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A comunidade negra rural camponesa La comunidad negra rural campesina The black rural community of the
do Engenho Siqueira pratica modos de del Engenho Siqueira practica modos de Engenho Siqueira sugar mill practices
produção agrícola e pesqueira herdados producción agrícola y de pesca heredados agricultural and fishing forms of
de seus antepassados. Pretende-se de sus antepasados. Se pretende explicar production inherited from their
explicar neste texto as compatibilidades en este texto las compatibilidades ancestors. The article attempts to explain
culturais e técnicas entre os atuais culturales y técnicas entre los actuales the cultural and technical compatibilities
modos de produção desenvolvidos modos de producción desarrollados between current developed forms of
e a agroecologia. A agricultura y la agroecología. La agricultura production and agroecology. Traditional
tradicional, como atividade principal tradicional como actividad principal de agriculture, the main activity of this
dessa comunidade, constitui uma das esta comunidad constituye una de las community, is one of the referents
referências no manejo sustentável dos referencias en el manejo sostenible de for the sustainable management of
ecossistemas desta região litorânea. los ecosistemas de esta región costera. ecosystems in this coastal region.
Foram feitas quatorze entrevistas Fueron hechas catorce entrevistas Fourteen semi-structured interviews
semiestruturadas com moradores mais semiestructuradas con habitantes más were carried out with farmers as well as
antigos do engenho e agricultores(as). Os antiguos del ingenio y agricultores(as). with the oldest inhabitants of the sugar
resultados indicam que essa população Los resultados indican que esa población mill. According to results, this population
parece não ter mantido recentemente no demuestra haber mantenido doesn’t evidence to keep a subaltern
vinculação subalterna com o sistema recientemente vínculo subalterno con link with the sugar cane monoculture
monocultor da cana-de-açúcar, quer no el sistema del monocultivo de la caña de systems recently. This is observed in
assalariamento nas usinas próximas azúcar, tanto en la forma de asalariar the wages paid for the factories and
quer no cultivo de cana na comunidade. en las fábricas cercanas como en el so in the local cane crops. Finally, the
Por outro lado, as práticas agrícolas e cultivo de caña en la comunidad. Por study revealed that the agricultural
pesqueiras ali desenvolvidas apresentam otra parte, las prácticas agrícolas y de and fishing practices developed in the
grande potencialidade agroecológica, pesca allí desarrolladas presentan gran Quilombo community have a significant
como ficou demonstrando durante o potencialidad agroecológica, como se agroecological potential.
estudo. demostró durante el estudio.
Palavras-chave: agroecologia, brecha Palabras clave: agroecología, brecha Keywords: agroecology, rural gap,
camponesa, conhecimento tradicional, campesina, conocimiento tradicional, traditional knowledge, quilombolas,
quilombolas, territorialidade. quilombolas, territorialidad. territoriality.
* Endereço postal: Rua Abelardo, n.° 120, apt. 102, Graças, Recife, PE, Brasil.
Correio eletrônico: marligondim@gmail.com
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“forros”1 e também quilombolas, por parte de alguns coerência quanto às adequações e aos recortes histó-
membros da comunidade, são elementos significativos ricos das populações tradicionais e pela coerência das
e suficientes para esse reconhecimento étnico. leituras apropriadas à realidade brasileira.
A denominação de remanescentes de quilombo, Devido à natureza deste estudo, centrado, por um
expressão usada para conferir direitos territoriais, é lado, no aprofundamento de aspectos teórico-cientí-
também identidade não assimilada pela grande maio- ficos das bases da agroecologia e, por outro lado, nos
ria dos entrevistados, porém, cabe lembrar que essa modos de produção, da transmissão e produção do
denominação vem sendo utilizada em paralelo, ou da conhecimento das populações tradicionais, fez-se ne-
mesma forma, que comunidades negras rurais ou te- cessário lançar mão de procedimentos que se ocupas-
rras de pretos. O aspecto aqui em destaque que define, sem desses aspectos. O método científico empregado
ou deve definir, a etnicidade desses grupos e para seu para o trabalho com a comunidade foi o estudo de caso,
consequente reconhecimento é que eles “consideram método frequentemente utilizado nas ciências sociais
a si próprios e são também por outros considerados e humanas, e que se ajusta à natureza qualitativa desta
como distintos” (O’Dwyer 2008, 47). Orientação com pesquisa. Para Coelho Cesar (2005), a escolha por esse
a qual se concorda e pode-se inferir ser a que mais se método envolve vários aspectos, entre os quais desta-
aproxima da percepção e vivência da população do En- camos: a natureza da experiência, enquanto fenômeno
genho Siqueira e seu entorno. a ser investigado, e o conhecimento que se pretende
Busca-se também, com este trabalho, identificar as alcançar com o estudo.
