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RITA Marquilhas Níveis Alfabetização 2000.compressed 1
RITA Marquilhas Níveis Alfabetização 2000.compressed 1
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1694 MontargiJ Évora 243 682 comunicação privada I. A medição do fenómeno «alfabetização»- metodologia e fontes
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RITA MARQUILHAS A FACULDADE DAS LETRAS
anos): em:l877 propôs ao Ministério da Instrução Pública que lhe fosse con- Apesar de o projecto não ter avançado, tem de reconhecer-se o eclectismo
fiada a missão de elaborar um dossier sobre história da educação, onde figu- com que Adolfo Coelho pensava abordar a história da alfabetização, compen-
rassem os totais de assinaturas e sinais feitos nos registos matrimoniais nos sando a insuficiência das fontes indirectas com dados sistematicamente toma-
períodos de 1686-169°, 1786-1790, 1816-1820 e 1872-1876. Os resultados nu- dos de fontes directas,
méricos (que Maggiolo apurou coligindo informação que l~ç_chegou de 16 000 Adiando por agora a questão das fontes portuguesas, regressemos à
professores de instituições locais) foram publicados em~66)e 1880, mas só historiografia da alfabetização europeia e ao lugar que a quantificação de
em 1957 vieram a ser alvo de uma apreciação crítica 3. --? alfabetizados nela foi ocupando. A metodologia oitocentista da contagem
J , "( -2), Para Portugal, um estudo paralelo mais completo entusiasmou Francisco de assinaturas ganhou lastro teórico em 1968, quando Roger S. Schofield
Adolfo Coelho: em 1895, convidava os leitores da Revista de Educação e Ensino . quis reconhecer na «capacidade para escrever o próprio nome» a única me-
a enviarem-lhe por correspondência dados para um «Inquérito relativo à dida «universal, padronizada e directa» que indicava quase satisfatoriamente
Instrução Primária anterior à Reforma Po mbalina». Adolfo Coelho a competência alfabética de grupos sociais historicamente delimitados.
propunha-se assim aprofundar a investigação que acabava de publicar na O seu contraste com o anedotário das fontes indirectas (discurso de teste-
mesma revista sob o título «Para a história da instrução popular», pedindo munhas coevas, volume da produção bibliográfica, dados de história do en-
colaboração no levantamento de um leque de fontes complementares que ilus- sino) estaria no facto de permitir «juízos de natureza comparada entre indi-
trariam o estado do ensino elementar antes de 1772. Interessava-lhe delimitar víduos, entre grupos económicos, entre religiões e entre períodos históricos».
o empenho das instituições na oferta de ensino das primeiras letras e a rela- E isto porque se tratava de um campo aberto à análise quantitativa, uma
ção entre formação alfabética e acesso aos diversos ofícios; interessava-lhe tam- vez que «no passado, houve ocasiões em que um grande número, ou mes-
bém avaliar o número de agentes e locais de ensino documentados e o núme- mo classes inteiras de indivíduos, foram chamadas a formalizar a sua apro-
ro de indivíduos que teriam aprendido a assinar. Ciente da dispersão e do vação de um documento, assinando o nome se o soubessem fazer ou, caso
volume das fontes, queria fazer da sua publicação uma tarefa colectiva. Forne- contrário, inscrevendo um sinal» 4. Schofield partia então para o elenco das
cia o elenco do que interessava à partida: fontes que podiam ser alvo de recolha por amostragem desta medida directa
de um determinado nível de alfabetização, em condições constantes
1. Documentos em que se faça referência a mestres de meninos (moços,
(medida-padrão), válida para um amplo leque de indivíduos e de grupos
rapazes), de ler e escrever, mestras de meninas, seja qual for o propó-
sito; as escolas de ler, escrever, de moços, etc,
(medida uniuersal). Considerada a realidade britânica dos séculos XVI a XIX,
2. Documentos de que se possa concluir que o conhecimento da leitura, preferia a todos os outros, os documentos de natureza censual, colocava em
da escrita, do cálculo elementar era exigido para tais profissões, cargos segundo lugar os registos matrimoniais, e fazia-lhes seguir os testamentos,
públicos, etc. as promessas matrimoniais e os depoimentos junto de tribunais eclesiásti-
3. Documentos que respeitem particularmente à intervenção da adminis- cos 5. Quanto à exacta correspondência entre capacidade para assinar e ní-
tração municipal, no ensino de qualquer ordem. vel de competência de leitura e escrita, Schofield aceitava a opinião de um
4. Exame dos registos de baprismo e casamento, escrituras, a fim de se reco- inspector de ensino do século XIX, J. Fletcher, que encontrava na assinatura
nhecer se as testemunhas e os contraentes assinam do seu próprio punho, alfabética um indicador de leitura fluente: desde o século XVI, e até ao iní-
e a frequência com que o fazem; por exemplo, a propósito dos nubemes, cio de Oitocentos, dada a sucessão das fases de ensino das primeiras letras,
estabelecer a relação numérica dos que assinam para com os que não quem apenas soletrava não saberia ainda assinar, mas quem lia fluentemente
assinam, e isto por períodos (por exemplo de 50 anos) e freguesias.
já saberia pelo menos escrever o nome 6.
5. Documentos, notícias relativas à intervenção das ordens religiosas e do
clero secular na instrução do povo, em Portugal e nas suas colônias.
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Partiu-se daqui para uma missão desenvolvida em várias frentes geográfi- com os analfabetos que Oavid Cressy viria a pressupor. A partir daí, cresce-
cas e cronológicas, se be,m que invariavelmente relativas ao Ocidente e ao ram as objecções à metodologia da contagem de assinaturas, objecções anco-
Antigo Regime, em que as percentagens de quem conseguia assinar o nome radas em três aspectos pragmáticos lI:
serviam, com menor ou maior cepticismo, de índice de alfabetização da res-
pectiva sociedade 7, I - Nas sociedades do Antigo Regime, as capacidades de leitura e escri-
O optimismo extremo em relação ao indicador da assinatura, exprimi- ta não eram adquiridas em simultâneo, mas sim em ordem sucessiva; logo, as
ram-no François Furet e Jacques Ozouf, quando compararam os dados de um camadas sociais que se quedavam por uma fase inicial de alfabetização (as
recenseamento francês de 1866 e os do alistamento de recrutas nesse mesmo meninas, sobretudo, mas também as crianças mais pobres, que abandonavam
ano (dados em que a competência alfabética era declarada pelos recenseados e a escola na idade em que estavam fisicamente habilitadas para o trabalho ma-
não provada por meio de assinatura) com os resultados do dossier de nual) podiam saber ler sem saberem ainda desenhar as letras do nome - quem
Maggiolo, relativos aos esposos que assinavam e não assinavam também em não assinava podia, ainda assim, ser semi-instruído 12. Roger S. Schofield, como
1866. Encontraram uma covariação entre as três tabelas e concluíram: «A ca- vimos, também reconhecia este inconveniente do indicador «assinatura», mas
pacidade para assinar corresponde àquilo a que hoje chamamos alfabetização, contornava-o estabelecendo que °
grau de alfabetização apropriado às investi-
e que comporta leitura e escrita», Cientes de que o teste a que haviam proce- gações sobre fontes assinadas era o da leitura fluente.
dido era apenas válido para o século XIX, avançavam, ainda assim, com uma 2 - A assinatura é, materialmente, um indicador demasiado radical, que
«presunção favorável» à utilização da mesma equivalência em períodos ante- reduz uma variável contínua a um parâmetro binário 13. Entre os pólos da
riores 8, cruz e da assinatura ágil, há um leque inteiro de possibilidades gráficas onde
Oavid Cressy, por seu lado, ocupando-se da alfabetização na Inglaterra têm lugar algumas realizações que levantam sérias dúvidas sobre o seu autor
dos séculos XVI a XVIII, também argumentava a favor da validade das conclu- saber desenhar mais alguma palavra para além das do respectivo nome 14. Este
sões sobre «literacy», extraídas das percentagens de assinaturas, Guiado por inconveniente é por alguns considerado evitável se houver cautela na avalia-
um critério psicossocial, alegava que não seria estigmatizado quem só assinasse ção gráfica das assinaturas, negligenciando-se na contagem positiva todas as
de cruz, o que conduzia à desinibição do analfabetismo: «Não havia vanta- assinaturas «más» 15. E assinaturas «más» serão, afinal de contas, aquelas reali-
gens em fingir. A incapacidade para assinar abrangia tanto grandes como hu- zações com caracteres demasiado toscos, que revelam descontrolo motor, fruto
mildes, de modo que poucos sobrolhos se franziriam se se assinasse de cruz» 9. da inércia escribal, ou com erros caligráficos que denunciam a ignorância do
Do lado do cepticisrno, levantaram-se vozes mais numerosas que, logo verdadeiro desenho do alfabeto. Aqui surge o problema de se carimbarem
de início, foram alertando os investigadores para o facto de a assinatura expri-
mir mais um desejo de afirmação social do que uma prática efectiva de leitura
e escrita 10, argumento diametralmente oposto ao da atitude de tolerância para 11 Abandono aqui a apresentação genética da historiografia da alfabetização por serem
muitíssimo frequentes os casos de poligénese em matéria de crítica à fiabilidade das assina-
turas; o cepticisrno foi-se impondo, por indução, a partir de rraços enconrráveis em todas
as fontes, Os autores que vou sucessivamente citando são aqueles que julgo terem apresen-
7 Para uma ideia exacra dos resultados atingidos por estes esforços paralelos de inves- tado de forma mais feliz os problemas que as assinaturas levantam.
