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Mapeamento participante e a gestão do conhecimento: desenvolvendo

tecnologias sociais para gestão do território e valorização da língua e dos


signos culturais do povo Werekena

Diego Ken Osoegawa1


Ivani Ferreira de Faria2

Resumo

O presente artigo tem por objetivo apresentar os resultados e reflexões acerca do processo de
realização do mapeamento participante na identificação das áreas de manejo da piaçaba do
território do povo Werekena, no Rio Xié, Município de São Gabriel da Cachoeira, Alto Rio
Negro/AM. Foi adotada a pesquisa participante, através da metodologia de gestão do
conhecimento. O estudo resultou em um mapa participante das trilhas de extração e áreas de
manejo dos piaçabais, tecnologia social que pode ser aplicada na gestão territorial, valorização
da língua e signos culturais e na educação escolar indígena pelo povo Werekena.

Palavras chave: Pesquisa Participante, mapeamento participante Território, Língua.

INTRODUÇÃO

A sustentabilidade dos povos indígenas, sua sobrevivência física e cultural, depende


muito das formas e usos dos seus territórios. Parte da luta já foi alcançada com a garantia da
autonomia sobre o território com a homologação de diversas terras indígenas, como é o caso do
território Werekena, que compreende a bacia do Rio Xié, parte da Terra Indígena do Alto Rio
Negro (FARIA, 2009).

Agora o desafio é outro: construir propostas participantes de gestão territorial


protagonizadas pelos povos indígenas a partir de seus valores culturais, que apoiem seus
projetos societários e processos autopoiéticos no enfrentamento das novas situações
vivenciadas por esses povos frente ao mundo globalizado. As modificações no modo de vida,
como por exemplo o formato de organização social em comunidades, o aumento da

1
Ecólogo, Mestre em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia, Professor do Curso de Licenciatura
Indígena: Políticas Educacionais e Desenvolvimento Sustentável (UFAM), pesquisador do Laboratório e Grupo
de Pesquisa Dabukuri – Planejamento e Gestão do Território na Amazônia.
2
Geógrafa, mestre e doutora em Geografia com Pós doutorado em Gestão Territorial e do Conhecimento,
Coordenadora do Laboratório e Grupo de Pesquisa Dabukuri – Planejamento e Gestão do Território na Amazônia
da Universidade Federal da Amazônia.
concentração populacional e necessidade de aquisição de alguns bens industrializados tem
aumentado a pressão de uso sobre os bens comuns.

Eles têm hoje a necessidade de repensar o território de várias formas, entre elas, práticas
de conservação e manejo de áreas cujos recursos já estão se esgotando, formas de valorização
dos lugares históricos, definição e zoneamento para determinados tipos de produção como
extração de cipó e outras fibras, manejo de lagos, sitio de caça. Entre eles também está o manejo
dos piaçabais do rio Xié.

A sub-bacia do Rio Xié é uma das poucas áreas do Alto Rio Negro, que detêm na
composição de suas fitofisionomias a presença de piaçabais, áreas em que indivíduos de piaçava
(Leopoldinia piassaba) ocorrem de forma agregada. Esta espécie de palmeira produz uma fibra
bastante versátil, de difícil degradação, com grande maleabilidade, que são utilizadas
tradicionalmente pelos povos dessa região e comercializadas à séculos, estando presente como
produtos de importância econômica desde os relatos dos primeiros naturalistas que viajaram
pelo rio Negro.

Historicamente, as cadeias produtivas do extrativismo na Amazônia se caracterizaram


pela exploração do trabalho da populações tradicionais e povos originários. Com a fibra de
piaçava não foi diferente, ainda hoje em grande parte do rio negro, as relações de trabalho da
exploração da piaçava se enquadram no trabalho escravo moderno, pelo endividamento.

Os altos preços manejados pelos regatões3e as estratégias utilizadas para que as dívidas
nunca findassem impuseram uma relação em que os indígenas tinha de extrair grandes
quantidades da fibra para conseguir adquirir os víveres industrializados básicos, como sabão,
açúcar, café e roupas, o que promoveu a sobre exploração dos piaçabais. A extração da piaçava
não é uma extração predatória, ou seja, para a extração da fibra não é necessário provocar a
mortalidade da palmeira. Contudo, uma pequena porção de fibra se desenvolve a cada folha que
nasce na palmeira, de forma que o retorno à uma área já extraída só é viável após 5 anos.

