem se estende, no Brasil, de 1929 até aquele 1933
em que os filmes ainda não haviam aprendido, completamente, a falar. Nos EUA, o período
de adaptação também existe, de 1926 a 1929, quando surgem os primeiros filmes falados
por inteiro. Curioso é que, tão tarde quanto em 1936, a idéia de um filme de passagem entre
o mudo o sonoro ainda se faz presente, no caso específico de O descobrimento do Brasil,
de Humberto Mauro. Sua trilha sonora, como sempre é comentado, traz grandes espaços
cobertos apenas por música, e algumas intervenções de ruídos e de palavras. Há ruídos, é
certo, já nos primeiros planos, do mar, mixados com a música, sobre as primeiras imagens
das caravelas. Há frases curtas, quando avistam Cabo Verde, por volta dos sete minutos de
projeção. Cabe ressaltar, nessa passagem, a liberdade em deixar algumas falas fora de
quadro. Há, mais à frente, a fala do padre que celebra a missa de Páscoa. Sons de pássaros,
quando avistam o Monte Pascoal, e os gritos do tripulante que enxerga a terra. Há as falas
dos índios, em tupi. O som dos machados que cortam as árvores, preparando a cruz a ser
usada na primeira missa.50 Antes do fim, mais uma voz, com a leitura de um trecho da carta

de Caminha, a ser enviada. Existe um momento, a cerca de 30 minutos de filme, no qual há


uma interessante opção pelo silêncio, que transfigura o riso dos portugueses, ausente, frente
ao primeiro contato com os índios. O resto é música. A suíte composta por Villa-Lobos
adquire diferentes funções no decorrer do filme: é chamada a acrescentar às imagens um
tom de suspense, no longo interlúdio marítimo que antecede a chegada ao Brasil; de
solenidade grandiloquente à primeira missa; a servir de trilha para a dança dos índios, à

50
Estamos nos referindo à cópia restaurada e remasterizada pelo CTAV, em 2002, processo durante o qual
foram acrescentados ruídos à trilha sonora srcinal, a cargo de Geraldo José. Entendemos que o tratamento
sonoro srcinal não incluía tal sonoplastia, repousando mais ainda sobre a música e as poucas falas. Mas, ao
mesmo tempo, nos é forçoso analisar o material ao qual tivemos acesso.
122

qual se unem os portugueses; e mesmo a mimetizar o que seria o som direto, quando
sonoriza o corneteiro em quadro.
O relativo insucesso dos primeiros filmes da Cinédia, por um lado, e o uso
insatisfatório da sincronização por discos, por outro, levariam Gonzaga a tomar novos
rumos, que seriam fundamentais para a compreensão do sucesso, tardio, do cinema sonoro
no Brasil. Jurandyr Noronha lembra que Gonzaga não acreditava no aparelho de Luis
Barros, o Sincrocinex, como uma solução, estendendo a mesma opinião ao Vitaphone. De
olho nas experiências com o som gravado na própria película, o Movietone, resolveria, por
fim, importá-lo (NORONHA, 2987, p. 258). Traz, assim, em 1932, um equipamento de
gravação ótica da marca Rico. Alice Gonzaga descreve a chegada, em 7 de dezembro, dos
últimos caixotes com “o mais moderno aparelho de gravação Movietone, adquirido em
agosto daquele ano (...) Terminada a montagem do aparelho de som, nele foi exibido um
teste de voz realizado em Hollywood, e um pequeno filme falado por Gilberto Souto,
correspondente de Cinearte, e Raul Roulien” (GONZAGA, 1987, p. 11). Alice Gonzaga
relata um caso interessante com respeito à chegada do Movietone: “No dia em que o
estúdio da Cinédia recebeu o aparelhamento para o cinema falado, deu-se um
acontecimento curioso na sala do escritório. Sem que ninguém tocasse nela, uma fotografia
de Chaplin desprendeu-se da parede e caiu no solo. Teria sido um protesto de Carlitos, o
grande artista do cinema mudo, ao estúdio brasileiro, por nos prepararmos para a era do
cinema sonoro? O caso tornou-se o assunto do mês” (idem, ibdem).
Sobre os novos rumos tomados por Gonzaga em direção a um cinema mais popular,
falaremos um pouco mais à frente. A primeira produção da Cinédia a testar os sons

gravados na própria película foi o curta-metragem Como se faz um jornal moderno,


documentando, como informa João Luiz Vieira, “as novas máquinas rotativas utilizadas
pelo jornal carioca A nação (VIEIRA, 1987, p. 140). A voz do carnaval, dirigido por
Adhemar Gonzaga e Humberto Mauro, estrearia em 6 de março de 1933, na semana
seguinte aos festejos do título. O texto organizado por Alice Gonzaga resume a mudança
técnica: “Não há música encaixada por meio de discos, nem barulhos simulados, mas o
autêntico som dos festejos, apanhados e gravados diretamente. Primeiro carnaval com som”
(GONZAGA, 1987, p. 42). A voz do carnaval alternava essas cenas, gravadas durante a
festa na rua, com partes encenadas. O rei momo, interpretado por Palitos, chega ao Rio de
123

Janeiro, desembarcando na Praça Mauá. É aclamado pelo povo, desfila pela Avenida Rio
Branco, é entronizado, e resolve fugir, para ver o carnaval. A história é entremeada com
números musicais. Carmem Miranda canta com Lamartine Babo Moleque indigesto, do
próprio Lamartine, e Good-bye, boy!, de Assis Valente.51 Lamartine canta Linda morena,
também de sua autoria. Ai, hein? e Boa bola são outras músicas suas presentes no filme.
Fita amarela , de Noel Rosa, É batucada, de João Luis de Morais, entre outras, formam o
conjunto de canções, os sucessos do carnaval daquele ano.
A primazia da Cinédia em lançar “o primeiro carnaval com som” é posta em
questão pelo lançamento, na quarta-feira de cinzas de 1933, primeiro de março, de O
carnaval cantado de 1933, produzido por Vital Ramos de Castro. Sérgio Augusto reproduz
o anúncio do Jornal do Brasil que faz a propaganda do som direto:

“Pela primeira vez no Brasil, o carnaval gravado em filme com todos os seus ruídos:
Carnaval de 1933. O primeiro filme falado e cantado pelo sistema Movietone (o som
gravado no próprio filme) feito sobre o carnaval.” (Jornal do Brasil, 2 de março de 1933
apud AUGUSTO, 1989, p. 89)

Bernardet encontra em O Estado de São Paulo anúncio similar, informando sobre a


estréia paulista, uma semana depois da carioca. Além de mencionar o Movietone, o texto
convida o leitor a “ouvir mais uma vez as deliciosas canções do carnaval de 1933. Os
ranchos, os cordões e os blocos. Todos os sambas, canções e marchas de maior sucesso.
Grande e retumbante batucada de caixas na avenida, em despedida ao Deus da Folia”
(BERNARDET, 1979).
A mesma empresa lançara, um ano antes, O carnaval cantado de 1932, anunciado

como “todo sincronizado”, ainda em discos, pelo Vitaphone. O filme marca a estréia de
Carmem Miranda no cinema. O ano anterior havia sido de grande sucesso para Carmem no
rádio. A carreira que começara em 1929 ganhara grande impulso no carnaval de 1931,
graças à gravação de Pra você gostar de mim (Taí) , de Joubert de Carvalho. Ligado a V.R.
Castro estava Fausto Muniz, lembrado por Jurandyr Noronha e por Sérgio Augusto. Muniz
tivera seu primeiro contato com o cinema na função de motorista particular de Luis de

51
A gravação para o filme deMoleque indigesto foi, há pouco, lançada comercialmente, compilada no cd
Cinema musical brasileiro, de 2004, projeto e pesquisa de Carlos Alberto Sion. A gravação mostra Lamartine
Babo cantando em dupla com Carmem Miranda, o que retifica a informação corrente de que a interpretação
era de Carmem sozinha.
124

Barros, mas já em Acabaram-se os otários trabalhava como auxiliar de laboratório.


Interessado por fotografia e pelas primeiras experiências com som, conhecedor das
pesquisas com o Movietone, construiria em casa um gravador ótico de processo semelhante
àquele (NORONHA, 1987 e AUGUSTO, 1989, p. 90). Apelidado de Munizotone, o
aparelho seria testado em filmagens de números musicais de Aracy Cortes e Vicente
Celestino, em 1932, na Cine-Som, de Muniz e Cia. (TINHORÃO, 1972, p. 284).
Se com o Movietone a gravação sonora na própria película tornava inquestionável a
junção de sons e imagens, solucionando de vez o problema do sincronismo, até então
instável, com a gravação em discos, o novo processo também forçava uma inevitável
separação de funções no set de filmagem. Se antes, com os discos, o responsável pela
gravação podia atuar separado da captação das imagens, a partir daquele momento, como
coloca Hernani Heffner,

“a obrigação de gravar os sons in loco e a impossibilidade de uma remixagem destes


mesmos sons determinaram
isto é, o microfonista, duas funções
e a do registro, básicas:
efetuada a daprofissional
por um captação, efetuada boom-man,
peloinicialmente
apresentado
como técnico de som, na verdade o técnico de gravação, que nesse momento se ocupa
52
também de uma proto-mixagem” (RAMOS, MIRANDA, 2000, p. 535).

Na Cinédia, assumiria o posto de microfonista Hélio Barrozo Netto, filho do


compositor erudito Barrozo Netto. Trabalharia na função entre 1935 e 1937, de Alô alô
carnaval até Samba da vida, de Luis de Barros. A. P. Castro, que fora assistente de câmera
em Mulher e fotógrafo de Ganga bruta, A voz do carnaval e Alô alô Brasil passaria a
técnico de som, a partir de 1934. Castro foi o técnico de som de uma co-produção da
paulista Íris Film com a Cinédia, Honra e ciúmes, dirigida e produzida por Antonio
Tibiriçá, que ainda atuaria no filme, no papel de um advogado, e seria o intérprete de um
dos números musicais, a valsa Te amei, de Giacomo Perce. O barítono Leandro Freitas
cantava uma ária de O barbeiro de Sevilha (GONZAGA, 1987, p. 43). Bernardet encontra

52
A questão da falta de mixagem demoraria a ser solucionada. Hernani Heffner informa que em 1939 a
Cinédia importava uma mesa de dois canais RCA, o que possibilitava, pela primeira vez, a superposição de
dois sons gravados separados. Pureza, de Chianca de Garcia, seria o primeiro filme a apresentar uma nova
saída técnica, ao superpor aos diálogos uma música de fundo. A Atlântida passaria a década de 1940 presa a
um sistema ainda mais precário, fazendo passar pela moviola um segundo canal de som, que poderia ser
mixado aos diálogos. A situação só chegaria a bom termo no fim da década de 1940, com a chegada ao Brasil
de Howard Randall, que havia sido técnico de som de John Ford. Randall traz consigo uma mesa de oito
canais RCA, que mais tarde iria para a Maristela, e depois ainda, para a Atlântida. (RAMOS, MIRANDA,
2000, p. 520)
125

o anúncio do filme, que dava a ênfase ao fato de ser “falado, cantado e sem letreiros”.
Estreava em 3 de julho de 1933 em São Paulo, com boa distribuição, no Alhambra, no
Astúrias, no São José e no Santo Antonio.
Deve-se notar que, já naquele nascimento das funções de técnico de som e de
microfonista, o perfil dos dois técnicos citados é paradigmático da formação (ou da falta
dela) dos profissionais de som para cinema no Brasil. O microfonista Hélio Barrozo Netto
não tinha experiência em cinema. Havia sido, como informa Hernani Heffner, figurante em
Estudantes, e, na seqüência, fora alçado à função. Se não trabalhara com cinema, tinha
ligação com música, o que estabelecia uma ponte possível para o trabalho com som. A. P.
Castro vinha da experiência com fotografia, e servia à nova empreitada por ser um técnico
de qualidades reconhecidas. A falta de formação de profissionais de som, aceitável naquela
primeira situação, se tornaria, porém, uma constante pela história do cinema brasileiro.
Fora a co-produção Honra e ciúmes, feita com o Movietone graças à parceria com a
Cinédia, alguns filmes paulistas da mesma época davam as últimas chances à sincronização
por discos. O pouco citado A canção da primavera, da pequena Alfa Programa, era
anunciado no Estado de São Paulo como “falado e sincronizado em São Paulo. Veja e ouça
A canção da primavera. Canções que a gente ouve, entende e não esquece”. Ficaria em
cartaz no Alhambra na semana de 13 a 19 de março de 1933. Mais conhecido, O caçador
de diamantes, de Vittorio Cappelaro, contava com música srcinal de Oldemar de Amaral
Gurgel, o Gaó, e a gravação em discos ficava a cargo de A. Marcondes Machado e
Lamartine Fagundes, feita com a aparelhagem da Byington e Cia. Estreava no cinema da
Paramount em São Paulo a 25 de janeiro de 1934, com notícia de exibições até julho.

(BERNARDET, 1979).

2.2.3. A relação com a música popular, sucesso do sonoro

A voz do carnaval pode ser tomado como uma aproximação da empresa de


Adhemar Gonzaga com um cinema mais popular, que daria resultados de público melhores
que os das suas primeiras produções. O passo definitivo nessa direção, porém, viria na
seqüência. Em 1934, Gonzaga se associa à Waldow Filmes, a empresa de Wallace
126

Downey, já no Rio de Janeiro. Três musicais nascem dessa parceria, os sempre citados Alô
alô Brasil (1935), Estudantes (1935) e Alô alô carnaval (1936). Hernani Heffner informa
que Downey trazia consigo um novo equipamento de gravação de som ótico, da marca
RCA, que daria resultados mais satisfatórios do que o utilizado pela Cinédia até então
(RAMOS, MIRANDA, 2000, p. 520).
Alô alô Brasil, dirigido por Downey e produzido por Gonzaga, tinha como
técnico de som Charles Whalley. Estreava no Alhambra, no Rio de Janeiro, em 4 de
fevereiro de 1935, e em São Paulo, na sala vermelha do Odeon, no dia 11, uma semana
depois. Não por coincidência, o lançamento acontece às vésperas do carnaval, como nota
João Luiz Vieira. O cartaz reforça a estratégia: “a avant-première do carnaval de 1935.
Vamos ouvir o maior repertório de musicas carnavalescas cantadas pelos ases do nosso
rádio”.53 João Luiz Vieira comenta que Alô alô Brasil consolidava “a presença do rádio no
cinema brasileiro, através não só da saudação característica ‘alô’, mas principalmente pela
constelação de astros e estrelas do rádio e do disco” (VIEIRA, 1987, p. 142). Tinhorão
desenvolve argumento semelhante, ao afirmar que com Alô alô Brasil a Cinédia fazia “com
o rádio da primeira metade da década de 30 o mesmo que a televisão fez com o rádio 25
anos depois” (TINHORÃO, 1972, p. 254).
O elenco e as canções são conhecidos, tendo sua listagem reproduzida pelos textos
que trabalharam sobre o filme. Alex Viany (1959), Tinhorão (1972), João Luiz Vieira
(1987), Alice Gonzaga (1987), Sérgio Augusto (1989), citam, entre outras canções:
Rasguei minha fantasia, de Lamartine Babo, interpretada por Mário Reis; Foi ela, de Ary
Barroso, por Francisco Alves; Cidade maravilhosa, de André Filho, por Aurora Miranda;

Deixa a lua sossegada, de João de Barro e Alberto Ribeiro, por Almirante e o Bando54da
lua. Fechava o filme Primavera no Rio, de João de Barro, na voz de Carmem Miranda. A
qualidade do som gravado no novo equipamento, recém trazido por Downey, seria elogiada
por Alfredo Sade em A batalha, de 7 de fevereiro de 1935: “o que de início surpreende
nesse celulóide brasileiro é a perfeição e a nitidez do som, o qual, principalmente nas cenas
de interiores, rivaliza com os das melhores produções estrangeiras” (apud GONZAGA,

53
Reproduzido por Piper em Filmusical brasileiro e chanchada. (Rio de Janeiro: Global, 1977, p. 66)
54
As gravações para o filme deDeixa a lua sossegada e de Primavera no Rio também estão reproduzidas no
cd Cinema musical brasileiro, citado anteriormente, assim comoLinda Mimi, por Mário Reis, emEstudantes
e Pierrot apaixonado, por Joel e Gaúcho, emAlô alô carnaval.
127

1987, p. 44). Note-se aqui a eterna necessidade de comparar tecnicamente a qualidade do


cinema feito no Brasil com o que vem de fora, notadamente o norte-americano. A questão
do cinema importado como padrão técnico de qualidade perpassa, como se sabe, a história
do cinema brasileiro, e será comentada com mais vagar no próximo capítulo. A divulgação
do filme traz ainda a informação de um complemento às sessões paulistas, as Procopiadas,
“dois impagáveis monólogos de Procópio Ferreira” (BERNARDET, 1979).
Impulsionados pelo sucesso de Alô alô Brasil, em 8 de julho do mesmo ano a
Waldow e a Cinédia já estreavam, no Alhambra, a sua nova parceria, Estudantes,
novamente dirigido por Downey e produzido por Gonzaga. O som, dessa vez, ficaria a
cargo do já experiente Moacir Fenelon. A história, Carmem Miranda disputada pelos
apaixonados Mesquitinha e Barbosa Júnior, porém, interessada mesmo em Mário Reis,
alinhavava os números musicais, citados pelos pesquisadores do período, como os de Alô
alô Brasil. Destaque para Linda Mimi, de João de Barro, interpretada por Mário Reis; Onde
está o seu carneirinho , de Custódio Mesquita, por Aurora Miranda; Assim como o Rio, de
Almirante, interpretada pelo próprio; E bateu-se a chapa, de Assis Valente, por Carmem
Miranda. Em A batalha, Alfredo Sade elogiava Estudantes como fizera com Alô alô Brasil,
destacando “a mesma boa fotografia e o mesmo magnífico som do primeiro filme” (apud
GONZAGA, op. cit. p. 45).
Sérgio Augusto e Alice Gonzaga não deixam esquecer uma produção musical
menos comentada, parceria da Cinédia com a Régia film. Produzida por Sebastião Santos,
direção entregue a Luis de Barros, Carioca maravilhosa era uma comédia musical sem o
peso do elenco de estrelas do rádio. Começara a ser filmado em 11 de março de 1935, mas

só seria exibido no Rio de Janeiro em 11 de julho de 1936, no Cinema Íris. Antes, porém,
fora exibida em Buenos Aires, ainda em 1935, durante uma visita de Getúlio Vargas à
capital argentina (AUGUSTO, 1989, p. 92 e GONZAGA, 1987, p. 45).
A terceira parceria de Downey e Gonzaga faria sucesso maior do que as anteriores.
Em 20 de Janeiro de 1936, estreava, mais uma vez no Alhambra, Alô alô carnaval . Neste,
Gonzaga assumiria a direção. Downey aparece creditado somente como produtor. O som
fica a cargo, novamente, de Fenelon, que ainda divide a montagem com A. P. Castro. Helio
Barrozo Netto, como já dissemos, seria o microfonista. João Luiz Vieira chama a atenção
para a estrutura das seqüências musicais entremeadas por um “fio narrativo”, que incluía
128

piadas, esquetes interpretados por Pinto Filho e Barbosa Júnior às voltas com um
empresário, Jaime Costa, para o qual tentam vender a idéia de uma revista. (VIEIRA, 1987,
p. 146) Entre outras canções, Mário Reis interpreta Cadê Mimi; Joel e Gaúcho, Pierrot
apaixonado, de Noel Rosa e Heitor dos Prazeres; Dircinha Batista, Pirata da areia, de João
de Barro e Alberto Ribeiro; Francisco Alves, Manhã de sol, dos mesmos autores; Aurora e
Carmem Miranda fecham o filme com Cantores do rádio, de João de Barro, Alberto
Ribeiro e Lamartine Babo. O cartaz, também reproduzido por Piper, não disfarça o
destaque dado a Carmem Miranda, personagem central, dentre o time de estrelas do rádio,
para o sucesso daquelas produções (PIPER, 1977, p. 70). Em A noite de 17 de Janeiro de
1936, Raymundo Magalhães Júnior elogia “o som puro e a fotografia luminosa”,
mantendo-se os afagos feitos pela imprensa carioca “ao apuro técnico dos filmes
anteriores” (apud GONZAGA, 1987, p. 48).
As co-produções da Waldow Film com a Cinédia cristalizam um momento no
qual a relação próxima da música popular com o cinema sonoro brasileiro foi o principal
artífice do sucesso do último. Lécio Augusto Ramos e Hernani Heffner comentam que se o
musical carnavalesco não nasceu na Cinédia, “foi no estúdio de Gonzaga que adquiriu sua
forma definitiva” (RAMOS, MIRANDA, 2000, p. 131). João Luiz Vieira afirma que “a
inovação do som permitiu a visualização das vozes de cantores e cantoras já populares no
disco e no rádio, ao ritmo de sambas e marchinhas inscritos, por sua vez, no universo maior
do carnaval” (VIEIRA, 1987, p. 141). A importância da união entre música e cinema
provocada por aqueles filmes é defendida por João Luiz Vieira também em textos mais
recentes, nos quais o pesquisador expande o argumento, afirmando mesmo tratarem-se

aquelas produções de “uma espécie de rádio falado”, e ressaltando a mudança da relação do


espectador com a música e com as canções, já que aqueles musicais de carnaval “permitiam
a fruição visual dos corpos dos cantores e cantoras do rádio” 55. Em outro texto, João Luiz
Vieira diz que “a impressão geral era a de que, de olhos fechados, o espectador poderia
perfeitamente estar sentado à frente de um rádio” (VIEIRA, 2003, p. 48). No texto de 1987,
A chanchada e o cinema carioca, João Luiz Vieira entendia aquele grupo de filmes como o
embrião da chanchada carioca das décadas de 1940 e 1950, ao afirmar que “a união entre o

55
Citamos o texto de apresentação do Encontro com o cinema brasileiro que a propósito da exibição de
Apolônio Brasil, o campeão da alegria, de Hugo Carvana, tematizou os musicais, no Centro Cultural Banco
de Brasil, de 18 a 23 de maio de 2003.
129

cinema e a música brasileira, identificada para sempre com o cinema que se fez no Rio de
Janeiro, possibilitou a sobrevivência e garantiu a permanência do cinema brasileiro nas
telas do país” (VIEIRA, 1987, p. 141). Em O corpo popular, a chanchada revisitada, ou a
comédia carioca por excelência uma possível árvore genealógica da comédia carioca
estende-se até os cantantes, analisados no primeiro capítulo, e os “carnavais cantados” da
década de 1910 (VIEIRA, 2003, p. 46-47).
O que nos interessa na interseção do momento da década de 1930 com aquele
analisado no capítulo 1 é a consonância da relação entre música popular e cinema,
entendida como o principal elo daqueles filmes com o público em ambos os momentos. Se
nas situações anteriores, como dissemos, a pluralidade de ritmos presentes no Rio de
Janeiro se fez refletir nas telas, naqueles anos de 1935 e 1936 a hegemonia da qual o samba
começava a desfrutar também transpareceria nos filmes. Se a Rádio Nacional passava a
levar a música carioca para os quatro cantos do país; se as vozes das cantoras do rádio,
corporificadas em Alô alô carnaval, percorriam o mesmo espaço; se Getúlio Vargas levava
sambistas exponenciais para tocar em recepções a líderes estrangeiros no Palácio da
República; se o samba trilhava um caminho que deixava para trás suas raízes rurais para
tornar-se produto de consumo da classe média da zona sul do Rio; se para isso passava a
ser cantado por brancos, com a primazia de Mário Reis, apadrinhado por Sinhô; se passava
a ser composto por brancos de classe média, da Vila Isabel, de Ubá, Minas Gerais; não
seria nas telas de cinema que esse espaço não haveria de ser conquistado.56
Após Alô alô carnaval, disfaz-se a parceria de Downey e Gonzaga. O norte-
americano seguiria no Rio de Janeiro. Sua Sonofilmes continuaria produzindo musicais, os

mais famosos a “trilogia de frutas tropicais”, apelido dado por João Luiz Vieira a Banana
da terra (1938), Laranja da China (1939) e Abacaxi azul (1944). Na Cinédia merece
destaque a produção de musicais delegados a Luís de Barros, já em terras cariocas. Dentro
de sua característica de filmagens relâmpago são realizados O jovem tataravô, lançado em
1936, Samba da vida, em 1937 e Tereré não resolve, em 1938. Este último mistura sobras

56
Para o processo de legitimação social do samba ver VIANA, Hermano.O mistério do samba. Rio de
janeiro: Jorge Zahar/UFRJ, 1987. Note-se que essa “ascensão social” não tira do samba a força de uma
manifestação cultural popular que surge, dentre outros fatores, da migração dos negros vindos do decadente
Vale do Paraíba para os arredores do Estácio, da Praça Onze, de Madureira. Estaríamos delegando pouca
importância para a força intrínseca da própria manifestação popular se imputássemos toda a força de sua
popularização aos poderes do Estado.
130

de filmagens de Samba da vida com cenas documentais do carnaval daquele ano. Destaque
em Tereré não resolve para a marchinha Seu condutor, de Herivelto Martins, cantada no
filme por Alvarenga e Ranchinho. Não deve ser esquecido que em O jovem tataravô há
uma experiência seminal de gravação de som direto em externas, assunto que abordaremos
longamente no próximo capítulo, por conta da leveza do Akeley Recorder recém-importado
pelo Cinédia, “o som moderno até então existente”, como lembra Alice Gonzaga.
(GONZAGA, 1987, p. 48) Verdade que a presença dessas cenas externas com som captado
no local é discreta no filme. O som direto mais uma vez ficara a cargo de A.P. Castro.
Ainda nos anos de 1935 e 1936, outra produtora carioca realizaria filmes nos quais a
música tem papel central. Falamos da Brasil Vita Filme, de Carmem Santos, com Favela
dos meus amores e Cidade mulher, ambos dirigidos por Humberto Mauro. No primeiro,
Sinhô, estrela do samba na década de 1920, era personagem, vivido por Armando Louzada.
No elenco, Silvio Caldas, Jaime Costa e a própria Carmem Santos. Ficaram famosos os
elogios de Alex Viany ao filme, por se constituir, segundo ele, “a coisa mais séria dos
primeiros anos do cinema sonoro, mas também por seu sentido popular” (VIANY, 1959, p.
108). Cidade mulher trazia, agora sem engano, canção-título de Noel Rosa, e demais
composições suas e de Assis Valente.
Dentre a produção paulista, dois filmes de 1935 também estão envoltos na relação
com a música popular e com o rádio. O anúncio de O Estado de São Paulo para Fazendo
fitas, de Vittorio Cappelaro, destacava o fato do filme conter “as nossas melhores canções”
e “todos os ases do rádio paulista”. Agripino interpretava a Canção do jornaleiro ;
Alzirinha Camargo, Você o disse; Januário de Oliveira, Coração; Tibiriçá, o Hino a São

Paulo. Cabocla bonita, de Pacheco Filho e J. Vanderley, com música de H. Vogeler, era
anunciado pelo mesmo jornal como “a primeira opereta nacional”, e noticiava: “Ouvireis
em nosso idioma as mais gostosas piadas pela dupla João Martins e Drummond Filho. A
alma lírica do nosso povo, vibrando nos desafios do sertanejo brasileiro. Nossa música!
Nossas canções! Nossa gente!” (BERNARDET, 1979). Ecos, em 1935, do nacionalismo
temeroso do sucesso das palavras em língua estrangeira projetadas nas telas, e, como em
Coisas nossas, da valorização do interiorano como símbolo maior das srcens nacionais,
seja lá o que o termo possa significar.
131

Questões espinhosas como nacionalismo e identidade nacional à parte, cabe


ressaltar, como último apontamento deste capítulo, que a relação de proximidade da música
popular, e mesmo do rádio, nos primeiros tempos do cinema sonoro deu-se no Brasil como
em vários outros países. Não é difícil desenhar um mapa dos anos iniciais do cinema
sonoro no qual a relação com as músicas nacionais marca pontos de convergência entre o
Brasil e, pelo menos, Portugal, Argentina, Cuba, México.

2.3. NO BRASIL COMO EM OUTROS PAÍSES

Portugal assistia, em 1930, à primeira exibição de um talkie norte-americano,


Sombras brancas nos mares do sul. No ano seguinte, estreava em 18 de junho, no São Luis,
a primeira produção portuguesa falada, A severa , de Leitão de Barros. Luis de Pina

comenta a função da música, que marca uma bipartição entre momentos de alegria, nas
cenas ambientadas entre ciganos e “gente do povo”, como é o caso do Solidó do Timpanas
Boleeiro, e de melancolia, como é exemplo O fado da Severa. A Severa em questão é
Maria Severa, a protagonista, interpretada por Dina Moreira. A exibição de A severa em
Lisboa foi precedida em alguns meses por uma versão para o português de um filme falado
em inglês. Rodado na França, nos estúdios da Paramount em Joinville, dirigido pelo
brasileiro Alberto Cavalcanti, A canção do berço estreava ainda em 1930, a 22 de
dezembro.
Pina coloca o êxito de A severa como fator preponderante para a fundação, em
1932, da Companhia Portuguesa de Filmes Sonoros Tobis Klang Film, uma associação
lusitana com a casa berlinense. Estreava em 7 de novembro de 1933, no mesmo São Luis, A
canção de Lisboa, dirigido por Cottinelli Telmo (PINA, 1986, p. 72-73). Luis de Pina e
Lisa Shaw percebem em A canção de Lisboa o embrião daqueles filmes que seriam, mais
tarde, agrupados sob o nome de “comédias à portuguesa”. Luis Reis Torgal as define como
“uma série de filmes a qual tinha como palco privilegiado a música portuguesa (o fado, ou
a música ligeira ou a música folclórica) sem se encontrar obrigatoriamente na categoria de
filme musical” (TORGAL, 2000, p. 25). Exemplos conhecidos de comédias à portuguesa
são O pai tirano, de Antônio Lopes Ribeiro (1941); O pátio das cantigas, produzido pelo
132

mesmo, e dirigido por seu irmão, Francisco Ribeiro (1943); O costa do castelo (1943) e A
menina do rádio (1944), ambos de Arthur Duarte. Lisa Shaw lembra que a trilha musical de
O pátio das cantigas compunha-se de fados, de músicas portuguesas “que não são fados”,
de música espanhola e de três sambas (Camisa amarela, de Ary Barroso, sendo um deles).
O personagem interpretado por Antonio Silva recebe uma caixa de discos brasileiros. Shaw
lembra que o samba está presente também, por exemplo, em A revolução de maio, de 1937,
filme exaltação do regime de Salazar. Shaw comenta que a incorporação da cultura
brasileira servia ao ufanismo do período salazarista, pois se encaixava na idéia de um
lusitanismo ultramarino, do alcance além-mar de uma certa identidade pan-lusitana, de um
Portugal grande, que unia o Atlântico.57
Lisa Shaw e Paulo Jorge Granja comentam que em O pátio das cantigas a aceitação
do fado versus sua marginalização é tematizada na discussão entre o personagem de, mais
uma vez, Antônio Silva e o de Amália Rodrigues. O primeiro protesta contra a cantoria de
fados no tranqüilo pátio: “Fadistas! Só gostam da música reles acompanhada à guitarra.
Ignorantes. Não sabem apreciar a música clássica, nem a ópera, que é a música mais
apropriada para operários”. Ao que a segunda responde, cantando: “Há muita gente que não
sente e acredita, que esta canção portuguesa, é com certeza a mais bonita” (in: TORGAL,
2000, p. 204-207). Shaw ressalta que a discussão sobre o fado e sobre o seu papel naqueles
filmes, está ligada ao aumento do espaço dado a ele a partir dos anos 30, o que acaba por
formar uma ligação daqueles filmes com o rádio. Como já vimos, a frase acima se aplicaria
ao caso brasileiro, se trocássemos a palavra ‘fado’ pela palavra ‘samba’. O que estamos por
ver é que se trocássemos ainda ‘fado’ ou ‘samba’ por ‘tango’, a sentença descreveria o caso

argentino.
Sérgio Augusto e Paulo Paranaguá comentam a influência do rádio argentino sobre
o início do cinema falado. Paranaguá lembra que já na década de 1920, o tango, ainda
marginal (como era, no Brasil, o samba, na mesma época), encontrava espaço nas salas de
cinema, como música de acompanhamento. Desde 1924 havia sextetos nas salas da Calle
Lavalle, “a cinelândia de Buenos Aires”, nas palavras de Paranaguá. Em uma dúzia de

57
As observações de Lisa Shaw estão sendo citadas a partir de uma palestra sua intitulada Comédias
cinematográficas portuguesas dos anos 40 e 50 e a conexão trans-atlântica brasileira, realizada em 2003 no
Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense.
133

cinemas, diz ele, “podiam ser encontradas figuras proeminentes da música portenha”, que
chamavam o público para os filmes.
A analogia com a situação carioca, em que músicos eruditos e populares
apresentavam-se nas salas de espera, é evidente. A proximidade entre as primeiras
experiências sonoras no Brasil na Argentina fica mais evidente com o relato da associação
do produtor Federico Valle com Carlos Gardel para filmarem uma série de dez curta-
metragens cantados, que seriam os primeiros testes com a gravação de som ótico, em 1929,
como fizera Benedetti, no Rio de Janeiro, no mesmo ano, só que com os discos. Gardel
ocuparia papel de destaque no período inicial do cinema sonoro, ao rodar cerca de dez
filmes falados para a Paramount, nos EUA e na França (exemplo dessa produção é El dia
que me quieras, dirigido por John Reinhardt, em 1935 em que a canção título toca várias
vezes, com variados arranjos e funções; Tango Bar, do mesmo ano, em que o sucesso Por
una cabeza também tem espaço e funções consideráveis).
O aproveitamento das estrelas do rádio também seria a tônica dos primeiros
sucessos do cinema sonoro argentino. Tango, dirigido por Luis Moglia Barth, em 1933, é
descrito por Paranaguá como “um simples desfile de orquestras e de cantores”, de forma
análoga à idéia do fio narrativo que amarrava os números musicais nos nossos Alô alôs. A
ligação do cinema argentino com o rádio tornar-se-ia explícita quando do surgimento da
Lumiton, produtora destinada a fazer filmes musicais, fundada por pioneiros do rádio
argentino. Paranaguá comenta que naquela conjuntura observava-se um crescimento da
produção como nunca houvera antes, e como, até o lançamento de seu texto, em 1984,
tampouco haveria. Na esteira de Tango, viriam Ídolos de la radio, de Eduardo Moreira

(1934), Calles de Buenos Aires (1933), Manãna es domingo (1934), ambos de Negro
Ferreyra. A relação com o rádio e com as canções é óbvia. Paranaguá comenta que títulos
de filmes copiavam os das músicas e vice-versa (PARANAGUÁ, 1984, p. 41-44). Sérgio
Augusto lembra que a associação entre os dois meios seguiria pela década de 1930 afora.
Radio bar, de Manuel Romero, de 1936, seria um exemplo dessa continuidade
(AUGUSTO, 1989, p. 69). A Lumiton, produtora da primeira hora do cinema sonoro
argentino fôra fundada por oriundos do rádio. Seu primeiro filme, Los tres berretines, de
direção coletiva, mistura tango e futebol em uma franca tentativa de cinema popular. Luis
Sandrini interpreta um compositor atrapalhado, que não consegue cantar, embora assovie
134

bem as melodias que compõe. Caso de filme que copia o título de uma canção de sucesso
ocorre também no Chile. O estudioso da música popular Juan Pablo González lembra que o
incipiente Canción de amor, ainda sonorizado com discos, de 1929, é homônimo do êxito
de Ernesto Lecuona. Norte y sur, de 1934, primeiro sucesso do cinema sonoro chileno, com
distribuição nacional e internacional, seria também o papel inicial no cinema da estrela da
canção Hilda Sour, que mais tarde trabalharia ainda em filmes argentinos e mexicanos.
(GONZÁLEZ, ROLLE, 2005, p. 247-255)
Paranaguá lembra que a forte relação entre cinema e rádio pode ser aferida na
produção de outros países da América do Sul. Cita o aproveitamento de vedetes do rádio no
cinema peruano, no uruguaio ( Radio candelario, de Rafael Jorge Abelda, de 1938, seria um
exemplo), além de Cuba. Na ilha, a música local seria um dos motores da tardia passagem
para o sonoro. São exemplos, óbvios já pelos títulos, Cancionero cubano, de Jaime
Salvador, de 1939, e Siboney, de Juan Orol, do mesmo ano, com a estrela Maria Antonieta
Póns (PARANAGUÁ, 1984, p. 60-61). Antes dos longa-metragens, as primeiras
experiências em filmes curtos já trariam a marca da música popular. Em agosto de 1938, El
srcen de la rumba seria uma dos primeiros resultados do cinema sonoro cubano. Naqueles
anos das primeiras produções, a ilha convivia com a disputa pelo mercado exibidor de
filmes sonoros. Produções norte-americanas e européias arrebatavam a maior parte do
circuito. Filmes falados em espanhol estavam relegados a um circuito minoritário. A
Ankino, distribuidora de produções soviéticas, que já contava com o mercado
estadunidense, entrava na ilha. Sucessos do cinema sonoro estrangeiro eram curiosamente
adaptados para virarem programas de rádio. (DOUGLAS, 1986, p. 60-67) Maurício de

Bragança lembra a importância da imbricação com o rádio também nos primeiros anos do
cinema sonoro mexicano. Santa, de 1931, o primeiro falado, tem música de Agustin Lara,
ícone do bolero mexicano, além de ser homônimo de um livro de 1907, importante para,
segundo Bragança, a fundação de um imaginário sobre a prostituta, a mulher pública, ícone
do naturalismo mexicano. As intervenções musicais têm papel preponderante no filme,
tanto na forma do bolero, quanto pela presença de mariachis, de uma orquestra de baile, de
música flamenca. Grande exemplo de uso da música, em conformidade com ruídos
significativos para a narrativa e em relação estreita com momentos de silêncio não menos
importantes, está em La mujer del puerto, dirigido por Arcady Boytler, em 1934. Destaca-
135

se o travelling que descortina o fato da música tema, percebida inicialmente como trilha
sonora não-diegética, estar sendo cantada, em quadro, pela personagem principal. Bragança
comenta o papel do cinema em cristalizar um processo pelo qual o ritmo teria que passar,
perdendo suas raízes rurais para se tornar um fenômeno de consumo urbano. Mais uma vez,
a frase, e o argumento, se aplicariam ao samba.
Sérgio Augusto lembra que a chegada do cinema sonoro no México coincide com a
passagem do general Lázaro Cardenas pela presidência, de 1934 a 1940. O mesmo
jornalista, no mesmo texto, não deixa esquecer que na Argentina, Perón mais tarde daria
continuidade à conjuntura em que, como diz Paranaguá, o tango é alçado a fator de
nacionalização, também com a contribuição do cinema sonoro (AUGUSTO, 1989, p. 70-71
e PARANAGUÁ, 1984, p. 41). No Brasil, o Estado Novo de Vargas elegeria o samba para
servir ao mesmo propósito. Lisa Shaw e Paulo Jorge Granja fazem a conexão entre o
crescimento do espaço dado ao fado, o incipiente cinema sonoro português e a
conformidade de sua representação de uma sociedade sob o julgo de Salazar, e lembram a
equivalência da situação espanhola, sob Franco.
Os tons nacionalistas da crítica em Cinearte, na virada da década de 1920 para
1930, os anúncios dos filmes brasileiros nos jornais, que ressaltavam a nossa língua, as
nossas músicas, lançavam no ar o papel que o som desempenharia, na conformação dos
cinemas nacionais. Esse papel não pode ser entendido separadamente de uma conjuntura
que, em breve, faria surgir governos que, por toda parte, trariam projetos ufanistas de
construções de unidades nacionais, de hegemonização cultural, de eleição de ritmos que se
tornariam símbolos dos respectivos países, e de cinemas nacionais que estivessem de

acordo com a consolidação de seus projetos.


