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Se me identifico como cristão e confessamos a fé no Senhor Jesus Cristo,

estou declarando entender que as minhas melhores atitudes, virtudes e


qualidades não me livrariam da prestação de contas com Deus nem da
conseqüente condenação pelas minhas transgressões e pecados, pois a
perfeição é condição única e indispensável para a justificação diante de Deus.
Estou, portanto, declarando crer que não havia um meio, baseado no meu
esforço, na minha religiosidade e nas minhas boas obras, que pudesse livrar-
me da condenação. Mas o próprio Deus - vendo a minha situação e sabendo
que os meus pecados não poderiam ficar impunes - assumiu a minha culpa e
sofreu a execução da minha pena, por amor a mim. Desse modo, a Justiça da
Lei foi totalmente cumprida e viabilizou-se a Justiça de Deus. Mas, o que é a
Justiça da Lei e o que é a Justiça de Deus?

O princípio natural de justiça está presente em todo o universo. Ele é o senso


máximo de justiça para cada ação; é o equilíbrio; é a lógica; a conseqüência
equivalente e justa para cada ato, de qualquer natureza (olho por olho, dente
por dente); é a pena de morte para quem mata; é a força a favor e a igual força
contrária na Física; é o desleixo com a educação da população e a
multiplicação de bandidos na sociedade; é a falta de disciplina nos filhos e o
adulto desequilibrado de amanhã; é a poluição e o buraco na camada de
ozônio; é o desmatamento e o aumento da temperatura global; é o aumento da
temperatura global e o derretimento das calotas polares; é o derretimento das
calotas polares e o avanço dos oceanos, etc...

É ainda a condição necessária - e justa - para que cada ato aconteça. Eu amo
quem me ama e odeio quem me odeia; amo meus amigos e odeio meus
inimigos; agradarei o meu cônjuge se ele me agradar; terei misericórdia de
quem me for misericordioso; e ainda, serei perdoado, se eu antes perdoar
(Mateus 6:12). Tais princípios estão gravados no coração de todo ser humano.
Eles são o que se pode chamar de senso natural e absoluto de justiça, e nele
não há lugar para a misericórdia imerecida. Seu único objetivo é dar uma
retribuição correspondente e justa para cada ato praticado. É esse senso de
justiça que nos causa revolta quando uma maldade fica sem a justa punição. E,
por estar gravado em nossos corações, é também ele que, na nossa
consciência, implacavelmente nos acusa das injustiças e pecados que
praticamos.

São ainda esses princípios naturais de justiça que norteiam os códigos de leis
civis em todas as sociedades organizadas. Fatores culturais, políticos e
religiosos podem atenuar as leis e as penas estabelecidas e possibilitar
inúmeros recursos ao réu, mas a cobrança dos cidadãos será sempre baseada
na justiça absoluta. Daí a classificação popular de leis “justas” e “injustas”,
penas “satisfatórias” e “insatisfatórias”. Por isso muitas vezes, mesmo quando
a lei civil é cabalmente cumprida, há ainda quem se queixe, com justiça, de que
não houve “justiça”.

Na Bíblia, a expressão “Justiça da Lei” traz todos esses conceitos, seja o que
chamamos de lei natural e absoluta (para cada ato uma conseqüência
correspondente, igual e justa), bem como o código de leis civis que regia os
judeus, assim como em qualquer sociedade que se pretenda organizada. Por
isso algumas pessoas apresentam como um grande trunfo contra a Bíblia o
fato de que os dez mandamentos não eram basicamente nenhuma novidade
na época em que foram anunciados pelo profeta, e que, por não serem
nenhuma novidade, comprovado estaria que não foram dados por Deus. Ora, é
óbvio que qualquer comunidade minimamente organizada (comunidades
indígenas, por exemplo), mesmo anterior a Moisés, teria leis semelhantes ao
código mosaico, pois os princípios de justiça estão gravados no coração do
homem.