técnicas desenvolvidas que conformam o conhecimen- O instrumento utilizado para a coleta de dados foi
to tradicional no sistema de produção agrícola-pes- a entrevista semiestruturada, por possibilitar que, a
queiro da comunidade, assim como identificar quais as partir de questionamentos básicos, apoiados em teo-
mudanças presentes na aplicação desse conhecimen- rias e hipóteses que interessem à pesquisa, surja um
to. Na interação com o entorno canavieiro, procura-se campo amplo de interrogativas, no processo de inte-
identificar possíveis influências vinculadas às práticas ração entre o pesquisador e o entrevistado.
desenvolvidas nesse modo de produção. Foram realizadas quinze entrevistas no total,
O processo de pesquisa desenvolvido se deu em sendo catorze com moradores do Engenho Siqueira,
duas frentes: uma que incluiu um mergulho nas fontes entre 60-83 anos, assim como com agricultores(as),
primárias das várias áreas das ciências sociais e agrá- pescadores(as) e lideranças da comunidade, entre 29 e
rias a que o tema nos remete, e outra junto aos mo- 44 anos. A população da comunidade, à época da pes-
radores, fonte privilegiada das questões fundamentais quisa, era composta de 140 famílias. Por não se tratar
para, de um lado, estabelecer um diálogo com a litera- de pesquisa quantitativa, julga-se que o número de
tura disponível e, por outro, registrar as descobertas, entrevistados foi suficiente para o estudo exploratório
constatações e inquietações que surgem numa pesqui- realizado. Foi ainda realizada uma entrevista com um
sa desta natureza. representante da Prefeitura de Rio Formoso, particu-
As fontes pesquisadas foram necessariamente di- larmente da Secretaria de Cultura.
versas e se deram simultaneamente ao processo de A história oral, espécie de fio condutor utilizado na
pesquisa de campo. Fez-se necessário recorrer à lite- construção dos percursos históricos dos moradores,
ratura sobre a Zona da Mata Pernambucana, sobre os segundo Alberti, é recuperada através de entrevistas
aspectos históricos de formação do Engenho Siquei- “com membros de grupos sociais que, em geral, não
ra e seu entorno, e sobre as populações tradicionais, deixaram registros escritos de suas experiências e for-
particularmente sobre quilombolas e sua territoriali- mas de ver o mundo” (2006, 157). Muito embora não
dade. As fontes, no que diz respeito aos conceitos da tenha havido stricto sensu quanto à construção de his-
agroecologia, por serem também fartas e diversas, tórias de vida, muitos dos entrevistados fizeram rela-
exigiram escolhas quanto à abordagem, primando pela tos de suas histórias, ajudando a construir, junto com
os outros relatos, uma linha do tempo da história da
1 Expressão utilizada pela comunidade, sobretudo pelos
comunidade e, particularmente, sua inserção nas ativi-
idosos(as), para denominar os negros(as) que receberam a dades produtivas.
carta de alforria, ou seja, os alforriados.
