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ARTIGO ARTICLE 685

Elementos constitutivos da formação


e inserção de profissionais não-médicos
na assistência ao parto

Factors in training and participation


in childbirth care by non-physicians

Maria Luiza Gonzalez Riesco 1


Rosa Maria Godoy Serpa da Fonseca 2

1 Departamento de Abstract This study aimed to characterize midwives according to current concepts among
Enfermagem Materno-
health professionals and to identify the ideological premises underlying proposals for their
Infantil e Psiquiátrica,
Escola de Enfermagem, training. Data from interviews with nine midwives, nurses, and physicians were interpreted us-
Universidade de São Paulo. ing discourse analysis. The resulting empirical categories were “The Situation of Maternity Care
Av. Dr. Enéas de Carvalho
in Brazil”, “The Ideal (or Necessary) Midwife and the Possible Midwife”. When these empirical
Aguiar 419, São Paulo, SP
05403-000, Brasil. categories were interpreted, it was possible to “construct” an “emerging midwife” by dialectically
riesco@usp.br overcoming the concept of “the ideal midwife”.
2 Departamento de
Enfermagem em Saúde
Key words Obstetrical Nursing; Practical Midwives; Delivery
Coletiva, Escola
de Enfermagem, Resumo O estudo teve como objetivos identificar a parteira, segundo a concepção de profissio-
Universidade de São Paulo.
Av. Dr. Enéas de Carvalho
nais da área de saúde, e desvelar os pressupostos ideológicos que justificam sua formação. Os da-
Aguiar 419, São Paulo, SP dos de entrevistas com nove obstetrizes, enfermeiras e médicos foram tratados pela análise de
05403-000, Brasil. discurso, resultando nas categorias empíricas “Situação da Assistência ao Parto no Brasil” e “A
rmgsfon@usp.br
Parteira que Queremos (ou Devemos) e a Parteira que Podemos”. Mediante a interpretação dos
dados foi possível vislumbrar uma “parteira em construção”, que emergiu a partir da superação
dialética da “parteira ideal”.
Palavras-chave Enfermagem Obstétrica; Parteira Leiga; Parto

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Introdução ser a especialista, que depois do curso de gra-


duação em enfermagem galga a carreira no ní-
A pergunta “Deve ou não haver parteiras?” inti- vel de pós-graduação e adquire competências
tula um trabalho publicado há mais de cem e autonomia para assistir à mulher de forma
anos pela primeira parteira diplomada no Brasil, integral. Para outros, profissionais ou não, essa
Maria Josefina Matilde Durocher, mantendo-se é uma interrogação a ser estudada frente às
como uma questão atual, apesar das transfor- condições concretas de mudança, como parte
mações ocorridas no sistema de saúde e na as- da proposta de um modelo assistencial, em
sistência obstétrica no último século. Cabe es- que a mulher e a família possam ser sujeitos no
clarecer, de início, que neste artigo o termo processo de nascimento de um filho, com digni-
parteira é utilizado para designar obstetrizes, dade e direito de acesso aos serviços de saúde.
enfermeiras, técnicas e auxiliares de enferma- Quanto à participação assistencial das par-
gem, parteiras tradicionais e outros não-médi- teiras, obstetrizes ou enfermeiras obstétricas
cos que assistem ao parto, independentemente brasileiras os dados são escassos. Em 1956, o
do sexo e da qualificação técnica ou legal. número de profissionais em exercício era de
A trajetória histórica da parteira, em seus 1.410 passando, em 1983, para 2.687 enfermei-
encontros e desencontros com cirurgiões e en- ros com habilitação ou especialização na área,
fermeiras, é densa e profundamente discutida em todo o Brasil (COFEN/ABEN, 1985). Em tra-
por Osava (1997). No estudo, sua tese de douto- balho que analisa a participação da enfermeira
rado, a autora defende a participação de não- obstétrica no contexto brasileiro, duas décadas
médicos na assistência ao parto, como uma es- atrás, Freddi (1977) atentava para a proporção
tratégia para a transformação do atual modelo de uma profissional para 14.360 mulheres em
assistencial. As menções sobre a necessidade idade fértil, ficando a maioria concentrada nos
de “resgatar” a parteira têm sido igualmente grandes centros. Dada essa restrição numérica,
freqüentes em revistas, jornais, imprensa fala- a autora justificava a atuação da enfermeira
da, reuniões científicas e conversas informais. obstétrica concentrada em atividades adminis-
As razões para que parteira esteja em evi- trativas ou assistenciais, em centros obstétri-
dência podem ser várias, destacando-se entre cos, e em atividade docente nas escolas de en-
elas, que a falta da parteira contribui para o au- fermagem. A Associação Brasileira de Obstetri-
mento das taxas de cesarianas, pois não há zes e Enfermeiros Obstetras procedeu, em 1997,
quem controle o trabalho de parto para que ele a um levantamento junto às escolas de enfer-
evolua normalmente. Além disso, a parteira magem de todo o país, no sentido de obter in-
poderia ajudar a tornar o nascimento e o parto formações acerca do número de enfermeiras
menos medicalizados, humanizar a assistência obstétricas formadas nos últimos vinte anos.
e auxiliar na extensão de cobertura à saúde do Os dados de 58 escolas, dentre as 105 pesqui-
grupo materno-infantil; a parteira, assumindo sadas, representavam 2.756 enfermeiras com
atribuições menos complexas na assistência habilitação ou especialização em enfermagem
obstétrica, liberaria o médico para realizar ati- obstétrica, formadas por somente 19 escolas.
vidades especializadas e, recebendo remunera- Os resultados indicavam, também, que os prin-
ção menor que o médico, diminuiria os custos cipais motivos para a interrupção dos cursos
na prestação de serviços de saúde, tanto na re- foram mudanças na legislação de ensino, falta
de pública, quanto na privada. de campo para estágio, falta de demanda para
Quando se ouvem os argumentos pró-par- o curso e falta de professores (Bonadio et al.,
teira, convém perguntar, no entanto, quem é 1999). Esses dados, porém, não revelam a in-
essa parteira que deve voltar. A parteira da qual serção profissional na área de formação espe-
se está falando e a idéia que cada um faz dela cífica, uma vez que a enfermeira habilitada ou
certamente variam bastante, na dependência especializada em obstetrícia pode atuar em
de quem seja o interlocutor. Para os médicos qualquer área da assistência ou docência de
obstetras, pode ser uma ajudante, que perma- enfermagem. Outro fator a considerar é que a
nece ao lado da parturiente durante as horas qualificação formal não garante a capacitação
de trabalho de parto, para que o próprio médi- permanente para a assistência ao nascimento
co possa cuidar de outros afazeres, até que o pe- e parto, pois, quando alheio à prática, o profis-
ríodo de dilatação chegue ao final ou enquanto sional necessita ser reciclado para assumir es-
não surgirem complicações; para os técnicos sa função.
em planejamento, pode ser alguém que integre Desde 1998, o Ministério da Saúde e várias
a equipe de saúde, com baixo custo e disponi- secretarias estaduais e municipais de saúde
bilidade de se manter em regiões de carência vêm estabelecendo políticas e destinando re-
de recursos; para a enfermeira obstétrica, pode cursos para qualificar enfermeiras obstétricas