tigação, cf., por rodas, as recensões apresentadas por Marchesini, 1985: 83-100 (sobre o 12 Cf. Spufford, 1986 (1979): 182, 2°4-205.
significado do indicador «assinarura») e por Houston, 1988: 130-154 (sobre os valores com- I) Cf Houston, 1982: 82.
parados da capacidade para assinar encontráveis no Ocidente entre 1500 e 1800, associados 14 Nas palavras de Robert Allan Houston, «a fronteira entre assinar plenamente o
às variáveis económica, sexual, geográfica, etária, religiosa e cronológica). nome e fazer um sinal é, de certa forma, arbitrária e obscurece a extensa hierarquia de
8 Furet e Ozouf, 197T 27-28, subscrições que homens e mulheres podiam fazer nos documentos. Alguns sinais eram rudes,
9 Cressy, 1980: 56-57, Este autor vinha defendendo a mesma ideia desde 197T cf pouco mais do que uma linha, uma cruz ou um círculo gatafunhados; às vezes incluíam
id., 1986 (1977): 149, letras invertidas ou outros erros serni-disléxicos, Outros eram engenhosos e requeriam cer-
!O O primeiro alerta foi dado por Yves Casran quando se ocupou das relações sociais tamente algum nível de destreza manual", cf id., 1988: 127.
na Provença do século XVIII; cf. id., 1974: n6-u8, 15 Cf. Silva, 1986: 109-1I2.
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como analfabetos, indivíduos que escreviam mesmo assim, em mão «elemen- relações sociais: «Saber escrever o próprio nome, saber só desenhá-Io até, numa
tar de base" 16, por ser esporádico o seu contacto com uma técnica que eram petição, numa declaração, redigida que fosse por terceiros, num documento,
todavia capazes de dominar 17. A única verdadeira solução para este problema num ou noutro contrato, era o suficiente para se estar de algum modo dentro
está no acesso a um tipo excepcional de fonte, na qual, além de assinarem, os do mundo da escrita, tal como ele se configurava na época» 20. E isto era
subscritores tenham sido obrigados a escrever um curto texto 18. também verdade para os casos em que assinar era a única competência alfabé-
3 - Uma cruz, uma má assinatura, uma procuração para assinar, feitas tica de um indivíduo, incapaz até de ler 21.
numa secção momentânea da vida, não garantem a estagnação do autor em
matéria gráfica: há sempre a possibilidade da aquisição tardia da escrita. - Segundo requIsito: seleccionar fontes onde figurem microcosmos de
A reconstrução criteriosa da evolução de uma comunidade, por meio da ob- subscritores verosímeis enquanto representantes da sociedade sua contemporânea 22.
A selecção de fontes está no entanto inexoravelmente presa às VICISSItu- ou também dos membros da família. Mas ficãmo-nos pela intenção. Os assen-
des documentais de cada sociedade, bem como aos diferentes panoramas tos da cato licidade entre 1600 e 1700 nunca estão assinados pelos fiéis. Só as
arquivísticos nacionais. Não basta considerar que os registos matrimoniais, por autenticam o clérigo ou os vigários que presidiram à cerimónia religiosa» 26.
exemplo, constituem um bom alvo para a recolha serial de assinaturas visto
que elas se fazem acompanhar da identificação socioprofissional dos seus au- - Terceiro requisito: respeitar os estudos feitos para realidades social, geo-
tores, que o casamento apanha os indivíduos numa idade em que a sua for- gráfica e cronologicamente vizinhas da que se pretende estudar 27.
mação alfabética já está, em princípio, completa e que a população que não
casa representa uma percentagem pequena 24. Nada disto é bom se, na época Por exemplo, para a alfabetização portuguesa seiscentista, objecto deste
e comunidade que se pretende estudar, tais registos não tenham sido sistema- estudo particular, seria autisra desprezar tudo quanto se foi apurando sobre a
ticamente assinados. Adolfo Coelho, virno-lo atrás, pedia colaboração na re- alfabetização peninsular na Idade Moderna. No entanto, seria identicamente
colha de assinaturas em registos matrimoniais portugueses anteriores a 1772
perigoso generalizar a partir de dados sobre sociedades mais distantes, instala-
das em ambientes económicos e culturais necessariamente diversos 28.
para «a propósito dos nubentes estabelecer a relação numérica dos que assi-
nam para com os que não assinam, e isto por períodos (por exemplo de 50 Fundada em todas estas considerações, posso agora apresentar as opções
que se me impuseram na avaliação quantitativa da alfabetização em Portugal
anos) e freguesias». As boas intenções eram contudo inúteis, porque para os
durante o século XVII.
séculos XVI e XVII, e parte ainda do século XVIII, tais registos não são assinados
pelos esposos 25. Se tivesse voltado a falar no seu plano, Adolfo Coelho diria
algo de semelhante ao que C1aude Larquié testemunhou sobre um paralelo pro- r) Não recusei como acientífico o método da contagem de assinaturas
grama de investigação, relativo aos madrilenos do século XVII: «Pensávamos que porque me ative a um conceito de alfabetização funcional coincidente com a
as nossas buscas nos arquivos paroquiais da capital das Espanhas nos iam per- capacidade para assinar, reveladora de uma participação básica dos indivíduos
mitir encontrar nos assentos de baptismo, de casamento, e até de óbito, as assi- no mundo da escrita pragmática.
naturas dos pais, dos padrinhos ou das madrinhas, dos esposos, das testemunhas
2) Socorri-me das assinaturas inscritas numa font~ onde interveio um
grupo de indivíduos proveniente (com algum desequilíbrio) de todos os pon-
tos do reino e de todas as classes sociais, ao longo de toda a época seiscentista.
Tratava-se, além disso, de um tipo de fonte que já havia servido para um
24 Cf. Schofield, 1968: 319-32°. Este argumento de Roger Schofield deve, no entan- estudo paralelo na Espanha dos séculos XVI a XIX. Refiro-me aos depoimentos
to, ser relativizado, por o celibato definitivo no Antigo Regime não ser tão rato assim, para
feitos perante os tribunais do Santo Ofício.
além de a mortalidade apanhar frequentemente os indivíduos em idade inferior à nupcial:
cf., Rodrigues, 1990: 16.
2j Cf. Silva, 1986: ro8. As observações do autor são baseadas numa sondagem feita
em registos paroquiais seiscentistas e setecentistas de três freguesias urbanas do Porto. Os 26 Larquié, 1980: 224.
registos paroquiais das freguesias urbanas de Lisboa apresentam contudo a mesma situação, 27 Apesar de se tratar de uma imposição de senso comum, já que é dirigida para a
sendo de salientar que na segunda metade do século XVIIcomeçam a aparecer, junto aos economia de esforços, deve lembrar-se, a este propósito, o conselho de Marc Bloch sobre
assentos matrimoniais, observações feitas por visitadores exigindo que as testemunhas assi- as vantagens dos estudos históricos comparados e da concertação entre os investigadores,
nem os assentos de casamento na forma das Constituições. Nos registos da freguesia da Aju- baseando «o método, o tratamento dos problemas levantados e a própria terminologia no
da, relativos aos anos de 1592-1671, essa chamada de atenção começa em 1664, mas não é conhecimento que emerge do trabalho já executado em outros países»; id., 1967 (1928): 75.
obedecida, e só a partir de uma segunda visitação, feita em 1666, as testemunhas começam Robert Allan Houston, depois de citar estas mesmas palavras de Bloch, insiste na necessi-
a assinar. O interesse destas assinaturas é, no entanto, bastante reduzido, porque os seus dade de uma investigação internacionalmente articulada ao nível da história da alfabetiza-
autores são indivíduos reincidentes no papel testemunhal. Também os fundos paroquiais ção, sendo essencial que «os historiadores sigam a mesma metodologia e se coloquem as
do nordeste trasmontano, do noroeste e da ilha do Pico levaram] ustino Pereira de Maga- mesmas perguntas',; id., 1991 (1983): 22.
lhães a afirmar: «Os Registos de Casamento só a partir da segunda metade do século XlX 28 Da necessidade de um comparativismo social racionado ocupou-se Émile Durkheim,
passam a apresentar com regularidade a assinatura dos nubentes, mesmo que a rogo»; id., sobretudo em Les Regles de Ia Méthode Sociologique. Paris, 1895. Para a apresentação crítica
1994: 260. do método comparativo segundo Durkheim, cf. ]ones, 1986: 75-76.