No aspecto civil, a lei mosaica era a constituição de Israel. E em toda e


qualquer nação, os cidadãos honestos devem procurar ser irrepreensíveis
perante as leis de seu país. Em Israel, muitos eram irrepreensíveis no tocante à
natureza civil da lei, e esse aspecto não implica incompatibilidade com a Graça
de Deus, que nada tem a ver com desobediência civil. Paulo, o apóstolo do
Evangelho da Graça de Cristo, era irrepreensível perante as leis de Israel
(Filipenses 3:6), e a vontade de Deus é que sejamos nós também
irrepreensíveis diante das leis de nosso país.

Mas há ainda um último nível de transgressão que não está escrito em nenhum
código de leis nem em constituição alguma. Falo da pré-disposição, da
intenção, ou do desejo de transgredir uma lei ou mandamento. A nossa
consciência nos acusa quando desejamos ou intentamos fazer algo errado,
mesmo que não cheguemos a praticar o ato. Por não entender isso, o
cristianismo tem, desde o fim da era apostólica, se arrastado e procurado
arrastar os gentios para debaixo da lei mosaica. O apóstolo Paulo - que nunca
teve essa preocupação, pois entendia a lei da consciência - afirmou que os
gentios seriam julgados pela norma da lei, gravada em seus corações, sob
testemunho da consciência (Romanos 2:14-16), a não ser que eles mesmos se
colocassem debaixo da lei mosaica (Gálatas 5:1-4). O apóstolo do evangelho
da Graça sabia que os gentios vivem “fora do regime da lei” judaica (I Coríntios
9:20-21), mas têm consciência, e Paulo, ironizando, disse que tentava ganhá-
los pela “lei” de Cristo (A justiça de Deus). Portanto, a expressão “condenação
da lei” refere-se tanto à lei judaica quanto à “norma da lei”, gravada na
consciência (Romanos 3:19-21). Como instrumento de justificação, a lei
mosaica vai muito além do que possa parecer numa simples leitura, e os
judeus (bem como muitos gentios cristianizados), ignorando a verdadeira
profundidade da justiça da lei, optaram por ela como meio de justificação e não
se sujeitaram à justiça de Deus (Romanos 10:3).
A maior parte dos evangelhos narra encontros de Cristo com escribas e
fariseus, que sempre o testavam. Nessas ocasiões ele esclarecia o que
aguardava a todos os que tentassem se justificar pela lei, a qual dizia: “Não
matarás”, mas ninguém poderia, sem motivo, sequer irar-se contra seu irmão,
nem insultá-lo, e muito menos chamá-lo de tolo. Também não bastava não
cometer o adultério. Ninguém poderia sequer olhar para uma mulher com
intenções impuras, pois já teria cometido o adultério. Diante de tal rigor da lei,
Cristo aconselhou que se arrancassem os próprios olhos, a fim de evitar até os
maus pensamentos e a conseqüente condenação (Mateus 5:29-30). Os
fariseus orgulhavam-se de ser reconhecidos como irrepreensíveis perante a lei,
mas Cristo disse que quem não os superasse em justiça (dentre os que
tentassem se justificar pela obediência à lei, e não pela fé na justificação em
Jesus) jamais entraria no reino dos céus, pois, para Cristo, que sondava a
intenção do coração, eles não passavam de “sepulcros caiados”, “cisternas
rotas”, “hipócritas” e ainda “raça de víboras”.

Numa leitura atenta, sem medo e livre de tradições religiosas, culturais e


denominacionais, perceberemos que, principalmente no início de seu
ministério, os ensinamentos de Jesus eram invariavelmente sob a perspectiva
da lei mosaica e eram dirigidos aos judeus, mais precisamente aos que se
consideravam justificados por sua religiosidade (obediência à lei). Na maior
parte dos evangelhos, Cristo ministrou sobre a lei, pois foi constituído ministro
da circuncisão, para confirmar as promessas feitas aos patriarcas (Romanos
15:8). Ele revelava a verdadeira profundidade das exigências da lei, e suas
explicações nessas ocasiões não significam mandamentos mais profundos e
exigentes, voltados agora para a igreja. Nos encontros com os fariseus, Cristo
mostrava a inutilidade da tentativa humana de justificação pelas boas obras, e
indicava, ainda, o nível de justiça que ele, como Messias e Salvador, deveria
cumprir.