No Brasil, em meio às comédias carnavalescas, encontravam-se parâmetros técnicos
que davam conta, com bons resultados, das necessidades do momento. Ou talvez fosse
melhor dizer, a produção daquele momento adequava-se ao quadro das possibilidades
técnicas. O som direto era uma realidade, porém limitada aos estúdios. A impressão
indelével do som na película, e a subseqüente ausência de mixagem, faziam com que todo o
som, todo o número musical, todos os diálogos fossem gravados no momento em que a
cena ocorresse. Possibilidades de mixagem tardariam, como dissemos, a surgir. Porém,
para mais tarde ainda ficaria uma outra questão: como garantir a boa qualidade da gravação
136

de som fora do ambiente protegido, isolado, dos estúdios? Como registrar de forma
inteligível a voz em meio ao ambiente sonoro caótico das ruas? Para chegar-se a tal
resposta, haveria de se levar em conta uma outra grande reconfiguração no modo de se
registrar os sons de um filme. Deveria haver uma outra grande transformação.
137

3. O SOM DIRETO EM TODO LUGAR, A QUEBRA DOS PARÂMETROS


CLÁSSICOS

3.1. A CHEGADA DOS GRAVADORES PORTÁTEIS, E O FIM DE UMA


LONGA DICOTOMIA

Na passagem entre as décadas de 1950 e 1960, surgem para o cinema os primeiros


resultados concretos da busca por equipamentos mais leves de gravação de som e de
captação de imagem, que permitiriam as filmagens em externas com gravação de som

direto, e que dariam fim aos impedimentos relacionados à falta de mobilidade e à robustez
de câmeras e gravadores.
Silvio Da-Rin lembra que esta era uma meta há muito perseguida por
documentaristas. Uma das primeiras tentativas de entrevista gravada em som direto fora de
estúdios, em locação, seria encontrada em Housing problems, dirigido por Edgar Anstey,
em 1935, da escola inglesa. Cabe citar Vertov, que, no ano anterior conseguira sincronizar
trechos de entrevistas em Três cânticos para Lênin, filme que, de resto, ainda se trata de
uma experiência inicial com som, a segunda de Vertov, após o inovador Enthusiazm, de
1931. A maior parte de sua trilha sonora ainda é constituída simplesmente de música sobre
138

as imagens. No Brasil, como dissemos no capítulo anterior, Luis de Barros anunciava, em


1936, que O Jovem tataravô também continha diálogos captados em exteriores, o que de
fato está no filme, embora de forma tímida, como em Vertov, em poucas e eventuais
seqüências nas ruas.
Da-Rin resume a corrida pelo que, citando Mario Ruspoli, chama de “grupo
sincrônico cinematográfico leve”, ou seja, o aparato para cinema que permitisse a gravação
em externas com som e imagem em sincronia. Tal busca teria um momento inicial
importante no fim da década de 1940, com as primeiras pesquisas de gravadores
magnéticos portáteis; ganharia força com a substituição do suporte ótico de gravação de
som, impresso diretamente na película, pelo magnético, gravado separado, em 1953; e
estaria a ponto de completar-se com o lançamento de câmeras portáteis e mais silenciosas,
em 1958, aliado à chegada definitiva dos gravadores portáteis que permitiam sincronismo
com a câmera, em 1959 (DA-RIN, 2004, p. 102-103).
Da-Rin comenta que tal busca por equipamentos mais leves, da qual o cinema se
aproveitaria, surge das necessidades mais imediatas do telejornalismo na década de 1950,
com o imperativo de um aparato que permitisse o rápido deslocamento e a gravação de sons
e imagens em locação. Há de se registrar a influência sobre esse processo, ou sobre a sua
metade sonora, de outros meios, como o rádio. As rádios suíças, por conta da mesma
necessidade de sair com gravadores portáteis para reportagens, formaram a primeira
clientela da firma do polonês radicado na Suíça Stefan Kudelski, criador dos gravadores
Nagra. O gravador de Kudelski venceria a briga pela gravação portátil de som direto para
cinema na passagem para os anos 60 e se manteria como referência no mercado, pelo

mundo afora, por trinta anos. A firma de Kudelski, fundada em 1951, venderia os primeiros
Nagras para as rádios suíças no ano seguinte. Em 1957, a terceira versão do gravador, o
Nagra III, estava pronta para comercialização. A precisão da velocidade de gravação havia
sido melhorada, o processo de alimentação por baterias tornado mais simples, e a
modulação dos picos de som mais acurada. A empresa, até então pequena, com dezessete
empregados, cresceria a passos largos para dar conta do pedido de 240 gravadores no ano
de 1958. Na seqüência, a RAI adotaria o Nagra para a cobertura das Olimpíadas de Roma, a
serem realizadas em 1960. Redes como a ABC, a CBS e a BBC seguiriam o mesmo
caminho. O Nagra III já possuía a adaptação que permitia o sincronismo entre as
139

velocidades do gravador e das câmeras: o Piloton, sistema de cabeamento que unificava a


velocidade dos motores dos dois aparelhos. O sistema seria melhorado em 1962, rebatizado
de Neopilot. Mais tarde, a quarta geração de gravadores de Kudelski, os Nagra IV, e em
seguida o Nagra 4.2 e o Nagra IV-S, tomaria conta do mercado, como já dissemos, até a
década de 1990, quando se concretizaria a passagem da gravação analógica para digital.
Algumas empresas européias tentaram fazer concorrência ao Nagra de Kudelski. A
mais relevante, uma dissidência de ex-funcionários seus. A Stellavox, de George Quellet,
lançava, também nos anos 50, na Suíça, uma linha de gravadores ainda mais leves que o
Nagra, caso do modelo SM5 Recorder, ainda sem a adaptação para o sincronismo com a
câmera. A dinamarquesa Kinovox, de Robert Sørensen, desenvolvia desde 1943 gravadores
voltados para o registro de música em salas de concerto, com seu sistema de gravação em
fita magnética recoberta por fios de aço. A Kinovox teria alguma penetração no mercado
cinematográfico. No Brasil, um modelo seu serviria à Flama, produtora de Moacyr Fenelon,
recém saído da Atlântida. A Uher, firma alemã no mercado desde 1946, lançava, também
no decorrer da década de 1950, uma linha de gravadores portáteis para consumo
prioritariamente doméstico, semi-amador. Em 1966, o modelo Uher 1000 Report Pilot,
desenvolvido para cinema, dispunha, como o nome diz, do sistema Piloton de
sincronização, similar ao de Kudelski. A Uher, entretanto, obteria maior sucesso nos
mercados de rádio e telefonia. O cinema seguiria dominado por Kudelski e seus Nagras. 58
Os documentários da passagem para a década de 1960 concretizaram, no cinema, a
possibilidade da gravação sincrônica de sons e imagens virtualmente em qualquer lugar,
finalmente liberta do confinamento dos estúdios. São sempre citados como pioneiros Jean

Rouch, de um lado do Atlântico, e Robert Drew, do outro. Da-Rin lembra que o Cinema
direto de Robert Drew e Richard Leacock assumiria, em suas cine-reportagens, como
definidas por eles próprios, o som direto em sincronia com a imagem de forma total. Dentro
desse modelo, não deveria haver, no resultado final, qualquer acréscimo ao som captado em
locação. Da-Rin comenta, com propriedade, que se chegaria naquele momento, como em
outros na história do cinema, a um ideal estético que vislumbrava a possibilidade da não-
interferência na filmagem. Buscava-se um utópico registro automático de imagens e sons

58
Para informações sobre a hi stória dos gravadores portáteis, e das empresas que fizeram avançar o processo,
consultar, por exemplo, www.nagraaudio.com/pro/index.php , www.mancini99.freeserve.co.uk/stellavox.html
http://claude.gendre.9online.fr/uher.html
140

como eles se apresentassem. De modo ingênuo, a não-interferência sobre o real por parte de
quem estivesse no comando da filmagem garantiria um discurso verdadeiro sobre o objeto
filmado. Cabe destacar o papel importante que o aparato portátil, sem problemas de
mobilidade, desempenhava nesse processo. A filmagem parecia poder ser mais natural,
capturadas as ações na própria locação, fora do artificialismo dos estúdios. Registrava-se no
local os sons e as imagens como eles aconteciam efetivamente. O próprio Da-Rin comenta
que, mais uma vez, como acontecera na passagem do mudo para o sonoro, a mudança nos
parâmetros de gravação de som levava o cinema a dar um passo a mais na busca de um
ideal de realismo. A maior fidelidade quanto à gravação das vozes, agora captadas,
teoricamente, em quaisquer lugares e situações cotidianas, instaurava a crença em um tipo
de cinema que capturava a realidade com cada vez menos artificialismo. Da-Rin lembra que
o surgimento dos gravadores portáteis concretizava, na passagem para os anos 60, uma
nova vitória do sincronismo como forma absoluta de união entre sons e imagens, como
ocorrera no fim dos anos 20. (DA-RIN, 2004, p. 104-105) O encantamento com a
possibilidade de um realismo a toda prova obscurecia as demais possibilidades daquela
união. A mais íntima, e mais óbvia delas, a predominante voz sincronizada à boca de quem
fala, ganhava outro impulso decisivo.
Jean Rouch, em seus filmes na África, já dava voz aos habitantes dos locais onde
ocorriam as filmagens, mesmo antes de seu primeiro contato com os gravadores portáteis.
Jaguar, filmado em 1954, sem a presença nas locações do gravador, seria finalizado
somente em 1967. Rouch faria uso, como lembra Marcius Freire, de um “relato
retrospectivo” na trilha sonora. O filme fora projetado para os próprios personagens, que

comentavam as situações. O mesmo procedimento se repetiria em Moi, um noir, de 1958.


Seu próximo filme, Crônica de um verão, do ano seguinte, assinado em parceria com Egar
Morin, seria o primeiro com gravação de som direto. Com a palavra gravada no local da
ação, com as conversas registradas nas ruas, a experiência da pós-produção das vozes
ficava para trás. A palavra registrada no evento da filmagem completava a experiência
direta. Freire cita a importância da presença no filme das vozes de camponeses, artesãos,
operários. (FREIRE, 2004, p. 23-26) A voz no documentário começava a deixar de ser
filtrada, reelaborada por um narrador. Estaria inscrita no filme saída diretamente das bocas
dos indivíduos retratados. Suas vozes poderiam ser captadas em quaisquer atos de fala, em
141

quase qualquer situação, em quase qualquer lugar. Da-Rin também cita a importância da
palavra direta em Crônica de um verão, mas, além disso, comenta a multiplicidade de
vozes presente no filme de Rouch, em contraposição à exclusividade do som direto em
Drew. As intervenções ativas de Rouch nas filmagens e na edição instauram uma
diversidade nas formas da voz, sejam elas monólogos do diretor, entrevistas, discussões em
grupo. (DA-RIN, op.cit. p. 150) De fato, embora o cerne do filme seja mesmo as
entrevistas, já os primeiros minutos mostram a complexidade da narrativa: a voz do
narrador, Rouch, explica a experiência do cinema verdade. Há um momento em que
entrevistadores e entrevistada estão todos em quadro e discutem todos o método do filme;
essa entrevistada virará entrevistadora. Sua primeira intervenção vocal se dá sobre as
imagens das ruas; mais tarde, entrevistará de fato. Quem fala está em quadro, assim como
seu microfone de mão. A voz, sempre clara, é decorrente dessa proximidade do microfone,
já que não há a preocupação dele estar fora de quadro, aéreo, mais distante da boca de
quem fala. Há longas passagens sem falas, apenas com os ruídos das ações cotianas a
acompanhar as imagens. Cabe lembrar que a recepção entusiasmada do fato dos
personagens estarem falando por si próprios nos documentários, sem a intervenção
obrigatória de uma voz explicatória, ocorreria também com um documentário brasileiro,
realizado poucos anos mais tarde. Por hora, basta dizer que em Maioria Absoluta , de 1964,
Leon Hirszman colocaria no centro da tela os analfabetos do país, em imagens e sons.

3.1.1. Chegada no Brasil, primeiras produções: filmes de passagem, o


realismo e a língua falada nas telas

Segundo Hernani Heffner, o Nagra aportava pela primeira vez, sem alarde, em
terras brasileiras pelas mãos do alemão Franz Eichhorn, que utilizaria o equipamento em
co-produções com a Atlântida, a partir de 1959. Os filmes passados na Amazônia Rastros
na selva, de 1961, e Und der Amazonas schweigt, de 1963, são exemplos dessa produção.
No início da década de 1960, um brasileiro que estudava fora do país tomaria contato com
os preceitos, e com os equipamentos, do cinema direto. Joaquim Pedro de Andrade fora
estudar em Paris no fim de 1960, onde finalizaria Couro de gato. Lá, freqüenta o IDHEC,
Institute des Hautes Études Cinematografiques, e estagia na Cinemateca Francesa. Em
142

seguida, parte para Londres, e de Londres para Nova York, onde seria aluno de Albert e
David Maysles, componentes, como Drew e Leacock, do movimento do Cinema direto
norte-americano. Bolsista da Fundação Rockfeller, Joaquim Pedro consegue, na volta para
o Brasil, em 1962, a doação de uma câmera Arriflex e de um Nagra. 59 De posse do
equipamento, filma Garrincha, alegria do povo, ainda no fim daquele ano. Mas essa que
seria uma experiência de cinema direto termina em parte frustrada, pois o sincronismo entre
a câmera e o gravador na verdade não se sustentava. Eduardo Escorel, responsável pela
captação de som, lembra que somente no último dia de filmagem foi possível gravar sons
no Maracanã, na decisão do Campeonato Carioca de 1962. (ESCOREL, 2004, p. 87)
Escorel iniciava ali uma parceria com Joaquim Pedro que se estenderia às funções de
assistente de direção em O padre e a moça, de 1965, e de montador de Os inconfidentes, de
1972.
O resultado do filme é, como define Randal Johnson, um documentário híbrido,
“parte cinema direto, parte cinema verdade, parte documentário tradicional”. (JOHNSON,
1984, p. 18) De fato, há poucos momentos de som direto. Um deles, uma entrevista com
Garrincha no vestiário do Maracanã, em plano próximo, sobre a lida com o seu próprio
sucesso como jogador; em outro, um médico explica, ou tenta explicar, as pernas tortas do
craque, a posição torcida de seus joelhos. Demais pontos relevantes sobre o tratamento de
som do filme: destaca-se uma edição de som baseada no contraste entre músicas ou sons
ambientes em primeiro plano e pausas subseqüentes, sejam estas pausas sons mais sutis ou
mesmo momentos de silêncio. Desde os créditos, o contraste na montagem de Nello Melli
está presente, no corte de Brasil Glorioso, samba da Portela, sobre as cartelas, para a

percussão leve sobre as primeiras fotos de Garrincha. Em seguida, aplausos destacados


comentam na trilha sonora a foto de Garrincha sendo cumprimentado por Juscelino
Kubitschek. O mesmo som surgirá mais à frente, quando veremos João Goulart recebendo a
seleção campeã do mundo de 1962. O aquecimento nos vestiários tem como comentário
apenas o som reverberado da bola chutada contra a parede. Na entrada em campo, o som da
torcida em primeiro plano. A narração de Heron Domingues tem no filme espaço
considerável, sendo um elemento responsável pela “parte documentário tradicional”

59
O
O próprio Joaquim Pedro de Andrade narra esse período de viagens em entrevista a Alex Viany, em
processo do cinema novo (VIANY, 1999, p. 257-259).
143

comentada por Randal Johnson. Exemplo disso é a descrição pela voz do locutor de um
Flamengo e Botafogo chuvoso no Maracanã. Logo, porém, sobre as imagens do jogo, o
som ambiente do estádio será a única trilha sonora. A partir do momento em que as
imagens em movimento do jogo são substituídas por uma seqüência de fotos, o som
acompanha a mudança, e passa a constituir-se, pela primeira vez, de silêncio total. Outra
situação de silêncio destaca-se mais à frente, no anexo, ao fim do filme, sobre a copa de
1950, sobre a qual, vale lembrar, a figura de Garrincha não tem influência. A trilha, no
início constituída de marchinhas e aplausos, se transforma em silêncio sobre o plano do
chute de Gighia que termina dentro do gol de Barbosa. Em seguida, o som solitário de um
coração, e a quietude da trilha sonora sobre a saída das últimas pessoas do estádio simulam
o proverbial silêncio no Maracanã. Ainda há espaço para um último contraste: as imagens
subseqüentes do trem lotado de torcedores que descem para o estádio têm como som O
Império desce, interpretado pelo próprio Império Serrano, inscrevendo uma derradeira
situação de grande densidade sonora ao fim do filme, em contraposição ao tratamento
predominantemente silencioso que se desenhava.
Ainda em 1962, há uma outra vinda dos gravadores Nagra no Brasil, graças a um
evento por vezes comentado dentro da historiografia sobre o cinema brasileiro. Um grupo
do qual sairiam diretores e técnicos dos mais relevantes dos anos seguintes foi apresentado
a câmeras mais leves e ao gravador portátil. No início de outubro, chegava ao Rio de
Janeiro o documentarista sueco Arne Sucksdorff. Sua vinda para mostrar os equipamentos
que modernizavam a produção cinematográfica na Europa e nos Estados Unidos fazia parte
de um projeto da UNESCO de formação de futuros cineastas e técnicos em países em

desenvolvimento, como informa Arnaldo Carrilho. Encampando o projeto, Paulo Carneiro,


embaixador junto à UNESCO, Lauro Escorel de Moraes, então chefe do Departamento
Cultural do Ministério das Relações Exteriores e Rodrigo Mello Franco de Andrade,
fundador da Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (DPHAN). Joaquim
Pedro de Andrade, filho de Rodrigo, sugerira o nome de Joris Ivens, que não aceitou o
convite. Também entre as possibilidades, Jean Rouch, mas o convidado que termina por vir
é Sucksdorff. Mário Carneiro, filho de Paulo, assistira a uma retrospectiva do sueco em
Paris, e sugeriu o nome ao pai. (CARRILHO, 2003)
144

José Inácio de Melo Sousa dá os detalhes do curso. Dentre 230 candidatos inscritos,
18 são selecionados para as aulas que se realizariam entre dezembro de 1962 e fevereiro de
1963. Tiveram contato com a câmera Arriflex blimpada, com o Nagra e com a moviola
Steenbeck, Dib Lutfi, Eduardo Escorel, Vladimir Herzog, Luis Carlos Saldanha, José
Wilker, David Neves, Domingos de Oliveira, Orlando Senna, Nelson Xavier, Arnaldo
Jabor, entre outros. Dib Lutfi começava ali a mexer com uma câmera leve; Saldanha
destacava-se no uso do Nagra; Jabor, que entrara no curso para ser o tradutor de
Sucksdorff, também se destacaria como aluno, e se tornaria em breve um dos primeiros
técnicos de som a manejar o Nagra profissionalmente. Como exercício de fim de curso,
para experimentar o equipamento em uma situação de filmagem, é escolhido o roteiro
Marimbás, de Herzog, sobre a comunidade de pescadores no final de Copacabana. O filme
é rodado em fevereiro de 1963. A experiência com o som direto ainda não é totalmente
resolvida. O resultado é um filme que não apresenta entrevistas em sincronia. Marimbás é
composto quase exclusivamente de imagens do cotidiano dos pescadores na praia inseridas
sobre as falas, que ilustram o que está sendo dito quanto ao trabalho com as redes, o passar
do dia à beira-mar. Assim como em boa parte de Garrincha, alegria do povo, sons e
imagens estão separados. Apresentam relações complementares que não a mais próxima
delas, a voz em sincronia com a boca de quem fala. Sucksdorff filmaria, na seqüência, uma
co-produção sueco-brasileira passada, como Marimbás, em Copacabana: Fábula, roteiro de
Flávio Migliaccio. Rodado com som direto, o filme aproveita os alunos do curso, e retrata o
cotidiano das crianças de rua do bairro. José Inácio de Melo Sousa registra que Fábula foi
exibido no Rio de Janeiro, em 1965, por apenas uma semana, no Paissandu, e lançado

também timidamente em São Paulo, somente em 1968. Foi projetado em Estocolmo em


1965, e exibido ainda no festival de Cannes daquele mesmo ano 60. Sucksdorff começava,
naquela época, uma relação com o Brasil que perduraria até 1994, quando volta em
definitivo para a Suécia. Fixara residência em Cuiabá, depois de ter conhecido o Pantanal
mato-grossense em filmagem, em 1966. Casara-se com uma brasileira. (in MIRANDA,
RAMOS, 2000, p. 528)

60
Recentemente, em 2002, o filme foi “redescoberto” graças ao esforço do pesquisador Lécio Augusto Ramos
e uma cópia restaurada de Fábula teve exibições por ele organizadas no Rio de Janeiro, no CTAV, na
Cinemateca do Museu de Arte Moderna, no Odeon.
145

Dentro da produção carioca de documentários que ganhava força naquele momento,


a experiência considerada como a primeira a conseguir sucesso com o som direto foi
Maioria absoluta, dirigido por Leon Hirszman, filmado entre o fim de 1963 e o início de
1964. Hirszman partiria do Rio de Janeiro rumo ao interior de Pernambuco e da Paraíba.
Entrevistaria exclusivamente analfabetos, a maioria absoluta do título, sobre suas vidas em
relação com a situação política e econômica do país. Hirszman monta uma equipe que
inclui Eduardo Coutinho e David Neves na produção, Luis Carlos Saldanha na fotografia,
Arnaldo Jabor no som direto. Nelson Pereira dos Santos montaria, Ligia Pape sua
assistente, além de cuidar da confecção dos créditos. Ferreira Gullar escreveria o texto e
seria a voz do narrador. O poeta repetiria a parceria com Hirszman mais tarde, sendo
também sua a voz que narra ABC da Greve , de 1979, e Imagens do inconsciente , de 1985.
Gullar conta a Helena Salem que a gravação do texto de Maioria absoluta foi feita poucos
dias depois do golpe de 1964, “meio clandestinamente, num estúdio que havia na Graça
Aranha. Eu passei mais ou menos um mês escondido e depois gravei”. (SALEM, 1997, p.
152) Jabor, o responsável pelas gravações das entrevistas, também falando para Salem,
comenta a importância daquele momento de descoberta do som direto em locação: “era a
primeira vez que se usava o Nagra no Brasil, e foi uma evolução, provocou uma mudança
formal. Era um gravador leve, que permitia a criação de um tipo de linguagem”. (idem, p.
149)
A empolgação com o gravador que possibilitava a gravação de entrevistas quase em
qualquer lugar também surge nos depoimentos de Leon Hirszman sobre as filmagens. Em
entrevista a Alex Viany, citada por Salem, Leon diz:

“Esse foi um filme de caráter direto, feito para que os outros tivessem voz. Esses
‘outros’ eram os analfabetos, gente sobre a qual os letrados dizem não saber falar,
porque não sabem escrever. No processo de realização descobri a poesia que havia
no falar do pobre, do analfabeto, especialmente na gente do nordeste” (idem, p. 148)

Em outra entrevista, Hirszman fala do som direto como “um instrumento técnico
mais avançado que nos permite captar imagens e sons sincronizados, como existem na
realidade, para depois dar-lhes uma construção segundo uma linha de pensamento que sirva
às pessoas, no sentido de transformá-las”. (SALEM, 1997, p. 191) Leon posiciona-se,
146

assim, em oposição à idéia, defendida pelos membros do cinema direto norte-americano, de


que o som direto se bastava. De fato, no tratamento sonoro dado à Maioria absoluta há
espaço não só para as entrevistas, mas também para a voz do narrador e ainda para canções
registradas nos locais das filmagens. Seria a primeira aproximação de Hirszman com os
chamados cantos de trabalho, que teriam lugar mais tarde em São Bernardo, na forma do
Rojão do eito que serve de inspiração à música composta por Caetano Veloso, a ser
comentada. Os cantos de trabalho seriam ainda o tema principal da série de curtas
homônima. São três filmes, rodados todos em 1975: Mutirão, passado em Viçosa, Alagoas,
a mesma locação de São Bernardo; Cacau, em Itabuna, Bahia; e Cana de açúcar, em Feira
de Santana, também na Bahia. (idem, p. 232) Os filmes revelam a preocupação de Leon
Hirszman em documentar o ato de cantar enquanto se trabalha na lavoura, fazendo do ritmo
da própria música o ritmo do trabalho braçal, e simultaneamente, distração do esforço.
A narração de Gullar, após apresentar o tema do analfabetismo, explicar que “as
pessoas, os 40 milhões de analfabetos” são o tema do filme, e não o analfabetismo em si, e
justificar o rumo para o nordeste pois lá estão 25 dos 40 milhões, passa a eles a voz. Diz
Gullar: “passemos a palavra aos analfabetos. Eles são a maioria absoluta”. Seguem-se as
entrevistas, até o momento em que é clara uma construção a partir dos sons, como
comentado por Hirszman. Helena Salem e Jean-Claude Bernardet, em textos diferentes,
descrevem a seqüência na qual, sobre as imagens aéreas do Congresso Nacional ouve-se
primeiro a confusão das vozes dos próprios deputados no plenário, para em seguida surgir,
com destaque, a palavra “atenção!”. Neste ponto cessa a balbúrdia, e o silêncio que se
segue faz parecer que a narração pôs em suspenso o Congresso. Na seqüência, a fala do

narrador: “o filme acaba aqui. Lá fora, a sua vida, como a destes homens, continua”. Corta
de volta para os trabalhadores rurais. Pela montagem de sons e imagens, tanto a nossa
atenção quanto, figurativamente, a do próprio congresso, é voltada, ao fim do filme, para os
analfabetos. (SALEM, 1997, p. 150, BERNARDET, 2003, p. 42)
Carlos Diegues lembra, em entrevista a Alex Viany, da repercussão festiva quando
da exibição de Maioria absoluta em Gênova, Itália. Luis Carlos Saldanha, o membro da
equipe presente, foi ovacionado ao subir no palco, que foi invadido pela platéia das
primeiras filas. O filme elogiado por Jean Rouch.(VIANY, 1999, p. 110-111) A grande
aceitação do curta-metragem de Hirszman partia da chance concretizada de dar voz às
147

camadas menos favorecidas do povo, assim como ocorrera com Crônica de um verão, de
Rouch. Eduardo Escorel, em texto recente, confere a Maioria absoluta a mesma
importância, até mesmo por conta de seu lançamento muito próximo, de Vidas Secas e de
Deus e o diabo na terra do sol. Segundo Escorel, “o deslumbramento com os três resultava,
quando surgiram, de terem revelado um país desconhecido”. (ESCOREL, 2004, p. 27) O
estudo de Miguel Serpa Pereira sobre o Columbianum, o instituto cultural fundado pelo
padre jesuíta Angelo Arpa, destinado à exibição do cinema latinoamericano na Europa,
coloca em perspectiva o sucesso de Maioria absoluta na Itália. A partir de 1960, em
parceria com Gianni Amico, e contando com uma teia de respeitáveis colaboradores, o
instituto promoveria as Resenhas do cinema latinoamericano. Nomes como Edgar Morin,
Roberto Rossellini, o já citado Jean Rouch estariam em contato com a produção
cinematográfica das Américas. A Prima Rassegna, promovida em junho de 1960, exibiria
O grande momento, de Roberto Santos, Na garganta do diabo, de Walter Hugo Khoury,
filmes argentinos, mexicanos, cubanos, chilenos, venezuelanos, bolivianos, peruanos,
uruguaios, guatemaltecos. Na segunda resenha, de maio de 1961, foram projetados Arraial
do cabo, de Paulo César Saraceni, Tire dié, de Fernando Birri, Nazarin, de Buñuel no
México, além de uma retrospectiva do cinema brasileiro que incluía títulos de José Medina,
Humberto Mauro, Alberto Cavalcanti, Rio 40 graus. As resenhas manteriam a freqüência
anual até 1964, quando, em um encontro maior, então intitulado Terzo mondo e comunitá
mondiale, foram exibidos Vidas Secas e Maioria absoluta. O filme de Hirszman
encontrava assim o caminho pavimentado pelo qual já trilhava o cinema brasileiro e
latinoamericano na Itália. (PEREIRA, 1998, p. 103-115)

Curioso é que aquela primeira experiência concretizada com o som direto foi
possível graças a um método de sincronização artesanal. Luis Carlos Saldanha, além de ter
sido responsável pela fotografia, é creditado como o responsável pelo sincronismo, feito
manualmente entre o Nagra e a moviola, uma vez que projetadas as imagens unidas ao som
percebia-se um descompasso entre a velocidade de ambos. O método que resolvia a
incompatibilidade entre imagens e sons teria sido ensinado por François Reichenbach.
Saldanha e Afonso Beato aprenderam a driblar a falta de sincronismo pelas mãos do
francês. Na verdade, o problema estava nas câmeras, cujas velocidades variavam. O Nagra,
não sendo usada a adaptação do Piloton, não acompanhava a variação. Assim, o som
148

mantinha velocidade constante, mas a imagem não. Essa questão demorou a encontrar uma
solução permanente. Disso decorre que toda uma primeira produção feita com som direto
na verdade apresentaria variações de sincronismo.
Paralelamente a Maioria absoluta ocorriam as filmagens e a finalização de
Integração racial, de Paulo César Saraceni, também entre o segundo semestre de 1963 e o
primeiro de 1964. As entrevistas, em som direto, seriam mais uma vez gravadas por
Arnaldo Jabor. Na seqüência, Jabor teria a sua primeira experiência na direção, o
igualmente pouco citado O circo, realizado em 1965. Passado o início, no qual se ouve
música nos créditos e a voz de um narrador, o filme baseia-se no som direto das entrevistas.
A falta de clareza destas deve-se ao pouco controle sobre as falas. Por vezes, algumas
pessoas falam ao mesmo tempo, enquanto o microfone tem que escolher uma determinada
posição, sobre a cabeça de uma determinada pessoa, deixando as demais fora do eixo de
captação. Arnaldo Jabor desenvolve um método de montagem que também estaria presente
no subseqüente Opinião pública. Em alguns momentos, o som da seqüência posterior vem
bastante adiantado com relação à imagem. O efeito, no caso específico de O circo, quando
o que se ouve é um cantador e seu violão, é de que parece não se tratar de som direto, e sim
de uma música inserida para comentar a imagem que vemos. Depois de um longo tempo,
finalmente temos a imagem que corresponde ao som, do cantor em quadro. Percebe-se
neste momento que aquele era o som direto desta ação, apenas mostrado antes da imagem.
O som ambiente presente sob as vozes das entrevistas, aliado à falta de condições de um
único microfone direcional acompanhar toda a movimentação que se desenvolve sem
planejamento em quadro, faz de O circo um exemplo interessante desse conjunto de filmes

que, na verdade, eram as primeiras experiências com som direto nas ruas.
Opinião pública tem, de várias formas, o mesmo tratamento sonoro de O circo. O
som ambiente das ruas ou das variadas locações está bem presente. Há um locutor, sendo
que, em parte de sua fala inicial, temos somente sua voz sobre alguns segundos de tela
preta. O filme começa pelo som. Jean-Claude Bernardet nota que o papel dessa voz é de
transmitir uma sensação de credibilidade, de investigação veraz, o que está claro desde as
primeiras frases: “Tudo o que verão aqui é típico. Fugimos do exótico e do excepcional e
procuramos as situações, os rostos, as vozes, os gestos habituais”. Bernardet comenta o tom
conclusivo desse narrador, que faz comentários após as entrevistas, como quando diz “a
149

classe média é uma classe perplexa” sobre a dificuldade de determinado personagem em


responder uma pergunta. (BERNARDET, 2003, p. 58)
A falta de controle sobre as situações é patente. Por vezes, o fato das vozes não
estarem no nível em que deveriam estar, ou do microfone não estar no lugar em que deveria
estar, é conseqüência dessa liberdade no processo de filmagem. Um grupo de jovens é
entrevistado. Todos falam ao mesmo tempo. A partir de um determinado momento, um
deles sai de quadro, e segue falando, de longe. Jabor, a voz do diretor em quadro, intervém.
Ouvimos, longínqua como é a voz que esta fora do raio de captação do microfone: “tem
que discutir é aqui!” Em outro momento, ouviremos nova intervenção do diretor, que pede
para um entrevistado mais retraído: “mais alto!”.
É necessário pensar esse primeiro grupo de produções como filmes de passagem,
com os quais se está experimentando uma tecnologia que permite ampla mudança no ofício
de captar sons e, por conseguinte, na textura sonora dos filmes. A passagem do dito período
mudo para o cinema sonoro, mais de trinta anos antes, acarretara uma série de adaptações
no set de filmagem, no processo de montagem, na distribuição, na recepção dos filmes, e
gerou filmes híbridos, que aprendiam a falar aos poucos, como o exemplo, citado no
capítulo anterior, de Ganga bruta. De forma análoga, a situação nova da gravação de som,
não mais restrita à obra de ficção feita em estúdio, mas liberta a ponto de serem captadas
conversas menos controladas, em externas, nos mais variados ambientes sonoros,
necessitava de um período de adaptação. Assim como foram produzidos filmes de
passagem do mudo para o sonoro, seriam produzidos também filmes de passagem entre o
que era o som dos estúdios e o que passava a ser o som direto das ruas.

Paralelamente à produção carioca, outro pólo de realização de filmes com som


direto em externas desenvolve-se em São Paulo. Se no Rio de Janeiro a presença do sueco
Arne Sucksdorff foi um ponto nodal para o fomento da produção, em São Paulo outro
documentarista é citado como fundamental para a formação de um grupo de jovens
realizadores em contato com os gravadores portáteis. Fernão Ramos descreve a rede de
contatos que cria o grupo. Vladimir Herzog, a ponte entre as produções carioca e paulista,
conhece Fernando Birri em 1962, no Festival de Mar Del Plata. É o começo de um diálogo.
No ano seguinte, Tire dié e Los inundados, de Birri, são exibidos em São Paulo. No mesmo
ano, Herzog e Maurice Capovilla passam três meses no Instituto de Cinematografia de
150

Santa Fé, onde têm aulas com o argentino. Ainda em 1963, Birri vem para o Brasil com a
intenção de permanecer por um período, devido ao recrudescimento da situação política na
Argentina. Começa naquele momento uma produção de cinema direto. O grupo conta ainda
com a presença do fotógrafo Thomaz Farkas, que assume também a produção dos filmes.
Unem-se a Farkas, Herzog e Capovilla, Geraldo Sarno e Paulo Gil Soares, ambos vindos da
Bahia. Os médias-metragens Memórias do cangaço, dirigido por Soares, Nossa escola de
samba, pelo argentino, também radicado em São Paulo, Manuel Horacio Gimenez,
Subterrâneos do futebol, por Capovilla e Viramundo, de Geraldo Sarno, são todos
realizados entre setembro de 1964 e março de 1965. Seriam lançados juntos, sob a forma
do longa-metragem Brasil verdade, em 1968. (MIRANDA, RAMOS, 2000, p. 187)
A acurada análise de Viramundo por Jean-Claude Bernardet deixa pouco a
acrescentar com relação ao uso do som. Na verdade, grande parte da análise faz referência
ao material sonoro. Bernardet comenta sobre a multiplicidade de vozes presentes no filme
de Sarno. A própria letra da música, escrita por Capinam, com melodia de Caetano Veloso,
cantada por Gilberto Gil, descortina um discurso sobre a condição do imigrante nordestino
em São Paulo. Bernardet nota diferenças no tratamento das vozes. A voz do locutor, além
de ser a única a obedecer à norma culta, também é a única a ter uma textura de estúdio,
“limpa”, sem acompanhamento de som ambiente, clara. A voz dos entrevistados, em
contraposição, gravada nas locações, traz as “impurezas” do som direto, o som ambiente
dos lugares sempre ao redor da fala. As respostas dos entrevistados, segundo Bernardet,
“não apresentam fidelidade às regras da gramática oficial”, ao mesmo tempo em que “vêm
misturadas aos ruídos de fundo”. (BERNARDET, 2003, p. 15) Estariam, assim,

duplamente “sujas”, em contraste com a clareza tanto gramatical quanto acústica da voz do
narrador. Há de se destacar ainda a alternância entre locução e entrevistas, o que torna mais
claro o conflito percebido por Bernardet. Além da direção de Sarno, da fotografia e
produção de Farkas, Viramundo conta com o som direto de Herzog, Capovilla, mais Sérgio
Muniz e Edgardo Pallero, caracterizando o sistema de cooperativa, de alternância nas
funções. A montagem é de Sylvio Renoldi, mais tarde consagrado por seu trabalho em O
Bandido da luz vermelha, de Rogério Sganzerla, a ser comentado.
Também analisado por Bernardet é Subterrâneos do futebol, a experiência na
direção de Maurice Capovilla. Bernardet cita o jogo de complementaridade entre as
151

intervenções do locutor e as entrevistas. Estas muitas vezes são tornadas redundantes,


apenas corroborando o que o narrador, colocado no lugar de dono do saber, acabara de
afirmar. Estabelece-se assim uma hierarquia na qual o locutor ocupa o posto mais alto, pois
sua voz, clara, altiva, detêm o conhecimento. Abaixo, haveria ainda uma categoria de
entrevistados esclarecidos, formada por técnicos e dirigentes de futebol. Mais abaixo,
jogadores e torcedores. (BERNARDET, 2003, p. 40) Sobre o tratamento sonoro de
Subterrâneos do futebol, notamos ainda, como em Garrincha, alegria do povo e Maioria
absoluta uma edição de som contrastada, na qual se destacam, uma vez mais, silêncios
colocados em momentos chave. Após a frase do locutor: “solidão é igual a um campo de
futebol vazio”, há de fato um plano geral de um estádio sem público. O silêncio deste plano
será cortado pela saturação sonora da torcida gritando, na próxima seqüência. Perto do fim
do filme, repete-se a estratégia. Sobre os planos dos jogadores deixando o campo, e dos
últimos torcedores deixando as arquibancadas, mais uma pausa na trilha sonora. No
próximo corte, a arquibancada cheia e a algazarra da torcida do Fluminense. Mais à frente,
um torcedor do Santos, dentro do vestiário, dá inflamada entrevista, aos gritos, por conta do
título paulista de 1964. O corte desta seqüência para o último plano do filme instaura o
contraste final no som, entre os gritos do torcedor, em som direto, e o silêncio sobre o
plano de uma bandeira pegando fogo na arquibancada vazia.
Memórias do cangaço e Nossa escola de samba não são mencionados por
Bernardet. O primeiro apresenta uma narração composta de elementos díspares como
algumas das imagens do bando de Lampião feitas por Benjamim Abraão, poemas do
próprio cangaceiro recitados, entrevistas a remanescentes do bando, voz over, uma dupla de

repentistas que narra o que se vê na tela. Entre a voz do narrador e as entrevistas, a mesma
relação descrita por Bernardet em Viramundo: a clareza e a “pureza” técnica da primeira
contrastam com as falhas da segunda. Entremeado ao som das entrevistas está o ruído da
câmera, o volume das vozes não atinge o patamar em que foi posta a voz do narrador. O
segundo entrevistado, Seu Gregório, tocador de gado, é enquadrado sobre seu cavalo em
plano geral. Diz o que sabe a respeito do bando enquanto vemos também no quadro o
técnico de som com o Nagra e o entrevistador, que segura o microfone. É o registro nas
imagens da situação inovadora da gravação de som portátil, o som gravado no local das
filmagens.O próximo entrevistado é apresentado pela dupla de violeiros, que nos diz ser o
152

homem que vemos andando em direção à câmera o coronel Zé Rufino, ex-matador de


cangaceiros. Thomas Farkas, em entrevista recente a Amir Labaki, lembra que Paulo Gil
Soares tinha sido assistente de Glauber Rocha em Deus e o diabo na terra do sol no ano
anterior. O que se vê e ouve em sua experiência na direção é uma continuação da estratégia
de Glauber de usar o repente como voz que narra. A entrevista de Zé Rufino é composta
predominantemente de planos próximos, o entrevistador fora de quadro. Rufino conta que
matou Corisco em 1940, dois anos após a morte de Lampião. Diz que Corisco revidou os
tiros, e sugere uma situação de legítima defesa. A voz do narrador surpreende, ao desmentir
o entrevistado: “Não coronel, Corisco não revidou os tiros”. Este é o único momento no
conjunto dos quatro média-metragens em que a voz do narrador instaura um conflito com o
que vemos nas imagens e ouvimos no som direto.
Nossa escola de samba não apresenta a complexidade narrativa de Memórias do
cangaço, mas insere o narrador em outra situação curiosa, também sem paralelo nos demais
filmes. Sua voz está presente desde a primeira seqüência, que mostra os ensaios da Unidos
de Vila Isabel. Começa a explicar sobre as imagens que vemos integrantes importantes para
a escola, comentando a função de cada um. De repente, nos diz: “esse aí sou eu.” Nosso
narrador é um dos fundadores da agremiação. Apresentará ainda a neta, a família, demais
membros da família, as pessoas que trabalham no barracão confeccionando os adereços, os
compositores do samba. No momento em que descobrimos que o narrador está inserido na
comunidade retratada, notamos que se trata de um modelo diferente daquele aplicado por
Bernardet sobre Viramundo e Subterrâneos do futebol, no qual a voz que narra é
hieraquicamente superior a dos entrevistados, vem de outro lugar de fala, detém

informações que os retratados não poderiam conhecer.


