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O MINEIRO, O QUEIJO E OS CONFLITOS

(NADA POÉTICOS) EM TORNO DOS


ALIMENTOS TRADICIONAIS
PRODUZIDOS ARTESANALMENTE NO BRASIL1

Jaqueline Sgarbi Santos2


Fabiana Thomé da Cruz3
Renata Menasche4

RESUMO: O documentário “O Mineiro e o Queijo” - um documentário político e poético ambientado nas


regiões da Serra da Canastra, Serro e Alto Paranaíba, no Estado de Minas Gerais, Brasil, mostra a vida e
o trabalho de homens e mulheres que, nessas regiões, produzem queijos artesanais à base de leite cru. Es-
sa prática se reproduz há séculos e está associada a modos de vida específicos, em que técnicas tradicio-
nais de produção se fundem com o jeito de ser e de viver das pessoas do lugar. O artigo toma o filme co-
mo “campo” para discutir conflitos e contradições que envolvem a produção de queijos artesanais, atu-
almente ameaçada por aspectos normativos que regem a produção de alimentos no Brasil. Desse modo, à
reprodução dos sistemas tradicionais apresentam-se, grosso modo, dois caminhos: ou se mantêm na in-
formalidade ou se enquadram em legislações que, muitas vezes, levam à descaracterização das formas
tradicionais de produção.

Palavras-chave: produtos tradicionais, queijos de leite cru, legislação sanitária, conhecimentos tradi-
cionais.

THE MINAS PEOPLE, THE CHEESE AND THE (NOT POETIC) CONFLICTS AROUND
ARTISANALLY PRODUCED TRADITIONAL FOODS IN BRAZIL

ABSTRACT: “Minas people and their cheese- a political and poetic documentary”, a movie set in the
Canastra and Alto Paranaíba mountain ranges, in the state of Minas Gerais, Brazil, shows the life and
work of men and women who produce artisanal raw milk cheeses. This practice has been reproduced for
centuries and it is associated with specific ways of life, in which traditional production techniques are
combined with the way of being and living of local people.This article takes the film as medium for dis-
cussing conflicts and contradictions regarding the production of artisanal cheeses, currently threatened
by the regulatory aspects guiding food production in Brazil. In this context, traditional food systems are
faced with two possibilities: remain as an informal production or comply with health regulations, which
often lead to mischaracterization of the traditional forms of production.

Key-words: traditional produces, raw milk cheeses, health regulation, traditional knowledge.

JEL Classification: O33, O34, Q18.

1Este artigo consiste em versão revisada e ampliada de trabalho apresentado no GT 02 - Ciência, inovação e transições sociotécnicas,
no 5º Encontro da Rede de Estudos Rurais, Belém, Estado do Pará, 03 a 06 de junho de 2012. Registrado no CCTC, REA-34/2012.
2Engenheira Agrônoma, Mestre, Universidade Federal de Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil (e-mail: sgarbijaqueline@yahoo.com.br).
3Engenheira de Alimentos, Doutora, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil (e-mail: fabianathomedacruz@gmail.com).
4Antropóloga, Doutora, Universidade Federal de Pelotas, Brasil (e-mail: renata.menasche@pq.cnpq.br).
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Santos; Cruz; Menasche

1 - “O MINEIRO E O QUEIJO”: um documentá- é inerente a um processo de abastecimento ali-


rio político e poético mentar que convive em uma economia diversa,
onde agropecuária, mineração, artesanato e pres-
Em setembro de 2011, o diretor cinematográ- tação de vários serviços são fontes de riqueza in-
fico Helvécio Ratton lançou o filme “O Mineiro e o terdependentes (MENESES, 2006, p.20).
Queijo”5. Ambientado no Estado de Minas Gerais, Atualmente, o queijo pode ser apontado
nas regiões da Canastra, Serro e Alto Paranaíba, o como o produto mais significativo da agricultura
filme mostra o universo que envolve a produção de familiar em Minas Gerais, com um volume de
queijos artesanais daquela região. O documentário produção anual de aproximadamente 70 mil tone-
aborda a origem da produção de queijos no estado, ladas. A atividade é realizada diretamente nas
seus significados para as famílias envolvidas e a im- fazendas e se caracteriza pela pequena escala. Es-
portância da preservação dos modos de vida associa- tima-se que a produção de queijo minas artesanal
dos ao produto que, como a maioria dos produtos envolva 30 mil famílias de agricultores, abrangen-
tradicionais, encontra-se em situação de vulnerabili- do mais de 100 mil pessoas7.
dade, conformada por regimes sociotécnicos dissoci- O presente artigo inspira-se em “O Minei-
ados das realidades em que se constituíram. A pre- ro e o Queijo” para discutir o tema dos produtos
tensão do artigo é dar um panorama do tema da alimentares tradicionais e as contradições e confli-
valorização dos produtos artesanais, principalmente tos que permeiam sua elaboração e circulação no
no que se refere aos impedimentos legais, sem, con- Brasil. Por meio do universo empírico desvendado
tudo, esgotar esse outro tema abordado ao longo do pelo documentário, pretende-se ilustrar e eviden-
texto (O MINEIRO, 2011). ciar a discussão a respeito das impossibilidades de
O filme inicia contando como a técnica de reprodução de produtos tradicionais frente às
produção de queijo artesanal teria saído da Serra intervenções do estado na regulamentação desses
da Estrela, em Portugal6, e se enraizado em Minas produtos.
Gerais, no século XVIII, trazida por portugueses O recurso de utilizar o documentário co-
que vieram à região em busca do ouro. Meneses mo “campo” encontra referência em trabalhos que
(2006), em documento que sistematiza evidências tomam o filme como campo etnográfico8. Ainda
que conferiram ao queijo minas reconhecimento que a abordagem proposta exija cuidados, na me-
como patrimônio cultural imaterial do Brasil pelo dida em que o contato com o empírico é mediado
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Na- pelo cineasta, o caráter documental do filme, a
cional (IPHAN), considera que a produção agrope- pertinência com que aborda o tema e o fato de ter
cuária do estado não está ligada à decadência da sido constituído, em boa medida, a partir da re-
produção aurífera, como, em geral, é afirmado. produção de depoimentos9 de produtores, técnicos
Contrariando essa visão, o autor argumenta que, e pesquisadores, possibilitam sua utilização para
desde o início do processo de ocupação daquele as reflexões aqui propostas.
território, as regiões mineiras tiveram uma produ- Embora o fio condutor do artigo seja o
ção rural diversificada. Para esse pesquisador, o filme ambientado em Minas Gerais, as presentes
queijo mineiro
7Informações obtidas em palestra proferida por representante
5Parasaber mais sobre o documentário, ver: <http://www. de órgão governamental do Estado de Minas Gerais (SEAPA),
omineiro eoqueijo.com.br/>. durante o I Simpósio de Queijos Artesanais do Brasil, realizado
em novembro de 2011, em Fortaleza, Estado do Ceará.
6Em seu início, o filme apresenta a Serra da Estrela, em Portu-
8A título de exemplo, ver Lima (1996).
gal, como região originária do queijo minas artesanal. Todavia,
existe outra versão: conforme informações orais fornecidas por 9Ao longo do artigo, quando da reprodução de trechos de depoi-
técnico da Emater de Minas Gerais e também expressas no
mentos trazidos do documentário, empregamos os nomes verda-
decorrer do documentário, o queijo mineiro teria sua origem
deiros dos entrevistados, uma vez que assim foi feito no filme.
em outra região portuguesa, nos Açores.
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O Mineiro, o Queijo e os Conflitos em Torno dos Alimentos Tradicionais

