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ITAMAR SANDOVAL / MARISTELA FRANCO: FOTO MONTAGEM

Irmãos Flor,
Romão (esq.)
e Sebastião

sucesso calcado em
tecnologia.
70 DBO abril de 2011
Mitos vivos da pecuária nacional, proprietários

S
de 100 mil cabeças, eles atribuem o seu êxito à capacidade
de se atualizar, sem tirar os pés do chão.
e a pecuária tem seu panteão de
mitos, os irmãos Sebastião e Ro-
mão Flor nele ocupam um lugar
de destaque, ao lado de Tião
Maia e Tonico Toqueiro, pecuaristas le-
gendários. Poucos personagens na história
da atividade suscitaram tanta curiosidade
entre seus pares e deram origem a tantos
relatos fantasiosos, como o de um supos-
to pacto que teriam feito, ainda jovens, de
jamais se casarem para não colocar em ris-
co sua parceria. “Doidices dessa gente. Eu
me casei e tenho dois filhos”, retruca Ro-
mão Flor, soltando uma gargalhada gostosa.
A origem de tanto folclore é a singular
trajetória de vida dos dois irmãos, que so-
breviveram a uma infância pobre, em Pre-
sidente Olegário, MG; trabalharam duro
desde criança; demonstraram invejável
habilidade comercial e se tornaram gran-
des pecuaristas, donos de um rebanho su-
perior a 100.000 cabeças. Aos 76 e 73 anos,
respectivamente, Sebastião e Romão con-
tinuam empresários ativos, destituídos do
perfil tradicionalista, comum a muitos de
sua geração. Souberam, a seu modo, acom-
panhar a modernização do setor e eleger as
tecnologias adequadas a cada um de seus
projetos pecuários.
A despeito de terem testemunhado
muitas crises econômicas nacionais, não
desistem de sonhar grande. Hoje, seu
principal objetivo é produzir carne de qua-
lidade, com remuneração diferenciada. No
ano passado, terminaram, em confina-
mento, 5.800 novilhos e novilhas super-
Fazenda em números
Canabrava precoces Nelore-Angus, abatidos com
17-18@, aos 14 meses. Todos produtos de
inseminação, convencional e por tempo
Nome: Fazenda Rio Preto fixo-IATF. Neste ano, serão terminados
Localização: Canabrava, MT. 9.800 e, no próximo, 11.200. Para chegar
MT
Área total: 141.830 ha a esse último número, 25.000 matrizes es-
Área de pastagem: 70.000 ha tão sendo submetidas aos protocolos du-
Rebanho: 100.000 cabeças rante a estação de monta, que termina em
Matrizes em reprodução: 30.000 abril, na Fazenda Rio Preto, em Canabra-
Cuiabá

Matrizes inseminadas: 25.000 va, nordeste do Mato Grosso.


Novilhas: 30.000 Essa propriedade, de 141.830 hectares,
Machos de engorda: 25.000 encravada no Vale Norte do Araguaia, era
Número de funcionários: 192 anteriormente especializada em recria/en-
gorda, mas voltou-se para a cria nos últi-
abril de 2011 DBO 71
FOTOS MARISTELA FRANCO
25.000 matrizes estão sendo
inseminadas, nesta estação de
monta, com sêmen de Angus.

mos três anos, demonstrando a capacida-


de dos irmãos Flor de alinhar-se às ten-
dências de mercado, pois, a exemplo de ou-
tros pecuaristas que possuem fartura de ter-
ras, decidiram enfrentar a atual carestia de
bezerros com auto-suficiência e agregação
de valor. A terminação dos animais é fei-
ta principalmente em confinamento, na Fa-
zenda Califórnia, em Goiás, onde são uti-
Novilhas Nelore

lizadas técnicas de última geração na ges-


de 25-26 meses,

tão do rebanho, como a identificação in-


da Fazenda Rio Preto, MT,

dividual eletrônica e o controle de consu-


em fase de preparação para

mo de ração por meio de sensores (tags)


inseminação

instalados nas linhas de cocho (veja matéria


em tempo fixo.