Queremos destacar duas questões quanto ao uso do som nesse grupo de
documentários cariocas e paulistas que inauguraram no Brasil a quebra da barreira que
impedia a expansão do som direto para as filmagens em locação.
A primeira, já começamos a comentar: trata-se da guinada para o realismo
fomentada pelo equipamento mais leve. Da-Rin comentara o fenômeno dentro das
correntes norte-americana e francesa. No Brasil não foi diferente. Parece haver uma
primeira situação de deslumbramento com a nova tecnologia, quando o uso correto do
aparato, ou seja, a obtenção do som direto e da sincronia com a imagem em si, parece
153

bastar, e o tratamento de som fica restrito à gravação e à reprodução desse som direto. O
depoimento sincronizado passa a ocupar lugar central na narrativa. De modo geral, outras
formas de unir sons e imagens ficam, até certo ponto, em compasso de espera. Dizemos até
certo ponto, pois há surpresas mesmo dentro dos filmes baseados em depoimentos. Na
verdade, não há nesse momento uma substituição total da voz over, e há algumas situações
que surpreendem o domínio da fala, como o comentado uso de silêncios. A opção por uma
montagem que realça discrepâncias na trilha sonora também é comum a alguns dos filmes.
Mas, de forma geral, o depoimento em som direto passava a centralizar as preocupações
relativas ao som, e questões técnicas prevaleciam sobre questionamentos estéticos. João
Moreira Salles, no texto de introdução ao livro de Silvio Da-Rin, comenta algo que pode
ser entendido dentro da linha de raciocínio que estamos desenvolvendo: ao elogiar a
iniciativa de um livro que, em boa parte, explica a história do documentário pelo prisma do
som, Salles admite, falando de seu lugar de documentarista, que “o som para muitos de nós
é apenas o som e basta que seja audível. Não é e não basta”. (DA-RIN, 2004, p. 9) Ou seja,
há de se conferir a ele um pensamento estético. A boa qualidade técnica da gravação é
fundamental, mas não deve ser um fim em si mesmo. Porém, em um momento inicial de
deslumbramento com a nova tecnologia, pode-se entender que de fato a maior parte das
preocupações com relação ao som dos filmes estivesse resumida à qualidade do som
gravado em locação.
Geraldo Sarno narrava a Jean-Claude Bernardet, em 1981, a experiência do som
direto em Viramundo. Sarno comenta a dificuldade com o sincronismo que já citamos,
devido ao motor variável das câmeras Arriflex. Conta que a equipe de finalização formada

por Affonso Beato, Walter Goulart e Carlos della Riva, após ter percebido que imagens e
sons corriam em velocidades diferentes, tiveram que acertar manualmente a sincronia entre
os dois na moviola. Mas a declaração que serve a esta parte do texto é que Sarno admite ser
aquela uma época de transição para o som direto. Naquele momento, diz ele, em
Viramundo, “o som direto não rompe com uma estrutura dramática naturalista que o filme
tem”. Mais do que isso, completaríamos, o som direto é a principal ferramenta para se
chegar à estrutura naturalista. Sarno comenta que pensaria em experimentar com o som
apenas em documentários mais tardios, como Viva Cariri, de 1970. (BERNARDET, 1981,
p. 21)
154

Nesse mesmo dossiê organizado por Bernardet, intitulado O som no cinema


brasileiro, há um depoimento de Julio Bressane que critica o deslumbramento com o som
direto nos primeiros anos do Nagra no Brasil. Bressane comenta a preocupação meramente
técnica, privando-se o som dos filmes de uma função criativa. Contra esse uso automático
de um som naturalista, Bressane faz uma defesa de métodos pensados por ele próprio,
como o uso da música que, parecendo trilha inserida na montagem, na verdade fora captada
no set, como som direto, a partir de discos executados ali no espaço da ação. Mais do que
isso, nas seqüências em que isso ocorria, tais músicas, muitas vezes tocadas inteiras, eram
centrais para a duração do plano e para a encenação. Exemplos desse método estão em O
anjo nasceu, de 1969, que comentaremos. Sobre experimentos não com o som direto, mas
com a dublagem, Bressane, ao defender da mesma forma seu potencial criativo e anti-
naturalista, cita seu filme Agonia, de 1976, no qual há o que ele próprio batiza de
polivozes: um mesmo personagem dublado por vozes diferentes no decorrer da história.
(BERNARDET, 1981, p. 22)
Outro realizador entrevistado por Bernardet, Vladimir Carvalho, também discorre
sobre a tentação realista, consumada ao centralizar a narrativa dos documentários no
depoimento. Carvalho confessa ali que sacrificava a vontade de utilizar mais ruídos,
estabelecendo com eles relações com as imagens que fugissem do habitual, em favor da
audição do depoimento. Diz Carvalho que no fim das contas “como todo mundo, quero
principalmente que se escute o que o homem diz”. (idem, p. 18)
Diga-se de passagem, em defesa da concepção sonora de Vladimir Carvalho, que a
narrativa em seus documentários não está exatamente centralizada na voz sincronizada

dentro do quadro. É importante, no conjunto de filmes formado por A bolandeira , de 1966,


Incelências para um trem de ferro , de 1972, Brasília segundo Feldman, de 1979, e, o mais
conhecido O país de São Saruê, de 1971, as presenças da voz do narrador e da música
nordestina. Incelências para um trem de ferro traz um interessante jogo de similaridade
entre os ritmos do trem e da “ciranda imperial”. Em O país de São Saruê a voz que narra na
forma de poema sobre o sertão ocupa papel predominante, enquanto vemos as imagens do
polígono das secas, na tríplice fronteira entre Ceará, Paraíba e Pernambuco. A música faz-
se presente em temas instrumentais e em cavalos-marinhos, cantados. Em Brasília segundo
Feldman, sobre as imagens feitas pelo engenheiro norte-americano do título durante a
155

construção de Brasília estão as vozes do próprio Vladimir e de duas testemunhas da


presença do engenheiro nas obras. Às imagens sem sons de Feldman sobrepõe-se a
construção sonora do diretor.
A segunda questão sobre os filmes que ampliaram as fronteiras do som direto diz
respeito ao fato de se começar, naquele momento, a colocar na tela os diversos modos de
falar português espalhados pelo país. Estava sendo ampliada a questão, subjacente à
história do cinema brasileiro, sobre a forma que deveria ter a língua portuguesa falada nas
telas de cinema. Mais importante, estava sendo posto em xeque o dogma de uma
impostação teatral imperativa, de um sotaque presumivelmente neutro, sob os quais se
impunha um padrão elaborado, culto, urbano, que constituiu por muito tempo o modo de
falar desejável para o cinema brasileiro. Bernardet indica pontos de um mapeamento dessa
construção. Houve durante décadas a fio uma crítica ao cinema feito no Brasil, que dentro
de uma reclamação maior, de que a realidade brasileira e os rostos brasileiros não davam
bom material para cinema, afirmava que também a língua portuguesa não era
cinematográfica. (BERNARDET, 1978, p. 19) Destrinchando-se esse argumento, chegar-
se-ia à conclusão de que menos cinematográfico que o português como um todo deveria ser
o português falado coloquialmente no Brasil. Assim, não é difícil encontrar na história do
cinema sonoro brasileiro, especialmente entre as décadas de 1930 e 1940, ecos de uma
impostação e de um modo de falar que remetem à língua como é falada em Portugal, o que
é explicado, em parte, pela presença constante de atores e atrizes portuguesas no teatro
brasileiro, e, por conseguinte, no cinema. Bernardet comenta ainda que partiu da chanchada
carioca um passo no sentido de tornar mais popular o português falado nas telas. Neste

sentido, devemos lembrar o papel de Alinor Azevedo, um dos co-fundadores da Atlântida e


roteirista habitual dos filmes produzidos pelo estúdio. Por outro lado, seria aferível nos
diálogos das produções da Vera Cruz um esforço contrário, de restabelecer uma
“elegância” no falar “que pouco tinha a ver com o português comumente falado no Brasil”.
Para Bernardet, “com o cinema verdade da década de 1960 chegava às telas o português
falado no país. A afirmação da língua pelo som direto”.61 (BERNARDET, 1978, p. 11)

61
Cabe lembrar que o esforço de levar às telas a língua em sua pluralidade de formas não é privilégio do
cinema brasileiro. João Luiz Vieira lembra que em Ossessione, de 1943, Luchino Visconti ambientava a
história no vale do Rio Pó e inscrevia no filme o dialeto local, em atitude contrária ao esforço centralizador do
governo de Mussolini, que lograva alcançar uma uniformização da Itália segundo os parâmetros culturais
156

Mais do que isso, nos arriscamos a dizer que filmes como Maioria absoluta, que trazia as
vozes dos trabalhadores analfabetos do sertão de Pernambuco e da Paraíba, Viramundo,
com a fala de imigrantes de diversas partes do nordeste vivendo em São Paulo, Opinião
pública, imprimindo um jeito de falar típico da zona sul do Rio de Janeiro, Marimbás, com
os depoimentos dos pescadores, e outros mais tarde, como Fala Brasília, de Ne lson Pereira
dos Santos, Migrantes, de João Batista de Andrade, Rastejador, s. m. de Sergio Muniz,
produzido dentro do contexto da Caravana Farkas, Iracema, de Jorge Bodanski e Orlando
Senna descentralizavam não só as imagens que o cinema brasileiro fazia de seu próprio
país, mas descentralizavam igualmente e tornavam muito mais complexo o português
falado nas telas.62 A pluralidade de modos de relacionar-se com uma mesma língua passava
a ser catalogada pelos documentários que colocavam pessoas de diversas regiões do país
para se expressar frente às câmeras e aos gravadores. No capítulo seguinte estenderemos
este raciocínio, ao mostrar que há no cinema brasileiro produzido na última década a
continuidade dessa exploração das fronteiras do português.
O mesmo movimento de busca por uma língua no cinema mais próxima do que se
falava nas ruas, além do exemplo das chanchadas citado por Bernardet, é encontrado por
Alex Viany não nos documentários, mas na ficção do início dos anos 60. Para Viany,
filmes como O pagador de promessas e Os cafajestes são importantes também por
colocarem nas telas diálogos coloquiais, ajudando a quebrar o mito da incapacidade
cinematográfica da língua. (VIANY, 1999, p. 30) Para Ismail Xavier, outro passo na
direção de um português cotidiano pode ser encontrado na leva de adaptações de textos de
Nelson Rodrigues para o cinema na década de 1960, como Boca de ouro, de 1962,

Bonitinha mas ordinária, de 1963, A falecida, de 1965. (XAVIER, 2003, p.175)

romanos. O filme seria proibido por Mussolini, o negativo destruído. Em 1948, com La terra trema, Visconti
radicalizaria o processo. O cotidiano dos pescadores da vila siciliana de Aci Trezza é encenado por eles
próprios, e suas vozes inserem o dialeto local na história do cinema italiano e mundial. Tal representação nas
telas da diversidade de modos de se falar o italiano poderia ser entendida como uma das influências menos
comentadas do neo-realismo sobre o Cinema Novo.
62
Rastejador s. m. é um grande exemplo, pouco comentado, de inserção de um modo de falar característico
do interior do país, no caso do sertão da Bahia, que não está colocado no filme de modo pejorativo. A fala
rápida, de entendimento trabalhoso para quem a escuta, não é sinônimo de ignorância, mas investida de
sabedoria. A narração, a voz de Othon Bastos, informa sobre o conhecimento íntimo que a figura do
rastejador tem do solo, seu conhecimento das raízes, a habilidade de encontrar água, o trabalho de seguir o
rastro de homens e animais. O personagem retratado, na maior parte do filme o rastejador Batista, baiano de
Santa Brígida, explica as sutilezas de seu trabalho, enquanto o narrador louva seu conhecimento da terra, o
fato dele “ver o que o olhar urbano já não consegue ver”.
157

Curioso exemplo na ficção sobre a pluralidade, não do português, mas das línguas
faladas dentro do território brasileiro é Como era gostoso meu francês, de Nelson Pereira
dos Santos. Richard Peña comenta a divisão das vozes dos narradores. Por vezes Sebiopepe
é a dona da narração em Tupi; em outros momentos, o francês narra em sua língua natal. A
voz que narra troca de idioma. Há, no filme, espaço inclusive para um teste lingüístico ao
qual o francês é submetido, no momento em que os Tupinambás não sabem se seu
capturado é mesmo francês, portanto aliado, ou português, inimigo porque aliado dos
Tupiniquins. (JOHNSON, STAM, 1995, p. 191-199) Não deixando esquecer que a língua
falada na maior parte do filme é mesmo o tupi, com os diálogos em língua indígena tendo
sido escritos com a colaboração de Humberto Mauro.

3.1.2. A passagem na ficção, som direto e dublagem

Se nos documentários dos anos 60 é inconteste a importância da chegada dos


gravadores portáteis, na produção de longas-metragens de ficção da mesma época a
passagem para o som direto ocorreu de forma mais difusa, e seu impacto parece ter sido
diluído. Carlos Diegues dirige uma das primeiras experiências de ficção com uso do Nagra.
Ganga Zumba, de 1963, tem Luis Carlos Saldanha como o responsável pelo som. Diegues
era um entusiasta do Nagra e das possibilidades que o gravador portátil trazia. Diria mais
tarde a Alex Viany: “nós descobrimos esse gravador novíssimo e vimos nele a chance de
filmar com som direto, solução possível, solução que cabia na economia do cinema
brasileiro. Era um gravador leve, barato, diferente dos Magnatech, Magnasync, diferente de

toda aquela aparelhagem usada até então”. (VIANY, 1999, p. 437) À Helena Salem,
Diegues diria que o gravador “permitiu a existência de filmes como Maioria absoluta e
outros que revolucionariam o cinema brasileiro”. (SALEM, 1997, p. 117)
Paulo César Saraceni, que filmara com som direto em Integração racial, faria na
seqüência O desafio, outra vez com o gravador portátil. Mas o que fora testado nas
filmagens do documentário não funcionaria a contento na nova produção. O filme seria
dublado em sua maioria. Nos momentos em que o som direto não pôde ser substituído,
como nos números musicais de Maria Bethânia e Zé Kéti, há a presença indesejável do
ruído da câmera, acoplado de forma indelével ao som que vem do palco.
158

Câncer, de Glauber Rocha, é sempre citado como exemplo de experiência difícil


quanto ao sincronismo entre o som direto e a câmera. Iniciadas as filmagens em 1968, só
seria finalizado em 1971. Sobre o local onde ocorreu a finalização, Glauber diria
simplesmente a Jairo Ferreira: “prefiro não dizer”. (FERREIRA, 2000, p. 141) Antes que
Câncer estivesse pronto, o diretor filmaria e editaria O dragão da maldade contra o santo
guerreiro, exibido em 1969. Como lembra seu montador, Eduardo Escorel, “era o primeiro
filme em som direto concluído de Glauber”. Escorel faz importante esclarecimento ao
comentar sobre as “circunstâncias objetivas” que influíram na forma do filme. Escorel
explica que para isolar o ruído inconveniente do motor da câmera era necessário colocar o
blimp, uma caixa de ferro que ajudava a reter o barulho. A imobilidade da câmera gerada a
partir do peso extra seria preponderante para a decupagem em planos longos, fixos.
(ESCOREL, 2004, p. 82) O sincronismo entre o gravador de velocidade constante e a
câmera nem tão constante assim teria sido resolvido pela equipe de som direto formada por
Walter Goulart e Diego Arruda, graças a uma adaptação que permitia a alimentação
conjunta dos dois motores, gerando assim velocidade igual para ambos.
A demora na transição para o som direto não é exclusiva de Glauber Rocha. Pelo
contrário, seu caso é um exemplo típico de uma passagem que na ficção durou a inteira
década de 60 e meados da seguinte. José Inácio de Melo Sousa lembra que Eduardo
Coutinho, que conhecera o Nagra como produtor de Maioria absoluta, só passaria a utilizar
som direto em obras dirigidas por ele próprio a partir de 1975, nos episódios do Globo
repórter para a Rede Globo. (MIRANDA, RAMOS, 2000, p. 159) De fato, Faustão, por
exemplo, dirigido por Coutinho em 1971 ainda é dublado do início ao fim. Destaca-se

ainda a trilha musical da Banda de Pífanos de Caruaru. Walter Lima Jr. diria a Alex Viany
que somente em A lira do delírio , de 1978, passou a filmar com som direto, também depois
de experiência na televisão. (VIANY, 1999, p. 357) Em entrevista, de 1981, a Bernardet,
Tizuka Yamasaki e Juarez Dagoberto, nome dos mais relevantes dentre o conjunto de
técnicos de som brasileiros surgidos entre as décadas de 1960 e 1970, e do qual voltaremos
a falar mais à frente, comentam que durante muito tempo os produtores sugeriram aos
diretores que trabalhassem sem a gravação de som direto no set, pois isso acarretaria em
uma filmagem mais demorada, e em mais takes, já que algo poderia sair errado para o som
que não para a imagem. Seria, segundo esse raciocínio, mais prático dublar tudo depois.
159

(BERNARDET, 1981, p. 24) Juarez Dagoberto lembra, na mesma entrevista, que mesmo
se for clara a opção pela dublagem é importante a captação de som no local. É o conceito
de som guia, um som direto que, é sabido, não será aproveitado na montagem final, mas é
editado num primeiro momento, de forma a servir de parâmetro para a dublagem. Com o
som editado como guia, o trabalho de dublagem é facilitado, pois se sabe exatamente em
quais fotogramas a voz deve entrar, além de ter-se contato com a entonação srcinal. A
simulação do sincronismo tem chance maior de funcionar, uma vez que basta inserir o som
dublado exatamente no local em que se encontrava o som direto.
Para a dublagem, em um primeiro momento, como lembra Hernani Heffner em
depoimento dado a nós, eram bastante utilizados os estúdios da Atlântida. A Herbert
Richers investe em estúdios de dublagem na virada para a década de 1960, prestando
serviços para cinema e televisão. Vindo da Espanha, Carlos della Riva se estabeleceria no
Brasil como mixador e proprietário dos estúdios Rivaton. A falecida, de 1965, já tem o som
finalizado em sua empresa. Também o teriam, para citar alguns, Edu coração de ouro, de
Domingos de Oliveira, em 1968, e o citado O Dragão da maldade contra o santo
guerreiro. Oriundo de departamento de som da Atlântida, outro técnico de renome, e de
imensa atividade na época é Aloísio Viana, assim como seu irmão, Alberto. Fosse com
serviços de técnico de som, mixador, técnico de transcrição, Aloísio construiu uma
filmografia que tem início em Aviso aos navegantes , de 1950, passa pelos principais
sucessos da companhia, como Carnaval Atlântida, Matar ou correr, Nem Sansão nem
Dalila, O homem do Sputnik, Treze cadeiras. Mais tarde, destaca-se a parceria com Carlos
Hugo Christensen, em Viagem aos seios de Duília, de 1961, Crônica da cidade amada, de

1964 e O menino e o vento, de 1967, que comentaremos a frente. É o mixador de Deus e o


diabo na terra do sol e de Terra em transe, de Fome de amor, de 1968, de Navalha na
carne, de 1969, que também citaremos com mais detalhes. Chega aos anos 80, quando se
destacam Cabaret Mineiro, e Pra frente Brasil, de 1982.
Exemplo claro da passagem paulatina para o som direto no campo da ficção
encontra-se, paradoxalmente, na obra de um dos responsáveis pela introdução do Nagra no
Brasil. Em 1965, Joaquim Pedro de Andrade conclui a produção de O padre e a moça .
Embora Joaquim Pedro conhecesse o Nagra, como dissemos, desde o início da década, o
filme de 1965 é dublado em sua totalidade. O Padre e a moça serve bem de exemplo tanto
160

das características da dublagem naquele momento quanto de filme que faz da própria
dublagem ferramenta essencial para sua construção narrativa. Praticamente todos os
personagens mantêm sempre suas vozes baixas, mesmo quando colocados em situações de
conflito. O padrasto, interpretado por Mário Lago, é o exemplo mais claro. Em suas
discussões com a filha, Helena Ignez, ou com os habitantes da pequena cidade, ele não
eleva a voz, embora mantenha sempre o domínio das conversas. A moça raramente sobe a
voz. Nos diálogos com o padrasto, conserva o tom tímido mesmo quando o responde. O
padre novo, Paulo José, que chega à cidade para substituir o finado padre Antônio, é, no
início, o que fala mais baixo entre todos, envergonhado pela situação de forasteiro e ao
mesmo tempo substituto de uma das autoridades do vilarejo. Há apenas um personagem, o
louco da cidade, Fauzi Arap, que destoa do âmbito geral das vozes recatadas. Na seqüência
do enterro do padre antigo, presidido pelo novo, a explosão verbal do louco delineia sua
situação, a do personagem que, embora parvo, é sabedor dos segredos do povoado.
Predominam na decupagem os planos gerais. Os personagens falam das mais
variadas distâncias com relação à câmera. Às vezes um deles, o padrasto, por exemplo, está
próximo a ela, enquanto sua companheira de diálogos, a filha, fala dos mais variados
lugares do quarto: da janela; encostada a uma parede; da parede oposta; finalmente perto
dele. Pois a voz de ambos, a voz de todos no decorrer do filme, está sempre em primeiro
plano, independente de se na imagem estão em primeiro plano ou não. As vozes seguem
em plano próximo, mesmo quando os personagens que as emitem estão distantes, em plano
geral. É a textura característica do som dublado, recolocado em estúdio, desde que não haja
a simulação para o microfone do ponto de vista da câmera. O primeiro plano da voz que

vemos na tela não é, na verdade, correspondente à distância dos personagens para a câmera
no momento da ação, mas à distância do microfone do estúdio para a boca de quem fala.
Assim, evidentemente, a escala do som não corresponde à escala da imagem.
O filme de Joaquim Pedro, porém, não faz disso um demérito, como se poderia
pensar, mas utiliza esse pressuposto técnico em favor da narrativa. Um filme em que todos
falam baixo, em que há segredos na cidade mal encobertos, mas que também não são ditos,
só poderia ter essa textura de voz sendo dublado. Se tivesse sido rodado em som direto, não
haveria como a pessoa que está distante da câmera falar baixo e mesmo assim ter sua voz
plenamente capturada, mantendo-se ainda a impressão de um filme passado em uma
161

cidadela silenciosa. Sob as vozes, baixas porém em primeiro plano, estão inseridos sons
ambientes que ajudam a caracterizar a impressão de um lugar pacato. Pássaros, latidos de
cachorros distantes, demais sons de uma cidade interiorana acompanham os diálogos.
O padre e a moça ainda reserva um momento no qual o silêncio não se trata
apenas de uma impressão motivada pela proximidade das vozes calmas e som ambientes
discretos. Quando se resolve a tensão entre a moça e o padre, na cena de sexo em que os
sentimentos reprimidos afloram, Joaquim Pedro escolhe cortar da música de Carlos Lyra,
que não por acaso sutilmente chegava a um ápice, para silêncio total. Do primeiro toque da
mão de Paulo José nas costas de Helena Ignez até o plano do rosto dele contra o chão,
diversos planos, fotos paradas de detalhes dos corpos que narram o sexo, têm como trilha
sonora silêncio absoluto. Interessante é que se a percepção desse silêncio no início é
favorecida pelo contraste com a música, a volta dos sons é sutil, a ponto de tornar-se difícil
para o espectador precisar se permanece o silêncio enquanto os dois se preparam para
seguir a caminhada ou se os sutis sons ambientes já estão presentes novamente.
O longa-metragem seguinte de Joaquim Pedro de Andrade, Macunaíma, de 1969,
conta com Juarez Dagoberto e Walter Goulart na equipe de som. Mas é sobre o filme
imediatamente posterior a Macunaíma que pretendemos falar, pois em Os inconfidentes a
experiência com o som direto é radical, e extremamente bem sucedida. Mais uma vez, o
técnico de som é Juarez Dagoberto. Os inconfidentes é comentado dentro da historiografia
do cinema brasileiro por conta da ironia com que se constrói como filme histórico.
Aproveitando o fomento momentâneo da produção desse gênero cinematográfico, como
forma pedagógica de uso do cinema proposta pelo regime militar, Joaquim Pedro produz

uma obra que, nas palavras de Bernardet “com certeza não contribui para uma visão
pomposa e heróica da história do Brasil”. (BERNARDET, 1978, p.50) João Luiz Vieira
comenta em texto recente como Os inconfidentes é eficaz em descontriur o pressuposto
adotado pelo governo Médici de que os filmes históricos poderiam “recuperar um olhar
ufanista voltado para o passado do país” ao inserir marcas que permitem a identificação do
presente reprimido dentro da representação do passado. (VIEIRA, 2005, p. 255-259)
Randal Johnson dá exemplos da ironia que, na verdade, é menor com a história do
Brasil do que com o momento contemporâneo ao filme. A própria escolha de Aquarela do
Brasil, samba exaltação, cantador de um Brasil grande, identificado com o Estado Novo de
162

Vargas, como música dos créditos iniciais, marca um primeiro comentário irônico por parte
da trilha sonora. A opção por transcrever como diálogos poemas do Romanceiro da
inconfidência, de Cecília Meirelles, dos poetas inconfidentes, personagens do filme, como
Cláudio Manoel da Costa, Tomás Antonio Gonzaga e José Alvarenga Peixoto, além dos
próprios Autos da Devassa dão a esses diálogos um tom anti-naturalista. (JOHNSON,
1984, p. 34-42) Nesse sentido, deve-se ressaltar que há momentos de quebra, quando as
vozes perdem a impostação com que dizem os poemas e assumem um tom mais coloquial.
O tom pomposo, na verdade, não é uniforme em todo o filme. O momento mais claro dessa
ruptura está por volta dos dez minutos de projeção. Reunidos para tratar da confecção da
bandeira de Minas Gerais, os poetas estão a dizer versos em volta da mesa. Tomás Antonio
Gonzaga, interpretado por Luiz Vilaça, se dirige a Alvarenga Peixoto, Paulo César Pereio:
“Alvarenga, deixa os versos, e vamos aos fatos”. Alvarenga, Pereio, levanta-se da mesa e
surpreende ao mudar o registro de sua voz, abandonando, junto com os versos, a
impostação. A partir de um inicial “pois bem”, Pereio centraliza a cena. Seu discurso sobre
como não se deve imitar a bandeira norte-americana é dito com a voz solta, coloquial, no
tom sarcástico próprio ao ator.
O que mais queremos ressaltar em Os inconfidentes é a textura característica do
som direto, oposta à forma como soa a dublagem em O padre e a moça . Não há em Os
inconfidentes a diferença de escala entre as vozes e as imagens observada nos planos gerais
do primeiro filme. Desta vez, vozes e imagens estão unidas de forma evidente. As locações,
casarões de Ouro preto de assoalhos de madeira, de pés direitos altos, fazem com que o
som reverbere pelos cômodos. O eco confirma para nós, espectadores, que aqueles sons

pertencem àquele lugar. Quanto mais os atores projetam suas vozes, mais sentimos que o
som preenche aquele espaço. Determinados planos poderiam, se assim quisesse o diretor,
ter sido pensados como testes para a gravação de som direto. No quarto de Cláudio Manoel
da Costa, enquanto este se encontra deitado, o visitante Tomás Antonio Gonzaga fala dos
mais diversos lugares do aposento. Da porta, no início; atravessando o quarto, rumo à
janela; da janela; da beirada da cama. A palavra passa para Cláudio Manoel da Costa, que
começa a dizê-las de um lado da cama, rola a cabeça sob o travesseiro, termina rente à
câmera. O microfone seguiu um deslocamento que cobria todo o quarto, as mais variadas
distâncias, e obteve sucesso em manter as vozes dos atores sempre no eixo correto de
163

captação. Exemplos como este são vários no decorrer do filme. Há planos nos quais cinco
ou seis personagens falam, um após o outro, andando de uma extremidade à outra do
espaço, e, assim como faz o foco, o microfone os acompanha o tempo todo. O militar
interpretado por Carlos Kroeber vem andando em direção à câmera. Sua fala, sobre como
não há por que temer uma revolta popular, só será concluída depois que Kroeber tiver dado
meia volta, caminhado para longe da câmera e estiver de costas em um plano aberto. “As
armas”, diz ele, “estão nas minhas mãos”. Para João Luiz Vieira, o som direto traz para o
filme alguns dos elementos que, como dissemos, inserem a época de sua produção sobre as
imagens do passado. A captação direta permite que “sons contemporâneos invadam o
espaço diegético da ação”. Ouvem-se, por exemplo, sons de trânsito sobre as cenas de
tortura, o que remete diretamente a 1972. (VIEIRA, 2005, p. 259)
Há espaço ainda em Os inconfidentes para um uso de ruídos que contribuem
para o entendimento do que está sendo dito. Quando Tiradentes, José Wilker, encontra-se
às escondidas com Silvério dos Reis, Wilson Grey, para ingenuamente confidenciar que
está sendo perseguido, carruagens passam fora de quadro, nas pausas entre as frases,
corroborando sua suspeita. Nervoso, ele olha para fora do pátio onde estão, respondendo ao
som das carruagens, que na verdade seriam inseridas na pós-produção.
Cabe aqui dizer que Juarez Dagoberto é um dos profissionais de som para cinema
mais relevantes das últimas cinco décadas do cinema brasileiro. O técnico de som de Os
inconfidentes começa sua carreira no início da década de 1950, em São Paulo, onde
“aprende com Alberto Cavalcanti”, como diz em entrevista a Bernardet. Na Vera Cruz, é
assistente do montador Rex Endsleigh. Em 1953, tem as primeiras experiências com o som

direto nos estúdios da Maristela. Já com uma dezena de trabalhos realizados, participa em
1958 da equipe de som de O grande momento. Ao fim da década de 1960, com um bom
número de longas-metragens no currículo, está no set de filmagem de Macunaíma. Em
1972, mesmo ano de Os inconfidentes, trabalha em Quando o carnaval chegar, de Carlos
Diegues. Pontos altos de sua extensa filmografia são ainda A queda, de Ruy Guerra, em
1976, Engraçadinha, de 1981, Fitzcarraldo, integrando a parte brasileira da equipe de
Werner Herzog, Doida demais, em 1989. Em atividade até os dias atuais, ainda contabiliza,
entre outros, Navalha na Carne, de Neville D’Almeida, em 1997, Tolerância, de Carlos
164

Gerbase, em 2000, Filme de amor, de Bressane e Harmada, de Maurice Capovilla, ambos


em 2003.
Além do trabalho de Juarez Dagoberto, há outro motivo claro para o bom nível
técnico do som de Os inconfidentes. Sua finalização já ocorre nos estúdios da SOMIL, Som
e Imagem Ltda. fundada em 1970, em Botafogo, por Jarbas Barbosa, Sinval Beltrão e pelo
técnico de som Nelson Ribeiro. Hernani Heffner lembra que a SOMIL trazia para o país
uma tecnologia de pós-produção não vista até então. Matéria do Jornal do Brasil de 12 de
dezembro de 1971 exaltava a qualidade superior dos estúdios, por conta dos novos
gravadores, das mesas de mixagem com maiores recursos, do isolamento acústico
apropriado. A venda do estúdio, negociada entre 1975 e 1976, foi alvo de certa repercussão
na imprensa carioca. O Globo de 19 de outubro de 1976 lamentava o fechamento “do maior
e melhor estúdio de som da América Latina”, alertando para o passo para trás que estava
prestes a ser dado no som do cinema brasileiro. Hernani Heffner lembra que o prejuízo não
foi tão grave porque em São Paulo o inglês Michael Stohl abria, paralelamente, os Estúdios
de Som Álamo, de onde surgiria um dos principais nomes quanto à finalização de som no
Brasil, José Luis Sasso, que se mantêm até hoje como referência. (MIRANDA, RAMOS,
2000, p. 520-521) Nelson Ribeiro, o técnico de som entre os fundadores da SOMIL,
começara sua carreira na década de 1950, no Rio de Janeiro. Seu nome já aparece nos
créditos de O rei do samba, produção de Luis de Barros de 1952; em Agulha no palheiro,
de Alex Viany, no ano seguinte, e mais tarde em outros títulos relevantes como Assalto ao
trem pagador, em 1962, e Boca de ouro, quando começa uma parceria com Nelson Pereira
dos Santos que seguiria no citado Como era gostoso meu francês e em Quem é beta?

Como podemos ver, parte da ampla mudança na textura do som no cinema


produzido no Brasil entre as décadas de 1960 e 1970 pode ser creditada à mudança nos
parâmetros de gravação do som direto, mas outra parte não, como no exemplo de O padre e
a moça. No trecho do texto que se segue, continuaremos vendo que a relação com o som
direto, no caso da ficção, não é obrigatória. Parte significativa da produção continuaria a ter
seu som construído na montagem, a despeito da presença dos gravadores portáteis no
mercado. Nesses filmes, estaria-se usufruindo da liberdade de criar relações entre sons e
imagens que vão muito além do sincronismo, da estética realista, e dos padrões ditados
pelo cinema mais convencional, com sua ampla e rígida codificação para o uso do som. Na
165

verdade, muitas das quebras com as convenções sonoras que se seguiram devem ser
compreendidas dentro da mudança proposta para forma e conteúdo no cinema de produção
mais independente que surgia na década de 60.

3.2. A MUDANÇA DE FORMA E CONTEÚDO

Em O espetáculo interrompido – literatura e cinema de desmistificação, Robert


Stam discorre sobre o papel relegado ao som no cinema convencional. O som deve, na
maior parte do tempo, “completar e intensificar a impressão de realidade oferecida pelas
imagens”. Nas palavras de Stam,

“as convenções do realismo dramático exigem que toda imagem esteja acompanhada
pelos ‘sons naturais’ gerados por essa própria imagem na vida real. O som amplifica,
juntamente com as imagens, o poder mimético do veículo. Completa a imagem com seus
poderes evocativos e dinamiza o discurso narrativo camuflando a descontinuidade através
do fluxo contínuo de som sobre os cortes” (STAM, 1981, p. 172)

Dentro do amplo esquema a serviço da impressão de realismo, a voz deve estar


sempre legível, e na maior parte das vezes está sincronizada à boca de quem fala, em
quadro; os ruídos, que parecem ser relegados a segundo plano, têm papel importante,
provendo os sons de todas as ações, e disfarçando a descontinuidade das imagens, como diz
Stam, na forma de sons ambientes contínuos, ajudando a criar unidades espaciais e
temporais. A música, “sempre mancomunada com a imagem” para usar suas palavras,
dirige as emoções do espectador, e para tanto precisa ser redundante com relação ao que as
imagens mostram. Com senso de humor, mas firmemente ancorado nos padrões reais, Stam
diz que “para cenas de amor e de paisagens, tocam-se flautas; para as guerras, tambores
marciais; em casamentos, Mendelsohn; em cenas fantásticas, trêmolos; cordas sinistras
para perigo iminente”. “No cinema realista”, completa ele, “imagens e sons musicais
escoram-se mutuamente. A música serve para conduzir o espectador pelas duras passagens
da diegese”. (idem, p. 176-178)
Sobre as funções da música, Claudia Gorbman chega a um resumo relativamente
simples, mas bastante completo, em Unheard melodies, de 1987. Gorbman comenta, além
166

dos papéis centrais citados por Stam, quanto a prover continuidade e exacerbar emoções,
que a música confere unidade narrativa, graças principalmente à repetição de temas,
alocados no decorrer da história para servir de comentário a personagens ou situações
específicas. A música estaria subordinada à narrativa de vários modos, suprindo
demarcações formais, sublinhando ações, lugares, pontos de vista; seria ainda “invisível”
na tela, ou seja, na maior parte das vezes não há referência na imagem de onde afinal vem a
música, sem que o espectador preocupe-se com isso. Esta talvez seja a maior vitória da
construção naturalista do som no cinema clássico. Afinal, todos os outros elementos
sonoros, vozes, ruídos, estão diretamente ligados ao que se vê. A música, via de regra, é a
única manifestação sonora com carta branca para estar por sobre as imagens, vindo, na
verdade, de lugar algum. Suas ligações com as imagens são tão íntimas que o espectador se
esquece de pensar sobre sua localização espacial. Gorbman comenta ainda que além de
invisível na tela, a música no cinema convencional atua de modo a ser “inaudível
conscientemente” para o espectador. Posta sob os diálogos, por vezes, subordinada às
imagens sempre, a música na maior parte do tempo funciona como uma base que o
espectador não ouve por si mesma, mas a percebe de forma difusa no amálgama que
compõe a ação na tela. (GORBMAN, 1987, p. 73) Este último argumento de Gorbman
pode parecer exagerado, mas é de fácil verificação. Muito por conta da comentada
redundância com relação às imagens, se perguntarmos a um espectador qual foi o momento
de entrada da música que está tocando, ou quando exatamente saiu a música que tocava,
são grandes as chances dele dizer que não percebeu. A música, em grande parte das vezes,
entra e sai justamente de modo a não causar impactos desconcertantes, contribuindo para a

noção de continuidade comentada por Stam.


Em contraposição, como exemplo de quebras desses padrões, Stam cita a obra de
Godard. Em suas palavras, “Godard pertence a uma tradição cinematográfica que percebe
no som uma maneira de oferecer novas possibilidades de justaposição poética e ideológica,
uma maneira de criar contraponto à imagem em vez de simplesmente sublinhá-la.” (STAM,
1981, p. 172) Sobre a tradição do contraponto sonoro, Stam refere-se, evidentemente, ao
manifesto assinado em conjunto por Eisenstein, Pudovkin e Alexandrov, a Declaração
sobre o futuro do cinema sonoro , de 1928, citado no segundo capítulo. No decorrer de sua
filmografia, seja no anti-musical Uma mulher é uma mulher, em Duas ou três coisas que eu
167

sei dela, em Pierrot le fou, Prénom Carmem, Alphaville, ou nos filmes do Grupo Dziga
Vertov, Godard, como nota Stam, “quebra todos os tabus da mixagem”: o de que todo som,
a voz principalmente, deve ser legível, de que não deve haver mudanças bruscas na trilha
sonora, de que a continuidade dos sons deve corresponder à continuidade das imagens. O
norte-americano lembra ainda que o “uso do silêncio como um componente dialético da
trilha sonora” é uma das principais ferramentas de Godard, contrariando a noção de que
momentos de silêncio total causariam um estranhamento demasiado forte para o
espectador. (STAM, op.cit. p. 172-175) Quanto ao uso do silêncio e a quebra da
continuidade mediante suas inserções intercaladas com músicas ou ruídos, é
particularmente claro o início de Uma mulher é uma mulher, de 1962.
Stam cita ainda, como exemplo de filme que inverte os padrões sonoros realistas,
Terra em transe, mas sobre ele nos reservamos o direito de falar mais à frente. Como
veremos, Terra em transe não é um caso isolado, nem mesmo a obra de Glauber Rocha o é,
de quebra com as convenções realistas do som no cinema brasileiro moderno. Antes,
porém, há de ser dado um contexto que faça compreender a variedade de rupturas que se
seguiria. Em parte, é evidente, as rupturas sonoras estão inseridas nas fraturas da narrativa
por inteira. O contexto que leva às mudanças é conhecido. Ainda assim, tracemos dele um
rápido panorama.
É comum traçar um mapeamento sobre o cinema independente brasileiro da década
de 60 que tem como um dos pontos iniciais os congressos do início da década anterior.
Algumas da falas comumente mais citadas, dentre aquelas pronunciadas nos congressos,
são as de Nelson Pereira dos Santos. Nos interessa diretamente O problema do conteúdo no

cinema brasileiro, apresentada no Primeiro Congresso Paulista do Cinema Brasileiro,


ocorrido entre 30 de agosto e 1 de setembro de 1951. Naquela ocasião, Nelson Pereira
colocava que “o cinema existente até aquele ponto não expressava a nossa realidade” e que
os cineastas precisavam “relacionar o problema do conteúdo com os demais problemas do
cinema brasileiro”. O discurso de Nelson Pereira continha uma bipartição clara quando ele
coloca que a ênfase deve ser no conteúdo dos filmes e não na parte técnica. “Ao público”
diz, “interessa mais a história do que a técnica” afirmando que “o público não liga para
uma fotografia mais ou menos, ou para a qualidade do som”. (apud AVELLAR, 1995, p.
50-51) Nelson Pereira reafirmaria, mais tarde, em entrevista a Alex Viany, que um jovem
168

diretor precisa prioritariamente “saber o que quer dizer” e não necessariamente deveria ter
conhecimentos técnicos sobre lentes, microfones. (VIANY, 1999, p.97) Evidentemente,
essas palavras devem ser entendidas dentro de um contexto em que os realizadores vêem-se
na obrigação de negar o enorme aparato técnico e pessoal necessário para uma produção
nos modelos hollywoodianos. Ao mesmo tempo, está sendo proposta uma forma de
produção mais simples, mais barata, de realização possível dentro da realidade do cinema
brasileiro. A discussão polêmica sobre como o domínio da técnica nos moldes do cinema
clássico norte-americano levaria a uma simulação dos efeitos produzidos por aquele
cinema, e de como esse modelo deveria ser combatido, substituído por outro que se
adequasse às necessidades locais, foi debatida nos anos seguintes de várias formas, sob
vários prismas, e nem sempre ficou clara, ou foi bem compreendida.
Contra o modelo norte-americano, uma das influências aceitas, e sempre
comentada, seria a do neo-realismo italiano. O próprio Nelson Pereira lembra, também
falando para Alex Viany, do impacto, na época, do modo de produção italiano, fora dos
estúdios, com equipamento mais leve que permitia sair às ruas, contando histórias saídas do
cotidiano das pessoas. (VIANY, 1999, p. 483) Quanto ao som, comente-se que na obra de
Nelson Pereira dos Santos que se seguiria, Rio 40 graus, em 1955, e Rio zona norte, em
1957, ainda não havia condições de obter a impressão maior de realidade que o Nagra
imprimiria à produção posterior. Os diálogos em externas ainda são dublados, por falta de
um equipamento portátil de captação. O uso da música - Zé Kéti arranjado por Radamés
Gnatalli - ainda responde a um “arredondamento da tradição do samba”, mas palavras de
Hermano Viana, por maestros fronteiriços entre a cultura popular e a erudita. Gnatalli,

como lembra João Máximo, tinha, desde longa data, esse papel de “modernizador do
acompanhamento do samba”, como comprovam orquestrações suas para Orlando Silva, no
fim da década de 1930, até Dick Farney, já na passagem para a Bossa nova. (MÁXIMO,
2003, p. 129) Assim, A voz do morro está emoldurada por arranjos sofisticados. A música
aproxima-se do popular ao mesmo tempo em que mantêm certa distância. É em parte pela
textura das vozes dubladas, mas também pelo uso híbrido, próximo do popular, mas não
completamente, da música que opiniões sobre a obra de Nelson Pereira dos Santos na
169

década de 1950 a entendem sim como um ponto de ruptura, mas parcial, ainda tributária de
formas narrativas clássicas.63
É amplo o contexto que, na virada para a década de 1960, fomenta a busca por um
cinema antiimperialista em forma e conteúdo. Em texto de 1965, O cinema e a cultura
brasileira, Alex Viany lembra que, nos anos imediatamente anteriores, a crise no modelo
de produção “da velha Hollywood” como ele coloca, propiciava o surgimento de cinemas
independentes em um espectro de países tão amplo quanto Argentina, Canadá, Cuba,
França, Hungria, Índia, Inglaterra, Itália, Japão, Polônia, Romênia, Tchecoslováquia,
Vietnã, e mesmo dentro das estruturas maiores dos próprios EUA e da URSS. (VIANY,
1999, p. 197). Dentro da situação sócio-política brasileira, a idéia da diferenciação
nacionalista mantinha-se presente, ganhando força desde o retorno de Getúlio Vargas ao
poder, em 1950, como lembra Raquel Gerber em Glauber Rocha e a experiência
inacabada do cinema novo. Gerber coloca que a questão de uma “autonomia nacional” fora
posta por Vargas de forma clara. O governo de Juscelino Kubitschek tomaria posições
ambíguas quanto ao tema do nacionalismo. A criação do ISEB, o Instituto Superior de
Estudos Brasileiros, ratificaria a necessidade do fomento de uma consciência nacional
desenvolvimentista. Tal projeto é evidente, mas ao mesmo tempo aumenta a abertura do
país ao capital estrangeiro, cujos exemplos mais claros estão nos incentivos à indústria
automobilística. Após o interlúdio de Jânio Quadros, o governo João Goulart parecia
permitir a possibilidade de abandono do ideário capitalista, de um confronto ideológico
significativo com os EUA, quiçá da revolução. As recentes experiências de Cuba e Argélia
permitiam pensar assim. O cinema, como a música, o teatro, as artes plásticas, não ficaria

isento dessa discussão. (GERBER, in SALLES et al, 1977, p. 15-18) Eduardo Escorel
lembra a conexão entre o projeto do Cinema Novo, especialmente claro nas palavras de
Glauber Rocha, e uma oposição à modernização capitalista iniciada no governo JK.
(ESCOREL, 2004, p. 17) A necessidade de assumir o tom antiimperialista na produção
independente da primeira metade dos anos 60 ficava nítida. Bernardet conceituaria a
polarização entre uma forma de cinema que deveria ser condenada por ser mimética do
filme estrangeiro e a forma oposta, que tornaria evidente a diferenciação nacionalista.

