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ESBOÇO DE UMA CRÍTICA À

COMPREENSÃO FETICHISTA DA
FORMAÇÃO DO ESTADO DO
Revista do Programa de
Pós-Graduação em Geografia e
ESPÍRITO SANTO COMO “FORMAÇÃO
do Departamento de Geografia ECONÔMICA”
da UFES
BOSQUEJO DE UNA CRÍTICA DE LA COMPRENSIÓN FETICHISTA DE
Janeiro-Junho, 2020
LA FORMACIÓN DEL ESTADO DE ESPÍRITO SANTO COMO “FOR-
ISSN 2175-3709 MACIÓN ECONÓMICA”

OUTLINE OF A CRITIQUE OF THE FETISHIST UNDERSTANDING OF THE


FORMATION OF THE STATE OF ESPÍRITO SANTO AS “ECONOMIC
FORMATION”

RESUMO
Nos últimos 40 anos, formou-se um amplo acervo de pesquisas
ligadas à temática da “formação econômica” do Espírito Santo,
as quais, amparadas na categoria da modernização, ajudaram a
consolidar uma interpretação do processo de desenvolvimento
capixaba que o positivou não só no entendimento acadêmico
sobre essa “formação econômica”, mas também no senso comum.
Pressupondo que essa positivação reafirma o caráter fetichista
dessa categoria e da temática em questão, nosso objetivo foi
identificar as abordagens que lhes dão suporte e propor uma nova
contribuição teórica para sua compreensão, baseada na crítica da
dissociação-valor. Essa identificação foi feita em dois estudos de
História Econômica elaborados por Gabriel Bittencourt, professor
e pesquisador que foi ligado ao Departamento de História da
Universidade Federal do Espírito Santo.
P A LA V R A S- C H A VE: modernização do Espirito Santo, fetichismo,
formação econômica do Espírito Santo.

RESUMEN
En los últimos 40 años, se ha formado una cantidad considerable
de investigaciones sobre el tema de la “formación económica”
de Espírito Santo que, a través de la categoría de modernización,
contribuyeron a consolidar una interpretación del proceso de
LUIZ ANTÔNIO desarrollo de Espírito Santo que lo hizo positivo no solo en la
EVANGELISTA DE
ANDRADE
comprensión académica de esta “formación económica”, sino también
Doutor em Geografia
en sentido común. Asumiendo que esta positivización reafirma el
(UFMG) e professor do carácter fetichista de esta categoría y el tema en cuestión, nuestro
Instituto Federal do Espírito objetivo fue identificar los enfoques que los respaldan y proponer
Santo – Campus Guarapari una nueva contribución teórica para su comprensión, basada en la
luizantoniogeografo@gmail.com teoría de la disociación-valor. Esta identificación se realizó en dos
estudios de Historia Económica preparados por Gabriel Bittencourt,
Artigo recebido em: profesor e investigador vinculado al Departamento de Historia de la
24/04/2020 Universidad Federal de Espírito Santo.
P A LA B R A S- C L A VE: modernización de Espírito Santo, fetichismo,
Artigo publicado em:
formación económica de Espírito Santo.
08/07/2020
8 Luiz Antônio Evangelista de Andrade ES BO Ç O D E UMA C R Í T I C A À C O MPR EEN S Ã O FET I C HI S T A D A FO R MA ÇÃO DO
ES T A D O D O ES PÍ R I T O S A N T O C O MO “ FO R MA Ç Ã O EC O N ÔM I CA”
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Luiz Antônio Evangelista de Andrade ES BO Ç O D E UMA C R Í T I C A À C O MPR EEN S Ã O FET I C HI S T A D A FO R MA ÇÃO DO
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ABSTRACT
In the last 40 years, a extensive collection of researches related to
the theme of “economic formation” of Espirito Santo have been
formed, which, through of category of modernization, contributed
to consolidate an interpretation about process of development
of Espirito Santo that treated it of positive way not only in the
academic understanding about “economic formation”, but also
on common sense. Assuming that this positivation reaffirms the
fetishist character this category and the thematic in question, our
goal was to identify the approaches that support them and propose
a new theoretical contribution to understanding it, based on critical
of dissociation-value. This identification was made in two studies
of Economic History elaborated by Gabriel Bittencourt, a teacher
and researcher that was part of the History Department of Federal
University of Espirito Santo.
KEYWORDS: modernization of Espirito Santo, fetishism, economic
formation of Espirito Santo.

