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É ainda a condição necessária - e justa - para que cada ato aconteça. Eu amo
quem me ama e odeio quem me odeia; amo meus amigos e odeio meus
inimigos; agradarei o meu cônjuge se ele me agradar; terei misericórdia de
quem me for misericordioso; e ainda, serei perdoado, se eu antes perdoar
(Mateus 6:12). Tais princípios estão gravados no coração de todo ser humano.
Eles são o que se pode chamar de senso natural e absoluto de justiça, e nele
não há lugar para a misericórdia imerecida. Seu único objetivo é dar uma
retribuição correspondente e justa para cada ato praticado. É esse senso de
justiça que nos causa revolta quando uma maldade fica sem a justa punição. E,
por estar gravado em nossos corações, é também ele que, na nossa
consciência, implacavelmente nos acusa das injustiças e pecados que
praticamos.
São ainda esses princípios naturais de justiça que norteiam os códigos de leis
civis em todas as sociedades organizadas. Fatores culturais, políticos e
religiosos podem atenuar as leis e as penas estabelecidas e possibilitar
inúmeros recursos ao réu, mas a cobrança dos cidadãos será sempre baseada
na justiça absoluta. Daí a classificação popular de leis “justas” e “injustas”,
penas “satisfatórias” e “insatisfatórias”. Por isso muitas vezes, mesmo quando
a lei civil é cabalmente cumprida, há ainda quem se queixe, com justiça, de que
não houve “justiça”.
Na Bíblia, a expressão “Justiça da Lei” traz todos esses conceitos, seja o que
chamamos de lei natural e absoluta (para cada ato uma conseqüência
correspondente, igual e justa), bem como o código de leis civis que regia os
judeus, assim como em qualquer sociedade que se pretenda organizada. Por
isso algumas pessoas apresentam como um grande trunfo contra a Bíblia o
fato de que os dez mandamentos não eram basicamente nenhuma novidade
na época em que foram anunciados pelo profeta, e que, por não serem
nenhuma novidade, comprovado estaria que não foram dados por Deus. Ora, é
óbvio que qualquer comunidade minimamente organizada (comunidades
indígenas, por exemplo), mesmo anterior a Moisés, teria leis semelhantes ao
código mosaico, pois os princípios de justiça estão gravados no coração do
homem.
Mas há ainda um último nível de transgressão que não está escrito em nenhum
código de leis nem em constituição alguma. Falo da pré-disposição, da
intenção, ou do desejo de transgredir uma lei ou mandamento. A nossa
consciência nos acusa quando desejamos ou intentamos fazer algo errado,
mesmo que não cheguemos a praticar o ato. Por não entender isso, o
cristianismo tem, desde o fim da era apostólica, se arrastado e procurado
arrastar os gentios para debaixo da lei mosaica. O apóstolo Paulo - que nunca
teve essa preocupação, pois entendia a lei da consciência - afirmou que os
gentios seriam julgados pela norma da lei, gravada em seus corações, sob
testemunho da consciência (Romanos 2:14-16), a não ser que eles mesmos se
colocassem debaixo da lei mosaica (Gálatas 5:1-4). O apóstolo do evangelho
da Graça sabia que os gentios vivem “fora do regime da lei” judaica (I Coríntios
9:20-21), mas têm consciência, e Paulo, ironizando, disse que tentava ganhá-
los pela “lei” de Cristo (A justiça de Deus). Portanto, a expressão “condenação
da lei” refere-se tanto à lei judaica quanto à “norma da lei”, gravada na
consciência (Romanos 3:19-21). Como instrumento de justificação, a lei
mosaica vai muito além do que possa parecer numa simples leitura, e os
judeus (bem como muitos gentios cristianizados), ignorando a verdadeira
profundidade da justiça da lei, optaram por ela como meio de justificação e não
se sujeitaram à justiça de Deus (Romanos 10:3).