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e inserir essas profissionais na assistência ao se ao entrevistado que considerasse as seguin-


parto normal. Dentre as medidas, destacam-se tes questões: demanda assistencial, tipo de as-
o financiamento de cursos de especialização sistência, local de assistência, qualificação e
em enfermagem obstétrica e portarias ministe- sexo, inserção na equipe e vantagens e desvan-
riais, para inclusão do parto normal assistido tagens para a parturiente, serviços e profissio-
por enfermeira obstétrica na tabela de paga- nais de saúde. Vale ressaltar que a participação
mentos do Sistema Único de Saúde (SUS). dos entrevistados ocorreu com o conhecimen-
Com base nesse contexto, a finalidade des- to prévio dos objetivos do estudo e as entrevis-
te estudo foi oferecer elementos para a formu- tas foram marcadas conforme a disposição e
lação de propostas de capacitação de profissio- disponibilidade de cada um em participar.
nais não-médicos para assistência ao parto.
Para tanto, os objetivos foram identificar quem Análise e interpretação dos dados
é a parteira a que se referem os profissionais
da área da saúde, quando defendem sua exis- As entrevistas foram transcritas procedendo-se
tência, e desvelar os pressupostos ideológicos à leitura integral dos discursos, buscando apre-
que buscam justificar a formação dessa profis- ender seu sentido global. Dando seqüência à
sional. análise, foram extraídas frases temáticas a par-
tir dos substantivos concretos e abstratos utili-
zados nos discursos, preservando-se os ele-
Procedimentos metodológicos mentos de ação e qualificação, ou seja, verbos
e adjetivos que configuram um enunciado per-
Universo da pesquisa tinente. Assim, das exaustivas leituras vertical
e horizontal dos discursos e do processo de in-
A população do estudo foi formada por duas terpretação dos dados resultaram duas catego-
obstetrizes, duas enfermeiras obstétricas, uma rias empíricas, constituídas pelas respectivas
enfermeira de saúde pública, três médicos obs- subcategorias, que por sua vez, foram forma-
tetras e uma médica sanitarista. Por ocasião da das pelo agrupamento das frases em temas. Es-
coleta de dados, esses profissionais ocupavam sas categorias empíricas e suas derivações fo-
posições como dirigentes, coordenadores, res- ram colocadas em relação, buscando-se situá-
ponsáveis ou representantes nas seguintes or- las historicamente.
ganizações: Comissão Nacional de Mortalida-
de Materna do Ministério da Saúde, Programa
de Assistência à Saúde da Mulher da Secretaria Resultados e discussão
de Estado da Saúde de São Paulo, Escola de En-
fermagem da Universidade de São Paulo, De- As categorias, subcategorias e temas
partamento de Enfermagem da Universidade
Federal de São Paulo, Departamento de Obste- A primeira categoria empírica é denominada
trícia e Ginecologia da Faculdade de Medicina “Situação da assistência ao parto no Brasil” e
da Universidade de São Paulo, Conselho Regio- inclui os aspectos relacionados com indicado-
nal de Enfermagem de São Paulo, Conselho Re- res de saúde materna, distribuição de recursos
gional de Medicina de São Paulo, Associação humanos, políticas e modelos de assistência ao
Brasileira de Obstetrizes e Enfermeiros Obste- parto e participação de não-médicos nessa as-
tras e Federação Brasileira das Sociedades de sistência. Esses aspectos foram considerados
Ginecologia e Obstetrícia. Para a seleção des- nos discursos dos entrevistados, na medida em
ses profissionais foi considerado o seu poder que constituem elementos necessários para si-
de decisão no âmbito da formação e utilização tuar a assistência ao parto no contexto brasi-
de recursos humanos em saúde, independen- leiro e trazem implicações para uma proposta
temente da formação, sexo ou qualquer outra de capacitação de não-médicos na área. São
variável. descritos os temas evidenciando a limitação de
recursos e reconhecendo o não-médico como
Coleta dos dados agente do parto e diferenciando a demanda as-
sistencial, que compõem a subcategoria “Uma
Os dados foram coletados entre abril e dezem- coisa é falar de São Paulo, outra coisa é falar do
bro de 1997, mediante entrevista gravada e es- Brasil”, e os temas apontando taxas de mortali-
truturada a partir de um roteiro, que foi ofere- dade materna, cesariana e intervenções obsté-
cido aos entrevistados. A pergunta formulada tricas e refletindo sobre o modelo assistencial e
foi O que o(a) senhor(a) pensa da assistência ao a humanização do parto, que constituem a
parto realizada por não-médicos?, solicitando- subcategoria “Quem precisa de parteiras?”. Na

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apresentação das subcategorias são introduzi- da quantidade de parteiras tradicionais atuan-


dos trechos dos discursos, em itálico, entre as- do no parto e um programa definido para reali-
pas, ilustrando os respectivos temas. zar a cobertura assistencial no domicílio. Ou-
No tema evidenciando a limitação de recur- tro destaque refere-se à participação de não-
sos e reconhecendo o não-médico como agente médicos em hospitais de São Paulo, que man-
do parto foram agrupadas as frases abordando têm obstetrizes para acompanhar as pacientes
questões relativas à disponibilidade de pessoal em trabalho de parto.
para assistência ao parto, que embora institu- “Grandes hospitais em São Paulo, que aten-
cionalizado como ato médico é assistido por dem convênios diferenciados e clínica privada,
diferentes agentes. Oficialmente, todos os par- têm obstetrizes para acompanhar as pacientes
tos hospitalares ocorridos no Brasil são atribuí- em trabalho de parto, mas considerando as di-
dos ao médico, que sempre assina pelo parto, mensões do Brasil, talvez não seja viável contar
pois a remuneração profissional por esse pro- com não-médicos de nível superior para suprir
cedimento é feita exclusivamente a ele. Vale a demanda, podendo-se recorrer a técnicos e au-
reiterar que essa situação é passível de mudan- xiliares de enfermagem, preparando-os para as-
ça desde maio de 1998, quando o Ministro da sistir ao parto e submetendo-os a uma prova”
Saúde assinou a Portaria no 2.815, que inclui o (médico obstetra).
parto realizado por enfermeira obstétrica na É feita referência a uma quantidade de 18
tabela de pagamentos do SUS (Brasil, 1998). mil médicos gineco-obstetras associados à Fe-
“As estatísticas oficiais não são verdadeiras deração Brasileira de Sociedades de Ginecolo-
quanto à maioria dos partos serem realizados gia e Obstetrícia, havendo contudo, avaliação
por médicos. Na periferia das grandes cidades e de que a demanda assistencial é muito grande
na zona rural, a maioria dos partos são realiza- para ser assistida exclusivamente pelo médico.
dos por não-médicos, qualificados ou não, mas Por outro lado, há a constatação de que o nú-
são oficialmente assinados pelo médico e pagos mero de enfermeiras e enfermeiras obstétricas
a ele” (obstetriz). é insuficiente para que elas assumam a respon-
A escassez e heterogeneidade de recursos sabilidade pela assistência direta ao parto; além
humanos para assistência ao parto é uma tôni- do mais, essas profissionais estão concentra-
ca na maioria das entrevistas. Segundo os de- das em São Paulo e Rio de Janeiro, o salário é
poentes, tanto nas cidades como na zona rural baixo e não há estímulo para sua formação.
há auxiliares de enfermagem e parteiras assis- Considerando essa realidade e as dimensões
tindo aos partos, além disso, existem propostas do Brasil, é apresentada a proposta de univer-
governamentais indicando os agentes de saúde salizar a assistência ao parto, com a ampliação
para realizar essa assistência. Essas auxiliares, de cobertura por meio da atuação reconhecida
parteiras e agentes atuam nos serviços de saú- de não-médicos sem curso superior, como téc-
de, ao lado de um número reduzido de obste- nicos e auxiliares de enfermagem especial-
trizes, enfermeiras e enfermeiras obstétricas; mente capacitados.
realizam partos à margem da legislação e assu- A mesma subcategoria empírica, Uma coisa
mem, por vezes, a responsabilidade de médi- é falar de São Paulo, outra coisa é falar do Bra-
cos que mantêm “plantão à distância”. Essa si- sil, inclui as falas que constituem o tema dife-
tuação produz conseqüências assistenciais e renciando a demanda assistencial, relativo à
legais: atendimento precário à parturiente e clientela atribuível ao não-médico. Ao se refe-
processos jurídicos por exercício ilegal da me- rirem às mulheres que potencialmente são a
dicina. Cabe esclarecer que, pela legislação demanda indicada para assistência por não-
profissional de enfermagem, os não-médicos médicos durante o parto, as opiniões dos en-
que podem realizar o parto normal são a enfer- trevistados se dividem. São feitas considerações
meira e a obstetriz/enfermeira obstétrica, as- de ordem cultural para explicar a rejeição do
sim como a parteira titulada no Brasil até 1959 não-médico como agente do parto, pois pode-
ou portadora de diploma/certificado estran- ria provocar “insatisfação emocional, insegu-
geiro, reconhecido ou revalidado até 1988 (Bra- rança, desconforto e sentimento de abandono”.
sil, 1986). Assim, a demanda pelo não-médico ficaria con-
Ainda segundo os discursos, o parto assisti- centrada entre as mulheres de camadas sócio-
do por pessoal leigo é admissível somente em economicamente desfavorecidas, que estão
regiões afastadas e em condições de carência “menos preocupadas com aparências e mais in-
de leitos hospitalares. Nesse caso, a alternativa teressadas em uma boa atenção, carinho e dis-
é assistir ao parto no domicílio, contando com ponibilidade”.
a enfermeira, parteira ou agente comunitário. “Por uma questão cultural, é difícil a mulher
Porém, falta no país um levantamento oficial brasileira da camada social mais alta aceitar o