Assim, a intensa exploração da piaçava, que ocorria em ritmo mais acelerado que a
regeneração fez com que as áreas de extração ficassem cada vez mais distantes das
comunidades, ampliando o esforço necessário para a extração da fibra e comprometendo a
sustentabilidade da atividade. Este fato, somado aos baixos preços pagos pela fibra, fizeram

3
Regatões são os comerciantes fluviais, operadores do sistema de aviamento, que vendem produtos
industrializados a preços abusivos em troca de bens produzidos pela atividade polivalente dos povos indígenas
(agricultura, caça. Pesca extrativismo, artesanato), em uma relação de poder exploratória em que eles detêm os
meios de produção e comercialização.
com que os indígenas da região decidissem paralisar a atividade de extração da piaçava, decisão
tomada durante a assembleia da Associação das Comunidades Indígenas do Rio Xié, em 1998.

Desde então, o extrativismo da piaçava tem sido uma atividade de baixa intensidade,
complementar, em que se extraem pequenas quantidades da fibra para a fabricação de vassouras
de piaçava e artesanatos ou para a comercialização de pequenas quantidades da fibra. Nessas
duas últimas décadas em que a atividade não foi muito pronunciada os piaçabais recuperaram
os estoques e hoje existem diversas áreas passíveis de extração próximas às comunidades.

Diante dessa disponibilidade da fibra e da importância dessa atividade para a identidade


e história do povo Werekena, este anseia por retomar o extrativismo da piaçava, desta vez, não
nos moldes do aviamento, mas através do protagonismo na cadeia produtiva para que esta
atividade possa contribuir com a autonomia dos indígenas da região.

Nesse processo, a construção e valorização de tecnologias sociais para a gestão do


território é fundamental para que não seja retomada a situação de sobre exploração dos
piaçabais. A realização de mapeamentos participantes através de oficinas de gestão do
conhecimento é um caminho para a construção dessas tecnologias a partir da valorização de
epistemologias e dos conhecimentos dos sujeitos sociais para produzir um novo conhecimento
coletivo, mapas que reflitam as formas próprias de pensar e utilizar o território, para subsidiar
planejamentos de manejo e gestão.

O presente artigo tem por objetivo apresentar os resultados e reflexões acerca da


aplicação desta metodologia de mapeamento participante na identificação das áreas de manejo
da piaçaba do território do povo Werekena, no Rio Xié, Alto Rio Negro.

Além dos resultados, apresenta um viés metodológico em defesa da pesquisa


participante e da utilização da metodologia de gestão do conhecimento, demonstrando suas
potencialidades para a produção de conhecimentos interculturais e para a superação de relações
colonialistas de pesquisa.

O mapeamento foi realizado no marco do projeto de pesquisa “Etnodesenvolvimento


em Território Indígena: manejo cultural e cadeia produtiva da piaçava no Rio Xié/Alto Rio
Negro – Amazonas”4 desenvolvido pelo grupo de pesquisa Dabukuri – Planejamento e Gestão
do Território na Amazônia (UFAM).

4
A pesquisa foi financiada pelas agências de fomento CNPQ e FAPEAM e seus resultados podem ser encontrados
em OSOEGAWA (2017).
TERRA INDÍGENA ALTO RIO NEGRO, RIO XIÉ E OS PIAÇABAIS

A Terra Indígena Alto Rio Negro, onde encontra-se a área de estudo desta pesquisa, foi
homologada em 1998 com 8.150 milhões de ha com 95% da população indígena, 22 povos das
famílias Tukano Oriental, Arawak e Japurá Uaupés falantes de 19 línguas indígenas das 04
famílias linguísticas Tukano Oriental, Arawak, Japurá-Uaupés e Tupi (FARIA, 2003).

Além da grande diversidade cultural existente no Alto Rio Negro, esta região também
abriga grande diversidade de ecossistemas, contendo variações quanto às comunidades
biológicas, produtividade primária, biomassa, e a as potencialidades de aproveitamento agrário
(FARIA, 2003).

Esta região é banhada bela sub-bacia do Rio Negro, que nasce na Colômbia e deságua
na margem esquerda do rio Amazonas, próximo a Manaus, no Brasil. Tem como principal
afluente o Rio Branco. (FARIA, 2003).