à página 78).
nheira. “Graças a essa infraestrutura, con- uma equipe fixa enxuta, de 1 homem para
PERSPICÁCIA – Assim como tudo o que diz seguimos mudar rapidamente de 3.000 ma- cada 1.200 cabeças, afirma.
respeito à adoção de inovações, os Flor não trizes inseminadas convencionalmente A eficiência operacional da Rio Pre-
aderiram à IATF por modismo. Já reali- para 25.000 em tempo fixo”, informa Ri- to tem-lhe propiciado resultados inéditos.
zavam inseminação artificial convencio- cardo César dos Passos, diretor da empre- São seis retiros de vacas, que abrigam, em
nal na Rio Preto há 10 anos, utilizando vá- sa goiana Criafértil, responsável pela exe- média, 5.000 cabeças, e cada retiro está
rias raças, entre elas a norte-americana cução do serviço. Os irmãos Flor terceiri- sob responsabilidade de um inseminador
Shorthorn, que Romão conheceu em uma zam a IATF, porque ela demanda mão de da Criafértil. No ano passado, quatro
viagem aos Estados Unidos, em 1998. Esse obra sazonal e especializada, difícil de for- desses técnicos inseminaram 2.712 ma-
trabalho lhe valeu uma visita, em 2000, do mar. Fica mais econômico contratar espe- trizes em apenas dois dias, média de 678
governador do Estado de Ohio e de auto- cialistas e trabalhar ao longo do ano com vacas/homem. Na estação 2010/2011,
ridades agropecuárias do Texas. Quando planejava-se realizar 4.000 inseminações
se consolidou no Brasil, a IATF passou a em igual período, mas a seca atrapalhou
ser testada na fazenda com Angus, tendo os planos da equipe, e a meta foi adiada
por base vacas Nelore. O bom desempe- Saga em causos para o ano que vem.
nho dos produtos 1/2 sangue no confina- Romão Flor, que cuida da Fazenda Rio
mento, tanto em precocidade quanto em Preto, enquanto seu irmão administra os ne-
qualidade de carcaça, e a perspicácia co- Conta-se, em rodas de gócios de Goiás, faz questão de acompa-
mercial dos Flor, que identificaram de- pecuaristas do Centro-Oeste, nhar a rotina da IATF. Conversa com os
manda crescente pela carne da raça no mer- que os irmãos Sebastião e peões, observa detalhes e faz anotações rá-
cado, fortaleceram tal escolha. Na estação Romão Flor fizeram um pacto pidas em pequenas folhas de papel, que
de monta 2011/2012, cerca de 30.000 de sangue, quando mantém permanentemente no bolso da
matrizes serão fertilizadas exclusivamen- meninotes, para jamais se camisa. “Registro algumas coisas, para não
te com sêmen de Angus. casarem, porque as mulheres esquecer, mas minha cabeça é meu com-
A fácil transição da inseminação con- gostam de muito dinheiro e putador”, brinca o megafazendeiro, cuja cu-
vencional para a IATF deveu-se ao bom ní- dão palpite em tudo, o que riosidade tem-lhe servido de bússola no de-
vel de organização da fazenda, que, por sua atrapalharia a sua sociedade. safio de acompanhar a evolução do setor.
grande extensão, está estruturada em 12 re- Os Flor acham graça dessa
tiros, subdivididos em 700 pastos com cer- história, cuja origem CONTROLE E SINTONIA – O processo de
ca de 100 ha cada, todos convergindo para desconhecem. IATF é controlado por fichas, das quais

FALSO
corredores, o que facilita a movimentação constam os números dos lotes submetidos
do gado. Cada retiro possui seu curral, seu ao serviço, dos retiros e pastos onde esta-
refeitório e uma equipe composta por vam alojados, a raça dos animais, sua ca-
quatro vaqueiros, um capataz e uma cozi- tegoria (primíparas, secundíparas, multí-

72 DBO abril de 2011


Machos de engorda terminados a pasto cedem lugar ao gado de cria.