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BR - 101
Guyana Suriname
Colombia IPOJUCA
French guyana
Ecuador
60
-0
RIBEIRAO
PE
SIRINHAEM
Perú
PE - 085
Brazil
PE
-0
60
PE - 060
Bolivia
GAMELEIRA
Paraguay
Chile
Argentina PE - 073
Uraguay
RIO FORMOSO
RN
CE
PE - 060
PI TAMANDARE
PB
AL BARREIROS
BA
SE
SAO JOSE DA COROA GRANDE
possível devido à “permanência de uma memória, indi- pio vizinho, mas, à época, um dos distritos de Rio For-
vidual e coletiva, que conseguiu estender-se pelas dife- moso. Alguns também relatam que seus pais vieram de
rentes configurações societárias que formaram a espécie Tamandaré e que eles nasceram e se criaram em Siquei-
humana” (Toledo e Barrera-Bassols 2008, 15)5. ra. Em Tamandaré, a maioria cita o Engenho Mamu-
Entender a gênese da comunidade do Engenho Si- cabinha como sendo o local de origem dos seus pais e
queira, apoiando-se nos conceitos de memória coletiva avós; no entanto, outras localidades foram citadas: co-
e memória biocultural, poderá auxiliar a compreender munidade de Brejo e Engenho Tinoco, em Tamandaré,
melhor as atuais formas de ocupação e produção (agrí- que, segundo relatos, é local onde ainda vivem muitos
cola e pesqueira), suas origens, a linha de transmissão negros; também foi citado o Engenho Ilheta Grande
dos conhecimentos e a identidade coletiva, que mesmo em Barreiros. Há também vários relatos de pessoas que
pouco formulada nos discursos, pode ser lida nas en- disseram ter nascido na Praia da Pedra, ali mesmo em
trelinhas de muitas falas e de outras expressões. Para Rio Formoso, próximo a Siqueira.
isso, o insumo mais valioso para estabelecer a linha do As origens da comunidade, aventadas pelos mora-
tempo foi, em sua maioria, a memória e o relato dos dores, passeiam em possibilidades que vão desde a exis-
moradores mais velhos da comunidade. tência de um quilombo à fuga e refúgio de africanos no
Grande parte dos entrevistados na faixa etária de porto do Elói, hoje local de pesca e coleta de mariscos,
61-83 anos relata que veio de Tamandaré, hoje municí- ostras, aratu etc. (figura 2).
Como já mencionado anteriormente, o processo de
5 Tradução própria. titulação encontra-se numa fase inicial. O reconheci-
mento por parte da Fundação Palmares da comunidade na história que comprovam a existência e importância
como remanescente de quilombo é apenas o primeiro da irmandade. A construção da igreja por essa irman-
passo no processo que deverá resultar na demarcação e dade se deve ao fato de os negros não poderem entrar
titulação da terra. Importante destacar que os direitos na Matriz de São José, igreja mais antiga do município,
das comunidades quilombolas à propriedade de suas reservada aos cultos dos brancos. A Igreja do Rosário
terras e à proteção de seus “modos de criar, fazer e vi- dos Homens Pretos foi construída pelos próprios ne-
ver” estão assegurados na Constituição Federal de 1988 gros, tendo, inclusive, na época, um cemitério ao lado
pelos artigos 215 e 216 e pelo artigo 68 do Ato das Dis- só para enterrar seus mortos.
posições Constitucionais Transitórias. No entanto, para a maioria dos moradores(as) do
Engenho Siqueira, a igreja não assume o lugar de cul-
Os “segredos” de Siqueira to dos negros(as) ou reconhece-se seu valor histórico
e outros aspectos culturais de resistência na cultuação e vivência de parte da reli-
No processo de visitas e entrevistas realizadas no giosidade de matriz africana. Apesar de ser importante
Engenho Siqueira, não houve menção às religiões afri- considerar que pode ela não ter sido o único espaço da
canas, práticas e rituais de matriz africana. Com ex- cultuação e das manifestações da religiosidade de ma-
ceção de dois membros da diretoria da associação, é triz africana.
como se nunca tivesse havido cultos ou locais de culto No processo de pesquisa, aos(às) entrevistados(as)
para essas práticas no passado. foi perguntado sobre a religião à qual pertencem ou
Aspecto de valor histórico que necessita ser mencio- pertenceram seus pais e avós; a resposta variava entre
nado é a existência da Igreja de Nossa Senhora do Ro- católica e protestante. Há na comunidade três igrejas
sário dos Homens Pretos (figura 3), construída em 1849 protestantes construídas, duas Assembleias de Deus e
Instituto de Planejamento de Pernambuco (CONDEPE uma Batista Shekinah, sendo que os católicos frequen-
1992, 57), pela Irmandade de Nossa Senhora do Ro- tam a Igreja de São José em Rio Formoso.