reflexões apoiam-se também em estudos realiza- não há sentido em analisá-los e valorizá-los fora
dos nos Campos de Cima da Serra, no Estado do de seus contextos de origem, ignorando seus signi-
Rio Grande do Sul, região onde é produzido o ficados e sua dinamicidade.
tradicional queijo serrano. Assim como os queijos
artesanais de Minas Gerais, o queijo serrano é
elaborado à base de leite cru, a partir de receita 2 - TRADIÇÃO, NATUREZA E MODOS DE
transmitida por gerações, há mais de 200 anos. O VIDA
saber-fazer associado às características naturais
específicas de cada uma dessas regiões produtoras Em sua abertura, o filme “O mineiro e o
confere aos produtos características físicas e orga- queijo” mostra um produtor tradicional indicando
nolépticas únicas, que os diferenciam de outros e identificando pelo nome cada uma das vacas que
queijos. Em ambos os casos, trata-se de produtos será ordenhada para a produção de queijo. Desse
fortemente ligados à cultura, modos de vida, valo- modo, desde o início do documentário, o cineasta
res e construções identitárias de homens e mulhe- marca a distinção entre produção artesanal e pro-
res vinculados a seus territórios de origem. dução industrial - muito forte em Minas Gerais.
Analisar os universos do queijo minas ar- Ao chamar os animais pelo nome, o produtor evi-
tesanal e do queijo serrano aporta, ainda, elemen- dencia que a produção tradicional envolve valores
tos para a reflexão não apenas referente aos quei- que não são mobilizados pela grande indústria,
jos, mas a respeito de outros produtos artesanais como pessoalidade, cuidado com o produto e com
tradicionais, como farinhas, doces e vinhos. Seus o ambiente natural. Com essa prática, os animais
processos de elaboração e consumo são, muitas são associados a “membros da família”, como
vezes, mantidos por longos períodos de tempo, em sugerido no depoimento de um produtor:
alguns casos ocorrendo pouca ou nenhuma altera- Isso aí é a mesma coisa dos filhos, né? A gente tem
ção nos modos de fazer. São produtos dotados de que ter carinho. Eu trato bem delas [vacas] e elas tra-
sabores diferenciados, assim como de significados tam bem de mim (Lico, produtor de queijo).
e identidades únicos para quem os produz e para Ao cuidar bem das vacas, Lico considera
quem os consome. Entretanto, ainda que tenham que elas também cuidarão dele, proporcionando
seu valor reconhecido por esses, por estarem inse- leite, matéria-prima do queijo. É neste momento
ridos em um ambiente institucional guiado pelo que começa a produção do queijo minas artesanal
arcabouço legal que rege a produção e comerciali- e são as práticas adotadas em sua produção, asso-
zação de alimentos no Brasil, os produtos tradi- ciadas às características naturais, que o diferem de
cionais são frequentemente tratados como ilegais outros queijos.
por instituições normatizadoras da produção de Da mesma forma que o ocorrido com a
alimentos, estando, assim, seus produtores sujeitos tradição secular da produção de queijo serrano,
a constrangimentos na produção e comercializa- que, como argumenta Krone (2009, p. 07), foi
ção. transmitida de geração a geração, de modo que “o
É nesse contexto que, por meio do caso saber tradicional perpetuou-se ao longo dos tem-
desses queijos artesanais, o presente trabalho bus- pos, sem sofrer grandes transformações”, os depoi-
ca elucidar a dissonância existente entre as legisla- mentos de produtores de queijo minas artesanal
ções vigentes e as práticas utilizadas nos sistemas evidenciam que essa é uma tradição familiar. De
tradicionais. Procuramos argumentar que, bem fato, vários produtores entrevistados no documen-
mais do que produtos, não apenas os queijos como tário afirmaram que aprenderam a fazer queijo
também vários outros alimentos tradicionais estão desde criança e que seus avós e bisavós foram
inseridos em complexos sistemas socioculturais: produtores.
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Santos; Cruz; Menasche