paras), o ano de nascimento de cada fêmea, to o diagnóstico precoce de prenhez por ul- ralmente, e o índice de concepção por re-
a data dos partos anteriores, seu escore cor- trassom, que possibilita avaliar perdas passe com touro aumenta. Apesar de ter
poral de 1 a 5, o tipo de protocolo aplica- embrionárias e tomar medidas corretivas. sido invernista boa parte da vida, Romão
do, o número de vezes em que o implante Segundo o diretor da Criafértil, Ricar- Flor gosta de cria. “Cheguei a engordar
intravaginal foi utilizado, se houve perda do César, a IATF aumentou a produção de 80.000 bois na Rio Preto, mas sempre tive
desse dispositivo, a data da inseminação, bezerros da Rio Preto em 8,98%. No ano um pouco de vaca. Quando o mercado me
o touro escolhido, a partida do sêmen (data passado, o índice geral de prenhez chegou indicou que era hora de mudar de rumo, não
de coleta) e o nome do inseminador. “Tra- a 92,75%, pois, mesmo quando as vacas tive medo. Estacionar é sentença de mor-
ta-se de um relatório que possibilita a ava- não enxertam com a aplicação do protocolo, te, em qualquer negócio”, ensina. Hoje, a
liação detalhada de nosso trabalho”, explica seu organismo é estimulado a ciclar natu- fazenda é um grande berçário a céu aber-
Cléverson Machado, coordenador da equi- to e conta somente com 20.000 animais de
pe de inseminadores da Criafértil que engorda. Em 2012, abrigará 47.000 ma-
atende a Fazenda Rio Preto. trizes em reprodução.
Normalmente, os procedimentos da Saga em causos
IATF são concentrados na primeira quin- BAQUE INESPERADO – Um dos principais
zena do mês, ficando a segunda quinzena Certa vez, Romão teve motivos que levaram os irmãos Flor a re-
para serviços de manejo reprodutivo, como problemas com seu carro formular o projeto pecuário da Rio Preto
diagnóstico de gestação, repasse das vacas e foi obrigado a voltar a pé foi a necessidade de reduzir sua depen-
com touro, desmame etc. “A sintonia en- para a sede. No caminho, dência dos frigoríficos. “Com um leque
tre nossa equipe de inseminadores e os va- pediu carona a um mais amplo de produtos – bezerros, novi-
queiros é perfeita. O trabalho flui tão bem caminhoneiro da empresa, lhas, vacas -, podemos vender para vários
que, em 2010, ninguém trabalhou no do- que não o reconheceu e tipos de compradores e não colocar todos
mingo ou deixou de ir à cidade no dia do pediu que embarcasse na os ovos em uma única cesta”, explica Ro-
pagamento”, diz Machado. carroceria. “Subi sem mão. Como terminador especializado, ele
Graças a essa interação, os resultados pestanejar. Não tenho luxo, sofreu um grande baque financeiro em mar-
da IATF na fazenda têm melhorado. No ano não”, diz ele. O caminhoneiro, ço de 2009. Havia acabado de vender 6.000
passado, o percentual de produtos cruza- quando soube tratar-se do bois e 1.200 vacas por R$ 11,2 milhões ao
dos desmamados colocados no confina- patrão, ficou vários dias Frigorífico Independência, quando este
mento, que, para Romão Flor, é o princi- encabulado. pediu recuperação judicial. “Dias antes, ins-

VERDADEIRO
pal critério econômico no emprego da tituições financeiras me haviam garantido
técnica, foi de 45%. Mas esse índice ten- que a situação da empresa era sólida.
de a melhorar, pois a estação de monta está Levei um choque. Da noite para o dia, me
sendo ajustada. Também começa a ser fei- vi sem dinheiro para pagar as contas. Tive
abril de 2011 DBO 73
Relações de
trabalho nota dez
Para fazer funcionar esse pequeno
império de 141.830 ha, com 3.000 km de
cercas, 350 km de corredores e 56 pontes,
Sebastião e Romão Flor contam com o
apoio de 192 funcionários fixos, todos
com carteira assinada. Eles moram numa
pequena vila, composta por 23 casas se-
melhantes à dos proprietários, distribuídas
ao longo de ruas largas e bem cuidadas,
com canteiros centrais floridos. A vila dis-
põe ainda de três alojamentos para soltei-
ros, um refeitório, nove galpões, um escri-
tório, uma oficina, uma escola, um posto de Da esq. para a dir: Pedro Pires e Paulo Dias, da Gestão Agropecuária; Cléverson Machado e
saúde, um hangar com pista de pouso, um Ricardo César, da Criafértil; Romão Flor e a sobrinha Janaína; o zootecnista Renato Cortez e
armazém e um açougue, que desossa o gerente geral, João dos Reis.
cinco carcaças bovinas e 10 suínas por se-

de vender gado, abandonar investimentos inferno; agora estamos virando para o


mana, destinadas ao abastecimento dos re-

e adiar planos”, conta Romão. lado do céu”, comemora.


tiros e do refeitório central. “Os cortes são

Agora que a situação está se normali-


preparados dentro dos mais rigorosos pa-

zando, com a possibilidade de recebimen- Para conter custos,


drões de higiene”, afirma Edilson Nunes de

to da dívida, antigos projetos deverão ser o manejo da fazenda é simples, mas dá-
Lima, responsável pelo estabelecimento. MANEJO DO GADO –

retomados na fazenda, entre eles a aduba- se atenção especial ao calendário sanitá-


Todos os trabalhadores usam equipa-

ção de pastagens. “Já plantei mais de rio e à suplementação mineral. Todo o re-
mentos de proteção individual, como botas,

6.000 hectares de soja aqui, por isso sei banho recebe sal proteinado, processado
óculos e luvas, dependendo da atividade.