Cristo exerceu seu ministério mostrando-se como cumpridor e como o próprio


cumprimento da lei. Muitas de suas palavras e instruções foram em contexto
exclusivamente judaico, para judeus, e considerando a visão judaica do
Messias (Não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel –
Mateus 15:24). Até mesmo as instruções iniciais aos apóstolos nada tinham a
ver com a igreja gentílica (aberta aos gentios), que ainda nem tinha nascido. O
que teriam a ver com a missão da igreja gentílica instruções aos apóstolos tais
como: “Não tomeis rumo aos gentios nem entreis em cidade de samaritanos,
mas, de preferência, procurai as ovelhas perdidas da casa de Israel” (Mateus
10:5-6)?

Verdadeiramente judaica, e oposta ao papel universal da igreja, era, por


exemplo, a instrução: “Não deis aos cães o que é santo nem lanceis ante os
porcos as vossas pérolas, para que não as pisem com os pés e, voltando-se,
vos dilacerem” (Mateus 7:6). Entretanto, ao longo do seu ministério, a
linguagem de Cristo foi-se afastando do judaísmo e, já no contexto da sua
rejeição pelos judeus, ele voltou-se para as ovelhas “que não eram daquele
aprisco” – os gentios. Sua última instrução, agora definitiva para os apóstolos e
para toda a igreja foi: “Ide por todo o mundo e anunciai o evangelho a toda
criatura” (Marcos 16:15). Ou seja, “joguem pérolas aos porcos”, “quer seja
oportuno, quer não” (II Timóteo 4:2), complementou o apóstolo Paulo.

O judaísmo é exclusivista; a igreja é aberta “a toda criatura”. Atirar pérolas aos


“porcos” (aproximando-se deles) é a essência da pregação do evangelho, e o
risco de sermos “dilacerados” de vez em quando também faz parte da missão.
Se não fosse assim, não existiriam, por exemplo, os verdadeiros heróis da fé,
que são os missionários que anunciam a Boa Nova em países absolutamente
hostis ao evangelho, arriscando suas vidas para que pelo menos alguns
“porcos” desprezíveis e dilaceradores vejam o brilho das pérolas que Deus lhes
oferece gratuitamente através das palavras e atitudes dos que entendem,
aceitam e vivem a Graça de Cristo.

Quem poderá dizer que o apóstolo Paulo zelava por não atirar pérolas aos
porcos? Onde ele diz: “trago no corpo as marcas de Jesus” (Gálatas 6:17), leia-
se “trago o corpo dilacerado por porcos que rejeitaram as pérolas que eu
insistentemente ofereci”. Paulo (nem os outros apóstolos e discípulos, a partir
do surgimento da igreja) nunca escondeu aquilo que é a verdadeira pérola de
Deus – o evangelho de Jesus Cristo –, antes o anunciou a todos quantos lhe foi
possível.

Em qualquer tipo de relacionamento humano há sempre circunstâncias onde as


palavras, de tão repetidas sem alcançar o objetivo, acabam perdendo o seu
valor. Ocorre, então, o momento em que o silêncio é a melhor argumentação.
Isso acontece entre marido e mulher, entre pais e filhos, irmãos, amigos,
vizinhos, etc. Há que se ter discernimento para saber quanto tempo deve durar
esse “recuo estratégico”, e quando é hora de voltar. Isso acontece também na
pregação do evangelho. Aconteceu com o apóstolo Paulo, com outros
apóstolos e acontece com qualquer um de nós. A igreja vive para atirar pérolas
aos “porcos” e atraí-los para Cristo. Nem que, na igreja, eles apenas tomem um
banho e fiquem “porquinhos lavados”. Voltar para o lamaçal é uma decisão
deles.

Entretanto, tomar para nós (igreja) expressões excludentes tipicamente


judaicas como “não atirar pérolas aos porcos” – entre outras – tem
transformado a igreja numa comunidade seletiva, que não quer aproximação
com os pecadores sem Cristo e que, ao menor sinal de antipatia e rejeição ao
evangelho (ou seria aos evangélicos?), considera-se livre de qualquer
responsabilidade sobre aquela vida – exceto a dos nossos parentes e amigos.
Esses nunca são vistos como “porcos”. Esquecemos facilmente que um dia
fomos “porcos” e, se hoje somos ovelhas de Cristo, é porque alguém não
desistiu de nós, até que víssemos claramente o brilho das pérolas que ele
insistentemente atirava sobre nós.

