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08/06/2021 O satanismo do Direito – Bemdito


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O satanismo do Direito

S ATÂ N I C O É Q U E M A C U S A E Q U E M E S Q U E C E O M I S T É R I O D A

VERDADEIRA FICÇÃO NUM PROCESSO CONTRA AS BRUXAS: O

DIREITO

POR RICARDO E VA N D R O

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Em um dos seus trabalhos para a recém criada rádio alemã,


entre os anos 20 e 30 do século passado, o lósofo alemão
Walter Benjamin fala ao público infanto-juvenil da época
sobre um episódio histórico bastante conhecido: o processo
contra as bruxas. Benjamin lembra os seus ouvintes de que
talvez o primeiro contato que eles tiveram com a gura da
bruxa foi por meio de contos de fadas, como a de João e
Maria. Como se sabe, estes contos foram compilados pelos
irmãos Grimm, dentro do contexto do romantismo alemão.
Mas o ponto onde Benjamin quer chegar é o modo como,
deste senso comum e imaginário sobre quem são as bruxas,
chegou-se às perseguições no nal da Idade Média –
sobretudo contra mulheres. Além disto, Benjamin também
quer mostrar como, posteriormente, o direito tentou lidar
com a máquina julgadora e caluniadora que as
perseguições se tornaram.

A bruxaria, feitiçaria, e a capacidade de fazer mal a alguém,


não eram uma preocupação entre os cristãos até certo
momento do medievo. Nas Con ssões (397 d.C) de Santo
Agostinho, a maldade nem realidade possuía – “procurei o
que era a maldade e não encontrei substância, mas sim
uma perversão da vontade desviada da substância
suprema”. Mas talvez a partir das Cruzadas, diz Benjamin, o
medo de práticas mágicas se proliferou por toda Europa.
Mesmo com a existência de avançados estudos lógicos e
cientí cos, especialmente de in uência árabe, à frente da
ciência europeia, a chamada “magia negra” teria também
sido trazida do Oriente e passara a ser objeto de caça. Sobre
a origem do pânico contra a bruxaria e seus e suas
praticantes, em O calibã e a bruxa (2004), a historiadora
italiana Silvia Federici tem outra hipótese: “(…) por detrás
da caça às bruxas, esteve a expansão do capitalismo rural,
que incluiu a abolição de direitos consuetudinários e a
primeira onda de in ação na Europa moderna”.

Tendo sido por motivos espirituais, cientí cos ou


econômicos, os processos contra bruxaria poderiam se
iniciar pelo mais singelo motivo. Em A caça às bruxas: na
Europa no limiar da Idade Moderna (1987), Brian Levack diz
que “na maioria dos casos o catalisador era um infortúnio
pessoal, interpretado por alguém e seus vizinhos como ato
de magia malévola (…) a perda de um animal de fazenda, a
impotência sexual ou o fracasso amoroso (…) levavam a
vítima do infortúnio, num esforço para explicar o ocorrido

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e se vingar do suposto malfeitor, a atribuir o dano à


bruxarias e a levar a bruxa à justiça”. Sobre a “justiça”,
Benjamin lembra que tanto a jurisdição religiosa dos
bispos, quanto a jurisdição secular, julgavam as acusações
de bruxaria. Aliás, o antigo direito eclesiástico nem sequer
tratava de condenação de bruxas à fogueira. Foi na busca de
penas e métodos processuais mais violentos que o crime de
bruxaria acabou encontrando no direito costumeiro do
principado da Saxônia o caminho para se considerar tais
delitos como crimen exceptum (crime de exceção).

Sendo “excepcionais”, os acusados de bruxaria eram


submetidos a torturas, sob o pressuposto de, no caso das
mulheres, já haver de partida o pré-julgamento de que elas
teriam “pacto com o demônio”. E ainda que se calassem
quando inquiridas, alegava-se “mordaça do diabo”, como
sendo o verdadeiro impeditivo de testemunho, ou invoca-se
o “teste de lágrimas”, quando chorar seria a medida nal
para se saber de sua inocência. Contudo, este estado de
exceção das coisas em causa processual sofreram uma
contestação importante. Segundo Benjamin, príncipes,
médicos e os “doutores da lei”, admitiram “que já não se
poderia con ar mais em calúnias ou con ssões obtidas sob
tortura”.

