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6.

As corporações e suas lutas


Nos anos transcorridos entre a Cautio e a Dissertatio – ou seja, entre 1631 e 1701–
estava a se aprofundr outro fenômeno, o surgimento do sujeito público, que se
acentuaria no curso do século XVIII.

No Estado absoluto o senhor exercia poder de vida e morte, que, na realidade, era só
poder de morte, pois não podia dar a vida. Para matar ou deixar viver, como diz
Foucault, não se necessitava de muita especialização, porque, no geral, matar é uma
operação bastante simples para o poder estatal, que, para isso, não tem necessidade de
mais nada do que uma agência ou corpo de assassinos mais ou menos dissimulados e
elevados a funcionários.

O problema se complicou quando o poder estatal começou a se preocupar em regular a


vida pública, quer dizer, não de cada indivíduo em particular, mas sim do sujeito
público. A função do Estado complicou-se e o príncipe precisou se cercar de secretários
ou ministros especializados que passaram a encarregar-se da economia, das finanças, da
educação, da salubridade públicas, isto é, desse sujeito público.

Como é natural, ao redor de cada ministro se foi formando uma burocracia


especializada, que construiu um saber ou ciência que se alimentava a partir das
universidades.

Desse modo, formaram-se as corporações de sábios especialistas, cada uma com um


saber próprio, expresso em um dialeto compreensível apenas para os iniciados, ou seja,
para os que pertencem à respectiva corporação e, por conseguinte, inacessível ao vulgo
de estranhos a esta, geralmente chamados leigos (também poderiam ser chamados de
bárbaros, porque assim eram chamados os que não compreendiam ou falavam mal a
língua local).

Trata-se de corporações que monopolizam o discurso e se fecham aos estranhos


mediante seu dialeto particular. Não deve chamar a atenção que os criminalizados
façam o mesmo sob a forma do jargão delinquencial, que foi matéria de estudo de
sisudos criminólogos do século passado, que não se deram conta de que eles se
expressavam em seu próprio jargão e que também eram bárbaros a respeito do dialeto
dos presos.

Desde os séculos XVII e XVIII e até o presente, as corporações monopolizam seu


discurso e disputam entre elas para ampliar sua competência, sem contar que há,
também, uma luta interna de escolas na busca de conseguir impor a hegemonia do
próprio subdiscurso. Em síntese, há lutas intercorporativas e também intracorporativas.

Não é de estranhar, portanto, que o discurso penal e criminológico tenha sido matéria de
disputas entre as corporações, como não podia ser deixar de ser, dado que é sempre um
discurso acerca do próprio poder. Isso não é nenhuma novidade, posto que desde muito
antes de essa luta entre corporações tomar corpo vimos como o primado passou dos
dominicanos aos jesuítas, e os médicos, com Wier, também quiseram meter sua colher,
que em séculos posteriores se tornará um enorme colherão.
Vimos que o poder punitivo gera as estruturas colonizadoras, mas também fossiliza as
sociedades que adquirem essa estrutura, razão pela qual elas não são muito aptas como
cenário para a luta de corporações e menos ainda se se trata do discurso do próprio
poder punitivo.

Sempre há discursos sobre esse poder, mas apenas um se torna hegemônico ou


dominante, porque resulta funcional a algum setor social, que o adota e o estimula. Isso
tem lugar quando há uma dinâmica social mais ou menos acelerada, ou seja, quando
surge um conflito interno na sociedade e um setor de certa importância quer
deslegitimar o discurso do poder do setor a que tende a se deslocar ou frente ao qual
quer abrir-se um espaço. Por isso, as sociedades colonialistas espanhola e portuguesa
não eram o melhor campo para a luta das corporações e, consequentemente, o cenário
desta luta transferiu-se para a Grã-Bretanha primeiro e para a França e a Alemanha
depois, onde estava surgindo uma classe de industriais, comerciantes e banqueiros.

Essa classe em ascensão necessitava controlar e impor limites ao poder da nobreza e do


clero, que até então eram as classes dominantes. É claro, o poder mais temível das
camadas hegemônicas era o punitivo, que ameaçava os novos empresários que
assediavam seu Estado absoluto e que eram considerados dissidentes perigosos.
Veremos que não foi apenas o livrinho de Spee que se publicou anonimamente por
razões de prudência elementar e sentido de conservação.

Como não existe poder sem discurso – ou, pelo menos, este não dura muito sem o texto
–, resultava funcional às novas classes em ascensão assumir outro discurso acerca do
poder punitivo e, por conseguinte, deviam procurá-lo em outras corporações, diferentes
daquelas que o haviam monopolizado até aquele momento.