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2. Francisco Ribeiro da Silva e os estudos sobre a alfabetização portuguesa 1580 e 1640 (com lacunas cronológicas devidas a desaparecimento de livros e
no Antigo Regime a negligência burocrática), Ribeiro da Silva chegou a um grau de 15% de
alfabetizados entre a população masculina (a única que aflora nos seus do-
A alfabetização portuguesa durante o Antigo Regime foi objecto de um cumentos), que propôs poder corrigir-se para a percentagem global de 10%,
esforço pioneiro de avaliação sistemática: o de Francisco Ribeiro da Silva, fei- se se contasse com o inevitável analfabetismo feminino 33.
to sucessivamente em 1979 e 1983, e aprofundado em 1986, tomando como Já para as subscrições feitas por habitantes da cidade do Porto, dada a
objecto a região do Porto e seu termo entre 1580 e 1650, e medindo informa- heterogeneidade dos factores que as motivaram, não foi possível a apresenta-
ção signatária bebida de fontes municipais (os livros de actas da Câmara e os ção de uma percentagem global. Ribeiro da Silva lidou com documentos as-
livros de admissão de irmãos da Confraria da Misericórdia) 29. sinados por 850 oficiais superiores da Câmara (100% de assinaturas alfabéti-
Apesar de reconhecer que a fonte se lhe impôs, em vez de ter sido cas), 106 procuradores do povo (77,3% sabiam assinar), 40 porteiros da
propositadamente seleccionada para efeitos de história da alfabetização, Ri- Câmara (22,5% também assinavam), 280 mulheres proprietárias ou casadas
beiro da Silva não lhe negou representatividade 30. O universo social que o com proprietários (i6,4% sabiam assinar), 1065 juízes de ofícios mecânicos
autor pôde entrever foi, em ambiente rural, o funcionalismo municipal, e, (69,9% dos actos de posse foram bem assinados) e 889 indivíduos bem esta-
em ambiente urbano, além do mesmo funcionalismo, todo o conjunto de belecidos economicamente - mercadores, proprietários e outros grupos abas-
indivíduos que com a Câmara tratava burocraticamente assuntos relaciona- tados (76% de assinaturas bem feitas) 34.
dos com a sua profissão, as suas propriedades ou as suas funções comuni- É possível encontrar ainda no trabalho de Ribeiro da Silva um porme-
tárias. Comentando os dados de que pôde dispor para o conjunto mais norizado tratamento do corpus, destinado sobretudo a traçar relações de
numeroso, o dos funcionários do termo do Porto, o autor assumiu explici- causalidade entre variáveis socioprofissionais e graus de alfabetização. De-
tamente a vinculação dos indivíduos, cuja assinatura ou sinal apreciava, a pois da detecção de alguns progressos na alfabetização rural e urbana entre
um parâmetro de estreita amplitude: "Não dispomos de informações que a primeira e a segunda metade do período estudado, a "Conclusão Final»
abranjam obviamente toda a população. Os indivíduos cujo grau de foi a seguinte:
instrução podemos avaliar são aqueles que desempenharam algum cargo o Porto e a sua região provavelmente não atingiam, em 1600, a taxa de
público que os obrigou a deslocarem-se à Câmara do Porto para, perante a alfabetização da Inglaterra onde 25% dos homens sabiam ler e escrever.
Governança da Cidade, tomarem posse e prometerem, sob juramento, que Mas acreditamos que não ficava atrás da França cuja alfabetização mascu-
cumpririam 'bem e verdadeiramente' a missão de que eram incumbidos» JI. lina era, na mesma época, da ordem dos 16%. Provavelmente em 1650 as
Ter-lhes-ia preferido os inatingíveis dados dos registos paroquiais, 'mas con- taxas mostravam-se mais favoráveis, muito embora a preocupação pela ge-
siderou a validade da sua fonte equivalente à das actas notariais e mesmo neralização da alfabetização devesse esperar mais de um século ainda. Al-
superior à dos testamentos 32. guns pontos parecem entretanto irrefutáveis: a vantagem do morador da
Depois de quantificar as assinaturas e sinais apostos a 7107 termos de cidade sobre o do campo, do homem sobre a mulher, das elites sociais e
posse de ofícios municipais a exercer nas zonas rurais em torno do Porto entre do dinheiro sobre o homem comum 35.
«De facto, em primeiro lugar, os Livros das sessões da Câmara não são represen-
30 tugues., durante o Antigo Regime: procurar outras regiões e outras camadas
tativos apenas dos grupos sociais superiores, urbanos e rurais, embora estes aí figure~ mais
abundantemente, como é lógico. Por outro lado, possibilitam-nos o conhecimento das ca-
pacidades de assinarura de grande parte dos moradores do Termo. E quanto a estes, não
são mesmo os grupos sociais de topo que são mais testemunhados»; ido ibid.: 107. 33 Cf. ido ibid.: 140-141.
31 Cf. ido ibid.: II9. 34 Cf. ido ibid.: 141-158.
32 Cf. ido ibid.: 108. 35 Id. ibid: 159-160.
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SOCIaiS,estender o interrogatório a vanaveis (como a da idade) que aquele em Lorca e seu termo entre 1760 e 18604'. A investigação sobre a alfabetiza-
autor não pôde apreciar, testar a medida em que a fonte explorada influencia ção portuguesa baseada neste tipo de fontes seria, do mesmo modo, forçosa-
o apuramento de taxas de assinaturas alfabéticas. Finalmente, é preciso alargar mente regionalizada, ou então monumentalmente trabalhosa.
o leque cronológico, para que a sucessão de séries de anos indicie com maior k fontes municipais, também elas dispersas, já vimos que apenas 'perrni-
precisão o ritmo evolutivo da capacidade para assinar dos portugueses. tem consultar sistematicamente a capacidade para assinar de indivíduos vin-
No sentido das alternativas documentais e do alargamento cronológico culados à função do oficialato,
já avançou justino Pereira de Magalhães que, socorrendo-se dos registos de Sobram as fontes judiciais. Considerada a realidade portuguesa do século
casamento, baptismo e óbito de três paróquias portuguesas, uma do norte Àrv1I, os depoimentos a serem explorados segundo esta perspectiva são, poten-
atlântico, uma do norte interior e outra da ilha do Pico, seguiu, ao estilo da cialmente, os recolhidos pelas instâncias jurisdicionais da Coroa, do Bispo e
micro-análise, a evolução do alfabetismo das três comunidades rurais durante da Inquisição. Mas a documentação civil não está suficientemente organiza-
um período que cobria, de uma maneira geral, os séculos XVIII e XIX. Con- da 42• Da episcopal, se não há notícia de conservação sistemática dos proces-
cluiu por um nível geral de alfabetismo de 25%, havendo contudo casos em sos do auditório eclesiástico, sabe-se, em contrapartida, da possibilidade de
que se poderá ter chegado ao grau de 50% 36. recorrer aos livros de devassa.
Mas o conjunto do século XVII e a área total do reino português conti- Desde finais do século Xvi que a visitação pastoral dos bispados, como
nuam a ser uma incógnita quanto aos níveis de alfabetização atingidos, pelo forma de vigilância de pecados públicos, foi alvo de normalização em consti-
que é nessa direcção GIuese orienta o trabalho aqui desenvolvido. tuições diocesanas, regimentos do auditório eclesiástico e instruções aos
visitadores, em obediência à definição tridentina da reforma católica que teria
necessariamente de passar pelo rigoroso controlo do comportamento moral
3. Os depoimentos judiciais da Inquisição portuguesa como fonte dos fiéis 43. Ora segundo o texto destas regulamentações, umas mais explícitas
para a contagem de assinaturas que outras, é possível saber-se que os paroquianos interrogados pelo visitador
sobre os pecados públicos de seu conhecimento deviam ser nomeados ao aca-
Busquem-se fontes portuguesas relativas ao século XVII, arqurvrsucamente so, a partir do rol dos confessados, devendo representar, paralelamente, a faixa
acessíveis, portadoras de assinaturas feitas por autores claramente identifica- social mais anónima e toda a amplitude geográfica da paróquia visitada 44.
dos, com universalidade em termos geográficos, etários e socioprofissionais ... Suporte de milhares de depoimentos assinados por uma amostra bem diferen-
AB fontes paroquiais já vimos serem inúteis, neste caso. k fontes notariais e ciada de população, os livros de devassa revelam-se assim a fonte ideal para a
fiscais, pela sua dispersão por diferentes arquivos, dificultam a formulação de constituição de um COl~1)US significativo sobre o qual possa incidir uma medi-
construções generalizáveis, prestando-se mais à história de uma alfabetização ção da capacidade para assinar durante o Antigo Regime. Acontece, porém,
local. Os mais recentes estudos espanhóis têm realmente concentrado a aten-
ção nesses dois tipos de fonte, mas têm-nos feito saber apenas de taxas de
alfabetização em Madrid na egunda metade do século XVII 37, na Galiza em
4' Cf. Moreno Martínez, I989: 53-144 _. fontes notariais: testamentos e contratos de
1635 ,8, em rca em 170539, em Badajoz na segunda metade do século XVII 40, arrendamento; fontes fiscais: as relaciones juradas de 177!; para o século XIX, o autor pôde
já recorrer aos censos.
