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Pedro Sena-Lino: “A governação do Marquês de

Pombal foi um trono invisível sobre uma sobreposição


de cadáveres”
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sobreposicao-de-cadaveres

José Couto Nogueira Entrevista 21 de novembro de 2020

Em primeiro lugar devo dizer que gostei muito do livro seu livro, pois as
biografias geralmente são muito desinteressantes, porque são escritas por
académicos que não têm qualidade literária, e não passam de relatos
monótonos de factos e datas. Por outro lado, parece-me que tentou ser
imparcial, no sentido de justificar psicologicamente a razão das brutalidades
as arbitrariedades de Sebastião José.

De facto, a vida pública dele é uma espécie de vingança, de revanche, por uma juventude
muito difícil, porque ele não era nobre propriamente, embora fidalgos da casa real, mas
também não era um plebeu e a sua família foi maltratada na tentativa que fez de reaver
propriedades a que teria direito. Isso é que o fez ser mais tarde ser tão vingativo; os seus
excessos são o peso desse passado, e também da vida como diplomata, em que tantas
dificuldades que lhe foram levantadas aumentaram um trauma que já existia. A carreira
aprofundou um conflito já existente. Não penso, claro, que isso seja justificação para toda
a violência de que foi responsável.

Mas penso que uma biografia literária, como também notou, consegue precisamente o
que uma biografia escrita por um especialista não consegue. Ambas são sempre
complementares. Esta biografia era impossível sem o trabalho de muitos historiadores,
mas acho que a abordagem literária permite, por um lado, que o autor seja um
investigador, e por outro lado, uma espécie de psicólogo.

O historiador está interessado em estudar a época, o momento, a integração no percurso


da História, enquanto o psicólogo está interessado em fazer um retrato centrado no
personagem. Tentei não dar uma explicação total, deixar isso aberto ao leitor, e também
tentar que alguns fatores sejam equacionados pela primeira vez.

Uma questão muito interessante em relação ao Marquês de Pombal é que as


opiniões são contraditórias. Os republicanos gostavam tanto dele que lhe
fizeram a maior estátua que há em Lisboa - e que, constrangedoramente, foi
inaugurada em 1932, já no tempo da ditadura, e o Salazar não quis ir à
inauguração.

O que leva ao outro lado. Salazar não gostava dele.

Salazar, que era um tirano como ele – e já vamos falar nisso – não gostava
dele, porque o Pombal era anti-jesuíta e - eu tenho essa impressão, não sei se
você concorda, que ele de fato não era anti-religioso mas também não era

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religioso. Quer dizer, a religião para o Pombal era apenas uma das formas de
exercer o poder. É interessante essa contradição, que nunca se resolveu.

Acho que integrou muito bem aí a maneira como o Marquês de Pombal continua a ser lido
hoje em dia. Identifico magnificamente essa divisão sobre ele na sociedade portuguesa,
até recentemente. Mas acho que essa divisão existia dentro dele próprio.

Houve sempre duas perguntas que construíram a minha investigação; a primeira, quando
é que o Marquês de Pombal começou a ser ele próprio. Ou seja, como acontece connosco,
quando é que temos a noção da nossa identidade. É uma pergunta interessante que o
biógrafo pode fazer, quando é que ele tem noção da sua existência, quando é que a sua
identidade se formou, quando quer isto ou não quer aquilo. Como Martinho Lutero,
monge agostiniano, que a certa altura (em 1517) descobre que “Eu não sou isto, eu quero
ser outro”, e contesta a Igreja Católica com as suas famosas “95 teses”.

E depois, a segunda coisa é quando ele se transforma num monstro. Tive sempre a
sensação de que ele era extremamente reativo. Ou seja, como diplomata, aprende a ser
reativo porque tem que mostrar que faz o seu papel, e cria uma estratégia para o seu papel
como embaixador, primeiro em Londres e depois em Viena.