1. INTRODUÇÃO 2005), tematizando a “aventura


Um dos mitos da moder- da modernidade”, fala-nos so-
nidade, afirma David Harvey bre a modernização enquanto
([2003] 2015), é que ela “... processo de expansão, aprofun-
constitui uma ruptura radical damento e reprodução inces-
com o passado” (p.11). Exal- santes do “projeto da moderni-
tada por seus propagandistas, dade”. Capitaneada por forças
a modernidade é comumente impessoais personificadas em
associada ao “novo” e ao “mo- determinados grupos e agen-
derno”, sendo estes apresenta- tes sociais, a modernização
dos como forças emergentes e torna o “novo” e o “moderno”
resultados evolutivos do “anti- sinônimos para as definições
go” e do “passado”. O “novo” e de “crescimento econômico”,
o “moderno”, ao se realizarem “progresso” e “desenvolvi-
na qualidade de ideia e concre- mento econômico”, ao mesmo
tude próprias de uma “necessi- tempo em que lhes apresenta
dade histórica”, representariam como panaceias para todos os
a energia que alimenta as ações males sociais. No limite, tais
humanas na tarefa de destituir o definições se apresentam como
“antigo” e o “passado” dos seus panaceia para as próprias con-
tempos e espaços pregressos de sequências “não desejáveis” e/
existência. Assim, prossegue o ou “não previstas” de suas rea-
autor, “...a modernidade sem- lizações anteriores.
pre diz respeito à ‘destruição Afora essas dimensões car-
criativa’, quer do tipo pacífico e regadas de amplitude e referi- Revista do Programa de
democrático, quer do tipo revo- das à análise crítica da moder- Pós-Graduação em Geografia e
do Departamento de Geografia
lucionário, traumático e autori- nização como categoria teórica da UFES
tário” (p.11). e também reprodução social
Já Marshall Berman ([1982] capitalista, quando observamos Janeiro-Junho, 2020
ISSN 2175-3709 9
de maneira mais detida a tra- necessárias para constituir um
dição interpretativa referida ao complexo econômico capaz de
Revista do Programa de tema da “formação econômica” assegurar o desenvolvimento
Pós-Graduação em Geografia e (e “política”) brasileira, a tarefa das formas de produção capi-
do Departamento de Geografia
da UFES de “modernizar” possui vários talista na realidade capixaba
ângulos de análise e tem segui- da década de 1960. Fernando
Janeiro-Junho, 2020 do diversas perspectivas, in- Cézar de Macedo Mota (2002)
ISSN 2175-3709 clusive críticas. Grosso modo, defende que essas dificulda-
uma delas preocupou-se em des se inscreviam no “baixo
1. Veja-se, por exemplo, debater as muitas dificuldades dinamismo da cafeicultura”,
a tradição cepalina no postas a um país da periferia impedindo a formação de um
Brasil, com nomes do do mundo como o Brasil com excedente que engendrasse a
quilate de um Celso o fito de se buscar uma nova diversificação da estrutura eco-
Furtado ([1976] 2005),
ou da tradição marxista,
rota para o “desenvolvimento”, nômica estadual e permitisse
como Caio Prado em vista das suas raízes histó- um “salto para a industrializa-
Júnior ([1945] 2011). Em rico-concretas1; outra dessas ção”. Essas dificuldades seriam
relação ao primeiro perspectivas colocou em rele- motivadas, segundo o autor,
autor, nas suas análises vo o horizonte do “desenvolvi- pela “precária integração eco-
sobre a “formação
econômica” brasileira,
mento” a ser perseguido tanto nômica”, a “prevalência da pe-
embora de modo algum pela classe política brasileira quena propriedade organizada
desconsiderasse seus tida como progressista, quanto em pequenas unidades produ-
avanços, retrocessos, pelos grupos econômicos com- tivas” (p.17), além da “falta de
motivações e impasses, prometidos com esse propósito. uma divisão social do trabalho”
ateve-se muito mais nos
meios utilizados para
Dentro de um viés teórico e (p.18) que fomentasse um mer-
perseguir tal horizonte epistemológico que bebeu das cado local articulado ao merca-
– a constatação das perspectivas acima aludidas, do nacional3.
“deficiências” na formou-se, ao longo dos últi- Contudo, as análises que
condução política da mos 40 anos, um considerável permitem o desenlace acima
máquina administrativa
e a capacidade de
acervo de pesquisas realizadas sumariado atribuem antes uma
formular e implementar especialmente por economis- relativa importância ao papel
políticas que tas e concernentes à temática da atividade cafeeira e aos seus
consiguissem responder da “formação econômica” do sujeitos sociais. Autores como
aos objetivos propostos, Espírito Santo2. As abordagens Haroldo Rocha e Ângela Mo-
por exemplo – do que no
questionamento sobre
dos autores que se ocuparam randi ([1991] 2012) afirmam
os fundamentos inscritos dessa temática contribuíram que, “...de meados do século
no termo e das situações para a consolidação de uma XIX até a década de 1950, os
e consequências interpretação positivadora do ciclos econômicos estaduais es-
concretas da sua processo de desenvolvimento tiveram umbilicalmente ligados
aplicação. No
tocante ao segundo
capixaba, a qual possui desdo- à atividade cafeeira” (p.59). A
autor, o “sentido da bramentos atuais não só no en- “marcha do café” teria permiti-
colonização” encontra tendimento acadêmico que se do a gradativa alteração de uma
ligação direta com tem dessa mesma temática, mas “realidade de profundo atra-
o entendimento também nas suas várias reper- so econômico” (Idem, p.29),
acerca dos diferentes
momentos de
cussões sobre o senso comum pois fez coincidir o processo
integração subordinada da vida cotidiana. de ocupação e povoamento do
e dependente do Brasil Uma das tônicas dessas pes- território capixaba com a der-
à reprodução global quisas diz respeito à afirmação rubada de matas, a criação de
capitalista. E, a partir de que a cafeicultura não teria vilas e a abertura de estradas.
dessa compreensão, os
conseguido gestar as condições Já José Antônio Buffon (1992)
Continua...
10 Luiz Antônio Evangelista de Andrade ES BO Ç O D E UMA C R Í T I C A À C O MPR EEN S Ã O FET I C HI S T A D A FO R MA ÇÃO DO
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salienta que “...o café represen- do Espírito Santo: do engenho meios de superação
tou, ainda que de forma distinta às grandes indústrias (1535- dessa condição
do ocorrido [no estado de] São 1980), publicado em 2006. subordinada e
Paulo, o elemento formador e Defendemos neste ensaio dependente deveriam
principal esteio de sustentação que o padrão destacado se re- ser construídos.
da economia [do Espírito San- fere precisamente às escolhas 2. Embora com
to]...” (p.73), na medida em essa teóricas e categoriais feitas pe- perspectivas distintas,
não se pode deixar de
cultura teria permitido à en- los autores da “formação eco-
mencionar, no âmbito
tão província “começar” o seu nômica” brasileira, e, associada da historiografia,
processo de desenvolvimento a ela, à “formação econômica” estudos produzidos
e finalmente se “integrar” ao do Espírito Santo. Nosso argu- por memorialistas
“contexto das trocas interna- mento foi o de que tais escolhas entre as décadas
de 1940 a 1960, os
cionais” (p.75). E isso, em uma infundem e também reforçam
quais, de acordo
“contraposição” ao período a naturalização do processo de com Rafael Cerqueira
colonial, em que as atividades desenvolvimento do Espírito (2016), ajudaram
econômicas “...haviam tido um Santo na condição de moderni- a sedimentar
desempenho econômico insig- zação. Trata-se de uma compre- interpretações
sobre o processo de
nificante” (Idem, p.74)4. ensão que não aborda a moder-
desenvolvimento
Tendo em conta as menções nização enquanto forma de ser econômico do
acima, o objetivo do presente de uma universalidade abstrata Espírito Santo que
ensaio foi o de apresentar os e tautológica que, na esteira do ainda hoje se
elementos mais gerais que per- seu processo histórico de con- encontram bastante
consolidadas.
mitissem apontar que escolhas cretização, paulatinamente foi
teóricas e categoriais pareciam atravessando o nível molecular 3. Aos aspectos
informar as abordagens relati- da vida de povos inteiros e de anteriormente
mencionados se
vas à modernização e sobre a suas racionalidades próprias. somariam, segundo
“formação econômica” do Es- Há, por isso, uma constituição o autor, as “fracas
pírito Santo. Diante da nossa fetichista dessa sociedade e da relações de
tarefa, e levando-se em consi- relação do capital que devem assalariamento”, bem
deração, por um lado, essa vas- ser postas à luz. como as “relações de
produção baseadas na
ta seara de abordagens e seus parceria e no trabalho
respectivos autores, e, por outro 2. C O M O S E familiar” e o “atraso
lado, que pode ser observado tecnológico”, levando
CONSTITUI A a que a produção local
um padrão nessas abordagens,
optamos por restringir nossa COMPREENSÃO de café possuísse um
caráter basicamente
discussão aos estudos realiza- FETICHISTA DA artesanal e, por isso, de
dos por Gabriel Bittencourt, “FORMAÇÃO “baixa produtividade”
professor e pesquisador ligado (p.18).
ECONÔMICA” DO
ao Departamento de História da Continua...
Universidade Federal do Espíri- ESPÍRITO SANTO NA
to Santo e uma referência mui- OBRA DE GABRIEL
to utilizada no estado. No nosso BITTENCOURT?
escrutínio, escolhemos dois tí- Bittencourt (1987, 2006), ao
tulos notórios do autor: A for- direcionar seus estudos para a
mação econômica do Espírito especificidade capixaba a par- Revista do Programa de
Pós-Graduação em Geografia e
Santo: o roteiro da industriali- tir da historiografia, formula do Departamento de Geografia
zação – do engenho às grandes uma interpretação da “forma- da UFES
indústrias, publicado em 1987, ção econômica” do Espírito Janeiro-Junho, 2020
e História geral e econômica Santo que se aproxima de um ISSN 2175-3709 11
círculo nada modesto de auto- rito Santo como no Rio de Ja-
res que se notabilizaram por neiro ou São Paulo” no século
Revista do Programa de realizarem estudos de grande seguinte, pois não haviam “...
Pós-Graduação em Geografia e fôlego direcionados à realidade condições infraestruturais para
do Departamento de Geografia
da UFES brasileira. Ao que parece, sob um desenvolvimento manufa-
esse viés interpretativo, o autor tureiro expressivo: capitaliza-
Janeiro-Junho, 2020 constrói, através de uma pers- ção, mão-de-obra especializada
ISSN 2175-3709 pectiva histórica de longa du- e densidade adequada de popu-
ração (do início do século XVI lação” (Idem, p.18).
ao século XX), uma narrativa A centralidade que tais cons-
que procura cotejar os diversos tatações assumem em ambos os
“percalços” com os “progressi- estudos de Bittencourt permite-
vos avanços” do Espírito Santo -lhe construir sua primeira refe-
no “roteiro de sua industrializa- rência ao “roteiro” de “moder-
ção” e, portanto, do seu “desen- nização econômica” consoante
volvimento socioeconômico” à formação do Espírito Santo,
(BITTENCOURT, 1987, 2006). em que ganham destaque seus
Bittencourt (1987) parte de distintos “ciclos econômicos”,
duas constatações ligadas entre noção essa cara ao autor. A par-
si por uma causalidade formal, tir dela, o Espírito Santo é re-
as quais terão centralidade na presentado enquanto estado que
sua argumentação ao longo do teria percorrido um longo cami-
estudo. A primeira delas seria nho evolutivo entre o isolamen-
que o rumo tomado pela “for- to geográfico entre os séculos
mação histórico-econômica do XVI e XVIII, e a emergência,
Espírito Santo levou-o a de- no início do século XIX, dos
sempenhar sempre um papel circuitos açucareiro e da cafei-
secundário no contexto nacio- cultura, e, deste século, para a
nal, na medida em que se li- indústria e o setor de serviços
gou tardiamente à economia mais desenvolvidos entre a se-
de exportação predominante gunda metade do século XX e
no modelo brasileiro” (p.18). A o tempo presente. No limite, a
segunda constatação é que, por noção de “ciclos econômicos”
consequência, o “setor secun- seria uma espécie de expressão-
dário da economia”, isto é, uma -síntese, a qual, ao ser mobili-
“produção artesanal de peso” zada teoricamente, serve-lhe
não teve margem adequada também de artifício semântico
para se desenvolver diante da para sua interpretação da “for-
“fragmentação da população e mação econômica” do estado.
o vazio demográfico que carac- Ao mesmo tempo em que os
terizavam o interior do Estado fatos e fenômenos ditos econô-
(sic)” (Idem, p.18). Diante de micos e políticos que compõem
tal situação, e a “despeito da o “roteiro” de “modernização
dinâmica do café”, iniciada no econômica” do Espírito Santo
4. Outros dois estudos transcurso do século XIX, aduz ganham uma detalhada des-
em particular seguem o autor que os “...efeitos do crição em ambos os estudos
a mesma linha dos
autores elencados: multissecular desequilíbrio re- de Bittencourt, servindo-lhe
Ferreira (1987) e Rocha gional inibiram a formação de para representar a “trajetória”
e Cosseti (1983). uma estrutura urbana no Espí- de “dinamização econômica”
12 Luiz Antônio Evangelista de Andrade ES BO Ç O D E UMA C R Í T I C A À C O MPR EEN S Ã O FET I C HI S T A D A FO R MA ÇÃO DO
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do estado, aquilo que forne- 2006), apega-se às ideias de 5. O rompimento com