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parto feito pelo não-médico, a não ser para um lheres aos serviços; nega-se como causa o ex-
atendimento intermediário, com o médico dan- cesso de demanda ou a falta de leitos e médicos.
do atendimento inicial e fechando o processo, “O alto índice de mortalidade materna no
fazendo o parto” (médico obstetra). município de São Paulo é explicado pelo alto
Por outro lado, há a defesa de uma deman- índice de cesáreas e por problemas na estratégia
da indiscriminada do ponto de vista social, sen- de atendimento e na acessibilidade da popula-
do que a expansão do parto assistido por não- ção ao hospital, mas o trabalho recente de en-
médicos somente na rede pública poderia gerar fermeiras obstétricas num hospital de São Pau-
a idéia de que é uma “assistência para pobres”. lo levou à queda do percentual de partos cesá-
“Existe demanda para a assistência ao parto rea” (enfermeira de saúde pública).
realizada por não-médicos entre pacientes de As questões ligadas à mortalidade materna,
zona rural e urbana, pobres, da rede SUS, de à qualidade dos serviços e ao excesso de cesa-
convênios ou particulares, indistintamente” rianas são concebidas, em alguns discursos,
(médico obstetra). como temas de natureza econômica e política.
“O novo modelo assistencial, com o parto São feitos comentários relativos à forma inade-
realizado por enfermeira obstetra, se introduzi- quada de remunerar o médico pelo parto, con-
do só na rede pública, pode ser entendido não siderando que a melhora dos indicadores de
como o adequado, mas como assistência à ges- qualidade depende de “vontade política”, que
tação e parto para pobres, simplificada pela falta inclui maiores gastos com o pagamento da
de médico bom para todos” (médica sanitarista). grande demanda de partos no país. Quanto ao
Nesse âmbito, as alternativas que aparecem índice abusivo de cesáreas, aparecem menções
são um trabalho contra a cultura do parto me- à formação e atuação médica. Nesse sentido,
dicalizado, privilegiando as camadas sociais arrolam-se como causas a limitada experiência
mais altas, que formam opinião, e as institui- do médico em assistir ao parto normal, sua falta
ções às quais elas se relacionam, assim como a de disponibilidade para acompanhar o traba-
inserção do não-médico em equipes ou pro- lho de parto e a possibilidade de programar a
gramas, a exemplo do Programa de Saúde da cesariana, atendendo interesse próprio, da fa-
Família, do Ministério da Saúde. É mais prová- mília da gestante ou da instituição. A participa-
vel a rejeição pelas mulheres quando a atuação ção de não-médicos qualificados na assistên-
de parteiras não profissionais é em âmbito hos- cia ao parto é considerada como uma estraté-
pitalar, mas de maneira geral, a aceitação do gia para reduzir a morbimortalidade materna e
parto feito por não-médicos depende da quali- fetal, cesáreas e intervenções desnecessárias.
dade de seu trabalho e da satisfação que pode “A pequena experiência prática em parto
produzir. normal e experiência maior em cirurgia duran-
“O grau de aceitação do não-médico na as- te a formação médica, leva à opção pela cesa-
sistência ao parto depende da qualidade e do riana, que na assistência privada é de 100%,
grau de satisfação com o trabalho prestado, e a sendo programada para atender o interesse da
demanda a ser assistida pelo não-médico não família, do médico e da instituição” (obstetriz).
deve ser determinada pela classe sócio-econô- “O médico está dividido nos seus afazeres e
mica” (enfermeira obstétrica). muitos nem se dispõem a acompanhar o traba-
Na subcategoria “Quem precisa de partei- lho de parto, como se isso fosse uma coisa menor
ras?”, os aspectos epidemiológicos relaciona- e que ele não gosta de fazer” (médico obstetra).
dos à saúde materna ocupam lugar de desta- “Em nosso meio, a enfermeira especializada
que ou são mencionados como pano de fundo é uma necessidade porque o médico muitas ve-
em alguns discursos, quando da referência ao zes não faz mais o acompanhamento do traba-
parto assistido pelo não-médico. Assim, foram lho de parto; não tem tempo e prefere operar pa-
agrupadas as frases que deram origem ao tema ra ficar livre e resolver logo o problema” (médi-
apontando taxas de mortalidade materna, ce- co obstetra).
sariana e intervenções obstétricas. Refletindo sobre o modelo assistencial e a
As mortes maternas são denunciadas como humanização do parto foi considerado um te-
uma “vergonha”, pois se mantêm em patama- ma relacionado a essa mesma subcategoria em-
res elevados, apesar dos óbitos serem evitáveis pírica e inclui a manifestação dos entrevista-
e decorrentes, em sua maioria, de partos hos- dos sobre a política de saúde, o modelo de as-
pitalares. Algumas das causas apontadas como sistência ao parto e a atuação de médicos e
responsáveis por esses indicadores são o alto não-médicos nessa assistência.
índice de cesáreas, a falta de pessoal qualifica- Diversos discursos concebem o parto como
do, problemas na organização da assistência, na evento fisiológico e natural; contraditoriamen-
estratégia de atendimento e no acesso das mu- te, o caráter fisiológico do parto é denunciado