Quando volta para Lisboa, primeiro mostra-se ministro competentíssimo, ele que
era taxado de incompetente como embaixador. Mas depois, a partir do terramoto, a
minha pergunta era outra; quando é que ele de facto começa a ser este monstro que nós
conhecemos, este tirano. Porque tem um programa a cumprir; mas muitas vezes me
parece que ele navega à vista.

Por exemplo, essa sua pergunta, será que ele era anti-clerical? Eu não sei até se ele era
anti jesuíta, porque de facto as suas relações de amizade com os jesuítas foram bastante
fortes. Mas teria nele - e aqui voltamos outra vez à parte que o biógrafo pode ver - teria
entrincheirado nele um certo anticlericalismo. Porquê? Uma relação conflituosa com o
tio, que era padre; isso começou logo desde cedo. E o tio deve-lhe ter dito – disto não
tenho provas, são suposições – quando o pai morreu: “Ou o menino vai estudar para
padre, ou vai organizar a sua vida, não pode andar aqui sem trabalho.”

Ou vai para padre ou para militar, não é?

Exatamente. Militar ele acabou por ser. Mas imagine que a fuga para a sua quinta de
Soure estivesse ligada a um conflito com o tio, que era padre. E, apesar do tio e ele se
virem a dar bem no final, ao princípio deram-se muito mal. E depois, em Viena, os
conflitos com a estrutura católica são do pior que ele pode imaginar. (Sebastião José foi
para Viena mediar um conflito entre a Santa Sé e a Imperatriz Maria Tereza, e o Vaticano,
chefiado por um eclesiástico português, Sampaio, foi muito agressivo com ele.)

Bem, a Santa Sé era apenas mais um Estado, mais um governo, funcionava


com interesses completamente terrenos, materiais, não é?

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Sem dúvida. E com maldades e histórias inacreditáveis. Mas ele defrontava-se não só com
os problemas da Santa Sé, mas também com o padre português Sampaio, que estava em
Roma, e ainda com os representantes que estavam em Viena e na Corte de Lisboa. Houve
um momento, em Viena, em que todo o mundo ligado à religião e ao poder estavam a
limitá-lo por completo. Imagino que isso deixou uma ferida. Essa parte não incluí na
biografia porque isso implicaria muito mais páginas e uma investigação não tanto
material, mas mais em termos (do significado) das palavras.

José Couto Nogueira (E) entrevista Pedro Sena-Lino (D), autor de “De quase nada a quase Rei”

Acha que ele ser maçon tinha alguma coisa a ver (com a sua postura)?

Porque ele era maçon iniciado em Inglaterra, portanto do Rito Escocês


Antigo e Aceite, que era uma maçonaria não tão anti-religiosa, mas mais uma
máquina de Poder. De qualquer maneira, era maçonaria, e ele tem bastantes
“tiques” de maçon.

Por exemplo, acreditar no progresso, querer diminuir as desigualdades,


acabar com a distinção dos cristãos-novos, permitir que os nobres das casas
altas casassem com os das casas inferiores – isso são tudo atitudes do ideário
maçónico. Você não explora muito esse lado dele, não sei se porque não quis,
se por ser muito difícil ter acesso à documentação.

O ponto foi exatamente esse. Eu procurei as vias que pude, e foi-me dada uma data da sua
iniciação maçónica, mas depois os contactos diretos que procurei para obter um
documento, não consegui. Sem dúvida que há alguns aspetos que estão ligados à
maçonaria, e os seus próximos, sobretudo em Londres, eram todos maçons, mesmo na
Royal Society. Mas não obtive nenhum documento que me dissesse que, sim senhor, ele
esteve nesta ou naquela reunião, o que seria uma prova. Mas naquilo que me é permitido
eu consigo deduzir que há de facto algumas...

Muito provavelmente em Lisboa também usaria as suas ligações maçónicas,


ou, ou ia buscar maçons ou fazia-os.