sário, também denominada, irmandade dos homens Entender os aspectos culturais da comunidade de
“pardos”. As referências a essa igreja, pela comunidade, Siqueira significa entender também outras manifes-
no entanto, é pouco significativa. A presidenta da asso- tações culturais que ocorrem na região e como se dá
ciação de agricultores da comunidade quilombola, agri- sua participação e inserção nesses eventos, a exem-
cultora e pescadora, 41 anos, é quem recorda de fatos plo da festa de Santo Amaro, que mobiliza devotos de
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municípios de grande parte da região da Mata Sul e da formação dos espaços produtivos e das heranças no
mesmo alguns da Mata Norte e da região metropoli- trabalho na cana-de-açúcar nos engenhos vizinhos.
tana do Recife. Essa festa chega a ser tão importante É importante dar destaque a alguns aspectos que in-
e famosa nos relatos que é mais mencionada do que a dicam fortes similaridades e/ou compatibilidades que
festa da padroeira do município. conformam também uma herança no modo de cultivo e
A constituição do ponto de cultura6 na comunida- práticas da população negra escravizada no período co-
de de Siqueira, cuja inauguração ocorreu no mês de lonial que foi transmitida ao longo dos séculos e ressig-
fevereiro de 2011, é também um aspecto importante nificada por vários agricultores(as) nos tempos atuais.
na convivência e assimilação por parte da comunidade Inclusive os agricultores(as) agroecológicos na região
mas também da população do município com a exis- da Zona da Mata pernambucana.
tência de população reconhecida como remanescente Policultivo ou diversificação agrícola, conforme o
de quilombo na região. Muito embora os objetivos e que a literatura indica, já havia nos quilombos. No Qui-
sentidos do ponto de cultura ainda não tenham sido lombo dos Palmares, os negros cultivavam em regime
apropriados totalmente pela comunidade no geral. de policultura de forma sistemática: culturas alimentí-
A comunidade foi contemplada com o ponto de cias, como milho, batata-doce, feijão, mandioca, bana-
cultura a partir da participação da Associação dos Pro- nas, e também algodão e cana-de-açúcar (Freitas 1982 e
dutores de Siqueira numa seletiva do Ministério da Castro 2008).
Cultura. Segundo seu tesoureiro, estudante, 29 anos, Além do sistema de policultivo, aqui se insere tam-
o objetivo desse ponto de cultura é: “[...] exatamente bém outro elemento de análise, a “brecha camponesa”,
de resgatar a cultura da comunidade. Algumas cultu- que parece bastante adequada para explicitar outra
ras que são tradicionais, porém estão esquecidas, não forma de similaridade da agroecologia com este modo
é? Tendo em vista o tempo moderno”. Ainda segundo de produção: a resistência. Segundo Santana Cardo-
o entrevistado, esse movimento de fortalecimento da so, a expressão “brecha camponesa” foi utilizada pela
cultura já começou a partir do resgate de outros aspec- primeira vez por Tadeusz Lepkowski para “exprimir a
tos culturais como a corrida do tronco e o apoio à La existência de atividades que, nas colônias escravistas,
Ursa de Siqueira, grupo carnavalesco que tem 52 anos escapavam ao sistema de plantation, entendido em sen-
de existência. tido estrito” (Santana Cardoso 1979,133).