42 Cf. Saraiva, '989: 184.
3G Cf. Magalhães, 1994. 43 Cf. Paiva, 199J: 639-650.
37 Cf. Larquié, 1980 e 1987 (1982) - fontes notariais: testamentos e atestados de po- 44 Uma «Instrução para os visitadores do bispado de Coirnbra», provavelmente
breza. seiscentista, requer inequivocamente que o visitador mande que o Parrocbo lhe remeta o Rol
)8
Cf. Gelabert, 1987 (1982): 49-55, 59-61 - fonte fiscal: o donativo de 1635. dos Conjessados, a buma Igreja que não fique muito distante da sua e dclle tirará de sinco em
39 Cf. Cerdá Díaz, 1986: 45-70 - fonte fiscal: as relaciones juradas de !705. sinco, ou seis em seis. conforme os lugares, a pessoa que se seguir, não sendo de notória e conhecida
4° Cf. Marcos Álvarez e Cortés Cortés, 198y: 33-61, 75-79 - fonte notarial: testa- authoridade, mandando vir testemunhas de todos os Casaes e Lugares, ainda que pequenos, para
m 11l s, que de tudo o que se passei em todos elles possa ter inteira noticia; id., ibid: 655.
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que estes livros se não conservaram por igual medida 45, tornando apenas pos- tentar estabelecer séries temporais sobre o) conjunto documental que formam,
sível construir estudos sistemáticos sobre as dioceses de Coimbra, Braga e Lis- pelo que não foram tomados como fomes neste trabalho 48, Já os livros de
boa, o que anula logo a combinação das assinaturas com variáveis geográficas. denúncias e os cadernos do promotor foram alvo de um3. encadernação promo-
Restam assim os depoimentos prestados ao tribunal do Santo Ofício, que vida pela própria Inquisição; e esta encadernação, se não obedeceu sempre a
não apresentam nem o inconveniente da dispersão arquivística (estão concen- critérios de sucessão rigorosos, pelo menos tornou possível o acesso directo a
trados no Arquivo Nacional da Torre do Tombo), nem o da excessiva selec- séries de documentos com suficiente solidariedade cronológica.
ção social dos seus autores (testemunhas, denunciantes e confitentes que se Vejamos rapidamente a génese destas duas colecções. A delação de cul-
podiam pronunciar sobre uma extensa variedade de delitos). Terminado o pas de heresia, próprias ou alheias, foi um ponto em que a Inquisição sempre
depoimento, a sua versão escrita tinha de incluir a explícita concordância com insistiu, por a prova testemunhal lhe ser imprescindível na instauração de
os termos do texto por parte do autor. Uma assinatura alfabética, um sinal processos. Era função do édito, virno-lo no capítulo anterior, espolerar movi-
ou uma delegação na capacidade de assinatura do notário cumpriam essa fun- mentos de colaboração comunitária na identificação dos autores de delitos
cão 46. No início, o autor do depoimento era identificado, mais ou menos ainda impunes. Daí nasciam vagas de denúncias e confissões que tinham de
porrnenorizadamente, conforme o zelo notarial, de forma que é possível arti- ser recolhidas em suportes que variavam conforme a justiça à qual se prestava
cular uma série de variáveis (cronológica, geográfica, etária, socioprofissional) depoimento: se a ambulante, se a estável 49. A justiça estável deveria ter, se-
com a presença ou ausência da assinatura alfabética 47. gundo os regimentos de 1552 e 1613, suportes especiais para as denúncias e as
Ao nível arquivístico, estes depoimentos podem integrar uma de três confissões: livros de fólios brancos onde os notários escreveriam cada sucessi-
colecções: a dos processos, a dos livros de denúncias e a dos cadernos do promo- vo depoimento que aos Inquisidores fosse prestado e que deveriam ficar guar-
tor. Quanto aos processos, que são materialmente individuais, antes de estar dados na câmara do secreto 50. Considerado só o século XVII, corresponde a
completamente sistematizada a sua indexação cronológica, é bastante moroso essa exigência dos regimentos uma colecção de livros de denúncias 'I, contendo
documentos com datas que se estendem do princípio do século até cerca de
1620: 1618 para a Inquisição de Évora, 1619 para a de Lisboa 52 e 1620 para
Coimbra. A partir daí, as denúncias e apresentações feitas voluntariamente
45 Cf id. ibid.: 638.
frente à Mesa da Inquisição passaram a integrar a colecção dos cadernos do
46 A validação de um testemunho ou de uma confissão através da assinatura foi ex-
plicitamente instituída na Charta do edieto e tempo da graça de 20 de Outubro de 1536, um promotor, de onde, quando não houvesse tempo para a respectiva cópia, pode-
dos primeiros documentos da história da Inquisição portuguesa. O édito previa ainda a riam ainda transitar para um processo. Uma explicação para esta mudança na
entrega da denúncia ou da confissão por escrito, e estes escritos deviam ser, pelos autores,
asignados de seus signaes e nomes; para os que não soubesse'm escrever, o texto seria ditado ao
notário ou escrivão, dando origem a um documento per termo o qual sera asignado pellos
confitentes. Baião, 1906, "Documentos»: 2. Como foi anteriormente referido, a validade pro- 48 À data em que este trabalho sair publicado, já não se vai justificar a observação.
cessual de denúncias e apresentações previamente redigidas só figura neste documento mais 49 «Estatuia o Regimento [de 1552], á semelhança da jurisprudencia da epocha, a jus-
antigo. Os regimentos da Inquisição, publicados quando a instituição já funcionava regular- tiça ambulante [... ]. Esta era exercida pelos inquisidores nas visitações das respectivas
mente, fazem sempre figurar o notário como personagem indispensável na recolha das pro- comarcas, podendo então prender os culpados e envia-los para a séde da inquisição. [... ]
vas testemunhais e das confissões. Ao lado d'ella existia a justiça estavel exerci da pelos mesmos inquisidores na séde do tribu-
47 Logo segundo os termos do primeiro regimento, o de 1552, e a propósito dos nal. Tinha principalmente por base os depoimenros das testemunhas denuncianres.», Baião,
denunciantes, exigia-se que fosse exaustiva a sua identificação: Quando se preguntarem as I906: 76-77.
testemunhas das denunciações decrarem sempre sua jdade e se sam casados ou solteiros e que oficios 50 O regimento de 1552 consagra o capítulo 85 a estes livros e o de 1613, o capítulo
1\ tem e omde Viuem e sam naturaes e se sã criados dalguas pessoas e se tem Raça de judeu ou se 6 do título L
sam de casta de mo uros ou se forão Reconçiliados ou penitençiados pelo santo officio ou se sam 51 Na realidade, as confissóes eram transcritas junto às denúncias, sendo muito raros
filhos ou netos de condenados pello crime da heresia eom as mais circunstancias que pareçerem os livros de apresentações.
neçesarias pera constar e se saber e todo o tempo da testemunha e qualidade della., Regimento da ~l O liv. 60 da Inquisição de Lisboa contém no final duas denúncias isoladas datadas
Santa lnquisiçam, capo 23, apud Baião, 1906, "Documentos»: 36 (sublinhado meu). de I629.