Sem dúvida. Mas, para mim, só para completar o seu ponto, além das medidas que muito
bem notou, há uma coisa notória: eu conheço o palácio de Oeiras, que ele mandou
construir, e que tem muitos símbolos maçónicos, inclusive o seu selo pessoal. Aí a
evidência é estridente.

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Pois, se calhar também era por isso que o Salazar não gostava dele. Como
sabe, ele odiava os maçons, porque era um poder onde não tinha influência.

Aliás, a propósito, eu acho o Pombal bastante semelhante ao Salazar em


muitas coisas. Um tipo que vem de baixo e que de alguma maneira se vinga
abusando do poder. Evidentemente que há a diferença de épocas – o Salazar
não podia mandar pessoas para a roda, mas mandou para o Tarrafal, que é
mais ou menos a mesma coisa. Mas eles são parecidos; por exemplo, o
Salazar era muito meticuloso e você mostra é que o Marquês também era
assim, tinha tudo anotado, as contas, a persistência... Isso, aliás, favoreceu-o
muito. Não concorda?

É muito curiosa a sua questão. Se me permite, só quero voltar um bocadinho atrás, à


questão da religião, que não ficou fechada. Essa pergunta (se era religioso ou não) foi
levantada logo em vida dele, quando já está em desterrado em Pombal, quando se defende
das acusações que lhe fazem. Em Londres, sem dúvida nenhuma que é religioso, porque,
como embaixador, tem uma capela aberta e sente que tem que defender um direito (dos
católicos num país anglicano). Que ele é anti-clerical, sim, agora se é religioso não tenho a
certeza. Tem um interesse espiritual nas coisas, sim, por mais pragmático que fosse. Ele
integra as coisas num mecanismo maior. Isso pode estar ligado a outras visões que ele
tivesse, como as da maçonaria.

Isso também está dentro do mundo daquela época, você leu as cartas, eles
escreviam sempre invocando Deus e a Previdência Divina. Isso, fazia parte
do estilo, se não parecia mal, não é?

Claro que sim.

É interessante que, ao mesmo tempo que ele era um tirano, é a primeira vez
em Portugal que aparece uma visão do estado moderno, já Nouveau Regime.
Acreditava na industrialização – até mudou o nome do Terreiro do Paço para
Praça do Comércio.

Não acha que ele tinha uma visão muito mais moderna do que a do seu
tempo, em termos de que o Estado deve interferir no comércio e indústria,
deve ser economicamente organizado, deve ter contas? Porque no Ancien
Regime, os bens do Rei e os bens do Estado, era tudo a mesma coisa. São
políticas muito avançadas para o seu tempo; era realmente progressista em
certas coisas.

Sem dúvida. Há uma coisa que é importante relembrar; nós nunca tínhamos tido um
ministro principal, um Primeiro-ministro que ele foi, embora ainda não se chamasse
assim, e que tivesse vivido no estrangeiro e confrontado outros poderes diferentes dos que
havia em Portugal. Porque é que na biografia estabeleço uma relação com o compositor
Handel? Para mostrar que um músico, também estava dependente do poder duma

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Companhia comercial (das Índias Orientais). O Handel foi obrigado a compor aquelas
melodias que os acionistas da Companhia associavam ao Oriente, assim como o Marquês
teve de acomodar o poder deles tantas vezes.

Sem dúvida que a sua visão do Estado é completamente diferente, porque ele viveu em
Inglaterra, um país em que o poder do Governo não era tão grande como em Portugal, e
onde havia estruturas que funcionavam. Mesmo em Viena, ele encontra um Poder que
está a ser refeito pelos Habsburgo, como o faz Maria Teresa, com pactos e alianças dentro
das várias nações de que ela é dirigente. E há uma delegação dela nos ministros. Então,
ele entende que essa é a estrutura. Devo dizer que ele fala sempre nisso, na estrutura
arquitetónica do Estado. Compreende que o Rei tem de existir como cabeça do Estado e
seu representante. É também por isso que o atentado (contra o Rei) é um choque, porque
ele não consegue conceber que a estrutura do Estado possa ser posta em causa.