Os rios Negro e Xié são denominados regionalmente de rios de “água preta” e são
associados geralmente a solos pouco férteis, inadequados à agricultura intensiva (MORÁN,
1990). A diversidade cultural e as a utilização de tecnologias sociais (técnicas de manejo,
derrubada, roçado e queima da vegetação) integradas às práticas culturais e aos ciclos
ecológicos da floresta é que permite que estes os povos indígenas vivam e produzam em
situações de baixa fertilidade de solo. O rio Xié é um dos principais afluentes do Rio Negro,
localizado no Município de São Gabriel da Cachoeira – AM.

Os registros do DSEI-RN (2008) indicam que existem 966 indígenas na região,


distribuídos em 13 comunidades (figura 01). O povo predominante no Rio Xié é Werekena,
com a presença também do povo Baré, que apesar de ocorrer em menor quantidade neste rio é
maioria em algumas comunidades, devido ao histórico de formação.
Figura 1 – Localização da área de Estudo Onde está a referencia?

Às suas margens do Xié e de seus afluentes existem piaçabais, regiões em que a piaçava
ocorre em abundância, de forma agregada, nas áreas de terra firme da floresta amazônica que
são entre cortadas por zonas alagadiças de antigos canais ou igarapés.

A sub-bacia do Rio Xié apresenta duas regiões em que ocorrem os piaçabais. Uma no
rio Tewapuri e seus afluentes (igarapés), território da comunidade de Anamoim e outro à
margem esquerda do Rio Xié, próximo às comunidades de Umarituba, Kunuri e Tukano.

PESQUISA PARTICIPANTE: INVESTIGAÇÃO COLETIVA

A pesquisa participante é um gênero de pesquisa, que visa combater paradigmas


instaurados na academia, notadamente o mito do pesquisador imparcial e o papel da ciência
como ferramenta de manutenção do status quo. Critica o papel histórico da produção de
conhecimento, que têm partido da elite, favorecido ao grande capital e colaborado para a
engenharia social de ampliação das desigualdades (DEMO, 2008).

Emerge tendo compromisso social político e ideológico com os movimentos sociais,


visando atender suas demandas concretas. Se propõe à produção de conhecimento junto à
diversos atores sociais integrando-os a processos de educação popular dirigidos à transformação
social (BRANDÃO & BORGES, 2007).

Combate o colonialismo acadêmico e a relação pesquisador-objeto de pesquisa. Na


pesquisa participante o pesquisador está a serviço dos sujeitos sociais, portanto a relação de
pesquisa acaba se tornando uma relação horizontal, fruto de constante diálogo não doutrinário.
“Uma verdadeira pesquisa participante cria solidariamente, mas nunca impõem partidariamente
conhecimentos e valores” (BRANDÃO & BORGES, 2007, p.55).

Se fundamenta no desenvolvimento da capacidade analítica sobre questões complexas


em condições reais, valorizando como grandes conhecedores das situações enfrentadas os
sujeitos que sofrem com os problemas abordados. Se orienta para produção de conhecimento
com eles, por eles e para eles, para que este colabore com o fortalecimento de processos de
empoderamento e autonomia para a solução de seus problemas.

Tendo como desafio transformar a ótica do paradigma científico que atribui ao


distanciamento do objeto de estudo a cientificidade e a neutralização da ideologia, pesquisa
participante tem desenvolvido arcabouço metodológico contrapondo essa visão a partir da
inclusão deste como sujeito produtor do conhecimento (DEMO, 2008).

Quando uma pesquisa é participante os sujeitos sociais concebem os procedimentos


teórico-metodológicos da pesquisa como parte de sua própria mobilização.

É importante pontuar a diferença existente entra metodologias participativa e


participantes, pois apesar de serem por vezes utilizadas como sinônimos seguem lógicas
contrárias. Faria (2015) as distingue da seguinte forma:

A metodologia e o planejamento participativo são definidos e planejados para


legitimar seus projetos e planos pré-elaborados usando o discurso da participação,
onde a sociedade figura como objeto de convencimento e “manipulação”, sendo
necessária apenas em uma determinada fase do processo.