Além dos aspectos relacionados à tradição queijo serrano, são mencionados casos em que o
familiar, os produtores entrevistados associam queijo não é destinado à comercialização, mas
seus produtos às características climáticas específi- produzido para o consumo próprio, para presen-
cas das regiões em que vivem, afirmando que, tear amigos e vizinhos ou ainda para prover filhos
ainda que empregadas as mesmas técnicas de ela- residentes no meio urbano. A associação do queijo
boração, não seria possível elaborar o queijo do com os modos de vida das famílias rurais fica evi-
Serro ou o da Canastra em regiões com caracterís- dente quando os produtores comentam a diferen-
ticas naturais distintas daquelas onde tradicional- ciação entre a dinâmica das propriedades que
mente são produzidos. Os trechos de depoimentos comercializam leite in natura com as indústrias e
transcritos a seguir elucidam esse aspecto. aquelas em que o leite é, artesanalmente, trans-
Meu pai foi fazendeiro em Curvelo e aqui. Levou formado em queijo. Segundo alguns relatos, entre-
vacas do Serro, levou queijeiro do Serro e não gar o leite aos laticínios é, na maioria dos casos,
conseguiu fazer o queijo lá. [...] É uma bactéria, economicamente vantajoso. Entretanto, o que está
alguma coisa que tem aqui, que dá esse sabor em jogo é mais do que o valor monetário aferido
(Raulzinho, produtor de queijo). pelo trabalho. Afinal,
Você pode fazer o queijo aqui, embaixo da árvore quem faz queijo, faz muito por amor (Jorge Si-
ele fica bom. Se você fizer bem caprichadinho, ele mões, produtor de queijo).
fica bom. [...] Não sei se é o clima, uma bactéria Os produtores escutados no documentário
que fica aqui (Luciano, produtor de queijo). explicitam alguns dos aspectos subjetivos associa-
Os depoimentos também fazem referência dos à produção de queijo. Afirmam, por exemplo,
ao que os franceses chamam de terroir, que para que uma fazenda em que se produz queijo é uma
Dória (2010), diz respeito às condições físicas lo- fazenda com fartura e que nela o tempo é sempre
cais, aliadas a processos de trabalho singulares, preenchido: sempre há o que fazer, é uma fazenda
resultando em produtos diferenciados. De modo em que há movimento. Ao mesmo tempo, a pala-
sintético, é possível definir que a noção de terroir vra honra é utilizada para identificar o sentimento
está relacionada com um território comumente que une produtores, produto e lugar.
pequeno no qual o microclima confere qualidades O documentário também apresenta, sob a
distintas aos produtos nele enraizados. O termo é ótica dos produtores, as tecnologias empregadas
empregado para se referir a produtos com história, na fabricação do produto nas três regiões destaca-
enraizados em conhecimento compartilhado e em das por Ratton. Ainda que com pequenas diferen-
saber-fazer local, elementos próprios de uma área ças regionais, atribuídas principalmente ao meio
geográfica específica, onde fatores naturais e hu- natural, existe uma unidade no modo de fazer o
manos contribuem para a produção de alimentos queijo minas artesanal. A diversidade é relaciona-
com características singulares (BARHAM, 2003; TE- da aos produtores, pois mesmo que, grosso modo,
CHOUEYRES, 2005). seja o mesmo o modo de fazer o queijo, a “mão”
Além disso, o queijo é também associado de cada um é que vai dar a diferença no produto
ao fortalecimento de laços de sociabilidade, não só final. De acordo com os produtores, mesmo com-
entre vizinhos, mas também entre pessoas de ou- parando a produção realizada em propriedades
tras regiões. Segundo depoimentos reproduzidos muito próximas, que utilizam a mesma raça de
no filme, desde o início da produção de queijo, é gado, alimentado do mesmo modo, um queijo nunca
comum presentear pessoas de outras localidades será igual àquele feito pelo vizinho.
com queijo da região, prática que também contri- Aqui em casa todos os quatro fazem queijo [...], mas
bui para construir a notoriedade do produto. Do nenhum queijo é igual ao outro (Helena, produtora
mesmo modo, no estudo de Krone (2009) sobre o de queijo).
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O Mineiro, o Queijo e os Conflitos em Torno dos Alimentos Tradicionais

A diversidade é entendida como característi- de Cima da Serra, os modos de produção dos


