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5.

Sempre houve rebeldes e


transgressores
Vimos que os inquisidores eclesiásticos no século XVI já não se ocupavam muito das
bruxas. Isso se deveu ao fato de o Papa ter nomeado um cardeal embaixador na Espanha
e este viu como a inquisição funcionava ali, como um instrumento muito eficaz de
verticalização a serviço do rei, dedicado a converter em cinzas todos os dissidentes
perigosos para a Coroa (os chamados hereges), em particular os que tentavam introduzir
a desordem com ideias das Igrejas reformadas nacionais de outros países.

Pois bem. Este cardeal voltou a Roma e quando o Papa morreu, foi eleito para substituí-
lo. Nem lento nem preguiçoso, copiou a organização da inquisição espanhola para
combater os reformados e suas heresias, ou seja, todos os que não lhe respondiam,
revitalizando a decadente inquisição romana e transferindo sua condução aos jesuítas.

Aqui vemos uma mudança de corporação hegemônica, em que o primado do discurso


sobre a questão criminal passou dos dominicanos aos jesuítas. Isso ocorreu no tempo em
que o discurso se centrava nos luteranos e em outros hereges e deixava de lado as
bruxas, cuja combustão passou a ser decidida pelos juízes dos reis e príncipes, que
continuaram praticando-a com singular paixão incendiária, em especial na Europa
central, valendo-se sempre dos ensinamentos do famoso Malleus.

Contudo, nem todos estavam tão loucos nesse tempo, pois houve autores que
escreveram contra essa prática, em particular alguns jesuítas. O grande rebelde foi
Friedrich Spee, que publicou, em 1631, um livro exclusivamente destinado a destruir o
Malleus e aos doutrinários que legitimavam a combustão de mulheres acusadas de
bruxaria. Como era natural, por elementar prudência, ele publicou o livro anonimamente
e sem a licença dos superiores de sua ordem, o que constituía uma falta gravíssima.

Em todas as épocas, o transgressor é um enigma. Como surge? Por que alguém desafia
o poder ou os valores dominantes, mesmo às custas de graves riscos? Há quem afirme
que se trata de casos em que aquilo que foi ensinado desde pequeno contrasta muito
fortemente com o que se verifica em seguida, na vida adulta, porém o certo é que isso
acontece mais ou menos com todos nós e para resolver os psicanalistas costumam
comparecer.

De toda forma e sem descartar essa possibilidade, o certo é que por sorte sempre há
transgressores e, no caso de Spee, não podemos verificar se quando era pequeno, ao
invés de contos de fadas, lhe liam relatos de bruxas, e tampouco podemos fazer uma
reportagem com ele e lhe perguntar a esse respeito.

A julgar pelo que os biógrafos de Spee relatam, parece que o encarregaram de tomar a
confissão de todas as bruxas de sua comarca antes de queimá-las, e o pobre ficou tão
traumatizado que seu cabelo foi ficando branco, e não justamente porque as neves do
tempo branquearam suas cãs, já que era muito jovem.

O livro desse rebelde grisalho se chamou Cautio criminalis, ou seja, cautela ou


prudência criminal. O próprio título da obra era incômodo porque encerrava uma ironia:
a Constitutio criminalis era a ordenança criminal vigente e brutal de Carlos V, isto é, o
texto legal, de inusitada crueldade, que regeu o direito penal comum alemão desde 1532
até final do século XVIII e em função do qual os juízes do imperador do Sacro Império
Romano-Germânico queimavam mulheres (depois que o SIRG foi dissolvido, essa
tarefa coube aos dois príncipes que se consideravam herdeiros do império
desmembrado).

É curioso, mas Spee não era nem um jurista nem um criminólogo, e sim um poeta e,
segundo os especialistas, o melhor poeta alemão de seu tempo, além de destacado
teólogo.

Pois bem. Esse rebelde encanecido, cansado das brutalidades e iniquidades das quais era
testemunha (ao que talvez conviesse acrescentar que as tinturas de seu tempo não eram
boas), decidiu jogar tudo em seu livro e se valer disso à vontade, sem poupar nenhum
detalhe nem adjetivo.

Spee não andou em círculos e não se enredou em discussões sobre o poder de Satã ou
das bruxas. Ele começa afirmando que não discute sua existência, mas que nunca
conheceu nenhuma e que não havia bruxa alguma entre as mulheres de quem recolheu
confissão antes de serem queimadas. Pelo contrário: afirma que com o procedimento
inquisitorial qualquer um podia ser condenado por bruxaria.