quanto é importante repor os nutrientes do na fábrica de rações da fazenda, que tem


A empresa possui Programa de Controle

solo. Com rotação e fertilizante, podemos capacidade para 30 toneladas/hora e ar-


Médico e Saúde Operacional e programa

elevar o rebanho rapidamente de 100.000 mazenagem de 9.000 toneladas de grãos


para prevenção de riscos ambientais. Todos

para 300.000 cabeças”, diz. Atento às no- em seis silos. Os irmãos Flor estimam ter
os meses, um médico e um dentista aten-

vidades do setor, Romão é criterioso na es- gasto R$ 2 milhões com suplementação na


dem gratuitamente os funcionários, que

colha das tecnologias. “Gosto de ser pu- seca passada, mas, em compensação, não
também contam com assistência diária

xado, não empurrado. Consulto técnicos,


de uma enfermeira residente, treinada para

faço contas, experimento. Nossa política é


atender emergências e realizar partos nor-

aumentar a produtividade sem carregar nos


mais. Todas as casas possuem água en-

custos. Com muito açúcar, faz-se doce até


canada, luz, horta e sinal de TV. Na escoli-
nha, que atende 20 crianças de 4 a 10 anos,
de jiló, mas será que vale à pena?”, inda-
Saga em causos
ga bem-humorado. Tempos atrás, Romão ouviu
foi montada também uma sala de informá-

Sua intuição lhe diz que a produção ver- dizer que rapadura
tica. “O acesso à internet facilitou nosso tra-

tical é tendência irreversível na pecuária, estimulava a libido dos


balho e possibilitou a conexão dos alunos

mas ele questiona o impacto desse sistema, jumentos, utilizados em


com o mundo”, diz a professora Maria Mar-

de custos crescentes, sobre o bolso do con- cruzamento com éguas,


ta Rodrigues.

sumidor. “Até que ponto o preço da carne para obter burros de lida.
vai poder subir? Responder essa pergunta Não teve dúvidas: comprou
é fundamental para dosarmos o nível de in- uma carga inteira de
tensificação da fazenda. Se andarmos mui- rapaduras para dar aos
to à frente do mercado, poderemos ser atro-
animais. Mas, como os
pelados”, pondera. A produção de carne de
peões também gostavam de
qualidade ainda é, a seu ver, uma equação
rapadura, o produto não
mal resolvida. “O frigorífico continua
pouco disposto a remunerar adequada- chegava direito ao cocho.
mente o pecuarista, e o consumidor pou- Desistiu da experiência.

VERDADEIRO
co disposto a pagar mais pelo produto. Fal-
ta maturidade ao segmento. Mas as pers-
A professora Maria Marta Rodrigues

pectivas são boas. Já estivemos pertinho do


em frente à escolinha

74 DBO abril de 2011


perderam animais, ao contrário de muitos
Saga em causos cimento e peso, formando-se lotes com base
pecuaristas da região. Nas águas, as ma- Diz-se, também em noites de no critério de cabeceira, meio e fundo. Esse
trizes recebem apenas sal mineral especí- causos, que os Flor sistema de apartação padroniza os lotes e
fico para reprodução. possuiriam um rebanho de facilita o manejo. Segundo Romão Flor, os
Os piquetes, formados basicamente meio milhão de cabeças no machos Nelore chegam à desmama com
com braquiarão, são submetidos a paste- Mato Grosso e sequer 220 kg e os cruzados com 250 kg.
jo contínuo com carga controlada. Nas A taxa de mortalidade pós-nascimen-
conseguiriam contá-las.
áreas de maior movimentação de gado, to é baixa. Os chamados bezerros guachos
Certa vez, teriam organizado
plantou-se grama estrela, que suporta pi- – rejeitados pela mãe, estropiados ou
um mutirão de vaqueiros
soteio e mantém o solo coberto mesmo em doentes – são encaminhados para o Reti-
períodos de rodeio intenso de matrizes para para reaver animais perdidos ro do “Zé do Leite”, funcionário respon-
IATF. Devido a esse manejo básico, mas na floresta. Em realidade, a sável por tratá-los na mamadeira ou no co-
cuidadoso, conduzido pelos capatazes Fazenda Rio Preto possui cho, até que fiquem fortes e possam reu-
dos retiros, há poucos pontos de degra- rebanho de 100.000 cabeças nir-se aos companheiros nos retiros de re-
dação de pastagens. Com as invasoras, o e raramente registra casos cria. Esse trabalho deu tão certo que os ir-
maior problema é o fedegoso, que se de animais “alongados”. mãos Flor decidiram montar uma estrutu-