As metodologias participantes, ao contrário, nascem da organização das bases


populares, que constroem suas propostas, sejam elas de realização autônoma ou em
parceria com órgãos do governo e organizações não governamentais, atuando como
protagonistas do processo desde a discussão à execução, proporcionando-lhes o
empoderamento sobre o destino de suas vidas e de seu futuro. (FARIA, 2015, p.107-
108).

Brandão (2006, 2007) coloca pesquisa participante como “a partilha do saber”;


“pergunta a várias mãos”; “momento da educação popular”. Ou seja, nas metodologias
participantes necessariamente tem de haver esse momento de interação coletiva, de socialização
e construção de conhecimento, de forma que este faça sentido aos sujeitos sociais e colabore
com o enfrentamento dos problemas e com a melhoria de vida.

A metodologia de gestão do conhecimento é uma destas metodologias concebidas na


epistemologia da pesquisa participante, pautada na aprendizagem, difusão e construção coletiva
de conhecimentos e soluções.

MAPEAMENTO PARTICIPANTE E A GESTÃO DO CONHECIMENTO

Os povos indígenas possuem profundo conhecimento sobre seu território, advindo de


sua utilização cotidiana e formas próprias de se localizar, que envolve os locais antigos e atuais
de habitação, os igarapés, lagos e cachoeira, os lugares históricos e sagrados.

Ao reconhecer este saber, se faz importante utilizar metodologias de mapeamento que


valorizem e socializem esses conhecimentos. Assim, o mapeamento participante foi usado
como estratégia para identificar os piaçabais no território Werekena.

A identificação e delimitação dessas áreas em campo é inviável, levando-se em


consideração as distâncias entre as áreas e suas extensões, bem como o tempo hábil para
realização da pesquisa e os gastos logísticos necessário para tal empreitada.

O mapeamento participante é um procedimento metodológico de produção de


conhecimento sobre o território fundamentada na pesquisa participante e foi realizado por meio
de oficinas de gestão do conhecimento.

Estes são espaços educativos de socialização do conhecimento, em que os protagonistas


são os sujeitos sociais. Trata-se de uma prática de produção de conhecimento coletivo que parte
do conhecimento pré-existente dos sujeitos sociais envolvidos, valorizando suas tradições
culturais, podendo ser associado ou não a outros conhecimentos e tecnologias que resulta na
produção de tecnologias sociais (FARIA, 2015).
Tecnologias sociais atuam como instrumentos de resistência às dificuldades e são
alternativas práticas de transformação social construída pelas comunidades, organizações e
movimentos sociais a partir do enfrentamento às adversidades e às experiências locais de vida
(WEISS, 2009).

Elas compreendem o “conjunto de técnicas, metodologias transformadoras,


desenvolvidas e/ou aplicadas na interação com a população e apropriadas por ela, que
representam soluções para inclusão social e melhoria das condições de vida” (INSTITUTO DE
TECNOLOGIA SOCIAL, 2004).

Ou seja, conhecimento produzido pelos sujeitos sociais, ou juntamente a eles que


contribuam com a solução de demandas auto identificadas, tendo como pressupostos básicos o
caráter coletivo, democrático e participante.

Assim, a metodologia de gestão do conhecimento enquanto processo de interação,


reflexão e socialização do conhecimento é em si uma tecnologia social, que proporciona como
resultado de sua aplicação a construção de outra tecnologia social.

Nas oficinas de gestão do conhecimento sobre o território visou-se produzir um mapa


das trilhas de extração e áreas de manejo da piaçava a partir do conhecimento que os indígenas
moradores do rio Xié detém sobre seu território, para que este possa ser utilizado para a gestão
territorial, planejamento do manejo e reelaboração da cadeia produtiva da piaçava e em
processos pedagógicos da educação escolar indígena, que visa dentre outros princípios trabalhar
com a realidade local.

Dessa forma foram utilizados os conhecimentos dos moradores do Rio Xié sobre seu
território, suas formas de orientação, pontos de referência e denominações aos lugares,
conjuntamente tecnologias de imageamento de satélite e técnicas de Sistemas de Informação
Georreferenciadas (SIG) para se produzir um terceiro conhecimento, resultando no
mapeamento dos piaçabais, conforme indicado na figura 2.
Conhecimentos sobre o Tecnologias SIG aplicada à Tecnologia social: Mapa
Território gestão do conhecimento Participante

Figura 2 - Etapas do mapeamento participante à luz da gestão do conhecimento. ORG. Osoegawa, Diego Ken.