Jesus, na verdade, não falou muito sobre a Graça; não de forma sistematizada.
E avisou, inclusive, que o Espírito Santo ainda revelaria todas as coisas e nos
faria lembrar dos seus ensinamentos (João 14:26). Falar abertamente da Graça
coube posteriormente aos apóstolos (falar aos judeus) e a Paulo, “o apóstolo”
(principalmente aos gentios – Gálatas 2:9 -, que estão sob a lei da consciência,
e não sob o regime da lei judaica). Mas Cristo foi, ele mesmo, o tempo todo, a
Graça de Deus, em pessoa. E talvez seja essa a maior prova de que melhor do
que argumentar sobre a Graça é praticá-la. Para os religiosos, auto-suficientes
e de coração duro, ele falava de lei, e não abertamente sobre a Graça, a não
ser por parábolas. Entretanto, para os que se reconheciam pecadores e
necessitados da misericórdia divina, Cristo derramava abundante misericórdia
e perdão gratuito... Isso sempre causou e ainda hoje causa indignação em
corações farisaicos, que só entendem a justiça da lei. E hoje, como sempre, o
motivo de tal indignação contra a Graça de Cristo é o amor à justiça própria,
embora essa sede de juízo sobre o próximo ainda se esconda por trás de
versículos cuidadosamente pinçados fora de seu contexto.

Ministrando sobre a lei, Cristo aconselhou que se arrancassem os olhos para


afastar o desejo e a intenção de adulterar (Mateus 5:29). E, para quem busca
justificação por sua própria justiça (obediência à lei), isso é realmente o melhor
a fazer. Mas quando os escribas e os fariseus lhe trouxeram uma mulher
flagrada em adultério, ele a perdoou e disse-lhe: “Ninguém te condenou? Nem
eu te condeno. Vai e não peques mais” (João 8:10-11). Jesus Cristo é a Graça
de Deus, em pessoa.

Ainda no contexto da lei, ele disse também que melhor seria cortar a mão que
te leva a pecar do que ir para o inferno com o corpo inteiro (Mateus 5:30). Mas
seu último ato, antes de morrer, foi perdoar e salvar alguém cujas mãos haviam
cometido inúmeros delitos durante toda a vida: “hoje estarás comigo no
paraíso” (Lucas 23:43), e com as duas mãos...! Jesus Cristo é a Graça de
Deus, em pessoa...

Se olharmos bem para a igreja, veremos que Deus, obviamente, rejeita o


adultério, mas ama e perdoa adúlteros; Deus rejeita o roubo, mas ama e
perdoa ladrões; Deus rejeita a mentira, mas ama e perdoa mentirosos; Deus
rejeita o homossexualismo, mas ama e perdoa homossexuais; Deus rejeita a
idolatria, mas ama e perdoa idólatras; Deus rejeita o assassinato, mas ama e
perdoa assassinos; Deus rejeita a avareza, mas ama e perdoa avarentos; Deus
rejeita a ambição, mas ama e perdoa ambiciosos; Deus rejeita a arrogância
religiosa, mas ama e perdoa religiosos arrogantes; Deus rejeita o divórcio, mas
ama e perdoa divorciados; Deus rejeita a hipocrisia, mas ama e perdoa
hipócritas; a alma de Deus abomina o que semeia contenda entre irmãos
(Provérbios 6:16-19), mas ele também ama e perdoa os que semeiam tal
abominação... Se não perdoasse...