A maior parte dos evangelhos narra encontros de Cristo com escribas e
fariseus, que sempre o testavam. Nessas ocasiões ele esclarecia o que
aguardava a todos os que tentassem se justificar pela lei, a qual dizia: “Não
matarás”, mas ninguém poderia, sem motivo, sequer irar-se contra seu irmão,
nem insultá-lo, e muito menos chamá-lo de tolo. Também não bastava não
cometer o adultério. Ninguém poderia sequer olhar para uma mulher com
intenções impuras, pois já teria cometido o adultério. Diante de tal rigor da lei,
Cristo aconselhou que se arrancassem os próprios olhos, a fim de evitar até os
maus pensamentos e a conseqüente condenação (Mateus 5:29-30). Os
fariseus orgulhavam-se de ser reconhecidos como irrepreensíveis perante a lei,
mas Cristo disse que quem não os superasse em justiça (dentre os que
tentassem se justificar pela obediência à lei, e não pela fé na justificação em
Jesus) jamais entraria no reino dos céus, pois, para Cristo, que sondava a
intenção do coração, eles não passavam de “sepulcros caiados”, “cisternas
rotas”, “hipócritas” e ainda “raça de víboras”.
Quem poderá dizer que o apóstolo Paulo zelava por não atirar pérolas aos
porcos? Onde ele diz: “trago no corpo as marcas de Jesus” (Gálatas 6:17), leia-
se “trago o corpo dilacerado por porcos que rejeitaram as pérolas que eu
insistentemente ofereci”. Paulo (nem os outros apóstolos e discípulos, a partir
do surgimento da igreja) nunca escondeu aquilo que é a verdadeira pérola de
Deus – o evangelho de Jesus Cristo –, antes o anunciou a todos quantos lhe foi
possível.
Jesus, na verdade, não falou muito sobre a Graça; não de forma sistematizada.
E avisou, inclusive, que o Espírito Santo ainda revelaria todas as coisas e nos
faria lembrar dos seus ensinamentos (João 14:26). Falar abertamente da Graça
coube posteriormente aos apóstolos (falar aos judeus) e a Paulo, “o apóstolo”
(principalmente aos gentios – Gálatas 2:9 -, que estão sob a lei da consciência,
e não sob o regime da lei judaica). Mas Cristo foi, ele mesmo, o tempo todo, a
Graça de Deus, em pessoa. E talvez seja essa a maior prova de que melhor do
que argumentar sobre a Graça é praticá-la. Para os religiosos, auto-suficientes
e de coração duro, ele falava de lei, e não abertamente sobre a Graça, a não
ser por parábolas. Entretanto, para os que se reconheciam pecadores e
necessitados da misericórdia divina, Cristo derramava abundante misericórdia
e perdão gratuito... Isso sempre causou e ainda hoje causa indignação em
corações farisaicos, que só entendem a justiça da lei. E hoje, como sempre, o
motivo de tal indignação contra a Graça de Cristo é o amor à justiça própria,
embora essa sede de juízo sobre o próximo ainda se esconda por trás de
versículos cuidadosamente pinçados fora de seu contexto.
Ainda no contexto da lei, ele disse também que melhor seria cortar a mão que
te leva a pecar do que ir para o inferno com o corpo inteiro (Mateus 5:30). Mas
seu último ato, antes de morrer, foi perdoar e salvar alguém cujas mãos haviam
cometido inúmeros delitos durante toda a vida: “hoje estarás comigo no
paraíso” (Lucas 23:43), e com as duas mãos...! Jesus Cristo é a Graça de
Deus, em pessoa...
Cristo cumpriu toda a Justiça da Lei, cujo rigor chega até à intenção do coração
e é absolutamente necessário para a justificação diante de Deus e, até que
passem o céu e a Terra, assim será (Mateus 5:18). A nossa porta (estreita) de
entrada no céu é Cristo, mas muitos, na igreja do Senhor da Graça, ainda
buscam – com zelo, mas sem entendimento – superar a justiça dos fariseus,
julgando ser esta a única maneira de “agradar” a Deus e entrar no reino dos
céus. Buscar a justificação mediante a obediência total aos mandamentos e ao
espírito da lei significa nada menos do que ser perfeito. Alguém, em sã
consciência, se habilita?
A prova incontestável de que a justiça da lei foi satisfeita nos dois aspectos
(com relação à justiça perfeita do Messias e com relação à nossa condenação)
é a ressurreição de Jesus. Se algo tivesse ficado a desejar acerca do
cumprimento da lei na vida de Cristo ou da quitação da nossa dívida, paga por
ele, a sua ressurreição jamais teria acontecido. Mas ele ressuscitou! Selada
está a nossa redenção, pois digno foi achado o Cordeiro de Deus, e agora,
glorificado, ele é para sempre o Senhor único e absoluto de nossas vidas.