Acha que o atentado era contra o Rei, não era contra ele?

Isso podemos discutir a seguir. Mas eu concordo consigo: ele tem uma visão
completamente moderna, mas muitas coisas que ele segue são coisas que viu em Londres,
e sobretudo as reformas de Viena, que segue passo a passo.

Contudo, Viena ainda era muito Ancien Regime, e Londres já não era tanto,
porque os ingleses tiveram aquela evolução parlamentar no século XVII,
tinham um Primeiro-ministro executivo e um Rei com poderes reduzidos.
Como costumo dizer, o último Rei de Inglaterra que teve opiniões, cortaram-
lhe a cabeça (Carlos I, em 1649). A partir daí os reis ingleses foram-se
afastando, até chegar ao ponto actual, em que não têm poder nenhum.

Mas você acha que ele foi mais influenciado, em termos ideológicos, pelo que
viveu em Viena, ou em Londres?

O eixo do meu livro é a cronologia da vida do Marquês. Claro que estudei o homem que é
embaixador e que depois é Secretário de Estado, partindo da juventude difícil. Mas penso
que as maiores influências na vida dele, no estrangeiro, foram sempre o Walpole (o
primeiro Primeiro-ministro do Reino Unido), um exemplo que ele vai imitar – e eu pego
neste ponto muitas vezes – e foi a Maria Teresa (Imperatriz do Sacro Império Romano
Germânico) pela admiração que tinha por ela, e também porque o modelo da corte de
Viena era muito mais próximo do modelo português.

Em Inglaterra, ser culto era sinal de ser nobre, porque os nobres tinham
tempo para se cultivar, enquanto em Portugal era ao contrário. No manual
militar do Conde de Lippe (convidado por Pombal para reorganizar o
exército, em 1762), ele escreve que os sargentos têm de saber ler e escrever
porque os oficiais, sendo nobres, não precisam...

Mas então, quando Pombal cai e se dá a “viradeira”, há um recuo do país em


termos de indústria e comércio, porque tudo o que ele tinha feito, eles
quiseram liquidar. Só mais tarde, com a Revolução Liberal, em 1820, voltam
as tentativas de industrialização e modernização do Estado. É assim, não é?

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Sim, sim. E, sabe, uma das coisas que mais me impressionou, que foi das primeiras que li,
foram as cartas que ele escreve à Dona Mariana Vitória, enquanto regente, e depois à
Dona Maria I, precisamente preocupado com quem vai suceder-lhe. Essas cartas são
obviamente lidas de duas formas; por um lado porque ele quer manter o seu poder,
mesmo indiretamente; mas também há uma genuína preocupação de manter as políticas
que estão estabelecidas. Ele tem a noção de que o que vem a seguir não vai manter as
linhas claras do seu exercício. Refere que uma reforma só consegue ser permanente, ao
longo do tempo, e se for cortada abruptamente não vinga. Essa é a questão principal.

Em relação aos nobres, é interessante que um dos motivos para ele ser promovido para
embaixador em Londres, é precisamente porque o D. João V não quer nomear ninguém
da grande nobreza. Portanto, ele é uma solução que aparece por várias outras
circunstâncias, mas também para não se enviar um nobre. Não havia nenhum nobre das
grandes famílias em nenhum cargo directivo nem em nenhuma embaixada, no tempo do
D. João V. E isso foi mantido no tempo do D. José. Depois a Dona Maria compensa um
pouco – o seu primeiro Governo é metade/metade, dois ex-pombalistas e dois membros
dos grandes do Reino. Foi um equilíbrio que ela tentou estabelecer.

Mas sem dúvida que ele tem a noção de que é preciso refundar a nobreza, porque
percebeu que sem estudar nunca teria conseguido chegar a lugar nenhum. Ele servia-se
dos pergaminhos do passado, mas ao mesmo tempo de um estudo muito apurado. Tinha a
noção daquilo que em França separava a nobreza intelectual da nobreza de espada, e que
em Portugal não era como nós imaginávamos. Esse é o modelo que identifica consigo
próprio. É importante o elogio que faz do Marquês do Louriçal, porque está a fazer um
auto-retrato, indiretamente. Como se dissesse: “Eu não sou um nobre militar, eu sou
outro tipo de nobre.”