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como mote no modelo assistencial vigente que “Para a mulher, a vantagem do parto reali-
fragmenta e desqualificada a assistência, ao zado pela enfermeira é decorrente da possibili-
mesmo tempo em que trata o parto como doen- dade de humanização do contato e personali-
ça. Esse modelo é tido como responsável pela zação, em comparação com o parto realizado
sofisticação desnecessária, abuso de interven- pelo médico, e, o custo adicional gerado pelo ex-
ções médicas e alto custo da assistência. cesso de intervenções médicas no parto cria
A contraposição entre parto hospitalar e uma possibilidade de transformação dessa as-
parto domiciliar ocupa lugar em várias entre- sistência nos seguros e convênios médicos” (mé-
vistas. O parto hospitalar é considerado mais dica sanitarista).
indicado por oferecer segurança, mas são apon- Questões de caráter mais amplo são cita-
tadas dificuldades do hospital enquanto local das, revelando uma visão ampliada da proble-
do parto: induz a iatrogenias, desumanização e mática assistencial: o poder econômico, as po-
tecnologização; nem sempre conta com estru- líticas de saúde, a responsabilidade do Estado,
tura adequada para assistir à demanda; é pou- a cidadania incipiente das mulheres enquanto
co eficaz para atender as necessidades da ges- consumidoras de serviços de saúde e as condi-
tante junto à comunidade. O deslocamento do ções de trabalho dos profissionais de saúde.
parto do domicílio para o hospital é apontado A categoria empírica “a parteira que quere-
como uma alternativa administrativa que visa mos (ou devemos) e a parteira que podemos”,
racionalizar a utilização de recursos (infra-es- aborda as questões relacionadas à configura-
trutura, equipamentos e pessoal), que seriam ção da parteira enquanto mulher e profissional
insuficientes para assistir ao parto domiciliar não-médico. São apresentados e discutidos os
com segurança. O parto domiciliar, por outro posicionamentos dos entrevistados quanto às
lado, aparece como saída para reverter o atual possibilidades de inserção do não-médico na
modelo assistencial. O pré-requisito seria ca- assistência ao parto, suas atribuições, autono-
pacitar não-médicos para prestar uma assis- mia, remuneração, relacionamento com o mé-
tência domiciliar profissional. Uma alternativa dico e a parturiente, formação e qualificação
considerada intermediária é a casa de parto, profissional.
mas existe falta de clareza quanto a suas carac- Para tanto, os dados empíricos foram agru-
terísticas. De qualquer modo, os discursos são pados, formando as subcategorias “Limites e
pouco explícitos ao correlacionar o parto assis- delimitações da prática”, derivada dos temas
tido por não-médicos e o local para sua reali- “quando o médico é o coordenador”, “unir para
zação. Há uma certa ambigüidade, que ora re- vencer”, “dando um lugar à parteira” e “por
mete o não-médico para o parto hospitalar, ora conta do numerário”; “Médicos, médicos... mu-
associa idealmente o parto domiciliar à qualifi- lheres à parte”, constituída pelos temas “somos
cação profissional de não-médicos. todos iguais, mas o homem faz a diferença” e
“A demanda pelo parto hospitalar foi provo- “uma questão de sensibilidade (ou solidarieda-
cada pelo discurso dos profissionais da saúde de)”; “Formar e qualificar”, como produto dos
sobre sua segurança, porém sem a devida estru- temas “definindo a parteira”, “saber fazer faz a
tura para esse atendimento. O processo de mu- diferença”, “o (des)serviço das escolas de enfer-
dança do modelo de assistência hospitalar, tec- magem” e “não são meras filigranas”. Como na
nológica e intervencionista para uma assistên- categoria anterior, as subcategorias e temas
cia domiciliar profissional, com acompanhante são acompanhados de trechos dos discursos,
e respeito à fisiologia do parto, é lento, mas não em itálico, entre aspas.
há outra maneira de devolver a humanização No tema quando o médico é o coordenador,
ao parto” (obstetriz). a relação profissional médico-parteira é conce-
Frente às conjecturas apresentadas, a refe- bida nos discursos como uma relação de poder,
rência à necessidade de atuação do não-médi- que define o médico como chefe, responsável e
co associa-se à humanização do parto, promo- coordenador da assistência ao parto. Desse
vendo o vínculo entre o profissional e a partu- ponto de vista, a parteira insere-se na assistên-
riente, personalizando o cuidado, acolhendo e cia como subordinada ao médico, sendo que
oferecendo disponibilidade e atenção em tem- um argumento presente para justificar essa re-
po integral, como fatores que conduzem ao lação hierárquica reporta-se à organização do
parto normal. Nesse sentido, os relatos refor- trabalho e à necessidade de haver alguém que
çam uma oposição entre o tipo de assistência decida “quando dois discordam”. Um dos dis-
prestada por médicos e não-médicos, explici- cursos considera que o “modelo tradicional” de
tando em alguns discursos que outros fatores assistência, com a equipe chefiada por médico,
estão envolvidos entre os determinantes da as- traz uma contradição frente à concepção do
sistência ao parto. parto como um ato não-médico e considera di-

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fícil reduzir o excesso de intervenções sobre o dade técnica e negando sua submissão ao mé-
parto, quando a decisão sobre sua condução dico, a disciplina, respeito e confiabilidade fren-
cabe ao médico. te ao médico aparecem como valores prescri-
“Considerando as atuais relações profissio- tos para sua conduta.
nais de poder e a organização do trabalho, as “O trabalho em equipe pressupõe partilha,
decisões sobre a condução do parto devem per- democratização das decisões e ausência de he-
manecer sob a responsabilidade do médico; gemonia sobre as ações, e a finalidade do traba-
mas, o modelo tradicional, com a equipe chefia- lho em equipe deve ser estratégica para se atin-
da por um médico, traz uma contradição frente gir a meta social de aumentar a cobertura e
à concepção de parto como ato não-médico” qualidade da assistência e diminuir os índices
(médica sanitarista). de morbimortalidade” (enfermeira obstétrica).
“O profissional não-médico deveria estar in- “Em nosso meio não existe a cultura de se
serido na equipe obstétrica sob subordinação do trabalhar com a enfermeira obstétrica, diferen-
obstetra” (médico obstetra). temente de outros países, mesmo da América do
O tema unir para vencer inclui as frases que Sul, onde os obstetras trabalham com uma har-
se referem à divisão de trabalho entre médicos monia e integração muito grande com a enfer-
e não-médicos, subjacente à idéia de trabalho meira” (médico obstetra).
em equipe. Os discursos dos entrevistados en- Ainda como tema da subcategoria “Limites
fatizam a importância do trabalho colaborati- e delimitações da prática”, em dando um lugar
vo, harmônico e integrado entre médicos e não- à parteira foram agrupadas as frases temáticas
médicos na assistência ao parto e o limite para que manifestam contradições ligadas às suas
a atuação do não-médico é definido pelo des- atribuições. Em algumas entrevistas, a parteira
vio do parto de seus parâmetros de normalida- é tida como uma profissional que deve estar in-
de, enquanto processo fisiológico. serida em todas as fases do processo de assis-
“Como integrante da equipe de assistência à tência e instâncias de decisão no âmbito da
saúde da mulher, o enfermeiro tem que ajudar o saúde, sendo que a capacitação ético-política
profissional médico na hora do parto e tem que da profissional é referida como uma condição
ficar ao lado do médico para auxiliar no diag- para essa atuação. Além disso, cabe a ela parti-
nóstico e tratamento” (enfermeira obstétrica). cipar ativamente na orientação dos acadêmi-
“A enfermeira obstétrica, a obstetriz, tem que cos de medicina que trabalham junto com o
trabalhar em equipe não por submissão, mas médico obstetra, podendo ainda, realizar uma
por um limite de função profissional (a anor- “boa intervenção” em termos de capacitar agen-
malidade no processo)” (obstetriz). tes de saúde e outros não-médicos para assistir
Ao mesmo tempo em que os discursos a- ao parto. Em relação ao médico, a parteira é
pontam para uma finalidade estratégica do tra- considerada um profissional mais barato, pois
balho em equipe, considerando sua dimensão dependendo do hospital, também desempe-
social e política, a assistência ao parto é reafir- nha atividades administrativas e educativas.
mada como ato médico, na medida em que o “O profissional deve ser capacitado para se
princípio da “função delegada” é apontado co- inserir em todas as instâncias de decisão e para
mo saída para a atuação do não-médico no deliberar e intervir no âmbito das políticas de
parto, sendo que a parteira pode ter um papel saúde. A capacitação ético-política torna o pro-
de coadjuvante do médico, com a atribuição de fissional competente para se posicionar en-
dar carinho à parturiente e acompanhar o pe- quanto profissional e cidadão frente às políticas
ríodo de dilatação, mas também pode ser res- e às propostas de modelos administrativos e as-
ponsável por assistir integralmente ao parto sistenciais para a saúde” (obstetriz).
que ocorre de forma natural, tendo o médico “O não-médico deve estar integrado à equi-
na retaguarda. pe de saúde em todas as fases do processo de as-
“Do ponto de vista dos serviços, a aceitação sistência (planejamento, desenvolvimento e
de função delegada na assistência ao parto é avaliação) e a assistência ao parto natural pres-
uma saída (...) o não-médico pode inserir-se na tada pelo não-médico pode ser de qualidade,
equipe como um coadjuvante que o médico tem desde que seja planejada e conte com recursos”
para dar carinho à parturiente e acompanhar o (enfermeira obstétrica).
período de dilatação; o médico pode estar ou Em outras entrevistas, o lugar reservado à
não presente durante o trabalho de parto, mas parteira é mostrado de modo focal, consideran-
ele faz o período expulsivo” (médico obstetra). do que ela é alguém com competência técnica
Embora alguns discursos defendam uma e legal, disponibilidade de tempo e paciência
posição de autonomia do não-médico na assis- para acompanhar o trabalho de parto e realizar
tência ao parto, reafirmando sua responsabili- o parto normal com qualidade.