ce a moldura para tais fatos e “isolamento” e “marasmo” na esse “atraso econômico
secular do Espírito
fenômenos, isto é, o processo antiga capitania nos primeiros
Santo”, derivado das
contraditório de desenvolvi- séculos de colonização portu- “barreiras impostas
mento categorial, menos do que guesa, com a Companhia de pelo sistema colonial”,
trazido à luz, encontra-se obs- Jesus tendo sido a única insti- passaria, nas palavras
curecido. Dito de outro modo, tuição a fincar seus pés naquele de Bittencourt (1987,
2006), pela aquisição
a progressiva e contraditória território colonial por meio do
da “liberdade
consolidação do valor, do tra- estabelecimento de fazendas e governamental”
balho abstrato, da mercadoria aldeamentos indígenas. Essa (quando da condição
e do dinheiro como categorias condição da Capitania, deter- de colônia) em relação
socioeconômicas fundamen- minada pela Coroa Portuguesa à metrópole e aos
“países de economia
tais da socialização capitalista a partir dos descobertos aurí-
dominante” (já durante
(KURZ, [2012] 2014; JAPPE, feros em Minas Gerais, fora o Império).
[2017] 2019), está naturalizada tributária do seu papel de “bar-
e implicitamente justificada por reira geográfica” com o fito de
Bittencourt (1987, 2006). impedir qualquer ligação entre
Em uma primeira observa- o litoral e a região das minas de
ção – que receberá melhor tra- ouro5. Mas foi a produção de
tamento nas páginas seguintes canaviais visando o beneficia-
–, tal procedimento decorreria mento do açúcar, e, sobretudo,
do modo como o autor mobiliza a cafeicultura que, segundo o
teoricamente a noção de “ciclo autor, propiciariam ao Espírito
econômico”, pois ela tende a Santo dar seus passos iniciais
não permitir que ele considere a “rumo” à modernização “ga-
re-produção de relações sociais rantidora” de desenvolvimento.
durante o transcurso da moder- Os “antecedentes históri-
nização e sob seus pressupostos cos” do café, situados, de acor-
imanentes. Igualmente, confor- do com Bittencourt (1987), no
me veremos, Bittencourt tende primeiro quarto do século XIX,
a perder de vista que a dinâmica são utilizados pelo autor para
e a estrutura produtiva que dão estabelecer os nexos comparati-
sustentação à re-produção de vos considerados relevantes na
relações sociais baseiam-se em “trajetória de desenvolvimento”
leis econômicas que, conquan- por ele narrada. Baseando-se
to se afirmam como univer- nos relatos do naturalista fran-
sais, constituíram-se dentro de cês Auguste de Saint-Hilarie,
um ambiente histórico e social Bittencourt (1987) descreve,
específico. Referimo-nos ao em relação ao período mencio-
ambiente das trocas mercantis- nado, uma província cuja popu-
-capitalistas assentadas em re- lação não ultrapassava a marca
lações de equivalência abstrata de 24 mil habitantes, na sua
e definidas juntamente com as quase totalidade concentradas
leis da produção e da distribui- nas áreas litorâneas localizadas
ção do trabalho social. a sul. Combinava-se a essa ocu- Revista do Programa de
Pós-Graduação em Geografia e
O ponto de partida da traje- pação – prossegue o autor – um do Departamento de Geografia
tória de modernização do Espí- enorme “vazio demográfico” da UFES
rito Santo, presente na descri- no interior da província, “...a
Janeiro-Junho, 2020
ção feita por Bittencourt (1987, que não ousavam ocupar os
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luso-brasileiros, por temor aos entre a abordagem de Bitten-
indígenas” (p.54). Não obstante court e os tratados clássicos de
Revista do Programa de nessas áreas litorâneas fossem economia política, nos quais a
Pós-Graduação em Geografia e observadas atividades como a forma mercadoria que “deve”
do Departamento de Geografia
da UFES produção da farinha de mandio- revestir os produtos do trabalho
ca em São Mateus, além do al- possui características “objeti-
Janeiro-Junho, 2020 godão, feijão, milho, legumino- vas” e “naturais”, cujo caráter
ISSN 2175-3709 sas e as atividades madeireira ontológico não está posto em
e têxtil6, ou, ainda, a atividade questão. A presença, seja de
comercial praticada em Vitória, uma “produção autosuficien-
não se ia além, segundo o au- te” nas pequenas propriedades,
tor, de uma “economia local de seja de atividades “primitivas”
subsistência” e uma consequen- e “rudimentares”, aliadas à pre-
te “pobreza local”. Esta última, cariedade das infraestruturas de
para Bittencourt (1987): transporte e comunicação mes-
...tornou autosuficiente mesmo as peque-
nas propriedades, que produziam quase mo nas áreas litorâneas (ocupa-
tudo que necessitavam à vida rústica de das primeiro), seria também a
seus ocupantes, inclusive tecidos de al-
godão, artesanato exercido pelas mulhe- ausência do trabalho abstrato e
res. A baixa demanda era agravada pela da forma mercadoria enquanto
dificuldade de comunicação, mantida em
precárias condições, sem regularidade, categorias socioeconômicas es-
através da navegação de cabotagem ou truturantes. Tratar-se-ia de mo-
por “estradas” litorâneas, nada mais que
simples trilhas indígenas (p.56). dalidades de “troca econômica”
O que se infere das palavras menos desenvolvidas e que,
de Bittencourt (1987, 2006) em portanto, deveriam ser suprimi-
ambos os seus estudos é que as das, porquanto seriam “antagô-
condições ali descritas seriam nicas” às modernas relações de
o retrato de um Espírito Santo produção capitalistas, as quais,
que não lograra, durante a maior segundo Bittencourt (1987),
6. Bittencourt faz menção não encontravam as devidas
a outras atividades do parte do século XIX, fazer fren-
te às necessidades postas pelo condições para se realizarem no
período em questão,
como a produção de desenvolvimento das modernas chão da província.
seda, o beneficiamento condições de produção7 (Marx A abstração econômica que
do couro, a fabricação [1867] 1998, L.I, V.I). A “evi- permeia o desenvolvimento das
de cal, a presença da condições gerais de moderniza-
carpintaria naval e a dência” desse “insucesso” se-
ria o tempo lento da realidade ção das sociedades, junto à qual
produção de açúcar nos
engenhos na região Sul interna à província do Espírito se generalizam as trocas mer-
do estado. Para o autor, Santo, com seus “violentos in- cantis-capitalistas, na mesma
todas as atividades dígenas”, suas precárias e até medida em que determina o tipo
aludidas eram de vínculo que se forma entre
basicamente “primitivas” inexistentes infraestruturas de
transporte e comunicação, so- os diferentes produtores indivi-
e “rudimentares”.
madas à presença de famílias duais de mercadorias (RUBIN,
7. Essas dificuldades, de
posseiras vivendo da produção 1980), considera-o como parte
acordo com Bittencourt
(1987), também serão direta dos seus meios de vida da “natureza humana”. De fato,
verificadas nas primeiras ou da geração de um diminuto nas relações de troca mercan-
décadas do século excedente comercializado à es- tis-capitalistas, esse vínculo de-
XX, embora outros corre da divisão social do traba-
elementos motivadores
cala tão-somente local. O que
fica para nós bastante insinuado lho (com as especializações que
sejam acrescidos,
conforme explicitaremos é o que chamaríamos de uma se formam em seu seio) e do
à frente. espécie de intertextualidade caráter social do trabalho assu-
14 Luiz Antônio Evangelista de Andrade ES BO Ç O D E UMA C R Í T I C A À C O MPR EEN S Ã O FET I C HI S T A D A FO R MA ÇÃO DO
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mido nas sociedades no interior com as modernas relações de 8. Tal como indica
das quais essas trocas ganham produção e troca de mercado- Marx (1998, L.I, V.I),
todos esses atos estão
legitimidade. Paralelamente, rias e com a disseminação do
parametrizados por
esse mesmo vínculo deriva do trabalho abstrato. Impunha-se, uma representação
fato de que cada produtor tem de tal modo, a presença dos abstrata de tempo que
cada vez menos controle sobre “desbravadores”, com o fito de determina os valores dos
a satisfação de suas necessida- modificar a dinâmica da cafei- produtos do trabalho,
e estes, na sua forma
des, visto que elas se tornam cultura espírito-santense da pri-
corpórea, apresentam-
paulatinamente mais diversas meira década do século XIX, a se como atividade
e dependentes da produção dos qual se ancorava na prevalência humana objetivada.
demais produtores. Entretanto, da “pequena escala”, em uma 9. No caso da região de
longe de ser parte da “natureza região “...escassamente povoa- Itapemirim, ao sul do
humana”, esse vínculo foi se da e em atraso com relação às estado: “...na proporção
constituindo e se consolidando províncias vizinhas” (p.75), e que as melhores terras
em diferentes espacialidades e que necessitava de uma “im- do norte fluminense
iam-se (sic) tornando
comportando diferentes tempo- portância local mais decisiva”. domínios particulares
ralidades, com seus modos dis- Das políticas imigrantistas do dos grandes senhores,
tintos de se realizar, ao mesmo Governo Imperial direcionadas foi-se ocupando o Sul
tempo em que possuem dife- aos estrangeiros, derivou a for- capixaba, na crista
rentes níveis de articulação en- mação de núcleos coloniais no da franja cafeeira.
A estes verdadeiros
tre si. A rigor, é na análise dos Espírito Santo através do parce- desbravadores do solo
fundamentos lógicos da produ- lamento de terras devolutas ou espíritosantense é que
ção de mercadorias que se pode via compra de fazendas e seu juntou-se em meado (sic)
compreender que o controle parcelamento em áreas meno- do século XIX o imigrante
limitado dos produtores priva- res vendidas a prazo ou à vis- europeu, fruto de um
vasto programa de
dos sobre suas satisfações gesta ta para as famílias imigrantes9. incremento e substituição
neles necessidades de produ- Sob tais condições, o café, já da mão-de-obra
tos que assumem o posto de em meados do século XIX, “...a tradicional que se tornara
comandantes dos seus atos de partir de sua propagação do Rio proibitiva” (BITTENCOURT,
troca nas relações com os de- de Janeiro para o norte...”, pôde 1987, p.68).
mais produtores, e vice-versa então “...encontr[ar] no solo
(MARX, 1998, L.I, V.I)8. capixaba a disponibilidade de
Em confronto com nossas toda uma superfície por desbra-
observações acima, Bittencourt var, intocada pela inexpressi-
(1987) constrói uma descrição vidade da sua agricultura colo-
que vai ao encontro da supos- nial” (BITTENCOURT, 1987,
ta “natureza humana” do tipo p.76). E mais:
Impedido de explorar seu próprio terri-
de vínculo que deve se formar tório, durante a fase colonial, o Espírito
entre os produtores individu- Santo, paradoxalmente, criara condições
ideiais para que (...) houvesse a expan-
ais. Para o autor, tanto as po- são da cafeicultura pelas terras virgens e
pulações indígenas, com seu desabitadas da província. Dessa forma, à
proporção que se foi dilatando a fronteira
modo de vida próprio, quanto agrícola fluminense, em direção norte, a
os posseiros, na obtenção dos marcha do café estendendo-se como uma
“mancha de óleo”, vai atingir e ocupará
seus meios de vida e no modo as terras virgens do sul e do centro ca-
como desenvolveram a pro- pixabas (BITTENCOURT, 1987, p.76). Revista do Programa de
Pós-Graduação em Geografia e
dução do café, fariam parte de Conquanto não tenha atri- do Departamento de Geografia
uma “realidade econômica” buído um estatuto conceitual da UFES
presente na província do Es- aos termos “desbravadores” e
Janeiro-Junho, 2020
pírito Santo contraproducente “fronteira agrícola” nos estudos
ISSN 2175-3709 15
sobre os quais nos debruçamos análise que este autor faz da
no presente ensaio, Bittencourt “formação econômica do Es-
Revista do Programa de (1987) utiliza-os de uma ma- pírito Santo” em sua “trajetória
Pós-Graduação em Geografia e neira que merece uma digres- de desenvolvimento” e em seus
do Departamento de Geografia
da UFES são da nossa parte. Em relação “esforços industrializantes”.
ao primeiro termo, o autor dele Destaca Martins (2019) que a
Janeiro-Junho, 2020 se vale não só para se referir categoria fronteira não se resu-
ISSN 2175-3709 àqueles agricultores cujas con- me à dimensão geográfica, e,
dições para se tornarem pro- por isso, abarca, dentre outras
prietários ou se manterem nas concepções, a de uma “frontei-
áreas agrícolas consolidadas ra de civilização” (demarcada
revelaram-se impossíveis, mas pela barbárie que nela se ocul-
também numa referência às fa- ta), de “fronteira espacial, de
mílias estrangeiras que para o culturas e de visões de mundo”,
Brasil vieram através da políti- da “história e da historicida-
ca imigrantista do Império. No de do homem”, e, sobretudo, a
que tange ao segundo termo, “fronteira do humano” (p.11).
o autor o utiliza com o intuito Nesse sentido, a fronteira
de fazer menção à expansão não deve ser entendida como
10. A forte prevalência da cafeicultura sobre áreas do espacialidade de uma tempo-
dada à dimensão Espírito Santo formadas por ralidade única, determinada
espacial nas reflexões “terras virgens desabitadas” pelo tempo que se processa
acerca da expansão e tidas como “vazios demo- pela frente de expansão, na
das “frentes pioneiras”
sobre territórios gráficos”. “Desbravadores” e qual se verificam relações de
originalmente ocupados “fronteira agrícola” são termos mercado, não obstante não se-
por povos indígenas cujos sinônimos, a nosso ver, jam elas que, primordialmente,
e o “modelamento poderiam ser tratados, respec- estruturam a vida econômica
da paisagem” daí tivamente, como “pioneiro” e nessas áreas por meio da gene-
decorrente é um dos
aspectos presentes na “frente pioneira”. Desse modo, ralização de categorias socioe-
crítica de Martins (1975) vale a pena destacar que estes conômicas fundamentais como
às pesquisas conduzidas últimos termos fazem parte de a mercadoria – engendrando
por geógrafos como estudos tradicionais no âmbito relações de produção e da cir-
Pierre Monbeig e Leo da Geografia brasileira sobre a culação (MARTINS, 1975) –, a
Waibel desde os anos
1940. Para Martins, temática “fronteira”, conforme forma monetária do dinheiro e
a caracterização assinalado por José de Souza o trabalho abstrato. Igualmen-
geográfica da “zona Martins (1975, [2009] 2019)10. te, a fronteira, com suas tem-
pioneira” “...supõe uma A caracterização da cate- poralidades, não se resume ao
concepção dualista: goria “fronteira” por Martins tempo da “frente pioneira”, em
zona pioneira/zona
antiga. Esta última, (2019) é interessante para uma que pese a concretude que tais
entendida como primeira aproximação crítica categorias socioeconômicas
o extremo oposto em relação aos artifícios lógi- adquirem no sentido de erigir
daquela, apresenta- co-formais utilizados por Bit- uma sociabilidade que envolve
se como tendo o tencourt (1987) na sua descri- a vida urbana através das racio-
terreno empobrecido,
transformado em ção da expansão da cafeicultura nalidades política e econômica
pastagens e marcada, sobre as “terras virgens desabi- e da contratualização generali-
devido à emigração para tadas” ao sul do estado e os ele- zada (MARTINS, 1975, 2019).
a zona pioneira, pela mentos humanos que levaram Esse pressuposto é correto
perda dos tipos humanos tal ação a cabo: os “desbrava- também para o “pioneiro”: no
mais empreendedores”
(MARTINS, 1975, p. 44). dores”. E isso, no contexto de âmbito dos tradicionais estudos