Este foi realizado em 3 etapas. A primeira foi por meio dos cartogramas participantes,
para sistematizar o conhecimento coletivo sobre o território a partir das referências locais e
marcos de localização; a segunda pela técnica do Over Lay, que faz a interface entre os
conhecimentos da comunidade e a plataforma SIG, em que uma imagem de satélite da região é
disposta e os participantes são convidados a demonstrar todos os elementos referenciados no
cartograma coletivamente. E a terceira e última etapa, é a utilização de técnicas de Mapeamento
em SIG para elaborar um mapa.

Os cartogramas participantes e o Over lay foram realizados nas comunidades de


Campinas, Umarituba, Kunuri e Anamoim. Campinas não possui piaçabais em suas
proximidades, mas o procedimento foi realizado como piloto, para aplicação nas outras
comunidades, todas com piaçabais próximo. Desta forma, os dados aqui sistematizados,
correspondem aos mapeamentos de Umarituba, Kunuri e Anamoim.

A técnica de Over lay, conhecida também como sobreposição, consiste na sobreposição


de um material transparente, como por exemplo papel celofane ou lona transparente, ou
semitransparente, como papel de seda, em uma carta ou imagem de satélite, para que sejam
identificadas as informações espaciais desejadas. Este procedimento permite a interface dos
conhecimentos das populações locais com as tecnologias de mapeamento em SIG.

Os comunitários foram convidados a demonstrar todos os elementos que haviam


indicado nos cartogramas, desta vez sobre um mapa com escala, proporções e orientação
cardeal definidas.
Os conhecimentos demonstrados deram subsídios para a geração de um mapa das áreas
de manejo e trilhas de exploração da piaçava, que foi confeccionado com auxílio do Software
Arcgis 10.3, em escala 1: 90.000, que será enviado para todas as comunidades do Rio Xié.

A versão final do mapa foi aprovada na assembleia da Associação das Comunidades


Indígenas do Rio Xié (ACIRX), em Dezembro de 2016 e serão distribuídos para todas as
comunidades do território Werekena. Apresentamos uma versão do mapa, reduzida e adaptada
para a publicação, na figura 3.
Figura 3 – Caminhos da Piaçava: Trilhas e Áreas de Manejo.

Não se propôs a criação de um mapa dos piaçabais por dois motivos. Primeiro, que
mesmo os indígenas mais experientes na extração da piaçava não conhecem o fim dos piaçabais
e sim, até onde foram explorados durante a época de exploração mais intensa, até 1998. Ou
seja, a extensão desta região de ocorrência dos piaçabais não é conhecida mesmo por eles.
O segundo motivo é que os piaçabais são pequenas áreas esparsas ao longo das trilhas,
ou seja, não se pode precisar exatamente em que locais estão, mas sabem que ocorrem ao longo
das trilhas. Desta forma, não foram identificados cada um dos piaçabais, optou-se por identificar
as áreas de manejo da piaçava. A definição destas áreas ocorreu a partir das trilhas de extração
utilizadas para o acesso aos piaçabais, o que possibilitou estimar um buffer a partir das trilhas
para fazer o zoneamento dessas áreas.

O zoneamento é considerado uma ferramenta essencial para a gestão ambiental e


territorial dos povos indígenas, que neste caso foi utilizado para indicar as áreas de manejo da
piaçava.

PROCESSO EDUCACIONAL DO MAPEAMENTO PARTICIPANTE

A pesquisa participante, tem como um dos pressupostos o envolvimento das


comunidades como sujeitos da pesquisa, visando maximizar o impacto social tanto do resultado
da pesquisa, quanto dos processos pedagógicos e a partilha de conhecimentos ao longo do
processo de pesquisa.

Sendo uma prática de Gestão do conhecimento, tem caráter pedagógico, de socialização


dos conhecimentos, podendo elencar-se: I) os conhecimentos locais, especialmente o dos
membros mais velhos e mais experientes, com os demais comunitários, sobre a orientação no
espaço, os recursos existentes, lugares de referência e as histórias que detém esses lugares. II)
Conhecimentos envolvidos na prática de overlay, sobre imageamento de satélite, conceitos da
cartografia básica, como escala, norte, produção de legendas, entre outros. III) Fomentar
discussão acerca da sustentabilidade, gestão ambiental do território e da ampliação da
autonomia na cadeia produtiva da piaçava e de valorização das línguas originárias.