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“A enfermeira obstétrica tem ampla compe- no parto em função das aspirações materiais
tência para fazer a assistência ao parto normal, do profissional médico, que limitam sua dispo-
adequadamente legalizada e delimitada” (mé- nibilidade de tempo para assistir ao parto.
dico obstetra). “A grande polêmica entre as enfermeiras se
“Na assistência ao parto, a enfermagem en- refere mais à remuneração e reconhecimento
quanto profissão, recuperaria um importante institucional na assistência ao parto que à ques-
campo de atuação prática, de cuidado profis- tão pedagógica da formação” (enfermeira obs-
sional competente e de cuidado fim, não só de tétrica).
cuidado meio” (médica sanitarista). “É válida a assistência ao parto realizada
Alguns entrevistados colocaram em evidên- por não-médicos capacitados porque na con-
cia os interesses econômicos e corporativos que juntura atual, no primeiro ano de atuação no
perpassam a relação médico/não-médico na interior, o médico quer ganhar dinheiro, com-
assistência ao parto, conformando o tema por prar a casa própria, o carro e dar entrada numa
conta do numerário. Embora seja apresentada minifazenda e não sobra tempo para dar essa
de forma bastante determinante em certos dis- assistência” (enfermeira obstétrica).
cursos, essa questão é omitida na maioria de- A subcategoria “Médicos, médicos... mulhe-
les. Um dos entrevistados refere que, com a re- res à parte” traz à tona as relações de gênero
muneração pela assistência ao parto na forma que se estabelecem entre médicos, não-médi-
de pagamento por procedimento, médicos e en- cos e mulheres na assistência ao parto. No te-
fermeiras passaram a disputar entre si pela sua ma somos todos iguais, mas o homem faz a di-
realização; essa situação é exacerbada na me- ferença foram agrupadas as manifestações dos
dida em que o médico depende cada vez mais entrevistados sobre a conveniência ou não da
do trabalho assalariado e da vinculação a con- participação de não-médicos do sexo masculi-
vênios, sendo que no resgate da parteira existe no na assistência ao parto. Embora prevaleça a
uma questão monetária, dado que os serviços posição de que não deve haver discriminação
não pagam para que médico fique à distância, quanto à atuação do parteiro, na maioria dos
na retaguarda dos partos assistidos por ela. discursos essa posição vem acompanhada de
“No resgate da enfermeira obstétrica existe algum senão. São alegações de ordem legal, co-
uma questão complicada, que não é profissio- mo a Constituição Federal, ou cultural; nesse
nal ou técnica, mas monetária (...) a partir do caso, remete-se ao leigo, às mulheres e à popu-
pagamento do parto como um procedimento, lação rica a opção pelo médico homem e pela
médico e enfermeira disputam entre si pela sua parteira mulher.
realização” (obstetriz). “O não-médico pode ser do sexo masculino
“A transformação do parto num procedi- ou feminino, indiferentemente” (médico obs-
mento da enfermagem obstétrica deve ser prece- tetra).
dida de um período de quebra de resistência, “Não existe diferença entre a enfermeira obs-
por ser uma circunstância que provocaria reta- tétrica e o enfermeiro obstétrico, exceto por uma
liação por parte da categoria médica, pois com determinação anterior de que a enfermagem é
o parto realizado por enfermeiras, a curto prazo uma profissão predominantemente feminina”
não haveria vantagens para os médicos, que ve- (obstetriz).
riam isso como uma perda de espaço profissio- “Sendo um bom profissional, é indiferente
nal” (médica sanitarista). que o médico seja homem ou mulher, mas é
Essas afirmações são reforçadas pelo dis- cultural que o leigo confie mais no homem”
curso que estabelece a distinção outrora feita (obstetriz).
entre as gestantes nas maternidades de São O respeito aos papéis assim definidos gera
Paulo: mais confiança e poupa a mulher do constran-
“No interior de São Paulo, os partos normais gimento e incômodo de confundir médico com
de gestantes não pagantes, do Funrural, eram não-médico, pois a aceitação do não-médico
realizados pela enfermeira obstétrica ou por do sexo masculino pressupõe mudanças nos
técnicas e auxiliares de enfermagem treinadas, “hábitos, costumes e tradições”. A subalternida-
e os partos de gestantes pagantes, do INAMPS, de de gênero da parteira fica evidente quando
eram, na sua maioria, realizados por médicos” um dos entrevistados afirma de modo categó-
(enfermeira obstétrica). rico que o não-médico só pode ser mulher, ad-
Vale destacar ainda dois comentários: um mitindo o homem na assistência ao parto ex-
deles, submetendo a “questão pedagógica da clusivamente na posição de médico ou em si-
formação” da parteira à sua remuneração e re- tuação de emergência.
conhecimento institucional e, outro, consta- “A qualificação fica restrita ao sexo femini-
tando a validade do trabalho do não-médico no, porque na sala de parto as mulheres confun-

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FORMAÇÃO E INSERÇÃO DE PROFISSIONAIS NÃO-MÉDICOS NA ASSISTÊNCIA AO PARTO 693