63
Como na análise de Randal Johnson emCinema novo X 5 – Masters of Contemporary Brazilian F ilm.
(JOHNSON, 1984, p. 166-167)
170

(BERNARDET, 1978, p. 70) Nesse sentido é sempre comentada a querela contra o cinema
de estúdios produzido no Brasil até então, discussão, novamente, mais clara e violenta nas
palavras de Glauber Rocha. Sua Revisão crítica do cinema brasileiro, de 1962, ataca
veementemente o modelo de produção, e os produtos, da chanchada carioca e da Vera Cruz
paulista, por estarem supostamente afinados demais com o cinema comercial estrangeiro.
Não que fosse especialmente difícil, no início dos anos 60, criticar as chanchadas, no seu
ocaso após duas décadas de permanência, ou a experiência do cinema industrial paulista,
finda depois de poucos anos de produção expressiva.
Questões de conteúdo e forma, de técnica e estética interpenetravam-se na discussão
sobre o ideário do cinema independente brasileiro. Era preciso colocar o povo, seus
problemas, suas dificuldades cotidianas no centro da tela e, mais importante para este texto,
fazê-lo de forma cinematograficamente adequada à exposição da situação local, posto que o
embelezamento decorrente da excelência técnica hollywoodiana não cabia. Glauber Rocha,
no famoso Uma estética da fome dirá que o Cinema Novo opõe-se “aos filmes de gente
rica, em casas bonitas, andando em automóveis de luxo, porque esses filmes se opõem à
fome, como se nas estufas e nos apartamentos de luxo os cineastas pudessem esconder a
miséria moral de uma burguesia indefinida e frágil, ou se mesmo os próprios materiais
técnicos e cenográficos pudessem esconder a fome que está enraizada na própria
incivilização” (ROCHA, 1965) Orlando Senna diria, em entrevista a Alex Viany, que o
Cinema Novo, ao se desprender das raízes estrangeiras e decorrer da “verdade brasileira,
não é um cinema bonito ou divertido. Não é espetáculo. Pelo contrário, queremos fazer um
cinema feio, que não aliene o homem”. Para Randal Johnson, Glauber Rocha personificava

de forma enfática uma alternativa ao “ilusionismo polido, eficiente e idealizador de


Hollywood”. (JOHNSON, 1984, p. 120) Johnson transcreve trecho do artigo de Rocha O
cinema novo e a aventura da criação 64, no qual o cineasta defende que os filmes do
movimento são

“tecnicamente imperfeitos, dramaticamente dissonantes. Para nós, novo não significa


perfeito, por que a noção de perfeição é um conceito herdado de culturas
colonizadoras, que determinam seu próprio conceito de perfeição de acordo com os
interesses de um ideal político” (apud JOHNSON, 1984, p. 121)

64
Publicado srcinalmente em Hablemos de cine, n.47, em 1969.
171

Jean-Claude Bernardet dirá em 1979 que diante da concreta impossibilidade de


atingir-se um padrão internacional inatingível, foi, naquele momento, “da maior
importância assumir a antítese, assumir o mal-feito”. A partir do exemplo de Aruanda, de
Linduarte Noronha, Bernardet comenta que ali

“as limitações técnicas tinham sido investidas, de insuficiências passavam à expressão de uma
situação cultural, passavam a linguagem, não em si, mas porque assumidas, não disfarçadas e
não desculpadas. Isso não por assumir gloriosamente uma situação de inferioridade, o que
consistiria em preservar o padrão internacional de qualidade como referência, mas por se
adequar à realidade e transformá-la em força expressiva.” (BERNARDET, 1978, p. 78)

Ismail Xavier segue o mesmo raciocínio quando diz, em 2001, que naquele
momento a “escassez de recursos transformou-se em força expressiva e o cinema encontrou
a linguagem capaz de elaborar com força dramática os seus temas sociais”. Para Xavier,
“foi o momento de questionar o mito da técnica e da burocracia em nome da liberdade de
criação e do mergulho na atualidade” (XAVIER, 2001, p. 28)
Questão importante a ser mencionada é a relação entre os espectadores e o som de
filmes que buscavam novas formas de expressão. Joaquim Pedro de Andrade, em entrevista
a Viany, comenta a dificuldade de comunicação entre o público e um cinema que procura
quebrar as mesmas regras que acostumaram esse público. Diz Joaquim Pedro:

“sem dúvida, o público está acostumado a ser dirigido. No processo tradicional, industrial, a

montagem tende realmente a conduzir a emoção e a crítica do espectador em relação aos


acontecimentos do filme. Quando o espectador encontra, em qualquer filme, matéria de
especulação, ele dúvida, muitas vezes reage com irritação, e, em conseqüência, há um
rompimento de comunicação, ou pelo menos de identificação” (VIANY, 1999, p. 163)

Sobre as novas propostas, e especificamente sobre a reflexividade presente nos


filmes, Joaquim Pedro comenta:

“Isto provocou um certo afastamento das platéias acostumadas com o filme americano, que
embala o sujeito do início ao fim com uma montagem fluida, com uma montagem casual. Um
172

plano puxa o outro e o espectador não tem tempo de ficar refletindo, de se afastar do filme
para tomar uma posição crítica com relação a ele. Nesse tipo de cinema procura-se disfarçar o
corte, fazer a coisa correr de tal modo que o espectador é conduzido do princípio ao fim. Não
dá tempo do sujeito se afastar. A gente pretendia justamente o contrário. A falta de
comunicação, portanto, era um sinal de que estava ocorrendo de nossa parte uma nova
proposta”. (VIANY, 1999, p. 267)

Glauber Rocha, em O cineasta tricontinental,65 admitia que os filmes do Cinema


Novo iriam “inevitavelmente chocar o paraíso da inércia do público”. (apud JOHNSON,
STAM, 1995, p. 75) Em texto posterior, Das sequóias às palmeiras66, Glauber diria que “as
platéias colonizadas pela estética comercial/popular de Hollywood, pela estética
populista/demagógica de Moscou e pela estética artística/burguesa da Europa precisam ver,
ouvir e compreender uma estética nova, popular, revolucionária. Está é a única justificativa
para o terceiro mundo. Mas, também, é necessário criar esta estética”. (apud JOHNSON,
STAM, 1995, p. 89)
Há uma certa razão na discussão em torno do estranhamento por parte dos
espectadores quando postos frente a novas formas de unir imagens e sons. Quanto ao
segundo, que é nosso objeto, podemos afirmar que se o espectador se choca com a não-
linearidade da história, com o corte abrupto, com indícios de reflexividade, choca-se
também com a quebra das convenções sonoras: com a música que diverge do que as
imagens mostram, por exemplo, mas principalmente com a fratura na preponderância e
inteligibilidade intocáveis da voz, com elementos que deixam de fazer automática a sua
compreensão.
O questionamento da técnica impecável da qual o cinema norte-americano era o
mais bem sucedido modelo não foi restrito ao cinema brasileiro. Pelo contrário, reverberou
por vários pontos da América Latina. O texto em que a questão está exposta de forma mais
clara, a partir de seu próprio título, é Por um cine imperfecto, do cubano Julio Garcia
Espinosa67. Nele está todo o mesmo raciocínio sobre a impossibilidade de se mostrar o
cotidiano do povo segundo uma forma burguesa cristalizada, que expressa na tela a
ideologia do dominador. Nas duas primeiras linhas, Espinosa diz que um cinema perfeito,

65
Publicado srcinalmente em Cahiers du cinema de novembro de 1967.
66
Publicado na Positif n. 114, de março de 1970.
67
Escrito em 7 de dezembro de 1969, publicado em Cine cubano, n.66/67.
173

técnica e artisticamente, é quase sempre um cinema reacionário. O cubano declara que o


cinema imperfeito não deveria mostrar apenas os problemas do povo, mas o processo que
leva a tais problemas. O cinema imperfeito deveria ser o oposto de um cinema que “ilustra
belamente conceitos ou idéias”. O cinema perfeito tecnicamente seria um cinema
exibicionista, defeito que os filmes que falam ao povo do terceiro mundo não poderiam ter.
No penúltimo parágrafo, Espinosa diz que “ao cinema imperfeito não interessa a qualidade
nem a técnica. O cinema imperfeito pode ser feito com uma Mitchell ou com uma câmera
de Super 8. Ao cinema imperfeito não interessa um gosto pré-determinado, muito menos o
bom gosto”. (ESPINOSA, 1969)
O também cubano Tomás Gutiérrez Alea, em Cine “popular” y cine popular, toca,
assim como Espinosa, na relação entre burguesia e cinema. Alea comenta que o cinema se
desenvolveu dentro de um contexto imperialista, na virada dos séculos XIX para XX, e que
oito décadas depois, continuava, em grande medida, a encarnar o espírito pequeno-burguês
que lhe propiciara seu desenvolvimento inicial. Alea, como Espinosa, estava preocupado
em fazer um cinema popular, mas que escapasse da narrativa formal e ideologicamente
burguesa, identificada no cinema hollywoodiano. Segundo ele, um passo para o cinema
revolucionário, ou “paralelo”, ou “marginal”, ou “alternativo”, em suas palavras, havia sido
dado com o desenvolvimento tecnológico que passou a permitir produções relativamente
baratas, ao alcance de grupos independentes. Feito por essas mãos, tal cinema poderia
expor a ideologia revolucionaria. (ALEA, 1984)
O ponto que mais nos interessa na argumentação de Alea é a lembrança de que
graças ao avanço técnico a produção independente tornava-se possível. Aqui está o

raciocínio fundamental para a compreensão do processo que descrevemos. Seria a partir do


domínio das novas tecnologias que se poderia quebrar com os parâmetros anteriores. Não
se tratava, ou não deveria se tratar, para o cinema cubano, para o cinema brasileiro, de
ignorar o domínio da técnica, mas de entendê-la como instrumento para formar novos
parâmetros. Espinosa, que cunhara a expressão cine imperfecto, diria mais tarde que jamais
este deveria ser confundido com um cinema malfeito. “Nunca dissemos isso”, reafirmaria o
cubano. (apud AVELLAR, 1995)
Na Argentina, outro projeto, mais radical, de cinema independente, diferente dos
demais citados, mas com a idéia antiimperialista em comum, toma forma com o Tercer
174

cine de Fernando Solanas e Octavio Getino.68 “A inserção do cinema nos modelos


americanos, ainda que somente quanto à linguagem, conduz a uma adoção de certas formas
daquela ideologia que deram como resultado essa linguagem e não outra, essa concepção
da relação com o espectador e não outra” diziam os argentinos, na defesa, como Glauber,
Espinosa, Alea da ruptura com os parâmetros clássicos. Sobre a frustração inerente à
tentativa de se copiar os moldes técnicos hollywoodianos, declaram:

“O modelo da obra de arte perfeita, o filme redondo, articulado segundo a métrica imposta
pela cultura burguesa e seus parâmetros técnicos e críticos, tem servido, nos países
dependentes, para inibir os cineastas, sobretudo quando estes pretendem sustentar modelos
semelhantes em uma realidade que não lhes oferece nem a mesma cultura nem a mesma
técnica, nem os elementos mais primários para consegui-la”. (SOLANAS, GETINO, 1969,
p. 25-54)

A vontade de um cinema antiimperialista que correu a América Latina na década de


1960 foi expressa em locais diferentes, segundo realidades sociais diversas, mas com um
ponto de tangência claro não apenas nos manifestos de Glauber Rocha no Brasil, de
Espinosa e Alea em Cuba, de Solanas e Getino na Argentina, mas também, por exemplo,
no pensamento teórico-estético do boliviano Sanjinés, na defesa ideológica do plano-
seqüência. Não é outro o assunto quando Ozualdo Candeias diz, em entrevista, que estava
entre os seus objetivos fazer “fitas ao arrepio do cinema americano” 69
A ruptura com o modelo da excelência técnica hollywoodiana deve, como dissemos
a partir da declaração de Alea, ser entendida como a busca por novos parâmetros. No caso

do som, novas formas de amalgamar vozes, músicas, ruídos, silêncios diversas daquelas
institucionalizadas pelos padrões clássicos. Jamais se pretendeu fazer filmes com o som
tecnicamente defeituoso, o que seria diferente do pressuposto acima. Problemas estruturais
que vinham a prejudicar a qualidade do som no cinema brasileiro, entretanto, existiam. Em
esclarecedora entrevista de 1981 a Bernardet, Juarez Dagoberto enumera o que, em suas
palavras, era “uma série imensa de problemas”. Já citamos a falta do procedimento do som
guia que tornaria mais preciso o trabalho de dublagem. Juarez comenta sobre a falta de um

68
Publicado srcinalmente em Hablemos de cine, n.53/54, em outubro de 1969.
69
Em entrevista a Eugenio Puppo para o catálogo da mostraCinema Marginal e suas fronteiras, realizada
entre 8 e 31 de março de 2002, no Centro Cultural do Banco do Brasil, no Rio de Janeiro.
175

planejamento para o som direto, o que permitiria antever problemas e soluções. Juarez
reclamava, com razão, que o técnico de som nem sempre costuma estar presente nas
reuniões de pré-produção. Em alguns casos, há a oportunidade de visitar as locações antes
das filmagens, e assim prever as condições da captação, em outros casos não; produtores, e
por vezes diretores, estão preocupados apenas com os diálogos, o que ocorre evidentemente
da concepção naturalista corrente, que os privilegia; a precariedade dos laboratórios, que
mutilavam o som no decorrer da finalização; uma estagnação duradoura quanto ao
equipamento de captação e de finalização utilizado por técnicos e estúdios brasileiros,
solucionada tardiamente; a falta de formação de microfonistas, fato aliado à crença comum
de que não há necessidade de qualificação técnica para exercer a função. Sobre a
importância do manejo dos microfones, Dagoberto atesta: “o microfone equivale, em
termos de imagem, à lente, pura e simplesmente. Se a lente está suja, mal ajeitada, se o
sujeito erra o foco, a imagem perde. O microfone é a mesma coisa. Tem que estar bem
colocado. Se houver erro de registro, de volume, dá para corrigir. Agora, microfone mal
colocado, não dá”. (BERNARDET, 1981, p. 24-27)
Agregue-se à lista de problemas citada por Dagoberto um atraso na especialização
de profissionais destinados à finalização de som. Nas décadas de 1960 e 1970, enquanto a
edição de som tornava-se mais complexa nos EUA e na Europa, no Brasil, por outro lado, a
noção de que deveria haver um editor específico para o som demorava a disseminar-se, só
se tornando realidade, como lembra Hernani Heffner, em fins dos anos 70. Heffner
comenta que isso estava acontecendo dentro de um quadro de melhoria geral, com
melhores estúdios, com a chegada de novos equipamentos para captação como os

microfones de lapela sem fio.


A partir da vinda da francesa Dominique Paris, que assumiria a função de editora de
som em produções como Engraçadinha e Eles não usam black tie, ambas de 1981, e se
estabeleceria no país, surge um grupo de editoras de som, nomes como Virginia Flores, que
fora continuista, assistente de edição e assumiria a edição de som a partir de meados dos
anos 80, com A cor de seu destino, Cinema falado, ambos de 1985, Eu sei que vou te amar,
do ano seguinte e Valéria Mauro, que fora assistente de montagem desde 1976, em A
queda. Antes disso, a edição de som, que nem mesmo era batizada assim, cabia ao próprio
montador, que acumulava as funções, ou era relegada ao assistente de montagem. É o caso,
176

entre tantos outros, de Sylvio Renoldi, célebre como montador de O bandido da luz
vermelha, que começara na Maristela como assistente dos montadores estrangeiros. Nessa
função, lhe era dada a incumbência de editar os ruídos. 70
Outro ponto comentado vez por outra é a qualidade precária do som das salas de
exibição entre as décadas de 1960 e 1980. Vladimir Carvalho, também no dossiê
organizado por Bernardet, comentava sobre o que chamava de “a morte do som” quando os
filmes chegavam às telas: “a péssima reprodução sonora das salas termina por extinguir
qualquer esperança que restava de se fazer ouvir.” (BERNARDET, 1981, p. 18) Bernardet
relata o caso de Garota de Ipanema, de Leon Hirszman, em 1967. Reclamava-se, nas
exibições cariocas, da precariedade do som. Sabedor da boa qualidade sonora das cópias,
Hirszman foi à cabine de projeção de um dos cinemas que exibia seu filme e se deparou
com o péssimo estado de conservação do leitor de som. (BERNARDET, 1978, p. 10)
Günther Böhn, um dos poucos técnicos que no início da década de 1980 fazia manutenção
dos projetores em salas de cinema brasileiras relatava, em 1981, à Bernardet a situação dos
projetores e a conseqüente perda da qualidade de som. Não havia peças de reposição no
mercado, a maioria dos projecionistas não possuía qualquer especialização. Bernardet
sustenta a hipótese de que “a deficiente manutenção do equipamento, a acústica deficiente
das salas” advinha do fato de que para o filme estrangeiro, “maioria absoluta no mercado
distribuidor brasileiro” a inteligibilidade do som é relativamente desnecessária. “Basta que
se ouça algum ruído de fundo, alguma música. Pois, o filme não sendo dublado, os diálogos
são apreendidos pelas legendas.” O espectador brasileiro, comenta Bernardet, “não é um
espectador que ouve, mas um espectador que lê”. O costume das legendas teria como efeito

colateral, como já destacamos no capítulo anterior, a produção de um espectador, nas


palavras de Bernardet “destreinado tanto visualmente quanto auditivamente. Ele mal vê e
mal ouve. A única coisa que ele realmente sabe fazer, e com destreza, é ler legendas.”
(BERNARDET, 1978, p. 10) Assim, o som insatisfatório das salas aliado à falta de
costume de se prestar atenção nos diálogos por parte do espectador criariam para ele

70
Como ele próprio r elata em entrevista para o catálogo da mostra Cinema Marginal e suas fronteiras, já
citado.
177

mesmo uma situação de incompreensão grave apenas, estranho como possa soar, quando o
filme fala a sua própria língua. 71
No entanto, muito embora a baixa qualidade técinca do som nas salas afetasse a
compreensão das vozes acima de quaisquer outros sons, os experiementos com este
elemento sonoro são uma das marcas do cinema brasileiro moderno.

3.2.1. A voz sobre as imagens

Um dos modos de se colocar vozes nos filmes com maior permanência na história
do cinema, que não o tradicional diálogo em quadro, sincronizado com as bocas dos
falantes, é a voz over, a voz de um narrador que surge sobre as imagens. Nascida de uma
vontade consciente de ser uma alternativa aos diálogos, experimentada pelos
documentários ingleses da G.P.O. Film Unit, na década de 1930, cuja produção girava em
torno da presença do inglês John Grierson, contando em seus quadros com o brasileiro
Alberto Cavalcanti, responsável exatamente pelo tratamento sonoro dos filmes, a voz over
seria rapidamente assimilada pelo cinema norte-americano, sempre o alvo das críticas
quanto ao excesso de diálogos. 72 No cinema de contestação dos anos 60, porém, parece
haver uma volta do uso da voz do narrador, retomado em uma chave que a faz soar
novamente como um recurso narrativo moderno. Stam comenta a desconstrução dessa voz
em Godard, quando chega mesmo a não ser inteligível, ao sucumbir frente ao volume dos
ruídos, como em Duas ou três coisas que eu sei dela. (STAM, 1981, p. 173) No cinema
brasileiro produzido entre as décadas de 1960 e 1970 a voz do narrador aparece com

texturas bastante diversas entre um filme e outro, podendo ser um narrador em primeira
pessoa advindo da literatura; ou estar imbuída de um tom jornalístico que procura criar
confiabilidade; ser irônica com relação ao que se vê nas imagens; estar bipartida, ou

71
Marcos Flaksman, ainda criticando o som das salas de cinema no fim dos anos 70 comenta que mesmo nas
projeções cariocas de Apocalypse Now, de 1979, sério candidato a filme com a mais bem cuidada e trabalhosa
edição de som da história do cinema, “o som era horrível”. (BERNARDET, 1981, p. 31)
72
Em entrevista concedida à BBC, em 1935, publicada sob o títuloDiscussão sobre o filme sonoro,
Cavalcanti explica que naqueles documentários a intenção era reduzir a palavra ao mínimo, e evitar o
sincronismo predominante (CAVALCANTI, 1995). Da-Rin comenta que Grierson não tinha interesse em
basear a estrutura dos documentários em entrevistas, pois as achava um recurso anti-cinematográfico. (DA-
RIN, 2004, p. 99)
178

tripartida, em três vozes concorrentes entre si; tratar-se ainda da voz do diretor, invasiva da
diegese.
Dois filmes de Luis Sérgio Person demonstram, entre outros usos de som também
de nosso interesse, as diferenças nas texturas entre as vozes de seus respectivos narradores.
O primeiro é São Paulo S/A, de 1965. A seqüência inicial já revela tratar-se de um filme
complexo quanto ao uso da trilha sonora. O casal, Carlos, personagem principal e dono da
voz que narra, e Luciana discutem dentro de seu apartamento, mas os vemos e ouvimos de
um ponto de vista externo. Entre a câmera e os personagens, uma ampla janela de vidro
que, se nos permite vê-los por inteiro, isola para nós o som de sua discussão. Pelo
isolamento do vidro quase não ouvimos os gritos. Estão, além disso, silenciados em parte
pelo forte som ambiente das ruas de São Paulo. O som das ruas terá presença marcante em
vários momentos do filme, ferramenta que é para demarcar o crescimento industrial da
cidade, na passagem dos anos 50 para 60. É nesse contexto que está inserida a crise pessoal
de Carlos, trabalhador da indústria insatisfeito com a vida que leva. Os primeiros minutos
de São Paulo S/A trazem uma pluralidade de sons digna de nota. Por trás do vidro, vemos
uma discussão que não ouvimos. Ouvimos em seu lugar os sons da cidade; sobre os
créditos iniciais, a música catártica de Cláudio Petraglia; a primeira intervenção da voz
over de Carlos, começando a nos explicar a indecisão de sua vida sentimental; Carlos
falando ainda diretamente para nós, sua voz agora em quadro, ele olha para a câmera
enquanto anda pelas ruas. Cinde-se assim a narração no intervalo entre um plano e outro.
Temos, em um primeiro momento, sua voz over sobre sua própria imagem, determinando-o
como narrador, mas dividindo temporalmente entre som e imagem a narrativa. Em seguida,

a voz dentro de quadro, unida com as imagens, unificando a narração. Há ainda música
executada em quadro, com a banda de metais que toca pelas ruas, criando, em conjunto
com os demais sons ambientes, um caos sonoro em volta do personagem. A música do
filme ainda será composta, além dos corais modernos, pungentes, de Petraglia, por um
bolero, sobre o banho de mangueira de Ana, e por demais intervenções diegéticas, como,
por exemplo, quando vinda da televisão que os pais de Luciana assistem. A voz over de
Carlos surgirá durante o filme para seguir nos informando sobre a confusão de seus
sentimentos quanto à vida burguesa que lhe parece incompleta. Como nas duas vezes em
que repete o mesmo texto, o conhecido monólogo que se inicia com “recomeçar,
179

recomeçar, mil vezes recomeçar”, que alude, ao mesmo tempo, à indefinição de sua vida,
às tentativas mal sucedidas de fuga e ao trabalho mecânico, automatizante, na fábrica. Na
primeira vez em que é dito o monólogo, na metade quase exata do filme, Carlos está sobre
um viaduto no centro da cidade; na segunda, está chegando de sua fuga infrutífera para o
interior. Por várias vezes, os sons ambientes de São Paulo atingem níveis acachapantes,
para em seguida serem cortados para situações mais silenciosas, produzindo contrastes que
marcam a edição sonora. Exemplo claro disso é a seqüência que começa com Carlos em
meio à maratona de São Silvestre, na noite de ano novo. Saindo da balburdia da corrida,
Carlos entra em um bar, também ruidoso, e tenta ligar para Luciana. A alternância entre os
planos de Carlos, no bar, e do pai da moça, na casa silenciosa, é realçada pela diferença
entre todos os sons do primeiro ambiente e a quietude do segundo. Próximo ao fim do
filme, a rápida ida de Carlos para fora da cidade grande está emoldurada pelos sons
tranqüilos da serra. A beira da estrada, o surgimento fora de quadro do som de um
caminhão chama sua atenção. Carlos atende ao chamado ruidoso da civilização e pega
carona de volta para São Paulo. À entrada da cidade, os sons urbanos já estão mais uma vez
bem presentes. Carlos recomeçará.
O filme seguinte de Person, O caso dos irmãos Naves, de 1967, traz também uma
voz que narra, mas em outro tom. Contando o caso de um julgamento injusto referente a
dois irmãos acusados de assassinato, em Araguari, interior de Minas Gerais, em 1937,
durante o Estado Novo de Getulio Vargas, o filme faz uso de um narrador que, ao contrário
de Carlos, não está presente a não ser por sua voz. O tom jornalístico evidente tem a função
de imprimir veracidade ao relato e fará intervenções durante todo o desenvolver da história.

Nos créditos iniciais, música exclusivamente percussiva, e o som da máquina de


escrever, que remete aos autos do processo. Há outros momentos nos quais os ruídos
assumem o primeiro plano, caso do som dos jornais sendo impressos com as notícias do
julgamento, ou do som do rio à beira do qual o suposto assassinato teria ocorrido.
Duas relações entre sons e imagens chamam atenção em passagens distintas. A
primeira: em montagem paralela são mostradas as cenas do interrogatório dos irmãos pelo
tenente e a subseqüente tortura nos porões. O segundo grupo de imagens, Joaquim e
Sebastião Naves, além de sua mãe, sendo torturados é acompanhado de silêncio total. Tais
pausas contrastam com as vozes dos planos intercalados do interrogatório. Pouco mais
180

tarde, sobre o que deveria ser a confissão de Joaquim, o tenente induz o réu a assumir
aquilo que, na verdade, ele não sabe como ocorreu. Nem mesmo a indução dando
resultado, o tenente é obrigado a assumir a narrativa ele próprio, apenas parando por vezes
para perguntar se Joaquim concorda, e ordenando que o escrivão faça os registros. O que
passamos a ver é a própria reconstituição, na margem do rio, com todos presentes:
Joaquim, o tenente, demais militares. A voz continua sendo a da seqüência anterior, do
tenente na sala de interrogatório narrando tudo ele mesmo. Enquanto o ouvimos, vemos
Joaquim completamente passivo, sem ter meios para reconstituir o crime que não cometeu.
Voz e imagem estão em contraponto. A imagem desdiz o que é narrado pelo tenente. O réu
que está “confessando” na trilha sonora não tem idéia do que aconteceu, nos mostram as
imagens.
Exemplo de filme também conduzido pela voz de um narrador em primeira pessoa é
São Bernardo, de Leon Hirszman, de 1972. Baseado no livro de Graciliano Ramos, o filme
mantém a forma de narração da obra literária. Na seqüência de abertura somos
apresentados, por voz e imagens separados, a Paulo Honório, o personagem central e
narrador. Vemo-lo sentado na mesa em que redige suas memórias, enquanto sua própria
voz over começa a nos contar a história do homem que partindo da condição de trabalhador
braçal passou a dono da fazenda em que trabalhava. O que não impediu que sua vida se
encaminhasse para a tragédia, a partir da falência total do casamento conturbado até a
subseqüente desvalorização de suas terras. Como nota Helena Salem, baseada diretamente
no livro, a voz de Paulo Honório no filme chega a reproduzir parágrafos inteiros. O texto
no filme começa, porém, do terceiro parágrafo do livro, transformando em curioso ponto de

partida uma frase que se inicia com “Continuemos”. (SALEM, 1997, p. 198)
Sobre a aparente centralidade da narração na voz de Paulo Honório, Ismail Xavier
faz contundente esclarecimento. Xavier lembra que devido ao evidente fato de um filme ser
o produto da justaposição de canais de informação distintos, quais sejam, as imagens, as
vozes, os ruídos, as músicas, os signos escritos, não se pode dizer, sob pena de estar sendo
simplista, que a narração está restrita completamente a um deles. Mesmo quando parece
centralizada em um dos elementos, neste caso, a voz do narrador, a narração é produto “da
integração de todos os recursos fílmicos de imagem e som”. Assim, mais preciso do que
dizer que “o filme é narrado em primeira pessoa”, o que parece tirar dos demais elementos
181

o potencial narrativo, seria atestar que “há no filme um narrador em primeira pessoa”, o
que é sutilmente diferente. Xavier comenta ainda a opção de Hirszman por um estilo “anti-
cinema clássico”, claro na preferência por planos longos, pela câmera imóvel, pela
minimização da montagem, pela negação do recurso corriqueiro do campo e contracampo
como forma de decupar seqüências dialogadas. (XAVIER, 1997) Eduardo Escorel,
montador do filme, faz comentários interessantes, em entrevista a José Carlos Avellar,
reproduzida por Helena Salem, sobre a opção de Hirszman pelos planos longos. Segundo
Escorel, em parte ela seria produto da influência sobre Leon Hirszman da obra de Jean-
Marie Straub, que conta o montador, o impressionara, assim como a Glauber Rocha. Em
adição a isso, entraria a questão técnica. Escorel conta que São Bernardo foi filmado, assim
como O dragão da maldade contra o santo guerreiro , com uma câmera blimpada para
possibilitar a gravação de som direto livre do ruído de seu próprio motor. Pesadíssima, por
conta dessa adaptação, a câmera imóvel de São Bernardo seria também uma questão de
praticidade. (apud SALEM, 1997, p. 200)
O som direto, elogiado por Hirszman em entrevista a Alex Viany, é trabalho de
Walter Goulart, outro nome que merece destaque. Sonoplasta de formação, Goulart é
trazido ao cinema por Geraldo José, do qual ainda falaremos. Participa da sonorização de A
hora e a vez de Augusto Matraga , em 1967, e, pouco tempo depois, de Matou a família e
foi a cinema, em 1969. Sua carreira é uma das mais profícuas das décadas de 1960 e 1970,
incluindo Garota de Ipanema, O dragão da maldade contra o santo guerreiro ,
Macunaíma, O anjo nasceu, Família do barulho, Quando o carnaval chegar, Dona Flor e
seus dois maridos. Seguiria pelas décadas de 1980 e 1990, atuaria na virada para o ano

2000 em Estorvo, de Ruy Guerra.


Sobre a imobilidade dos planos, na mesma entrevista a Avellar, Hirszman dá uma
explicação chave para se entender algumas das relações entre sons e imagens no filme. O
diretor conta que “a movimentação principal é dada pela montagem, pelo conflito entre
imagens e sons.” Em alguns, planos, explica ele, a imagem está fixa mas o som se
movimenta, mudando seu ponto de enunciação dentro do quadro; nos planos em que o som
está fixo, vindo da voz over, por exemplo, há movimento na imagem. (SALEM, 1997, p.
210-211) Momento onde é claro o conflito, neste caso, entre imagem fixa e som em
movimento, está no plano próximo de Padilha deitado na rede, dentro da seqüência em que
182

Paulo Honório o induz a vender a propriedade a preço de banana, para saldar dívidas
contraídas a juros extorsivos. Sobre o rosto de Padilha, no plano imóvel, o som vem de três
fontes. Primeiro, a voz over de Paulo Honório conta que era penoso para Padilha vender a
propriedade, mais por razões sentimentais do que práticas. Seguimos vendo o mesmo rosto,
mas a voz se desloca, e passa a ser do próprio Paulo Honório que está ali presente, apenas
fora de quadro. Já dentro do espaço e do tempo da ação que vemos, o ouvimos, imperioso:
“faça o preço!”. Terceira movimentação sonora: o som finalmente em quadro, Padilha
começa a falar. Quer manter a propriedade. Sobre a mesma imagem, três manifestações
sonoras, de localizações distintas entre si. Na voz over inicial, a disjunção é completa:
imagem no passado, a voz do narrador no presente, e em outro espaço; a segunda voz está
fora de quadro, porém mais próxima, já no mesmo tempo e espaço da ação; por fim,
imagem e som estão sincronizados, vemos e ouvimos a mesma pessoa. Da disjunção total à
união completa, sobre a mesma imagem.
Quanto à opção de manter os diálogos mostrados em longos planos gerais,
acrescente-se ainda que no decorrer do filme os personagens dialogam de costas, como na
seqüência em que Paulo Honório conhece, na estação de trem, Madalena, sua futura
esposa; na penumbra, caso das seqüências na capela da fazenda. Sobre todos esses planos,
um ponto em comum. Seja pela falta de proximidade, ou pela posição dos atores, ou pela
iluminação que os coloca em contraluz, está sendo quebrado um dos maiores, se não o
maior contrato feito entre o cinema clássico narrativo e o espectador: a necessidade de
atestar-se pela união da voz com a boca visível de quem fala a veracidade do sincronismo.
Os planos próximos de diálogos sempre tiveram, como uma de suas funções, não deixar o

espectador esquecer de que o personagem parece falar, e nós parecemos ouvi-lo, como na
vida real. O público desconhece que o efeito de sincronismo é construído a posteriori. Essa
preocupação, central no cinema clássico, passa ao largo da decupagem de São Bernardo.
Ainda sobre níveis de separação entre os sons e as imagens, destaca-se a seqüência
do jantar em que todos os personagens estão à mesa, seqüência regida, como lembra Ismail
Xavier, sob o olhar de Paulo Honório, além de central na construção paulatina do ciúme.
Em determinado momento, ainda no início da cena, voz over e plano próximo de Paulo
Honório estão unidos, ele na cabeceira da mesa. Cabe destacar que é uma união parcial
entre voz e imagem, pois embora vejamos e escutemos o mesmo personagem, sua voz não
183

está em quadro, encontra-se um tempo narrativo diferente. A partir daí, vemos planos
próximos dos demais, dentre os quais se destaca Madalena. O som direto de suas vozes é
obscurecido, passado a segundo plano, para que a voz narradora de Paulo Honório siga à
frente. A disjunção entre imagens e sons torna-se maior. Vemos os personagens em planos
próximos, não escutamos suas vozes em escala correspondente, e sim a do narrador. A cena
termina com um plano geral da conversa reservada entre Madalena e Nogueira. A câmera
inicia um movimento que terminará em plano próximo dela. Madalena fala, não ouvimos
sua voz. Está silenciada por completo, e a voz de Paulo Honório domina solitariamente a
trilha sonora. Robert Stam e Randal Johnson, em São Bernardo: property and personality,
comentam esse silenciamento de Madalena. (JOHNSON, STAM, 1995, p. 205) O que cabe
ressaltar é que tal silenciamento é crescente no decorrer da seqüência, já que enquanto
Madalena conversava à mesa ainda se ouvia sua voz, em segundo plano. Ao final, nem
mesmo isso.
São Bernardo traz ainda uma das mais comentadas experiências de composição
musical do cinema brasileiro moderno. Leon Hirszman mostraria a Caetano Veloso a
gravação dos cantos de trabalho dos arredores de Viçosa, Alagoas, onde aconteceram as
filmagens. O diretor pediria ao músico uma música simples que se aproximasse daquele
canto. À medida que o filme era projetado, Caetano Veloso improvisava linhas melódicas
sobre as imagens. Repetidos em quatro canais, os “gemidos” como ele próprio os define,
construíam uma harmonia ao mesmo tempo intimamente ligada aos lamentos srcinais do
canto na lavoura e moderna. 73
Fome de Amor , de Nelson Pereira dos Santos, de 1967, traz um uso da voz que fica

na fronteira entre estar sobre as imagens ou localizar-se simplesmente em quadro, embora


pareça deslocada do que vemos. A análise de João Luiz Vieira e Elizabeth Merena faz
menção a essa voz, além de citar a estranheza do piano atonal, por vezes uma única nota,
que serve de trilha sonora para uma das personagens, Mariana.(JOHNSON, STAM, 1995,
p. 162-168) O personagem cego-surdo-mudo também tem, durante uma seqüência de surto
o acompanhamento do piano, não mais minimalista, mas catártico, mixado com uma série
de ruídos metálicos. A criação dos ruídos, como sempre, é de Geraldo José. Ao fim do

73
Caetano Veloso refere-se freqüentemente a esse processo. Entre outros lugares, ele está descrito por Helena
Salem. (SALEM, 1997, p. 209-210)
184

filme, a seqüência dominada pela voz. Divididos os personagens em dois grupos, os que
estão em terra firme fazem um arremedo de carnaval, cantam uma marchinha. Mariana e
Alfredo vagam pela ilha, de onde podem ser vistos pelos demais. A princípio, ao vermos o
casal de longe, ouvimos os sons dos que estão em terra, suas risadas. O som passa a ser da
voz de Mariana que, na ilha, fala em espanhol sobre a revolução que se deve fazer. O
estranhamento entre essa voz e a imagem que vemos surge justamente da compreensão de
que aquela deve ser a voz que está em quadro, da personagem que fala ao longe. Mas a
diferença entre a escala da voz, em primeiro plano, e a escala da imagem, um plano distante
da ilha, torna mais complexa para o espectador tal união. O tratamento dado à voz é
semelhante ao que teria a voz de um narrador. Mas o que está sugerido é o contrário:
Mariana fala ao longe, embora a escutemos tão próxima.
O filme mais citado quanto ao uso da voz no cinema brasileiro produzido entre as
décadas de 1960 e 1970 é, provavelmente, O bandido da luz vermelha , de Rogério
Sganzerla. A fragmentação da trilha sonora e a divisão da narração entre três vozes, ambos
fatores estruturais para o filme, ocupa, via de regra, lugar central também nas análises sobre
ele. Robert Stam, em On the Margins: Brazilian Avant-guard Film, destaca a densa
superposição de referências intertextuais, “uma verdadeira antologia de música
programática de Hollywood”, e de trechos de música erudita sendo mixadas com música
popular. O exemplo mais claro disso, citado pelo próprio Stam, é a liberdade de criar uma
fusão entre Asa branca e a Quinta sinfonia de Beethoven. Stam enfoca também as vozes
dos narradores que se interrompem, se complementam. Por vezes, as vozes contradizem o
que as imagens mostram, descentralizando a narração. As vozes, com a textura própria das

locuções sensacionalistas de rádio, ridicularizam as ações do bandido, a trilha sonora


satirizando a imagem. (JOHNSON, STAM, 1995, p. 317-318)
A multiplicidade de focos narrativos, as vozes que se contradizem entre si, assim
como contradizem as imagens são tema da análise de Ismail Xavier em Alegorias do
subdesenvolvimento: cinema novo, tropicalismo, cinema marginal. Xavier destaca a
descontinuidade da trilha sonora, a imensa colagem despreocupada de todo com qualquer
noção da continuidade almejada pelo cinema clássico. Xavier comenta a diferença entre a
própria voz do bandido, uma das três que narram, e as demais. Se os narradores pseudo-
radiofônicos satirizam o próprio personagem principal, a sua voz é a consciência do
185

fracasso, da rejeição, do sujeito marginalizado que “só tinha que avacalhar”. (XAVIER,
1993) Lécio Augusto Ramos destaca o fato, não detectado apenas na obra de Sganzerla,
mas comum ao Cinema Marginal, do próprio diretor ter autonomia para escolher os trechos
das músicas que servirão à colagem da trilha sonora. (MIRANDA, RAMOS, 2000, p. 549)
Sganzerla assina como diretor musical e isso suprime a figura do compositor, como
também lembra Guilherme Maia. Assim, a música do filme reverbera na tela as referências
culturais do diretor. Guilherme Maia também destaca a quebra total dos parâmetros caros
às trilha sonoras do cinema convencional. Além da continuidade citada, a unidade narrativa
que a trilha sonora deve conferir ao filme, e a idéia da inaudibilidade, segundo a qual a
música deve ser colocada de forma que o espectador não tenha dela consciência clara,
certamente não se aplicam ao filme de Sganzerla. Além de Beethoven e Luis Gonzaga,
citados por Stam, Maia lembra que há espaço para O Guarani de Carlos Gomes, para O
Barbeiro de Sevilha de Rossini, postos democraticamente no mesmo barco que Dolores
Duran, Ernesto Lecuona, Elvis Presley. (MAIA, 2003) Bernardet, em Cinema marginal?,
destaca, tomando o filme como exemplo, o entendimento do processo de finalização de
som e, mais especificamente, da dublagem como “fato de linguagem”, como parte do
processo criativo. (BERNARDET, 2002) É importante ressaltar esse potencial do
procedimento da dublagem, tomado via de regra como mero conserto do que teria sido mal
executado na captação de som direto. Jairo Ferreira comenta sobre o processo de
finalização do filme, “sonorizado no velho casarão da Odil Fono Brasil, no Sumaré, em São
Paulo”. Sganzerla pedia para Helio de Aguiar e Mara Duval “carregarem no tom
debochado de narração policial sensacionalista”. Sylvio Renoldi acrescentava reverberação

às vozes. (FERREIRA, 2000, p. 51)


Diga-se que dentre a agressividade das relações entre sons e imagens particulares do
movimento do Cinema Marginal não se destacam apenas as colagens de O bandido da luz
vermelha. Ismail Xavier nota em Bang-bang , de Andrea Tonacci, como a presença de
determinados sons ajuda a criar “efeitos de entranhamento” para o espectador. Na
seqüência em que Paulo César Pereio barbeia a máscara de macaco, o ruído da câmera,
“contínuo, ininterrupto” é o som intruso que não deixa esquecer a feitura do próprio filme.
Ainda mais evidente neste sentido é o som ótico das gargalhadas finais, que abandona a
borda do filme e torna-se central na tela. É, como diz Xavier, “a exposição ao espectador
186

dos materiais” dos quais se compõe a película. (XAVIER, 1993, p. 260-263) Jairo Ferreira
diz, sobre o mesmo momento, que ali o som se torna, materialmente, imagem.
(FEIRREIRA, 2000, p. 219)
O cinema gritado tem exemplos contundentes em Sem essa aranha, também de
Sganzerla, com parte considerável do tempo de projeção perpassado por Maria Gladys nos
informando aos berros que está com fome. Gamal, o delírio do sexo e Orgia, ou o homem
que deu cria também são exemplos de narrativas levadas no grito, como lembra Fernão
Ramos. Há, porém, nos filmes da Belair, de Sganzerla e Bressane, espaço para a subversão
completamente sem palavras, como em Memórias de um estrangulador de louras, no qual
Guará, por vezes responsável pela gravação do som dos filmes da produtora, ataca louras
londrinas envolto apenas em música. Sobre os filmes de Bressane falaremos mais
detidamente, assim como da obra de Ozualdo Candeias.
Um último exemplo de voz que subverte os padrões usuais é Triste Trópico, de
Arthur Omar, de 1974. Stam nota como a narração sobre o Dr. Arthur Noronha, médico
brasileiro vindo de estudos na Europa, torna-se progressivamente improvável, absurda.
(JOHNSON, STAM, 1995, p. 326) Paralelamente à voz que narra, a heterogeneidade da
trilha sonora e dos próprios materiais que compõem a imagem formam uma gigantesca
colagem. Ismail Xavier comenta o fato da trilha sonora fazer, na maior parte do tempo,
contrapontos ao que vemos nas imagens. Outra vez, como no filme de Sganzerla, o som
ironiza, desqualifica a imagem. Xavier lembra que parece haver um solitário momento de
som direto, e que a presença súbita de um som sincronizado em toda a construção
contrapontual, paradoxalmente, pode ser percebida com estranheza. 74

3.2.2. A música ocupa tanto espaço quanto a imagem

A música, talvez mais do que a voz, seja o elemento sonoro mais comentado do
conjunto de análises sobre os filmes das décadas de 1960 e 1970, que, por si só, é o período
mais comentado dentro da história do cinema brasileiro. O uso da música popular, ou, em
alguns casos, mesmo da música erudita feita no Brasil, é entendido como uma ferramenta

74
Em palestra ministrada no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, no dia 24 de maio de 2001,
após a exibição do filme.
187

importante para o funcionamento do projeto de levar a cultura e o povo brasileiro para o


centro da tela. Lécio Augusto Ramos e Guilherme Maia, em seus respectivos textos,
identificam na produção do Cinema Novo uma diminuição do espaço dado aos maestros de
srcem italiana que elaboraram as trilhas sonoras nas décadas de 1940 e 1950, como, por
exemplo Lírio Panicalli, Leo Peracchi, Gabriel Migliori, em favor de uma aproximação
com os músicos populares que surgiam naquele momento. João Máximo lembra que
marcam presença no cinema, entre meados dos anos 50 e a década de 70, Zé Kéti, Milton
Nascimento na parceria com Ruy Guerra, Zé Rodrix em Como era gostoso meu francês ,
Jorge Ben em Xica da Silva, Caetano Veloso, Chico Buarque, em Quando o carnaval
chegar e mais tarde em Dona Flor e seus dois maridos e Bye bye Brasil, Moacir Santos em
Os fuzis e Ganga Zumba, Tom Jobim em Porto das Caixas e a Casa Assassinada, de
Saraceni, Wagner Tiso, na colaboração com Walter Lima Jr. (MÁXIMO, 2003, p. 128-142)
John Neschling, compositor de considerável número de serviços prestados ao cinema,
declarava em 1981 a Bernardet que a aproximação do cinema brasileiro a partir da década
de 1960 com os músicos populares não se daria apenas por razões ideológicas, mas pelo
motivo prático da falta de formação de compositores para cinema no Brasil. De fato,
podem-se citar, até a década de 1980, pouquíssimos casos de músicos com a formação
comentada. O mais conhecido é o de Remo Usai, sempre lembrado pelo trabalho com
Nelson Pereira dos Santos em Boca de ouro, de 1962, e Mandacaru vermelho, de 1963.
Usai estudara com Leo Peracchi ainda no Brasil. Em 1965 seria, na University of Southern
California, aluno de Miklos Rózsa.75 Trata-se de um exemplo isolado. Máximo lembra que
a relação próxima entre música popular e cinema brasileiro dos anos 60 e 70 insere este

