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Resposta à recensão obra de Jean-Michel Mabeko Tali, afinal

do livro Purga em Angola 36 citações do único trabalho académico


de fôlego sobre o mpla (num livro com
A história contemporânea, pela proximi- nada menos que 560). Tais simplificações
dade dos acontecimentos, suscita em geral ou alusões não põem em causa a seriedade
maior atenção e, por vezes, acaloradas do escrito de Lara Pawson, a capacidade
discussões. Mas, em regra, nada que se para ultrapassar preconceitos, a busca sin-
compare ao ocorrido com o livro Purga em cera da verdade. Vamos, então, responder
Angola. Comentado em dezenas de jornais, a algumas críticas e observações, corrigir
revistas e blogues, as apreciações foram interpretações a nosso ver menos justas e
do «muito bom» ao «péssimo», tendo sus- prestar esclarecimentos considerados
citado críticas à direita e à esquerda. Uns, importantes para o aprofundamento do
porventura preocupados com os seus inte- tema.
resses ou negócios, disseram não ter gos-
tado; outros, certamente por verem 1. Lara Pawson põe em dúvida «a validade de
atingidos velhos amigos (mesmo que irre- algum material aqui utilizado», dando como
conhecíveis), não hesitaram em considerar exemplo a transcrição de frases ditas em
os processos de investigação como «méto- segunda mão, como o propósito de Agosti-
dos pidescos». Contudo, mais do que o nho Neto desmantelar a organização exis-
tom azedo das críticas, imperou a difama- tente em Luanda ou a afirmação de que
ção. E os insultos surgiram quer em jor- Lúcio Lara acusara, com um ano de antece-
nais portugueses de referência, quer dência, Nito Alves de preparar um golpe.
mesmo no oficioso Jornal de Angola, sempre O serviços de Intelligence ensinam que uma
dirigidos à co-autora do livro, o que se informação do tipo «disse que disse» não
explicará com o facto de ser mulher. deve ser atirada para o cesto dos papéis.
A provocações não se responde por escrito. Apesar de mal classificada, deve ser con-
Mas responde-se à preocupação com o servada, pois novas informações podem
esclarecimento dos factos. Por isso, enten- vir a confirmá-la. E foi o que aconteceu
demos responder à recensão publicada naqueles casos.
pela jornalista Lara Pawson, na revista Demonstrou-se que a direcção oficial do
Relações Internacionais do passado mês de MPLA cedo começou a desmantelar a orga-
Junho, agradecendo desde já o ter consi- nização existente do Movimento e do
derado o livro como «contributo valiosís- Poder Popular: expulsou e prendeu qua-
simo» para o esclarecimento do tema. dros, suspendeu organismos de direcção,
Claro que, na recensão, a aparente simpli- alterou toda a estrutura dos dom, retirou
ficação podia ser interpretada como cari- a legitimidade aos órgãos eleitos do poder
catura do que pretendíamos dizer. popular.
Passemos também por alto sobre as afir- E demonstrou-se, também, que o anúncio
mações não fundamentadas ou inconsis- do golpe de Estado se repetiu, por mais
tentes a respeito do «outro mpla» ou da de uma vez. O próprio Nito Alves, quatro