dem mais facilmente o enfermeiro com o médi- foi mencionado como uma lembrança às pro-
co, com aquele que vai resolver o parto através fissionais remanescentes no mercado de traba-
da cesárea” (enfermeira obstétrica). lho. O termo parteira foi sistematicamente pou-
“O profissional não-médico só pode ser do pado nos discursos, sendo usado particular-
sexo feminino, e o indivíduo não-médico do se- mente em menção às parteiras tradicionais e
xo masculino deve atuar apenas em situação não-médicos sem qualificação formal ou legal
emergencial, como bombeiro ou guarda civil, e para assistir ao parto.
não como uma coisa planejada” (médico obs- “O profissional não-médico é a enfermeira
tetra). obstetra” (médica sanitarista).
O tema uma questão de sensibilidade (ou “A enfermeira obstétrica é o profissional
solidariedade) expressa a visão sobre a nature- não-médico ideal para assistir ao parto, ainda
za feminina do parto, considerando que no par- que seja utópico” (obstetriz).
to assistido por não-médicos do sexo feminino “Os não-médicos são principalmente as en-
estabelece-se uma relação de identidade entre fermeiras obstétricas, que têm preparo para
a profissional e a mulher, favorecendo um cui- prestar essa assistência, mas a denominação do
dado “solidário”. profissional não está clara: enfermeira obstétri-
“Pela relação de identidade feminina e pela ca, enfermeira obstetra, enfermeira obstetriz,
formação, o cuidado no parto feito por enfer- obstetriz” (enfermeira de saúde pública).
meiras (mulheres) pode ser mais solidário que Quanto à escolaridade, a maioria dos entre-
aquele realizado por médicos (homens ou mu- vistados reafirma a formação de nível superior,
lheres)” (médica sanitarista). compatível com a atual formação da enfermei-
Porém, é feita a ressalva de que os homens ra obstétrica. Vale, porém, considerar que a de-
preparados e sensíveis podem ter essa mesma finição da parteira como enfermeira obstétrica
postura na assistência, sendo injusto excluir foi acompanhada de objeções, traduzidas pe-
aqueles que “têm vontade de ser parteiro”. las seguintes ressalvas: é o ideal, é utópico, é
“Os homens têm tanta sensibilidade quanto um mito, é legal. Um dos discursos afirma que
as mulheres para assistir ao parto e, desde que embora a academia faça restrições a incluir ou-
preparados, podem assumir essa assistência.” tros não-médicos, além de enfermeiras e auxi-
(enfermeira obstétrica) liares de enfermagem na assistência ao parto,
“Mesmo havendo, pela natureza da assistên- sua qualificação deve abranger um maior nú-
cia ao parto, uma maior proximidade do sexo mero de possibilidades.
feminino nessa função, é injusto discriminar o “O ideal é que o não-médico tenha nível su-
homem que tem vontade de ser parteiro” (médi- perior, podendo ser a enfermeira especializada
co obstetra). em obstetrícia” (médico obstetra).
A condição feminina da parteira é parcial- “A enfermeira obstétrica e a antiga obstetriz
mente reafirmada como indissociável de seu têm competência legal para fazer partos e a me-
papel na assistência ao parto. Segundo uma vi- lhor qualificação profissional do não-médico é
são generificada do processo do parto, a partei- a de enfermeira obstétrica, embora exista dúvi-
ra ideal é, concomitantemente, mulher e não- da quanto à necessidade do nível universitário”
mulher, superando sua condição por meio da (médico obstetra).
complementaridade dos papéis sexual e social “Enfermeiras, obstetrizes e parteiras regis-
na prática profissional. Para alguns entrevista- tradas no Coren são os não-médicos que legal-
dos a parteira deve ser do sexo feminino (pre- mente podem realizar o parto. A idéia de que o
ferencial ou exclusivamente), para outros pode parto só pode ser realizado por especialista é
ser tanto do sexo feminino como masculino. um mito a ser superado, e o não-médico deve ser
A subcategoria “Formar e qualificar” trata pensado de forma a abranger um número gran-
da formação e qualificação profissional da par- de de possibilidades de qualificação” (enfermei-
teira. O termo “não-médico”, utilizado para de- ra obstétrica).
nominar a parteira na questão formulada aos Sob o tema saber fazer faz a diferença foram
entrevistados, foi sendo delimitado e melhor agrupadas as falas dos entrevistados que se re-
definido no decorrer das entrevistas, dando portam à capacitação do não-médico na assis-
origem ao tema definindo a parteira. Assim, na tência ao parto. O destaque é para a importân-
maioria dos discursos a parteira é explicita- cia da capacitação técnica específica, com vas-
mente definida como a enfermeira obstétrica, ta habilidade prática. Ao mesmo tempo em que
sendo que denominações similares, como en- alguns discursos desprezam a formação atual
fermeira obstetra ou enfermeira obstetriz, fo- da enfermeira obstétrica, por ser excessivamen-
ram usadas como referência àquela mesma te teórica, outros se referem à sua capacitação
profissional. Por sua vez, o título de obstetriz de forma positiva. Consideram que essa profis-

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sional é adequadamente preparada para pres- conteúdos de administração e desmereceram a


tar assistência no pré-natal, parto e puerpério obstetriz por seu perfil de prática essencialmen-
com integralidade, segurança e qualidade. te assistencial” (obstetriz).
“Parto é habilidade, quanto mais você faz, Outro discurso pondera que, pelo fato de as
mais sabe fazer. A enfermeira obstétrica atual- enfermeiras considerarem a assistência ao par-
mente é mal preparada, só conhece a teoria e to uma especialidade da enfermagem, elas não
não sabe trabalhar no pré-natal nem cuidar do aceitam outros profissionais não-médicos nes-
trabalho de parto” (obstetriz). sa atividade. Em contraposição, houve referên-
“A enfermeira obstetra reúne qualidades pa- cia à extinta escola de parteiras, como uma for-
ra assistir ao parto: formação técnica, conheci- ma de garantir a formação profissional, com
mentos sobre gestante, parto e puerpério” (mé- possibilidade de desenvolver experiências prá-
dica sanitarista). ticas, sob instrução médica.
Existem ainda manifestações relativas a ou- “A criação de outro profissional não-médico
tros aspectos inerentes ao tema. Um dos entre- para assistir ao parto encontraria resistência
vistados insiste na necessidade de formar pro- entre as enfermeiras, que o consideram sua es-
fissionais responsáveis e comprometidos com pecialidade” (médico obstetra).
seu trabalho enquanto prática social, através “A falta de pessoas não-médicas qualifica-
da capacitação ético-política. das para assistir ao parto é histórica, sendo que
“A assistência ao parto exige profissional antes, com a chamada escola de parteiras, a
com capacitação técnica específica, seja médico pessoa ia vocacionada desde o início, recebendo
ou enfermeira. Através da capacitação ético-po- instruções de médicos e pondo a mão na massa”
lítica a escola deve formar profissionais respon- (médico obstetra).
sáveis por sua atualização técnico-específica e Essa subcategoria empírica inclui ainda o
comprometidos consigo mesmos, com o pacien- tema não são meras filigranas, constituída por
te e com a sociedade” (obstetriz). frases que abordam sob outros ângulos a ques-
Há, também, referência ao papel das esco- tão da formação e qualificação da parteira. A
las de graduação e à falta de enfermeiras obs- maioria faz menção a aspectos formais da ca-
tétricas qualificadas para exercer a função do- pacitação, como o tipo e duração dos cursos. A
cente; no entender desse entrevistado, a for- indicação de qualificar a parteira de nível su-
mação da parteira deve ser feita por médicos. perior retorna em tom de dilema: se por um la-
“Há muito tempo não se pode dizer que haja do favorece a formação de parteiras com maior
uma enfermeira capacitada para fazer o traba- capacidade de discernimento, para um desem-
lho bem feito (realizar partos) e faltam enfer- penho técnico e ético-político de qualidade na
meiras obstétricas qualificadas para assistir ao assistência ao parto, por outro, representa uma
parto e ensinar. A formação de não-médicos de- formação longa e onerosa frente às necessida-
ve ser feita por médicos, sozinhos ou em conso- des do país e à falta de reconhecimento finan-
nância com as pessoas responsáveis por essa do- ceiro dessa profissional.
cência” (médico obstetra). “As formas de qualificação profissional para
O (des)serviço das escolas de enfermagem assistência ao parto vêm sendo muito discuti-
intitula um tema, englobando as frases que atri- das, devido à formação onerosa e longa da en-
buem a carência de parteiras à omissão das es- fermeira obstétrica frente às necessidades do
colas de enfermagem em qualificar profissio- país e à falta de reconhecimento financeiro des-
nais para assistir ao parto. Um dos discursos sa especialista. No entanto, a qualificação que
enfatiza que a resistência política dessas esco- se restringe à capacitação técnica pode trazer
las em absorver a formação de obstetrizes é res- alguma satisfação pessoal na atuação profissio-
ponsável pela opção, advinda de setores de fo- nal, mas significa trabalho alienado” (obstetriz).
ra da enfermagem, por formar o técnico de obs- Aparecem as seguintes sugestões: um curso
tetrícia. O mesmo discurso pondera que as es- de nível técnico, intermediário entre o colegial
colas, na tentativa de valorizar a profissão de en- e a faculdade; um curso de nível universitário,
fermeira, desprezaram a qualificação da obste- com formação comum à enfermagem nos três
triz, cujo perfil seria essencialmente assistencial. primeiros anos e o último ano específico e um
“A resistência das escolas de enfermagem pa- curso específico para formar obstetrizes, sepa-
ra qualificar profissionais para assistir ao parto rado do curso de enfermagem desde o início.
é de caráter político e não técnico, pois a incor- “O não-médico deve fazer um curso supe-
poração da formação de obstetrizes pelas esco- rior, que pode ser como hoje, com um curso ge-
las de enfermagem ainda não está bem resolvi- ral e depois uma especialização, ou voltar ao
da. Na década de 80, tentando valorizar a pro- passado e ser diretamente numa escola de par-
fissão de enfermeira, as escolas privilegiaram os teiras” (médico obstetra).