16 Luiz Antônio Evangelista de Andrade ES BO Ç O D E UMA C R Í T I C A À C O MPR EEN S Ã O FET I C HI S T A D A FO R MA ÇÃO DO
ES T A D O D O ES PÍ R I T O S A N T O C O MO “ FO R MA Ç Ã O EC O N ÔM I CA”
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Luiz Antônio Evangelista de Andrade ES BO Ç O D E UMA C R Í T I C A À C O MPR EEN S Ã O FET I C HI S T A D A FO R MA ÇÃO DO
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de Geografia sobre a fronteira, contratos “...para produção de 11. Nas três décadas
esse elemento humano encar- tecidos, material sílico-calcá- subsequentes,
os “esforços
naria as “novas relações” nas reo, aproveitamento de fibras
industrializantes”,
áreas ocupadas pelas “frentes têxteis, produção de cimento, com o intento de
pioneiras”, dando a estas o ca- açúcar, óleos vegetais, papel, “incrementar” e
ráter de lócus do “novo” e do madeira industrializada e uma “diversificar” as culturas
“moderno” que suplantaria o montadora de máquinas agrí- agrícolas no Espírito
Santo, ainda esbarra,
tempo do “antigo” e do “atrasa- colas” (BITTENCOURT, 1987,
segundo Bittencourt
do”. Entretanto, sublinha Mar- p.127), depara-se com as bar- (1987), em problemas
tins (1975) que “...as relações reiras herdadas do “velho” “ci- semelhantes ao das
sociais que definem a socieda- clo”. Não obstante os créditos décadas anteriores. Por
de na zona pioneira não consti- subsidiados como mecanismos um lado, eles estavam
ligados à estrutura de
tuem resultado do aparecimento de incentivo à capitalização das
financiamento estatal
da zona pioneira, mas são as re- iniciativas fabris, as expectati- dos empreendimentos
lações sociais necessárias à sua vas criadas se frustravam, de – com o orçamento
implantação” (p.44). “Novo” e acordo com Bittencourt (1987), estadual comprimido
“moderno” o são “...apenas na devido à “falta de mão-de-obra devido à garantia de
créditos subsidiados e as
ocupação do espaço geográ- especializada” e as dificuldades
oscilações nos preços
fico e não na estrutura social” “...de importação de bens de internacionais do café
(Idem, p.45). Portanto, “frente capital, [a] desvalorização mo- e seus consequentes
de expansão”, “frente pioneira” netária, deficiência dos meios efeitos sobre as finanças
e o próprio “pioneiro”, embora de transporte, custo de fretes, públicas. Por outro lado,
havia a “...ausência
contenham e encarnem tempo- problemas à exportação, difi-
de um mercado local
ralidades distintas, são termos culdades de mercado e a Guer- satisfatório, a dificuldade
cuja compreensão, a partir da ra Mundial de 1914-1918...” de penetração no
categoria “fronteira”, deve tra- (p.137)11. mercado regional,
tá-los como particularidades No “passo seguinte” de sua tanto pelas deficiências
infraestruturais como
dentro de uma totalidade dinâ- análise sobre a trajetória etapis-
pela proximidade
mica e dialética. ta e modernizante do Espírito dos grandes centros
Paradoxalmente, se o avan- Santo, Bittencourt (1987, 2006) nacionais que já se
ço dos cafezais pelas “terras afirma que os “progressos” de- caracterizavam pela
virgens” e “vazios demográfi- correntes do “ciclo do café” produção industrial,
vão limitar, porém, as
cos” do sul da província através no estado são definitivamen-
expectativas industriais
de frentes pioneiras parece ser te embotados pelos diversos do Espírito Santo, que se
para Bittencourt (1987, 2006) limites presentes na segunda manterá estacionado
a condição e o resultado de um metade do século XX à “diver- ou mesmo regredirá, em
processo “humanizador” que sificação” e ao “dinamismo” alguns casos, no setor
de transformação de
suplanta o “atraso” pela via do econômicos e a carência de
produtos” (Idem, p.157).
“progresso”, nas primeiras dé- reinvestimentos de parte dos
cadas do século XX esse pro- lucros auferidos em atividades
cesso se revela um limitador econômicas mais intensivas em
aos “esforços industrializantes” capital. As dificuldades impos-
do Espírito Santo. O “novo” tas por tais limites poderiam ser
“ciclo econômico” que reivin- lidas, inicialmente, observan-
dicava passagem por meio da do-se o patamar alcançado pela Revista do Programa de
Pós-Graduação em Geografia e
ação política “racionalmente integração da estrutura de pro- do Departamento de Geografia
orientada” no governo de Jerô- dução e de circulação estadual da UFES
nimo Monteiro (1908-1912), a ao mercado nacional, subordi-
Janeiro-Junho, 2020
partir da qual foram celebrados nado aos estados de São Paulo
ISSN 2175-3709 17
e do Rio de Janeiro. Haveria zão de ser a partir da existência
ainda outros fatores que impli- e mesmo da reprodução da pe-
Revista do Programa de cariam na “baixa diversificação quena propriedade; esta é uma
Pós-Graduação em Geografia e econômica” presente no estado, mediação formal daquela12.
do Departamento de Geografia
da UFES como a prevalência da peque- Embora ressalte que o Es-
na propriedade organizada em pírito Santo do início dos anos
Janeiro-Junho, 2020 unidades produtivas familiares 1960 não dispunha de “elemen-
ISSN 2175-3709 e no trabalho de parceria, além tos estatísticos” que permitis-
da baixa produtividade dos ca- sem “aferir os coeficientes de
fezais – motivada pelo atraso sua produtividade”, Bittencourt
tecnológico da produção – e da (1987, 2006) afirma que eles “...
12. E é justamente isso que precariedade de uma estrutu- eram bastante defasados, face a
Martins (2019) afirma:
ra produtiva e de um mercado estrutura econômica da região,
a “irracionalidade” da
pequena propriedade de trabalho diversificado que onde predominavam métodos
surge onde o processo fomentassem a integração do e técnicas empíricas de explo-
de reprodução do mercado estadual ao merca- ração e preservação da terra”
capital “...encontra do nacional (BITTENCOURT (p.205). A partir dessa constata-
obstáculos ou não
1987, 2006). ção, o autor faz inferências que
encontra as condições
sociais e econômicas Termos como “precária” e remetem a comparações entre
adequadas a que “ampla” integração econômica, tais coeficientes de produtivi-
assuma, num dos “pequena” e “grande” proprie- dade para a realidade capixaba
momentos do seu dade, pequena e grande unida- e a dos demais estados da re-
encadeamento, a
de produtiva são apresentadas gião Sudeste13. O desempenho
forma propriamente
capitalista” (p.74). como estruturas formalmente da agricultura capixaba é com-
separadas entre si e inscritas na parado com a que era, à época,
13. Na próxima seção
deste ensaio,
trajetória unilinear da qual o au- praticada na região Nordeste,
explicitaremos que tor faz uso na sua interpretação permitindo a Bittencourt (1987)
essas inferências se da “formação econômica do defender que as “...característi-
valem do conceito Espírito Santo”. No que tange cas econômicas e sociais do Es-
de produtividade à pequena e à grande proprie- pírito Santo, como no nordeste
como se este fosse
autoexplicativo.
dade, ambas deixam de ser en- brasileiro, representam muito
Ora, no interior tendidas como concretudes sur- bem o outro lado de um cres-
da racionalidade gidas no seio das contradições cimento econômico historica-
econômica as engendradas pelo capital na sua mente desigual e desequilibra-
determinações da reprodução. No entanto, a pe- do” (p.205).
produtividade sozinhas
não explicam os
quena propriedade não é uma Essa constatação feita pelo
porquês dos seus irracionalidade historicamente autor, apesar de ser real no
contínuos aumentos, herdada, presente em meio a primeiro momento, sobretudo
determinações essas às uma dinâmica econômico-mer- quando nos deparamos com a
quais estão sujeitos os cantil que só consegue admitir a perspectiva do marxismo tra-
agentes econômicos
na produção de
grande propriedade. Ao contrá- dicional (apoiada na teoria do
mercadorias. A nosso rio, o desenvolvimento das for- “desenvolvimento desigual e
ver, tratado sob tal mas tipicamente capitalistas de combinado”) ou com os deter-
prisma, o conceito de propriedade comporta, em um minismos quantitativos pre-
produtividade deixa determinado momento do pro- sentes em uma certa literatura
de ser um meio para
conhecer mais de perto
cesso de reprodução do capital, apegada ao economicismo, não
o processo do capital, formas pretéritas e desenvolvi- ultrapassa a aparência fenomê-
processo do qual tal das da propriedade. Destarte, a nica e causal dos processos ge-
conceito deriva. grande propriedade só possui ra- radores desses desequilíbrios.
18 Luiz Antônio Evangelista de Andrade ES BO Ç O D E UMA C R Í T I C A À C O MPR EEN S Ã O FET I C HI S T A D A FO R MA ÇÃO DO
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De todo modo, tal constatação, cal” (p.210). Essa estrutura do 14. Essa política de
por conter as características às Estado, ao mesmo tempo em Estado foi responsável,
por um lado, pela
quais fizemos alusão, viria a ser que o faria figurar como “...for-
liberação de vastas
funcional na elaboração do ar- necedor de capital social bási- áreas anteriormente
gumento de que o Espírito San- co...”, transferindo “...recursos plantadas para outras
to, em fins da década de 1960, públicos para o setor privado atividades, como foi
era um “Nordeste sem Sudene”. objetivando subsidiar a indus- o caso da pecuária
leiteira e de corte; por
Ademais, no entender do autor trialização via incentivos fiscais
outro lado, um enorme
em apreço, tratou-se de um ar- e legislação correlata” (p.210), número de agricultores
gumento utilizado pela “elite formularia e implementaria, viram se tornar inviável
capixaba” para sensibilizar o via Instituto Brasileiro do Café a sua continuidade
Governo Federal, então “per- (IBC), através do seu Grupo nas áreas alvo
daquela política.
meável à ideia de integração Executivo de Racionalização da
Aos proprietários
econômica nacional” e à busca Cafeicultura (GERCA), a cha- que cultivavam o
pela “correção de distorções re- mada “Política de Erradicação café, foram dadas
gionais e criação de novos po- de Cafezais Antieconômicos”14. indenizações.
los industriais” (Idem, p.205). Para “resgatar” o Espírito 15. Respectivamente,
Nessa mesma linha de racio- Santo da “conjuntura de crise” a Banco de
cínio, Bittencourt (1987) cons- partir do governo de Christiano Desenvolvimento do
tata que o “...crescimento da Dias Lopes Filho (1967-1971), Espírito Santo e Banco
do Estado do Espírito
moderna economia industrial fora necessária, nas palavras Santo.
e urbana, concentrada em São de Bittencourt (1987, p.210), a
Paulo e no Rio de Janeiro...”, “concretização e reestruturação
somado aos “...abalos da eco- da economia capixaba”, cujo
nomia tradicional de exporta- propósito era o de se criar ór-
ção...”, impôs ao “...espaço na- gãos de atuação estatal, como o
cional uma estrutura polariza- Conselho de Desenvolvimento
da...” dentro da qual o Espírito Econômico e Sistema de Cré-
Santo teria então assumido uma dito (atuais Bandes, Banestes,
“condição periférica” (Idem, Banestes Financeira)15. Visa-
p.206). Para o autor esse seria va-se também, de acordo com
um dos núcleos explicativos da o autor, a industrialização dire-
“crise econômica simultânea” cionada à utilização de maté-
que levaria à tendência de “... rias-primas locais e a ênfase em
diversificação da produção e produtos com “certa tradição”,
de reorganização do espaço ca- como frigoríficos, fabricação de
pixaba” (Idem, p.206). Nessa laticínios, extração de minerais
relação mecanicista, em que, não metálicos e os produtos de
na esteira da “conjuntura de cri- madeira (Idem, p.210). Eram
se do café” do início dos anos ainda necessários, acrescenta
1960, verificar-se-ia a “expan- Bittencourt (1987), recursos
são econômica do conjunto na- destinados à “formação de in-
cional” em função do avanço da fraestruturas” de saneamento,
industrialização, a estrutura do de transporte e de comunicação,
Estado, tanto no plano federal com o objetivo de viabilizar o Revista do Programa de
Pós-Graduação em Geografia e
quanto no estadual, “ressurgi- posterior surgimento de “indús- do Departamento de Geografia
ria”, afirma Bittencourt (1987), trias não tradicionais”, além dos da UFES
“...como condição decisiva do mecanismos de financiamento
Janeiro-Junho, 2020
processo de industrialização lo- mediante fundos constituídos
ISSN 2175-3709 19
para esse fim – por exemplo, o Bittencourt (1987, 2006). Tal
Fundo de Recuperação Econô- “necessidade”, não obstante
Revista do Programa de mica do Estado do Espírito San- percebida pela classe política
Pós-Graduação em Geografia e to (FUNRES) e o Fundo de De- que tomou para si essa “tare-
do Departamento de Geografia
da UFES senvolvimento das Atividades fa”, desdobrou-se da crise do
Portuárias (FUNDAP). centro do capitalismo, em que
Janeiro-Junho, 2020 As transformações obser- a produção de valor entrou
ISSN 2175-3709 vadas na estrutura produtiva em contradição com o forte
do Espírito Santo, como disse incremento da produção ma-
o próprio Bittencourt (1987), terial nas espacialidades cen-
acompanharam um movimento trais. Assim, os investimen-
maior, verificado principalmen- tos na periferia se realizaram
te a partir da década de 1950, muito mais no sentido de re-
em que foi se acelerando o des- duzir o tempo de rotação dos
locamento do epicentro da acu- capitais mundiais, de modo
mulação capitalista brasileira a dar “...a necessária transfi-
para a indústria. Contudo – e guração do capital acumula-
diferentemente da abordagem do em todas as suas formas,
do autor capixaba – esse deslo- mas que, na forma monetária,
camento não deve ser compre- tornaria possível um percurso
endido como uma etapa evo- de circulação mais ágil diante
lutivo-linear da modernização daquilo que significava, como
brasileira: estava-se diante de crise, o estoque de capitais no
um processo que envolveu, por interior da economia norte-a-
exemplo, fortes pressões pela mericana” (ALFREDO, 2013,
atualização dos padrões de tro- p.101).
cas mercantis-capitalistas inter- E no concernente ao século
nacionais. Por isso, o processo XXI? Aqui, Bittencourt (2006)
em questão foi uma derivação antevê um presente e um futu-
de mudanças nos padrões de ro promissores para o Espírito
produtividade determinados Santo, desta feita em um “novo
internacionalmente, aos quais ciclo” de desenvolvimento:
nossa economia agrária se en- O capixaba pode estar ex-
contrava integrada. perimentando um novo ciclo
Conforme observa Ansel- da riqueza produtiva, emer-
mo Alfredo (2013), os capitais gente dos campos de petró-
estrangeiros que aportaram leo. É necessário, no entanto,
no Brasil e em outros países criar um clima contagioso de
periféricos nas décadas sub- investimento empresarial no
sequentes à Segunda Guerra Estado. Além do aço, celulose,
Mundial e fizeram avançar minério e petróleo, o incentivo
os projetos industrializantes a novos setores posiciona-se
nessas espacialidades, não entre os grandes desafios ao
eram parte da “necessidade Executivo e Assembleia Le-
de modernização” encabe- gislativa a quem competem as
çada por uma “inteligência políticas estaduais de incenti-
política” nacional compro- vo ao desenvolvimento econô-
metida com a ideia de “pro- mico (p.489).
gresso”, como quis fazer crer Àquilo que considera como
20 Luiz Antônio Evangelista de Andrade ES BO Ç O D E UMA C R Í T I C A À C O MPR EEN S Ã O FET I C HI S T A D A FO R MA ÇÃO DO
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“impeditivos” ao desenvolvi- 3. EM BUSCA