Então uma importante voz se fez escutar, a do jesuíta


Friedrich von Spee, ao publicar seu tratado contra a
verdadeira máquina de morte judicial que ocorria há
séculos na Europa – chegando à além-mar, nos territórios
colonizados a partir do século XVI. Com o seu Cautio
criminalis (1634), ainda que reconhecendo a existência de
bruxaria – talvez como recurso retórico para não gerar
suspeitas contra si mesmo –, Spee defendia que era preciso
punir os caluniadores, que um prisioneiro deveria ter
advogado em sua causa, e à pergunta sobre o que poderia a
tortura conseguir, o seguidor de Santo Inácio de Loyola
disse: “nada”.

Em um texto sobre o caráter “satânico” que talvez Benjamin


estivesse confessando, seu grande amigo, o teólogo
cabalístico alemão Gershom Scholem, lembra-nos que
Satan signi ca o “acusador”, em hebraico. Assim, “satânico”
pode ser não apenas uma característica das acusadas de
bruxaria, devido ao suposto pacto que possuem com
Satanás. O Direito, o processo e seu aparato judicial, podem
ser também ser “satânicos” porque são máquinas

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acusadoras. Mas não apenas o Direito medieval e sua


obstinação por caçar bruxas, torturá-las, produzir con ssão
e incendiá-las, seriam “satânicos”. Mesmo a perspectiva
mais moderna sobre o direito conservaria, ainda sim, e por
natureza, o seu caráter acusador, julgador e punitivo. E a
narrativa radiofônica de Benjamin pode estar relacionada
com o papel pedagógico de se fazer tal crítica ao Direito,
mesmo ao moderno processo jurídico e do estado de direito
que pode lhe fundamentar. Por mais que se trate de um
Direito que garanta direitos, ainda sim, a violência mítica
subsiste.

No seu artigo Mito, Direito e Justiça em Walter Benjamin


(2020), a lósofa suíço-brasileira Jeanne-Marie Gagnebin
entende que Benjamin tentava mostrar a dialética relação
entre mythos e lógos inerente ao próprio Direito: “Essa
ilusão repousa, diz Benjamin, na confusão funesta entre
ʻreino da justiçaʼ e ʻa ordem do direitoʼ, esquecendo-se de
que a justiça cabe somente a Deus enquanto o direito é
instauração humana do poder (Macht) e, portanto, sempre
manifestação de violência (Gewalt). Assim, “em vez de
pensar que o direito teria como tarefa punir uma culpa
perpetrada por um infeliz indivíduo, Benjamin defende a
ideia de que o direito cria culpa para poder puni-la e
manifestar assim sua própria força (Gewalt)”.

Para nalizar este ensaio, cito um outro importante


intérprete contemporâneo de Benjamin, que expande ainda
mais nosso horizonte de leitura deste teologia-jurídica
sobre o Direito, quando se debruça em outro bastante
famoso processo. O lósofo italiano Giorgio Agamben
entende que O processo, de Kafka, traz o modo como
processo judicial, a calúnia e a punição, estão em íntima
relação com o objetivo nal de todo processo: a con ssão, e
sua manutenção enquanto máquina antropogênica e
acusatória. E esta relação, diz Agamben, é própria do
mistério do processo, aliás, mais ainda, do Mysterium
burocraticum: “[O homem] [n]ão deixa, en m, de acusar-se
e de alegar inocência, de declarar-se, tal como Eichmann,
pronto a enforcar-se em público, e, todavia, inocente
perante a lei” . En m, satânico mesmo não são as bruxas,
suas práticas. Satânico é quem acusa e quem esquece o
mistério da verdadeira cção num processo contra as
bruxas: o Direito.

13 de março de 2021

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RICARDO EVANDRO
ricardo-evandro@hotmail.com
Professor de Filoso a do Direito na UFPA, é doutor em Direitos Humanos e coordena o Grupo de Estudos sobre as Normalizações

Violentas das Vidas na Amazônia. Atualmente pesquisa sobre teologia política, história do direito e anarquismo.

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