Lepkowski anuncia duas modalidades de brecha
Para além da herança canavieira: camponesa: a agricultura de subsistência, praticada pe-
conhecimento tradicional los negros fugidos, organizados em quilombos, e aquela
e a reinvenção do espaço produtivo praticada nos pequenos lotes concedidos em usufruto
aos escravos não domésticos. Esta última modalidade
cria o que o autor denomina de “mosaico camponês-es-
“Toda vida foi da gente. Mas era um tipo de coisa que a gente não levan- cravo”, isto é, a coexistência com o trabalho agrícola ou
tava a cabeça, né? Não sabia onde, como é que o tempo da vida, né? de industrial nas terras dos senhores de engenho. O que
vivê. Pensava que o mundo lá fora é melhó, mas aqui é melhó prá gente, se produzia nas “brechas” era destinado à subsistência,
porque é da gente.” ao mercado e muitas vezes à compra da carta de alforria
(Agricultor entrevistado, 55 anos) de muitos escravos.
O significado da resistência se reveste de um caráter
A história de povoamento e de constituição da comu- político e estratégico, ao analisarmos o destino que os
nidade do Engenho Siqueira está imbricada na história escravos davam à renda monetária que obtinham com
a comercialização da produção. Compravam alimentos,
roupas e víveres, antes obrigação dos senhores de en-
6 Os pontos de cultura são a principal ação do Programa mais
Cultura, proposto pelo Ministério da Cultura em parceria genho que, com as doações de parcelas a seus escravos,
com os governos estaduais e municipais. O intuito deles está com o fim de produzirem seu alimento, livraram-se da
em preservar memórias e histórias, além de estimular ações obrigação se suprir essas necessidades. Porém, a maior
voltadas para a cultura de raiz e para o fortalecimento das
virtude do destino desse dinheiro era empregá-lo na
manifestações populares dentro dos seus territórios de ori-
gem (Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Per- conquista tanto da autonomia econômica como da po-
nambuco - FUNDARPE). lítica, mediante a almejada liberdade.
Os aspectos ligados à brecha camponesa e pro- Além da necessária pluriatividade explícita nessa
tocampesinato negro, estudados por Mintz (2003) e definição, combinação de atividades de caça e cole-
Santana Cardoso (2004), tratam mais dos modos de ta com atividades de produção agrícola, há também a
produção, dos sentidos que esse evento promoveu e constatação de que a horta a que se referem os auto-
menos da produção em si e suas particularidades. res é composta de culturas de ciclo curto, tubérculos e
A historiografia ao longo desses séculos tem se de- outros —uma policultura, portanto— em detrimento
dicado mais à plantation e menos à produção agrícola de culturas permanentes, de ciclo longo, além do vo-
de alimentos. Foi a produção de alimentos, configurada lume e especialização da produção. Daí a identificação
como uma forma de resistência quilombola, os inter- de mandioca e milho, os produtos mais plantados nos
câmbios dos produtos gerados e possibilidade concreta chamados quilombos horticultores.
de autonomia gerada que permitiu a sobrevivência dos Se nos quilombos havia uma fartura, esta contras-
quilombos tipicamente dedicados à agricultura, além tava sobremaneira com a miséria da circundante mo-
da sua autonomia política. Prova disso é o caso do Qui- nocultura da cana-de-açúcar. Fato é que se, no Engenho
lombo de Palmares, como atesta Freitas: Siqueira, há três décadas, havia abundância de farinha
A povoação constituía uma unidade mais ou menos au- e outros produtos, como relatado, esse fato contrasta-
tossuficiente de produção e consumo, o que explica a sua va com a situação do proletário da cana-de-açúcar nos
autonomia política, a ponto de que no período à invasão engenhos e usinas (morada), morrendo de fome “quali-
holandesa não parece ter havido cooperação entre uma e tativa e quantitativa” (Castro 2008). Convém lembrar,
outra, nem mesmo em matéria de defesa. (Freitas 1982, 47) entretanto, que a despeito da fartura da produção da
mandioca, esta foi insuficiente para garantir uma ali-
Em seu livro Geografia da Fome, Josué de Castro des- mentação rica em nutrientes, estando a população de
taca a importância dos cultivos agrícolas de Palmares, áreas de plantation, à época, mesmo no que se refere
inclusive nas guerras: “Tal era a importância da lavoura à brecha camponesa, em estado permanente de risco
dos negros de Palmares que a guerra contra os quilom- quanto à segurança alimentar.