FALSO
alastra principalmente após períodos de ra semelhante também para o gado adulto.
seca intensa e precisa ser controlado re- Animais debilitados ou vítimas de acidentes
gularmente com herbicidas. são encaminhados para um pequeno con-
Para evitar o estresse provocado pela finamento, onde recebem ração diária e
disputa no cocho, a fazenda trabalha com acompanhamento adequado. Na seca do
lotes pequenos, de no máximo 200 cabe- mães, para permitir contato visual, e rece- ano passado, esse confinamento recebeu
ças. Logo após a desmama, efetuada aos bem ajuda de vaca-madrinhas, para se adap- cerca de 600 animais. Com medidas triviais
oito meses, os bezerros são mantidos du- tar à nova condição. Concluído esse pro- como essas, os irmãos Flor garantem bom
rante dois dias em piquete contíguo ao das cesso, são separados por sexo, data de nas- retorno a seu negócio.

abril de 2011 DBO 75


Na Fazenda Califórnia,
automação dos processos.

A capacidade dos irmãos Flor de adequar


tecnologias às exigências de seus
projetos é patente na Fazenda Califórnia,
localizada nos municípios de Anicuns e
Turvânia, a 80 km de Goiânia, GO. A fa-
zenda, de porte menor do que a Rio Preto
(5.250 ha), dedica-se exclusivamente à ter-
minação em confinamento, após breve
recria a pasto. Também opera com equipe
enxuta: 1 funcionário para cada 1.150
animais confinados, contra a média na-
cional de 1 para 630. Por esse motivo e por
realizar operações complexas, a Califórnia
emprega tecnologias avançadas, que lhe fa-
cilitam a coleta de dados e lhe garantem efi-
ciência operacional. Da recepção dos ani-
mais no curral, sua pesagem e identifica-
ção individual, até o abastecimento dos co-
chos, tudo é controlado pelo Sistema de
Gestão Integrada-SGI, que compreende três
softwares diferentes, desenvolvidos pela
Graças aos superprecoces cruzados, o confinamento funciona também nas águas.

empresa goiana Gestão Agropecuária.


A fazenda funciona como uma fábrica. grados, o que facilita o manejo do gado admite variação máxima de 50 kg entre ani-
Roda 24 horas por dia e confina cerca de confinado. Logo na portaria, um funcio- mais de um mesmo lote.
40.000 bovinos por ano. Suas instalações nário registra no computador o nome do Todos as informações coletadas pelo
de engorda, construídas em 2004, contam motorista que trouxe o gado e a placa do TGR são transferidas, via rede, ao TGC
com 20 linhas de cocho, cada uma com 10 caminhão. Na balança rodoviária, cadas- (programa de gestão geral do confina-
currais, em média. Parte dessas linhas tra-se a GTA-Guia de Trânsito Animal, mento). Na fábrica de rações, os operado-
tem o piso de bloquete, para evitar acúmulo pesa-se o lote e confere-se a quantidade de res verificam os dados do lote no sistema
de lama e permitir o confinamento também bovinos e sua condição sanitária. Em se- e providenciam a ração, conforme as in-
nas águas, uma necessidade que se impôs guida, eles são conduzidos para o curral de dicações do nutricionista da Tortuga, em-
desde que a empresa começou a produzir processamento, onde se faz sua identifi- presa que atende o confinamento. “Essa in-
novilhos superprecoces. “Como agora mo- cação individual, com um brinco munido tegração facilita a rotina da fábrica e a lo-
vimentamos animais o ano inteiro, tivemos de código de barras e um botton com chip, gística de trato”, afirma Paulo Dias.
de automatizar processos. Além disso, a fa- ambos de acordo com as
zenda está inscrita na Lista Traces; não po- normas do Sisbov.
demos correr o risco de ver lotes desclas- O TGR, integrado à
Informática reduziu
sificados pelo frigorífico, devido a erros na balança eletrônica, faz a índice de erros e melhorou
coleta ou no registro de dados”, explica Ja- coleta automática do peso
naína Flor, que auxilia o tio Sebastião na individual e, conectado a logística do confinamento
administração da fazenda e é responsável ao bastão de leitura ele-
pela área de rastreabilidade e informática trônica RFID e ao leitor de código de bar- As inclusões e baixas de animais são
da empresa. ras, captura o número dos animais. Esse realizadas por meio de arquivos eletrôni-
programa específico de rastreabilidade cos, enviados por e-mail à certificadora. O
INTEGRAÇÃO TOTAL – O três softwares também auxilia na aplicação do protoco- extrato de liberação dos lotes é importado
que compõem o SGI (Tecnologia e Ges- lo sanitário, controlando o prazo de carência pelo sistema, para que se possa bloquear a
tão de Rastreabilidade-TGR, Tecnologia e dos medicamentos e organizando os lotes saída de indivíduos não conformes. Na hora
Gestão de Confinamento-TGC e Tecono- por raça, peso, categoria, fornecedor, etc. do embarque, todos os bovinos passam pela
logia e Gestão de Trato-TGT) são inte- Na Fazenda Califórnia, a apartação por peso balança, onde são pesados e têm o brinco