ca da artesanalidade e, poderíamos dizer, como atri- queijos vinculados a essas regiões estão fortemente
buto de qualidade - tema também explorado no do- associados aos modos de vida dos produtores,
cumentário. Na perspectiva discutida no filme, a ques- indicando que, de modo geral, características pre-
tão da qualidade dos produtos incorpora argumentos senciadas nas regiões de produção referem-se,
subjetivos, comumente pouco presentes em aborda- também, aos sistemas de manejo dos animais e da
gens referentes a produtos tradicionais, via de regra, propriedade, que estão associados ao cuidado e ao
restritas a parâmetros higiênico-sanitários. Em conso- respeito à natureza.
nância com a discussão apresentada no filme, Mene- Os modos de vida, de trabalho, de cuida-
ses (2006) argumenta que a qualidade precisa ser vista do com os animais e com a terra podem também
sob um prisma mais amplo, que possibilite entender ser tomados à luz das reflexões de Fonte (2008,
que o queijo, assim como outros produtos tradicio- 2010), que argumenta que em países ou regiões
nais, sustenta economias, identifica produtores com onde a modernização da agricultura não se reali-
seus territórios e possibilita que homens e mulheres zou de forma intensa, as culturas agrícolas e ali-
vivam e trabalhem em seus lugares de origem. mentares e as relações locais jamais foram total-
Os elementos apresentados ao longo do do- mente extintas, de modo que estratégias para a
cumentário indicam que mais do que um produto, a valorização desses produtos devem perpassar
produção do queijo em Minas Gerais é fruto de um reconhecimento e legitimação de práticas e modos
saber-fazer fortemente vinculado a modos de vida de produção já existentes. Cabe sugerir o caso das
específicos de cada uma das regiões produtoras. Do regiões produtoras de queijo minas e dos Campos
mesmo modo que acontece nas regiões mineiras pro- de Cima da Serra, onde as práticas de manejo e
dutoras de queijo, também nos Campos de Cima da trabalho seguem lógicas próprias que, ainda que
Serra a produção do queijo serrano está associada ao influenciadas por técnicas e práticas convencio-
modo de vida dos produtores, que, muitas vezes, nais, mantêm modos particulares de operar, que
salientam distinções entre queijo serrano e outros integram conhecimentos tradicionais e recursos
queijos produzidos na região. As diferenças entre o disponíveis nas propriedades.
queijo serrano e os demais queijos dizem respeito aos
sistemas produtivos adotados em cada contexto, mas,
mais do que isso, apontam para diferenças culturais e 3 - QUALIDADE, MOBILIZAÇÃO INSTITUCIO-
identitárias. Na medida em que produtores de queijo NAL E INTRODUÇÃO DE INOVAÇÕES EM
serrano afirmam-se em relação a um modo de vida SISTEMAS TRADICIONAIS
específico, explicitam-se elementos diacríticos, con-
formadores de sua identidade. Nesse sentido, em A qualidade dos alimentos tem sido uma
relação a esta distinção entre produtores de queijo, temática amplamente discutida no que se refere ao
Krone afirma que setor agroalimentar de modo geral e, em particu-
as diferenças não se restringem apenas ao âmbito lar, no que se refere a circuitos curtos de comercia-
das dimensões técnicas, produtivas e econômicas lização e consumo, discussão que fica evidenciada
relacionadas à produção de queijo. Tampouco di- em trabalhos como os de Goodman (2004), Har-
ferem apenas a composição química do leite, as vey, McMeekin e Warde (2004), Muchnik (2006) e
raças bovinas ou o manejo diferenciado dos ani- de Sonnino e Marsden (2006), por exemplo. No
mais, mas igualmente pessoas, valores, práticas, que diz respeito particularmente à qualidade e à
saberes e modos de vida (KRONE, 2009, p. 104). valorização de produtos artesanais, pode-se consi-
Tanto no caso das regiões mineiras evi- derar que, em linhas gerais, atualmente prevale-
denciadas no documentário quanto nos Campos cem duas abordagens: uma anglo-saxônica, que
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Santos; Cruz; Menasche

compreende os países do norte da União Europeia comercialização de produtos de origem animal no


e Estados Unidos, e uma visão “mediterrânea”, país. Segundo o Estado brasileiro, da forma como
representada principalmente por França, Itália, são elaborados, os queijos representariam ameaça
Espanha, Grécia e Portugal. A primeira relaciona à saúde pública. Contrariamente a essa linha de
qualidade fundamentalmente às características argumentação, o filme deixa clara a visão dos pro-
sanitárias e higiênicas dos produtos. A segunda dutores, que explicitam, com humor, sua discor-
considera qualidade sob um prisma mais amplo, dância em relação à visão que associa seu produto
relacionando-a a aspectos sensoriais, valores éti- a uma ameaça à saúde do consumidor.
cos, sociais e ambientais vinculados ao processo Eu acho que ninguém nunca passou mal de co-
produtivo (ACAMPORA; FONTE, 2008). mer queijo. Acho que isso não faz mal a nin-
No Brasil, o debate recente aponta para a guém, não (José Mario, produtor de queijo).
pertinência da adoção da segunda abordagem, ou O tanto de queijo que o povo come, se isso fizes-
seja, aquela que considera que atributos territoriais se mal, nós teríamos uma epidemia de queijo!
e locais sejam reconhecidos como constitutivos dos (Luciano, produtor de queijo).
produtos alimentares e, portanto, preservados. Voltando ao contexto em que a produção e a
Todavia, na formação acadêmica dos profissionais comercialização dos queijos mineiros artesanais fo-
que atuam e atuarão junto a esses produtos e seus ram proibidas, “O Mineiro e o Queijo” mostra que, a
produtores, assim como em instituições de regula- partir da ação coerciva do Estado brasileiro, instau-
ção e pesquisa, ainda permanece enraizada a pers- rou-se uma rede institucional que passou a atuar
pectiva sanitarista, segundo a qual a qualidade sobre o sistema de produção. Criou-se, assim, em
dos produtos é aferida a partir de características 2002, a Lei Estadual n. 14.185 que dispõe sobre o pro-
higiênico-sanitárias dos locais de produção, maté- cesso de produção de queijo minas artesanal (MINAS
rias-primas e produtos finais. Mas, ao adotar pa- GERAIS, 2002). Neste período, em Minas Gerais, a
râmetros e critérios que conformam o arcabouço universidade passou a dedicar-se ao estudo do siste-
legal em que se inserem a produção e o processa- ma de produção do queijo e, ao mesmo tempo, o
mento de alimentos, os quais foram elaborados serviço de extensão rural iniciou programa para for-
para atender a realidade e a escala de produção de necer orientações técnicas para aprimoramento do
indústrias de grande porte, as estruturas e modos processo de produção.
de fazer de produtos tradicionais – predominan- Depoimentos de entrevistados associados a
temente produzidos em escala artesanal – necessi- instituições de apoio deixam claro o intuito de técni-
tam ser alterados significativamente de modo a cos no sentido de intervir no processo e aprimorar o
atender às regulamentações vigentes. sistema tradicional de produção de queijo. Contudo,
Diante desse contexto, o desafio que então fica também explícita a desconfiança e dificuldade de
se apresenta é a valorização desses produtos sem a produtores em aderir às propostas de inovação intro-
necessidade de alterações de estrutura e proces- duzidas pelo programa queijo minas artesanal10.
samento, que potencialmente implicam descarac- A resistência dos produtores pode ser ex-
terização do saber-fazer a eles associado. plicada pelo fato de que, embora o modo de fazer
No caso do queijo artesanal mineiro, este seja supostamente preservado, são estabelecidos
sempre foi produzido e comercializado na infor- critérios que apontam para alterações na estrutura
malidade. No entanto, no ano de 2000, o Ministé-
rio Público proibiu que os queijos artesanais mi- 10O Programa Queijo Minas Artesanal foi criado em 2000 pela
neiros circulassem e fossem comercializados, a Secretaria de Agricultura, Pecuária e Abastecimento de Minas
menos que seguissem normas de produção indus- Gerais, buscando melhorar a qualidade dos queijos artesanais e
tentando mediar toda a polêmica que se criou a partir da ação
trial que regulamentam a produção, circulação e do estado brasileiro em relação à produção de queijos.
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O Mineiro, o Queijo e os Conflitos em Torno dos Alimentos Tradicionais