,I
RlTA MARQUILHAS A FACULDADE DAS LETRAS 99
rotina documental do Santo Ofício não é fácil de encontrar, mas talvez tenha que obedeceram a diferentes factores - a sugestão dos éditos, a incitação
estado relacionada com uma visitação do Inquisidor Geral, dada a coincidên- dos confessores, a averiguação de culpas - e que se relacionavam com inú-
cia cronológica entre as últimas denúncias transcritas segundo este modelo o meros delitos de heresia potencialmente cometidos por delatos de todas as
qual, aliás, não devia ser muito prático, por gerar uma grande mistura de faixas sociais. De todas, não é bem assim: o delito de judaísmo só poderia
delitos, delatos e delatores em suportes monolíticos, em princípio ser imputado à camada dos cristãos-novos (se bem que haja
O regimento de 1640 já se não refere, com efeito, à existência de livros de denúncias de conversão à lei de Moisés), o de solicitação na confissão, aos
denúncias globais nos secretos. Propõe antes a racionalização do arquivo de de- padres confessores, o de posse de livros proibidos, a quem tivesse instrução
poimentos, para o que aconselha obediência a um critério temático e parcial- suficiente para os saber ler ... Mas havia também os pecados públicos, alvo
mente onomástico: Das denunciações, e confissões dos appresentados, que no Santo de frequentes denúncias, por vezes até desajustadas à actuação do Santo
Officio se [ezerem, formarâ [o Promotor] tres livros differentes: o primeiro dos culpa- Ofício, que podiam ser cometidos por qualquer um: a bigamia, a sodomia,
dos no crime da heregia: o segundo dos confessores solicitantes: e o ultimo dos delatas a feitiçaria, a bestialidade, o adultério ... Mesmo que a culpa delatada não
pelo peccado nefando. Mas se a denunciação tocar a húa só pessoa, que jà estever coubesse na jurisdição inquisitorial, o destino do depoimento prestado era
preza, logo a forà ajuntar a seu processo; e feitos estes livros, os proporâ aos Inquisidores o arquivo do promotor: (I processo, para o caso de o delato já estar preso
para os numerarem, e rubricarem 53. Na prática, estes cadernos do promotor, já (mas há também casos de depoimentos arrancados ao seu suporte inicial
aliás descritos no capítulo anterior, eram encadernações de qualquer tipo de para serem incluídos em processos) 55, o caderno do promotor ou ainda, até
documento que ao promotor interessasse na potencial instauração de processos: r620 e no caso dos depoimentos prestados nas sedes dos tribunais, o livro
correspondência com comissários e familiares, denúncias anónimas feitas por de denúncias.
escrito, sumários encomendados a comissários para que a inquirição de heresia A pequena represenratividade que alguns apontam a este tipo de fonte
também abrangesse zonas periféricas, inícios de processos deixados suspensos, inquisitorial não é definitiva, porque se tem de admitir uma equação entre
processos completos saídos da justiça ambulante, provas materiais soltas, devas- diferentes delates ou réus, e diferentes delatores ou testemunhas 56. É verda-
sas enviadas ao Santo Ofício pelas justiças do Bispo e da Coroa e, a partir de de que a população urbana e o clero são duas faixas representadas em de-
r620, denúncias e apresentações feitas na Mesa dos tribunais de distrito, segun- masia (os seus membros estavam geográfica e profissionalmente mais próxi-
do o modelo que o regimento de 1640 veio depois consagrar, mas que raramen- mos dos Inquisidores, e por isso mais disponíveis para o depoimento), mas
te seguem aquele critério temático estipulado pelo código inquisitorial. também se tem de reconhecer que nenhum estrato da população estava ra-
O conjunto dos cadernos do promotor e daqueles livros de denúncias ofe- dicalmente inibido de testemunhar no Santo Ofício; testemunhavam os es-
rece, por conseguinte, um bloco de depoimentos assinados que cobre todo cravos, como testemunhavam os nobres e os bispos, as mulheres testemu-
o século XVII e toda área europeia continental, insular, americana e africana nhavam ao lado das crianças, dos trabalhadores, dos mercadores, dos criados,
(setentrional e ocidental), pertencente ao reino português e abrangida pela dos cristãos-novos, dos mouros e de quaisquer imigrantes. As cidades estão
jurisdição dos tribunais de Coirnbra, Évora e Lisboa 54. São depoimentos
sobre-representadas, mas também não há diocese portuguesa para a qual não queles dois autores: tomar os 30 anos co.mo fro~teira etana e distribuir os
haja depoimentos à escala do lugar ou da aldeia. Há segmentos temporais autores das assinaturas por categorias socioprofissionais não mui.to distantes
durante os quais se prestou maior número de depoimentos, uma vez que a das estabeleci das para as testemunhas espanholas.
sua emissão estava directamente dependente da arritrnia persecutória da
Inquisição e da prática de delitos, mas o século XVII é também uma cenrúria
abrangida em toda a sua extensão pelo período de maior vigor do Santo 3.1. Descrição do corpus colhido nos livros de denúncias e cadernos do promotor
Ofício português 57. Para Portugal, não há nenhuns Outros documentos, da Inquisição portuguesa do século XVII
Número de depoimentos
,7Sobre o declínio persecutório da Inquisição no século XVIII, cf Berhencourt, 1994 16n-1620 181
(1992): 51, 363.
,8 Cf. Rodríguez e Bennassar, 1978.
,9 Os dados de Rodríguez e Bennassar são pouco homogéneos por se não tratar de
investigação de raiz, por eles pensada e executada; basearam-se numa exploração sistemáti-
ca, feita por Jean-Pierre Dedieu, dos processos do tribunal de Toledo, e em quatro disser-
tações orientadas por Bennassar, nas quais se haviam estudado processos do tribunal de
Córdova. Os autores das dissertações tinham sido Sylvie Grenier e Françoise Iglesias,
F. Roberr Campillo, Evelyne Bernad e Claudine Valmary, Elizaberh Venrax, 60 Cf. Barreiros, 1984: 11.
102 RlTA MARQUILHAS A FACULDADE DAS LETRAS 103
1621-1700 1601-1700
Depoimentos dos cadernos do promotor das Inquisições de Coimbra, Lisboa e Évora Bispados de residência das testemunhas do continente
para os três primeiros anos de cada decénio que prestaram depoimento às Inquisições de Coimbra, Lisboa e Évora
(a partir dos livros de denúncias e dos cadernos do promotor)
Anos Número de depoimentos
i
".
),Lisboa .••.• •...
..:0 ....
.. .. I Ú2 .• (±4,40/0)
1631-1633
3 (9,2rO)c
1651-1653
1671-1673
6 Guarda 322 (6,4°/0)
610
8 Miranda 257 (p%)
4788 .,
da comunidade portuguesa pelo continente pode avaliar-se em alguma medi- Os bispad s d· Li bon, . v ra e Algarve são os que devem ter sofrido
da se se compararem os valores da tabela acima com os do numeramento maior distorção infla i nária na constituição do corpus de testemunhas do
feito no século XVI, em 1527-153264; estes últimos colocam demograficamente Santo Ofício; pelo nurneramento de 1527-1532, esses bispados albergavam res-
os bispados pela seguinte ordem decrescente: pectivamente 15,7%, n% e 3,5% da população do continente, números que,
mesmo presumindo uma alteração ao longo do século XVI, se distanciam muito
1- Braga; 8- Viseu;
das percentagens de testemunhas seiscentistas do corpus, oriundas das mesmas
2 - Lisboa; 9- Miranda;
circunscrições. Do lado da distorção redutora, encontra-se o bispado de Braga,
3 - Évora; 10 -- Algarve;
que à data do numeramento quinhentista tinha 20,2% dos portugueses con-
4- Coimbra; II - Elvas;
tinentais, enquanto que lhe pertencem pouco mais de 9% das testemunhas
5 - Guarda; 12 - Portalegre;
aqui consideradas.
6 - Lamego; 13 - Leiria 65.
Este problema com a representatividade demográfica do corpus, cujas
7 - Porto;
causas serão referidas mais adiante, associa-se ao de um espelhamento
distorcido do factor «urbanismo»: é excessivo o peso das testemunhas residen-
tes em aglomerados urbanos. É claro que estigmatizar uma personagem
seiscentista enquanto português de proveniência urbana ou de proveniência
64 A reconsrituição demográfica de Portugal continental no século XVlI depara com a
dificuldade de se não terem promovido censos populacionais na época: «entre a Corografia
rural não é uma operação linear; ela envolve a opção por conceitos como o
do padre Carvalho da Costa, dos princípios de Setecentos, e o numeramento quinhentista de número representativo de fogos, o de peso da actividade da lavoura e o de
de D. João 1II, de 1527-1532, há um vazio informativo quase completo»; Serrão, 1993: 50. peso das instituições públicas 66. Sem condições para definir aqui o que fosse,
A solução é, por conseguinte, o recurso aos dados do século anterior, apesar de o cresci- no século XVII, um aglomerado urbano português, submeto-me à autoridade
mento demográfico ter determinado que em 1700 houvesse talvez mais 700.000 habitantes de Orlando Ribeiro. O autor distinguiu, apoiado no limite dos 500 fogos e
do que em 1527-1532 (dois milhões e cem mil no final do século XVlI, perto de dois mi-
nos dados do numeramento de 1527-1532, as cidades e vilas portuguesas com
lhões em 1640 e um milhão e quatrocentos mil à data do numeramento, segundo Vitorino
Magalhães Godinho, 1975: 20-21).
perfil urbano das que o não tinham 67. Assim, considerei testemunhas de um
65 Cf. Dias, 1992: 449. O quadro apresentado por João José Alves Dias, se reduzido aglomerado urbano as que declaravam habitar em um destes 38 aglomerados:
à expressão percentual, configura-se desta maneira: Abrantes, Alcácer do Sal, Arraiolos, Arronches, Aveiro, Beja, Borba, Braga,
Campo Maior, Castelo de Vide, Coimbra, Elvas, Esrremoz, Évora, Faro,
1527-1532 Guimarães, Lagos, Leiria, Lisboa, Loulé, Monforte, Monsaraz, Montemor o
Ocupação Populacional dos Bispados de Portugal Continental Novo, Moura, Olivença, Portalegre, Portel, Portirnão, Porto, Santarém,
Sardoal, Serpa, Setúbal, Tavira, Tomar, Viana do Castelo, Vila do Conde e
Vila Viçosa.