último na continuidade de uma tradição cancionista, que perpassa os primeiros musicais de


sucesso na década de 1930, citados no capítulo anterior, e a comédia musical carioca. Em
outra chave, a proximidade com a canção persistiria no cinema moderno, estabelecendo
nesse caso não uma ruptura, mas um fator de continuidade. Ainda sobre uma permanência,
lembramos que continua sendo relevante um nome como o de Radamés Gnatalli, que

75
O h úngaro Miklos Rózsa, nascido em Budapest, em 1907, aportaria nos Estados Unidos em 1940, depois de
passagens por Paris e Londres. Rózsa se tornaria um dos maiores compositores da história do cinema norte-
americano, sendo responsável pela música de filmes como Pacto de sangue (Double indemnity, 1944) e
Farrapo humano (The lost weekend, 1945), ambos de Billy Wilder,Quando fala o coração, de Hitchcock
(Speelbound, 1945), Tempo de amar, tempo de morrer (A time to love, a time to die, 1958), de Douglas Sirk,
Ben Hur, de William Wyler (1959),El Cid, de Anthony Mann (1961) entre tantos outros.
188

arranja, em 1965, a trilha de A falecida, sobre o tema Luz negra de Nelson Cavaquinho.
Gnatalli mais uma vez estaria cumprindo o papel já comentado por conta do arranjo para
Zé Kéti em Rio 40 graus. O mesmo maestro estará presente mais à frente, em Eles não
usam Back tie, de 1981, também de Hirszman, arranjando Adoniram Barbosa. Também há
espaço, discreto, como lembra Lécio Augusto Ramos, no conjunto de músicos que
prestaram serviços àquela produção, para a geração de compositores eruditos que surgia.
(MIRANDA, RAMOS, 2000, p. 549) Rogério Duprat estabeleceria longa parceria com
Walter Hugo Khouri; a obra de Cláudio Petraglia se faz presente, como já dissemos, em
São Paulo S/A e O caso dos irmãos Naves, de Person; Glauber Rocha, em O dragão da
maldade contra o santo guerreiro, e Joaquim Pedro de Andrade, em Os incofidentes
usaram a música de Marlos Nobre. Mas são realmente poucos os exemplos da ligação com
a safra de músicos eruditos daquele momento.
Não é segredo que a obra desse período em que a música foi mais comentada é a de
Glauber Rocha. Sobre ela há inclusive, caso quiçá único, um artigo especificamente sobre o
papel da música. Trata-se de Alma brasileira: Music in the Films of Glauber Rocha, do
australiano Graham Bruce. (JOHNSON, STAM, 1995, p. 290-305) Bruce abre seu artigo
com uma epígrafe do próprio Rocha, tirada de entrevista em 1970. Diz o baiano: “o Brasil é
um país musical e eu penso no cinema como uma montagem de pausas e momentos de
música”. Bruce comenta de início o espaço dado para a música nos filmes de Glauber
quantitativamente, e mais importante, quanto à função estrutural a ela delegada. Ao fim,
declara que mais do que servir de acompanhamento às imagens, embora esse papel mais
corriqueiro não esteja de todo descartado, a música por vezes organiza a narrativa, expande

o sentido das imagens, passa a dividir com elas a incumbência de contar a história. Essa
conceituação é fundamentada com as análises de Barravento, de 1962, no qual o espaço
dado à música é realmente notável, de Deus e o diabo na terra do sol, de 1963, de Terra
em transe, de 1967 e de O dragão da maldade contra o santo guerreiro , de 1969. Sobre
Deus e o diabo na terra do sol o australiano comenta o fato do cordel, melodias de Sérgio
Ricardo sobre letras de Glauber Rocha, estruturar o filme, com função semelhante a do
coro do teatro grego, ao falar diretamente aos espectadores, assumindo um distanciamento
da ação embora esteja em cena. Está citada a relação sui generis entre narração pela música
e falas dos personagens, na cena em que Antonio das Mortes e Corisco se encontram. A
189

fala dita na música é repetida dentro de quadro por Antonio das Mortes. É sobre o uso das
Bachianas brasileiras de Villa-Lobos que Bruce nota uma força maior do que servir de
mero acompanhamento das imagens. Nesses momentos, ambas as trilhas, musical e
imagética, respondem igualmente pelo impacto causado no espectador. Em O dragão da
maldade contra o santo guerreiro , o cordel continua sendo comentador, dividindo espaço
na trilha musical com pontos de candomblé, com o Carinhoso de Pixinguinha. Sobre Terra
em transe, Bruce destaca a presença constante de música percussiva, bem como os
contrastes criados na trilha sonora, com as passagens abruptas de som que negam o
trabalho de suavização das transições característico do cinema clássico. De fato, há uma
clara contraposição dos momentos em que a percussão está em primeiro plano, como nas
ações que apresentam Vieira, com as seqüências onde não há som algum que não seja as
falas de Paulo, o que causa uma impressão de silêncio após a presença da música. Bruce
comenta ainda a polarização das diferentes matrizes musicais, cada uma ligada a um
personagem. Em um esquema geral, pode-se dizer que o conservador encastelado Diaz está
emoldurado pela música erudita de Verdi, de Carlos Gomes; o populista Vieira é
acompanhado pelo candomblé, pelo samba; e ainda segundo Graham Bruce, a simbiose
entre música erudita e popular de Villa-Lobos emoldura a dúvida político-existencial de
Paulo, o poeta.
Fina análise da obra de Glauber Rocha e, por conseguinte, das funções da música
em seus filmes, está nos textos de Ismail Xavier. Terra em transe é um dos filmes citados
em Alegorias do subdesenvolvimento (XAVIER, 1993). Xavier comenta a potência da voz
exacerbada, barroca de Paulo. Nota o papel da trilha sonora em construir sentidos que se

justapõem àqueles dados pelas imagens. O exemplo mais claro é a sobreposição do


discurso de Paulo sobre a coroação de Diaz. O fato da trilha sonora da seqüência anterior
invadir a próxima imagem muda completamente a interpretação que fazemos da segunda.
Pode-se dizer que há um contraponto entre o som e a imagem, já que o discurso de Paulo
procura desesperadamente desmascarar Diaz, enquanto o vemos ser coroado. Robert Stam
vê nesse momento uma relação ainda mais complexa. Na análise de Stam, o sorriso
exagerado de Diaz pode ser interpretado como uma reação à própria trilha, sarcástico ao
ouvir as acusações de Paulo enquanto lhe pousa a coroa sobre a cabeça. Para Stam, Terra
em transe é, assim como a obra de Godard, exemplo de cinema que quebra as regras do
190

espetáculo clássico, ao se mostrar enquanto resultado de um processo de construção. Os


momentos de contraste entre grandes massas sonoras e silêncios abruptos perturbariam a
continuidade, ao mesmo tempo que mostrariam as marcas dessa construção 76 . Também há
espaço em sua análise para o que ele chama de polissemia da música, provocada pelos
diferentes sentidos que candomblé, samba, musica erudita têm no decorrer do filme.
(STAM, 1981, p. 42) René Gardiers, em Glauber Rocha: política, mito e linguagem usaria
os termos sístole e diástole para definir o ritmo criado entre as massas sonoras e as pausas.
(GOMES, GERBER, et al, 1977, p. 79) Cabe ressaltar que na seqüência em que o discurso
de Paulo invade a coroação de Diaz, há, ao fim da fala do primeiro, um momento de
silêncio completo, que será rompido pelas palavras inflamadas do político: “Aprenderão!”
Não mais voltam à trilha sonora a voz de Paulo, nem o Villa-lobos ouvido até pouco antes.
Após o silêncio e as palavras de Diaz, resta o som dos tiros, encerrando, na parte que cabe
ao som, com uma violência e um pessimismo claros.
Ismail Xavier analisa Deus e o diabo na terra do sol em Sertão-mar: Glauber
Rocha e a estética da fome. Xavier dá ênfase à relação dialética entre as duas principais
matrizes musicais, o cordel e Villa-Lobos. Os cordéis dominam a narração durante grande
parte do filme, mas estão emoldurados pela música erudita, que abre e fecha a projeção,
tem a primeira e a última palavra. Tal organização é representativa, segundo Xavier, da
relação entre o movimento para o interior e o projeto nacionalista em andamento. Seguindo
o raciocínio de Xavier, a passagem da Canção do sertão, de Villa-Lobos, para o primeiro
cordel, que apresenta Manoel, Rosa e o Santo Sebastião concretiza, ao mesmo, a passagem
para a temática rural e a para o universo da ação.(XAVIER, 1983) Tal movimento do som

para dentro da diegese prossegue, se pensarmos que a próxima edição nos leva à primeira
música dentro de quadro, a procissão que acompanha o beato. Em seguida, falará pela
primeira vez Manoel, concretizando a nossa lenta aproximação dos personagens: da música
erudita dos créditos, passando pelo narrador que os apresenta, pela música dentro da ação, à
primeira fala de um deles. Segue-se ainda o mutismo de Rosa, que se recusa a falar, e se
mantém socando o pilão.

76
Vale lembrar que semelhante desconstrução está presente em vários outros pontos da obra de Glauber
Rocha, como, mais radicalmente, em suas intervenções verbais em Câncer, 1968/72, e em A idade da terra,
de 1981. Dentro de um esquema em que a trilha sonora tem a função de, como diz Stam, minar o realismo,
poucos recursos são mais fortes do que a presença intrusa da voz do diretor que interfere na ação.
191

Em entrevista a Alex Viany, Glauber Rocha comenta a influência sobre Deus e o


diabo na terra do sol da permanência da oralidade no nordeste do país, de um modo de
narrar por elipses, onde os cortes na história contada oralmente são bruscos, e, muitas
vezes, dentro da elipse se dá o fato principal da narrativa. Cabe lembrar que não é de se
estranhar o uso do cordel, tradição secular nordestina, de srcens ibéricas, transmutado em
narrador, e ao mesmo tempo música, do cinema moderno. Forma de narração complexa,
disfarçada na simplicidade do veículo oral transmitido nas ruas, o cordel une palavra
cantada, por si só a junção de dois meios de expressão, palavra escrita, na forma do livro
que o acompanha, e arte gráfica, fundamental para a compreensão dos que não lêem. Seu
uso pelo cinema dos anos 60 apenas confirma sua vocação para a modernidade. Glauber
Rocha dá ainda a Walter Lima Jr, então seu assistente, o crédito pelo uso de Villa-Lobos.
Desconhecedor na época da obra do compositor brasileiro, o diretor pensava a princípio em
colocar no filme música erudita européia. (VIANY, 1999, p. 56-61)
Exemplo também claro de uso de música estruturante para a narrativa está em O
pagador de promessas, dirigido por Anselmo Duarte, em 1962. A dicotomia entre música
negra e cânticos cristãos ilustra a dualidade central para a história. O exemplo mais
evidente ocorre após Zé do Burro ser definitivamente impedido de entrar na igreja, no
conflito com o padre e com o arcebispo. Embora a presença de Zé de Burro nas escadarias
seja a imagem da derrota, os capoeiristas, pais e mães de santo que o acompanham iniciam
uma festa do lado de fora da igreja. A música negra toma o espaço da cantoria da procissão
que ali começava. O samba de roda e a capoeira dominam a trilha sonora e embalam as
longas seqüências de jogo e dança na escadaria. Passamos a ver, no interior da igreja, o

padre, revoltado com a música que vem de fora, que, no seu entender, claramente o insulta.
Instaura-se uma montagem paralela. A cada batida do padre nos sinos, com a intenção de
abafar a música externa, segue-se um plano dos instrumentos musicais da festa. Como nota
Ismail Xavier, sinos e berimbaus, simbolizando cristianismo e candomblé, disputam a
hegemonia no som e na imagem. (XAVIER, 1983, p. 55). A vitória cabe aos berimbaus,
posto que é a festa que segue.
A música de candomblé já está presente desde a primeira seqüência. Os planos de
chocalhos e tambores fazem do início do filme uma espécie de videoclipe de música
percussiva. Aos poucos, o espectador percebe que aquela seqüência já começa a contar a
192

história, quando Zé do Burro é mostrado no terreiro, fazendo a polêmica promessa para


Iansã, a ser cumprida na Igreja de Santa Bárbara.
Dada a importância, já comentada, da música para um conjunto de filmes que
tencionava colocar a cultura popular em pauta, pode-se dizer que o uso de uma
manifestação rítmica popular logo na seqüência de abertura não tem um exemplo isolado
em O pagador de promessas. Ao contrário, em filmes de vários pontos da América Latina
que compartilhavam, naquele momento, intenções e objetivos, ocorre o mesmo. Memórias
do subdesenvolvimento, de Tomás Gutiérrez Alea, começa com o personagem principal em
meio a uma roda de música cubana. Los inundados , de Fernando Birri, abre com música do
interior da Argentina, não com o tango, identificado com a capital de influências européias.
Acentue-se ainda em O pagador de promessas a forte presença da música orquestral
composta por Gabriel Migliori, que tem parentesco próximo com a música do cinema
clássico. Migliori coloca sobre os créditos iniciais, que acompanham a peregrinação de Zé
do Burro, um surpreendente pour pourri do que será tocado no decorrer do filme. Alguns
dos momentos mais dramáticos do filme têm o auxílio de sua música, tensa quando deve
ser, apaziguadora quando as imagens assim o pedem. Há mesmo um momento, quando Zé
do Burro investe, três vezes, com a cruz, como se fosse um aríete, contra as portas fechadas
da igreja, em que ocorre o efeito apelidado de mickeymousing, tão caro ao cinema clássico:
à medida que ele caminha em direção à porta, a música descreve um crescendo; a cada
batida inútil da cruz na porta, a melodia é suspensa no seu auge.
Como última, mas não menos importante, observação, queremos ressaltar que em
um filme tão pontuado por música, Anselmo Duarte reserva para um dos momentos

capitais, quando todos em volta de Zé do Burro aguardam com expectativa sua decisão,
pedida pelo arcebispo, sobre se ele renega ou não sua promessa feita à Iansã, um
surpreendente acompanhamento sonoro. Sobre os vários planos próximos de rostos que
esperam pelo veredicto, silêncio, reforçando, no lugar da música, a expectativa.
193

3.2.3. Ruídos ocupam o lugar da música, ruídos sobre as vozes, ruídos no


centro

Na fronteira entre a música e o ruído está um dos casos de uso do som mais
comentados do cinema brasileiro moderno. Desde que Nöel Burch, em Práxis do cinema,
chamou atenção para o som do carro de boi usado como se fosse música dos créditos
iniciais de Vidas secas, tal ruído permanece como exemplo de concretização criativa das
possibilidades de relação entre sons e imagens. Burch comenta a sensibilidade na
“organização plástica dos ruídos que nascem da imagem”. Em suas palavras, à época, tal
“música” dos créditos era “de uma beleza absolutamente inédita”. (BURCH, 1992, p. 124-
125) Em The cinema of hunger: Nelson Pereira dos Santos’s Vidas secas , Robert Stam e
Randal Johnson chamam atenção para a fronteira que é relativizada quando o som do
ranger das rodas do carro de boi, que a princípio parece trilha sonora não-diegética, é

descortinado como pertencente à ação a partir do momento em que se vê o carro


acompanhado do som. Um só som seria ao mesmo tempo metafórico sobre a falta de infra-
estrutura da região e factual, estando na ação quando necessário. (JOHNSON, STAM,
1995, p. 126-127) Lécio Augusto Ramos comenta que o ruído atribui às imagens “o reforço
semântico próprio de uma trilha tradicional”. (MIRANDA, RAMOS, 2000, p. 549) Tudo
isso é possível, evidentemente, pela própria característica do som do rangido. O atrito de
madeira contra madeira, da roda contra o eixo, provoca um som contínuo, muito próximo
de uma nota longa que fosse dada em um violino, ou, melhor diríamos, em uma rabeca.
A conhecida história dessa concepção sonora nasce da criatividade de Geraldo José,
o sonoplasta que vem a ser o mais prolífico técnico da história do cinema brasileiro. A
partir da resistência de Nelson Pereira dos Santos quanto a usar música, Geraldo José
sugere ao diretor trabalhar com um ruído característico do interior para que sirva de
“expressão do sofrimento e do lamento dos nordestinos caminhando pelo sertão”, em suas
próprias palavras. 77
Natural de Mimoso do sul, Espírito Santo, Geraldo José veio para Bangu, zona
oeste do Rio de Janeiro, em 1939. Tentou trabalhar na Fábrica Bangu, referência para a

77
Em entrevista aoEstado de São Paulo de 29 de janeiro de 2003, por ocasião do lançamento do
documentário Geraldo José – o som sem barreiras, dirigido pelo montador Severino Dadá.
194

indústria têxtil carioca, foi entregador de pão, trabalhou como, na sua definição, “varredor
de serraria”. Estreou na Rádio Tupi em 1945, como office-boy de Paulo Gracindo. Em
breve aprenderia com Orlando Drummond o ofício de sonoplasta. Foi efetivado na função
após sonorizar, substituindo o sonoplasta titular, o programa Incrível, fantástico,
extraordinário. Entra no cinema pela Atlântida, onde faz “uns remendos” em Aviso aos
navegantes, em 1950, no estúdio de som da Rua México. Conhece Nelson Pereira ao
contribuir para a sonoplastia de Rio 40 graus. A parceria seguiria em Vidas secas,
Mandacaru Vermelho e teria outro momento de destaque em O amuleto de Ogum, em
1974. A música composta para o filme por Jards Macalé aproveita os ruídos gravados por
Geraldo José para a sonorização, notadamente o som do trem. Ruídos e música têm,
também neste caso, a proximidade famosa de Vidas Secas. Macalé diria, em depoimento a
Severino Dadá: “ele me ensinou que ruído é som, e som é música, e música é ruído”. Entre
os 504 longas-metragens sonorizados por Geraldo José, mais curtas-metragens, trabalhos
para publicidade, ainda se destacam Assalto ao trem pagador, Deus e o diabo na terra do
sol, Ganga Zumba, Chuvas de verão, Cara a cara, A hora e a vez de Augusto Matraga, Os
deuses e os mortos, A lira do delírio, Toda nudez será castigada, Rainha Diaba, o recente
O baile perfumado. Sempre citados por ele próprio como dois de seus melhores trabalhos
estão Os Fuzis, em 1963, e A navalha na carne, de Braz Chediak, de 1969, este devido à
importância que os ruídos tem na primeira meia hora de filme. Sobre A navalha na carne,
falaremos mais tarde.
Em Os fuzis, música e ruídos também estão interligados. Na música composta por
Moacir Santos que acompanha a marcha dos soldados na entrada da cidade a percussão do

reco-reco simula o ritmo dos passos. Em outro momento, é o próprio som dos passos que
está ritmado como se fosse música e assume o primeiro plano na trilha sonora. Na
seqüência em que o soldado interpretado por Paulo César Pereio mata, por acidente, um
homem a tiro, o ambiente sonoro propositadamente silencioso serve de envelope aos ruídos
sutis, como a respiração tensa, os passos. Uma vez colocados em destaque, esses ruídos
conferem tensão à cena. A seqüência que Geraldo José comenta como um dos pontos altos
de sua carreira é a meticulosa reconstituição sonora da montagem, por Gaúcho, Átila Iório,
de um fuzil de 20 peças. A sonorização em estúdio é a principal arma para se concretizar a
impressão de realismo.
195

A queda, continuação de Os fuzis realizada por Ruy Guerra treze anos mais tarde,
também conta com aspectos sonoros dignos de destaque. Os soldados de Os fuzis estão
agora na cidade, trabalham na construção civil. Em vários momentos, os sons da obra não
deixam com que as vozes dos personagens estejam claras, preponderantes. Em alguns
poucos casos, temos mesmo um plano próximo do personagem que fala, mas os ruídos das
britadeiras, dos martelos, eclipsam sua voz, vencendo a disputa e assumindo o primeiro
plano da trilha sonora. Em contraste com essa predominância dos ruídos no ambiente da
obra está o relativo silêncio das casas dos operários. Em uma seqüência passada na casa da
viúva de um dos personagens, morto na construção, a mulher permanece em silêncio na
mesa do jantar, enquanto ouvimos os sons da rua. Buzinas, trânsito, invadem o ambiente.
Esses sons e não música, por exemplo, são a trilha sonora da tensão inerte da viúva.
Próximo ao fim do filme, Mário, interpretado por Nelson Xavier, então foragido do
trabalho e de casa, é encontrado pela mulher, Isabel Ribeiro. O ambiente silencioso, solene
em meio à pobreza, em que se dá a discussão final prepara o espectador para uma situação
de silêncio mais aguda, a seqüência posterior, na qual Mário caminha pelas ruas, passando
por vitrines abarrotadas de bens de consumo, televisões, artigos para casa.
Nas seqüências passadas na obra há uma dicotomia curiosa, citada por Randal
Johnson, em Cinema Novo X 5. As vozes dos operários, misturadas com os ruídos do
ambiente, estão captadas em som direto, de Juarez Dagoberto. Pertencem ao lugar e a
situação, por isso “sujas”; as vozes dos patrões, no mesmo espaço dos trabalhadores, foram
recolocadas em estúdio, têm a textura característica da pós-produção. Soam artificiais se
comparadas às outras, não vêm acompanhadas de som ambiente. (JOHNSON, 1984, p.

115) Assim, Guerra, através de uma peculiaridade técnica, cria um distanciamento entre os
patrões e o ambiente de trabalho, ao passo de que os trabalhadores estão a ele mais unidos.
Exemplo de ruído estruturante vem de um filme pouco comentado, O menino e o
vento, de Carlos Hugo Christensen, de 1966. Trata-se da história de um menino que teria o
poder de controlar os ventos de uma cidade do interior e do forasteiro adulto, que está
sendo levado a julgamento como suspeito do seu desaparecimento. O tempo presente da
história é o do julgamento. As imagens da criança fazem parte dos flashbacks surgidos a
partir do ponto de vista dos adultos. Daí nasce uma dicotomia na trilha sonora: o passado
da cidade, enquanto o menino ali vivia, é envolvido por ventanias que, os habitantes não
196

sabem, parecem ter relação com os estados de espírito dele. Assim, o tempo passado da
história tem como principal elemento sonoro o som dos ventos, o que demarca clara
oposição à ausência dos ventos no tempo presente, coincidente com o desaparecimento da
criança. Como não venta, a trilha sonora pode, como no cinema convencional, dar espaço
central aos diálogos. A ausência do som do vento é, assim, a pré-condição para o
desenvolvimento natural das vozes. A situação de quebra dessa dicotomia entre o passado
de ventanias e o presente inerte se dará quando uma lufada de vento obstruirá o julgamento,
em defesa do réu. Até o fim, o som desse último vento dominará a trilha sonora.

3.2.4. Todos os sons e o silêncio sobre todos eles

Uso relevante do som, pois em relação conflituosa com os padrões do cinema


clássico, não apenas quanto a um dos elementos, mas ao conjunto da trilha sonora, é
encontrado nos primeiros filmes de Julio Bressane. Ismail Xavier diz, em O cinema
brasileiro moderno, que filmes como O anjo nasceu, de 1969, e Matou a família e foi ao
cinema, de 1967, trazem, além dos modos não usuais de lidar com a imagem, “um
tratamento de som que procura um novo sentido para o ouvir no cinema”. (XAVIER, 2001,
p. 79) Jairo Ferreira declara, em Cinema de invenção, que “ouvir os filmes de Bressane é
mais importante do que vê-los”. (FERREIRA, 2000, p. 189) Bernardet, em Nota sobre
Bressane, centra sua análise nos procedimentos através dos quais o diretor “descarta a
linguagem cinematográfica clássica” e introduz marcas do trabalho”, referências ao próprio
fazer cinema. Ao fim do texto, Bernardet admite que aquela é uma forma de olhar sobre

uma obra aberta e que “existem outras maneiras de abordar os filmes de Bressane”.
(BERNARDET, 1979) A forma de analisá-los que nos permitimos neste texto toma seus
sons como chave, embora analisar o som seja, também, um meio de encontrar as ditas
“marcas do trabalho” como as chamou Bernardet. Em O mal-estar da incivilização, texto
encontrado na mesma publicação, Ismail Xavier comenta o longo plano final de O anjo
nasceu. Após a passagem do fusca em que estão os personagens, a distendida contemplação
da estrada vazia na tela desperta, segundo Xavier, a percepção para os detalhes, para as
pequenas sujeiras, para todos os componentes da imagem. “A imagem em si se torna
espetáculo”, diz ele, e não a trama, ou a montagem, ou qualquer outro recurso
197

cinematográfico. Ismail Xavier amplia seu argumento para o domínio do som. Após o grito
inicial de Santamaria, Hugo Carvana, e de um breve silêncio, segue-se a gravação integral
de Peguei um ita no norte, de Dorival Caymmi. De forma análoga ao que fora pensado
sobre a imagem, Xavier nota que ao ouvirmos uma gravação inteira de um disco que já
traz, junto com a execução da música, chiados, impurezas, estas últimas estão inserindo no
filme marcas do tempo, indícios da música em si. Seria uma falta de pudor em admitir para
o público que aquela é uma música arbitrariamente colocada sobre as imagens, como quis o
diretor. Bressane não faz segredo em entrevistas que usa os seus próprios discos como
trilha sonora. Os chiados ouvidos junto à canção quebram a ilusão costumeira que decorre
da inserção tradicional da música.
Lembramos que tal situação é recorrente nos primeiros filmes de Bressane e mesmo
em O anjo nasceu está presente desde o início do filme. A montagem da seqüência inicial
faz, de certa forma, um trailer do que acontecerá no decorrer da projeção, sonorizado com
um samba que também toca do início ao fim. Mais tarde, veremos as mesmas imagens,
então acompanhadas do som direto. As imagens repetem-se, a trilha sonora é totalmente
diferente. Outras seqüências embaladas por músicas inteiras, vindas de discos executados
no set de filmagem, são o casamento, ao som do folk norte-americano Dear old daddy, e o
tango desajeitado de Santamaria e Urtiga, Milton Gonçalves, com suas vítimas, ao som de
Carlos Gardel.
O mesmo procedimento está em Matou a família e foi ao cinema. Os assassinatos
têm como trilha sonora gravações inteiras de sambas antigos, irônicos ao comentarem a
violência extrema das situações, como Rasguei a minha fantasia, de Lamartine Babo. Mas

o exemplo mais contundente é mesmo a canção de Roberto Carlos que embala o tiroteio
entre as amigas. Ao fim, trágico, o arranhão no disco faz repetir ad eternum o pedaço de
frase “por ti perder”. Está clara a presença do disco, mais tarde mostrado na imagem,
revelando-se como material aproveitado para a trilha sonora.
Outra relação entre sons recorrente na obra de Bressane é o corte abrupto de
momentos de grande massa sonora para silêncio. Robert Stam já identificara, como
citamos, o contraste na edição de som e o uso do silêncio como sinais de reflexividade nos
filmes de Godard e em Terra em Transe. Ismail Xavier identifica, de forma análoga, as
rupturas na trilha sonora, os cortes para silêncio absoluto em O anjo nasceu como
198

produtores de um distanciamento por parte do espectador, de uma quebra da identificação


com o filme. Em O anjo nasceu, esse corte acontece várias vezes, seja o silêncio inserido
para interromper a música violenta de Guilherme Vaz, ou após sons ambientes ou ruídos
específicos intensos. O exemplo mais evidente: ao fim do tango citado, vemos as imagens
do homem chegando à lua, no início em silêncio total. Mais tarde, sobre essas mesmas
imagens, as vozes dos astronautas e do presidente norte-americano. Jairo Ferreira
transcreve, em Cinema de invenção, uma das Heliotapes, na qual Helio Oiticica comenta a
importância do silêncio em Matou a família e foi ao cinema. Diz Oiticica: “em Matou a
família, quando as pessoas estão falando e não sai a voz, o silêncio tem a mesma
importância que a coisa falada, tem uma relação com a coisa do John Cage usar o silêncio
como algo elementar, que nada tem de cinema mudo, de ser a ausência do som.”
(FERREIRA, 2000, p. 187) De fato, esse silêncio estruturante está presente desde o início
do filme, emoldurando os planos próximos, parados, das atrizes. O primeiro corte de som já
evidencia o contraste. Surge, interrompendo o silêncio, o som ambiente das ruas, em
primeiro plano. Nos cinco minutos iniciais, rupturas como estas ocorrem várias vezes, o
que nos leva a dizer que tal montagem por contraste é mesmo a base da construção sonora.
Destaca-se ainda a seqüência analisada por Bernardet em O vôo dos anjos, na qual o som
de um avião que passa se prolonga sobre uma série de planos, estabelecendo uma relação
diferente com cada um deles. O som começa sobre o plano próximo do rosto de Márcia,
segue sobre o plano geral dela em pé contra um muro. Até este momento, o som e as
imagens da atriz estabelecem uma relação inconclusa. O terceiro plano nos mostra o avião.
O som, adiantado dois planos inteiros, e a imagem agora se completam. A edição de som,

porém, não obedece ao corte da imagem, e se prolonga pelo próximo plano, o som do avião
sobre o carro que sobe a serra de Petrópolis. (BERNARDET, 1990, p. 57-58)
Momentos de silêncio ocorrem em todos os filmes iniciais da obra de Bressane.
Bernardet lembra a seqüência final de Cara a cara, quando o político, vivido por Paulo
Gracindo, discursa para o plenário vazio e na trilha sonora é silenciado pela música. (idem,
p. 34-36) Também em Cara a cara há espaço para os contrastes, especificamente na
seqüência em que as personagens femininas posam, como modelos, em silêncio.
Alternados com esses planos, imagens delas próprias andando nas ruas, os sons destas bem
presentes. Sendo um filme no qual pouco espaço é delegado à voz, há predominância da
199

música, em primeiro plano nos momentos em que os personagens perambulam sozinhos, o


que toma parte considerável do tempo de projeção. Apenas as seqüências das reuniões
políticas são dominadas pelo diálogo, em contraposição ao outro pólo narrativo, triangular
entre o maníaco, sua mãe acamada e a filha do deputado, que ele espreita. A montagem da
música por vezes é independente dos cortes na imagem. Nos travellings pela biblioteca a
música irrompe no decorrer do plano, e do movimento, assim como o corte de volta para o
silêncio. O último corte da música nessa seqüência abrirá espaço para o tic-tac do relógio
sobre a mesa em que trabalha o maníaco. O ruído marca longamente a tensão. Bach,
adaptado pelas Swingle sisters, parece, no início, fora de relação direta com a imagem,
quando Luciana, Helena Ignez, é mostrada nos corredores de um prédio qualquer. A
música fará sentido mais à frente, quando se encaixará sobre as imagens da aula de balé.
Era a trilha sonora correspondente àquela situação, apenas adiantada com relação às
imagens que a completam. Estão presentes ainda em Cara a cara o violão de Jards Macalé,
a voz de Maria Bethânia, Villa-Lobos, Ernesto Nazareth, a sonorização de Geraldo José. A
erudição musical de Bressane, vale lembrar, seria mais tarde tema central de Tabu, 1982,
Lamartine Babo como personagem principal, e de O mandarim, 1995, Mário Reis na
mesma situação.
A família do barulho, de 1970, traz uma quantidade razoável de planos em silêncio
total. É assim o início do filme, com os planos que identificam os três integrantes da
família. Entra em seguida, a primeira intervenção musical, integrante de um conjunto que
será formado por música popular brasileira, música country norte-americana, erudita,
árabe, como lembra Cláudio da Costa. Costa comenta que “o silêncio é fundamental para a

composição do ritmo do filme, pois é nesse intervalo que os sentidos se comunicam. O


silêncio nos obriga a ver os sons e ouvir as imagens. É no silêncio que as sensações se
traduzem, se trespassam, caem no espaço do entre-imagens”. Costa nota que várias
seqüências reveladoras da intimidade da família são mostradas em silêncio absoluto, como
os longos planos da mulher que passa roupa, ou da menina brincando de serrar o menino. A
estranheza do que plano em que ela passa roupa, diz Costa, “aumenta com a insistência da
imagem em prolongar-se e do som em nos abandonar ao silêncio absoluto”. (COSTA,
2000, 114-115)
200

Em A família do barulho temos novamente a repetição de planos em diferentes


momentos do filme, como em O anjo nasceu. Desta vez, porém, não é a música que marca
a diferença na trilha sonora. Planos antes mostrados com seus sons diretos são revistos,
mais tarde, em silêncio total. Exemplos de reflexividade evidente são ainda as imagens de
Guará com a claquete, também em silêncio. Imagens e silêncios são as provas do próprio
processo de realização. Em Cuidado madame, do mesmo ano de 1970, também há grandes
espaços em silêncio, como os longos planos do Arpoador; a seqüência em que Helena
Ignez está na piscina; os planos próximos, com câmera na mão, que acompanham Ignez e
Maria Gladys na rua. Nestes, elas conversam, mas contrariando a proximidade na imagem,
não as ouvimos. Escutamos apenas o som ambiente das ruas. Este som ambiente,
geralmente codificado para se situar abaixo da voz, assume o primeiro plano.
A filmografia de Bressane é plena de momentos nos quais as relações entre sons e
imagens fogem do convencional. Todas as citadas aqui, dentro do recorte do início de sua
carreira, são exemplos, mas há muitos outros, como em seu Brás Cubas, de 1985. O
primeiro plano nos mostra um esqueleto sendo escrutinado pelo microfone suspenso, que
não hesita em se chocar com os ossos e não nos poupa de ouvir os sons dos choques. É o
começo da tradução reflexiva, em som e imagem, de Bressane para um dos romances no
qual a reflexividade é mais clara na literatura brasileira. É Bressane no exercício da
tradução intersemiótica e dos ensinamentos de seu estimado Padre Antônio Vieira.
Bressane o cita: “suponhamos que diante de uma visão estupenda, saiam os sentidos
humanos fora de sua esfera e inaugurem o ver com os ouvidos e o ouvir com os olhos”
(apud BRESSANE, 1996, p. 10)

Outro autor fundamental para o exercício de se prestar atenção nos silêncios dentro
das trilhas sonoras é Ozualdo Candeias. Sempre citado como um dos realizadores mais
relevantes do grupo do Cinema Marginal, o ex-trabalhador rural, militar, motorista de
caminhão, chofer de táxi, entre outras ocupações, como lembra Arthur Autran, é o
responsável por uma obra na qual sons e imagens conectam-se de várias formas alternativas
aos modelos padronizados. Jairo Ferreira vê na obra de Candeias uma junção de realismo e
poesia, de relato da realidade social dos desajustados revestido, porém, de um cunho
mitológico. (FERREIRA, 2000, p. 41-43) Ismail Xavier comenta, em O cinema brasileiro
moderno, que Candeias se diferencia de seus parceiros marginais por conter, em seus
201

filmes, um “espírito de redenção, uma sublimação poética distante do teor corrosivo dos
ditos marginais”. (XAVIER, 2001, p. 75) Fernão Ramos destaca a busca pelo sublime
como um elemento diferencial da obra de Candeias. (RAMOS, 1987, p. 87) Nos arriscamos
a dizer que um dos artífices dessa diferenciação poética é o uso estruturante do silêncio, em
certa oposição à montagem de som agressiva tomada sempre como característica
generalizante do movimento.
João Luiz Vieira observa uma pouco usual “quase total ausência de diálogos” como
característica de Aopção ou as rosas da estrada, de 1981. De fato, os personagens
apresentam-se no decorrer do filme quase completamente mudos. Por diversas vezes, as
prostitutas são enquadradas em planos próximos preenchidos por silêncio total. Nas
situações em que as observamos na beira da estrada tratando com caminhoneiros os
diálogos não são ouvidos, apenas os ruídos ambientes. As pouquíssimas intervenções
vocais são sempre pautadas pela rudeza. Uma carta lida em claudicante voz over é um raro
momento em que a voz narra algo. Há situações em que seria de se esperar diálogos, uma
vez que os personagens são mostrados falando em planos próximos, mas propositadamente
um ruído ou um som fora de quadro os obstrui. No bar, o burburinho inserido na pós-
produção serve de trilha aos rostos dos falantes. A voz que anuncia a entrada do palhaço no
picadeiro silencia diálogos na arquibancada do circo.
É necessário comentar que a reconstituição de vozes e de ruídos correspondentes a
ações vistas nas imagens não contribuem, no caso de Candeias, para a impressão de
realismo. Pelo contrário, a falta de correspondência entre sons recolocados e imagens,
ruídos em primeiro plano quando a imagem os pediria ao fundo, vozes que não tentam

mascarar sua falta de união srcinal com o plano, fazem com que, paradoxalmente, mesmo
o sincronismo continue a minar o realismo. Na obra de Candeias está provavelmente o
maior exemplo de construção de uma trilha sonora que, imperfeita tecnicamente para os
padrões do cinema narrativo convencional, descreve relações interessantes para com as
imagens.
A mais clara recusa à predominância usual da voz está em A herança, de 1970.
Candeias o define, citado por Stam, como “um faroeste baseado em Hamlet em que o
diálogo foi substituído pelo som de pássaros e animais”. (JOHNSON, STAM, 1995, p. 315)
Em outro texto, o diretor conta que queria “vanguardiar”, fazer uma adaptação de
202

Shakespeare que tivesse cantador de viola, uma Ofélia negra, “tudo dentro da cultura
nossa” e que achava que “isso de mexer com o som ia bem”, ajudava na narrativa. Assim,
David Cardoso, Hamlet, ri e se ouve sincronizado o relincho de um cavalo. Pela boca de
Fortimbrás, Agnaldo Rayol, ruge um leão. A célebre caveira não é humana, mas bovina.
Carlos Augusto Calil comenta a grande negação da fala no filme, exceção feita apenas à
palavra cantada e modinhas de viola. 78
Mais comentado filme de Candeias, A margem, de 1967, tem uma estrutura sonora
que se organiza pelo contraponto entre música e silêncio. Vozes e ruídos têm inserções
esporádicas. O personagem principal masculino é silencioso. O início ocorre em silêncio
total, enquanto vemos de dentro da canoa a aproximação da terra. O homem encontra a
mulher na ponte, mas não há palavra. A sedução, mais tarde, ocorrerá também envolta em
silêncio absoluto. Nos dez primeiros minutos de projeção, duas falas curtas. Uma, da
mulher para o homem: “como é cara, não estou te agradando não?”. A outra, de um senhor
para ele: “meus cumprimentos”. Fora isso, a música, que acompanha predominantemente a
personagem feminina, o silêncio que envolve o homem. Com sua morte, mais a frente,
completa-se o quadro que se desenhava: a passagem pelo filme de um protagonista
completamente silencioso. À sua morte segue-se um período de mais de dez minutos sem
fala alguma. A ida dos demais personagens para a cidade é emoldurada pela música, pelos
ruídos da cidade grande e por três ou quatro intervenções vocais. Mais uma vez, a recusa à
voz estruturante e o subseqüente uso fundamental dos silêncios são as forças motrizes da
quebra com os padrões.
Também comentado por vezes é Zézero, de 1973, objeto da crítica de Paulo Emílio
79
Salles Gomes. Candeias define Zézero como “uma experiência sonora. Uma experiência
de aplicação de som”. O diretor lembra de uma conversa com Paulo Emílio sobre a
seqüência em que latidos servem de comentário à cena de sexo violento entre o camponês e
a prostituta. Tendo o crítico elogiado o uso do som, Candeias respondeu que “não gostava
de som, é um negócio que enche o saco”. Ao que Paulo Emílio responderia: “imagine se
gostasse”. Há um segundo momento em que rosnados de cachorro comentam a imagem. Os

78
As explicações de Can deias, as críticas de Carlos Augusto Calil para A herança e de João Luiz Vieira para
Aopção estão incluídas no catálogo da Retrospectiva Ozualdo Candeias – 80 anos, realizada no Centro
Cultural do Banco do Brasil, em São Paulo, entre 30 de julho e 11 de agosto de 2002.
79
Reproduzida em Paulo Emílio, um intelectual na linha de frente. São Paulo: Brasiliense/Embrafilme, 1986,
p. 300-302.
203

sons estão sobre os olhos raivosos do patrão, que acompanha o trabalho de seus
empregados na obra. Dentro de uma narrativa em que se dá preferência à construção dos
ruídos, há espaço para a música percussiva que emoldura a presença da mulher misteriosa
do início e do fim, além do plano de detalhe do dinheiro ganho na obra; para o rádio ouvido
nos intervalos do trabalho e que anuncia o dinheiro fácil da loteria; para ruídos pontuais da
construção e da cidade grande; para o silêncio sobre a impressão digital na carteira de
trabalho.
Já comentamos Eles não usam black tie, de Leon Hirszman, por conta dos arranjos
de Radamés Gnatalli para os sambas de Adoniram Barbosa. Porém, em um filme com
funções dramáticas delegadas por várias vezes à música, há na cena final a opção de
Hirszman por enfatizar um momento de silêncio. Romana e Otávio, Fernanda Montenegro
e Gianfrancesco Guarnieri, se olham, apertando as mãos sem trocar palavras. Estão
cansados. Seu filho traiu o pai e a luta. A nora, vítima da violência policial na repressão às
manifestações. Otávio está de volta a sua casa depois de preso e espancado pela segunda
vez. Um companheiro está morto. Romana começa a chorar, ainda em silêncio. O som dos
feijões que catam e deixam cair na bacia de metal embalará a seqüência, em íntima relação
com a mudez que os personagens manterão até o fim da ação. Depois de longo tempo, no
corte para o enterro de Bráulio, o líder sindical interpretado por Milton Gonçalves, a pausa
na trilha sonora chega ao fim, com a entrada da música tema. Sobre o plano próximo do
rosto de Romana, somente um violão. Ao cortar para o plano mais aberto, a orquestração
de Gnatalli. A dinâmica da música corresponde ao tamanho da imagem.
No último filme que temos a citar, um exemplo contundente da negação da voz, em

favor de uma construção sonora baseada no jogo entre ruídos e silêncios: a adaptação de
Braz Chediak para Navalha na carne, a peça de Plínio Marcos, em 1969. Rafael de Luna,
em artigo que compara a adaptação de Chediak com a de Neville D’Almeida, de 1997,
lembra que a longa introdução de quase trinta minutos, em que não há diálogos, foi criada
por Chediak, não existe na peça. No filme, todos os personagens são apresentados em
planos-seqüência. Todos os sons dessa introdução foram reconstruídos por Geraldo José e
se constituem dos sons ambientes e dos ruídos produzidos pelas ações. Sem palavras,
Neusa Sueli arruma-se para descer à rua, Veludo faz a faxina do sobrado, o cafetão Vado
acorda. Seus bocejos são as primeiras intervenções vocais, já com mais de dez minutos de
204

filme. Rafael de Luna comenta que a ausência prolongada de diálogos criará um contraste
com a explosão de violência das primeiras palavras de Vado, quando este indagar Neusa
Sueli sobre o dinheiro da noite anterior. São as palavras iniciais da peça. No filme, já se
contam vinte e sete minutos. Luna comenta que a recusa da voz e o espaço dado aos ruídos
concretizam um uso criativo dos elementos cinematográficos raro nas adaptações de peças
teatrais. (LUNA, 2004, p. 15-21). Há momentos em que a recusa da voz é clara, como na
seqüência em que Neusa Sueli acerta os termos do negócio com o cliente, ou quando
Veludo conversa com um rapaz nas imediações do bar. Em ambas as situações, mesmo
com os personagens falando em quadro, ouvimos apenas o som ambiente das ruas. Braz
Chediak comenta como o uso de um pequeno som contribui para a construção de um
personagem. Chove muito enquanto Vado anda pelo quarto. O pingar de uma goteira, da
qual não há referência dentro do plano, ajuda a contar a situação de penúria em que
também o cafetão encontra-se. Ao fim da introdução, há uma montagem paralela das cenas
de sexo de Neusa Sueli, com seu cliente, e de Veludo, com seu parceiro. Ambas são
envolvidas por silêncio total, o que, como nota Rafael de Luna, intensifica a sensação de
grotesco, que parte mais especificamente do cliente da prostituta.
Fechamos uma argumentação com a qual procuramos demonstrar, seja pela
impactante quebra dos limites da gravação de som direto, com a nova textura sonora que a
mudança trazia, seja pelos usos dos elementos sonoros de forma que não repetissem os
padrões convencionais, que um conjunto de filmes produzidos no Brasil entre as décadas
de 1960 e 1970 apresenta relações entre sons e imagens relevantes justamente porque raras,
criativas. Tais filmes descrevem assim a importância de experimentar novas formas de

inserir o som, bem como de entender o silêncio como elemento constitutivo das trilhas
sonoras. Décadas mais tarde, dentro de um cenário diverso, no qual o acesso às tecnologias
de gravação, edição e reprodução sonoras encontrava-se menos dificultado, também as
relações entre sons e imagens nos filmes seriam outras. Outras, se comparadas ao quadro
que acabamos de descrever. Até certo ponto similares a modelos anteriores. Mas novas,
certamente, pois inseridas em outras conjecturas. Haveria, ainda assim, uma volta relativa
aos padrões naturalistas? A lida com novas tecnologias levaria, como no início da década
de 1960, a uma preocupação de ordem técnica prioritária, obscurecendo-se questões
estéticas? Quais opções à tentação naturalista haveria nas décadas de 1990 e 2000?
205