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FORMAÇÃO E INSERÇÃO DE PROFISSIONAIS NÃO-MÉDICOS NA ASSISTÊNCIA AO PARTO 695

Um dos entrevistados considera que pes- meiras obstétricas e um dos médicos obstetras,
soas que trabalharam com obstetrizes e partei- o não-médico deve assistir mulheres economi-
ras em décadas anteriores aos anos oitenta têm camente desfavorecidas.
a intenção de capacitar parteiras sob outras Um aspecto relevante, que aparece na qua-
modalidades (cursos de nível técnico, elemen- se totalidade dos discursos (exceto o de uma
tar ou treinamento de parteiras); daí, a impor- obstetriz e uma enfermeira obstétrica) refere-
tância dada às escolas de enfermagem nesse se à importância do não-médico para reduzir o
resgate para manter a formação universitária. custo da assistência obstétrica e a carga de tra-
“O trabalho da enfermeira obstétrica se per- balho do médico.
deu dos anos oitenta para cá e seu resgate será A interpretação dos depoimentos, tomados
lento. A profissão (obstetriz, enfermeira obstétri- em seu conjunto e analisados em sua histori-
ca) tem que ser resgatada via escolas, senão será cidade e relação dialética, revela uma visão da
formado o técnico, em vez de um profissional de realidade assistencial parcialmente articulada
nível universitário, que tem mais capacidade de às questões conjunturais e estruturais do país.
discernimento” (obstetriz). Na maioria dos discursos, a política de saúde é
Outro aspecto ressaltado refere-se à dura- fracamente relacionada à política econômica e
ção de um curso de graduação inferior a qua- as críticas ao modelo assistencial apenas tan-
tro anos, considerando que isso poderia com- genciam as questões centrais, referentes ao
prometer a demanda de alunos e os “direitos e papel do Estado no campo da saúde e da edu-
prestígio da profissão”. Um dos discursos apon- cação.
ta para as dificuldades de funcionamento con- A concepção do SUS brasileiro, cabível
comitante de cursos de formação de médicos e num Estado com políticas públicas condizen-
de parteiras, considerando que para evitar re- tes às necessidades sociais, opera com incom-
sistência e competição dos médicos, deve ha- patibilidades de ordem estrutural. Na área da
ver planejamento e engajamento da chefia mé- saúde da mulher, não obstante o Programa de
dica dos serviços que servem como campo de Assistência Integral à Saúde da Mulher e pro-
ensino prático. gramas correlatos, sua construção e imple-
“Para a qualificação do não-médico pode-se mentação vêm sendo regidas por uma lógica
pensar num curso específico de obstetrícia, em que privilegia grupos prestadores de serviços,
nível intermediário entre o colegial e a faculda- em disputa por um mercado constituído de
de, tal qual o da antiga obstetriz (...) embora usuárias com cidadania restrita. Além disso, o
correndo o risco de que uma medida paliativa SUS depara-se com financiamento insuficiente
se torne definitiva” (médico obstetra). e burocratização no nível das instâncias de de-
“Como os serviços estão sob a chefia do mé- cisão, dificultando o cumprimento de seus
dico, se ele não for engajado e responsabilizado princípios.
pela formação de não-médicos, ele pode resistir As falas dos entrevistados põem em desta-
a incluir essa formação entre os objetivos da que, com ênfase bastante heterogênea, aspec-
instituição que ele chefia” (médico obstetra). tos epidemiológicos e corporativos no campo
da saúde. O parto concebido como ato médico
Convergências e divergências nos discursos representa uma contradição ante a diversidade
de agentes que prestam essa assistência – obs-
Considerando as tendências dos discursos pa- tetrizes, enfermeiras, auxiliares, parteiras tra-
ra apontar quem é a parteira que deve assistir dicionais, agentes de saúde etc. – em São Paulo
ao parto, as principais convergências indicam e no Brasil.
o não-médico que ajuda a universalizar a assis- Detecta-se nos discursos uma preocupação
tência ao parto, reduzir a morbimortalidade recorrente em localizar a problemática assis-
materna, fetal e neonatal e a incidência de ce- tencial do ponto de vista geográfico, que induz
sarianas, naturaliza a assistência, reduz inter- à análise do quadro epidemiológico com base
venções desnecessárias, humaniza o parto e na distribuição espacial dos recursos de saúde
melhora a qualidade do serviço. A opção pelo e torna pouco explícitos os determinantes de
parto domiciliar assistido por não-médicos, no ordem política, demográfica e sócio-econômi-
entanto, aparece unicamente no discurso de ca. Embora os recursos, demandas e perfis epi-
uma obstetriz e de uma enfermeira obstétrica. demiológicos no Estado de São Paulo encon-
Os discursos divergem, ainda, quanto às mu- trem correspondência em outras localidades, a
lheres que devem ser atendidas pela parteira. contraposição feita nas entrevistas entre a si-
Para a maioria, a demanda de mulheres não tuação da assistência ao parto em São Paulo e
deve ser discriminada do ponto de vista sócio- no restante do país, salienta diferenças que
econômico, enquanto que para uma das enfer- muitas vezes ocultam a essência do fenômeno.