76 DBO abril de 2011


lido eletronicamente. Caso algum animal
esteja sem o dispositivo de identificação ou BOTTON
COM CHIP
não tenha cumprido a quarentena, por
exemplo, o sistema aciona um sinal sono-
ro e luminoso (sirene vermelha), e o ani-
mal é desviado para outro curral. Corrige-
se, então, a listagem de embarque e faz-se
nova contagem dos lotes. “Havendo trans- ANTENA
porte disponível, podemos embarcar até
2.000 bois/dia, sem tumulto”, afirma Ja-
naína. As informações de saída dos animais
também são transmitidas ao sistema, para
que se possa fazer fechamento dos custos
e avaliações zootécnicas.

Na Fazenda Califórnia, a SENSORES


adaptação ao cocho dura duas semanas. (TAGS)
AUTOMAÇÃO –

Nos primeiros quatro dias, os animais re-


cebem apenas volumoso; nos cinco se-
guintes, uma dieta com 30% de concen- COMPUTADOR
trado e, nos outros cinco, eleva-se esse per- DE BORDO
centual para 40%. Concluída a adaptação,
é fornecida a dieta final, que apresenta a
relação 10:90 – 10% de volumoso para
90% de concentrado. “Utilizamos, como
fontes principais de fibra a silagem de mi-
lho, produzida em 350 ha da fazenda, e o
bagaço de cana, que ajuda a baixar o cus-
to da ração e poupar silagem, quando ne-
cessário. Como ingredientes do concen-
Da rastreabilidade ao trato

trado, são usados milho moído, farelo de


dos animais, tudo é controlado

soja (apenas para os novilhos cruzados),


por programas integrados.

torta de algodão, polpa cítrica, uréia, mi-


nerais na forma orgânica e leveduras.
Normalmente, a dieta é formulada para se
obter ganho médio de 1,740 kg/cab/dia”,
informa Renato Antônio Cortez, zootec- ma, é possível saber com precisão a quan-
nista responsável pelo confinamento. tidade de ração fornecida, em que horário
O período médio de permanência dos o trabalho foi realizado e quem foi a pes- ocorrências e detectar possíveis gargalos.
bovinos nas instalações é de 97 dias, no soa responsável. O registro de dados possibilita a avaliação
caso dos Nelore, e 121 dias, no caso de su- Dentro do caminhão, o motorista con- do consumo de ração e, consequentemen-
perprecoces cruzados. “Além de cumprir trola tudo, utilizando um monitor sensível te, da eficiência alimentar, além da ava-
a noventena do Sisbov, precisamos de al- ao toque, que o informa sobre os tratos an- liação do trabalho dos funcionários.
gum tempo para manejar e negociar os ani- teriores e a quantidade prevista para aque- A Fazenda Califórnia também possui
mais”, explica Janaína. Toda a rotina de for- la batelada. Caso constate, por meio de lei- 3.300 ha de pastagens, que recebem, no
necimento da ração no cocho começa a ser tura de cocho, que o volume de ração pre- verão, cerca de 10.000 bezerros, recriados
automatizada, com a ajuda do TGT, pro- vista não é adequado, ele pode alterá-lo no até atingirem média de 362 kg, no caso de
grama de gestão do trato. Em três linhas de computador de bordo, que está conectado gado Nelore. Os novilhos cruzados, oriun-
cocho (30 currais), foram instalados sen- à balança do caminhão. As alterações fei- dos da Fazenda Rio Preto, são introduzi-
sores, que captam o peso de entrada e saí- tas pelo tratador são registradas e justifi- dos no confinamento com peso médio de
da do caminhão em cada curral. Dessa for- cadas, para que se possa fazer estatística de 220 kg-250 kg.

78 DBO abril de 2011


ENTREVISTA – ROMÃO FLOR


Uma história de extremos

Eu tinha de
andar seis
quilômetros para
chegar à escola,
descalço, sem
merenda”.