Cruamente, mais de um terço dos que assinaram os depoimentos
seleccionados, e que residiam em Portugal continental, ocupavam um am-
biente urbano. Se se pensar na taxa de 18% de urbanismo que se atribui ao
continente tanto no século XVI como no século XVIII 68, está demasiado re-
66 Cf., para o século anterior, o raciocício exposto em Galego e Daveau, 1986: 33-36.
67 Cf. Ribeiro, 1975 (1964): 62.
68 Cf. Serrão, 1993' 6I-62, 67 (nota 13).
ro6 RITA MARQUILHAS A FACULDADE DAS LETRAS 107
presentada a população urbana. Mas este desequilíbrio do corpus diminui ignorar o ligeiro desencontro de fronteiras, a proporção entre densidade de
muito se se substituir a apresentação dos totais, pela das parcelas colhidas depoimentos seiscentistas do corpus e densidade populacional setecentista che-
nas diferentes colecções de fontes. O que está por detrás das 2061 testemu- ga a revelar-se inversa:
nhas das cidades e vilas urbanas do continente (41,7% de um total de 4968,
uma vez que se descontaram todos os residentes extra-continentais e os de
residência não-identificada) é a desproporção entre a realidade demográfica
Repartição geográfica das testemunhas e da população
seiscentisra e as áreas de implantação dos tribunais inquisitoriais, desde o
início orientados em Portugal para os alvos urbanos 69. O Santo Ofício Inquisição de: Coimbra Inquisições de Lisboa e Évora
actuava mais na área centro-meridional, onde tinha no século XVII dois tri- Percentagem I
bunais distritais (o de Lisboa e o de Évora); pelo numeramento de 1527-1532, de depoimentos Densidade Densidade Percentagem Densidade Densidade
(cadernos populacional populacional de depoimentos populacional populacional
nessa mesma área estava concentrada uma percentagem de 85% dos aglome-
do promotor) 1527-1532 1706 162I-I700 1527-1532 1706
rados urbanos continentais. Em contrapartida, a povoadíssima, mas 162I-I700
Refira-se agora a operação mais melindrosa: a da distribuição das teste- equivalência entre o exercicro de profissões liberais e de funções elevadas ao
munhas por categorias socioprofissionais. Escalonar uma sociedade do passado nível da administração, a distinção entre administração central e local são ope-
exige um grau de familiaridade com as relações hierárquicas dos seus elemen- rações de classificação às quais também têm de recorrer os autores que se
tos, e com seus códigos de ordenação, que de maneira nenhuma se atinge propõem lidar com a ordenação social portuguesa no Antigo Regime 73.
com a simples exploração das fontes inquisitoriais. Foi por isso necessário re- No entanto, não basta a adequação genérica daquelas categorias ao uni-
correr a construções socioprofissionais já preparadas para comunidades seme- verso social português para autorizar a sua adopção automática e acrítica.
lhantes à do C01'jJUS. Comecemos pelo trabalho de Rodríguez e Bennassar, onde Rodríguez e Bennassar lidaram com um leque social mais estreito do que o
se opta por sete categorias: que se encontra nos depoimentos inquisitoriais portugueses, uma vez que se
limitaram aos processos do tribunal de Toledo e da alta Andaluzia urbana
Proposta provisória de categorização socioprofissional (Córdova, Andújar, Ubeda e Iznatoraf). Ora esta limitação geográfica teve
(Rodríguez e Bennassar, 1978:21-23) repercussões ao nível das profissões representadas, havendo, por exemplo, tão
poucos marinheiros, pescadores e soldados que os mesmos foram agrupados I
I - clero e religiosos: i
na classe heterogénea que inclui também vagabundos, mendigos e indivíduos ,
!
considerados os letrados; mas de junto destes arredaram-se os médicos, os pro-
res), funções administrativas e comerciais elevadas (mercadores, banqueiros e seus
auxiliares, secretários, contabilistas, corretores); fessores e os advogados, aos quais foi atribuído um grau inferior, de cultores de
artes liberais. Neste grupo inferior, surgem irmanados com os procuradores e
4 ~ funções comerciaismen~res, artesãos, ofícios subalternos;
notários e com os altos funcionários do comércio e da administração, Ora,
5- lavradores c ofícios superiores exerci das em ambiente rural (dada a frequente acumu-
guiado pela letra da jurisprudência portuguesa seiscentista, António Manuel
lação. das duas funções);
Hespanha encontrou na actividade dos médicos, dos universitários e dos advo-
,6.:2pi()l~ta~i~daJrb~ae.ruf~l, {criados, )()á{aleitos,· braceiros,.aprendi'les);
gados a faculdade de nobilitar quem a exercia, Não nobilitadoras, à luz da mesma
7 - vagabundas, mendigas, actores, saldadas, marinheiros e diversas (profissões não. ex- doutrina, eram, pelo contrário, artes liberais como a dos bacharéis que não fos-
plicitadas) ,
sem advogados, a dos procuradores do número, a dos boticários, pintores, mú-
sicos, poetas, gramáticos e geómetras 74, Ficaria assim justificado um primeiro
reajustamento da categorização social proposta por Rodríguez e Bennassar, me- .
Trata-se de uma categorização cujas maiores vantagens advêm de não ser diante o qual, ao lado dos nobres, passassem a figurar as funções que nobilitavarn
demasiado minuciosa (quando se cede à excessiva fragmentação, obtêm-se gru- na sociedade do Antigo Regime. Médicos, universitários e advogados passariam,
pos pouco contrastivos) 72 e de não colidir, apesar de elaborada para comuni- também eles, a ser considerados letrados, donos de uma nobreza não herdada,
dades castelhanas e andaluzas, com a provável configuração da sociedade por- mas conquistada intelectualmente. Da mesma forma, os altos cargos palatinos 75
tuguesa seiscentista. Com efeito, o agrupamento de letrados e nobres, a conferiam aos seus titulares privilégios dignos da nobreza, razão pela qual estes
L- ~ _
A FACULDADE DAS LETRAS Il3
Il2
RITA MARQUILHAS
curado r do concelho, também exerce o ofício de cirurgião 79? Para fugir à cria-
também deveriam ascender na ripologia até- junto dos fidalgos. Mas ai ficaria com-
ção de uma categoria única para estes casos de ambiguidade social e funcional,
prometido o paralelismo entre este estudo sobre a alfabetização das testemunhas
solução que daria origem a uma unidade muito heterogénea, adoptou-se o cri-
portuguesas e aquele de Rodríguez e Bennassar sobre a alfabetização das testemu-
tério de eleger, no caso dos cargos ou das profissões sucessivas, a mais recente
nhas espanholas. Como solução de compromisso, que não desrespeitava os crité-
rios da nobilitaçâo portuguesa seiscentista, mas que também não inviabilizava a de entre elas. Quanto aos lavradores ou aos soldados que simultaneamente exer-
comparação com as percentagens de alfabetização espanhola, surgiu a de fundir ciam um ofício mecân.ico ou participavam no comércio, escolheu-se ° ofício ou
numa só categoria as que Rodríguez e Bennassar consideraram as classes 2 e 3, a actividade comercial como definidoras do seu perfil, por decorrerem de uma
arribas integradas por estados mais ou menos privilegiados. Desta forma ganhava especialização que a lavoura ou a participação ocasional na guerra não requeriam.
aceitabilidade a inclusão dos familiares do Santo Ofício junto dos nobres, equação Há ainda o caso dos familiares do Santo Ofício, que pertenciam a um
que à partida pareceria excessiva, dadas as muitas oscilações que houve, ao longo estado conquistado em função das categorias socioprofissional e étnico-religiosa.
da história da Inquisição, quanto ao tipo social que podia ser admitido como Como a sua promoção a familiares dos inquisidores lhes permitia um estatuto
familiar dos inquisidores 76; mas privilegiados, os familiares sempre o foram. fiscal e jurídico privilegiado, foi, como ficou dito, ignorada a sua proveniência
Em relação ao grupo heterogéneo em que Rodríguez e Bennassar arru- vil, e aceitou-se que acompanhassem testemunhas socialmente superiores.