O encanecido não era nenhum bobo – um bom poeta nunca pode sê-lo – e, por
conseguinte, tomou o caminho correto em qualquer crítica ao poder punitivo, evitando
cair na armadilha usual que desvia a questão para a gravidade do mal que este pretende
combater e contra o que livra sua guerra.

Se o poder punitivo não serve para o que pretende, não é questão de entrar na discussão
acerca da maldade do que diz combater, e sim, simplesmente, mostrar que não o faz.
Nas discussões sobre as atuais andanças de Satã (ou o inimigo), não tem sentido discutir
se a cocaína é daninha, porque não há dúvida de que é; o importante é mostrar que a
pretensa guerra à cocaína provocou 40.000 mortos no México nos últimos quatro anos,
boa parte deles decapitados e castrados (a cocaína teria demorado quase um século para
provocar a mesma quantidade por efeito de overdose). Tampouco tem sentido discutir a
perversidade do terrorismo, e sim fazer notar que a suposta guerra já causou muito mais
mortos inocentes que o próprio terrorismo. Spee soube disso em 1631, embora muitos
comunicadores sociais não tenham se dado conta até o presente. Talvez tenha sido mais
fácil para Spee porque não via televisão.

Ilustração 8

Nosso encanecido jesuíta se perguntava como era possível que acontecessem essas
aberrações, o que era que permitia que continuasse semelhante barbárie. Em primeiro
lugar o atribui à ignorância da população, isto é, à desinformação, ou seja, à
criminologia midiática de seu tempo, carregada de preconceitos que se reforçavam
desde as praças e os púlpitos, ou seja, ao que hoje chamamos técnica völkisch
(popularista, que alguns traduzem equivocadamente por populista, que obviamente não
é a mesma coisa).

Além do mais, ele destacava a responsabilidade da Igreja, entendendo por tal os


teóricos, isto é, os dominicanos e seus seguidores, que repetiam as palavras-de-ordem
discursivas da criminologia acadêmica de seu tempo, legitimadora desses assassinatos.

Prosseguia atribuindo culpa aos príncipes, que, desse modo podiam imputar todos os
males a Satã e a seus seguidores, sobretudo porque não controlavam seus subordinados,
a quem deixavam livres. Isso, hoje, é o que chamamos de autonomização policial, ou
seja, permitir que a corporação policial atue fora de todo controle político, para o qual
se lhe atribuem âmbitos de arrecadação autônoma, também destacados por Spee.

Com efeito, os inquisidores oficiais dos príncipes cobravam por bruxa executada, ou
seja, trabalhavam por tarefa. Por isso, esforçavam-se por obter o nome de outra
candidata, a fim de que a clientela nunca se esgotasse e, além do mais, atribuíam a Satã
o suicídio de algumas dessas infelizes, porque nesse caso não cobravam. Os príncipes
não pagavam por bruxas suicidas, porque não lhes serviam como espetáculo popular.
Porém, como se isso fosse pouco, Spee conta também que se dedicavam a percorrer os
domicílios solicitando contribuições para seu santo labor de purificação, ou seja, que
trata-seva de uma venda de proteção mafiosa. Como vemos, há poucas coisas novas sob
o sol. Por último, nosso encanecido poeta destacava algo que é até hoje moeda corrente
na linguagem jurídica: os eufemismos. Quando nas atas se fazia constar que as mulheres
confessavam voluntariamente, era porque o haviam feito uma vez penduradas e
desconjuntadas, uma vez que só se considerava confissão sob tormento quando os ferros
eram aplicados.

O livro de Spee é um pouco tedioso e bastante desordenado, pois está escrito com base
no método das questões, ou seja, perguntas e respostas. São 52 questões e nas últimas
ele não poupa qualificativos: considera que a queima de mulheres pode ser comparada
com o que Nero fazia aos cristãos, o que implica que os juízes dos príncipes eram
criminosos. Ninguém se havia animado a semelhante adjetivação e teria de se passar
mais de um século e meio até que dissesse o mesmo Jean-Paul Marat, o revolucionário
francês execrado por toda a historiografía fascista posterior.