Infelizmente, o cristianismo, de um modo geral, tem transformado muitas


palavras de Jesus - quando ele falava de exigências espirituais da lei - em leis
para a igreja, criando uma hierarquia de pecados que só traz divisão e vaidade,
jogando “fardos pesados” (Mateus 23:4) nos ombros dos filhos da Graça, e
pondo-lhes sobre a cerviz um jugo que ninguém pode suportar (Atos 15:10).
Tais fardos não são, nem de longe, o fardo de Cristo, em quem encontramos
descanso para as nossas almas, pois o seu jugo é suave e o seu fardo é leve
(Mateus 11:28-30). A igreja finge que consegue carregar esses fardos pesados
e esconde as marcas de seu martírio absolutamente desnecessário, e ainda
tenta fazer parecer que o faz com alegria, “pra Jesus”. Cristo nunca pediu tal
escravidão e a sua palavra hoje, tal como foi nos tempos bíblicos, seria: “é
falsa misericórdia, é vaidade religiosa, é hipocrisia...”. E, para vergonha dos
cristãos, o mundo percebe isso claramente. Insistir em tal comportamento pode
levar a tragédias que jamais imaginaríamos.

Cristo cumpriu toda a Justiça da Lei, cujo rigor chega até à intenção do coração
e é absolutamente necessário para a justificação diante de Deus e, até que
passem o céu e a Terra, assim será (Mateus 5:18). A nossa porta (estreita) de
entrada no céu é Cristo, mas muitos, na igreja do Senhor da Graça, ainda
buscam – com zelo, mas sem entendimento – superar a justiça dos fariseus,
julgando ser esta a única maneira de “agradar” a Deus e entrar no reino dos
céus. Buscar a justificação mediante a obediência total aos mandamentos e ao
espírito da lei significa nada menos do que ser perfeito. Alguém, em sã
consciência, se habilita?

Mas, e o que é, afinal, a Justiça de Deus? Ora, a justiça de Deus se revela no


evangelho (Romanos 1:17). Diante da impossibilidade humana de cumprir a lei
em sua plenitude – alcançando a perfeita justiça e a justificação – o próprio
Deus, amando-nos sem levar em conta as nossas ofensas, se fez homem, com
o objetivo de cumprir totalmente os mais profundos requisitos de justiça da lei
(Mateus 5:17), de modo que pudesse gratuitamente declarar justo todo aquele
que crê no seu sacrifício. Tal ato de justiça cumpriu-se na pessoa de Jesus, o
Filho de Deus (Aquele que não conheceu pecado, ele o fez pecado por nós,
para que nele fôssemos feitos justiça de Deus – II Coríntios 5:21). Em Cristo,
que jamais conheceu pecado, todas as nossas transgressões foram julgadas,
nele fomos condenados, sentenciados e, na sua execução, cumprimos a pena
máxima, atendendo a absolutamente todos os rigores de condenação da lei. A
justiça de Deus se manifesta mediante a fé em Jesus Cristo, sobre todos os
que crêem (Romanos 3:21-22).

Essa é a Justiça de Deus, e ela só poderia se manifestar se a justiça da Lei


fosse plenamente cumprida. E, em Cristo, isso aconteceu de duas formas.
Jesus, como homem, cumpriu cabalmente os rigores da lei, não quebrando
jamais um só mandamento, nem com a simples intenção no coração, e
alcançou, assim, a justiça absoluta, fazendo-se perfeito como é perfeito o Pai
celeste. Dessa forma, ele pôde oferecer a sua vida perfeita como pagamento
pelos pecados de toda a humanidade (Tito 2:11; 1 João 2:2; 1 Timóteo 2:4). O
outro aspecto do cumprimento da justiça da lei em Cristo é que, na sua morte,
foram satisfeitos todos os rigores da justiça com relação à nossa condenação.
Nossa dívida foi paga até o último centavo. Nada ficou de fora, nada ficou
faltando.

A prova incontestável de que a justiça da lei foi satisfeita nos dois aspectos
(com relação à justiça perfeita do Messias e com relação à nossa condenação)
é a ressurreição de Jesus. Se algo tivesse ficado a desejar acerca do
cumprimento da lei na vida de Cristo ou da quitação da nossa dívida, paga por
ele, a sua ressurreição jamais teria acontecido. Mas ele ressuscitou! Selada
está a nossa redenção, pois digno foi achado o Cordeiro de Deus, e agora,
glorificado, ele é para sempre o Senhor único e absoluto de nossas vidas.