mento e aos “indesejados re- DE UM OUTRO
sultados destes decorrentes”,
DIRECIONAMENTO
Bittencourt (2006) evoca o
“planejamento” como uma res- TEÓRICO-
posta técnica para lidar com CATEGORIAL:
tais resultados, além dos “freios CRÍTICA À
morais” à degeneração da po-
COMPREENSÃO
lítica e à “desorganização es-
pacial”, de modo a produzir FETICHISTA DA
um “processo político ético e “FORMAÇÃO
competente”. No entender do ECONÔMICA” DO
autor, tais “remédios”, juntos,
ESPÍRITO SANTO
poderiam contribuir decisiva-
Conforme salientamos no
mente para que o estado supere
início deste ensaio, embora te-
seus desafios tanto na “cons-
nhamos nos centrado na abor-
trução de uma posição digna”
dagem de Bittencourt sobre a
para si quanto no concernente
“formação econômica” do Es-
à sua “organização espacial”.
pírito Santo, seu arcabouço teó-
Impõe-se, segundo Bittencourt
rico e epistemológico está lon-
(2006), uma guinada política”
ge de ser uma exceção quando
para “atacar” o flagrante “...
se observa as produções biblio-
descompasso entre a posição
gráficas versadas com a temáti-
econômica do Espírito santo
ca em questão. Uma expressão
e os resultados políticos e so-
conceitual como “ciclo econô-
ciais...” (p.500). De toda ma-
mico”, utilizada pelo autor para
neira, sentencia o autor, o pas-
descrever as “fases” do “roteiro
sado histórico, marcado pela
da industrialização” capixaba,
“marginalização” e o “atraso”,
indica um referencial já conso-
estaria finalmente dando lugar
lidado e que extrapola os estu-
a uma nova trajetória, marcada
dos em âmbito local e alcança
pela caminhada rumo ao lugar
a realidade brasileira. Esse refe-
que estado mereceria: o de pro-
rencial ajuda a reforçar semân-
tagonista no “novo” processo
tica e categorialmente a noção
de desenvolvimento econômico
de modernização, a ponto desta
brasileiro.
– quase sempre acompanhada
Na intenção de indicar as
das noções de “progresso” e
raízes dessa modalidade de
“desenvolvimento” – ter se tor-
compreensão e de interpreta-
nado parte importante tanto da
ção da realidade – conforme
linguagem corriqueira na pro-
mobilizada por Bittencourt –,
dução do conhecimento cientí-
quais pressupostos teóricos e
fico e técnico nas universidades
categoriais poderiam ser mais
e centros de pesquisa brasilei-
promissores visando-se uma
ros, quanto do senso comum
análise que propicie à crítica Revista do Programa de
cotidiano e das compreensões Pós-Graduação em Geografia e
a radicalidade de que ela ne-
que o informam. do Departamento de Geografia
cessita? Na próxima seção, en- da UFES
No seu plano genérico, a
saiaremos os termos mais ge-
noção de modernização nos Janeiro-Junho, 2020
rais desses pressupostos.
ISSN 2175-3709 21
estudos no âmbito das ciências capital, denominado “A cha-
humanas e sociais, seja aqueles mada acumulação primitiva”19.
Revista do Programa de considerados tradicionais ou de Diversos autores apresentam a
Pós-Graduação em Geografia e anos mais recentes, foi sendo “acumulação primitiva” como
do Departamento de Geografia
da UFES moldada em acordo com um uma das forças motrizes da mo-
amplo, progressivo e profundo dernização em bases tipicamen-
Janeiro-Junho, 2020 processo de racionalização da te capitalistas, posto que o vio-
ISSN 2175-3709 vida individual e social16, cujas lento processo de separação das
condições de possibilidade eri- famílias camponesas dos meios
16. Caberia nos giram-se entre os séculos XVI de re-produção da sua vida –
lembrarmos daquilo e XVII e avançaram pelos sé- notadamente de suas terras –
que Harvey ([1989] culos seguintes. Tais condições produziu o trabalhador “livre”
2005) aduz sobre
a modernidade, indicam que as categorias so- passível de assalariamento.
entendendo-a como cioeconômicas fundamentais Já um autor como Robert
uma categoria da socialização capitalista não Kurz (2014) acrescenta outros
que denota nasceram prontas e tampouco dois pressupostos, considera-
essencialmente um são o produto de uma sequên- dos decisivos20 para compre-
projeto que expressa
na filosofia iluminista cia evolucionista do seu de- ender tal processo de moder-
os esforços em se senvolvimento na história. Ao nização. O primeiro deles teria
desenvolver a ciência mesmo tempo, essas condições sido o “papel da guerra” e as
neutra e objetiva, a não são o resultado de uma sim- “condições profundamente al-
moralidade universal, ples coincidência entre eventos teradas em que esta se desen-
a lei jurídica, a arte e
a política libertas das circunstanciais. Para que essa rola”, sem deixar de ter atenção
injunções teológicas. estrutura categorial do capita- para a relevância da “inovação
Observa Harvey lismo fosse ganhando presen- das armas de fogo” no desenca-
que a modernidade ça decisiva na estruturação das deamento de uma “revolução
se erige como relações sociais de produção militar” (p.102). O outro pres-
processo tanto de
amadurecimento naquelas sociedades em que suposto teria sido o revolucio-
quanto de ela viria a existir, ou seja, que namento do papel do dinheiro
positivação das suas categorias socioeconômi- nas sociedades, alçando-o a
categorias do cas resultassem cada vez mais uma nova lógica e tornando-o,
pensamento preponderantes na reprodução inclusive, aquele que garantiu
iluminista, mas
também – vale social, foi imprescindível não que a acumulação primitiva e
acrescentarmos – apenas a presença de determi- a própria revolução militar se
da época em que nados elementos histórico-em- transformassem em forças mo-
a modernização píricos17, mas aquilo que Jappe trizes do capitalismo (KURZ,
corresponderia ao (2019) chamou de “...atitude 2014). A “revolução militar”,
desenvolvimento
pleno de um espaço para a abstração e para a quan- enfatiza Kurz, teria viabiliza-
e de um tempo tificação...”18 (p.34) na consti- do o “protótipo” daquilo que,
abstratos nos quais a tuição de uma consciência. Ve- na acepção moderna, ganhou o
forma social de valor jamos um e outro aspectos mais nome de “economia”, haja vis-
foi assumindo posição de perto. ta que o financiamento do novo
central.
Um terreno clássico dos “complexo militar-industrial”
17. Embora os limites elementos histórico-empíricos envolvia vultosos encargos, os
do presente ensaio
não nos permitam
e das circunstâncias desenca- quais passariam a ser “expres-
detalhar a gênese deadoras da acumulação ca- sos em dinheiro” (p.105-106)
histórica específica pitalista é a realidade inglesa, e imporiam o desenvolvimento
das categorias narrada por Marx no conhecido de uma estrutura administrativa
Continua... capítulo XXIV do Livro I d’O e fiscal que faria colocar de pé
22 Luiz Antônio Evangelista de Andrade ES BO Ç O D E UMA C R Í T I C A À C O MPR EEN S Ã O FET I C HI S T A D A FO R MA ÇÃO DO
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na história o Estado territorial Jappe (2019) discorre sobre socioeconômicas