4. A EXCELÊNCIA TÉCNICA CONQUISTADA E AS PROPOSTAS


ESTÉTICAS EXISTENTES

4.1. O CONTEXTO DE PRODUÇÃO E DENTRO DELE A PARTE QUE


CABE AO SOM

Em 2001, João Luiz Vieira dizia sobre a produção da década de 1990, em um


seminário organizado para debatê-la80:

“Estamos diante de um cinema que exibe total domínio da técnica – sempre elogiável na
medida em que se materializam valores por toda a vida cobrados do cinema brasileiro,
em especial com relação ao som e à cor – mas também da narrativa mais clássica,
produzindo filmes que se querem internacionais e populares, ou melhor, “globalizados”,
ao condensar temas locais, históricos ou tradicionais, dentro de uma estética
internacional”. (VIEIRA, 2001, p. 71-72)

80
VIEIRA, João Luiz.O (cinema) brasileiro tem memória?Texto integrante do catálogo da mostraCinema
brasileiro anos 90 – 9 questões, organizada por João Luiz Vieira, Eduardo Valente e Ruy Gardnier para o
Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro, em 2001.
206

A qualidade técnica, tornada questão primordial no cinema brasileiro recente, é


comentada pelos críticos da revista virtual Contracampo, na própria revista e no livro, por
eles organizado, Cinema brasileiro 1995-2005 – ensaios sobre uma década . No texto de
abertura, escrito a oito mãos por Daniel Caetano, Eduardo Valente, Luis Alberto Rocha
Melo e Luis Carlos Oliveira Jr. é citada como uma das características dessa produção uma
“heroificação técnica aferida na fotografia, nos figurinos” e, acrescentaríamos nós, no som
e na montagem, muitas vezes “sem relação direta com as propostas estéticas e narrativas de
cada filme”. (CAETANO, 2004, p. 36) Cléber Eduardo comenta em Fugindo do inferno: a
distopia da redemocratização, incluído no mesmo livro, que se buscava para a produção
dos anos 1990 “um padrão internacional de qualidade”, o que serviria como ferramenta
para “a aceitação moral das elites” com relação ao cinema brasileiro.
O contexto geral no qual se dá essa produção, que devemos comentar rapidamente
antes de nos determos ao contexto mais particular das mudanças no som, já é conhecido.
Lucia Nagib o explicita na introdução de O cinema da retomada: depoimentos de 90
cineastas dos anos 90. Na virada da década de 1980 para 1990, o então presidente
Fernando Collor de Mello rebaixou, logo após a sua posse, o Ministério da Cultura ao
patamar de secretaria, além de extinguir vários órgãos culturais, entre eles a Embrafilme. O
respectivo lapso na produção ocasionado por tais gestos começaria a ser resolvido a partir
de propostas de incentivo como o Prêmio resgate do cinema brasileiro e, mais
concretamente, pela Lei do Audiovisual, de 1993.(NAGIB, 2002, p. 13-17) Carlos Augusto
Calil explica seu mecanismo de funcionamento, baseado no incentivo privado
recompensado com renúncia fiscal. O Artigo III da lei garantiria ao investidor a dedução

integral no imposto de renda sobre remessa de lucro do valor revestido para produto
cultural. Alguns dos problemas desse modelo são fáceis de identificar: os privilégios de
certo tipo de projeto mais fácil de ser aprovado, cujos temas não contrariem a imagem e os
interesses da empresa que o patrocina; a larga abertura para superfaturamento, para
posterior dedução fiscal. 81

81
Na palestra A lei do audiovisual e outras formas de produção, realizada dentro do seminário O cinema
como expressão cultural, realizado no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro, em maio de 2002.
Marcelo Marzagão, por ocasião do lançamento de Nós que aqui estamos por vós esperamos, nos festivais
nacionais de 1999, comentava no manifesto O dogma e o desejo como os dir etores de marketing passaram a
ser “experts em cultura”, o que colocava a questão do financiamento do filmes nas mãos dos que “entendem
de sabonete”.
207

Os críticos da Contracampo lembram ainda que tal modelo incentiva apenas a


produção, uma vez que o dinheiro empenhado visa tão somente a realização do filme. O
patrocínio se basta a partir do momento em que o investimento volta na forma do
abatimento do imposto. Daí em diante, não importa mais ao investidor se o filme será
finalizado, distribuído ou não. A Riofilme seria, de 1992 em diante, a principal
distribuidora do cinema brasileiro, criando, porém, uma rede quase totalmente restrita ao
“circuito alternativo da zona sul de Rio de Janeiro”. Esse primeiro modelo de
financiamento entraria em crise pouco antes do fim da década. A partir de 1999, as
empresas públicas passariam a assumir em grande parte o financiamento da produção
cinematográfica. O surgimento de concursos regulares de seleção, como o do MinC, seria
importante também no sentido de abrir o mercado para novos nomes, alijados do processo
enquanto fosse, via de regra, necessário ter nome na praça para ser aprovado pelos
departamentos de marketing das grandes empresas privadas. A hipótese apresentada pela
Contracampo é de que, com essa nova conjuntura a produção ganharia em agilidade
narrativa, em ousadia estética.(CAETANO, 2004, p. 12-29) Ismail Xavier, no prefácio ao
livro de Nagib, cita como traço comum a um grupo de realizadores desse momento a
srcem nas escolas de cinema e, fato indissociável, a cinefilia.(in NAGIB, 2004, p. 10-11)
Também deve ser lembrada, quando se trata das “ousadias estéticas” da produção recente, a
permanência de nomes como Julio Bressane, Carlos Reichenbach, Sergio Bianchi, Rogério
Sganzerla, que seguem por um “cinema combativo”. (CAETANO, op.cit. p. 35)
Ponto marcante quanto à distribuição seria a entrada da Globo Filmes em cena, o
que passaria a definir “quais eram os incluídos e quais eram os excluídos dos meios de

divulgação e, logo, das salas de cinema”. Estaria criado um abismo, até este momento não
resolvido, entre o sucesso de público de alguns dos projetos da Globo Filmes e os demais.
(idem, p. 25)
Dentro desse contexto, o que muda com relação ao som? Como lembra Silvio Da-
Rin, o momento comumente chamado de retomada da produção no início dos anos 90
coincidiu com a chegada ao Brasil dos gravadores digitais. O impacto de sua vinda
começava a mudar um panorama técnico que havia se mantido praticamente estável por
cerca de trinta anos, baseado na captação analógica, circunscrita ao Nagra e a um conjunto
208

de microfones e acessórios razoavelmente limitado e à finalização em moviola. (in


CAETANO, 2004, p. 255-258)
O aparelho que viria a se estabelecer como padrão de gravador digital para cinema
seria o DAT (digital áudio tape). João Godoy lembra que tal formato havia sido
desenvolvido srcinalmente para gravação musical, mas encontraria seu espaço na captação
de som direto para cinema. Dissipadas dúvidas iniciais sobre a confiabilidade da velocidade
de gravação, sobre a alimentação por baterias, sobre a resistência de um aparelho de tal
forma portátil para servir às filmagens em locação tão bem quanto o robusto Nagra, tudo
isso em conjunto com o fator preço, acessível para o público consumidor dos técnicos de
som, o DAT popularizar-se-ia. Godoy lembra que entre as primeiras experiências com a
gravação digital no mercado brasileiro podem ser creditadas as filmagens de Sua excelência
o candidato, dirigido por Ricardo Pinto e Silva, lançado em 1992, com o som a cargo de
Luciano de Segni. Jorge Saldanha lembra as gravações de Vagas para moças de fino trato,
de Paulo Thiago, lançado em 1993.
O período no qual o DAT se estabeleceu como padrão de gravação parece estar
próximo do fim na segunda metade da década de 2000, quando ganha espaço a gravação
em aparelhos multipistas, de até seis canais, versus os dois do DAT. O gravador multipistas
de maior penetração no mercado em 2006 é o Cantar-X, desenvolvido pela francesa Aaton,
gigante do mercado de câmeras, passando a investir no som. A gravação em mais pistas
amplia as possibilidades do som direto cobrir com detalhamento maior situações
complexas, como, por exemplo, grupos grandes de personagens falando, agora cada um
com seu microfone exclusivo, gravação direta de música, etc. Godoy explica a necessidade

em um projeto como Antonia, de Tata Amaral, sobre a cena do rap feminino paulista, com
gravações de bandas, do público, de três ou quatro falantes em cena de uma só vez, de um
gravador de som direto que possibilite quatro, cinco, seis pistas simultâneas. Godoy lembra
ainda que na gravação musical para televisão multipistas srcinários dos estúdios de música
já eram largamente utilizados, no caso, o DA-88, da Tascam. Viva São João, de Andrucha
Waddington, lançado em 2002, e Carandiru, de Hector Babenco, do ano posterior, já
haviam adaptado a técnica para o som direto em cinema 82 .

82
Em palestra na Semana da ABC, Associação Brasileira de Cinematografia, realizada no Museu de Arte
Moderna do Rio de Janeiro, na última semana de março de 2006.
209

Devemos lembrar aqui a primazia do som com relação à imagem no que tange a
passagem para o digital. A aceitação do DAT ocorreu antes da popularização das câmeras
de vídeo digitais, fator este sempre citado como fundamental para se analisar a produção
contemporânea. O professor norte-americano Rick Altman lembrava, em 1992, a
importância de ampliarem-se as discussões sobre som naquele momento inicial da
digitalização do cinema. O som estava assumindo a dianteira no processo de inovação
tecnológica, como já ocorrera na década de 1970 com o Dolby e o início da história dos
sistemas de reprodução multicanais; na passagem para a gravação analógica portátil na
virada da década de 1950 para 1960; na própria passagem para o sonoro no fim da década
de 1920, pontos de mudança todos esses de importância inquestionável para o
desenvolvimento da indústria cinematográfica. (ALTMAN, 1992, p. 45)
Algumas das vantagens dos processos de gravação e edição de som digital são
claras: Da-Rin lembra que não se perde informação nem se gera ruído durante as
transcrições da gravação digital para a plataforma em que os sons serão editados. A edição
em computador é, via de regra, mais rápida do que em moviola: as ferramentas e os sons
dispostos todos de uma vez na tela propiciam maior agilidade do que a disposição física do
material magnético na mesa de montagem. Os programas dispõem de ferramentas de
redução de ruído que vieram facilitar a limpeza do som direto.(in CAETANO, 2004, p.
256) Esta talvez seja uma das maiores armas para a obtenção de um som que tecnicamente
pareça perfeito, livre das impurezas que na verdade pertencem à gravação em locação, dos
estalos, dos demais ruídos que incomodam por suas freqüências muito baixas ou muito
altas, e que, tratados, passam a não mais ser desagradáveis para o espectador. Um programa

que se tornou padrão para a edição de som digital em cinema foi o Sonic solutions, da
norte-americana Sonic Studio, utilizado em grande parte das ilhas de edição brasileiras
entre 1997 e 1999. O NoNoise seria o conjunto de ferramentas compatível com o Sonic
solutions para limpeza de som direto. Logo, porém, outro programa, o Pro Tools, da
também norte-americana Digidesign, tal como o DAT srcinalmente desenvolvido para a
edição em estúdios de música, ganharia o mercado do cinema.
De todas as vantagens advindas da passagem da edição em moviola para a edição
digital, talvez a maior delas seja a abertura concomitante de dezenas de pistas de som, bem
como sua visualização. Na moviola o editor era obrigado a lidar com duas pistas sonoras de
210

cada vez. Isso significava que não havia, durante a edição, possibilidade de ouvir o som do
filme por inteiro. Longe disso, ouvia-se de duas em duas pistas uma construção que
facilmente poderia passar de dez ou vinte. É o que acontece se pensarmos no exemplo
simples de duas pistas de diálogos, duas de músicas, quatro de sons ambientes, mais quatro
ou seis de ruídos. Apenas na mixagem, quando era chegada a hora de unir todas as pistas de
som em um mesmo suporte rumo à cópia final, diretor e editor de som ouviam, pela
primeira vez, o som por inteiro. Na tela do computador, além da visualização da linha de
tempo horizontal, que simula o tempo real de filme projetado, as pessoas envolvidas no
processo vêem a disposição vertical de todas as pistas de som, sincronizadas. Vê-se que
sobre o plano “x” estão inseridas, digamos, as vozes; que desde o início do plano está o
som ambiente (do mar, por exemplo. Nossos personagens estão na praia); que em
determinado momento entra um ruído pontual, assim que o diálogo termina; que antes do
fim do plano entra a música.
Pode-se dizer que a abertura simultânea de todas as pistas no programa de edição de
som torna mais evidente a visualização da montagem vertical dos sons, como pensada por
Eisenstein setenta anos antes. Na tela, é clara a progressão horizontal da imagem, linear, da
esquerda para a direita, e dos sons que acompanham seu desenvolvimento no tempo, mas
que ao mesmo tempo descem verticalmente em construção sobreposta.
Cabe lembrar que tal como na gravação de som direto, a passagem para o digital na
edição de som foi amplamente anterior à edição digital das imagens registradas em película.
Ainda hoje, edita-se em um meio híbrido, no qual muitas vezes a película é montada em
moviola e o copião é telecinado para a edição digital do som. Além de um arquivo sonoro

ser mais fácil, por ocupar menos espaço, de ser armazenado no formato digital do que a
imagem, a praticidade dos procedimentos digitais aplicava-se de forma mais concreta à
sofisticação do processo de edição de som.
Na exibição, a introdução no Brasil do sistema da Dolby e de seus concorrentes
viria a completar o quadro. Hernani Heffner comenta a demora desse processo, presente
nos Estados Unidos desde a década de 1970, em concretizar-se no país. Heffner lembra que
tal aparato de exibição estava presente no Brasil desde a década de 1980, mas em alguns
poucos cinemas, vindo a conquistar maior espaço na década seguinte. (in MIRANDA,
RAMOS, 2000, p. 521) Na década de 1990 seria evidente a tão aguardada melhoria da
211

qualidade sonora das salas de exibição, ainda que, claro, este processo que não consiga
abranger uniformemente o mapa dos cinemas.
A característica mais destacada desses sistemas de exibição, seja o Dolby digital,
seja o SDDS da Sony, ou ainda o DTS, que promoveu a volta do som projetado separado da
imagem, em cd sicronizado com a película, é o fato de serem multicanais. São seis a
circundarem o espectador, no caso da Dolby e do DTS, oito no caso do SDDS. Assim, com
os sons localizados não somente nos dois canais tradicionais, situados atrás da tela, mas
dispostos em volta do espectador à esquerda, à direita, abaixo da tela para reforço dos
graves, amplia-se a sensação do público estar imerso na experiência criada a partir da
projeção do filme, uma vez que a localização espacial dos sons se expande com o intuito de
envolvê-lo por todos os lados. 83
A tecnologia desenvolvida pela Dolby, porém, conta ainda, e, na verdade, em
primeiro lugar, com um sistema eficaz de redução dos ruídos na exibição. Além disso,
promoveu-se um aumento da faixa dinâmica na reprodução que dá conta de tocar fielmente
todos os sons mais graves e mais agudos, o que garante a verossimilhança.
Para Da-Rin, a reprodução sonora mais acurada na exibição ajuda a criar um
espectador cada vez mais exigente, o que é amplamente positivo. Assim, se estaria
revertendo paulatinamente a deseducação sonora a que o público esteve submetido pela
histórica má qualidade das salas. Da-Rin tangencia um outro aspecto importante na
apreensão mais atenciosa dos sons por parte da audiência: o fato de uma parcela do público
ter acesso à tecnologia digital no âmbito doméstico.(in CAETANO, op. cit, p. 257) De fato,
parte do grupo de pessoas que freqüenta as salas de cinema equipadas com som digital,

estas em sua maioria localizadas nas zonas nobres das capitais, tem também contato, em
83
Cabe lembrar que a experiência de reprodução multicanais desenvolvida pela Dolby na década de 1970 tem
um antecedente nas exibições em widescreen surgidas a partir de 1952, com o Cinerama, sistema seguido
pelo Cinemascope, de 1953, pelo Todd-AO, de 1955 e por outros, comoVistavision, Superscope. A
experiência do Cinerama, sempre lembrada pelo aumento da projeção, mediante o sincronismo de três
projetores para preencher uma tela de 146 graus de curvatura, também significou uma larga ampliação da
reprodução sonora. O som naquelas projeções consistia de cinco canais, no início, sete mais tarde, dispostos
em quatro bandas magnéticas separadas. Para garantir a sincronização, havia nas salas a função do “cinerama
engineer”. A clareza do som disposto em diferentes pistas e a própria qualidade da reprodução em suporte
magnético era didaticamente explicada aos espectadores no início da sessão e nos intervalos entre rolos. Uma
trilha sonora, sem imagens, com as cortinas fechadas à frente da tela, mostrava à platéia as vantagens da
melhor reprodução de graves e agudos, a amplitude da faixa dinâmica que cobria de 30 Hz a 15 Khz. Trechos
executados pela orquestra, e explicados pelo narrador, enfatizavam as notas mais baixas e mais altas. O
espectador não só participava da experiência de estar imerso nos sons do filme à sua volta, mas era convidado
a entender o processo.
212

seus computadores pessoais, com o som digital graças à popularização de programas


caseiros de edição de som e do compartilhamento de músicas pela internet, em arquivos de
som compactos, o formato mais conhecido sendo o mp3. Essa manipulação cotidiana de
arquivos de som faz com que essa parcela da população, extremamente pequena, o
sabemos, mas ao mesmo tempo em expansão, passe a entender ao menos um pouco sobre
propriedades sonoras. Os chamados home-theaters levam para o ambiente privado a
dsitribuição multicanais, bem como a qualidade do som digital. É evidente que ao utilizar-
se desse argumento deve-se estar consciente de que se trata de um grupo restrito de pessoas
que reúne as condições necessárias para tal acesso à informação. Mas dentro da já reduzida
parcela que vai às melhores salas de cinema, tal contingente não seria desprezível. Tal
verificação é fácil de ser feita no contato com a geração mais recente de estudantes de
cinema.
O papel das escolas na formação dos jovens que ingressam no mercado para
trabalhar com som nos filmes é um último fator destacado por Da-Rin. Vindos dos cursos
de cinema, os assistentes passaram a entrar no mercado com melhor formação tanto técnica
quanto da história cinematográfica.(in CAETANO, op.cit, p.258) Seria o princípio do fim
da clássica falta de formação oficial de técnicos de som, e talvez mais grave, de
microfonistas?

4.2. QUAIS QUESTÕES O SOM DO CINEMA BRASILEIRO TRAZ


ATUALMENTE?

Passemos a comentar os filmes e o que suas diferentes formas de uso do som trazem
à discussão. Eis apresentadas rapidamente um elenco de questões abordadas na seqüência
deste texto:

1. A presença de um padrão sonoro que poderia remeter a uma volta do naturalismo,


mas que ao mesmo tempo não pode mais ser pensado simplesmente de acordo com
a codificação sonora estabelecida pelo cinema clássico norte-americano. Aquele
conjunto de leis já está reprocessado pela proximidade deste cinema atual com a
televisão, além de impregnado, muitas vezes, com um “sotaque” brasileiro. Isso
213

pode ser aferido tanto na predominância dos diálogos, no papel dado a eles na
condução da narrativa; nas funções delegadas à música; no espaço dado aos ruídos,
este o elemento que se desenvolveu desde a mudança iniciada pela introdução do
Dolby, há mais de trinta anos.
2. A permanência da voz over, usada tanto por filmes nos quais se buscam soluções
narrativas divergentes do usual quanto naqueles de narração mais convencional.
3. O papel de cineastas que permanecem na ativa, unindo sons e imagens de modos
ainda contrários às convenções mais usuais.
4. A presença destacada nas telas dos diversos modos de se falar português pelo país
adentro, o que mostra que tal questão, colocada por Bernardet a propósito dos
documentários com som direto dos anos 60, e comentada no capítulo anterior, ainda
é pertinente.
5. A relação com a música pop(ular), novamente, mas em outra chave.
6. A importância dos sons fora de quadro, dos ruídos, do silêncio entendido como
elemento constitutivo da narrativa, um refinamento do trabalho de construção do
som ambiente.

4.2.1. Ainda naturalismo? A passagem para o hiper-realismo

É certo dizer que assumir a busca da perfeição técnica significa procurar a aceitação
de certo público, na verdade sua maior parcela, acostumada com os padrões que um dia
foram ditados pelo cinema clássico narrativo. Isso aproxima os filmes brasileiros recentes,
como disseram João Luiz Vieira, Cléber Eduardo, de uma estética internacional, apátrida,
que tentará reproduzir convenções usadas indiscriminadamente pelo cinema comercial feito
mundo afora.
Como já dissemos, os parâmetros de uso do som que se encaixam nesse modelo
correspondem, via de regra:
• à prevalência do diálogo sobre os demais elementos sonoros, à obrigatória
clareza e inteligibilidade à toda prova desses diálogos;
214

• a um uso da música altamente codificado, que deve guiar o espectador,


enfatizando emoções, simulando continuidades, tornando explícitos
determinados pontos da narrativa;
• a um papel secundário delegado aos ruídos, utilizados como ferramentas que
reforçam a impressão de realismo;
• à recusa a um papel de destaque ao silêncio como agente narrativo, que poderia,
dado seu intrínseco caráter polissêmico, desempenhar várias das funções
descritas acima.
Aqui devemos tentar responder a uma questão difícil: o que podemos dizer que
adquire hoje sentido diferente dentro da tentativa de chegar a essas funções, mesmo quando
estamos tratando de filmes que precisam fazer uso dessas mesmas ferramentas para criar
com o espectador um vínculo similar ao que o cinema clássico narrativo ensinou a criar? O
que já se deslocou, mesmo dentro do cinema de narrativa mais convencional, que já não
pode ser tratado como a mera reprodução dos padrões clássicos, mas que também traduz, ao
mesmo tempo, algo que é específico do lugar de onde fala, ainda que procure parecer
globalizado, internacional?
Pegue-se, por exemplo, os filmes de Guel Arraes, expoente indiscutível da relação
próxima com a televisão e, por conseguinte, de um cinema mais facilmente
comercializável. Cláudio Bezerra descreve o projeto cinematográfico de Arraes como anti-
naturalista, o que deveria ser um paradoxo, se concordarmos que tratamos de filmes que
buscam uma conexão direta com o público. Calcada nos diálogos ágeis, espertos, a fala
seria, em seus filmes, tributária da melhor linhagem de diálogos do cinema clássico, mas

também, segundo Bezerra, do projeto armorial de Ariano Suassuna (não só evidente na


adaptação de Arraes para O auto da compadecida, de 2000, do próprio Suassuna, o que
tornaria o argumento óbvio, mas também em Caramuru: a invenção do Brasil, de 2001, e
em Lisbela e o prisioneiro, de 2003). Os filmes de Arraes instaurariam um regime de
“oralidade excessiva” estabelecida pela conjunção “entre o cômico cinematográfico e os
espetáculos populares nordestinos, para compor um cinema nacional com profunda
identificação popular”. (BEZERRA, 2004, p. 75-77) 84 Voltaremos à obra de Arraes para

84
O cinema de Guel Arraes,
O texto de Cláudio Bezerra é fruto de palestra sua em uma mesa intitulada
incluída no VII Encontro Anual da SOCINE, realizado em Salvador, na UFBA, em novembro de 2003.
215

comentar o uso da música. A fala em seus filmes seria, portanto, exemplo de fidelidade a
um uso canônico temperado com um sotaque local, o que lhe confere, simultaneamente,
alinhamento ao modelo tradicional e diferença.
No artigo “Quem tem medo de sertão?” Eduardo Valente comenta, ao analisar Abril
despedaçado, sobre a “presença intrusiva da música” no filme de Walter Salles. 85 O que
causa esse estranhamento? Tal música certamente não fora pensada para parecer que
interfere de forma agressiva sobre as imagens do sertão. Pelo contrário, poder-se-ia dizer
que a música, não só de Abril despedaçado (2001), mas do anterior Central do Brasil
(1998), e dos demais filmes de Salles, segue, com limitações, a cartilha que supõe para a
partitura as mesmas funções há mais de setenta anos. Dentro dessas funções, como vimos
no capítulo anterior, a partir do modelo definido por Claudia Gorbman, está a de não causar
choque para o espectador com relação ao que ele vê. O uso do leitmotif, mais claro em
Central do Brasil, insere-se nesta tradição, e está presente no cinema pelo menos desde a
obra do austríaco em Hollywood Max Steiner. Lécio Augusto Ramos comenta sobre a
eficiência do uso tradicional do tema, de Antonio Pinto e Jacques Morelembaum, que
repetido filme afora “funciona como síntese e chave para sua compreensão”. (in
MIRANDA, RAMOS, 2000, p. 550)
O que, em uma música feita para simular os parâmetros aceitos por tanto tempo,
pode extrapolar a desejada eficiência e passar a parecer estranho, excessivo? A repetição
exaustiva do modelo pode acabar por produzir um resultado no qual se exagera a própria
tentativa de alcançar tal funcionamento, e já não se vê claro o objetivo srcinal. A música
pode parecer a cópia da cópia, os resultados a serem alcançados já estão óbvios de antemão,

ao menos para o espectador mais atento. Em Olga, dirigido por Jayme Monjardim, de 2004,
a música parece excessiva por ter a obrigação de enfatizar pontos narrativos já claros,
emoções por demais evidentes no trabalho dos atores. Resta ao espectador mais atento
achar a presença da música “intrusiva”, como disse Valente. Neste caso, seu papel passa a
ser o de explicitar o que já é explícito por imagens e diálogos. Parece tratar-se do erro
costumeiro, até por má compreensão de um modelo que fora extremamente funcional no
cinema clássico narrativo, de supor que a música deva enfatizar o maior número possível de
situações, o que exagera a função inicial, empobrecendo-a.

85
Em Contracampo n.48. Disponível em www.contracampo.com.br/48/frames/htm
216

Michel Chion defende que o uso dos ruídos com a intenção de reforçarem o
naturalismo das imagens foi se tornando paulatinamente mais complexo. Chion comenta
que o espectador habituado ao cinema narrativo espera uma correspondência entre sons e
imagens que, na verdade, tem muito pouco de real. Para se obter a sensação de que tudo na
imagem está devidamente sonorizado, os sons normalmente são exagerados, não só quanto
aos volumes mas às suas próprias texturas. É como se o som real daquelas ações parecesse
insuficiente na tela. Assim, o espectador vem sendo acostumado a achar que sons
produzidos para serem exagerados correspondem aos sons naturais. Bom exemplo disso
está, ainda de acordo com Chion, nos filmes de boxe, como Touro indomável, de Martin
Scorcese (Raging bull , 1980). Cada soco de Jake LaMotta, Robert De Niro, é carregado de
um impacto desproporcional ao que seria o som real da luva contra o rosto. (CHION, 1994,
p. 95-123) É evidente que tal som tem o papel não só de reproduzir o impacto do soco, mas,
em conjunto, de atingir o espectador emocionalmente. Mas o que se passa é que o público
acostuma-se a achar que o som de um soco no cinema deve corresponder àquele estrondo.
O recente Menina de ouro, de Clint Eastwood (Million dollar baby, 2005), não foge à
regra.
Há quem defenda que o avanço tecnológico atingido nos anos 70, com a capacidade
de abrirem-se mais pistas de som, trabalhando-se com uma quantidade maior de ruídos,
juntamente com a maior qualidade de reprodução alcançada com o sistema Dolby, criou as
condições para que pudesse ocorrer tal mudança no estatuto que a própria produção
hollywoodiana acostumara-se a dar aos ruídos. Estaria, naquele momento, sendo aberto o
caminho para o hiper-realismo sonoro, outro modo de nomear a correspondência entre sons

e imagens descrita por Chion. Todas as ações na tela passariam a produzir sons que na
verdade seriam imperceptíveis, mas que os filmes estariam acostumando o espectador a
perceber, e a desejar. Rogério Ferraraz cita um exemplo que nos serve: no início de Veludo
Azul (Blue velvet , 1986), de David Lynch, um personagem sofre um enfarte enquanto rega
seu jardim. O rádio que ouvia continua tocando, seu corpo no chão, “a água segue jorrando
da mangueira. A música vai diminuindo e estranhos sons são amplificados. A câmera
acompanha a água e, lentamente, vai descendo pela terra, onde os insetos e os vermes se
movimentam freneticamente. Os ruídos dos insetos transformam-se em acentos musicais.
Essa técnica realça a tensão e o mistério da cena”. (FERRARAZ, 2001, p. 56) Este é um
217

caso ao mesmo tempo sutil e radical de sons, o andar das formigas e dos besouros, que
jamais seriam percebidos na realidade, mas que estão exagerados nas telas a ponto de
integrarem-se à construção sonora, no mesmo nível da música. Embora a intenção aqui seja
causar estranheza, não se trata de um exemplo isolado, mas sim imerso nas possibilidades
de amplificação dos ruídos em voga no cinema norte-americano há trinta anos. O exagero
da percepção travestido de plausível, típico de David Lynch.
Reflexos dessa amplificação dos ruídos podem ser notados em parte da produção
brasileira recente. Cidade de Deus (Fernando Meireles e Kátia Lund, 2002) é um dos
exemplos, graças ao destaque dado principalmente aos tiros dos mais variados timbres, na
busca por ser fiel aos mais variados calibres, realçados a ponto de estarem acima do volume
delegado às músicas. Os tiros passam a ser um paradigma dos ruídos elevados a primeiro
plano sonoro. É o hiper-realismo sonoro em ação, o exagero do objetivo inicial de
fidelidade ao som real, agregando a isso a busca de um impacto sensorial significativo no
espectador. Há ainda espaço em Cidade de Deus para um contraste possível justamente pela
presença massiva dos sons das armas. O tiro que mata Mané Galinha, próximo do fim do
filme, não é ouvido. Este momento é envolto por uma pausa brusca de toda a construção
sonora de guerra. O silêncio que é a trilha sonora de sua morte a diferencia de todas as
demais, realça seu impacto emocional. Tal codificação para o uso do silêncio, causador de
uma pausa dramática em meio ao excesso de ruídos, vem se tornando comum no desenho
sonoro da produção hollywoodiana recente, diga-se de passagem. Munique, de Steven
Spielberg (Munich, 2005), oferece um exemplo: quando, também próximo ao desfecho da
trama, finalmente são mostradas as imagens dos atletas da delegação israelense sendo

executados pelos terroristas árabes todos os sons dos tiros, mostrados em planos próximos
no espaço exíguo do interior do avião, não são ouvidos. Estão silenciados, resta na trilha
sonora apenas o comentário idílico da música vocal árabe. É o impacto de não ouvir os sons
dos tiros no momento capital, em contraste com sua presença corriqueira por todo o filme,
que cumpre o papel de marcar tal ponto nodal na narrativa. O próprio Spielberg já obtivera
efeito semelhante a partir da mesma técnica em O resgate do soldado Ryan (Saving Private
Ryan, 1998). O que assistimos em Cidade de Deus pode ser tomado como uso adaptado
desse modelo.
218

Há um exemplo sucinto em O homem do ano, dirigido por José Henrique Fonseca


(2003), de construção hiper-real do som ambiente, de resto, filme também dominado pelo
destaque dado à construção do som dos tiros. Máiquel, Murilo Benício, passa a noite
sentado no sofá, imóvel até o amanhecer. Por uma trucagem de aceleração do movimento e
de mudança de luz vemos a longa passagem de tempo que compreende toda a noite até o
raiar do dia em um só plano, breve. Ao fim do plano, a luz passa a banhar o local, o sofá e o
personagem inerte. Uma mudança no som acompanha o que vemos. O som ambiente
noturno que ouvíamos no início do plano transmuta-se em passarinhos, sons de trânsito,
vozes na rua. O resumo do tempo de uma noite inteira em poucos segundos é criado,
também no som, com a preocupação de parecer real.
Outro exemplo curto está em O outro lado da rua (Marcos Bernstein, 2004).
Regina, Fernanda Montenegro, inspeciona a vida dos vizinhos da sua janela, de binóculo.
Quando compartilhamos seu ponto de vista através do instrumento, ouvimos, junto com as
imagens das pessoas dentro de suas casas, o som de suas ações. Escutamos em primeiro
plano o aspirador de pó que a jovem passa no chão, a festa que acontece em um
apartamento mais acima. É como se, com a proximidade da imagem, fosse necessário ouvir
de perto também os sons, efeito que, como se sabe, um binóculo é incapaz de produzir.
Trata-se de saciar a necessidade, incutida nos espectadores, de se ouvir tudo o que se vê,
mesmo que para tanto seja preciso recorrer a um exagero do que simularia o realismo.
Em Narradores de Javé, dirigido por Eliane Caffé (2003), há espaço já para um uso
paródico da construção hiper-realista dos ruídos. Os movimentos inspirados nos de Bruce
Lee com os quais supõe defender-se Antonio Biá, José Dummond, daqueles que lhe querem

resgatar têm correspondência na trilha sonora. Ouvimos o som do vento sendo cortado por
suas mãos em riste, sincronizado com os golpes de kung fu no ar, tal qual o subgênero dos
filmes de artes marciais ensinou ser o papel do som.
219

4.2.2. Permanência da voz over

Cleber Eduardo, no artigo “Eu é um outro – variações da narração em primeira


pessoa”, bem como Ismail Xavier, em uma série de palestras recentes 86, comenta a grande
presença da narração em voz over na produção brasileira recente. Cleber elenca um bom
número de filmes narrados por vozes que estão sobre as imagens, como os já citados
Cidade de Deus, O homem do ano, Narradores de Javé e ainda Lavoura Arcaica, Carlota
Joaquina, Cronicamente inviável, Houve uma vez dois verões, Redentor, Estorvo, cada
filme com diferentes modulações para o papel das vozes. (in CAETANO, 2004, p. 137-
153) Em Carlota Joaquina (Carla Camurati, 1995) o narrador estrangeiro fabula a história
da vinda da família real portuguesa para o Brasil. Em Redentor (Cláudio Torres, 2004) o
narrador assume estar morto de início, seguindo a linhagem cinematográfica de Crepúsculo
dos deuses (Sunset Boulevard, Billy Wilder, 1950) e literária de Memórias póstumas de
Brás Cubas, de Machado de Assis. Como mais um elemento da paródia que detectamos no
uso dos ruídos em Narradores de Javé, Cleber Eduardo nota o tom farsesco da narração. O
narrador neste caso não garante que conta a verdade, e a partir do momento em que não se
consegue determinar a verdade histórica sobre a fundação da cidade as versões não fecham,
as vozes se contradizem. (idem, p. 138) Cleber nomeia Jorge Furtado “o principal
praticante da narração em primeira pessoa no período 1995-2005”. De fato, seus três
primeiros longa-metragens, Houve uma vez dois verões (2002), O homem que copiava
(2003) e Meu tio matou um cara (2004) usam o artifício. O caso de O homem que copiava

parece ser o mais complexo. Cleber Eduardo nota como em sua narração André, Lázaro
Ramos, usa do tempo presente. André não sabe de antemão sobre os eventos que narra, o
faz enquanto eles acontecem. Descobrimos inclusive que lhe faltam informações, ou
melhor, que seu ponto de vista é incompleto, a partir do momento que o fim da trama
descortina outra narradora, que reconta os fatos, alterando sua percepção por parte do
espectador. (idem, 138-139)
A primeira meia hora do filme faz da voz over o elemento centralizador da narração
de forma surpreendente, com as imagens corroborando o que André diz. É assim que
86
Como n os encontros anuais da SOCINE de 2004, 2005 e 2006, quando foram analisados respectivamente
os casos de Lavoura Arcaica, Estorvo, a serem comentados, e Redentor.
220

sabemos seu nome, o nome de seu pai, que mora na Rua Franklin Roosevelt, que é
operador de foto-copiadora. Descreve o patrão, os clientes, o funcionamento da máquina, a
rotina de casa, a vizinha, o quarto dela, sua rotina. Diz quanto ganha. Que queria ser
jogador de futebol.
Descrevendo um paralelo sobre dois modos opostos de narrar, poderíamos dizer que
se Braz Chediak, em 1969, criou para sua adaptação de A navalha na carne uma introdução
não-verbal de cerca de meia hora, apresentando os personagens em silêncio e pelos ruídos
de suas ações, como descrito no capítulo anterior, Jorge Furtado, em 2003, construiu uma
verbalização tão longa quanto, para apresentar os personagens e seu cotidiano por
intermédio da voz de André. Quanto à distensão do tempo, um terço da duração total do
filme dedicado à apresentação do personagem, pode-se contrapor, por exemplo, à síntese,
dentro de um único plano, em Janela indiscreta, de Hitchcock (Rear window, 1954),
quando, por meio do travelling pelas fotos de Jeffries tomamos ciência de sua vida inteira,
logo no início da história.
Sobre os múltiplos usos da voz over na produção recente é pertinente constatar que
o recurso tem servido tanto aos filmes que procuram modos mais complexos de narrar
quanto aos que ambicionam ser mais palatáveis ao público médio. Assim, não surpreende
que O coronel e o lobisomem (Mauricio Farias, 2006) tenha uma estrutura clássica baseada
na voz em primeira pessoa. O coronel Ponciano Furtado, Diogo Vilella, encontra-se, no
tempo presente da história, discursando em um tribunal. A partir de lá, sua voz seguirá por
sobre longos períodos de flashback, que terminarão por levar-nos de volta ao mesmo lugar
e ao mesmo tempo, para o desfecho quando voz e imagem voltam a estarem unidas.