Alguém que não entende nem crê na plena e gratuita quitação de sua dívida
(perdão de todos os seus pecados) não conseguirá repassar a Graça que
recebeu na cruz do Calvário, pois terá sempre sensações como “ainda corro
algum risco”, “está faltando alguma coisa” e “de alguma forma, ainda preciso
pagar”. Quem não tem certeza do perdão de seus próprios pecados terá menos
certeza ainda do perdão dos pecados do próximo, e isso lhe dificultará o ato de
perdoar e de amar. Mais difícil ainda será entender que a bondade de Deus é
que leva ao arrependimento (Romanos 2:4). E como entenderá que santidade,
para Deus, é misericórdia, e não sacrifícios (Oséas 6:6)?
E por que é tão importante que compreendamos e amemos cada vez mais a
Justiça de Deus? Entre outras razões, porque ele não descerá novamente para
pregar o evangelho de cidade em cidade, anunciando pessoalmente a sua
graça aos perdidos. Tal missão foi-nos confiada, e somos nós que devemos
dizer aos pecadores sem Cristo que fomos alcançados pela Justiça de Deus,
mostrando-lhes, através de nossas palavras e atitudes, a misericórdia, a graça
e a salvação em Jesus Cristo. Nós somos a melhor oportunidade de contato
entre o pecador sem Cristo e a misericórdia divina, mas isso só acontecerá se
crermos que fomos plenamente justificados na cruz de Calvário e nos
conscientizarmos de que pesa sobre nós a obrigação de anunciar o seu
evangelho (I Coríntios 9:16), pois somos – os que cremos na Graça de Cristo
(não importa o letreiro na porta da igreja) - a carta de Cristo ao mundo (II
Coríntios 3:2-3), por isso busquemos, todos nós, amar e confiar na Justiça de
Deus, e não sobrecarreguemos alguns irmãos na missão de anunciar a plena
justificação e a salvação em Cristo Jesus.
Nós certamente não nos vemos capazes de ter sempre atitudes de misericórdia
e perdão, e essa capacidade realmente não está em nós. Deus é quem
capacita-nos a exercer misericórdia e a realizar toda boa obra, por isso
devemos sempre reconhecer e acreditar confiantemente nessa capacidade, e
não ceder ao desejo de justiça que provém da ira. O ato de perdoar significa
dizer: “Senhor, no que depender de mim, não lhe impute este pecado”. E isso
não significa necessariamente que o pecador ficará sem arcar com as
conseqüências do seu ato. Se o pecado dele contra mim é também um delito
contra as leis civis, ele poderá responder judicialmente. Mas, ainda assim, eu
posso impedir as conseqüências espirituais do seu pecado, exercendo a
mesma misericórdia que recebi de Deus, e dizendo: “Senhor, eu fui ofendido e
prejudicado, mas, no que depender de mim, não lhe impute este pecado”. E,
principalmente, deixe aquele que lhe prejudicou saber que você o perdoou e
por que o perdoou, para que o poder da misericórdia faça o seu trabalho...
Justiça de Deus.
Então, há algum problema no zelo com a justiça que há na lei? Não, não
necessariamente! A lei é um termômetro que indica a gravidade do estado
doentio do pecador, mas não tem o poder de curar a alma doente. Sua função
é conduzir o pecador a Cristo (Gálatas 3:24), a única real possibilidade de
redenção do homem. Por isso devemos estar conscientes de que, se fomos
justificados pela graça que há na justiça de Deus, e não pela nossa própria
justiça (obediência à lei), não há motivos para a soberba espiritual ou religiosa
(farisaísmo), nem para a postura de julgadores e sentenciadores, e muito
menos para sentimentos de superioridade com relação a qualquer outro
pecador. É esse aspecto da Graça de Deus que a torna um manjar delicioso
para os nossos olhos, porém de difícil digestão para muitos. Sem a
misericórdia que há na Graça de Cristo (Justiça de Deus), estaríamos todos,
“bons” e maus, no mesmo barco, a caminho da condenação eterna.