moderno. esse tema e analisa, com dife- fundamentais
da socialização
Para abordarmos a noção de rentes níveis de detalhe, vários
capitalista,
consciência acima aludida, tor- desses eventos e processos pa- acrescendo-lhe
na-se imprescindível tratarmos, ralelos. O “puro” sujeito do a compreensão
não obstante as linhas muito conhecimento, em sua dimen- consoante à sua
gerais em que a discutiremos são gnosiológica, tal como em gênese lógica, é
importante ressaltar
aqui, da forma sujeito – confor- Descartes e Kant, abre o terreno
que esta não possui
me abordada por autores como para a constituição da dimen- correspondência
Jappe (2019) e Kurz ([2003] são política e pública da forma direta com aquela.
2010). Para este último autor, sujeito, como em Rousseau e No caso da forma
em uma primeira observação, Hobbes. Ademais, uma “etapa social de valor,
não obstante ela
trata-se da forma geral da mo- fundamental da formação do
tenha sua aparição
derna relação com o mundo, sujeito” (p.60), isto é, o sujei- histórica posterior
“...a forma universal do pensar to mercantil, ocorre através do à mercadoria
e do agir consoante à socializa- homo oeconomicus, entre fins e às diversas
ção do valor” (p.154). Em uma do século XVII e o início do manifestações das
desigualdades
linha bem semelhante de abor- século XIX, como em Locke,
presentes na
dagem, Jappe afirma que a for- Mandeville, Hume e Malthus. sociedade,
ma sujeito é uma forma histori- De acordo com Jappe, esse mo- entranhou-se em
camente datada e culturalmente mento histórico e filosófico foi seu corpo social
construída, à qual as diferentes fundamental na passagem para determinando a
igualdade formal
particularidades individuais, a sociedade moderna, pois se
entre os produtores
com suas consciências e modos estava diante de uma nova con- de mercadorias
de ser e de viver próprios, fo- cepção antropológica, pari pas- e entre seus
ram sendo circunscritos. Embo- su ao avanço da autonomização diferentes trabalhos
ra estejamos fazendo referência da economia, avanço esse re- nas relações de
produção e de
a seres viventes e empíricos, forçado pela igual autonomia
troca (MARX, 1998,
sua condição de portadores (associada à sua crescente in- L.I, V.I; RUBIN, 1980).
humanos de consciência (ser fluência) da ciência econômi- Marx, no volume I do
indivíduo) em si e por si não ca. Em meio à influência dessa Livro I d’O capital,
esclarece a condição de sujei- nova concepção antropológica, inicia sua exposição
com a análise da
to, justamente porque estamos é a primeira vez na história “...
mercadoria, a
tratando de uma forma que é que o ganho material foi erigi- “forma elementar”
histórica e não ontológica. O do em fim em si mesmo”, em do modo de
processo social de formação do que “...a vocação do ser huma- produção capitalista,
sujeito (a forma sujeito) ocorre no não consiste em ser virtuo- pressupondo a
sua presença na
no transcurso da modernida- so, mas em acumular riquezas”
estrutura mais
de, junto a diversos eventos e (p.60). Mais ainda: “Quando Continua...
processos paralelos que inspi- as virtudes tradicionais consti-
raram diferentes formulações tuem um obstáculo para a cria-
teórico-filosóficas, os quais, ao ção da riqueza material, devem
fim e ao cabo, viriam a encon- ser abandonadas e substituídas
trar paralelismo semelhante na por outras” (p.60), em conso-
dinâmica de desenvolvimento nância com o fim em si da ri- Revista do Programa de
Pós-Graduação em Geografia e
e consolidação das instituições queza material. do Departamento de Geografia
políticas, econômicas e sociais Consoante a toda dinâmica da UFES
da modernidade (JAPPE, 2019; de desenvolvimento e de con-
Janeiro-Junho, 2020
KURZ, 2010). solidação das instituições polí-
ISSN 2175-3709 23
ticas, econômicas e sociais da minações (MARX, [1857-58]
modernidade, em sua abstração, 2011). E a síntese que se realiza
Revista do Programa de impessoalidade e objetividade, enquanto realidade brasileira,
Pós-Graduação em Geografia e mas também aos pressupostos embora formada por processos
do Departamento de Geografia
da UFES que lhes dão razão de ser, a for- socioeconômicos, sociopolíti-
ma sujeito se constitui, por um cos, socioespaciais e antropo-
Janeiro-Junho, 2020 lado, indiferente a quaisquer lógico-culturais particulares,
ISSN 2175-3709 conteúdos sensíveis e concre- contém também os fundamen-
tos (particularidades) que não tos a partir dos quais os proces-
sejam aqueles que a definem; sos de socialização e subjetiva-
desenvolvida daquele
por outro lado, a forma sujeito, ção próprios à modernidade se
modo de produção.
Essa estratégia de articulada contraditoriamente constituíram e vêm, histórica e
exposição e as à forma social do valor, é uma socialmente, afirmando-se nas
hesitações de Marx determinação que circunscreve suas transformações internas22.
em torno dela revelam ao seu sistema lógico toda essa E é precisamente pela formação
o que Kurz (2014)
diversidade de conteúdos sensí- social brasileira possuir, nas
sugere serem as
dificuldades daquele veis e concretos e as práticas so- suas entranhas, o modo de ser
filósofo no concernente ciais que lhes ativam no interior da modernidade e de seus uni-
à apreensão da de uma sociabilidade específica, versalismos abstrato-concretos
totalidade e da própria desdobrando-se sobre as subje- constituídos do outro lado do
lógica de exposição. A
tividades e os modos de agir dos Atlântico, que os estudos de
respeito desta última,
Kurz assim o diz: “O diferentes indivíduos – forman- Bittencourt podem passar por
que é, na realidade, do, portanto, uma consciência uma crítica cujas pretensões se-
a totalidade social (JAPPE, 2019). Podemos iden- jam a de se alcançar a totalida-
do capital, não pode tificar aqui o doloroso proces- de. Senão, vejamos.
figurar imediatamente
so de “tornar-se sujeito”, cuja Numa observação mais ali-
como tal na exposição
teórica. Antes de medida é a “capacidade” indi- geirada, pode-se-ia inferir que
mais, o objecto tem vidual de introjeção das restri- a abordagem trazida por Bitten-
de ser desenvolvido ções sociais e de “expulsão” de court (1987, 2006) seria forte-
no pensamento como tudo aquilo que possa conferir mente economicista, mormente
uma série sucessiva
resistência a esse processo, seja pelo fato de que sua narrativa
de determinações
que, na verdade, aquilo que advém do corpo, seja conduz o leitor a ver o estado
não existe assim, mas dos próprios sentimentos, dese- do Espírito Santo ora histori-
de modo imediato e jos, etc. (JAPPE, 2019)21. camente alijado do desenvolvi-
como um todo. (...) O Não é nosso objetivo fazer mento econômico, ora marcado
capital é, portanto, o
uma transposição simples da por características de formação,
verdadeiro pressuposto,
mas na exposição constituição da modernização ocupação humana, estruturação
figura somente como europeia para a realidade bra- da propriedade, infraestruturas
resultado, ao passo sileira, ou querer que o “papel físicas, etc., que, pelo menos
que, inversamente, da guerra” e da “revolução mi- até a década de 1960, embota-
a simples forma da
litar”, associados a uma “acu- vam sua “dinâmica econômi-
mercadoria ou do
dinheiro tem de mulação primitiva” – como su- ca”. Essa narrativa se desdobra
constituir o pressuposto posto processo já esgotado em em dois momentos: primeiro,
mental ou lógico, um tempo histórico distante –, ocupa-se em demonstrar o que
embora seja o sejam as chaves explicativas da teriam sido os tímidos avanços
verdadeiro resultado”
“nossa” modernização. Do que do início do século XX em re-
(p.37-38).
se trata é entender como o con- lação aos projetos industriais
18. A título de exemplo, creto é concreto porque se faz durante o governo de Jerônimo
convém fazermos
como síntese de múltiplas deter- Monteiro, os quais teriam se
Continua...
24 Luiz Antônio Evangelista de Andrade ES BO Ç O D E UMA C R Í T I C A À C O MPR EEN S Ã O FET I C HI S T A D A FO R MA ÇÃO DO
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tornado reféns de tais caracte- mesmo quando termos como referência à análise
rísticas (além das dificuldades produtividade e\ou eficácia que Harvey (2005) faz
das transformações
de importação de bens de ca- não são enunciados de maneira
das relações sociais
pital, desvalorização monetária deliberada e ficam apenas in- de poder à medida
e a Primeira Guerra Mundial), sinuados em seu texto. Porém, que se avança
das oscilações dos preços do no âmbito da reflexão que tra- na definição das
café nos mercados internacio- zemos à baila no presente en- práticas materiais,
as tranformações
nais e do receio das elites ca- saio, especialmente na reflexão
nas utilizações do
feicultoras de diversificar seus que trouxemos acima, o econo- dinheiro (e o domínio
empreendimentos. No segundo micismo de Bittencourt não é e generalização da
momento, Bittencourt (1987) capaz, sozinho, de explicar os sua forma monetária),
aborda as “transformações dos significados mais profundos de nas formas de
produção do espaço
quadros regionais do Espírito sua abordagem. Mais do que
e no emprego do
Santo”, as quais guardariam um “imperialismo” da esfera tempo. O avanço da
uma relativa conexão com a econômica em detrimento de modernidade através
“conjuntura agrícola da década outras esferas, o economicismo da ampliação da
de 1960” (p.208), marcada pela do autor se revela enquanto di- esfera monetária,
da circulação
expansão das pecuárias leiteira mensão específica da forma su-
mercantil e das novas
e de corte na esteira da substi- jeito (cuja característica central redes comerciais,
tuição do café em várias áreas é o valor mercantil, frise-se), ao por exemplo,
em função dos programas de mesmo tempo em que a retroa- colocavam para o
erradicação de cafezais impro- limenta discursivamente. mercador medieval
a necessidade
dutivos, desencadeando a crise Eis aí a origem do economi-
de construir uma
que precipitaria a implantação cismo de Bittencourt: essa op- medida de tempo
dos “Grandes Projetos de Im- ção de análise é, concomitante- mais adequada
pacto” a partir daquela década. mente, aquela que preenche de para a melhor
Em ambos os momentos, conteúdo abstrato a forma lógi- organização dos
negócios. No limite,
Bittencourt (1987) afirma que ca vazia que norteia sua narrati-
“...a progressiva
os “esforços industrializantes” va e aquela que fetichiza o pro- monetização das
foram impulsionados muito cesso – cheio de tensões e con- relações na vida
mais pela ação estatal do que tradições – de formação do Es- social transforma
pela existência “de estímulos pírito Santo e o transfigura em as qualidades do
tempo e do espaço”
naturais [da iniciativa privada] “formação econômica”. Ora,
(HARVEY, 2005, p.208).
que propiciem tais esforços” modernizar toda a trama social E, numa via contrária
(p.239)23. Tais estímulos seriam via industrialização se formou, mas relacionada
correspondentes à presença de seja no âmbito da consciência à anterior, “...
condições de investimento e ca- de um autor como Bittencourt, as modificações
das qualidades do
pital fixo, força de trabalho com ou na de diferentes grupos po-
espaço e do tempo
as especializações desejadas e líticos e econômicos à frente Continua...
mercado consumidor, os quais desse processo, como determi-
tornar-se-iam consequências e nação do moderno e objetivi-
também condições gerais para dade autoexplicativa expressa
a instalação das infraestruturas pelo propósito de “suplantar o
físicas e sociais, da dinamiza- atraso” capixaba. Afinal, tal de-
ção da propriedade e dos fato- terminação era (e é) percebida Revista do Programa de
Pós-Graduação em Geografia e
res de produção etc.. pelo autor em tela e pelos gru- do Departamento de Geografia
Convenhamos, o economi- pos mencionados na condição da UFES
cismo de Bittencourt domina de “necessidade” e resultado de
Janeiro-Junho, 2020
de fio a pavio a sua narrativa, uma sociabilidade que, se para
ISSN 2175-3709 25
eles está naturalizada, pesa teiro da industrialização” do
sobre e também coloniza, inte- Espírito Santo, Bittencourt pa-
Revista do Programa de grando às suas tramas reprodu- rece entendê-la como “preço do
Pós-Graduação em Geografia e tivas, o conjunto da sociedade. progresso”.
do Departamento de Geografia
da UFES Como não poderia deixar de
ser, toda a diversidade de mo- CONSIDERAÇÕES
Janeiro-Junho, 2020 dos de vida e de obtenção dos FINAIS
ISSN 2175-3709 meios de vida, de relação com Como se pôde perceber na
a terra e com os bens naturais, abordagem de Bittencourt, a
podem resultar da etc., são avaliados pelo autor, positivação da modernização
perseguição de inadvertida ou deliberadamen- capitalista opera com a supo-
objetivos monetários”
(Idem, p.209). te, mediante as ideias de efi- sição de que tal ação expres-
cácia, interesse, produtividade saria aquilo que de mais óbvio
19. Ocorridos ao longo
de pelo menos seis
e rentabilidade. E tais ideias, poderia ser considerado quan-
séculos em várias ao realçarem a representação do a análise se debruça sobre
regiões rurais daquele de um mundo que deve levar a sua caracterização e a sua
país – com processos a cabo os preceitos da “ boa compreensão. Diante da “na-
semelhantes em economia”, no limite reforçam turalidade” desse pressupos-
outros países do
Ocidente europeu
a abstração real do valor mer- to, a “formação econômica”
–, tais processos cantil. Não à toa, encontra-se do Espírito Santo deveria en-
possuem em comum ausente, na narrativa que deriva tão ser analisada, conforme o
o fato de terem se da análise de Bittencourt, dife- procedimento de Bittencourt,
realizado às custas da rentes contextos histórico-espa- como processo de moderniza-
expropriação violenta
de suas terras famílias
ciais pondo à mostra que outras ção, isto é, um “roteiro de in-
inteiras que produziam racionalidades, anteriores ao dustrialização” feito de diver-
diretamente seus princípio da riqueza material sos “percalços”, mas também
meios de vida com como fim em si mesmo – sob marcado por “progressivos
diferentes graus de a lógica do trabalho abstrato, avanços”. Um e outro, segun-
autonomia.
da mercadoria e do dinheiro –, do a abordagem do autor, não
20. Vale sublinhar que tanto podem ser o fulcro dos compõem uma relação identi-
Kurz (2014) foca a
sentidos e significados do pro- tária cuja síntese se encontra
constituição desses
processos sociais cesso de produção e dos modos no movimento contraditório
para entender a de satisfação das necessidades da totalidade, que aqui seria
emergência histórico- sociais, quanto podem ser de expressa pela própria dinâmi-
concreta da forma natureza diversa as mediações ca social integrada à relação
monetária do dinheiro.
sociais que organizam essa sa- do capital; ao contrário, am-
21. Cumpre destacar que tisfação24. bos são enunciados por Bit-
o processo histórico de Com isso, as figuras do pos- tencourt como a revelação de
constituição do sujeito
não corresponde a
seiro e, sobretudo, do indígena, situações e fenômenos fecha-
dizer que os indivíduos ou as “terras virgens desabita- dos em si mesmos e despro-
modernos se tornaram das”, são representadas por Bit- vidos de quaisquer conexões.
meros “reféns” das tencourt como “não sujeitos” Os “percalços” são identi-
“estruturas” – as ou paisagens “não humaniza- ficados na sua variedade, con-
instituições políticas,
econômicas e sociais
das”, responsáveis, portanto, fundindo-se com a “trajetória”
–, como quis fazer pelo “atraso secular” do Espí- – em seus respectivos “ciclos”
crer o marxismo rito Santo25. Desse modo, ainda – do Espírito Santo: de início,
estruturalista (embora que não chegue a omitir que a o “isolamento” e o “marasmo”,
libertar-se delas violência aberta tenha sido (e entre os séculos XVI e fins do
não seja um simples
Continua... ainda é) uma das bases do “ro- século XVIII, que teriam im-
26 Luiz Antônio Evangelista de Andrade ES BO Ç O D E UMA C R Í T I C A À C O MPR EEN S Ã O FET I C HI S T A D A FO R MA ÇÃO DO
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pedido o desenvolvimento de – e conforme procuramos en- ato de vontade).