Esta é uma prática que segue os pressupostos de uma pedagogia indígena, em que gera
um espaço de aprendizagem em que há o intercâmbio entre as gerações, os mais novos trocando
conhecimento dos mais velhos. Acontece durante uma atividade prática fundamentada em um
objetivo, nesse caso do mapeamento participante. Como a atividade tem esse objetivo prático,
a aprendizagem é significativa, pois ocorre através da utilização e socialização de
conhecimentos aplicados à uma finalidade.

VALORIZAÇÃO DAS LÍNGUAS ORIGINÁRIAS E DOS SIGNOS CULTURAIS

O povo Werekena têm língua própria, com denominação homônima, sendo enquadrada
no tronco linguístico Aruak. Contudo, hoje em dia a língua predominante no rio Xié é a língua
Nheengatu, seguida pela língua portuguesa. Essas duas línguas têm sobreposto a língua
Werekena, que está criticamente ameaçada de extinção, de acordo com a UNESCO5,
estimando-se a presença de cerca de 20 falantes, todos idosos.

As pressões sociais operam continuamente sobre a utilização das línguas, sendo reflexo
de processos históricos, mas estando em constante movimento, modificação, a partir da situação
presente. A escolha sobre a utilização das línguas perpassa por relações de poder que exercem
entre si, em que duas ou mais maneiras de dizer a mesma coisa se enfrentam (TARALLO,
2007).

Essas relações de poder estabelecem relação diglóssica entre as línguas no Rio Xié, que
é uma relação hierárquica de uma língua em relação à outra, em que uma é adotada como
preferencial. Esse tipo de relação tende a deslocar o uso das línguas para as línguas/variáveis
prestigiadas.

Monte (1992) sintetiza bem o conceito, aplicado à realidade vivida pelos povos
indígenas e a opressão histórica às suas culturas e línguas, que permanece até hoje,
conceituando a diglossia da seguinte forma:

Relação dialética, assimétrica e não-estável, de [duas ou mais línguas, que resultam


em] duas tendências: uma, a principal, de expansão geográfica e funcional das línguas
dominantes e de concomitante retração das línguas dominadas. A outra tendência,
subordinada, é a de recuperação, resistência e manutenção dessas línguas, que, muitas
vezes, séculos de colonização não conseguiram fazer desaparecer (MONTE, 1992,
p10).

É o caso do Rio Xié, em que o Werekena, anteriormente língua mais falava por esse
povo, foi deslocada para a utilização do Nheengatu, que hoje é a língua dominante na região. A
segunda tendência se observa com o reconhecimento da importância da Língua Werekena entre
os moradores do Xié, contudo esse reconhecimento não tem se concretizado em atitudes e ações
práticas para a salvaguarda deste saber, que segue cada vez mais ameaçado com a morte dos
mais velhos.

Desde o contato o linguicídio fazia parte da estratégia de dominação dos povos


indígenas, e fez parte do planejamento estratégico do Brasil Colônia até a Constituição de 1988,

5
Atlas Mundial de Línguas Ameaçadas (MOSELEY, 2010)
que é o marco legal que representa a mudança do paradigma integracionista para o direito à
diversidade cultural.

Assim, o monolinguismo foi uma das estratégias centrais de ataque à cultura e à


organização social dos povos indígenas. Inicialmente essa estratégia se baseava na conversão
da língua materna ao Nheengatu, que foi a língua nacional até 1757 e se manteve como língua
hegemônica até meados do Séc. XIX (CRUZ, 2005).

No sede do município de são Gabriel da Cachoeira esta foi uma língua de extensiva
utilização até a década de 70 sendo utilizada cotidianamente, quando graças aos esforços da
missão salesiana e a chegada dos meios de comunicação em massa foi efetivamente sendo
substituída pelo português (TAYLOR, 1985).

Como o nheengatu era língua franca, língua difundida todo Rio Negro, exerceu grande
pressão sobre a língua Werekena, tendo grandes contribuições dos internatos católicos, que
proibiam que os estudantes falassem as línguas maternas – a partir de repressões físicas e morais
violentas – e dos patrões do extrativismo, que tiveram importante papel na dinâmica de
migrações, levando indígenas para os polos de extração.