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meses antes do 27 de Maio e em carta ao mos que tais limitações «levariam inevita-
embaixador Albertino de Almeida (carta velmente a manifestações de dogmatismo
que depositámos, com todo o material e de radicalismo». Dissemos, ainda, que,
recolhido, num arquivo português), afir- a sua obra mais citada, as chamadas «Treze
mava que o acusavam de estar a preparar Teses…», eram um texto «insuportavel-
um golpe de Estado. E na véspera do 27 mente dogmático, com dezenas e dezenas
de Maio, era o próprio Lúcio Lara que, no de citações, a propósito e sobretudo a des-
horário nobre da televisão, lia uma men- propósito». E não deixamos de denunciar
sagem terrificante, dando a entender que o terrível discurso proferido em frente à
se estava a preparar um golpe de Estado. Câmara Municipal de Luanda, onde ape-
As fontes por nós utilizadas estão identi- lava «à delação e prisão de elementos da
ficadas. Com umas quantas excepções: oca e da Revolta Activa», tendo chegado
não identificámos dois quadros da polícia a «mandar ofícios a saber em que reparti-
política, dois cineastas, dois angolanos e ção do Estado» estariam a trabalhar.
alguns declarantes. Fizemo-lo para que Pouco mais se poderia dizer de Nito Alves.
fosse acautelada a sua segurança e tran- Até porque nos recusamos a embarcar na
quilidade. No entanto, gravámos todas as corrente dos que fazem processos de
entrevistas e declarações. As gravações, intenção, declarando que, se tivessem ven-
assim como as transcrições feitas em cido, os nitistas «possivelmente ainda
papel, tudo perfeitamente identificado, fariam pior», isto é, provocariam um maior
foram avaliadas e aceites pelo Arquivo banho de sangue.
Nacional da Torre do Tombo e poderão Quanto a Agostinho Neto, mostrámos que
ser consultadas nos prazos legais. De tratou a frente política mpla como um
modo que o material utilizado na investi- partido leninista, ainda que com muito
gação (gravações, filmes, cartas, docu- centralismo e bem pouca democracia.
mentos, revistas e jornais) tem plena Mostrámos, também, que tinha por hábito
validade, só assim se justificando a possi- resolver os problemas de dissidência da
bilidade do seu depósito. pior forma, confirmando as sombrias pre-
visões de Viriato da Cruz que vira nele um
2. Segundo Lara Pawson, nunca nos coi- «autocrata em potência» (Michel Laban,
bimos de apontar o dedo a Neto. E no Mário Pinto de Andrade – Uma Entrevista, Sá
entanto, fazemos «uma análise demasiado da Costa, Lisboa, 1977, p. 180). E mostrá-
condescendente de Alves». mos, ainda, que estava disposto a abdicar
Vejamos então. Logo no início do livro de princípios, a renunciar a projectos,
afirmámos que Nito Alves «padecia das a aliar-se com o diabo, desde que tal lhe
limitações de quem vivera muitos anos permitisse a sobrevivência política. Para o
isolado e acossado, do autodidacta que mostrarmos demos o exemplo das nego-
encontrara num manual marxista uma ciações travadas, em 1963, com as autori-
nova bíblia, onde buscava soluções para dades coloniais. Só que tais conversações
todos os problemas». E logo acrescentá- se repetiram dez anos depois.