P iadista de repertório inesgotável, Ro-


mão Flor gosta de prosear, de prefe-
rência diante de uma travessa de frutas,
latar episódios de sua infância pobre, em
Minas, e reivindica maior reconhecimen-
to para a atividade de pecuarista.
rante muito tempo. Depois que minha mãe
morreu, mudamos para Patos de Minas.
Passamos a negociar de tudo. Compráva-
outro de seus prazeres. Na estrada que dá mos e vendíamos queijo, automóvel, sítio.
acesso à vila da Fazenda Rio Preto, no MT, Até que juntamos dinheiro para engordar
plantou extensas alas de mangueiras; Vou te contar como escapei. Nasci em gado em pasto alugado.
DBO – Como foi sua infância?

mantém um grande pomar atrás da sede, 1938. Sou o quinto de oito filhos. Éramos
com inúmeras espécies frutíferas; e, nas muito pobres. Meu pai trabalhava como la-
visitas aos retiros da fazenda, leva consi- vrador num pequeno sítio, mas a comida
Quando vocês se mudaram para

go um saco de laranjas ou maçãs para dis- era pouca, e a gente ainda tinha de ajudar No começo dos anos 70. Eu e o Se-
Goiás?

tribuir aos peões. Mineiro de nascimento na roça, moer cana, ralar mandioca. Nem bastião fomos a Goiás comprar um carro
e goiano de coração, ele mescla gestos arroz tinha. Nosso prato principal era fei- Volkswagen e acabamos gostando da re-
mansos com agilidade mental. “Tenho 73 jão com abóbora. Eu era franzino, demo- gião. Decidimos, então, alugar uma fa-
anos para trabalhar e 18 para namorar”, rei a crescer. Fui estudar tarde e só cursei zenda e engordar bois. Mais tarde, ven-
diz, rindo. três anos. Era muito difícil. Eu tinha de an- demos tudo o que tínhamos e compramos
Considera-se um homem simples, dar seis quilômetros para chegar à escola, uma propriedade em Anicuns, a Califór-
mas não humilde. “Humildade demais é descalço, cabeça raspada para não pegar nia, que temos até hoje. Compramos essa
ruim, apanha-se muito”, justifica. Romão piolho, sem merenda. terra para tocar roça e fomos muito feli-
veste roupas de corte tradicional, usa bo- Parei de estudar aos 14 anos, quando zes. Na safra 74/75, colhemos 25.000 sa-
tinas durante o trabalho e mantém o cos- meu pai morreu de repente e tive de aju- cos de feijão roxo e 150.000 sacos de mi-
tume dos homens de sua geração de le- dar o Sebastião a sustentar minha mãe e lho. Com o dinheiro da lavoura, compra-
var papel e caneta no bolso da camisa; ca- meus três irmãos menores. Os mais velhos mos muito gado.
nivete, pente e lenço, nos da calça. Seu jei- já haviam se casado, ficou tudo com a gen-
to comunicativo contrasta com o caráter re- te. Criamos uma aliança muito forte, de
servado do irmão Sebastião, que fala parceria e confiança. Comecei a tocar roça
Foi nessa época que se associaram

pouco. Em entrevista à repórter Mariste- à meia com os vizinhos, comprei bezerros Sim. Não tínhamos pasto, e ele era
ao Tonico Toqueiro?

la Franco, Romão Flor emociona-se ao re- para treinar como bois de carro. Carreei du- dono de muita terra, lá em Ceres, GO. Nos

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ENTREVISTA – ROMÃO FLOR

associamos em 7.200 bois. Ele entrou com pernoita no escuro. O ex-governador Blai- beiros de Cuiabá, que chamei para ajudar,
o pasto e nós com o trato (sal mineral). O ro Maggi adotou essa frase como slogan, disseram que estávamos mais preparados
Tonico era um sujeito muito ativo, nego- mas até hoje estou esperando pelo térmi- para fazer o serviço do que eles. Mas os
ciava muito bem. O que o atrapalhou foi no do asfalto da BR 158, que batizei de ro- órgãos ambientais não reconhecem nos-
o carteado. Com o dinheiro dessa socie- dovia da promessa. Quando tomei posse so trabalho.
dade, compramos a primeira fazenda no da Fazenda Rio Preto, era tudo mato. Mon- No ano passado, a Secretaria de Con-
Mato Grosso, em São José do Xingu, que tei um ranchinho, desses de plástico, que trole Externo do Mato Grosso, braço re-
meu irmão Antônio, o caçula da família, eu chamava de cinco estrelas, porque tinha gional do TCU-Tribunal de Contas da