condições infraestruturais no fatizar ao longo deste ensaio Tais “estruturas”,
ao contrário, são
estado; a excessiva ênfase na –, a interpretação de Bitten-
a encarnação de
cafeicultura, verificada entre o court não se explica primor- uma sociedade
século XIX e a metade do sé- dialmente por um “economi- cuja reprodução
culo XX e tendo gerado uma cismo” próprio à análise do se revela pelo já
“baixa diversificação econômi- autor, ou, diríamos aqui, qual- salientado processo
de “expulsão”– que é
ca”, o que levou à produção de quer volição subjetiva ou,
cotidiano, diga-se de
dificuldades iniciais à comple- ainda, de uma “maquinação passagem – , tanto
xificação econômica das déca- ideológica” deste no seu de- vinda do mundo
das mais recentes. Já os “avan- sejo de afirmar um projeto de exterior quanto da
ços” seriam a expressão de uma poder de determinados grupos interioridade de
cada indivíduo, de
identificação inicial dos “per- econômicos e políticos.
tudo aquilo que
calços”, seguida de algumas ini- Se Bittencourt crê que uma possa expressar o
ciativas pontuais operadas por “inteligência política”, “racio- “não-sujeito”. Nessa
uma certa “inteligência políti- nal” e “objetiva”, na medida referência, afirma
ca” em momentos intermitentes em que se colocasse acima de Kurz (2010): “...a
natureza e os demais
(as primeiras décadas do século quaisquer “paixões políticas”,
sujeitos (e, de uma
XX, sobretudo), mas que vi- poderia então “atacar” fron- maneira específica,
riam a ganhar enorme profusão talmente práticas políticas e a mulher como
e profundidade na qualidade de econômicas contraproducentes natureza virtual)
ações políticas “concertadas” e com a “necessidade histórica” são rebaixados à
condição de objetos,
comprometidas com uma “mu- da modernização, o que há aí,
mas não a partir da
dança de perspectiva” no modo de fato, é uma consciência fe- subjetividade da
como o Estado atua no domínio tichista. Tanto é que “suplan- vontade inerente à
econômico. E esta “mudança” tar o atraso” do Espírito Santo consciência aparente
seria (e deve ser) então marca- torna-se uma espécie de “mis- do eu, senão que
a partir da falta
da pelo planejamento orques- são”, concedida pelo “espírito
de consciência de
trado pela racionalidade políti- modernizador” a determinados sua própria forma”
co-estatal. grupos políticos e econômicos, (p.277).
No nosso entendimento, os quais introjetariam um “ca- 22. A modernização
tais “percalços” e “avanços”, ráter visionário”. brasileira foi (e tem
ainda que descritos e inter- Portanto, a partir da rea- sido) a “negatividade
pretados pelo autor como firmação da consciência feti- afirmativa” de
momentos, circunstâncias e chista que reina neste mundo, uma dinâmica de
acumulação que
particularidades da “forma- as realizações desses grupos lhe era antagônica:
ção econômica” do Espírito passam a fazer parte da me- aquela cuja dinâmica
Santo, são na verdade desdo- mória histórica capixaba, a econômica se
bramentos contraditórios do qual, como não poderia dei- Continua...
processo do capital – sendo xar de ser, passa (também) a
intrínsecos e ele e às suas ten- ser narrada como “formação
dências históricas. Entretanto econômica” (e “política”).