Porque o seu tempo é precioso.


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Eu penso que não há nenhum desprezo da parte dele pela nobreza; pelo contrário, fez
imensas medidas que ajudaram a nobreza; a Companhia dos Vinhos do Porto está nas
mãos de muitas casas nobres. Achava que a nobreza tinha de se reformar e estar perto do
poder real. É uma visão que ele partilha com o D. João V e com o D. José.

O D. José, apesar de tudo, tem uma posição importante nisto; quando recebe o poder nas
suas mãos, subdivide-o. Tem a noção que é uma cabeça intocável, acima dos pormenores
da governação.

Voltemos ao seu livro. Há uma frase sobre o Pombal que gostei muito: “O seu
trono invisível é uma sobreposição de cadáveres.” Além da beleza literária,
define bem a situação. Ele é que reinou, porque o D. José assinava de cruz.
Simpatizava com ele e não queria chatices. “Deixa, que o Pombal trata disso.”
E o Pombal reinou pela violência, as perseguições dele são duma crueldade...
Aliás, uma pessoa que você não dá muito relevo é o Pina Manique, que era o

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homem de mão dele, o chefe da PIDE da altura. É a primeira polícia política
que existe em Portugal, não é? E o Pina Manique sobreviveu à viradeira,
continuou no cargo depois da queda de Pombal.

Não falei mais nele porque foi preciso fazer opções e eu quis focar-me no período até ele
chegar ao poder total, que é a parte menos conhecida. Mas, sim, o Pina Manique é um
homem de mão, como todos os comerciantes, porque ele baseava-se no poder económico
e eles mantinham o seu poder porque os colocava em companhias comerciais, “convidava-
os” a fazer grandes investimentos. Era preciso fazer um estudo sobre essas figuras, os
homens de mão do Pombal, como diz.

Até nisso há semelhanças com o Salazar...

Ah, pois é! Mas acho que tem toda a razão no que diz sobre a violência, sem dúvida
nenhuma. Essa violência chocou-me quando começa como diretiva, porque, ao ler as
cartas que ele manda aos ministros e aos embaixadores sobre os jesuítas, são de uma
violência tremenda. Para mim, a questão foi só esta: ele está em Lisboa, com o irmão no
Brasil, com o grande amigo Tarouca em Viena a escrever-lhe, e ele compreende que não
tem maneira de resolver o Brasil sem expulsar os jesuítas. Mas percebe que não pode só
expulsá-los, senão o conflito vai ser muito maior. E depois há o conflito pessoal com o
jesuíta Malagrida. (Gabriel Malagrida, visto como um místico de grande influência em
Portugal, que sempre pregou publicamente contra o Marquês.) O que aconteceu foi que
ele removeu sempre todos os obstáculos que achava necessário para uma fazer as suas
reformas. Mas também há muito de improvisação na expulsão dos jesuítas. Aquilo que eu
conto, baseado no diário do frei Manuel do Cenáculo, é dramático, é o pior já visto da
nossa governação.

Ele tinha uma obsessão com os jesuítas, não é?

Sim, mas a obsessão não me pareceu uma coisa pessoal. Ele viveu lá fora, conheceu o
ambiente anti-jesuítico que existia em Inglaterra e alimentou-se com a muita literatura
anti-jesuítica que circulava na altura, e que ele alimentou depois. Há um estudo muito
importante duma professora alemã que fala disso, os textos eram enviados para os jornais
que viviam de querelas anti-jesuíticas. Ele aproveitou o ar dos tempos.

Uma coisa que eu não percebi: as inúmeras cartas privadas, trocadas entre
os grandes atores políticos, eram um método de influenciar a opinião
pública, mas eram divulgadas como? Copiadas, ou saíam na imprensa?