O que cabe destacar como mais significativo desse texto é que, assim como o Malleus
fixou a estrutura do discurso inquisitorial, a Cautio o fez com o discurso crítico. Com
efeito, qualquer discurso crítico do poder inquisitorial e do poder punitivo em geral,
desde 1631 até hoje destaca o seguinte: 1) o descumprimento de seus fins manifestos
pelo poder punitivo; 2) a função dos meios de comunicação; 3) a dos teóricos
convencionais legitimadores; 4) sua conveniência para com o poder político ou
econômico; 5) a autonomização policial; e 6) a corrupção ou a arrecadação autônoma.

Esses elementos estruturais estão presentes no discurso deslegitimador ou crítico de


todo poder punitivo, desde a crítica liberal ao poder punitivo do Antigo Regime até as
teorias da criminologia crítica das últimas décadas do século passado.
Nesse sentido, Spee fixou outro programa de computação que em cada época em que
floresce a crítica volta a ser prenchido com os dados correspondentes ao tempo de cada
autor. Pode-se dizer que até hoje construímos discursos seguindo alternativamente as
estruturas fundacionais do Malleus ou da Cautio.

O livrinho de Spee incomodava muito os príncipes, os dominicanos, os policiais e os


juízes, mas também os próprios jesuítas, que embora não queimassem mulheres,
aplicavam o mesmo procedimento contra os luteranos, e por isso ter semelhante infrator
em suas fileiras lhes criava um problema com os príncipes.

Se bem que o livro tenha sido publicado sem nome de autor, aos poucos se soube que
Spee era o responsável e não faltou quem imediatamente propusesse que ele fosse
assado em fogo lento, ideia que não prosperou, talvez porque isso lhe tivesse dado mais
fama. De qualquer maneira, era contaminador para a ordem, motivo pelo qual quiseram
obrigá-lo a renunciar a ela, a que o poeta se negou veementemente. No final, resolveram
suportá-lo e acalmá-lo na medida do possível, dando-lhe uma cátedra de teologia.

Alguns citam seu nome como Friedrich von Spee, o que não é certo, porque não era
nobre; seu nome era somente Friedrich Spee e o von Langenfeld não faz mais que
indicar seu lugar de origem.

Quatro anos depois da publicação da Cautio criminalis, em 1635, morreria contagiado


enquanto prestava assistência a soldados vítimas da peste. Imaginamos que sua morte
tenha sido um alívio para seus superiores, pois não se preocuparam muito com seus
restos, que ficaram perdidos até que, em 1980, conseguiu-se identificar seu corpo.

Pese a todo o empenho colocado por Spee e aos riscos que ele correu, seu livro passou
sem pena nem glória e os juízes continuaram levando adiante sua alegre queima de
mulheres, conforme as instruções do Malleus, que continuava sendo o livro de cabeceira
dos corruptos da época.

Setenta anos depois do aparecimento da Cautio, o filósofo Christian Thomasius releu


sua obra. Thomasius era um simpático senhor, que aparece nos retratos com seu rosto
rosado arredondado, sem que saibamos se era grisalho, pois cobria sua cabeça com uma
peruca loura, de longos cachos. Ao que parece, esse recurso protegia um respeitável
conteúdo craniano, porque Thomasius não duvidou em retomar os argumentos de Spee.
Em 1701, ele defendeu publicamente sua tese Dissertatio de crimine magiae, na qual
desbaratava os disparates do Malleus. Esta tese foi traduzida para o alemão três anos
mais tarde e alcançou grande repercussão, o que era explicável. Afinal, com Thomasius
anunciou-se o Iluminismo e, como se isso fosse pouco, lançou as bases para uma
adequada distinção entre moral e direito (pecado e delito), embora até hoje pululem
muitos que se negam a compreendê-la e que, sem dúvida, se bem que nossa civilização
mostre, a cada dia, mais defeitos, é uma de suas melhores conquistas.

Esse emperucado filósofo obscureceu o Malleus até desaparecer e ficar reduzido a uma
curiosidade histórica.

Na verdade, devo dizer que tudo o que estou contando era muito pouco conhecido pelos
penalistas e criminólogos posteriores, até o momento em que o Malleus foi publicado
em versão em espanhol há menos de quarenta anos por historiadores, em uma edição
que está completamente esgotada (há menos de uma década veio à luz uma outra
edição). A Cautio criminalis nunca foi traduzida para o espanhol e até onde sei,
tampouco o foi a tese de Thomasius. Tudo isso foi recoberto por um manto de silêncio,
como se não fizesse parte da história do direito penal e da criminologia. Insisto em que
se trata de ascendentes que esses saberes tentaram ocultar, como a árvore genealógica
de algumas famílias ilustres que se empenham em esconder a origem de suas fortunas.

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