Revista do Programa de
Pós-Graduação em Geografia e
do Departamento de Geografia
da UFES

Janeiro-Junho, 2020
ISSN 2175-3709 27
processava no plano nicho” identificadas
global. Igualmente despropositadamente
ela se erigiu a partir com as relações
Revista do Programa de
Pós-Graduação em Geografia e de uma dinâmica de econômicas modernas,
do Departamento de Geografia acumulação cuja ainda que em grau
da UFES dependência da sumamente restrito.
realização do valor Tampouco estamos
Janeiro-Junho, 2020 no exterior se mostrou operando com
ISSN 2175-3709 central, como o uma identificação
demonstra historicamente direta dessas outras
o complexo racionalidades com
agroexportador, relações pessoais,
notadamente do de obrigação, de
café; por outro lado, reciprocidade e de
“nossa” modernização redistribuição que, por
fundamentou-se em uma exemplo, eram parte
relação entre campo e da organização das
cidade bastante distinta atividades comunitárias
daquela das formações presentes entre os
sociais da Europa diferentes grupos
Ocidental (ALFREDO, sociais pré-modernos
2013). constatados pelos
autores com os quais
23. Bittencourt (1987) dá o
Kurz (2014) dialoga. O
exemplo dos “Grandes
importante a reter é que
Projetos” industriais do
havia uma diversidade
governo de Jerônimo
de relações de troca
Monteiro, no início
e, no âmbito de muitos
do século XX, cuja
desses grupos, elas
ação governamental,
não existiam “...por
“praticamente isolada”,
si como uma esfera
fora marcada por
inequívoca de circulação
um “capitalismo de
de mercadorias,
estado” (p.239) que
encontrando-se, pelo
se ressentiu de uma
contrário, ‘incrustadas’
devida contribuição
no sistema religioso de
do setor privado. No
relações de obrigação
entanto, frente ao
pessoais” (p.91).
malogro daquela ação
Ademais: “Nestas
governamental, a gestão
relações, a produção
de Jerônimo Monteiro
material não tem por
precisou tomar medidas
base, em caso algum,
contraproducentes,
uma universalidade
tendo que recanalizar
objectiva de ‘trabalho
“...os investimentos
abstrato’. Isto não se
governamentais e
aplica apenas à mera
privados para o setor
troca de excedentes
cafeeiro...” (p.239), setor
produzidos para além do
esse que continuaria,
estritamente necessário
até o início dos anos
à sobrevivência, ou
1960, “monopolizando
seja, cujo destino, à
a economia do estado”
partida, não tenha sido
e assim criando
a troca. Pelo contrário,
dificuldades à sua
a produção habitual
diversificação.
destinada à troca e a
24. Considerando-se a circulação de dinheiro
abordagem de Kurz estão estreitamente
(2014), não estamos interligadas com outras
falando de “formas de formas de reprodução
28 Luiz Antônio Evangelista de Andrade ES BO Ç O D E UMA C R Í T I C A À C O MPR EEN S Ã O FET I C HI S T A D A FO R MA ÇÃO DO
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e apenas figuram como racionalidade triunfante


algo particular no teve que expulsar
contexto de relações do sujeito, ‘separar’
de obrigação pessoais dele mesmo, como as
ou institucionais. Não suas próprias pulsões
se trata, portanto, ‘irracionais’, tornou-se
de produção de ameaçador, informe,
mercadorias e comércio obscuro e teve que ser
em sentido moderno” atribuído a um ‘outro’
(p.92). para poder ser dominado”
(JAPPE, 2019, p.65).
25. “Tudo o que a

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Páginas 8 à 31
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Revista do Programa de
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da UFES

Janeiro-Junho, 2020
ISSN 2175-3709 31

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