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Apesar dos problemas na assistência obsté- fazendo emergir as relações de poder como o ei-
trica – mortes maternas, cesarianas, interven- xo definidor da inserção da parteira na assis-
ções desnecessárias, partos à mercê do poder tência. As manifestações que preconizam o tra-
médico – serem de âmbito nacional, as solu- balho em equipe, desvelam o discurso ideológi-
ções parecem ser absolutamente localizadas co que legitima a subordinação da parteira ao
em função dos recursos disponíveis, sugerindo médico.
limitações para estabelecer propostas abran- Segundo os depoentes, a parteira ideal é
gentes para realidades diferenciadas. Além dis- mais qualificada que outros não-médicos e co-
so, os discursos nem sempre convergem em re- nhece seu devido lugar na assistência. Esse lu-
lação aos problemas e soluções que permeiam gar, aparentemente estabelecido por critérios
o contexto da assistência ao parto, a despeito técnicos – normalidade e fisiologia do parto – é
do universo deste estudo constituir-se de pro- delimitado politicamente, na medida em que
fissionais que ocupam posições de liderança os limites de atuação da parteira são historica-
nas áreas da educação e saúde reprodutiva. mente ditados por sua situação de mulher e de
Assim, prevalece a defesa de médicos e par- não-médico.
teiras mais qualificadas para mulheres urba- Conforme mostram os nove discursos, é
nas, ricas, de São Paulo, e parteiras suficientes preferível que a parteira possua capacitação
para todas as outras mulheres. Nesse sentido, técnica específica, seja qualificada em nível su-
as parteiras devem existir para assistir partos e perior e titulada como obstetriz ou enfermeira
atender médicos, podem fazer o “milagre” de obstétrica. Porém, as opções para capacitação
reverter indicadores de mortalidade materna e formal da parteira expressam a ambivalência
de cesarianas e representam a “esperança de própria das situações de conflito. Pode-se iden-
um parto humano”. tificar nas entrevistas uma dificuldade em ob-
Em resumo, pode-se dizer que as mulheres jetivar a parteira, fazendo remeter sua repre-
de São Paulo ou do Brasil, sofrem das mesmas sentação enquanto profissional, aos parâme-
“mazelas” no parto. As diferenças ficam por tros estabelecidos pela divisão técnica e social
conta da exclusão social, riqueza mal distribuí- do trabalho, profissionalização, autonomia e
da e falta de acesso aos serviços. reserva de mercado de trabalho. Prevalece, no
Segundo a maioria dos entrevistados, a entanto, uma postura hesitante ao definir os
condição feminina da parteira é parcialmente vínculos da parteira na assistência ao parto.
reafirmada como indissociável de seu papel na Assim, a parteira ideal (aquela que quere-
assistência ao parto. Segundo uma visão gene- mos e devemos) afasta-se e, simultaneamente,
rificada do processo do parto, a parteira ideal aproxima-se da parteira possível (aquela que
é, concomitantemente, mulher e não-mulher, podemos), num jogo oculto de contradições
superando sua condição por meio da comple- que tem a incerteza como “pano de fundo”. Es-
mentaridade dos papéis sexual e social na prá- sa incerteza, por sua vez, aparece como decor-
tica profissional. Para cinco dos entrevistados, rente de um lapso de referência na formação e
a parteira deve ser, preferencial ou exclusiva- inserção de parteiras na assistência ao parto.
mente do sexo feminino (uma obstetriz, uma
enfermeira obstétrica, a enfermeira de saúde
pública, a médica sanitarista e um médico obs- Conclusão
tetra), enquanto que para os demais é indife-
rente o sexo do profissional. A parteira ideal – aquela que queremos e deve-
Outros elementos constitutivos da parteira mos – é revelada nos discursos sob duas pers-
que são objeto de divergência nos depoimen- pectivas. Por um lado, essa parteira é transitó-
tos referem-se principalmente à sua relação ria e representa o não-médico que “não chegou
com o médico. Embora os entrevistados sejam lá”, que substitui o médico diante da carência
unânimes em reconhecer a complementarida- de recursos para assistir todas as mulheres. A
de do trabalho de médicos e parteiras, em fun- parteira é um “mal necessário” que deve existir
ção de seus processos de trabalho e dos parâ- enquanto houver pobreza, falta de médicos e
metros de normalidade no parto, os três médi- mulheres que os médicos não querem assistir.
cos obstetras enfatizam uma relação profissio- Por outro lado, essa parteira é o reverso ou an-
nal hierárquica, enquanto os demais depoen- títese da parteira transitória; é a parteira de
tes, todos mulheres, valorizam a atuação abran- sempre, que sempre existiu e existirá, ou seja,
gente e autônoma da parteira. “uma mulher muito especial”.
Os aspectos acima destacados aparecem Como síntese, obtida a partir da superação
nos discursos muito mais relacionados ao pro- dialética da parteira ideal definida nos discur-
fissional médico do que à mulher parturiente, sos, emerge a parteira possível. Essa parteira é

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FORMAÇÃO E INSERÇÃO DE PROFISSIONAIS NÃO-MÉDICOS NA ASSISTÊNCIA AO PARTO 697

ao mesmo tempo possível e desejável, é a que frente às possibilidades de reverter o atual mo-
podemos e queremos, é a parteira em constru- delo de assistência à mulher e sua família no
ção. É o projeto utópico, contra-hegemônico, parto. Às universidades e escolas de enferma-
que pode romper com a taxinomia da profissão gem cabe estabelecer parcerias com organis-
– a Medicina, a Enfermagem etc. etc. – e com a mos oficiais e serviços de saúde para pesqui-
visão ideologizada e desgenerificada da mulher sar, estabelecer e desenvolver modalidades de
enquanto objeto do saber e da intervenção capacitação formal de parteiras, nos diferentes
masculina, enquanto reprodutora e “parideira”. níveis – graduação de obstetrizes, especializa-
Nesse sentido, o discurso contra-hegemônico ção de enfermeiras e técnicas de enfermagem,
pode ser reafirmado no discurso hegemônico, treinamento de auxiliares de enfermagem e de
se pensamos que formar e qualificar represen- parteiras tradicionais – absolutamente vincu-
tam também superar iniqüidades e diferenças ladas às realidades locais. Nesse sentido, vale
e apontar caminhos. Enquanto os pressupos- reiterar que a atual Lei de Diretrizes e Bases da
tos ideológicos que orientam o discurso hege- Educação abre um leque de possibilidades de
mônico relacionado à capacitação formal e à qualificação profissional, dado que a simples
atuação da parteira vão ao encontro da partei- especialização de enfermeiras é incapaz de
ra ideal, de impacto duvidoso nos indicadores produzir o necessário e esperado impacto na
de saúde materna e perinatal, a perspectiva de qualidade e no modelo de assistência ao parto.
construir uma “nova parteira” pode germinar Embora a questão pedagógica da formação
entre os profissionais de saúde e as mulheres da parteira mereça estudos específicos, pode-
usuárias do sistema. se registrar que para Kirkhan (1996), os conhe-
Sob a forma de considerações finais, incluí- cimentos necessários à parteira são provenien-
mos nesta síntese o esboço de uma proposta tes da medicina e fisiologia, das ciências so-
para capacitação formal de não-médicos para ciais, de outras parteiras, das mulheres, das
assistência ao parto. Os princípios dessa pro- pesquisas de enfermagem e do desenvolvi-
posta baseiam-se em deslocar o eixo que nor- mento de habilidades na comunicação e no re-
teia os programas de formação profissional, lacionamento interpessoal, indispensável para
caracterizados em geral, por um sentido cor- dar suporte emocional. Segundo a autora, as
porativo e estático. A práxis na saúde da mu- mulheres, embora não constituam um grupo
lher, por sua vez, exige cada vez mais o “empo- homogêneo, esperam que a obstetrícia pratica-
deramento” coletivo de seus múltiplos agentes da por parteiras esteja fundamentada nesses
e o fortalecimento e ampliação da cidadania elementos.
das mulheres brasileiras. Outro aspecto que merece ser abordado, re-
Reconhecer a carência de pessoal qualifica- fere-se às questões legais que envolvem o exer-
do e tomar providências para suprir essa defi- cício profissional na assistência ao parto. Entre
ciência implica responder politicamente. Nes- as recomendações relacionadas ao assunto,
se sentido, ao Ministério da Saúde e às secreta- destacam-se a revisão da legislação do exercí-
rias estaduais cabe formular políticas, realizar cio profissional de enfermagem, com o objeti-
investimentos e promover medidas para inclu- vo de estabelecer mecanismos que permitam a
são da parteira no SUS, revendo a forma de re- plena participação de enfermeiras, técnicas e
munerar a assistência ao parto e ampliando auxiliares de enfermagem no processo de aten-
sua participação em projetos e programas, co- dimento ao parto, e a garantia do direito das
mo o Programa de Saúde da Família. Às organi- enfermeiras obstétricas e obstetrizes de exer-
zações e entidades civis – movimento de mu- cer plenamente as atribuições para as quais es-
lheres, conselhos de saúde, associações profis- tão habilitadas e respaldadas na legislação exis-
sionais, Rede Nacional pela Humanização do tente (ABEN-PR, 1998; Araújo et al., 1997; Bra-
Parto e Nascimento, entre outras – correspon- sil, 1986; MS, 1993).
de o papel de debatedoras e interlocutoras

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 18(3):685-698, mai-jun, 2002


698 RIESCO, M. L. G. & FONSECA, R. M. G. S.

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Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 18(3):685-698, mai-jun, 2002

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