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No Estado absoluto o senhor exercia poder de vida e morte, que, na realidade, era só
poder de morte, pois não podia dar a vida. Para matar ou deixar viver, como diz
Foucault, não se necessitava de muita especialização, porque, no geral, matar é uma
operação bastante simples para o poder estatal, que, para isso, não tem necessidade de
mais nada do que uma agência ou corpo de assassinos mais ou menos dissimulados e
elevados a funcionários.
Não é de estranhar, portanto, que o discurso penal e criminológico tenha sido matéria de
disputas entre as corporações, como não podia ser deixar de ser, dado que é sempre um
discurso acerca do próprio poder. Isso não é nenhuma novidade, posto que desde muito
antes de essa luta entre corporações tomar corpo vimos como o primado passou dos
dominicanos aos jesuítas, e os médicos, com Wier, também quiseram meter sua colher,
que em séculos posteriores se tornará um enorme colherão.
Vimos que o poder punitivo gera as estruturas colonizadoras, mas também fossiliza as
sociedades que adquirem essa estrutura, razão pela qual elas não são muito aptas como
cenário para a luta de corporações e menos ainda se se trata do discurso do próprio
poder punitivo.
Como não existe poder sem discurso – ou, pelo menos, este não dura muito sem o texto
–, resultava funcional às novas classes em ascensão assumir outro discurso acerca do
poder punitivo e, por conseguinte, deviam procurá-lo em outras corporações, diferentes
daquelas que o haviam monopolizado até aquele momento.
Por essa razão, na segunda parte do século XVIII foi tomando corpo o saber das
corporações dos filósofos e pensadores no campo político geral e, portanto, o dos
juristas que seguiam seus alinhamentos limitadores do poder punitivo. Assim nasceu o
Iluminismo, o século das luzes ou da razão e, em seu amparo, o chamado direito penal
liberal.
O novo discurso passou a ser obra das corporações dos filósofos e juristas que se
defrontavam com os legitimadores do Antigo Regime e frente ao qual houve várias
reações diferentes.
Em princípio, houve príncipes que se davam conta de que algo estava mudando e que,
antes de que a prateleira caísse, preferiram acolher o novo discurso, pelo menos em boa
parte (na que incomodava menos e lhes permitia continuar gozando da maioria de seus
privilégios). Foi essa atitude que deu lugar ao chamado despotismo ilustrado, que
pretendia fazer todas as mudanças a partir do poder, desde cima, com o lema tudo para o
povo, tudo pelo povo, mas sem o povo.
Houve outros príncipes menos sagazes, que preferiram seguir em frente, e contra os
quais se ergueram os revolucionários, radicalizando o discurso crítico do sistema penal
em maior ou menor medida, de liberais a socialistas.
7. O utilitarismo disciplinador
Em geral, o Iluminismo penal se nutriu de duas variantes opostas, embora muitas vezes
coincidentes em seus resultados práticos: o empirismo e o idealismo. Com a permissão
dos mais finos historiadores da filosofia, que nós obtivemos sem consultá-los, pode-se
dizer que houve, no Iluminismo, uma convergência de vias de conhecimento ou acesso
à verdade: uns a buscavam mediante a verificação na realidade material e outros através
da dedução de uma ideia dominante.
No campo criminológico, essa dupla corrente deu lugar a duas ordens teóricas: o
utilitarismo disciplinador e o contratualismo (ou talvez, os contratualismos, em todas as
suas variantes).
Os utilitaristas tinham como base que era necessário governar proporcionando a maior
felicidade ao maior número de pessoas. A cabeça mais visível dessa corrente foi o
inglês Jeremy Bentham, personagem de vida longa, cujo esqueleto vestido se encontra
em uma vitrine no colégio que ajudou a fundar, embora se diga que a cabeça foi
mumificada e em seu lugar se colocou uma de cera. Parece que acontece alguma coisa
com as cabeças daqueles que elaboram teorias criminológicas, pois se comenta que a de
Lombroso está conservada em formol em um museu em Turim. Por sorte, faz tempo
que se perdeu o costume de se dispor das cabeças dos criminólogos post-mortem,
embora isso seja sempre preferível a que outros o façam ante-mortem por eles. Mas
voltemos ao nosso ponto.