Por essa razão, na segunda parte do século XVIII foi tomando corpo o saber das
corporações dos filósofos e pensadores no campo político geral e, portanto, o dos
juristas que seguiam seus alinhamentos limitadores do poder punitivo. Assim nasceu o
Iluminismo, o século das luzes ou da razão e, em seu amparo, o chamado direito penal
liberal.

O novo discurso passou a ser obra das corporações dos filósofos e juristas que se
defrontavam com os legitimadores do Antigo Regime e frente ao qual houve várias
reações diferentes.

Em princípio, houve príncipes que se davam conta de que algo estava mudando e que,
antes de que a prateleira caísse, preferiram acolher o novo discurso, pelo menos em boa
parte (na que incomodava menos e lhes permitia continuar gozando da maioria de seus
privilégios). Foi essa atitude que deu lugar ao chamado despotismo ilustrado, que
pretendia fazer todas as mudanças a partir do poder, desde cima, com o lema tudo para o
povo, tudo pelo povo, mas sem o povo.

Houve outros príncipes menos sagazes, que preferiram seguir em frente, e contra os
quais se ergueram os revolucionários, radicalizando o discurso crítico do sistema penal
em maior ou menor medida, de liberais a socialistas.

7. O utilitarismo disciplinador
Em geral, o Iluminismo penal se nutriu de duas variantes opostas, embora muitas vezes
coincidentes em seus resultados práticos: o empirismo e o idealismo. Com a permissão
dos mais finos historiadores da filosofia, que nós obtivemos sem consultá-los, pode-se
dizer que houve, no Iluminismo, uma convergência de vias de conhecimento ou acesso
à verdade: uns a buscavam mediante a verificação na realidade material e outros através
da dedução de uma ideia dominante.

Sem nos aprofundarmos muito, poderíamos afirmar que se achavam em germe os


elementos que em seguida teriam de se separar entre aqueles que só aceitavam o que
resultava da observação, medição e experimentação, e aqueles que partiam de uma
primeira ideia iluminadora, que lhes servia de guarda-roupa no qual acomodar as
roupagens do mundo, às vezes sob pressão.

No campo criminológico, essa dupla corrente deu lugar a duas ordens teóricas: o
utilitarismo disciplinador e o contratualismo (ou talvez, os contratualismos, em todas as
suas variantes).

Os utilitaristas tinham como base que era necessário governar proporcionando a maior
felicidade ao maior número de pessoas. A cabeça mais visível dessa corrente foi o
inglês Jeremy Bentham, personagem de vida longa, cujo esqueleto vestido se encontra
em uma vitrine no colégio que ajudou a fundar, embora se diga que a cabeça foi
mumificada e em seu lugar se colocou uma de cera. Parece que acontece alguma coisa
com as cabeças daqueles que elaboram teorias criminológicas, pois se comenta que a de
Lombroso está conservada em formol em um museu em Turim. Por sorte, faz tempo
que se perdeu o costume de se dispor das cabeças dos criminólogos post-mortem,
embora isso seja sempre preferível a que outros o façam ante-mortem por eles. Mas
voltemos ao nosso ponto.

Bentham concebia a sociedade como uma grande escola, na qual devia impor-se a
ordem, ou seja, a chave era a disciplina e, para tal, o governo devia repartir prêmios e
castigos: como é óbvio, os prêmios proporcionavam felicidade e os castigos dor e, como
também parece óbvio, o ser humano saudável e equilibrado devia preferir os primeiros,
com sua felicidade, e não os castigos, com sua dor. Por isso, ele deveria abster-se de
cometer delitos. Todavia, delitos eram cometidos, o que indicava que o infrator não
estava bem, ou seja, que não era suficientemente ordenado, dado que escolhia a dor. Era
como a criança desobediente, que obriga a professora a chamar os pais e lhes informar
que algo está acontecendo com ela. Hoje o psicólogo intervém, e se ele é bom pode
chegar a descobrir que o menino é mais inteligente que os pais e a professora; há
cinquenta anos ele corria o risco de o deixarem bobo com uns eletrochoques, e, há
duzentos, Bentham queria colocar o adulto a quem acontecia alguma coisa em um
invento arquitetônico que chamou de panóptico, que era um aparato para discipliná-lo.
Vamos, porém, por partes.