física das queijarias, no modo de acompanhar o como perspectiva primar pela preservação de um
rebanho e nas práticas de higiene. Ademais, espe- saber, de um modo de vida, precisam dar voz aos
cialmente no que se refere à estrutura física, passa grupos que argumentam em favor da manutenção
a ser necessário fazer investimentos para que os de práticas originais e questionam exigências im-
critérios estabelecidos sejam contemplados. Esses postas verticalmente, pois, em geral, são esses os
investimentos, ainda que referentes à estrutura produtores que assumem, em certa medida, o
dimensionada para processamento em pequena papel de guardiões de práticas, saberes e modos
escala, representam, para a maioria dos produto- de vida.
res, gastos elevados. No sentido de aprofundar essas reflexões,
Nesse quadro, cabe lembrar que Minas toma-se aqui a noção de reprodução social, há
Gerais possui em torno de 30 mil famílias que, em muito consagrada nas ciências sociais, definida
maior ou menor escala, produzem queijo. Desse não apenas pela satisfação das necessidades eco-
total, apenas 230 produtores11 atingiram as exigên- nômicas, mas também pelas demandas culturais e
cias para cadastrar-se e, assim, ter sua produção sociais. Dessa abordagem, resulta um olhar que
legalizada, ainda que de forma circunscrita aos não reduz o agricultor a mero homo economicus,
limites do estado mineiro. Considerando que o movido estritamente pela sobrevivência e pela
universo de 30 mil produtores é composto também produção, mas que o vê como ser social sujeito a
por aqueles que produzem em uma escala mínima desejos e orientado por valores que não são redu-
e que, possivelmente, não teriam interesse ou con- zidos à lógica econômica. Com base nessa perspec-
dições financeiras para regularizar a produção, ao tiva, pode-se dizer que a adoção ou não de tecno-
constatar que o número de produtores cadastrados logias está associada à própria reprodução social
representa menos de um por cento do total, fica da família camponesa. Sob essa ótica, as inovações
nítida a lacuna existente entre os interesses e pos- serão incorporadas desde que isso seja importante
sibilidades dos produtores de queijo e a solução para a família e que contribuam para sua reprodu-
que hoje o Estado lhes oferece. ção, caso contrário não serão adotadas, por não
Diante dessa situação, a questão que se co- fazer sentido para o grupo familiar. De acordo
loca é: uma política dessa natureza, que propor- com essa linha argumentativa, é possível afirmar
ciona que apenas um pequeno grupo possa acessá- que as discussões recentes sobre valorização de
la, não poderia criar espaços privilegiados para produtos locais, acesso a novos mercados e ade-
uma minoria técnica e economicamente mais apta? quação de legislações não atingem ou não fazem
E o restante, que representa a quase totalidade de sentido a todos os produtores, uma vez que gran-
produtores de queijos artesanais, estaria condena- de parte deles vive à margem de todos esses pro-
do à informalidade? Num primeiro momento, a cessos: seguem fazendo queijo e vivendo, como
não adesão de um produtor à proposta pode ser antes faziam. Para ilustrar essa situação, cabe re-
justificada por questões econômicas; todavia, nes- correr a um exemplo mostrado no documentário,
sa rejeição podem estar contidas outras motiva- que traz a história de Zé Pão e sua família, que
ções. A opção pelo fazer tradicional, por exemplo, nasceram e vivem nas encostas da Serra da Canas-
pode ser visto como resistência às intervenções tra, lá criaram seus quatro filhos, sendo que os
externas e reivindicação do direito de viver e tra- mais velhos também produzem queijo. O modo
balhar como sempre fizeram. Ações que tenham como vive essa família evidencia não o que muitas
vezes tem sido interpretado como aversão às ino-
11Dados da lista de produtores cadastrados, divulgada pelo vações, mas sim a inutilidade delas no contexto
Instituto Mineiro de Agropecuária (IMA), referentes ao período em que realizam seu modo de vida.
compreendido entre 2002 a 2012. Para mais informações, ver:
www.ima.mg.gov.br. Em relação ao contexto dos Campos de
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Santos; Cruz; Menasche