Providenciais inserções de planos do tempo presente, no tribunal, pelo decorrer da história


não deixam o espectador esquecer-se da duplicidade temporal.
Caso complexo de voz do narrador encontra-se em Lavoura arcaica (Luis Fernando
Carvalho, 2001), adaptação do livro homônimo de Raduan Nassar, narrado em primeira
pessoa. Ismail Xavier nota um “torneio de palavras”, uma cisão no filme da narração,
uniforme no livro. Como diz Xavier, há uma distinção de tons entre o André que está em
cena e o André que narra. A voz de Selton Mello quando está em quadro é muitas vezes
gritada, exaltada, enquanto a narração over, em um tempo futuro com relação ao que se vê
na imagem, é tranqüila, não contém a revolta da primeira. Como agente complicador, a voz
221

de André na narração por vezes é de Selton Mello, por vezes é do diretor, Luis Fernando
Carvalho. Xavier nota ainda outra dicotomia, entre a loquacidade de André e o silêncio
total de Ana, sua irmã, objeto de seu desejo. Uma vez o ato proibido consumado, o silêncio
de Ana torna a exasperar André, que é tomado por longo arroubo verbal. (XAVIER, 2005,
p. 13-20) Note-se que a relação entre a verbalização excessiva de André e o silêncio de Ana
em certa medida se estende aos demais membros masculinos e femininos da família,
marcando uma diferença de gênero, e assinalando a vontade de domínio patriarcal. O pai
dos sermões à mesa, o irmão mais velho, até mesmo o mais novo, são personagens mais
falantes que a mãe, resignada em muitos momentos em ser ouvinte da sabedoria do pai, do
que as irmãs de pouquíssimas falas. Sobre a diferença entre a voz de André que narra e sua
voz em quadro, gostaríamos de acrescentar outro ponto marcante. É evidente que mesmo
sendo o tom revoltado característico das palavras ditas dentro da ação por André, este não
poderia simplesmente gritar o tempo todo (não o dissemos, nem Ismail Xavier). Há grandes
variações do volume e do tom de sua voz, por vezes dentro do espaço de um mesmo plano,
o que, note-se, deve ter dado grande trabalho ao técnico de som direto, Márcio Câmara.
André em quadro passa repetidas vezes do grito ao sussurro. Em oposição a isso, o tom e
volume da voz do narrador pouco variam. A sensação de intimidade constante desta voz
deve-se à proximidade entre boca e microfone, de uma forma que o som direto não pode
almejar, devido à distância imposta pelos limites do quadro. Com microfone e boca
colados, na gravação em lugar silencioso, escutamos o ar que sai junto com as palavras, os
estalos da boca enquanto fala. A textura das vozes, gravadas de formas diferentes, diverge.
Ismail Xavier nota que embora o filme seja exaustivamente verbal, ainda assim as vozes

dividem a narração com os demais elementos imagéticos e sonoros, forçosamente, pela


intrínseca natureza de múltiplos focos narrativos do cinema. (idem, p. 14) Destaque para
certas passagens em que os ruídos sobressaem: na seqüência de abertura, André se
masturba. Um primeiro plano localiza o corpo de Selton Mello no quarto. Os planos
seguintes, extremamente próximos, fazem das partes do corpo que vemos uma massa de
pouca definição, graças à falta de profundidade no foco e à escolha da lente. A trilha sonora
é o som de um trem que se torna mais presente à medida que o corpo se retesa, e sai de cena
à medida que o relaxamento vem. Na junção entre a imagem do corpo e o som do trem, um
exercício de sincronia refinado: os apitos da máquina encaixam-se em cada abrir da boca, o
222

corpo treme no mesmo ritmo do som. A partir de quando o trem some, surge a construção
dos sons “naturais”, do som ambiente do lugar da ação: pássaros, um cachorro. O próximo
som completa a volta à realidade. Batem à porta, insistentemente. É Pedro, irmão de André,
que vem lhe buscar, de volta à casa. Há, mais tarde, outra situação em que sons
supostamente naturais são alçados à condição de som subjetivo, representativo de um
estado de espírito de André. Quando este fala da claridade da casa, signo de beleza na
infância, que passaria mais tarde a incomodá-lo, ouvimos, sobre um plano superexposto da
fazenda, o som de um enxame de abelhas que assume papel de destaque, criando, sobre a
luz, estranheza.
Caso de voz over pouco comentado, mas também complexo, está em A ostra e o
vento (Walter Lima Jr. 1998). Complexo por conta das várias vozes sobre as imagens, de
vários personagens. A que causa maior estranhamento, a do vento, Saulo, como o denomina
a personagem Marcela, Leandra Leal. O vento “chama” por Marcela em alguns momentos
do filme, quando ouvimos efetivamente a sua voz. Seria mais um caso de som subjetivo,
um som imaginado pela personagem, do qual compartilhamos? Por vezes a decupagem
sugere isso, por outras não. Há a voz de Marcela, que ouvimos sobre suas próprias imagens
ao escrever o diário. Ouvimos o que ela escreve. Há a voz de José, seu pai, Lima Duarte,
também sobre as imagens de um diário escrito por ele, com informações sobre a ilha e
sobre o farol. Não é José quem o lê, mas Daniel, Fernando Torres, mas ouvimos a voz do
autor das palavras, não do leitor. Há um caso claro de som subjetivo: José lembra do
traumático adultério de sua esposa, mas não vemos a cena em hora alguma. Sobre seu rosto,
a traição vem à tona apenas pelos sons. De resto, trata-se de um filme com uma construção

sonora sutil. A criação dos sons que ambientam a ilha é baseada em poucos elementos, mar,
vento, pássaros, mas de grande variação de timbres, de texturas entre eles. Como som
opositor aos da natureza, um rádio que tenta ser a ligação com as informações vindas do
continente. Walter Lima Jr. conta à Lucia Nagib que, desde o início do projeto, achava a
construção do universo sonoro da ilha vital para a credibilidade da história. Insatisfeito com
os testes feitos em laboratórios cariocas, resolveu fazer a finalização de som nos EUA. Para
isso, aumentou a porção do orçamento dedicada a ela. Contratou um sound designer, que
criou um projeto sonoro com o detalhamento desejado; dispôs de uma equipe de editores de
som, cada um para um departamento específico: editar apenas os diálogos, ou apenas os
223

sons ambientes e assim por diante. Construiu-se uma malha sonora composta por cerca de
quarenta pistas para dar conta dos diferentes timbres de vento, mar, pássaros, vozes.
(NAGIB, 2002, p. 276-277)
Estorvo, de Ruy Guerra (1997) tem sido comentado por conta da cisão, em certo
sentido similar à de Lavoura Arcaica mas talvez ainda mais complexa, entre a voz do
personagem quando narra e quando está em quadro. Como naquele caso, tratam-se de duas
vozes diferentes, a do cubano Jorge Perrugoria, que incorpora o personagem em quadro, e a
do moçambicano Ruy Guerra, dono da voz over. Andréa França nota a estranheza criada
pela situação do mesmo personagem apresentar, assim, dois sotaques distintos, um ao
narrar, outro estando dentro do espaço da ação. (FRANÇA, 2003, p. 47) Essas vozes unidas
às demais no percurso errático entre Rio de Janeiro, Havana, Lisboa, tornam, para França, a
língua falada no filme uma terra de ninguém, um amálgama de sotaques que rompe
fronteiras, impossível de ser resumido a um modo de falar homogêneo. Segundo ela, “o
filme de Guerra mistura os sotaques natais (dos atores, do próprio diretor), transformando o
terceiro mundo numa terra polifônica, cuja mistura de sotaques explicita a recusa obstinada
a todas as forças de homogeneização”. (idem, p. 48) Este argumento insere Estorvo em um
conjunto de filmes que comentaremos à frente, que enriquecem os modos de inserir-se o
português nas telas, ao representarem os diferentes modos de lidar com a língua.
Sobre a relação das vozes com os demais sons, Estorvo demonstra, desde sua
seqüência inicial, uma ação bem coordenada. A campainha que chama pelo personagem
está colocada nas pausas deixadas pela voz sussurrante de Guerra. Essa campainha e outros
ruídos vão se tornando mais intensos, colaborando para a tensão que não se resolve

enquanto ele não se decide por abrir a porta. Um terceiro elemento vem unir-se a esse
conjunto: a música, de Egberto Gismonti, também em diálogo com as vozes e com os
ruídos. A primeira inserção da voz de Perrugoria, o outro sotaque do mesmo personagem,
só acontece aos dez minutos de filme, depois que já estávamos íntimos da voz de Guerra.
Outras vozes de difícil compreensão: a do empregado que permaneceu no sítio, a da
senhora cubana que se exaspera pelo filho acusado de assassinato. Na seqüência final, uma
curiosa relação complementar entre voz e imagem. Voz over e cartelas com o texto escrito
se alternam na construção das frases. “Ou é o túnel...”, diz a voz, “...ou morri”, lê-se na
cartela.
224

Ruy Guerra mantém a noção de uma língua polimorfa, constituída por sotaques
diversos, em O veneno da madrugada, de 2006. A diferença, que de certo modo radicaliza
o procedimento, é que desta vez todos os modos de falar estão restritos a um mesmo lugar,
um vilarejo. Há, na fala do pequeno grupo de seus habitantes, o português luso falado pelo
dono da birosca, o espanhol de Aristóteles, a impostação anti-naturalista de alguns
personagens, a voz lamentosa do alcaide, a fala penetrante da vidente que anuncia os
momentos de quebras temporais. Sotaques, impostações, timbres variam. Guerra delega
ainda grande importância para os sons fora de quadro, fundamentais para a construção da
história que se repete sob pontos de vista ligeiramente diferentes: há a música de Nestor, o
flautista que será assassinado; os sons que anunciam a entrada dos personagens em quadro,
como correntes que se arrastam, estampidos que não se justificam e que simulam o efeito
geralmente delegado à música; os tiros quando o povoado é dizimado; a voz que anuncia a
morte do alcaide.
Ruy Guerra é exemplo, como Julio Bressane e Rogério Sganzerla, de cineastas
que permanecem fazendo filmes contestatórios dos padrões narrativos mais fáceis de serem
assimilados. Em O mandarim (1995), Bressane colocaria mais uma vez a música brasileira
no centro da tela, como já fizera em Tabu, com Fernando Eiras personificando Mário Reis e
diversas estrelas da música popular das últimas décadas interpretando canções de
contemporâneos de Reis. Em São Jerônimo (1999), Último pau de arara, de Venâncio,
Corumbá e J. Guimarães, sucesso na voz de Fagner, dá novos significados às imagens das
terras pelas quais o santo peregrinou. Em Miramar (1996), sons subjetivos, desconectados
em princípio das imagens que vemos, ilustram as memórias do personagem principal. Para

comentar um exemplo mais próximo, em Filme de Amor , de 2005, Bressane mantém certos
usos do som que se tornaram marcas autorais suas durante a produção dos anos 60/70,
descritas no nosso capítulo anterior. Logo na seqüência inicial, há a opção de compor a
trilha sonora com um só som, do mar, silenciando a voz dos atores que falam em quadro.
Até os personagens entrarem na casa em que permanecerão a maior parte do filme só há
música e os sons da cidade. Já dentro da casa, diversos sons tornam mais complexo o
entendimento das imagens. Por exemplo, a inserção conjunta de mar, de vento e da voz de
Gregory Peck, citação ao mesmo tempo cinematográfica e literária a Moby Dick, de
Herman Meville, Peck como o Capitão Ahab no filme de John Huston; a sobreposição de
225

sambas antigos às imagens, com as marcas do disco, os chiados, comentada no nosso


capítulo 3, que surge aqui, por exemplo, sobre a seqüência que simula A lição de guitarra,
de Balthus; o som de um trem sobre uma seqüência erótica (como em Lavoura Arcaica,
mas produzindo sentidos diversos). Esse som permeia três imagens, como também já fora
feito pelo próprio Bressane, e descrito por Bernardet, em Matou a família e foi ao cinema ,
em 1969. O som começa sobre a imagem dos pelos pubianos femininos sendo raspados;
segue sobre a própria imagem de um trem; termina sobre a volta à primeira ação, já
completa. Outro ponto de encontro com o início da obra de Bressane é a colaboração com
Guilherme Vaz, cuja música experimental servira, por exemplo, à trilha de O anjo nasceu.
Último filme de Sganzerla, O signo do Caos, de 2005, mantém, como marca maior
das relações entre sons e imagens a opção pela dublagem, evidenciada em si mesma, tratada
como ferramenta criativa, como já dissera Bernardet, também já citado por nós. As vozes
estão recolocadas sobre cenas nas quais os personagens claramente falavam outras coisas.
Por vezes, é ainda mais claro que os sons encaixam-se sobre as imagens mas não pertencem
a elas, numa paródia à noção de sincronismo. Caso evidente são os gemidos sobrepostos a
Djin Sganzerla na praia, posando como pin up. Embora a união faça sentido, as próprias
imagens deixam claro que ela não os produzia. Em O signo de Caos, Sganzerla faz ainda
uso irônico de Aquarela do Brasil, o samba exaltação eternamente identificado com o
Estado Novo de Getúlio Vargas, como já fizera mais de trinta anos antes Joaquim Pedro de
Andrade em Os inconfidentes (1972), e como fez recentemente Hector Babenco, em
Carandiru (2004). Neste último, a música ufanista serve de comentário às imagens finais
da implosão do conjunto penitenciário.

4.2.3. O português redescoberto nas telas

Questão que volta a surgir na produção recente é a representação da pluralidade de


jeitos de se falar a língua pelo país adentro. Já comentamos que houve um momento de
afirmação desse tema nos anos 60, a partir da gravação das vozes de camadas da população
que não haviam encontrado ainda representação direta no cinema brasileiro. Através de
depoimentos dos imigrantes nordestinos em São Paulo, dos habitantes dos sertões da
Paraíba, da Bahia, de Pernambuco, dos trabalhadores que construíram Brasília, da
226

população indígena, o português falado na tela ganhara dimensão muito maior do que os
sotaques e os modos de falar carioca e paulista.
Eis que podemos fazer uma lista de filmes das décadas de 1990 e 2000 que trazem a
diversidade da língua mais uma vez à baila. São eles: Narradores de Javé (Eliane Caffé,
2001), 2000 nordestes (Vicente Amorim e David França Mendes, 2000), Desmundo (Alain
Fresnot, 2001), Língua, vidas em português (Victor Lopes, 2003), Bocage, o triunfo do
amor (Djalma Limongi Batista, 1996), Amélia (Ana Carolina, 2000), Fala tu (Guilherme
Coelho, 2003), a produção recente de Eduardo Coutinho, com destaque para Babilônia
2000 e O fim e o princípio (2005), além dos já analisados Estorvo e O veneno da
madrugada, de Ruy Guerra. Em todos esses filmes o uso cotidiano da língua torna-se
questão relevante, possuindo importâncias distintas, tratamentos particulares, mas sempre
centrais para as respectivas tramas.
Eliane Caffé destaca, em entrevista para Lucia Nagib, a importância do contato, em
viagens pelo norte de Minas Gerais e pelo sul da Bahia, com a fabulação oral para a criação
de Narradores de Javé:

“Construímos o roteiro a partir de relatos ouvidos dos contadores de histórias. Viajei com
um gravador, uma câmera e conforme encontrávamos contadores pelo caminho gravava as
histórias, as encenações. Na oralidade eles representam, há toda uma dramatização no ato
de narrar, por que esse é o oficio deles. Essas histórias formaram a base do roteiro”
(NAGIB, 2002, p. 134)

Luciana Corrêa de Araújo, no artigo Retrospecto em fragmentos , nota como o filme


está impregnado de “uma outra sintaxe, fundado no comportamento dos
personagens/intérpretes e na desenvoltura das narrativas orais, que percorrem uma via
paralela à cultura letrada, sem se submeter completamente à conformação da escrita”. O
filme teria como proposta “capturar o que não se escreve: a sonoridade da fala”. (in
CAETANO, 2004, p. 156/157) Momentos nos quais fica clara a importância central da
palavra falada são as seqüências que dão conta das várias versões da fundação do povoado,
do papel duvidoso do pioneiro Indalécio; situações em que os não-atores falam diretamente
para a câmera de vídeo da empresa que os desterrará; quando ocorre a dinâmica entre
227

atores e não atores, a fala “profissional” para a câmera versus a fala sem os instrumentos de
praxe para encarar câmera e microfone.
Em 2000 nordestes são colocados na tela os diferentes sotaques nordestinos, com
a presumível boa intenção de tornar mais complexo o senso comum, tão presente no sul e
no sudeste, de que haveria um único sotaque idêntico para a toda a região. Garantiriam a
representação de tal pluralidade as entrevistas com pessoas vindas do Ceará, da Paraíba, do
Rio Grande do Norte, de Pernambuco, de diversas regiões da Bahia, vivendo no Rio de
Janeiro e em São Paulo ou em suas próprias terras natais. Mariana Baltar, quando analisa o
filme em sua dissertação de mestrado sobre a representação do nordestino no documentário
contemporâneo, entende que ele falha em retratar o conjunto daquelas individualidades,
suas diferenças. Baltar chama a atenção para o fato de, na maior parte das vezes, não serem
dados nem mesmo nomes aos entrevistados, o que colaboraria para uma “universalidade do
sentido”, dentro do qual “cada conflito pessoal pode ser o conflito geral de todos os
nordestinos e migrantes”. (BALTAR, 2003, p. 83) O filme não escapa ainda de levar à tela
outro senso comum: o da falta de clareza associada à fala nordestina, chegando a fazer
graça com a questão. Há o imigrante em São Paulo, Edmário, que diz falar espanhol e
inglês. Seu inglês terá espaço de destaque, câmera e microfone caçoando do personagem.
Por uma artimanha de montagem, Edmário “reagirá” em determinada passagem a um
personagem de fala ininteligível, ao surgir na sua seqüência e dizer “ok. I understand”.
Baltar nota que, mediante esses exemplos, que nos servem, e outros, que servem a ela, 2000
nordestes reafirma “o riso da estereotipia”, ao instaurar, como de hábito, “o riso da fala
incompreensível, a clássica piada, também definidora do pop-nordestino, do sotaque”.

(idem, p. 101) Há, usado também no sentido de parecer engraçado ao espectador, mesmo
que involuntariamente, o habitante de Porto Seguro que repete as perguntas antes de dar as
repostas. “Você é daqui de Porto Seguro?” pergunta o diretor. “Essa é uma pergunta que
você faz, bem feita!” começa a responder. “Por que você saiu de Ilhéus?” segue o primeiro.
“Essa é outra pergunta que você faz!”. Como ressalva à dificuldade de compreensão de
determinados trechos, diga-se que a captação do som direto poderia buscar a clareza da voz
de forma mais enfática. Não há sempre a preocupação do microfone estar próximo de quem
fala tanto quanto poderia. Muitas entrevistas ocorrem em lugares ruidosos, no meio da rua,
228

dentro de ônibus. A falta de clareza não é apenas inerente à boca de quem fala, mas criada
no seu contato com o aparato de gravação.
Em Amélia está colocada uma série de problemas lingüísticos, a partir do confronto
das irmãs da falecida personagem-título com a diva Sarah Bernhardt, de passagem pelo Rio
de Janeiro. Luciana Corrêa de Araújo, no artigo já citado, comenta a importância da dicção
de Myriam Muniz para a obra de Ana Carolina, sua voz rascante, tão pouco cordial como
representante do interior do país. O filme se baseia, no seu início, na leitura claudicante da
carta deixada às irmãs por Amélia. A partir do contato delas com Sarah Bernhardt surge o
tema da incompreensão, o estrangeiro em contato com os matutos. A assistente da estrela,
Vicentine, Betty Goffman, além do francês srcinal, é fluente em espanhol, em italiano,
mas não entende o português. Tentará comunicar-se em todas aquelas línguas. A
comunicação mínima passará a ser ironizada, as irmãs mineiras começando a entender uma
outra palavra em francês. Voltaremos a Amélia, para questões sonoras que não as
lingüísticas.
Consuelo Lins nota em Babilônia 2000, de Eduardo Coutinho, os livres usos que
alguns personagens fazem da língua portuguesa, especificamente Cida e o auto-explicativo
People. Lins comenta sobre a “possibilidade de criação em setores da sociedade
bombardeados por uma multiplicidade de discursos”. (LINS, 2004, p. 128) Cida não tem
pudor de inventar expressões, de comunicar-se de uma forma que está irreverentemente
distante do vernáculo catalogado. People insere pitadas de inglês na conversa cotidiana,
menos por domínio de tal língua do que por interesse afetivo pelas palavras estrangeiras:
“sempre gostei da palavra people”, explica. Cabe ressaltar que Cida e People representam

parcelas extensas da população brasileira, seja no uso cotidiano da língua para além do que
está no dicionário, seja na irreverência ao lidar com o inglês sem dominá-lo. Para Lins, o
filme de Coutinho “captura a complexidade e a variedade de modulações no uso que fazem
da língua os moradores do Morro da Babilônia” (idem, p. 135). É o português sendo
cotidianamente “reinventado”, termo usado por ela.
Arriscamos-nos a dizer que as formas diversas do oficial de lidar com o vocabulário
e com a sintaxe viram tema ainda mais central para Coutinho em O fim e o princípio, de
2005. O realizador tornou pública em entrevistas à época do lançamento a tese advinda das
filmagens no município de São João do Rio do Peixe, sertão da Paraíba. Ali, como em um
229

sem número de pequenos lugares no interior do país, a falta de contato com a padronização
da língua imposta décadas afora pelos meios de comunicação de massa, que procuram um
sotaque e uma sintaxe neutros, como se isso fosse possível, causou não um
empobrecimento mas, ao contrário, preservou uma riqueza na organização cotidiana das
palavras que remonta a um período anterior a esse processo de padronização. Onde poderia
se esperar uma dificuldade formal, descobre-se um esmero antigo nas construções verbais
cotidianas.
Voltando à representação da periferia das grandes cidades, pode-se dizer que Fala
tu é, desde o título, calcado nos modos de falar dos entrevistados, especificamente daquele
que tem maior destaque, Macarrão, o dono da expressão que empresta ao filme o nome. Em
determinado momento, a equipe visita uma rádio comunitária que toca rap norte-americano.
Os responsáveis pela rádio ressaltam a importância da mensagem afirmativa contida
naquelas músicas estrangeiras. Perguntados se entendem as letras, dizem que não, mas que
dá para sentir a atitude afirmativa, que impõe respeito. Argumentam que não sabem direito
nem o português, que dirá o inglês. Passa ao largo dos entrevistados o fato de estarem em
um filme que justamente não aceita sem questionar a marginalização lingüística dos que
não estão inseridos no modo oficial de lidar com o idioma. Ao contrário, participam de um
processo que legitima a língua falada fora das convenções padronizadas. A escolha do título
resume tal posição.
Em Desmundo a questão de uma língua em formação é central. Ambientado em
torno de 1570, descreve o contato dos portugueses degredados, no que viria a ser o Brasil,
com as mulheres também européias que são trazidas à terra para ter com eles, em lugar das

nativas. A forja de uma nação e de um povo passa também pela criação de uma língua local
a partir das falas daqueles, de diferentes srcens, que passam a coabitar o espaço.
Para a língua a ser falada no filme, optou-se pela simulação de um português
arcaico. Suas características são: a proximidade com o espanhol; a falta do gerúndio, marca
lusa (“estar a ver. Estar a ouvir”); o uso também luso da segunda pessoa (“queres voar e
não podes”); inversões formais (“uma besta, tu és!”). Há ainda pitadas de francês, de
italiano, do próprio espanhol, como na frase “de où vem la criança?”. São os oriundos de
diversas regiões da Europa que trazem seus modos de falar para esta terra. Francisco de
Albuquerque, personagem de Osmar Prado, fala um português lusitano aparentemente
230

neutro, central. A menina que virá a ser sua esposa, Oribela (Simone Spoladore), vem do
norte de Portugal, da Covilhã, e tem a fala mais fechada característica da região. Somados
aos sotaques europeus estão os idiomas, e seus usuários, indígenas e africanos. O escravo
negro do português Ximenes Dias, Caco Ciocler, fala uma língua incompreensível para
todos. Ximenes fala línguas indígenas. Há diálogos entre ele e os índios, quando os falantes
compreendem o que está sendo dito e os demais ouvintes não. Há diálogos reflexivos.
Ximenes Dias relata a Albuquerque o fato dos índios não quererem mais vasilhas.
Reclamam do difícil diálogo com os locais, “que não conhecem a língua”. Albuquerque
diz: “mas conhecem a pólvora”. Dias: “É a língua geral”.
Outra língua geral, poderíamos dizer, é o silêncio, polissêmico por natureza, mas
muitas vezes claro ao passar a mensagem de quem escolhe responder calado. No decorrer
do filme, Oribela recolhe-se em sua mudez como defesa contra o péssimo diálogo e
convívio com o marido obrigatório. Exemplo de comunicação sem palavras está na
seqüência em que ela deve escolher uma das bugigangas trazidas por Ximenes, que
Francisco quer lhe ofertar. A construção do romance velado e do ciúme do marido dá-se em
silêncio, no jogo entre trocar olhares e se recusar a trocá-los. Francisco olhando, Ximenes
recusa-se a olhar para Oribela. Ela fica a olhar as tesouras em cima da mesa. Quando as
escolhe, quase se tocam as mãos, suas e de Ximenes, mas a isto também se recusam. Neste
jogo de desacontecimentos está acontecendo o romance. Podemos fazer um paralelo com a
construção do ciúme de Paulo Honório em São Bernardo, pelo olhar e pela voz over, como
citado no capítulo anterior e descrito por Ismail Xavier. Lembramos que Simone Spoladore
é reincidente em personagens silenciosas, como vimos em Lavoura Arcaica. Os silêncios

conjugados com um repertório de olhares, podendo sugerir repressão, ressentimento, culpa,


desejo, em união ou não com diferentes sorrisos formam um conjunto expressivo caro à
história do cinema. Béla Balázs defendia, em 1945, o que chamou de solilóquio silencioso,
a potência expressiva do rosto do ator ao permanecer mudo durante o close-up, em
contraposição à convenção do diálogo enquadrado em planos próximos. 87 Seria ainda o
rosto mudo de Simone Spoladore nas telas um eco longínquo, fugidio, do outro lado do
mundo e meio século mais tarde do repertório de sorrisos, olhares e silêncios de uma atriz

87
No capítulo VIII, A face do homem, de Teoria do cinema – natureza e evolução de uma nova arte. In:
XAVIER, Ismail. A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Graal/Embrafilme, 1983, p. 95.
231

como a estrela do cinema japonês Setsuko Hara, que emprestou por mais de trinta anos sua
expressividade à história do cinema, especialmente em seus filmes dirigidos por Yasujiro
Ozu.
Ainda a comentar sobre Desmundo, o fato de ter sido legendado para a exibição em
circuito, por medo da falta de compreensão do português arcaico. Era necessário? Quanto
do sentido se perderia ao deixar o espectador em contato franco com a sonoridade do
idioma irmão mais velho do português atual? As legendas, em grande parte do tempo,
tornam-se redundantes, pois as mudanças não são grandes a ponto de configurar uma língua
incompreensível para quem fala português. Dois anos mais tarde, o filme seria lançado na
televisão fechada, para surpresa deste espectador que o viu em circuito, sem legendas. As
legendas seriam mais necessárias para o público que vê o cinema brasileiro no circuito
alternativo do Rio de Janeiro e de São Paulo do que para quem o vê na televisão paga?
Filme que não pode deixar de ser citado sobre a experiência da língua
reconfigurada nas telas é Língua – vidas em português. Aqui a questão ultrapassa as
fronteiras nacionais e passa a ser o mundo da lusofonia que abrange Portugal, Brasil,
Angola, Moçambique, Cabo Verde, Timor Leste, Macau, Goa. Eis o assunto tratado como
tema central, a língua portuguesa em impressionante polifonia, legado da expansão
ultramarina cinco séculos antiga. Desfilam na tela o português falado em Goa, misturado
com o sotaque hindu e com a influência inglesa; em Macau, inserido no modo de falar
chinês; pelos angolanos em Lisboa, a língua com gingado, sincopada, rápida na boca de
quem fala; pelos moçambicanos em Moçambique; pelo menino também moçambicano, mas
que deseja ser rapper norte-americano, em ritmo e em métrica; nas rezas moçambicanas

que misturam cantigas portuguesas e africanas; pelos dekaseguis no Japão; pelos


vendedores nos ônibus do Rio de Janeiro, a ausência de pausas, a língua em moto continuo.
Fala José Saramago o português matriz; Mia Couto, escritor moçambicano cuja literatura é
exemplo da volatilidade da língua lusa em contato com a vivência africana; Martinho da
Vila, de Duas Barras, estado do Rio de Janeiro, sua música o ponto de contato entre as
raízes africanas e as fazendas fluminenses, o jongo que viria a dar no samba; João Ubaldo
Ribeiro, da ilha de Itaparica, Bahia, o tempo leve da língua, o jogo entre as palavras e as
pausas. Cabe lembrar que Bocage, o triunfo do amor já abrangia os diferentes usos da
língua nos países lusófonos. Trata-se de uma co-produção brasileira e portuguesa de 1996,
232

lançado como um filme da recém-criada Comunidade dos Países de Língua Portuguesa


(CPLP). Assim, acompanhamos as viagens do poeta Manuel Maria Barbosa Du Bocage
pelas colônias lusas ao redor do mundo, e seu contato com os diversos sotaques. As
filmagens no Ceará, em Pernambuco, na Amazônia, em Congonhas do Campo, nas
cataratas de Foz do Iguaçu, em Portugal, em Angola, em Goa, misturam os modos de falar
lusitanos, diferentes dentro do perímetro português, sotaques brasileiros vários, o português
falado na África, na Índia, uma língua indígena quando na floresta amazônica. Há ainda
pequenos espaços para o francês, para o espanhol na passagem em que Bocage satiriza
Dom Quixote. Há a voz over em latim, de dicção estranha. Há a curiosidade do falar do
poeta ser “neutro” para quem assiste o filme no sudeste do Brasil, ou seja, não luso, mas
familiar ao Rio de Janeiro. Emoldurando a complexidade de línguas, há a música
propositadamente excessiva de Lívio Tragtenberg.

4.2.4. A proximidade com a música pop(ular) em outra chave

A relação com a música popular, que apareceu em todos os momentos selecionados


para falar do som no cinema brasileiro nesta tese, também está presente na produção dos
últimos quinze anos. Ferramenta para levar o público às telas nos incipientes filmes
cantantes da Bela Época, nos primeiros musicais da passagem efetiva para o cinema
sonoro, um dos artífices da cultura nacional posta em questão nos anos 60, a música
popular parece agora desprovida de funções que coadunem com o argumento nacionalista.
Seu uso pelo cinema atual estaria mais próximo dos pressupostos que regem (regeram?) a
produção dos anos neoliberais, globalizados, quando o termo nacionalismo foi
supostamente riscado da nova ordem, considerado, via de regra, apenas em seu coeficiente
retrógrado, anacrônico, em afinidade com argumentos xenófobos, não raro truculentos.
No já citado Lisbela e o prisioneiro, Guel Arraes promove uma colagem de ritmos
dentro da qual não é mais possível separar a produção musical brasileira da penetração da
influência pop internacional. Assim, Zé Ramalho dialoga com o Sepultura, este por si só
um caso complexo de banda de heavy metal brasileira que canta em inglês, os cariocas Los
hermanos relêem Caetano Veloso, a música nordestina ganha ares pop. A canção O amor é
filme, dos créditos finais, mistura o sotaque do interior de Pernambuco de Lirinha, vocalista
233

do Cordel do Fogo Encantado, com guitarras pesadas, o que não surpreende, ciente o
espectador de que a junção da cultura local pernambucana, no caso o coco de Arcoverde,
com a cultura pop é característica de sua banda.
O também já citado Jorge Furtado usa como trilha de Houve uma dois verões o rock
gaúcho dos anos 80/90. Tocam no filme Nei Lisboa, o punk-brega Wander Wildner, bandas
mais recentes como o Sombrero luminoso, de sotaque latino fake, o Ultraman, que relê o
rock norte-americano clássico. Em O homem que copiava, o trio baixo-guitarra-bateria
encontra-se com a música eletrônica por obra de Leo Henkin. Furtado não foge, em
debates, entrevistas, à defesa da música pop, do rock especificamente, tão cara à geração
dos anos 80.88 O ponto é que gostar de música pop internacional não significa estar
alienado das questões nacionais. Em defesa de Furtado, há de se entender a penetração da
cultura internacional nos mercados nacionais de acordo com o arcabouço apresentado por
Néstor Canclini, sempre citado nesse sentido. A assimilação pelo terceiro mundo do que é
proveniente da Europa e dos Estados Unidos não deve significar subserviência total à
cultura imperialista. A hibridização decorrente desse processo demonstra exatamente as
várias formas de troca inerentes a ele. As culturas locais não seriam simplesmente
destruídas no contato com aquela que vem para dominar. Haveria, diferente dessa idéia de
dominação direta, trocas de poder que recolocam o local também como agente, passível de
sair fortalecido, redivivo do embate. (CANCLINI, 2003)
Exemplos de músicas compostas para filmes recentes que são amplamente
tributárias da influência do pop internacional estão na obra de André Abujamra. Em Os
matadores, de Beto Brant (1997) o método é a colagem, usual na música eletrônica, os

loops, os samplers que retrabalham a música típica do local da ação, a zona de confluência
entre Paraguai, Bolívia, Brasil. Em Ação entre amigos, do mesmo diretor, lançado um ano
mais tarde, os timbres característicos do rock comentam as ações, emolduram os
flashbacks. A música aproxima-se, não pelos timbres ou pelos instrumentos usados, mas
pelas funções desempenhadas, da narrativa convencional. Forma similar foi usada
novamente por Abujamra em Achados e Perdidos, de José Joffily, em que o sotaque do
rock pesado tenta atualizar os clichês da música do gênero policial. No filme de Beto Brant

88
“A música popular do Rio Grande do Sul é o rock”, diria em palestra no encontro da SOCINE em Recife,
em outubro de 2004.
234

a música assume forma mais interessante quando se coaduna aos ruídos, como na seqüência
em que o grupo de amigos encontra o militar reformado Correia na rinha de galos. O
mesmo ocorre, mais a frente, na cena em que o matarão, vingando a tortura sofrida nos
tempos do regime militar. Nessas ocasiões a música confunde-se em ritmo, timbre e
volume com os sons ambientes. Aos poucos, a guitarra, a percussão e todos os ruídos
provenientes do espaço da ação tornam-se indissolúveis e todos esses sons unidos são
responsáveis pela tensão percebida pelo espectador. O plano final, o travelling que fecha no
detalhe do rosto do perseguido, tem como trilha musical uma seqüência decrescente de
notas na guitarra. Ao mesmo tempo em que descem a escala, as notas vão minguando, o
andamento também decresce, dá lugar às pausas. A longa frase musical encerra-se junto ao
corte final, para a primeira cartela dos créditos.
A música de Abujamra também está presente em Bicho de sete cabeças, de Laís
Bodanski (2000). Neste caso, música eletrônica e rock estão claramente unidos desde os
créditos iniciais. A junção de ruídos provenientes da ação e matéria musical também
amplifica a tensão neste caso, em especial na cena em que Neto (Rodrigo Santoro) toma
eletrochoque. Os sons da máquina unem-se à voz do diretor, distorcida, reverberante, para
tornarem-se todos elementos da colagem que inclui a música de André Abujamra, momento
de destaque da elaborada edição de som, à cargo de Silvia Moraes. Outra matriz sonora
relevante são as canções de Arnaldo Antunes. Suas letras têm importância central ao
comentar as ações. É o caso da irônica Dinheiro (“dinheiro é um pedaço de papel”), de
Fora de si (“Eu fico louco. Eu fico fora de si (...) Eu fica doido. Eu fica bem assim. Eu fico
sem ninguém em mim”), de O buraco do espelho, com sua lógica hipnótica, escrita na

parede do manicômio, a câmera passeando pela letra enquanto a ouvimos. Outras canções
têm o mesmo importante papel de comentar momentos chave, como a idílica Quem vem
pra beira do mar , de Dorival Caymmi, que ganha sinistro sentido quando cantada no pátio
intransponível do hospício. Nesse momento, há um jogo entre sons e imagens similar ao
comentado no capítulo anterior, por conta do que ocorria na montagem dos primeiros
filmes de Arnaldo Jabor. A música de Caymmi parece, quando surge, um comentário fora
da ação, sobre as imagens. Assistimos a alguns planos da vazia rotina dos internos no pátio
até que é enquadrado o indivíduo que canta. É, portanto, som direto o que parecia música
extra-diegética. Os créditos finais trarão o derradeiro comentário de uma canção, a evidente
235

Bicho de sete cabeças, de Geraldo Azevedo, Zé Ramalho e Renato Rocha. O filme, que já
reservava tamanha importância para as canções, tem o próprio título emprestado de uma
delas.
Há ainda outras relações interessantes entre sons e imagens. Sons que deixam de ter
a textura usual, naturalista, do som direto para tornarem-se distorcidos, ou multiplicarem-
se, simulando para o espectador a percepção alterada do personagem. Neto está com seu pai
no carro, a caminho da Vila Belmiro, vão ver o Santos jogar. Ouvimos, ele e nós, o pai falar
normalmente, até que sua voz começa a perder definição. A voz se multiplica, transforma-
se em várias pistas de som sobrepostas. Demais efeitos de pós-produção tornam evidentes
que a percepção de quem ouve aqueles sons está confusa. Esse estado alterado, e sua
correspondência na trilha sonora, não é privilégio de Neto. O diretor da casa de
recuperação, drogado, observa pela janela o espetáculo do embaralhar dos seus sentidos, o
som do filme assume mais uma vez a textura descrita.
A presença do som ambiente, o som das locações habitualmente bem abaixo do
nível das vozes, aqui é destacada. Quando Neto está na cozinha de casa, sendo induzido à
conversa com seus pais, ouvimos os ruídos do local em volume mais acentuado do que o
usual. É clara no filme a recusa aos padrões habituais de mixagem, pelos quais as pistas que
compõem o som ambiente devem estar baixas a ponto de não atrapalharem o entendimento
das vozes.89 Cabe destacar que essa opção refere-se também à captação do som direto, que
escolhe não esconder a real situação ruidosa da locação. Filmagens em locação nas
metrópoles, São Paulo neste caso, serão facilmente invadidas pelo imenso nível de ruídos
cotidianos. Disfarça-lo até que ponto é uma questão que conjuga técnica, escolha dos

microfones por exemplo, e estética. A cena na cozinha que nos serve de exemplo passa a ter
tons mais realistas na medida em que os ruídos daquele ambiente não estão disfarçados.
Caso similar encontra-se em Crime delicado, de Beto Brant, de 2005. Nas seqüências
dentro do apartamento do pintor em que seus quadros são contemplados há um quase
silêncio. Não há ação que produza ruído no contato com as pinturas, mas há, no fundo,
ouvido de dentro do apartamento, o som intermitente das ruas, o som ambiente de São

89
É usual que os sons ambientes estejam entre 20 e 30 decibéis abaixo das vozes, estas sempre no topo da
hierarquia dos volumes, pois, via de regra, o texto precisa ser sempre inteligível. José Luiz Sasso, finalizador
de som de maior renome nas últimas décadas do cinema brasileiro, comenta que para os filmes comerciais é
habitual que cerca de 90% do tempo de projeção seja baseado nos diálogos. Assim, na imensa maior parte do
tempo estaria em funcionamento a relação de volumes que estamos descrevendo.
236

Paulo, ou de qualquer outra grande cidade. O som que invade os apartamentos. (Neste
momento, na ação silenciosa de escrever no quarto de trabalho da casa, na Glória, Rio de
Janeiro, do terceiro andar, ouvem-se carros que passam lá embaixo, com algum intervalo
entre um e outro; o som mais indistinto, ininterrupto do trânsito, bem ao fundo. Passou um
avião, duas frases atrás. Após o avião, latiu um cachorro. Alguém, neste momento, fala
mais alto na calçada e se faz ouvir. O computador ligado, enquanto escrevo ao seu lado, à
mão, produz o ruído constante do processador, da ventoinha. Cai algo na cozinha.) Para um
exemplo carioca, a construção do som ambiente de Copacabana que invade o apartamento
de Regina, em O outro lado da rua . Desde a primeira seqüência dentro de seu quarto, nota-
se que a personagem é despertada já com o som que vem das ruas, que junto com a luz
pelas persianas denota o amanhecer. Os sons de Copacabana ganham destaque sobre os
planos das fachadas dos prédios. Nesse momento, as ruas não aparecem, mas seus sons
encobrem as janelas dos edifícios. Regina desce para a praia, vai passear com seu cão. O
som que se ouve da areia é a mistura, tão característica das praias urbanas da cidade, de mar
e trânsito, um de cada lado.
É papel dos filmes recentes passados em metrópoles retratarem em suas construções
sonoras a falta de silêncio que envolve na maior parte do dia o homem citadino
contemporâneo. Diga-se de passagem que a cessão de um espaço privilegiado para ruídos
supostamente destinados a segundo plano tem antecedentes de peso na história do cinema.
Uma das marcas da obra de Robert Bresson foi exatamente inserir seus personagens num
universo sonoro que representasse em detalhes um mundo ruidoso. O cuidado com os
ruídos e o destaque dado a eles foi constante em sua produção entre os anos 50 e 80. Um

condenado à morte escapou (1956), Mouchette (1967), Lancelot du lac (1974), L’argent
(1983) divergem inteiramente do padrão de mixagem que comentamos. Nesses filmes,
ruídos a princípio ínfimos têm destaque amiúde. Mas esta discussão apenas adianta um
ponto a ser ainda discutido no texto. Por enquanto, seguimos com a música.
Em outro filme de Beto Brant, O invasor (2001), surge uma matriz sonora diferente
da ligação entre rock e música eletrônica perpetrada por André Abujamra. O hip hop
paulista está presente nas músicas do Pavilhão nove , que não deixa de acrescentar ao ritmo
a influência do rock pesado, e na voz do já falecido rapper Sabotage, aproveitado no filme
como ator. Sabotage chega a cantar diretamente para a câmera, a partir do pedido de Anísio
237

(interpretado pelo também músico Paulo Miklos) para que se apresente no escritório dos
sócios Ivan e Giba, que contrataram os serviços de Anísio como matador de aluguel. A
decisão do rap deixar de ser, dentro do mesmo plano, encenado para os próprios
personagens e passar a ser dirigido para a câmera, e para os espectadores, cria um
sobressalto narrativo dentro de uma seqüência até então encenada normalmente.
Talvez o filme recente mais citado quanto ao uso da música seja Baile perfumado,
de Lírio Ferreira e Paulo Caldas (1997), graças, evidentemente, à relação com o movimento
musical pernambucano mangue beat, presente no filme através de Chico Science e a Nação
Zumbi, de Fred 04, vocalista do Mundo Livre S/A, do Mestre Ambrósio. Baile perfumado
consagra a união entre as cenas musical e cinematográfica emergentes em Recife nos anos
90 e traz para o cinema o ideário do movimento musical. A união entre contemporâneo e
tradicional, resumida palavra por palavra no próprio nome Chico Science e a nação zumbi,
foi a marca daqueles grupos que misturaram rock e demais ritmos estrangeiros com
maracatu, coco, embolada, cavalo marinho, forró pé de serra e pé de calçada e conseguiram
fazer com que a mistura tocasse nas rádios rock do país. Era o caso de se colocar uma
antena parabólica no mangue, a imagem síntese do movimento. Falando para Lucia Nagib,
Lírio Ferreira e Paulo Caldas explicam como tal união pareceu natural para aquele grupo de
pessoas: “A cultura popular pernambucana engloba uma diversidade muito grande. Nela há
uma base sólida interagindo com as coisas modernas, contemporâneas que existem não só
no Brasil, mas no mundo”. (NAGIB, 2002, p. 139) A força da guitarra e do baixo unidos à
percussão em Sangue de bairro, da Nação Zumbi, divide espaço na percepção do
espectador com as imagens aéreas do São Francisco passando pelo cânion do Xingó. A

música não comenta somente as imagens ou lhes serve como reforço, está inserida na
condição de uma potência narrativa tão forte quanto elas. O forró do Mestre Ambrósio está
em cena, com a função de fazer o bando de Lampião dançar. O filme reservará, mais tarde,
como trilha sonora das imagens srcinais do bando feitas por Benjamim Abraão, não mais
música ou quaisquer outros sons, mas silêncio total. Atitude de curioso respeito à
veracidade histórica: as imagens são mudas. O silêncio as reforça, a atenção do espectador
está centralizada no que vê.
A relação com a música pernambucana segue, mas já em outra chave, em Árido
movie, o aguardado projeto de Lírio Ferreira, lançado em 2006. Quase dez anos depois de
238

Baile perfumado, os pressupostos do mangue beat encontram-se suavizados, até por que
esse não existe mais como movimento, embora tenha deixado um legado. Outra seqüência
aérea mostra não mais o São Francisco, mas o mar, até entrar em quadro o Recife antigo, o
Capibaribe, a cidade. Sobre essas imagens está mais uma vez a guitarra de Lúcio Maia, da
Nação Zumbi, e a percussão, mas agora o andamento é tranqüilo, o ritmo é suave. Há na
trilha musical influências outras que vêm se somar à produção recifense. Berna Cepas e
Kassim incluem no filme os timbres e os tons globalizados da música pop moderna que se
faz hoje no Rio de Janeiro. É de se notar a influência da música brega, interesse direto de
Otto, ex-percussionista do Mundo Livre S/A, em carreira solo baseada em terras cariocas. É
Otto que relê, para os créditos finais, o sucesso Naquela mesa, de Sérgio Bittencourt. A
convivência dos pernambucanos com o sudeste se faz notar, em adição às suas raízes.
Além da música, duas relações entre sons e imagens se destacam. Quando Jonas, o
pernambucano de carreira televisiva bem sucedida no sudeste, recebe por celular a notícia
da morte do pai, ouvimos de início a mixagem usual entre sua voz e os sons da rua
movimentada em que se encontra. Na exata hora da notícia, o som das vozes é silenciado, o
som ambiente sobe para primeiro plano. Entendemos o que se passa apenas por sua
expressão em meio ao plano geral. A edição de som, como em tantos outros casos do
cinema brasileiro recente, está a cargo de Virgínia Flores. Mais tarde na história, já em
Pernambuco, a mãe de Jonas, viúva, reza, em luto: “Senhor, tende piedade de nós”. Sua voz
segue pelas próximas imagens, que descrevem, montadas em paralelo, três ações: dois
casais, em lugares diferentes mas ao mesmo tempo, transam; um grupo fuma e bebe dentro
de um quarto de hotel. Sobre todas essas ações, seguimos ouvindo a reza, o que instaura um

contraponto entre os sons e as imagens.