bos se desenvolveu estrategicamente baseada na des- Aqui cabe inserir um aspecto histórico fundamental
truição prévia do seu roçado de subsistência.” (Castro no entendimento da linha do tempo iniciado, para efei-
2008, 116). to de compreensão do fenômeno, com a brecha cam-
Outro aspecto importante em Palmares, que dá ponesa dos escravos e analisado nos dias atuais com
força à ideia da importância estratégica da produção os sistemas produtivos sustentáveis em comunidades
agrícola quilombola, é a constatação de que nas comu- remanescentes de quilombo: a morada.
nidades havia claramente uma fartura, o que contras- Dabat (2007), a partir de intensa pesquisa com mora-
tava com a miséria alimentar das populações do litoral. dores dos sítios, assalariados da cana-de-açúcar em Per-
Essa fartura foi explicada pelo autor por conta de al- nambuco, possibilita-nos outra perspectiva decorrente
guns valores comuns nas comunidades quilombolas: da brecha camponesa, a partir dos seus “descendentes”,
abundância de mão de obra, o trabalho cooperativo e a os moradores cativos nos engenhos. A “morada” é uma
solidariedade social (Freitas 1982, 47). continuidade ou representação mais ou menos contem-
Atestando ainda a abundância da produção agrícola porânea da brecha camponesa. Contemporânea, pois se
nos quilombos, não só para a alimentação das comuni- localiza no século XX. A autora destaca a morada como
dades quilombolas mas também para a população no um tipo de relação de trabalho, já que
entorno, destaca-se a categorização de Maestri e Fabia- [...] o simples fato de residir numa plantação e de dis-
ni, quando se referem ao “quilombo horticultor”: por eventualmente de um lote de terra cedida para culti-
Por quilombo horticultor compreendemos a comuni- var produtos alimentícios —a “morada”— valeria a esses
dade formada por trabalhadores escravizados fugidos aos trabalhadores uma inserção nas relações de trabalho fun-
quais, eventualmente, se associavam nativos, libertos, damentalmente diferente daquela de outros assalariados:
homens livres etc., sustentada por produção horticultora os trabalhadores da indústria do açúcar; ou mesmo ru-
associada à caça, à pesca, à coleta, à rapina etc. (Maestri rais; empregados temporários, safristas. (Dabat 2007, 25)
e Fabiani 2008, 64)
Daí se estabelece uma linha do tempo com tais
fenômenos: brecha camponesa-morada-produção de
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sistemas sustentáveis por remanescentes de quilombo. A relação com o mangue, que para alguns “chega na
Dada a sua singularidade histórica e convivência com porta”, dá-se precocemente. A maioria dos entrevista-
o permanente e circundante sistema monocultor da dos, principalmente as mulheres, nasceu catando ma-
cana-de-açúcar, tem-se aqui denominado as formas de risco no mangue. A entrevistada, que tem 41 anos e é
produção atuais de reinvenção do espaço produtivo. a filha mais velha da família, resumiu o início de sua
Tal reinvenção se dá no cotidiano da comunidade do experiência no mangue com a seguinte frase: “Acho que
Engenho Siqueira de duas formas, na pesca e coleta e desde que eu comecei a andar”.