É evidente que Bentham se deparava com o problema da impunidade da grande maioria


dos delitos e bancava o distraído a respeito da seletividade do poder punitivo, razão pela
qual tratava de resolver a questão postulando que as penas deviam ser mais graves
quanto maior fosse a impunidade, o que não parece muito razoável, porque ninguém
tem a culpa da torpeza ou Da referência do Estado ao repartir o poder punitivo. Para
disciplinar os desobedientes descontrolados, Bentham se irritava com os mais bobos,
que eram os enganados pelo poder.
Mas prossigamos. Para Bentham, o delito coloca em evidência um desequilíbrio,
produto da desordem pessoal do infrator, que deve ser corrigido. Para isso, projetou a
referida prisão chamada panóptico, com estrutura radial, para que o preso saiba que será
observado a partir do centro e por olhos mágicos a qualquer momento. Desse modo, ele
seria introduzido na ordem e, ao final, acabaria se tornando seu próprio vigilante, isto é,
comeria o guardião (é mais delicado dizer que o introjetaria).

Essa ideia era tomada de alguns médicos que asseguravam ser a doença mental também
produto da desordem e por isso os manicômios deviam ocupar-se do disciplinamento
dos doentes, colocando-os para trabalhar, na convicção de que a ordem física redundaria
na ordem mental. Dessa perspectiva, não importa que o trabalho dos presos ou dos
loucos seja ou não rentável ou útil, porque é um valor disciplinador em si mesmo, como
podia ser o famoso quebrar pedras.

O disciplinamento devia ser levado a cabo na medida do talião, ou seja, de uma dor
equivalente à provocada pelo delito. A obssessão pela retribuição exata levou Mr.
Jeremy a projetar uma máquina de açoitar, para que a intensidade da dor fosse uniforme
e não ficassse entegue ao arbítrio do carrasco. Ainda que a guilhotina não tenha sido
inventada por ele (foi criada na França), o certo é que ela foi imaginada respondendo ao
mesmo critério.

As leis penais são feitas hoje em dia pelos assessores dos legisladores, de acordo com a
agenda definida pelos meios de comunicação de massa, mas no começo do século XIX
as projetavam os penalistas e, quando estes tomaram a ideia de Bentham, acabaram
elaborando códigos penais com penas fixas e longas listas de agravantes e atenuantes,
prevendo percentuais para cada um. Assim foi redigido, por exemplo, o primeiro código
penal do Brasil, em 1831, e seus comentadores anotavam os difíceis cálculos
matemáticos para cada caso, porque não se conheciam as calculadoras e nem todos os
juízes haviam obtido boas notas no secundário.

Bentham presenteava seu modelo a todo o mundo, tendo, inclusive, mantido


correspondência com Bernardino Rivadavia. Houve panópticos em muitas cidades da
América Latina, às vezes completos e outras semi-radiais, em geral porque o orçamento
não era suficiente para fazê-los completos. Alguns subsistem, convertidos em museus
ou mercados (como em Recife e em Ushuaia), ou funcionando como prisão – o de
Quito, construído no século XIX pelo ditador Gabriel García Moreno e por cujas celas
passaram quase todos os políticos equatorianos do século seguinte, sem contar com o
fato de as turbas, instigadas pelos conservadores, terem arrancado o líder liberal Eloy
Alfaro desse presídio e o linchado, em 28 de janeiro de 1912.

Cabe esclarecer que os panópticos nunca funcionaram como Bentham havia imaginado,
pois logo os presos descobriram sua lógica e a superlotação fez com que a visão fosse
interrompida com os múltiplos obstáculos.

O disciplinarismo dos utilitaristas deu muito o que falar nos anos setenta do século
passado, quando Foucault o considerou diretamente um modelo social e, na Itália, Dario
Melossi e Massimo Pavarini publicaram um livro intitulado Cárcere e fábrica, em que
destacam uma matriz comum com o disciplinamento para a produção fabril nas origens
do industrialismo. Um professor argentino, Enrique Marí, contribuiu para enriquecer
essas reflexões entre nós.
Os utilitaristas não admitiam que existisse nenhum direito natural anterior à sociedade e
sobre o qual esta não pudesse avançar. Os direitos deviam ser respeitados unicamente
porque sua lesão havia provocado mais dor que felicidade.

Era claro que o utilitarismo de Bentham encerrava uma concepção criminológica, pois
fincava a etiologia do delito na desordem da pessoa e, por conseguinte, surgia daí uma
política destinada a combatê-lo mediante o disciplinamento, que importava a pena
talional no curioso aparato inventado.

Se bem que Bentham tenha se desenvolvido na Grã-Bretanha e rechaçado a ideia do


contrato social e do direito natural anterior à sociedade, foi condecorado pelos
revolucionários franceses, pois representava um avanço frente ao brutal exercício do
poder punitivo de seu tempo.

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