Parece algo óbvio de se dizer, mas precisamos entender profundamente que a


justiça da lei com relação aos nossos pecados já foi plenamente satisfeita na
cruz do Calvário. Insisto nisso porque não basta entendermos apenas com a
nossa mente, com o nosso entendimento intelectual, e declarar só da boca pra
fora. Precisamos acomodar essa verdade nas profundezas dos nossos
sentimentos, das nossas emoções, no nosso coração, na nossa alma e no
nosso espírito. Só assim não nos assustaremos nem nos escandalizaremos
com a justiça de Deus, e estaremos prontos, não só para vivê-la, mas também
para exercê-la no relacionamento com o próximo. Uma vez satisfeita a justiça
da lei em seu filho Jesus, Deus pode “legalmente” exercer a sua justiça, plena
em misericórdia e amor. Deus ama o pior dos pecadores e deseja que ele se
arrependa de seus pecados e receba justificação e salvação gratuita em Cristo
Jesus... A Justiça de Deus!

Alguém que não entende nem crê na plena e gratuita quitação de sua dívida
(perdão de todos os seus pecados) não conseguirá repassar a Graça que
recebeu na cruz do Calvário, pois terá sempre sensações como “ainda corro
algum risco”, “está faltando alguma coisa” e “de alguma forma, ainda preciso
pagar”. Quem não tem certeza do perdão de seus próprios pecados terá menos
certeza ainda do perdão dos pecados do próximo, e isso lhe dificultará o ato de
perdoar e de amar. Mais difícil ainda será entender que a bondade de Deus é
que leva ao arrependimento (Romanos 2:4). E como entenderá que santidade,
para Deus, é misericórdia, e não sacrifícios (Oséas 6:6)?

Deixemos sempre claro que a nossa postura de perdoadores deve-se ao fato


de ter Cristo já perdoado todas as nossas transgressões e pecados. Estamos
apenas dando de graça o que de graça já recebemos. A justiça da lei quanto
aos nossos pecados se cumpriu na cruz do Calvário e, quando perdoamos o
próximo, estamos testemunhando (principalmente para ele) que cremos que os
pecados dele também estavam na cruz de Cristo.

E por que é tão importante que compreendamos e amemos cada vez mais a
Justiça de Deus? Entre outras razões, porque ele não descerá novamente para
pregar o evangelho de cidade em cidade, anunciando pessoalmente a sua
graça aos perdidos. Tal missão foi-nos confiada, e somos nós que devemos
dizer aos pecadores sem Cristo que fomos alcançados pela Justiça de Deus,
mostrando-lhes, através de nossas palavras e atitudes, a misericórdia, a graça
e a salvação em Jesus Cristo. Nós somos a melhor oportunidade de contato
entre o pecador sem Cristo e a misericórdia divina, mas isso só acontecerá se
crermos que fomos plenamente justificados na cruz de Calvário e nos
conscientizarmos de que pesa sobre nós a obrigação de anunciar o seu
evangelho (I Coríntios 9:16), pois somos – os que cremos na Graça de Cristo
(não importa o letreiro na porta da igreja) - a carta de Cristo ao mundo (II
Coríntios 3:2-3), por isso busquemos, todos nós, amar e confiar na Justiça de
Deus, e não sobrecarreguemos alguns irmãos na missão de anunciar a plena
justificação e a salvação em Cristo Jesus.

Nós certamente não nos vemos capazes de ter sempre atitudes de misericórdia
e perdão, e essa capacidade realmente não está em nós. Deus é quem
capacita-nos a exercer misericórdia e a realizar toda boa obra, por isso
devemos sempre reconhecer e acreditar confiantemente nessa capacidade, e
não ceder ao desejo de justiça que provém da ira. O ato de perdoar significa
dizer: “Senhor, no que depender de mim, não lhe impute este pecado”. E isso
não significa necessariamente que o pecador ficará sem arcar com as
conseqüências do seu ato. Se o pecado dele contra mim é também um delito
contra as leis civis, ele poderá responder judicialmente. Mas, ainda assim, eu
posso impedir as conseqüências espirituais do seu pecado, exercendo a
mesma misericórdia que recebi de Deus, e dizendo: “Senhor, eu fui ofendido e
prejudicado, mas, no que depender de mim, não lhe impute este pecado”. E,
principalmente, deixe aquele que lhe prejudicou saber que você o perdoou e
por que o perdoou, para que o poder da misericórdia faça o seu trabalho...
Justiça de Deus.