4.2.5. Mais espaço para os sons fora de quadro, para os ruídos, para os
silêncios, para os sons ambientes

Alguns filmes recentes destacam-se pela importância que delegam aos sons que vêm
de fora do quadro. Latitude zero (2000) e Cabra-cega (2004), ambos dirigidos por Toni
Venturi, enquadram-se neste caso. Em Latitude zero um bebê chora fora de quadro durante
boa parte do filme, adicionando tensão ao que se vê. O bebê será mostrado apenas nas
239

últimas seqüências, quando a habitante da locação em que se passa a maior parte da trama a
abandona, ao partir na carroceria de um caminhão. Bastante fechados no espaço dessa casa,
ouvimos vez por outra sons externos, como os veículos que chegam. São ouvidos, sem
serem vistos, fatores de forte influência sobre a trama, do ponto de escuta de quem está
sempre dentro daquelas quatro paredes. Em Cabra-cega há uma construção até certo ponto
similar, já que o personagem guerrilheiro passa boa parte da história escondido,
clandestino. Nessa condição, ouve de dentro do apartamento a movimentação dos vizinhos
no corredor, os passos de quem mora acima. Os ruídos fora de quadro passam a ser o
combustível de sua crescente paranóia. Há ainda um momento de confusão perceptiva sua,
quando escuta notícias negativas pela televisão. Seu estado alterado é tratado de modo
similar ao descrito em Bicho de sete cabeças. As pistas com o som da tv multiplicam-se,
confundem-se, ganham efeitos que compõem o som subjetivo marcado pela percepção
desnorteada.
Madame Satã (Karim Aïnouz, 2002) trata de forma interessante a relação entre
enquadramento e diálogos. Geisa Rodrigues, no artigo Madame Satã enquadrado, comenta
o uso do extracampo e utiliza a expressão “desenquadramentos” para comentar os
procedimentos de decupagem que fogem dos parâmetros clássicos. (RODRIGUES, 2004, p.
277-283) De fato, há na decupagem de Aïnouz uma falta de necessidade de quem fala estar
em quadro. Por vezes, vemos um dos personagens mas quem fala, o próprio Madame Satã,
por exemplo, está fora. O espectador é obrigado a dividir sua atenção entre ver na tela um
personagem que é meramente o ouvinte e ouvir atentamente o texto dito por alguém que
não se encontra em seu campo de visão. Em outras situações quem fala está em primeiro

plano, porém de costas, enquanto em segundo plano está o personagem que escuta, de
frente para a câmera, enquadrado por trás da nuca do primeiro. Olha-se para a cabeça de
quem se encontra de costas, pois se sabe que dali saem as palavras, mas não se vê a boca
falante como a decupagem clássica nos acostumou a fazer. Há cortes que não estão ligados
diretamente ao tempo dos diálogos. Quando corta para um determinado personagem, ele já
terminou sua fala, ou ela já está em andamento.
Um dos filmes recentes mais comentados sobre a importância do espaço fora da tela
é Um céu de estrelas, de Tata Amaral (1996). A própria diretora explica para Lucia Nagib
que as influências para a decisão de construir boa parte da ação fora de quadro vêm de
240

filmes como Down by Law, de Jim Jarmusch, que se utiliza do mesmo procedimento.
(NAGIB, 2002, p. 44) Eduardo Valente, no artigo Tata Amaral e Bia Lessa – duas autoras
em busca de um país90, nota que “boa parte do filme se estrutura em torno dos offs (a
música, a polícia, a tv, a voz da mãe, os aviões e trens que passam a cada momento de
devaneio de Dalva querendo sair daquele lugar)” . Valente comenta ainda o “trabalho de
som direto sublime, seguindo os personagens”. De fato, são vários os planos-seqüências
com deslocamentos bruscos do casal pela casa e o microfone é impecável em acompanhá-
los. O som direto ficou a cargo de João Godoy, que também assinou a edição de som em
dupla com Eduardo Santos Mendes. Na rebuscada edição de som se dá uma verdadeira
reconstrução do espaço físico da casa, a partir da disposição dos sons dos vizinhos nos
fundos e de toda a ação da polícia e da equipe de televisão na frente. Um céu de estrelas é
exemplo de uma excelência técnica incontestável, colocada, porém, plenamente a serviço
de uma escolha estética, discreta em seu papel funcional de contribuir para o que está sendo
dito, e que não busca a ostentação. Exemplos de uma construção sonora complexa no
decorrer do filme são vários: um deles, o momento em que Dalva e Vitor dançam ao som
do rádio, a voz dele antecipando o que é cantado. Ouvem-se buzinas e demais sons da rua
que se somam a cena. Quando a dança se transforma em beijo, o som do rádio sobe para
primeiro plano, deixa de ter a textura que o caracterizava como som diegético e vira a trilha
musical da ação. Ao fim da seqüência é criado um contraste sonoro mediante o corte dessa
massa de alta densidade sonora para um único som, a água que escorre da pia do banheiro.
A música percussiva de Lívio Tragtenberg e Wilson Sukorski por vezes se une aos ruídos
provenientes da ação para configurar um grupo indistinto. A presença da polícia se dá pela

construção de seus gritos e demais ações sempre fora de quadro, nunca mostrados até o
momento em que surgem na tela da televisão. Estão sendo vistos por Dalva e Vitor, e por
nós, mas seguem do lado de fora. A cena de sexo será embalada pela voz do policial, pela
sirene, pelo ritmo dos sons fora de quadro que aumenta à medida que o casal vai chegando
ao fim. O tiro que mata Vitor é ouvido por dentro da tv, mas não há sua imagem. O que
vemos é o rosto surpreso da repórter. É um som que está duplamente fora de quadro: não o
vemos no espaço da ação nem pela câmera da televisão. Essa câmera entra finalmente na
casa e enquadra Dalva em silêncio. Assim ela permanecerá longamente, encarando a

90
Em Contracampo n.13-14. Disponível em www.contracampo.com.br/13-14/frames.htm
241

câmera, o olhar cansado. Somente a música percussiva dos créditos finais cortará sua
mudez.
Há situações em determinados filmes em que os ruídos têm destaque para além das
funções já citadas, de serem agentes construtores do realismo ou do hiper-realismo, de
estarem amalgamados com a música ou de se situarem fora de quadro. Em Uma vida em
segredo, de Suzana Amaral (2002) há um devaneio de Biela, (Sabrina Greves) a recatada
personagem principal, desencadeado por um pouco usual jogo de sedução com Modesto,
um dos moços que vêm à casa de sua família para jogar truco. Depois de uma troca de
olhares, Modesto aproveita que Biela vem para o seu lado, a fim de servir bebidas aos
jogadores, e lhe pisa o pé, prendendo-a junto de si. Mais tarde, Biela sonhará com a mão de
Modesto subindo por suas pernas. Um pequeno ruído, como um passo (o pisão?) torna-se
ritmado, ganha volume e se transforma na trilha sonora, crescente, do delírio. No já citado
O invasor outro ruído desempenha papel semelhante. Uma gota d’água perpassa a chegada
em casa, de madrugada, vinda de uma festa, da esposa de Ivan. Naquele momento ele não
consegue dormir, por saber que o crime que encomendara deve estar sendo executado. Sua
mulher entra, segue para o banheiro, onde sentará longamente na privada, tirará a
maquiagem, olhar-se-á cansada no espelho. Em seguida se dirige ao quarto, e ali deitará ao
lado do marido sem perceber que, virado para o lado contrário, ele tem os olhos abertos. A
ação no banheiro é composta de uma série de planos rápidos, dezessete no total, são vários
os jump cuts. Na passagem para o quarto o tempo da ação dilata-se, dois planos mais longos
resumem a encenação. Sobre todos esses dezenove planos o som da gota d’água, ritmado,
reverberado, descreve a tensão que será explicitada quando finalmente o rosto angustiado e

escondido de Ivan for enquadrado, sua cabeça no travesseiro. Aqui, mais uma vez, um
ruído é o agente do suspense, assumindo a função comumente delegada à música. Dessa
sutil construção sonora, que acostumou com sua presença dilatada os ouvidos dos
espectadores, corte seco para a truculenta mistura de hip hop e rock do Pavilhão nove : sua
música comenta as imagens dos corpos sendo encontrados no porta-malas do carro da
vítima.
Destacam-se situações, em certo grupo de filmes, em que o silêncio é escolhido para
ser o elemento que demarca pontos narrativos importantes. Em Socorro Nobre (1992), no
qual Walter Salles documenta a troca de correspondências entre o escultor Franz Krajcberg
242

e a detenta Maria do Socorro Nobre, há um exemplo: Salles decide deixar, ao fim do filme,
as imagens do aguardado encontro ente ambos em silêncio total. É essa pausa que se torna,
a trilha sonora do abraço emocionado depois da longa troca de cartas. Assim como
dissemos no parágrafo acima quanto aos ruídos, aqui o silêncio enfatiza a emoção como
normalmente cabe à música fazer.
Há momentos em mais de um filme da produção recente que a pausa na trilha
sonora denota a passagem para um som subjetivo, quando fica claro que partilhamos da
introspecção de determinado personagem. O som das coisas em volta, o som construído
para ser objetivo, some e sobre os planos do personagem absorto cai o silêncio. Em
Benjamim, de Monique Gardenberg (2003) há uma situação em que o personagem-título,
interpretado por Paulo José, encontra-se no banco traseiro de um carro quando começa a
pensar no passado. Temos um plano detalhe de seu rosto, seus olhos em destaque. Todo o
som ambiente do trânsito desaparece sobre sua imagem. Entramos, em silêncio, em seus
pensamentos. A volta do som da “realidade” o despertará. Em Deus é brasileiro, de Cacá
Diegues (2003) quando Deus/Antônio Fagundes se concentra e fecha os olhos para apreciar
a brisa do litoral que criou tudo a sua volta deixa de produzir som. Estamos na estranha
condição de partilhar da atenção de Deus, que se recolhe ao seu próprio silêncio. Em O
outro lado da rua, Regina (Fernanda Montenegro) impede um assalto a uma senhora dentro
de uma agência bancária. Desnorteada, sai pelas calçadas tentando relatar o que acontecera,
mas ninguém lhe dá atenção. Sobre um plano próximo de seu rosto, com o pouco que se vê
da rua fora de foco, some o som das pessoas, dos carros. Corta para um plano aberto: a
Avenida Nossa Senhora de Copacabana está deserta, eis a alegoria. O silenciamento do som

ambiente a antecipara brevemente. Não se trata aqui de um momento de silêncio total, pois
no lugar dos ruídos da rua entra a música que ajuda a emoldurar a situação diferenciada.
Eduardo Coutinho comentava repetidamente em entrevistas e palestras, à época
do lançamento de Edifício Master, em 2001, que passara a deixar “dentro” do tempo dos
planos os silêncios dos entrevistados, titubeantes ao responder as perguntas, ou
constrangidos após tê-las respondido. O fim da justeza da edição sobre o tempo das falas
dava espaço às hesitações, aos incômodos, às incertezas importantes para o retrato daquelas
pessoas. Para Consuelo Lins, Coutinho diria que a mudança no suporte de filmagem, já
desde Santo Forte, em 1999, da película para o vídeo digital foi fator determinante para
243

permitir tal incorporação. O grande barateamento do material sensível na passagem do rolo


de filme para a fita de vídeo permitia planos menos justos, maior quantidade de material
gravado, sem a preocupação anterior da metragem gasta. Diz Coutinho: “filmando em
película eu não poderia ter feito Santo Forte, nem Babilônia 2000, nem Edifício Master.
Como deixar um silêncio crescer se tenho apenas 11 minutos para filmar? Como incorporar
os acasos, as interrupções, um telefone que toca?” 91 (LINS, 2004, p. 101). Exemplo de
tempo largo do plano para compreender as pausas durante as entrevistas está em Peões
(2004), exatamente em seu último plano. Geraldo, cabisbaixo após responder sobre seu
trabalho, permanece em longo silêncio. A câmera não para de filmar. Geraldo inverte a
situação na mesa, perguntando a Coutinho se ele já foi peão. Coutinho, fora de quadro, diz
que não. Geraldo sorri. A longa mudez criara espaço para a inversão dos papéis com a qual
o filme termina.
Situação de resposta sem palavras encontra-se em um documentário de estilo tão
diverso dos últimos citados quanto Glauber: o filme – labirinto do Brasil , de Silvio Tendler
(2003). Perguntado sobre como definiria Glauber Rocha, Jards Macalé imprime no filme
um longo silêncio, enquanto seu olhar tristonho também passa a impossibilidade da
resposta. A câmera espera por longo tempo, mas as palavras não acontecem.
Já citamos, a propósito de Bicho de sete cabeças, de Crime delicado, de Um céu de
estrelas, de O outro lado da rua , como ainda poderíamos ter comentado vários outros, o
cuidadoso trabalho com o som ambiente, os sons, normalmente ao fundo, que ajudam a
tornar verossímil a representação do espaço da ação. Em pelo menos dois casos esse
refinamento acontece de forma mais específica, pela presença da música diegética, que

constrói um “som ambiente de época”. Cinemas, aspirinas e urubus, dirigido por Marcelo
Gomes (2005), é emoldurado por poucos diálogos e escassos sons ambientes. A situação da

91
Os onze minutos a que Coutinho se refere são o tempo do rolo de filme de 16mm. Ao fim disso, a filmagem
tem que parar para a troca do rolo. É este o caso na filmagem em 16mm para posterior ampliação em 35mm,
método usado pelo documentarista. Filmando direto em 35mm o tempo do rolo é de pouco mais de 4 minutos,
o que agrava ainda mais as interrupções pouco desejáveis no caso do documentário, onde deve haver o
esforço de fazer o processo parecer natural ao entrevistado. Exemplo claro de como o fim dessa justeza dos
cortes se tranformará em uma concepção mais livre de som direto, aproveitando outros sons da locação que
não as falas, está emEdifício Master. Coutinho deixa a câmera fixa mostrar longamente um dos corredores do
prédio. Uma criança está de pé, parada no corredor. Ouvimos vários sons provenientes dos apartamentos. O
primeiro é uma música erudita. Segue-se o miado de um gato, as vozes das pessoas, uma buzina que invade,
vindo da rua. É curioso que sendo a música plácida o primeiro som a preencher a imagem fixa, parece por um
momento tratar-se de uma trilha extra-diegética, inserida depois, mas o espectador percebe na seqüência que
na verdade é som direto, gravado na locação.
244

viagem pela caatinga de um vendedor alemão, Johann, e um nativo do sertão, Ranulpho,


que no início não se entendem e vão construindo aos poucos um diálogo possível, propicia
uma construção sonora minimalista.92 Permeiam os momentos de longas pausas na quase
conversa os sons do rádio que há no caminhão do vendedor. Tais músicas, mais locuções,
anúncios, são a principal fonte de informação para situar a ação na época do início da
Segunda Guerra Mundial. Os informes de que o Brasil se alia contra o eixo interessam
diretamente ao alemão em trânsito pela Bahia e serão fundamentais para o desenrolar da
história. Os sambas e marchinhas da época que saem do rádio, cantados por Carmem
Miranda, Francisco Alves e outros, dão verossimilhança à reconstituição da passagem da
década de 1930 para 1940.
Em Madame Satã são sempre ouvidas músicas que, fora de quadro, parecem sair
das ruelas e de dentro dos sobrados da Lapa. Tais músicas têm a função de recriar um som
ambiente que nos remete ao que seria ouvido naquele local em 1938, ano da ação. Assim,
fazem parte da trilha sonora, como som fora de quadro ou mesmo cantadas pelos
personagens em cena, por exemplo, Se você jurar, de Ismael Silva e Francisco Alves, Fita
amarela, de Noel Rosa, Ao romper da aurora, de Silva, Alves e Lamartine Babo. Para tal
reconstituição, estão presentes tanto em Cinemas, aspirinas e urubus quanto em Madame
Satã as figuras dos pesquisadores musicais. No caso de Madame Satã, estes profissionais
uniram-se um diretor musical, (função dividida por Marcos Suzano e Sacha Amback) ao
editor de som, (Waldir Xavier) ao técnico de som direto (Aloysio Compasso) e ao mixador
(Dominique Hennequin) para construir o rebuscado universo sonoro que reproduz a Lapa
da década de 1930.

Em Cidade de Deus há função parecida para a música, incumbida de ajudar a


situar as diferentes épocas, mas ela não é necessariamente diegética. A primeira parte da
história é ambientada por sambas de Cartola, utilizados para caracterizar a fase “romântica”
do morro, pré-organização do tráfico. Na década de 1970, comentam as ações os
92
O diretor Marcelo Gomes explicaria, em mesa redonda incluída na mostra Raízes do século XIX – cinema
brasileiro contemporâneo, realizada no Centro Cultural da Caixa Econômica Federal entre 14 e 40 de julho de
2006, que o largo espaço dado aos silêncios entre as falas dos dois personagens não havia sido pensado
srcinalmente no roteiro, mas passou a ser considerado necessário no decorrer do processo. Disse Gomes: “eu
escrevi e reescrevi o roteiro e quando faltavam dois meses para filmar joguei o roteiro fora (...) Recomecei
pelos personagens, pelos tempos deles. E a partir daí, dos ensaios, o roteiro se desenvolveu com os silêncios
que eu queria. Por que roteiro também é silêncio” A fala de Marcelo Gomes, como as demais ocorridas nos
debates, estão transcritas em www.revistacinetica.com.br/raizesdebates.htm disponível em 21 de agosto de
2006.
245

contemporâneos Tim Maia, James Brown, Simonal a até Raul Seixas, este identificado com
a aproximação entre Bené e adolescentes de Ipanema. Destaque para dois momentos nos
quais as músicas plácidas fazem certo contraponto com a violência das imagens. Sobre o
tiroteio nas ruas da Cidade de Deus ouvimos os versos de Alvorada. Cartola canta:
“Alvorada lá no morro, que beleza, ninguém chora, não há tristeza, ninguém sente
dissabor”. Sobre a seqüência do atrapalhado assalto a banco comandado por Zé Pequeno,
Simonal canta mansamente: “nem vem que não tem”.
Para tocar em um último ponto, mais ampla do que o acréscimo do pesquisador
musical à equipe tem sido, nos últimos anos, a presença do que no cinema norte-americano
convencionou-se chamar de sound designer. No Brasil, houve a opção pela tradução literal:
desenhista de som. A função existe no modo de produção hollywoodiano desde o fim da
década de 1970, quando Walter Murch se auto-designou o sound designer de Apocalypse
Now, de Francis Ford Coppola. O objetivo de Murch era criar um planejamento sonoro que
lhe permitisse trabalhar com mais de uma centena de pistas de som, gerenciando uma
finalização de complexidade além dos padrões da época. O papel do desenhista de som é
justamente coordenar todo o processo de concepção, captação e finalização sonora.
Haveria, assim, na equipe alguém responsável pelo som do filme em todos os seus
momentos, em oposição à pulverização habitual. Explica-se: demanda-se do fotógrafo, para
fazer uma analogia com os modos de produção da imagem, que ele esteja presente nas
reuniões iniciais, quando se discute a decupagem, os enquadramentos, as lentes, o mapa de
luz; durante a filmagem, evidentemente; na ponta final do processo, quando da marcação de
luz nos laboratórios de revelação, a fim de garantir que o filme esteja exposto de acordo

com os padrões previamente definidos. Quanto aos caminhos do som, é comum que não
haja pessoa encarregada de verificar o processo inteiro. É desejável que o técnico de som,
ou mesmo o editor, esteja presente no início para acrescentar às discussões da decupagem
as necessidades do som, prever posicionamento dos microfones e demais estratégias de
captação, visitar as locações, e, tanto quanto discutir a parte técnica, desenvolver o conceito
sonoro do filme. Dependendo da organização do projeto tudo isso de fato acontece, mas em
boa parte dos casos não. O comprometimento habitual das pessoas que estarão envolvidas
com o som muitas vezes se dá apenas nos períodos determinados da filmagem, da edição,
da mixagem. O técnico de som está, é evidente, presente durante as filmagens, mas não
246

mais. O editor de som não conhece o filme até este chegar às suas mãos, depois da edição
de imagem fechada. A criação sonora, se não foi debatida desde o início, acontece na ilha
de edição.93 A inserção do desenhista de som traria à equipe uma pessoa capaz de executar
um planejamento técnico e estético claro desde o início. Esta discussão, porém, não é
simples. A criação de uma nova hierarquia entre os departamentos de som não é consensual
entre produtores, diretores, técnicos de som, editores. De qualquer forma, tem havido tal
penetração na produção brasileira recente. Alguns dos filmes que citamos no decorrer deste
capítulo tiveram em suas equipes pessoas responsáveis pelo desenho de som.
Para citar um exemplo, em Amélia Ana Carolina fez uso, em 2000, dos serviços de
um desenhista de som, Chen Harpaz, experiente na função em filmes israelenses e
europeus. Além da já comentada importância da voz de Myriam Muniz e dos duelos
verbais em vários idiomas, há outros aspectos sonoros relevantes. Mais uma vez, o som
ambiente bem cuidado tem a importância de marcar diferenças entre a vida das irmãs na
fazenda, seus sons rurais muito presentes, e a chegada no Rio de Janeiro, com os sons da
cidade antiga, o jongo cantado às portas do Paço Imperial, os sinos das igrejas. Os
flashbacks criados a partir das lembranças de Sarah Bernhardt sempre se iniciam pelo som,
adiantado em relação à imagem. Sobre o plano próximo do rosto absorto de Bernhardt
ouvimos um diálogo seu com a falecida Amélia, reverberante, a fim de passar a idéia de um
som distinto dos sons “reais”. As imagens do diálogo entrarão em seguida, e a lembrança
será instaurada na tela por inteiro. Esse procedimento repete-se no decorrer do filme.
Próximo do final, outro exemplo de sons e imagens deslocados, que instauram contrapontos
momentâneos. Sobre o rosto sofrido da atriz caída atrás do palco com a perna quebrada,

ouvem-se os aplausos do público, desconhecedor do que se passa. Ela, no chão, começa a


pedir os aplausos, mas a trilha sonora a desrespeita e surge o som do mar, adiantado, como
de hábito. A imagem seguinte o justificará. A diva está de partida.

93
Em outro momento dos debates da mesma mostra Raízes do século XIX – cinema brasileiro
contemporâneo, que citamos há duas páginas, o fotógrafo Mauro Pinheiro, que entre outros trabalhos também
assina a fotografia de Cinemas, aspirinas e urubus, comenta este ponto, ao reclamar da repetição pelo cinema
brasileiro contemporâneo de antigos modelos pré-concebidos de produção. Diz Mauro Pinheiro: “quando a
gente começa a falar de fotografia, o técnico de som nunca está junto, por exemplo. Então, qualquer opção de
decupagem que lide com o som de forma criativa não pode se desenvolver. Fica na idéia, para ser discutida
depois com o pessoal do som, por que o formato de produção no Brasil no geral não contempla que o técnico
de som acompanhe a decupagem. E esse engessamento é geral.” Esta fala também está transcrita em
www.revistacinetica.com.br/raizesdebates.htm
247

Encerramos dizendo que, se por um lado, no cinema brasileiro produzido entre os


anos 1990 e a primeira metade da década de 2000, grande parte das relações entre sons e
imagens é ainda baseada na manutenção dos parâmetros naturalistas que facilitam a
comunicação direta com o público, ou no hiper-realismo que deles adveio, por outro, há
conquistas técnicas, bem como outras estéticas sonoras, que merecem atenção renovada. A
relação com a música popular, tão cara à história do cinema brasileiro, permanece, embora
traga questões diversas daquelas sucitadas em momentos anteriores. A voz over continua
sendo uma opção à narrativa baseada nos diálogos. A língua falada nas telas reproduz com
maior propriedade a riqueza do idioma falado no país. Alguns desses parâmetros dão
continuidade a conquistas antigas. Há, ao mesmo tempo, êxitos mais recentes, como o
grande refinamento quanto ao tratamento dos ruídos e sons ambientes. O uso do silêncio
como elemento que pode contribuir para a narrativa parece disseminar-se. O senso comum
que tanto dificulta as relações entre o público de cinema no Brasil e o som de seus próprios
filmes dá sinais de enfraquecimento, em resposta às melhorias técnicas na captação, na
finalização e na exibição. As funções dentro das equipes de som expandem-se, provocando
a esperança de um pensamento maior sobre o som dos filmes dentro do próprio processo de
criação, embora modelos contrários a essa expansão, assim como problemas estruturais
antigos em todas as cadeias do processo, permaneçam. O trabalho para que também ouvir
os filmes seja tarefa tão prazeirosa quanto importante segue.
248

CONCLUSÃO

Terminando o mapeamento dos pontos eleitos por nós como os mais representativos
para falar sobre o som no cinema brasileiro, surgem alguns questionamentos, algumas
vontades, algumas afirmações. Escolhemos falar sobre as primeiras tentativas de
sonorização, sobre a passagem definitiva para o sonoro, sobre os anos 60, com a chegada
dos equipamentos portáteis e sobre últimos quinze anos, a partir da passagem para a
gravação e edição digitais, porque esses nos parecem momentos em que mudanças no modo
de lidar com o som tiveram reflexos evidentes nas narrativas dos filmes, independente de
continuidade cronológica e de qualquer caráter evolutivo que pudesse caracterizar uma
noção linear de progresso. Embora reafirmemos agora, ao fim do trabalho, a validade da
escolha de tais passagens como as mais representativas para demontrar nossos argumentos,
surge uma questão intrínseca à própria escolha. O que queremos dizer é que nada impede
que um histórico sobre o cinema sonoro brasileiro tematize outros momentos. O recorte
escolhido desta vez exime este texto de analisar mudanças na lida com o som, por exemplo,
na chanchada carioca, na produção paulista dos anos 50, na ampla produção das décadas de
70 e 80. Mas abrir mão, neste texto, de detalhar o aspecto sonoro daquela produção não
significa que não haja ali questões sonoras que sejam passíveis de discussão. Mapeados
esses momentos, em adição aos que trabalhamos aqui, talvez comece a ser possível dizer
249

que o som no cinema brasileiro esteja devidamente analisado. Por hora, trabalhamos sobre
algumas partes da questão.
Parecia-nos importante que descrevêssemos, em certa medida, as mudanças
tecnológicas próprias a cada momento, mas que a questão técnica não predominasse
amplamente sobre as outras; que analisássemos esteticamente as implicações de se inserir
de determinada forma e não de outra os sons sobre as imagens e quais sentidos são
sugeridos para o espectador a partir daquela união; que entendêssemos esse processo dentro
do contexto de cada época; que déssemos algum espaço às biografias das pessoas que
trabalharam com o som dos filmes, porque há a nescessidade de entender como
funcionavam as máquinas, de lembrar filmes que, se não trabalhássemos sobre eles seriam
esquecidos, mas também de saber e de lembrar quem foram, ou são, as pessoas.
No decorrer do processo de procurar informações sobre filmes que foram realizados
dentro do espaço de mais de cem anos, nos deparamos com diversos métodos de pesquisa.
Os primeiros filmes sonorizados, por discos, ou cantados atrás da tela, não existem mais. O
que há sobre eles são as informações escritas quanto a sua produção e exibição. Assim, não
os vimos nem os ouvimos, embora haja sempre descrições de suas imagens e de seus sons.
Sobre este, apenas lemos, e procuramos ouvir as músicas que lhes serviram de trilha
sonora. Em boa parte das vezes conseguimos ouvi-las. Sobre as primeiras produções
sonoras, realizadas entre o fim da década de 20 e a primeira metade dos anos 30, há filmes
perdidos, para os quais também só há acesso pela leitura e pelo conhecimento das músicas;
há filmes restaurados; há mesmo o caso de Coisas nossas, que hoje existe por som mas não
por imagens. Existe portanto, dentro do trabalho da pesquisa, um filme que foi somente

ouvido. Houve, na análise da década de 60, a revisão de filmes canônicos, e a leitura das
análises das quais já foram objetos. Por vezes aconteceu o prazer de analisar filmes que,
mesmo pertencentes aquele momento, não foram tão comentados. Há o trabalho sobre os
filmes contemporâneos, lançados, vistos e revistos durante o tempo da escritura, ou nos
anos imediatamente anteriores a ela. Assim, uma outra sensação de incompletude surge do
fato de que a análise dos filmes contemporâneos é sempre inconclusa, pois um filme
lançado após o fechamento de texto, em determinado mês do segundo semestre de 2006,
não estará incluído, não importa o quão interessante seu som possa ser.
250

Era outra de nossas intenções equiparar, sempre que possível, o espaço dado a todos
os elementos sonoros. Não comentar mais as vozes do que as músicas, não deixar que a
importância dos ruídos seja minorada frente a dos dois primeiros, não esquecer que os
filmes também são constituídos de silêncios. É evidente que isso não foi possível em todos
os momentos, já que por vezes a própria constituição dos filmes privilegia um elemento
sonoro em detrimento dos outros. O espaço dado aos ruídos cresce do cinema moderno para
os dias de hoje, o acompanhamento musical centraliza as discussões sobre as primeiras
sonorizações.
Também nos parecia importante ter a liberdade para, mesmo dentro de um estudo
que se quer fechado sobre o recorte nacional, e assim passível de possíveis críticas sobre a
validade desse recorte, comparar brevemente os filmes feitos no Brasil com a produção
estrangeira. Assim o fizemos quando estabelecemos relações entre os primeiros musicais
brasileiros e latino-americanos. Ao comentar o uso do som por um autor francês (na
verdade suíço), dentro do contexto do cinema moderno. Ao citar a produção estadunidense
contemporânea, sugerindo possíveis influências sobre o modo como se pensa o som de
certo grupo de filmes brasileiros recentes. Assim estabeleceríamos relações de
proximidade, ou de interpenetração com modelos de produção que extrapolam as fronteiras
nacionais, sempre que achássemos pertinente.
O trabalho de pequisa para a tese de doutorado levou o dobro de tempo designado
para o mestrado e a própria pesquisa, pela sua abrangência, resultou em uma busca por
informações algumas vezes maior. No decorrer do cotidiano de procurar documentos sobre
filmes inexistentes, de ler e ouvir partituras e gravações musicais antigas, de ver e rever o

que se transformou em um grande número de filmes, este pesquisador em formação sentiu-


se, por vezes, realmente no exercício do trabalho de pesquisador. Os resultados passados
adiante em aula por várias vezes satisfizeram a necessidade de diálogo sobre o material
encontrado deste professor iniciante. Esses dados terem tranformado-se em cerca de 250
páginas de material escrito chegam a surpreender este dublê de escritor. E ainda assim, o
trabalho chega ao fim com a sensação, análoga àquela experimentada ao fim da dissertação
do mestrado, de que se o texto se completa inexoravelmente, mas a pesquisa poderia seguir
indefinidamente. Ainda hoje, termino esta tese com a mesma impressão, e com as mesmas
palavras, daquela dissertação. Há tanto por fazer.
251

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263

ANEXO

GLOSSÁRIO DOS APARELHOS DE GRAVAÇÃO E REPRODUÇÃO


CITADOS

FONÓGRAFO – Patente de Thomas Edison, requerida em 19 de fevereiro de 1878.


Avanço das pesquisas com o registro de vibrações sonoras impressas em papel,
concretizadas com a invenção do telégrafo. O fonógrafo de Edison armazenava o som
registrado em cilindros de metal, e era reversível, ou seja, era gravador e tocador. A
passagem de Edison para o registro me disco seria tardia, apenas em 1911, quando
empresas européias já obtinham sucesso com a comercialização dos discos a cerca de uma
década, a patente mais famosa sendo o gramofone. O fonógrafo de Edison foi apresentado
no Rio de Janeiro pouco tempo após as primeiras exibições nos EUA. Em julho de 1878 há
notícias de uma exibição em uma das Conferências da Glória. Em 1880, D.Pedro II é
presenteado com um modelo. A partir de 1892, Frederico Figner viajaria o país
promovendo exibições públicas.

QUINETOFONÓGRAFO – Versão sonora do conhecido quinetógrafo de Edison,


registrava, por meio da união de um fonógrafo à câmera, sons e imagens sincronicamente.
Uma vez que essa junção conseguisse ser recriada no momento da exibição, estaria
realizada a ilusão do sincronismo. Patente de julho de 1891.

QUINETOFONE – Segunda tentativa de Edison de reproduzir sons e imagens em


sincronismo. Há dados que confirmam exibições do aparelho em Paris e Bruxelas, em maio
de 1895. Um pequeno fonógrafo inserido na maquinaria do quinetoscópio, seu projetor para
fruição individual, tocaria sons em conjunto com as imagens. Os sons seriam ouvidos por
meio de “tubinhos auditivos”, fones de ouvido.
264

VITASCÓPIO – Aparelho designado para projeções não mais individuais, mas públicas,
adaptado para a reprodução sonora. Um fonógrafo “de grande buzina” amplificaria o som
para o local da exibição, e a audiência ouviria “sem a necessidade de tubinhos auditivos”.
Há notícias de uma exibição em São Paulo, em 2 de fevereiro de 1897.

MOTOSCÓPIO – Patente de Dickinson e Casler, ex-empregados de Edison. Projetor com


acompanhamento do fonógrafo. Exibido no Brasil em 1897. Além de exibições cariocas e
paulistas, a notícia de projeções em Alagoas denota a viagem do aparato pelo país.

CINEMATÓGRAFOS FALANTES – Nome genérico dado a diversas patentes através das


quais a projeção das imagens era sonorizada por discos tocados em sincronismo. Em 3 de
maio de 1902, Victor de Maio exibe em São Paulo um aparato chamado Phono-
cinematógrafo. Em 7 de junho do mesmo ano, também em São Paulo, Cesare Watry faz
exibições públicas do Cinephon-falante. Uma versão filmada e cantada de um trecho da
Carmem de Bizet era a atração. Em 1904, Edouard Hervet atravessa o Brasil exibindo o
Cinematógrafo Lumière Aprefeiçoado. Ao projetor estaria unido um zoofone, toca-discos
de marca concorrente ao mais famoso gramofone. Hervet seria encontrado mostrando
cinematógrafos falantes em terras brasileiras, entre idas e vindas da Europa, até 1907. Em
novenbro de 1905, há notícias da versão da Pathé para os filmes sonorizados com discos.
Trata-se do Cinematógrafo Falante Pathé. Em agosto de 1907, chega a São Luís do
Maranhão o Cinematógrafo Gaumont, rumo ao sul do país. Sua atração musical, um trecho

filmado da Cavalleria rusticana. Em fevereiro de 1908, a Empresa Fontenelle, grupo


exibidor de Manaus, importa da Europa um falante, que seria batizado aqui de
Cinematógrafo Fontenelle. Unido ao projetor por um fio elétrico, um electrophono, mais
um concorrente do fonógrafo e do gramofone. Em 1908, o Teatro Lírico, no Rio de Janeiro,
anuncia o Sincronoscópio Lírico, união de projetor e zonofone. No mesmo ano, no Rio de
Janeiro e em São Paulo, é anunciado outro falante da Pathé, o seu Synchrophone.

DICTAPHONE – Gravador portátil de Edison que, em 1912, foi utilizado pela Comissão

Rondon para registros dos cantos dos índios nas expedições pelo interior do país. Gravava
265

em cilindros de cera. O técnico responsável por sua operação naquelas ocasiões foi o jovem
Roquette Pinto.

CINEMETRÓFONO – Experiência de Paulo Benedetti, datada de 1912, realizada em


Barbacena, Minas Gerais. Consistia em acrescentar uma faixa extra na película, na qual
estariam impressas notações musicais que serviriam de base ao regente para o apropriado
acompanhamento musical. Uma tranformista srcinal , de 1915, seria exemplo dessa
técnica.

AMERICA CINE FONEMA – Nome dado à união entre discos e imagens realizada por
Francisco de Almeida Fleming em Pouso Alegre, Minas Gerais, no início da década de
1920. A série de curta-metragens Desafios à viola teria sido produzida com o intuito de
testar o método.

VITAPHONE – Sistema ainda constituído da união entre projetor e discos. Suplantou as


tentativas anteriores por se tratar de um só aparelho, com um mesmo motor disparando e
garantindo a mesma velocidade dos discos de 33 rotações e do rolo de filme, o que refinava
a produção do sincronismo. De propriedade da General electric, foi utilizado
comercialmente a partir de agosto de 1926 em Don Juan, da Warner Brothers, este o
primeiro dos grandes estúdios a investir no equipamento. Em abril de 1928, estreava em
São Paulo Alta traição (The patriot), de Ernst Lubitsch, em sala adaptada para receber
filmes sonorizados com o vitaphone. Paulo Benedetti faria experiências de filmes cantados
no Rio de Janeiro, em setembro de 1929, para testar o equipamento. Em 23 de novembro de
1931, estreava em São Paulo Coisas nossas, dirigido por Wallace Downey, auto-
proclamado o primeiro longa-metragem brasileiro a ter o som gravado com aparelho.

MOVIETONE – Sistema que permitiu o som impresso na própria película, pondo fim à
dependência de um segundo suporte, como os discos. Uma célula fotoelétrica transformava
os impulsos sonoros em registros fotográficos, localizados ao lado dos fotogramas. A
266

pesquisa deste método já vinha sendo realizada por nomes como Lee de Forest, Theodore
Case, Earl Sponable desde a década de 1910. Parte da dificuldade para se obter um
resultado satisfatório consitia em conseguir uma redução do registro sonoro de modo que
ele ocupasse apenas o espaço deixado entre os fotogramas e as perfurações, o que foi
atingido quando a impressão dos sons passou medir cerca de 1,5 mm. Em fevereiro de
1927, são exibidos os primeiros Fox movietone news, cine-reportagens com som direto
captado pelo movietone. A partida de Charles Lindberg para cruzar o Atlântico, em maio
daquele ano, é coberta pelo estúdio. Em junho de 1928, estreava no Rio de Janeiro
Broadway Melody, dirigido por Harry Beaumont, sonorizado pelo movietone. No fim do
ano de 1932, Adhemar Gonzaga importa o aparelho para os estúdios da Cinédia. O curta-
metragem Como se faz um jornal moderno e o longa A voz do carnaval , este lançado em 6
de março de 1933, foram os primeiros filmes da companhia a ter o som impresso
diretamente na película.

SINCROCINEX – Equipamento criado por Luís de Barros a fim de simular a união entre
sons e imagens obtida pelo vitaphone. Unindo os discos, gravados com a infra-estrutura
advinda da divisão paulista da Columbia records em São Paulo, com o projetor, mais um
auto-falante colocado abaixo da tela, Acabaram-se os otários e os filmes seguintes de sua
produtora foram exibidos com som, a partir de setembro de 1929.

NAGRA – Gravador portátil de rolo desenvolvido por Stefan Kudelski em 1952. Registra o

som em fita magética de 1/4”. Aproveitado nos primeiros anos em reportagens


radiofônicas. Em 1957, a companhia lança o Nagra III, o primeiro modelo a ser utilizado
em televisão e cinema. Mais tarde, os modelos Nagra 4, 4.2, IV-S (o primeiro estéreo)
consolidariam a liderança da marca no mercado de som direto para cinema até o início da
década de 1990. No cinema brasileiro, o Nagra esteve presente desde 1959, por meio de
Franz Eichorn, quando foi utilizado em co-produções alemãs, e com penetração maior a
partir de 1962. O documentarista sueco Arne Sucksdorff traz dois aparelhos para o curso
dado no Museu de Arte Moderna. Joaquim Pedro de Andrade chega de sua passagem nos
EUA, onde tivera contato com o cinema direto, com um outro. Em São Paulo, os
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integrantes do grupo centralizado por Thomas Farkas aprenderiam o cinema direto com
Fernando Birri.

SM5 RECORDER – Gravador de rolo, de tecnologia similar à do Nagra, desenvolvido pela


Stellavox, concorrente de Kudelski, de seu ex-funcionário George Quellet.

KINOVOX – Gravadores portáteis desenvolvidos a partir de 1943 pela companhia


dinamarquesa homônima, de Robert Sørensen, com o intuito srcinal de servir à gravação
musical em salas de concerto. O som era registrado em fita magnética recoberta por fios de
aço.

UHER 1000 REPORT PILOT – Modelo desenvolvido para cinema em 1966 pela alemã
Uher, no mercado de gravadores semi-profissionais para uso doméstico desde 1946. O
sistema de Pilot Tone, semelhante ao desenvolvido para o Nagra, garantia, por cabeamento,
o sincronismo com a câmera.

DAT (digital audio tape) – Sistema de gravação digital em fita magnética de 4 mm,
desenvolvido srcinalmente pela japonesa Sony. Substituiu na passagem para a década de
1990 o longo primado do Nagra e se constituiu no primeiro formato padrão de gravação
digital. A taxa de amostragem do som digital gravado nos primeiros equipamentos era
equivalente a 32 Khz e a resolução a 12 bits. Mais tarde, 48 Khz e 16 bits. À Sony,
seguiriam-se como fabricantes de gravadores no formato DAT as também japonesas Fostex
e TASCAM e a britânica HHB.

DA-88 – Gravador multicanais, de oito pistas, utiliza o formato Hi-8 para gravar som
digital, em 48 Khz e 16 bits. Tornado padrão para estúdios de música, é usado em stuações
do som direto nas quais se façam necessárias mais pistas de som do que as duas fornecidas
pela DAT.
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CANTAR-X – Gravador digital multicanais desenvolvido pela fabricante francesa de


câmeras Aaton. Grava em seis canais, expandíveis para oito. O som é registrado em disco
rígido, com possibilidade de salvar o arquivo de som digital também em cd ou dvd.
Configura-se, neste momento, como o formato a substituir o DAT, pelo número maior de
pistas e por completar a passagem para o registro digital, direto no disco rígido e não mais
em fita magnética de acesso não linear.

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