Há várias maneiras. Em relação às cartas privadas, por exemplo, das cartas para os filhos,
no seu período final, existem muitas cópias, por um motivo óbvio, os filhos copiavam as
cartas entre eles para partilharem as notícias do pai, e depois passavam de mão em mão
para os partidários. Ele tinha sempre essa ideia... Se vai ser levado para Coimbra (para ser
julgado), quer ter um público favorável. Isso vai puxar pelos seus partidários. Ele tem a
noção que tem partidários; e aquelas cartas inglesas, por exemplo, ele pensa que é o elo
que vai ligar os ingleses aos portugueses e se for removido, podem servir de contestação.
Ele tem a plena noção que as jogadas da D. Maria a coligar-se com os espanhóis são

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perigosas. E tem razão, porque isso vai-se provar mais tarde! Precisa de puxar pelo seu
“lado inglês”. Mas antes disso há as cartas para os jesuítas – isso está estudado pela
professora Vogel, eu cito-a – é muito interessante, porque havia jornais anti-clericais e
sobretudo anti-jesuitas na Alemanha e em França e o que ele faz é enviar cartas por
outros, como o padre Fratel, e muitas outras revistas por ele, que alimentavam esse
público. As cartas eram divulgadíssimas, publicadas em jornais especializados apenas
nisso. As “Nouvelles du Portugal”, por exemplo, que se baseavam nesses escritos.

Ele alimenta o seu público. É uma figura conhecidíssima lá fora, fazem-se medalhas com o
rosto dele. Tem a perfeita noção de que é preciso manipular a opinião pública, como o
Walpole, que sabia que precisava de fazer isso nos jornais e no Parlamento. O Pombal não
tinha Parlamento, só tinha os jornais.

Você investigou durante três anos, como diz no seu livro. Parece pouco
tempo para tanta documentação. Não não deve ter feito outra coisa, durante
esse tempo. Eu nunca li nenhuma carta original dessa época, mas não deve
ser muito fácil de perceber a letra...

Sim, sim, sobretudo as cartas oficiais dele são muito complicadas, o português é
terrivelmente complicado.

Aliás, pelas transcrições que estão no livro, até é um português mais bonito,
as frases muito bem trabalhadas.

É muito rocambolesco. Se comparar com outros colegas, portugueses ou doutros países,


que escrevem com simplicidade, ele faz cartas muito grandes e muito complicadas. O meu
trabalho como investigador – juntaram-se duas vias da minha vida, como investigador e
como escritor – foi baseado em correspondência, sobretudo do século XVII, e assim
acabei por conhecer bem as expressões. Fui muitas vezes a Londres, que é mais próxima
de Bruxelas.

Mas a documentação dele não está na Torre do Tombo?

Está, mas há muita coisa na Biblioteca de Londres. Foi muito fácil para mim apanhar o
comboio para Londres, onde há cópias da correspondência oficial, mesmo do período de
Viena. Há cópias de tudo. Os ingleses gostavam dele e guardaram cópias quase até dos
palitos que ele usava para limpar os dentes!

Gostava de fazer duas perguntas pessoais...

Mas ainda não lhe respondi ao assunto do Salazar...

Eu acho que tocou aí num ponto muito importante. Eu tento levantar um pouco essa
lebre, mas não é o meu papel neste livro, a questão se não há um modelo do ministro
probo português.

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Aliás eu até sublinhei uma frase em que fala do Pombal, que parece que está
a falar do Salazar. Cito: “Um homem de vida parcimoniosa, servidor
abnegado e enérgico até ao auto-esquecimento, de preparação técnica
intocável, dotado de visão estratégica, corajoso na defesa do Estado e do bem
geral contra os inimigos internos e externos.” Isto podia-se dizer do Salazar,
do ponto de vista de quem o defende, evidentemente.