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No livro A Vitória Traída, publicado preci- Estamos dispostos a aceitar que os sovié-
samente em 1977, quatro generais do ticos não gostavam de Agostinho Neto e
Antigo Regime, Luz Cunha, Kaúlza de dos que o rodeavam. Podemos até reco-
Arriaga, Bettencourt Rodrigues e Silvino nhecer que simpatizavam com Nito
Silvério Marques, referem que, em finais Alves.
de 1973, numa nova situação de crise do Mas o problema não reside nas simpatias
mpla, Agostinho Neto enviou a Lisboa um ou antipatias. Reside sim em saber qual a
membro do seu Comité Central, com o participação dos soviéticos nos aconteci-
objectivo de explorar a hipótese de colocar mentos do 27 de Maio. Iko Carreira, o
quadros seus e o que restava da guerrilha terceiro homem do mpla e o único que
à disposição do regime colonial, para avançou com uma acusação concreta, falou
enfrentarem o inimigo comum, a fnla da colaboração de dois secretários do
(p. 255). adido militar, um dos quais até arrendara
Nem se diga que eram apenas actos paci- uma casa no Sambizanga, para poder dar
ficadores, destinados a «interromper o conselhos aos dirigentes do golpe.
ciclo de violência e de sofrimento de dois Ora, para além desta versão caricatural de
povos» (Edmundo Rocha, in Viriato da Cruz, um secretário a orientar um golpe e de
o Homem e o Mito, Prefácio, Lisboa, 2008, acusações não fundamentadas, existe um
p. 438): primeiro, porque as negociações testemunho esclarecedor. Karen I. Bru-
não visavam a independência, mas a acei- tentz, antigo vice-chefe da Secção Interna-
tação da solução colonial; segundo, por- cional do Partido Comunista da União
que aquele propósito pacificador nunca se Soviética, ligado às relações com o Ter-
manifestara no seio da família mpla. ceiro Mundo, num livro de memórias inti-
Não se diga, também, que, para sermos tulado Trinta Anos na Praça Velha (publicado
objectivos, não devíamos ter «estados de em Moscovo, em 1998), relata deste modo
alma». Que fique, então, claro. Recusamo­ o encontro realizado, em Agosto de 1977,
‑nos a abdicar de princípios democráticos entre Leonid Brejnev e Agostinho Neto
e de valores éticos, culpabilizando a vítima (p. 494):
e perdoando ao algoz, quando sabemos
que Agostinho Neto dispensou os tribu- «Como era costume, ao dirigente de Angola,
nais e deu o tiro de partida na corrida para como hóspede, foi concedida a primeira
o terror. intervenção. Depois das tradicionais frases
com generalidades, subitamente, Neto
3. Segundo a jornalista, o livro «não chega abordou o assunto do recente golpe militar
a ir ao fundo do relacionamento entre Nito em Luanda. E ignorando os meandros
Alves e a União Soviética». E como que a diplomáticos, declarou:
comprová-lo invoca testemunhos decla- – Vim cá porque ocorreu uma coisa, um
rando que «os soviéticos não foram neu- golpe. E gostaria de saber pessoalmente de
tros», pois Nito Alves tinha o apoio de si, se Moscovo participou ou não nesta
«determinada secção do kgb». conjura contra mim? Porque, segundo me

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dizem, os vossos homens estavam A este propósito avançámos com as três
envolvidos. versões existentes.
Claro que todos os olhares se viraram para Duas versões oficiais, uma dizendo que
Brejnev. Os presentes e principalmente os tinham sido os nitistas a matar, outra que
representantes soviéticos esperavam que os mortos tinham sido vítimas de «excessos
reagisse à pergunta do dirigente angolano, incontroláveis». E uma terceira versão, que
que (de acordo com a realidade) desmentisse dizemos ser hoje defendida por muito boa
semelhante hipótese, que confirmasse que gente. Mas esta «muito boa gente» (em que,
não tínhamos renunciado ao apoio a Neto. querendo, até se podem incluir os autores
Leonid Ilitch [Brejnev] segurou na folha já do livro) não é prova, limitando-se a racio-
preparada e começou a ler: cinar sobre dados que lhe forneceram. Veja-
– A situação no nosso país é boa, as mos, então, o que se diz e quem o diz:
previsões sobre as colheitas são 1.º – João Kandanda, militar das fapla e
fantásticas... elemento da disa, numa entrevista ao jor-
Parecia que fugíamos às perguntas e, assim, nal angolano Folha 8 (26 de Maio de 2001),
confirmávamos as dúvidas de Neto. Todas afirmava que, entre os elementos do grupo
as tentativas para “soprar a resposta”, do futebolista Kiferro, em cuja casa esta-
enviando-lhe novos papéis, se goraram. vam detidos os presos levados do quartel
Depois da leitura, Brejnev declarou num da 9.ª Brigada, se encontrava um elemento
tom entre o interrogativo e o afirmativo: provocador, um tal Tony Laton. E foi este
– Li bem?! elemento que disparou, matando uns e
Só depois do intervalo do almoço oficial, ferindo gravemente outros. Este Laton
num “acrescento” feito por um dos (que nunca ninguém disse ou sequer ima-
participantes no encontro, se conseguiu ginou que fosse agente da cia) tornou-se
atenuar parcialmente a impressão posteriormente assessor de Onambwé,
causada.» o subdirector da polícia política angolana.
Esta versão foi ouvida, também, por Miguel
É um facto que, em Angola, houve inter- Francisco (Michel), militar, a um colega
ferência de terceiros. Mas, no caso que se com ele detido no campo de concentração
analisa, só forçando a nota se poderia da Calunda, a milhares de quilómetros.
reconduzir a luta pelo poder no seio do Será, pois, natural que habitantes do Sam-
mpla ao conflito Leste-Oeste. A questão bizanga apareçam a dizer que os presos
era, quanto a nós, bem menos planetária foram mortos pelo grupo de Kiferro, já
e bem mais pessoal ou grupal. que Laton integrava tal grupo.
2.º – Os elementos do grupo de Kiferro,
4. Na recensão de Lara Pawson existe um segundo declarações gravadas e transcritas
evidente equívoco no episódio dos mortos de um antigo responsável da disa, foram
carbonizados numa ambulância, incidente todos presos e imediatamente fuzilados
que serviu de pretexto ao desencadear do pela polícia política. Todos… menos Tony
terror. Laton.