Cima da Serra, observando práticas e conhecimen- transportadas13 novas - e, consequentemente, ma-


tos tradicionais de produtores de queijo serrano, cias -, amassariam e perderiam a forma. Com o
Cruz (2012) apresenta evidências de que, no caso passar dos anos e com o advento das facilidades
desse produto, o modo de fazer, os utensílios em- de transporte e acondicionamento do produto, os
pregados e até mesmo as possíveis mudanças na consumidores passaram a consumir também o
estrutura em que o queijo é processado são cuida- queijo fresco. No entanto, para os produtores, o
dosamente analisadas pelos produtores. Desse processo de cura ou maturação tem relação direta
modo, substituições e adaptações são realizadas com a qualidade do produto. Segundo alguns
após criteriosa avaliação, que pesa os benefícios relatos, a cura é a garantia de que o produto está
que podem advir, mas também as alterações inde- bom, uma vez que, segundo entendem, no proces-
sejadas nos queijos que podem delas resultar. so ou o queijo matura ou apodrece. Se maturar, é
porque está em boas condições para ser consumi-
do.
4 - CONFLITOS ENTRE TRADIÇÃO E LEGIS- Atualmente, em função de mudanças ocorri-
LAÇÃO das no mercado consumidor, o queijo é comercia-
lizado duas ou três vezes por semana, de modo
Além das discussões pontuadas anterior- que não há tempo hábil para que a maturação se
mente, o documentário “O Mineiro e o Queijo” realize. Observa-se aí uma discrepância entre o
apresenta outras questões referentes à produção que seria a preferência majoritária dos consumido-
artesanal de queijos em Minas Gerais que dialo- res - evidenciada pela maior demanda por queijos
gam com estudos sobre valorização de produtos frescos - e a preferência dos produtores, para
tradicionais. No entanto, apesar da amplitude de quem o queijo fresco não passaria de uma massa
temas apresentados pelo documentário, privilegi- com soro, que apenas poderia ser considerada
ou-se neste artigo, olhar mais atentamente para queijo após o processo de maturação do produto.
aspectos relacionados à legislação sanitária, uma Para os produtores de queijo minas arte-
vez que ela tem-se constituído em restrição severa sanal, protagonistas do documentário, o tempo de
à preservação de alimentos artesanais, conflituan- maturação pode variar de 7 a 30 dias, dependendo
do diretamente com práticas adotadas tradicio- do gosto do consumidor e das condições climáti-
nalmente pelos produtores. Para compreender cas do período, sendo considerado ideal o queijo
esse processo, vale entender as mudanças ocorri- cuja casca é bem delimitada e amarelada.
das ao longo do tempo, que caracterizam o que se No estudo de Cruz e Menasche (2011), re-
constituiu hoje como queijo minas artesanal. ferente ao queijo serrano dos Campos de Cima da
As narrativas apresentadas no documen- Serra, Estado do Rio Grande do Sul, observou-se
tário informam que, antigamente, o queijo era que produtores e consumidores da região mencio-
comercializado uma vez por mês, em peças gran- nada consideram que o queijo está pronto para o
des, bem maturadas12, uma vez que, caso fossem consumo quando se encontra “amarelinho”, o que
ocorre aproximadamente após 15 ou 20 dias de
maturação.
As preferências de consumidores e produ-
tores mineiros - do mesmo modo que, como visto,
12No contexto de produção do queijo minas artesanal, o proces-
so de maturação (ou de cura) pode ser definido como fase com
as dos gaúchos dos Campos de Cima da Serra -
duração específica para cada microrregião, que objetiva o
desenvolvimento do sabor, a desidratação e a estabilização do 13O transporte dos queijos era, em longas distâncias, realizado
produto, de modo a atingir a consistência e as características no lombo de burros, sendo o produto acondicionado em caixo-
organolépticas desejadas (MENESES, 2006). tes de madeira.
15
O Mineiro, o Queijo e os Conflitos em Torno dos Alimentos Tradicionais

encontram-se em conflito direto com a legislação, sadora da Universidade Federal de Viçosa).


que normatiza a produção de queijos elaborados à A visão da pesquisadora mineira está em
base de leite cru no Brasil. A legislação federal14 consonância com a discussão apresentada por
exige que queijos feitos a partir de leite cru sejam Cruz e Menasche (2011), em artigo em que a legi-
maturados por no mínimo 60 dias, enquanto em timidade da “regra dos 60 dias” é questionada. Ali
Minas Gerais, pesquisas fundamentadas especial- as autoras apontam que se trata da adoção de uma
mente em características climáticas, modo de pro- regra difundida pelos Estados Unidos e adotada
dução e umidade do produto, têm contribuído por diversos outros países, incluindo o Brasil, sem
para alimentar debate que defende o período de 21 questionamentos. No caso brasileiro, essa regra
dias de maturação como prazo a ser cumprido não está embasada em estudos e pesquisas que a
antes da comercialização do produto. Dessa forma, legitimem para atender as condições de cada regi-
o produto feito em Minas Gerais, ainda que ade- ão produtora de queijo. Como consequência, a
quado às normas estaduais, é proibido de circular adoção e reprodução desses critérios, alheios às
fora do estado. realidades locais, tornam-se uma ameaça para os
O documentário deixa clara a dissonância produtos tradicionais, visto que, na tentativa de
entre as duas legislações - federal e estadual -, formalizá-los, muitas vezes criam-se mais e mais
como se pode observar nos trechos de depoimen- empecilhos à sua preservação.
tos transcritos na sequência. No Rio Grande do Sul, o queijo serrano foi
A lei federal apresentou o número 60. Sessenta produzido livremente por mais de dois séculos.
dias de maturação e até hoje não nos apresentou Contudo, num dado momento, essa situação apa-
uma base científica que fale por que 60 dias. O rentemente favorável, passou a representar uma
Instituto Mineiro de Agropecuária (IMA) adotou ameaça para os produtores que, atualmente, po-
21 dias porque ele tem um trabalho com base ci- dem ter seus queijos apreendidos durante a co-
entífica desenvolvido pela Universidade Federal mercialização. Nesse sentido, é interessante levar
de Viçosa, que dá pra nós a informação de que 21 em consideração que, no Brasil, até certo período,
dias é suficiente para maturação do queijo (Mar- não havia legislação que regulamentasse a produ-
cos Vale, técnico do Instituto Mineiro de Agrope- ção e comercialização de produtos alimentares.
cuária). Assim, podia-se, por exemplo, consumir leite em
O que aconteceu no Brasil? Não houve pesquisa, garrafas retornáveis, entregues em casa pelo leitei-
foi feita uma adoção de legislação de outros paí- ro. Era possível produzir e comercializar queijos
ses, onde aquela legislação dava certo. O Brasil é feitos de diferentes formas, sem que houvesse aí
um país tropical, ele tem que ter outro tipo de le- qualquer ilegalidade. No entanto, a partir dos anos
gislação [...], nós não precisamos de 60 dias para 1950, com a implantação de legislação pertinente à
maturar queijo, não (Célia Lúcia Ferreira, pesqui- produção de alimentos em escala industrial15, os
produtores de queijos, assim como outros produ-
14Esse critério está presente na Portaria n. 146, de 7 de março de tores de alimentos tradicionais, especialmente
1996 (BRASIL, 1996), publicada pelo Ministério da Agricultura aqueles de origem animal, passaram a ser enqua-
Pecuária e Abastecimento (MAPA). Recentemente, em 16 de
dezembro de 2011, o MAPA publicou a Instrução Normativa Nº drados na situação de infratores: assim se deu com
57, que prevê a comercialização de queijos artesanais com os produtores de queijos artesanais no Brasil, aí
menos de 60 dias de maturação. Feita em gabinete, sem discus-
são consistente com a sociedade civil, a normativa condiciona a
incluídos o queijo serrano, queijo minas, queijo de
permissão a procedimentos a serem adotados no futuro, sem coalho e tantos outros.
explicitar, em qualquer momento, como esses procedimentos se
realizarão. Dada sua inoperância, a impressão é que se trata 15Referimo-nos à Lei n. 1.283, editada em dezembro de 1950
apenas de um documento que visa possibilitar ao MAPA um (BRASIL, 1950) e aprovada pelo Decreto n. 30.691, de 1952 (BRA-
trato aparente do assunto. Para saber mais sobre essa Instrução SIL, 1952), que estabeleceu diretrizes sobre a inspeção industrial
Normativa, ver: http://www.in.gov.br/imprensa/16/12/2011. e sanitária dos produtos de origem animal.
16
Santos; Cruz; Menasche