Apanhou-me! Porque eu queria mostrar que esse é exatamente o modelo que depois
alguém vai recuperar. E não é só o Salazar. Se pensarmos noutros ministros que
sucederam ao Pombal, vão usar esse tipo de imagem. Se repararmos, o Walpole também
passa a mesma imagem na História inglesa; procura exatamente mostrar essa dedicação,
até porque o cargo (de Primeiro-ministro) não existia. Alguém que tem de ser um grande
tribuno no Parlamento, que tem de saber gerir a maioria, que percebe que a maioria não
tem só a ver com o seu partido, mas que também é preciso criar consensos, gerir o papel
com o Rei, ter mão na estrutura do Estado. Essa imagem de Primeiro-ministro britânico,
aqueles que lhe sucederam estão a seguir o mesmo modelo, mas não conseguem.

Para dizer a mesma coisa, o Marquês de Pombal ficou no imaginário pelo facto de ele ser
visto pelos republicanos, mais tarde, como alguém que vem do nada – e para ele os
pergaminhos eram muito importantes – mas percebe-se, pela sua gestão do dinheiro e
dos assuntos correntes, que é um homem que passou dificuldades, e que tem a noção de
que gerir uma coisa bem gerida, com princípios claros – com noções de contabilidade,
sabia (o que são) as partidas dobradas, fez questão de abrir uma escola de comércio
porque achava que saber gerir é importante. Quando ia a Oeiras fazia contas com os
rendeiros. Essa é outra das ideias mal feitas sobre ele, que se tinha dedicado ao
contrabando e tinha posto dinheiro de parte, o que não é verdade. O que se percebe é que
(em Londres) ele andava a comprar coisas para toda a gente e que o dinheiro não lhe
chegava. Isso foi uma das maldades que lhe fizeram.

Mas, para explicar a analogia com o Salazar, esta ideia do homem que vem do campo, que
se preparou sozinho, no caso do Pombal, que tem uma visão do Estado correcta e
aplicável, a ligação entre o mundo das leis e o mundo real, e depois é um homem que se
dedica completamente à sua “missão”. Isto faz-nos pensar em vários primeiros ministros
depois dele que usaram este modelo.

Mas esse também é um ponto que me interessa: a biografia de um político que esteve
tanto tempo no poder, mostra a forma como os políticos hoje em dia ocupam os lugares.
Ou seja, quem se senta na cadeira do Pombal, tem as marcas do Pombal na cadeira!
Muitas das coisas que eram fantasmas e obsessões dele estão presentes ainda hoje na
forma como os políticos gerem o poder.

Pois, o poder corrompe, e o absoluto corrompe absolutamente.

Mas então, as coisas pessoais que eu gostaria de lhe colocar é o seguinte:


achei estranho, porque não é costume, quando você agradece “à minha irmã,
ao meu editor”, etc, agradece também aos seus inimigos: “por último, um

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agradecimento a todos os que tentaram perturbar e impedir este livro.” Quer
especificar, ou não?

A carapuça servirá a alguém, se calhar. Eu só queria dizer que não é “nonchalance”, não é
ironia, acho que todos ocupamos papéis na vida uns dos outros.

Pois, eu acho estranho que alguém tenha querido perturbar um trabalho


destes, mas deve acontecer... Acontece sempre.

E qual é a biografia seguinte? Quer dizer, ou não?

Não posso dizer, infelizmente. Não é permitido. Mas será da mesma época.

Pois, gostei muito de ler o seu livro. Não li as outras biografias do Pombal.
Aliás, a da Agostina (Bessa Luís) está esgotada, mas, conhecendo o trabalho
dela, posso imaginar. Quando à do Camilo (Castelo Branco), não sabia que
ele não gostava nada do Pombal.

O livro do Camilo é um exemplo de como matar a memória de uma pessoa. De uma


violência terrível contra o Pombal.

Isso condiz com a personalidade do Camilo que eu conheço doutras atitudes,


que era um bocado retorcido. Mas isso são outras histórias.

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