nas práticas agrícolas, nas quais se identificou o cultivo Os homens e mulheres entrevistados, perguntados
de fruteiras, macaxeira, milho, feijão e até hortícolas. sobre qual a atividade produtiva que tem mais impor-
No entanto, a diversidade de cultivos ainda não é tância e envolvimento dos moradores, todos afirmaram
alta, embora não se limite ao cultivo de culturas ali- que ambas são importantes: a pesca e coleta no mangue
mentares, existindo processos diferenciados de comer- e a agricultura. Configura-se, portanto, um modo de
cialização em curso. Um dos agricultores entrevistados, vida híbrido: agricultores-pescadores. Em outras par-
70 anos, assim se expressa quando se refere ao que tes do País (Rio de Janeiro, São Paulo e Paraná), eles são
plantava com seu pai: “Macaxeira, batata, inhame, tudo chamados de “caiçara” (Sant´Ana Diegues 2001). A pro-
nós plantava. Feijão. [...] de tudo um poquinho nós pósito dessa dupla inserção produtiva, um dos entrevis-
plantava.” Outro agricultor, 55 anos, também descreve tados, pescador, 39 anos, entende que há certa divisão de
a diversidade dos seus plantios: “Cará, macaxeira, ba- trabalho entre homens e mulheres, e assim descreve-a:
nana [...] abacate. Tem uma hortazinha que planta uns Veja bem, os que trabalham na agricultura, os ho-
coentrozinho [...].” mens vão pro roçado e as mulheres vão pro mangue, um
Outro entrevistado, 44 anos, a propósito das duas planta e o outro, colhe. Um vai pro roçado e o outro vai
ocupações produtivas na comunidade, considera-se prá maré. O mercado deles é aqui. [...] Ali, pesca o aratu,
mais agricultor que pescador e, quando fala modesta- traz tudo. Se achar um siri, ele traz; se achar uma ostra,
mente do que planta, diz: “Olha, na agricultura, eu [...] traz. Traz o marisco, traz o perdigão, traz o aratu. Então
é roça, é abacaxi, é pé de bananeira, pé de coqueiro.” o que for de vender, eles vendem, o que for de comer, eles
Um verdadeiro quintal produtivo, já que suas plan- comem. Ali divide uma parte prá comer, uma parte pro
tações estão num espaço contínuo de quintal-jardim consumo da casa e a venda.
(figura 4). Como a maioria dos moradores de Siquei-
ra, ele também trabalhou no corte da cana também. Nesse relato, nota-se que, aparentemente, também
Perguntado sobre as diferenças entre um trabalho e há certa divisão quanto ao destino da coleta e da pesca.
outro, responde: “Rapaz, o horário daqui é muito dife- Conforme observação, conversas informais e outras
rente. Pega a hora que que, larga a hora que que. Pode entrevistas realizadas na pesquisa de campo, pode-se
pegá até de quatro hora, ou quebrando, pode pegá, prá constatar essa afirmação do entrevistado. Os produ-
largá mai cedo”. tos oriundos da atividade são para a comercialização,
Além das atividades de cultivo agrícola, o Engenho normalmente realizada em Rio Formoso, mas o que
Siqueira, cercado pelo mangue, local de pesca e coleta, é importante destacar aqui é o fato de uma parte ser
tem suas atividades produtivas inseridas no estuário destinada ao consumo, o que pode significar pelo me-
da região litorânea da qual faz parte o município de nos duas coisas: o enriquecimento nutricional da dieta,
Rio Formoso. Para essa população, a pesca e a coleta com a rica fonte de proteína animal desses produtos,
no mangue fazem parte de sua vida desde muito cedo, e também a possibilidade oferecida pelo estuário face
como atestam alguns relatos dos entrevistados. à falta de outras opções, diminuindo os custos com a
O mangue é também espaço de aprendizagem, fonte compra de produtos ricos em proteínas de origem ani-
de proteínas para a alimentação e também possibilida- mal, como carne, frango, entre outros.
de de ganhos monetários, principalmente com a venda Outro entrevistado, agricultor, 55 anos, que desde
do aratu “quebrado”, do sururu e do marisco. Mas não muito cedo empregou sua força de trabalho na cana-
sem grande esforço. Segundo relatos da presidenta da de-açúcar, relata que, quando estava nessa atividade,
associação, para se tirar um quilo de “carne” de aratu, também se dedicava à sua “brecha” produtiva e campo-
precisa-se coletar de 100 a 120 unidades, dependendo nesa no Engenho Siqueira, mas o tempo era pouco para
do tamanho. a reinvenção do seu espaço de produção agrícola.
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Há ainda pouca apropriação pela comunidade sobre a Ponto de cultura inaugurado em 2011, com proposições
Valorização da Cultura Tradicional
importância da valorização dos aspectos culturais tradicionais. de fortalecimento da cultura quilombola.
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A comunidade remanescente de quilombo do Engenho Siqueira: territorialidade, identidade quilombola e potencialidade da agroecologia
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