Para contornar essa situação, nas últimas nhecido e valorizado. De maneira geral, a socieda-
décadas, várias iniciativas têm sido pensadas para de, alicerçada na legitimação do conhecimento
formalizar a produção e processamento familiar científico, culto e acadêmico, atribui a esse tipo de
de alimentos. Esse é o caso da Lei 14.185, de 2002, conhecimento legitimidade para definir o rumo de
que se propõe a legalizar a produção do queijo procedimentos a serem adotados. Em paralelo a
minas artesanal em Minas Gerais, já discutida esse processo e o fortalecendo, dá-se a deslegiti-
anteriormente neste artigo. Na região dos Campos mação do conhecimento tradicional e local, ainda
de Cima da Serra, uma tentativa de formalização que esse também seja originário de experimenta-
da produção de queijo serrano se deu por meio da ção, observação, avaliação e possua um ordena-
aprovação da Portaria n. 214, de dezembro de mento lógico decorrente de constante utilização de
2010, que dispõe sobre o processo de produção do práticas compartilhadas. Se observarmos o caso
queijo serrano. Especialmente no que diz respeito dos dois queijos artesanais que analisamos ao lon-
ao período de maturação, o item 2.1.4.10 desta go deste artigo, parece pouco provável que algu-
Portaria define o processo de maturação como ma pesquisa científica possa ser realizada pelo
etapa com duração mínima de 60 dias, em tem- período de dois séculos em que esses queijos vêm
peratura superior a 5º C, com o objetivo de ga- sendo produzidos. Todavia, os experimentos e
rantir a inocuidade ao produto, o desenvolvi- práticas atreladas ao conhecimento tradicional,
mento do sabor, a desidratação e a estabilização acumulados na elaboração desses queijos possuem
do produto para atingir a consistência desejada este tempo de existência. Ainda assim, para legi-
(RIO GRANDE DO SUL, 2010). timá-lo, colocam-se como necessários inúmeros
Observa-se, nesse caso, a reprodução do estudos “científicos” que atestem que esse produto
mesmo critério definido em âmbito nacional, em- pode ser consumido sem que represente riscos aos
bora já exista conhecimento suficiente para saber consumidores.
que nos Campos de Cima da Serra do Rio Grande Essa situação, conforme já discutimos, é
do Sul, do mesmo modo que em Minas Gerais, não intensificada em iniciativas como a do Estado bra-
é prática usual comercializar ou consumir queijos sileiro, que adotou um modelo de legislação for-
com dois meses de maturação. Assim, tem-se uma temente embasado no contexto norte-americano16,
tentativa de “enquadrar” os produtores em uma no qual o parâmetro sanitarista sobrepõe-se a ou-
regra ou em leis pré-existentes; enquanto isso, se o tros parâmetros de qualidade, situação que se
objetivo é a valorização desses alimentos, o movi- repete para os diversos produtos tradicionais pre-
mento deveria ser o contrário - ou seja, a partir da sentes no Brasil. A adoção de arcabouço legal des-
realidade da produção, propor meios para a for- contextualizado submete produtos e produtores à
malização. Essa discussão é evidenciada no docu- informalidade. Diante dessa situação, a necessida-
mentário “O Mineiro e o Queijo”, e sintetizada na de de uma revisão legal baseada na identificação
fala de um produtor da Serra da Canastra: das diferenças regionais é percebida não só pelos
A legislação tem que se adequar a este produto produtores, mas também por alguns técnicos que
(o queijo) e não esse produto se adequar à legis- atuam diretamente com a realidade vivenciada
lação feita em gabinete (Joãozinho, produtor de pelos produtores.
queijo). Nós precisamos avançar mais lá em Brasília, é lá
Em meio a esses argumentos, balizados, que está o Ministério, lá que estão nossos legisla-
por um lado, por critérios normativos e, por outro, dores! (Joãozinho, produtor de queijo).
por práticas, experiências e hábitos de consumo O pessoal lá em cima [em Brasília] precisa saber
locais, a questão subjacente diz respeito à constru-
ção do conhecimento e ao modo como ele é reco- 16Para saber mais, ver Cruz e Menasche (2011).
17
O Mineiro, o Queijo e os Conflitos em Torno dos Alimentos Tradicionais