Bentham concebia a sociedade como uma grande escola, na qual devia impor-se a
ordem, ou seja, a chave era a disciplina e, para tal, o governo devia repartir prêmios e
castigos: como é óbvio, os prêmios proporcionavam felicidade e os castigos dor e, como
também parece óbvio, o ser humano saudável e equilibrado devia preferir os primeiros,
com sua felicidade, e não os castigos, com sua dor. Por isso, ele deveria abster-se de
cometer delitos. Todavia, delitos eram cometidos, o que indicava que o infrator não
estava bem, ou seja, que não era suficientemente ordenado, dado que escolhia a dor. Era
como a criança desobediente, que obriga a professora a chamar os pais e lhes informar
que algo está acontecendo com ela. Hoje o psicólogo intervém, e se ele é bom pode
chegar a descobrir que o menino é mais inteligente que os pais e a professora; há
cinquenta anos ele corria o risco de o deixarem bobo com uns eletrochoques, e, há
duzentos, Bentham queria colocar o adulto a quem acontecia alguma coisa em um
invento arquitetônico que chamou de panóptico, que era um aparato para discipliná-lo.
Vamos, porém, por partes.
Essa ideia era tomada de alguns médicos que asseguravam ser a doença mental também
produto da desordem e por isso os manicômios deviam ocupar-se do disciplinamento
dos doentes, colocando-os para trabalhar, na convicção de que a ordem física redundaria
na ordem mental. Dessa perspectiva, não importa que o trabalho dos presos ou dos
loucos seja ou não rentável ou útil, porque é um valor disciplinador em si mesmo, como
podia ser o famoso quebrar pedras.
O disciplinamento devia ser levado a cabo na medida do talião, ou seja, de uma dor
equivalente à provocada pelo delito. A obssessão pela retribuição exata levou Mr.
Jeremy a projetar uma máquina de açoitar, para que a intensidade da dor fosse uniforme
e não ficassse entegue ao arbítrio do carrasco. Ainda que a guilhotina não tenha sido
inventada por ele (foi criada na França), o certo é que ela foi imaginada respondendo ao
mesmo critério.
As leis penais são feitas hoje em dia pelos assessores dos legisladores, de acordo com a
agenda definida pelos meios de comunicação de massa, mas no começo do século XIX
as projetavam os penalistas e, quando estes tomaram a ideia de Bentham, acabaram
elaborando códigos penais com penas fixas e longas listas de agravantes e atenuantes,
prevendo percentuais para cada um. Assim foi redigido, por exemplo, o primeiro código
penal do Brasil, em 1831, e seus comentadores anotavam os difíceis cálculos
matemáticos para cada caso, porque não se conheciam as calculadoras e nem todos os
juízes haviam obtido boas notas no secundário.
Cabe esclarecer que os panópticos nunca funcionaram como Bentham havia imaginado,
pois logo os presos descobriram sua lógica e a superlotação fez com que a visão fosse
interrompida com os múltiplos obstáculos.
O disciplinarismo dos utilitaristas deu muito o que falar nos anos setenta do século
passado, quando Foucault o considerou diretamente um modelo social e, na Itália, Dario
Melossi e Massimo Pavarini publicaram um livro intitulado Cárcere e fábrica, em que
destacam uma matriz comum com o disciplinamento para a produção fabril nas origens
do industrialismo. Um professor argentino, Enrique Marí, contribuiu para enriquecer
essas reflexões entre nós.
Os utilitaristas não admitiam que existisse nenhum direito natural anterior à sociedade e
sobre o qual esta não pudesse avançar. Os direitos deviam ser respeitados unicamente
porque sua lesão havia provocado mais dor que felicidade.
Era claro que o utilitarismo de Bentham encerrava uma concepção criminológica, pois
fincava a etiologia do delito na desordem da pessoa e, por conseguinte, surgia daí uma
política destinada a combatê-lo mediante o disciplinamento, que importava a pena
talional no curioso aparato inventado.