maram os marginais, os funcionalmente nómadas (actores, soldados e mari- Outro obstáculo à classificação socioprofissional automática nasce da
nheiros) e os não identificados profissional ou socialmente, foi julgado prefe- heterogeneidade regional das fontes: pertencendo os livros de denúncias e ca-
rível, uma vez que há bastantes «exemplares» de testemunhas não idenrificadas dernos do promotor a diferentes tribunais distritais, eles foram lavrados em
no corpus português, reclassificar este grupo. Deslocaram-se os soldados para ambientes socioeconómicos diversos, e não é raro que às mesmas designações
junto dos trabalhadores não-qualificados, uma vez que ainda se não pode fa- de profissões meridionais e setentrionais correspondam conceitos diversos. Um
lar no século XVII de uma estrutura militar organizada, onde os soldados exemplo disto encontra-se na designação de lavrador, que no sul será um in-
ocupassem um ofício subalterno para o qual haviam sido treinados 77. Tam- divíduo ligado à exploração de uma herdade, enquanto no norte será o pro-
bém como trabalhadores não-qualificados foram julgados os pescadores. Já os prietário de um casal 80. Este" contraste lexical é nitidamente motivado pela
pilotos e mareantes passaram a acompanhar os mesteirais, por haver testemu- diferente ocupação da terra, que sempre se verificou nas duas regiões, e
nhos seiscentistas de uma equivalência social entre estes e outros ofícios mecâ- obriga-nos a conceber o lavrador do norte como uma personagem teorica-
nicos como os de ourives, pintor a óleo, violeiro, ensamblador e livreiro: des- mente menos abastada em comparação com o seu equivalente meridional 81.
tacavam-Se por poderem empunhar tochas nas procissões, pelo menos na da E há um último caso, de novo relacionável com a fluidez na ocupação
cidade do Porto 78. A camada maciça de testemunhas cuja identificação socio- de diferentes graus hierárquicos, agora motivada pela variável da idade. Os
profissional se não pôde apurar passou, assim, a constituir um grupo autóno- aprendizes (que Rodríguez e Bennassar classificam a par de criados e trabalha-
mo (de actores, não havia exemplos).
O leque de profissões e níveis sociais que se observa no corpus de testemu-
nhas portuguesas apresenta, de resto, problemas que Rodríguez e Bennassar se 79 ANTT, Inquisição de Évora, liv. 240, Cadernos do Promotor, fi. 194r (168r,
Mértola).
não propuseram resolver na amostra espanhola. Como o da fluidez com que
80 Cf. Rocha, 1994: 146-156, para a avaliação da riqueza dos lavradores num conce-
diferentes indivíduos ocupam graus sociais e exercem simultâneas ou sucessivas lho do Alenrejo interior na primeira metade de Oitocentos, e Brandão, 1994: 26-35, para a
actividades. Que fazer quando as testemunhas que se dizem lavradores decla- definição do conceito de casa! no Minho dos séculos XVIII e XIX. Para a região de Lisboa,
ram, ao mesmo tempo, dedicar-se ao comércio, à guerra ou a um ofício mecâ- Alvaro Ferreira da Silva considera que o lavrador é, nos séculos À'VIII e XIX, o rendeiro de
nico (alfaiate é o mais frequente)? Que fazer quando um homem nobre, pro- um casal; cf. Silva, 1993: 75.
8, Segundo dados já do século XIX, a posse efectiva da terra no sul de Portugal, em
termos percemuais sobre a totalidade da população, seria duas vezes inferior à do norte
litoral e três vezes inferior à do norte inrerior. Enquanto isso, a dimensão média da proprie-
76 Cf. Bethencourt, 1994 (1992): 125-13°.
dade rondaria, por 1865, os 8 hectares no norte litoral, 20 hectares no norte inrerior, 28 no
77 Cf. Hespanha, 1994 (1989): 188-192, 218, 224· centro, mas 102 no sul - cf. Feijó, 1992: 59.
78 Cf. Silva, 1988: 310.
II4 RlTA MARQUILHAS A FACULDADE DAS LETRAS II5
dores) são-no por motivo da sua menoridade, e podem ter preparação cultu- Esta divisão do grosso das testemunhas em grupos socioprofissionais
ral idêntica à dos mestres, cujos ofícios estão em fase de aprender. Ainda as- abrangeu não só os homens que declaravam ter determinada qualidade ou
sim, para evitar desnecessárias divergências entre os dados portugueses e espa- determinada profissão, mas também as mulheres ou filhos que especifica-
nhóis, mantiveram-se os aprendizes na categoria do «proletariado». vam o lugar socioprofissional do marido ou pai. Cada uma das sucessivas
Eis os sucessivos grupos em que, quanto à variável socioprofissional, se classes inclui, assim, o efectivo ocupante de um nível socioprofissional e
integraram as testemunhas que assinaram depoimentos em livros de denúncias os parentes que tenham sido identificados pela relação que com ele man-
e cadernos do promotor da Inquisição portuguesa no século XVII: tinham.
Falta referir a forma como foi tratada a variável assinatura. Rodríguez
Proposta definitiva de categorização socioprofissional
e Bennassar, como no caso da documentação relativa ao tribunal de
1- clero e religiosos 82; Toledo tinham acesso à informação de que alguns réus dos processos sa-
biam ler e escrever, agregaram a este grupo quem assinava bem (presume-se
iij!v1f~l~~i~~~iiri!ãf~rr~~~1l~iI
3- funções comerciais menores, rnesteirais 84, pilotos, rnareantes, ofícios subalternos 85;
que com assinatura caligráfica ou cursiva) - classe A. Distinguiram, de-
pois, quem simplesmente assinava (terá de deduzir-se que estavam em cau-
sa assinaturas legíveis) - classe B -, de quem assinava mal, quem «ape-
nas conseguia traçar algumas letras mal desenhadas para escrever o seu
nome» - classe C89. Integraram, finalmente, na classe D os réus que con-
4'~i~vradoie;' e proprietários (os-que c1iélaiavam «viver de ,sua fu~n;ái,;).86,:gé~te: n6bre
< .: ···(~dagov~;nápça~·,fidadi~~.8í\6lf~iossuperi~r~:da admi~istra'~ã~:1?cal,88; ::.':;" ••. fessavam não saber ler nem escrever e os que não assinavam. Já na do-
cumentação do tribunal andaluz, apenas puderam distinguir entre quem
5- criados, jornaleiros, braceiros, aprendizes, soldados, trabalhadores do campo, pesca-
sabia e não sabia assinar.
dores, escravos e mendigos;
Está fora de questão a adopção automática desta classificação para
6--;ç)ass~)Ócia1b~ ,pJofis;ã6nãdespe~ific~~ .:
os dados portugueses. Isto porque se anunciou que se lidava neste traba-
lho com um conceito de alfabetização que coincidia com a capacidade para
82 O grupo é heterogéneo, mas todos sabiam assinar bem, a não ser que fossem assinar. A partir desse conceito de alfabetização, tornar-se-ia pouco coe-
idosos, doentes ou algumas religiosas conversas. Estão aqui incluídos todos os indivíduos rente estigmatizar assinaturas mal executadas: se basta um indivíduo ter
que fossem, ou que tivessem sido, do clero: um ex-fradc, por qualquer razão expulso da conseguido assinar um documento que lhe foi apresentado para se con-
sua ordem, mantinha o nível cultural que a sua antiga preparação havia criado.
cluir que participou no mundo pragmático da escrita, então é irrelevante
8J Na identificação destes oficiais superiores seguiu-se a «arqueologia do poder>' cons-
truída por Anrónio Manuel Hespanha quando descreveu a composição político-administra- o grau superior ou rudimentar da execução gráfica da assinatura. Mesmo
tiva da sociedade portuguesa seiscentista; cf. id., 1994 (1989): 160-260. que ele apenas soubesse assinar, cumpria a exigência mínima para contar
84 Ao lado dos mesteirais, foram incluídos os ermirãos, por ser várias vezes especifi- como alfabetizado na comunidade que ocupava porque, exactamente, não
cado tratar-se de idosos que em tempos exerceram um ofício mecânico.
85 Também aqui se classificaram como oficiais subalternos, ou executivos, os que
desenhava um sinal não-alfabético, nem pedia ao notário que assinasse
Hespanha identificou como tal, com excepçâo dos escrivães e rabeliães da administração por ele. Como foi possível fundir as classes A, B e C do estudo de
local, que eram frequentemente nobres e se incluíram, por conseguinte, no grupo 4; cf id., Rodríguez. e Bennassar consagrado às assinaturas dos processos de Toledo
1994 (1989):160-260. numa única classe J, correspondente aliás à primeira dos processos
86 «Fazenda» tem, nesta expressão, o sentido de «exploração de um prédio rústico»;
cf Monteiro, 1985: 61. andaluzes, e opor-lhe apenas a classe D e a segunda dos tribunais
87 Sobre alguma sobreposição semântica entre «nobre» e «cidadão», cf. Silva, 1988: andaluzes, classe JI, então as testemunhas dos documentos inquisitoriais
290-306.