o que está acontecendo aqui embaixo [no Estado] dução e, assim, poder comercializar legalmente
(Clério Alves, técnico do MAPA de Minas Gerais). seus queijos no Estado de Minas Gerais. Após as
O resultado de todo esse processo contro- adequações, entretanto, o preço alcançado não foi
verso é que, só no Estado de Minas Gerais, tonela- compatível com a elevação de custos com que o
das e toneladas de produtos são comercializadas produtor teve de arcar e, em consequência, ele
ilegalmente pelo Brasil afora. Segundo depoimen- deixou de produzir queijo, abandonando as insta-
to apresentado no documentário, lações.
este é um caso típico de burocracia, falta de sen- Como procuramos argumentar anterior-
sibilidade política, técnica e científica. Hoje em mente, para um produtor de queijo tradicional,
dia esses argumentos nos quais o governo se ba- abandonar a produção de queijo tem implicações
seia, nos quais os lobbies dos grandes laticínios se bem mais amplas do que as associadas apenas à
baseiam, não se sustentam mais (Carlos Alberto esfera econômica. Essa mudança está associada
Dória, consultor da ONG Sertãobrás). também ao esvaziamento de um modo de vida, da
A indústria de lácteos, que formalmente cultura dos homens e mulheres das serras de Mi-
abastece o Brasil, está pautada na homogeneização nas.
dos processos via pasteurização. O resultado é um
queijo padronizado, de características que se repe-
tem independentemente da região em que é pro- 5 - CONSIDERAÇÕES FINAIS
duzido. Por outro lado, o queijo artesanal está
pautado na diversidade e pessoalidade. Mas, ape- Os desafios à valorização dos produtos lo-
sar da artesanalidade, que caracteriza a produção cais, tradicionais e artesanais são muitos e envol-
de queijos tradicionais, tornando-a mais trabalho- vem uma rede tecida por diferentes atores e suas
sa, os queijos pasteurizados alcançam preços ele- competências: produtores, técnicos, pesquisado-
vados em relação aos queijos artesanais. Uma das res, instituições de fomento e fiscalização e con-
razões do queijo artesanal ter menor preço é o fato sumidores. Unir os nós, fortalecendo os arcos des-
de não poder ser comercializado fora de Minas sa rede é talvez o maior desafio e a condição es-
Gerais - situação também ilustrada no documentá- sencial para que esse processo atinja seu objetivo:
rio -, o que resulta em uma elevada oferta do pro- impedir que os produtos tradicionais e os modos
duto no estado. Esse quadro de fragilidade pode de vida a eles associados desapareçam.
levar a rupturas nos sistemas tradicionais de pro- A qualidade dos produtos, que sempre
dução e na perda de práticas artesanais, como aparece como questão central nos diferentes dis-
ilustra o depoimento de um produtor mineiro, cursos sobre produtos artesanais, parece ter signi-
entrevistado no documentário. ficados diferentes para os distintos atores envolvi-
Eram poucos produtores aqui que vendiam leite dos nos sistemas tradicionais de produção. Assim,
para indústria. Era só queijo. Há alguns anos atrás mais do que adequar legislações ou adequar pro-
não se via caminhão leiteiro por aqui. Não era fá- dutos às legislações, é preciso construir critérios
cil ver isso não. Agora, hoje em dia a empresa es- adequados à escala e realidade de produção desses
tá aí. Até nós, que estamos cadastrados, estamos produtos e das famílias rurais que os elaboram.
com água na boca de largar de fazer queijo para Esta proposta inclui a construção de pactos com os
por um “tanquinho” para vender leite (João Bos- produtores, em que os aspectos sanitários possam
co, produtor de queijo). dialogar com o saber-fazer e com os conhecimen-
Para evidenciar essa questão, o filme mos- tos tradicionais, modos de vida e, consequente-
tra o caso de um produtor que foi um dos primei- mente, com o entendimento que os produtores
ros a realizar as melhorias para formalizar a pro- têm sobre suas práticas.
18
Santos; Cruz; Menasche

As diferenças regionais, conformadas pelo alimentos a partir do caso do Queijo Serrano dos Cam-
pos de Cima da Serra - RS. 2012. 292 p. Tese (Doutorado
ambiente natural e pela cultura daqueles que cons-
em Desenvolvimento Rural) - Programa de Pós-
troem um território, precisam ser levadas em con- Graduação em Desenvolvimento Rural, Universidade
ta na elaboração de instrumentos regulatórios que Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012.
possam, efetivamente, contribuir para a manuten- ______.; MENASCHE, R. Se o leite é cozido, o queijo não é
ção de sistemas tradicionais de produção de ali- serrano: tradição, conhecimento e discurso instituído no
mentos. Caso contrário, tratar-se-ia apenas da controverso debate em torno de queijos feitos de leite
cru. In: COLÓQUIO AGRICULTURA FAMILIAR E DESENVOL-
constituição de mais uma lei, decreto ou portaria
VIMENTO RURAL, 3., 2011, Porto Alegre. Anais... Porto
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19
O Mineiro, o Queijo e os Conflitos em Torno dos Alimentos Tradicionais

O MINEIRO e o queijo. Direção e roteiro: Helvécio Ratton. Acesso em 16 nov. 2011.


Produção: Simone Magalhães Matos. Fotografia: Gilberto
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Otero. Montagem: Chico de Paula. Música: Tavinho Moura.
relationships between alternative and conventional food
Belo Horizonte: Quimera, 2011. 1 DVD (72 min.), HD.
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Recebido em 05/11/2012. Liberado para publicação em 14/01/2013.

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