Então, há algum problema no zelo com a justiça que há na lei? Não, não
necessariamente! A lei é um termômetro que indica a gravidade do estado
doentio do pecador, mas não tem o poder de curar a alma doente. Sua função
é conduzir o pecador a Cristo (Gálatas 3:24), a única real possibilidade de
redenção do homem. Por isso devemos estar conscientes de que, se fomos
justificados pela graça que há na justiça de Deus, e não pela nossa própria
justiça (obediência à lei), não há motivos para a soberba espiritual ou religiosa
(farisaísmo), nem para a postura de julgadores e sentenciadores, e muito
menos para sentimentos de superioridade com relação a qualquer outro
pecador. É esse aspecto da Graça de Deus que a torna um manjar delicioso
para os nossos olhos, porém de difícil digestão para muitos. Sem a
misericórdia que há na Graça de Cristo (Justiça de Deus), estaríamos todos,
“bons” e maus, no mesmo barco, a caminho da condenação eterna.

Como cidadãos, e também como cristãos, devemos ser zelosos com as leis,
procurando ser sempre justos e irrepreensíveis, pois até mesmo a conivência
com a transgressão nos fará cúmplices, sujeitando-nos à punição legal. Mas,
mesmo nos casos em que a lei precisa ser cumprida, bem como nas demais
situações que não envolvam leis civis, no que depender só de nós, devemos
optar confiantemente pela justiça de Deus, que nos livrou da justiça da lei.
Mesmo entre os irmãos, sempre haverá casos nos quais a confrontação será
necessária e inevitável, e medidas duras certamente deverão ser tomadas,
mas isso pode e deve ser feito em espírito de misericórdia e amor, com
temperança e equilíbrio, visando ao arrependimento do erro e à justiça de
Deus. O rumo a ser seguido é sempre o da misericórdia e regeneração:
“Senhor, assim como tu apagaste todos os meus pecados, apaga também essa
ofensa contra mim...”.

O nosso prazer deve estar na sentença da justiça de Deus, e não na sentença


da justiça da lei. O arrependimento e a regeneração do pior pecador – e não o
seu castigo e condenação eterna – devem ser a nossa alegria, assim como são
para Deus (Ezequiel 18:23). Alguém já disse que “aquele que não perdoa
destrói a ponte sobre a qual tem de passar”. Ou seja, aquele que não perdoa
corta os punhos da rede na qual ele mesmo está deitado. Devemos não
apenas dizer que amamos a justiça de Deus, mas mostrar, pelas nossas
atitudes, que na Graça e na misericórdia de Cristo está o nosso prazer.

Então, alguém perguntará: “Se os nossos pecados já foram pagos, quanto mais
pecarmos, maior não será a glória da justiça de Deus?” Tal raciocínio
(humanamente óbvio) tem posto a Graça de Cristo sob suspeita e assombrado
o próprio cristianismo desde os dias do apóstolo Paulo, e a resposta ainda é a
mesma: Não!

Onde a justiça da lei chegar cobrando, a justiça de Deus responderá avisando:


já foi pago! Quando enviou o seu próprio filho para morrer na cruz do Calvário,
o objetivo de Deus foi livrar-nos da condenação e também da escravidão ao
pecado, de forma que este não tivesse mais domínio sobre nós. Em Cristo,
morremos para o pecado e também ressuscitamos para uma nova vida
(Romanos 6:1-4). Contudo, aqui não alcançaremos a perfeição – o “pecado
zero”. Se isso fosse possível, Cristo não precisaria ter morrido. Ninguém
poderá dizer de nenhum de nós: “Ali vai alguém que não peca”. Mas, em
Cristo, Deus nos capacita para que possam dizer: “Ali vai alguém que não é
escravo do pecado”.