A diglossia reflete em vários aspectos da utilização cotidiana das línguas nesse ambiente
plurilíngue. Uma das consequências observadas é a mudança dos topônimos (nomes dados aos
lugares) ao longo do tempo que mediante processos sociolinguísticos vão tomando novas
denominação nas línguas dominantes. No rio Xié se observa a alteração dos nomes tradicionais,
muitos nas línguas Baré ou Werekena, foram sendo substituídos por novos nomes nas línguas
Nheengatu, Português e mesmo nomes em espanhol, pela proximidade da fronteira com a
Colômbia e Venezuela.

Como exemplo destas substituições podemos citar a cachoeira Kuati (significa quati, na
língua nheengatu), que anteriormente era chama de Waxi (que significa onça, na língua
Werekena). Essa substituição ocorre com diversos topônimos, em partes pelo desconhecimento
por parte dos mais jovens dos significados das palavras em Werekena, que acabam criando
novas denominações nas línguas que dominam (Nheengatu e Português).

A alteração destes nomes, além de reforçar a situação diglóssica de retração da a língua


Werekena altera a semântica que estes nomes continham e a historicidade de seus nomes, por
vezes atribuídos em função de determinados eventos, famílias que moravam nos locais ou
características ambientais. Neste caso da Waxi Kaxuera, (Cachoeira da Onça), que passou a se
chamar Kuwati Kaxuera (Cachoeira do Quati) apenas pela sonoridade aproximada entre
“Waxi” e “Kuwati” (Ver figuras 3 e 4), deixando de ter relação com o seu significado original.
No caso desta cachoeira, uma pedra com formato de onça localizada no meio da cachoeira deu
origem ao nome tradicional, na língua Werekena).

Figura 4 - Cartograma Participante realizado na comunidade de Kunuri, utilizando a nomenclatura tradicional, “Waxi”,
2015.

Figura 5 - Cartograma Participante realizado na comunidade de Umarituba, utilizando a nomenclatura mais recente,
“Kuwati”, 2015.

Os topônimos transmitem informações, refletem a história de um povo, armazenados na


memória como parte de um patrimônio linguístico-cultural.

Outra ocorrência o comum na região, que representa processos diglóssicos


desencadeados por atividades missionárias é a modificação toponímica das comunidades para
nomes de santos ou que remetam à fé cristã. No alto Rio Xié por exemplo, a comunidade de
São João é conhecida tradicionalmente como Marauna.

A produção de Mapas, a partir do mapeamento participante, pode ser orientada à


valorização dos nomes tradicionais, buscando-se levantar a partir do relato dos anciões as
denominações mais antigas, presentes na memória dos povos com que o trabalho é
desenvolvido. Desta forma contribuir para o segundo movimento citado por Monte (1992) nos
contextos de diglossia, de recuperação e resistência sobre a subordinação da língua Werekena.
Assim foi orientada a prática e podemos perceber que mesmo com essas orientações, a
nomenclatura adotada difere entre comunidades, demostrando que esses conhecimentos,
referentes aos nomes tradicionais, estão se tornando cada vez mais especializados, havendo
apenas alguns informantes que os detêm.

No quadro 1 seguem mais alguns exemplos da mudança dos nomes de lugares do Rio
Xié.

Tipo do Topônimo
Signo Topônimo Atual Signo
Lugar Tradicional
- Umaritiwa
Majuba (Animal
Wata’rlu (Nheengatu)
Comunidade encantado da Umarizal
(Werekena) - Ponta Yurí
água)
(Espanhol)
Mar’lai Kamarãu Iwitera Serra do
Serra Desconhecido
(Werekena) (Nheengatu) Camarão
Kurubudar’le Yapuna Bῦda Forno de
Igarapé Boto
(Werekena) (Nheengatu) fazer farinha
Waxi Kuwati
Cachoeira Onça Quati
(Werekena) (Nheengatu)
Caminho
Francisco Nome de quem Kulῦbia Rape
Caminho para
Narciso abriu o caminho (Nheengatu)
Colômbia
Quadro 1 – Alteração dos signos da identificação dos lugares. ORG: Osoegawa, Diego Ken .2017.