começou a tocar. Meu pai queria que cinco buracos no teto, e vivi nele por mui- União, abriu um processo contra o Incra
pelo menos um de nós se formasse, e nós to tempo. Nunca refuguei trabalho. Se for por omissão nas ações relacionadas à nos-
decidimos realizar o sonho dele. O Antô- para morrer, morro em pé, não deitado. sa fazenda, pois, na visão deles, trata-se
nio formou-se engenheiro, pela Universi- Contratei gente de Goiás para abrir pica- de propriedade improdutiva, que não
dade de Frankfurt, na Alemanha. Ficou lá da e formar os pastos. Hoje, nada disso se- atende sua função social. O Incra fez novo
12 anos, mas decidiu voltar e trabalhar com ria possível, porque o produtor sofre mui- laudo de inspeção e emitiu um parecer a
a gente. Depois, comprou sua própria fa- ta perseguição. nosso favor, dizendo que não paira dúvi-
zenda. No começo dos anos 90, decidimos das sobre a legitimidade e autenticidade
participar do leilão da do domínio e que ele cumpre
Agip Petroli, multina- indiscutivelmente sua função

O progresso
cional italiana perten- social, pois o grau de utili-
cente ao grupo ENI-Ente zação da terra e eficiência da

não anda
Nazionale Idrocarburi, exploração estão bem acima
ex-dona da Liquigás, que dos padrões mínimos esta-

em estrada
queria vender 256.000 belecidos para a região. Te-
ha na região de Cana- nho um rebanho de 100.000

de chão,
brava do Norte, MT, e cabeças, pastagens total-
fomos vitoriosos. mente formadas, infraestru-

nem
tura completa, quase 200
funcionários. Como o TCU

pernoita no
pode dizer que essa fazenda
Como conseguiram

Nós e o Antônio Ga- é improdutiva?


arrematar as terras?

escuro”
ravelo, dono do extinto
Consórcio Garavelo, en-
tramos fortes na concor-
Como o senhor vê o con-

rência. Dávamos um lan- Estou tentando me ade-


tencioso ambiental?

ce e ele outro, aí o pre- quar, mas os processos são


ço foi subindo. Para não incrivelmente lentos. De-
favorecer o vendedor, morei quase sete anos para
decidimos parar os lan- conseguir o georreferencia-
ces isolados e comprar a área juntos. mento da fazenda. Agora
Dos 256.000 ha, ficamos inicialmente estou me preparando para fazer o CAR-
com 70.000 e eles com 186.000. Pagamos Uma vez me multaram por falta de Cadastro Ambiental Rural, para depois ti-
Que tipo de perseguição?

nossa parte com o dinheiro da venda da fa- placa de sinalização nas ruelas da vila. Se rar a LAO-Licença Ambiental de Opera-
zenda no Xingu e de 24.000 bois. Na épo- cai um raio no pasto, eles falam que nós ção, tudo isso enquanto o Congresso de-
ca, boi valia dinheiro, era reserva de va- colocamos fogo. Se o satélite detecta uma bate o Código Florestal. Nossas terras es-
lor contra a inflação, que chegava a 30% fumacinha, dizem que é na nossa mata, tão em uma área de transição, basta veri-
ao mês. Com o tempo, fomos comprando quando o incêndio foi no vizinho. O pe- ficar a vegetação nativa, que é tipicamente
glebas do Garavelo, até formar uma pro- cuarista sofre muito preconceito. Ao de cerrado. O pecuarista vive em meio a
priedade de 171.000, dos quais o Incra de- contrário do industrial, que é visto de for- um fogo cruzado, pode levar uma bala per-
sapropriou 30.000 ha, em 1998, ao preço ma positiva, devido a pesadas campanhas dida a qualquer momento ou se salvar. Não
de R$ 100/ha, e não pagou até hoje. de marketing, nós, produtores, somos vis- sabemos. Enquanto isso, estou tomando
tos como bandidos. No ano passado, algumas providências, como a recompo-
passamos 42 dias apagando fogo em fa- sição de alguns pontos da mata ciliar. Nes-
Difícil, pois a região não tinha infra- zendas vizinhas, para impedir que as te ano, pretendo plantar 50.000 mudas de
Como foi a abertura da fazenda?

estrutura. A estrada que passava pela fa- chamas chegassem às nossas terras. Mon- espécies nativas como o landim, o pequi,
zenda virava um grande atoleiro na épo- tamos uma brigada de incêndio equipa- o angazinho e o genipapo em beiras de
ca das chuvas. Costumo dizer que o pro- da com máquinas pesadas e pessoal trei- córregos e nascentes. Estou fazendo a mi-
gresso não anda em estrada de chão, nem nado. Até os homens do Corpo de Bom- nha parte.

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