O amor à justiça de Deus e à sua Graça traz profunda gratidão pelo seu
sacrifício. Abusar deliberadamente da Graça de Cristo revela, no mínimo, a
falta dessa gratidão e de compromisso com a totalidade da causa do
evangelho. Quem age dessa maneira está tirando Cristo do centro de sua vida
e reassumindo o comando. Embora demonstrando confiança na Graça, há
ainda um forte cheiro de amor à justiça da lei (justiça própria), que sempre gera
a sensação de merecimento, pois onde se deveria ver gratidão, misericórdia e
domínio próprio, o que se vê é a alegria de finalmente poder satisfazer - agora
sem lei – a carnalidade do velho homem. A Graça seria apenas uma
justificativa legal para usufruir o que ele sempre julgou merecer, não
importando que isso signifique trabalhar contra o reino de Deus e ainda usar,
machucar, ofender, desprezar, humilhar e envergonhar pessoas que deveriam
receber o seu amor e a sua misericórdia. Abusar propositadamente da
liberdade que há na Graça de Deus é a pior forma de ausência de misericórdia,
pois é, antes de tudo, falta de misericórdia para com o próprio Cristo. O filho
que procede dessa maneira sujeita-se voluntariamente à disciplina de um pai
zeloso com a saúde espiritual de seus filhos.

Não devemos resistir à misericórdia de Deus, mas abrir-lhe o caminho através


de cada uma das nossas atitudes, pois ela é o único meio eficaz de evitarmos
que o pecado domine a nossa vida, vindo a destruí-la (Deus tem o poder de
reconstruí-la, em qualquer circunstância, mediante o nosso sincero
arrependimento). Uma mulher misericordiosa não fará oposição gratuita ao
marido, e procurará ser a sua eficaz auxiliadora. Um marido misericordioso não
humilhará a sua esposa e buscará amá-la como Cristo amou a igreja. Esposas
e maridos misericordiosos não esperarão um pelo outro para exercer a sua
própria misericórdia. Um pai misericordioso disciplinará seu filho e, ainda
assim, o filho se sentirá amado. Alguém com um coração misericordioso
saciará a fome e a sede do seu inimigo e, com isso, o atordoará, e poderá
ganhá-lo para Cristo. Um coração misericordioso e grato, libertado da justiça da
lei pela justiça de Deus, terá o seu prazer, não no pecado, mas em não pecar,
e buscará fazer o que é correto diante do seu Senhor, não por medo da justiça
da lei (à qual não devemos mais nada), mas por gratidão ao seu Salvador.

Se não temos consciência da situação da qual Cristo nos livrou e não somos
profundamente gratos a ele por seu sacrifício, se não temos para com o
próximo (inclusive para com os “próximos” de dentro de casa) a mesma
misericórdia que recebemos de Deus, e se a nossa motivação para fazer o que
é correto é a ineficaz justiça da lei, a nossa “santidade” não irá muito longe. A
fé em Jesus é precisamente a total confiança no pleno pagamento pelos
nossos pecados, e essa fé, se inabalável, traz tranqüilidade, paz, gratidão,
domínio próprio, misericórdia, amor e perdão. Se não permitirmos que a
verdade do evangelho chegue ao nosso coração, revestindo os nossos
sentimentos, emoções e desejos, ela não nos libertará da ansiedade, do medo
nem da escravidão do pecado.

A dúvida com relação à quitação da nossa dívida com Deus, por menor que
seja, sempre leva-nos de volta à justiça da lei e ao seu velho jugo (Gálatas
5:1), com seu rigor exterior e nenhum poder de transformação, nem
misericórdia nem amor, e o fim deste caminho é sempre a religiosidade
hipócrita, o escândalo e a vergonha. Lembremo-nos de que somos ministros,
não da letra, mas do Espírito (II Coríntios 3:6), por isso aquele que crê,
compreendendo a plenitude e a totalidade da obra que se consumou no
Calvário, está apto para viver a justiça de Deus, e verá o poder da Graça de
Cristo na sua vida e na vida das pessoas ao seu redor.

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