Dessa forma, se reconhece que o processo de realização do mapeamento participante,


que têm entre seus princípios de ação a socialização e sistematização do conhecimento coletivo,
pode também ser utilizado como uma técnica de valorização das línguas maternas, contribuindo
para o registro e revitalização de nomes tradicionais, que estão sendo substituídos por nomes
em outras línguas devido à situação diglóssica propiciou a existência de grande diferença entre
as proficiências linguísticas das diferentes gerações.

O Mapeamento participante, quando direcionado para utilização das nomenclaturas


tradicionais dos lugares a partir da língua materna, promove a afirmação das relações sobre o
território, permitindo a perpetuação dessa apropriação pelos indígenas. Processo que contrapõe
a apropriação do território pelo Estado, que utiliza entre outras ferramentas de criação de
identidade nacional e a imposição da língua portuguesa, a partir dos poucos mapas que chegam
à região.

Essa imposição das línguas nacionais (lembrando que o Nheengatu foi a língua nacional
no passado) promove um desmantelamento do significado desses lugares e de histórias e
características associadas aos seus nomes originais. Portanto a realização de mapeamentos
participantes em situação diglóssica deve ser orientado à valorização desses nomes, para
salvaguardar as línguas originárias, os mitos e histórias para firmar um posicionamento
contrário à visão integracionista.

Esta ainda permanece implícito na inoperância do Estado em elaborar livros e mapas


nas línguas indígenas. Além de seguir difundindo o português nos instrumentos de localização,
estes não possuem escala adequada para o planejamento local e são elaborados de forma a
visibilizar a relação intrínseca entre cultura-língua-território existente nas terras indígenas.
Assim, os mapas convencionais se configuram como parte do processo de expropriação dos
territórios indígenas pelo Estado e pela ideologia da formação de uma identidade nacional.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa participante tem além do rigor científico a politicidade do conhecimento.


Busca a transformação de uma realidade social aliada aos movimentos sociais, para colaborar
com o enfrentamento de problemas identificados e vividos pelos sujeitos sociais, de forma a
ampliar as possibilidades de construção de conhecimento coletivo e processos autopoiéticos.
Desta forma, todo resultado de uma pesquisa participante é necessariamente uma tecnologia
social, fazendo com que essa categoria de pesquisa rompa a dicotomia pesquisa-ensino-
extensão presente na academia e integre o processo investigativo ao processo educativo para
fortalecer as ações sociais que levem à melhoria de vida das pessoas.

O mapeamento participante possibilitou o mapeamento das áreas de manejo da piaçava


do Rio Xié, permitiu a formulação de uma tecnologia social para apoiar a gestão do território,
o planejamento de reestruturação da cadeia produtiva da piaçava e o planejamento de manejo.
Também permitiu o registro de lugares sagrados, igarapés, cachoeiras e de outros elementos
que foram considerados pelos povos indígenas para a localização no espaço.
Empiricamente, podemos constatar que a territorialidade linguística6 não se resume à
utilização oral ou escrita da língua e também está presente na memória cultural dos topônimos,
que podem permanecer mesmo em caso em que há a supressão local da língua (ex: Parque do
Anhangabaú) ou serem alterados por novos nomes ao longo dos processos de retração das
línguas subordinadas.

O mapeamento participante realizado através de oficinas de gestão do conhecimento


pode ser utilizado como uma tecnologia social capaz de apoiar o processo de resistência das
línguas originárias, especialmente na valorização dos topônimos tradicionais, através dos
processos de aprendizagem que desperta ao longo de sua aplicação e dos potenciais de
utilização dos mapas participantes. Através desta prática é possível transformar o papel
historicamente colonizador dos mapas para ressignificá-lo enquanto ferramenta de gestão
territorial, baseada nos princípios da autonomia e valorização das próprias epistemologias.

REFERÊNCIAS

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pluridimensional e contatual. Revista de Letras Norte@mentos, Vol. 6, p.19-43, 2013.
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Curso (Graduação em Licenciatura Indígena: Políticas Educacionais e Desenvolvimento
Sustentável) – Instituto de Ciências Humanas e Letras, Universidade Federal do Amazonas
(UFAM), Manaus, 2013.

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A territorialidade linguística compreende o espaço de uso geográfico e social de uma língua ou variação
linguística. (ALTENHOFFEN, 2014). Assim, tem dois componentes: o meio onde ocorre – o espaço físico, o
território – e a forma como é expressa no território, em quais domínios sociais.
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