Como cidadãos, e também como cristãos, devemos ser zelosos com as leis,
procurando ser sempre justos e irrepreensíveis, pois até mesmo a conivência
com a transgressão nos fará cúmplices, sujeitando-nos à punição legal. Mas,
mesmo nos casos em que a lei precisa ser cumprida, bem como nas demais
situações que não envolvam leis civis, no que depender só de nós, devemos
optar confiantemente pela justiça de Deus, que nos livrou da justiça da lei.
Mesmo entre os irmãos, sempre haverá casos nos quais a confrontação será
necessária e inevitável, e medidas duras certamente deverão ser tomadas,
mas isso pode e deve ser feito em espírito de misericórdia e amor, com
temperança e equilíbrio, visando ao arrependimento do erro e à justiça de
Deus. O rumo a ser seguido é sempre o da misericórdia e regeneração:
“Senhor, assim como tu apagaste todos os meus pecados, apaga também essa
ofensa contra mim...”.
Então, alguém perguntará: “Se os nossos pecados já foram pagos, quanto mais
pecarmos, maior não será a glória da justiça de Deus?” Tal raciocínio
(humanamente óbvio) tem posto a Graça de Cristo sob suspeita e assombrado
o próprio cristianismo desde os dias do apóstolo Paulo, e a resposta ainda é a
mesma: Não!
O amor à justiça de Deus e à sua Graça traz profunda gratidão pelo seu
sacrifício. Abusar deliberadamente da Graça de Cristo revela, no mínimo, a
falta dessa gratidão e de compromisso com a totalidade da causa do
evangelho. Quem age dessa maneira está tirando Cristo do centro de sua vida
e reassumindo o comando. Embora demonstrando confiança na Graça, há
ainda um forte cheiro de amor à justiça da lei (justiça própria), que sempre gera
a sensação de merecimento, pois onde se deveria ver gratidão, misericórdia e
domínio próprio, o que se vê é a alegria de finalmente poder satisfazer - agora
sem lei – a carnalidade do velho homem. A Graça seria apenas uma
justificativa legal para usufruir o que ele sempre julgou merecer, não
importando que isso signifique trabalhar contra o reino de Deus e ainda usar,
machucar, ofender, desprezar, humilhar e envergonhar pessoas que deveriam
receber o seu amor e a sua misericórdia. Abusar propositadamente da
liberdade que há na Graça de Deus é a pior forma de ausência de misericórdia,
pois é, antes de tudo, falta de misericórdia para com o próprio Cristo. O filho
que procede dessa maneira sujeita-se voluntariamente à disciplina de um pai
zeloso com a saúde espiritual de seus filhos.
Se não temos consciência da situação da qual Cristo nos livrou e não somos
profundamente gratos a ele por seu sacrifício, se não temos para com o
próximo (inclusive para com os “próximos” de dentro de casa) a mesma
misericórdia que recebemos de Deus, e se a nossa motivação para fazer o que
é correto é a ineficaz justiça da lei, a nossa “santidade” não irá muito longe. A
fé em Jesus é precisamente a total confiança no pleno pagamento pelos
nossos pecados, e essa fé, se inabalável, traz tranqüilidade, paz, gratidão,
domínio próprio, misericórdia, amor e perdão. Se não permitirmos que a
verdade do evangelho chegue ao nosso coração, revestindo os nossos
sentimentos, emoções e desejos, ela não nos libertará da ansiedade, do medo
nem da escravidão do pecado.
A dúvida com relação à quitação da nossa dívida com Deus, por menor que
seja, sempre leva-nos de volta à justiça da lei e ao seu velho jugo (Gálatas
5:1), com seu rigor exterior e nenhum poder de transformação, nem
misericórdia nem amor, e o fim deste caminho é sempre a religiosidade
hipócrita, o escândalo e a vergonha. Lembremo-nos de que somos ministros,
não da letra, mas do Espírito (II Coríntios 3:6), por isso aquele que crê,
compreendendo a plenitude e a totalidade da obra que se consumou no
Calvário, está apto para viver a justiça de Deus, e verá o poder da Graça de
Cristo na sua vida e na vida das pessoas ao seu redor.