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3.º – Os mortos na casa do futebolista cia com os corpos carbonizados, agem
Kiferro foram encontrados carbonizados, com perfeita tranquilidade, como se
no dia seguinte, numa ambulância, ambu- conhecessem perfeitamente o guião do
lância esta que, segundo testemunho de «filme».
um médico psiquiatra, fora levantada no São todos estes factos conjugados que per-
hospital, por um tal Melo Xavier, colabo- mitem supor que a matança na casa do
rador da polícia política, identificado no futebolista Kiferro foi realizada pela disa,
filme dos acontecimentos realizado pelo de modo a servir de pretexto para a repres-
Ministério da Defesa ao lado do subdirec- são que se seguiu. Pois não seria fácil desen-
tor Onambwé. Xavier costumava ir buscar a cadear tamanho banho de sangue a pretexto
ambulância ao hospital, onde aparecia de de uma simples manifestação, patente no
bata branca e estetoscópio ao pescoço, filme oficial dos acontecimentos.
o que até levou um nosso entrevistado da
disa a tomá-lo por médico. Como explicitámos no Prefácio do Purga
4.º – Da casa do futebolista Kiferro terá em Angola, há buracos que não consegui-
conseguido fugir Ciel da Conceição, diri- mos preencher, perguntas para que não
gente do mpla que, tanto quanto se sabe, obtivemos resposta. De modo que não
continua a viver em Angola. Conceição foi temos a pretensão de conhecer a «verdade
apresentado, logo a seguir, na televisão, completa». No entanto, com base nos mui-
com a cabeça toda ligada, devido aos maus­ tos dados recolhidos, pensamos ter che-
‑tratos sofridos. No entanto, um mês gado a uma «verdade possível», que não
depois, apareceu na Cadeia de São Paulo estará muito longe da realidade.
e os presos recordam perfeitamente o facto Construímos o relato verificável dessa rea-
de ter o cabelo comprido e não apresentar lidade, expressámos uma verdade relativa,
marca de qualquer ferimento. aberta a uma constante renovação, à revi-
5.º – Entre os mortos na casa do futebo- são e à crítica. Oxalá o conhecimento de
lista Kiferro encontravam-se três amigos novos factos ajude a preencher os buracos
de Nito Alves: o médico Garcia Neto, José que persistem, a compreender melhor o
Manuel Paiva (Bula) e Eugénio Veríssimo que se passou. E estamos certos de que,
da Costa (Nzaji), o qual teria estado numa a seu tempo e sem recearem pela sua sorte,
reunião preparatória da acção do 27 de também historiadores angolanos poderão
Maio, segundo um quadro da disa. tratar deste tema, com igual seriedade nos
6.º – Onambwé e outros quadros da disa, métodos, nos processos e no uso das fon-
no quartel da 9.ª Brigada (onde há quem tes.
chame a atenção para a fuga de uma car-
rinha com os presos) ou junto à ambulân- n Dalila Cabrita Mateus

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