88 Seguiu-se, mais uma vez, Hespanha, 1994 (1989): 161-192; quanto aos oficiais mi-
litares, que Hespanha não diferencia em superiores e subalternos, foram considerados supe-
riores os que podiam acumular cargos da governança, ou seja, os capitães, os alferes, os
tenentes e os sargentos-mores. 89 Rodríguez e Bennassar, 1978: 23-
II6 RITA MARQUILHAS A FACULDADEDAS LETRAS 1I7
portugueses puderam ser, também elas, classificadas conforme sabiam ou De resto, são variados os indícios de que não era indiferente o sexo dê.
não sabiam assinar 9°: testemunha e o ritual da assinatura do seu depoimento. Por exemplo: não é
raro encontrarem-se, tratando-se de testemunhas masculinas, desenhos de no-
Classificação binária das assinaturas mes penosamente executados; já quando testemunhavam mulheres, uma ma-
nifesta dificuldade gráfica permitia até que o esforço fosse interrompido e a
I- assinatura alfabética, hábil ou inábil; testemunha impedida de acabar a assinatura autógrafa. Foi o que aconteceu à
II - assinatura não-alfabética (cruz ou outro sinal, normalmente remissivo de uma profis-
denunciante Maria Gualter, mulher de um tratante em carvão, que tentou
são) e delegação na capacidade do notário para assinar.
desenhar um <g>, um <a> e um <t> no final do texto da denúncia, mas que
depois foi substituída pelo notário, o qual não deixou de registar a atitude
pretensiosa da sua representada: por não saber assinar sem embargo de ter dito
Apesar de relativamente aos documentos espanhóis se não referir a possibi- que sabia, assiney eu notaria por ella 94.
lidade de delegação das testemunhas no notário, é quase sistemático, quando se Uma vez explicitada a desagregação categorial a que se submeteram os
trata dos depoimentos inquisitoriais portugueses, o diferente tratamento que ti- elementos do corpus, pode agora passar-se à apresentação dos resultados nu-
nham as testemunhas femininas e masculinas: pelas mulheres que não sabiam méricos obtidos para as categorias de indivíduos que sabiam e não sabiam
escrever, assinava o notário; os homens faziam, pelo seu punho, uma assinatura assinar.
não-alfabética 91• Os comissários do Santo Ofício recebiam, incluída no texto
das comissões feitas pelos inquisidores, a incumbência de fazer respeitar este ri-
tual signatário: Estas perguntas fora V M. cada húa das testemunhas as quais no 4. Níveis de alfabetização
principio de seus testemunhos dirão de suas idades e quallidades, e no fim ao costume
e cauzas delle, e não sabendo alguma das testemunhas assinar, assinara por ella a seu Os números, em bruto, fazem-nos saber que, observada uma amostra de
rogo o escrivão desta deligencia, sendo mulheres A norma era certamente consu-
92•
5279 depoimentos prestados à Inquisição portuguesa durante o século XVII, se
etudinária, e herdada dos procedimentos civis, porque mesmo em fontes não depara. com uma percentagem de 60,r% de assinaturas alfabéticas: 67,7% na
judiciais ou inquisitoriais se reencontra este hábito: nas fontes municipais de Inquisição de Lisboa, 59,2% na de Évora e 52,6% na de Coimbra. Bem en-
Francisco Ribeiro da Silva não há qualquer mulher que faça sinal não-alfabético, rendido (as limitações do corpus em termos de represenratividade ficaram su-
assinando sempre alguém a seu rogo sendo ela analfabeta, e são raros os ho- blinhadas), não se está aqui a apregoar uma taxa de alfabetização de 60%
mens (Ribeiro da Silva acha que serão só os deficientes) que, em vez de escre- para o Portugal de Seiscentos. Mas mesmo mirigada a crueza das percenta-
verem um sinal ou uma assinatura, também rogam que por eles se assine 93. gens globais, mesmo relativizados os números portugueses em função dos de
outros reinos, mantém-se a impressão de um resultado muito alto. ,
I
:1
9° Foi também a uma fusão deste tipo que procedeu Claude Larquié para comparar ·1
4·1. Repartição por sexo J
os seus números madrilenos de 1650 com os de Rodríguez e Bennassar; cf. id., 1980: 231.
91
Há algumas excepções, mas sempre em relação às testemunhas masculinas, por :1
quem chega a assinar o notário. Não há mulheres a assinar só de cruz porque, mesmo que De todas as variáveis consideradas, a do sexo é a que atinge maior efeito i~
a façam, acompanha-a a assinatura do notário. perturbador. Apesar de as mulheres estarem mal representadas na fonte explo- I
9' ANTT, Inquisição de Évora, liv. 233, Cadernos do Promotor, fls. 75r-77r (1674, rada (só cerca de 26% das testemunhas pertencem ao sexo feminino), é bem
comissão feita ao vigário geral de Torre 'de Moncorvo). . visível o quanto importava ser homem na aquisição da capacidade para assi-
93 Cf. Silva, 1986: 113-114. Para épocas posteriores, a tradição mantém-se viva, pelo
menos em relação aos registos paroquiais: «Não encontrei ainda nenhuma situação, para o
p rlodo em estudo, genericamente os séculos XVIII e XIX, em que a mulher firme «de cruz»
ou por qualquer Outro sinal" - Magalhães, 1994: 317. 94 ANTT. Inquisição de Lisboa, liv. 244, Cadernos do Promotor, f!. IIr (1662, Lisboa).
Il8 RITA MARQUILHAS A FACULDADE DAS LETRAS II9
nar documentos. Esta é uma situação pan-europeia no Antigo Regime 95, e 4.2. Repartição etária
não havia por que ser diferente em Portugal. A raiz desta constante estava na
própria educação feminina, que não incluía, à partida, a transmissão da capa- Numa época em que a esperança de vida dos homens rondava os 30
cidade da escrita: Rafael Bluteau dizia no Vocabulario Portuguez, e Latino que anos 97, deparamos com uma amostra de população «idosa», uma vez que
o conceito de Mestra era o de Mulher que ensina meninas a ler, cozer, etc., sem 3/4 das personagens tinham idade superior a essa média. Esta limitação da
referência explícita ao ensino da escrita; e, com efeito, entre as mulheres que fonte nada tem de misterioso, uma vez que estam os a lidar com assinaturas
prestam depoimento ao Santo Ofício português figura mesmo uma mestra de de depoimentos judiciais, e tem de se contar com uma certa maturidade
meninas que não assina no final, por não saber escrever96. por parte de quem se julgava (ou era julgado) capaz de articular um dis-
curso testemunhal.
Capacidade masculina e feminina para assinar
Capacidade para assinar em função da idade
Homens Mulheres
I-Homens
Inq. Inq. Inq. Inq. Inq. Inq.
Coimbra Lisboa Évora Coimbra Lisboa Évora
Homens menores de 30 anos Homens maiores de 30 anos Idade ignorada
--:-T
Assinatura alfabética ...... 916/1258 1223/1430 904fu90 22/523 821495 28/383 lnq. I Inq. Inq. Inq. Inq. Inq. Coirnbra,
Coirnbra Lisboa Évo~a Coimbra Lisboa Évora Lisboa, .t.vora
(72,8%) (85,5%) (75,9%) (4,2%) (16,5%) (7,3%)
freiras que não conseguiam assinar (5, num total de 18). As mulheres explici-
tamente adjectivadas de «nobres», ou intituladas de «donas», também revela-
Assinatura alfabética 5/126 29h57 rolI09 9/302 49/324 171254 -
(4,0%) (19,3%) (9,3%) (3,0%) (15,6%) (6,8%)
ram, ao testemunhar na Inquisição, uma boa aptidão para assinar (de um
total de 26, 14 assinaram o depoimento). (U,2%)
Totais por idade ... 44/392 75/880 (3,5%) 129
I
Os resultados masculinos são quase simétricos dos femininos, rio sentido No entanto, perante o caso específico das testemunhas da Inquisição
em que, com a idade, a capacidade para assinar das mulheres desce numa portuguesa, não é demasiado acentuado o contraste entre os iletrados rurais,
média de 2,7 pontos percentuais e a dos homens sobe em 2,9 pontos. É um que rondavam os 50% (mas com números mais baixos na área de jurisdição
indício possível de progressão da alfabetização feminina, acompanhado de um do tribunal de Lisboa) e os urbanos, à volta de, 35%.
decréscimo da masculina, se bem que se não exclua uma segunda leitura: as A razão de não ser gritante o contraste cidade/campo está certamente asso-
mulheres mais velhas, e não os homens, podiam, por falta de estímulo, perder ciada à amplitude cronológica e geográfica do co/pus. Se ele contivesse dados
uma aptidão de escrita consegui da na juventude 98. relativos a um só .a.J10,· um punhado de lugares isolados e umas poucas cidades
prósperas; obter-se-iam diferenças acentuadas. Mas contando com quase todo o
espaço continental do reino e todo o tempo do século XVII, há lugar para a
4.3. Repartição geo-humana
correcção automática de abismos que, de resto, pecariam por ilusórios.
A desagregação dos dados em função dos espaços urbano e rural permi-
Por toda a Europa do Antigo Regime cujos níveis de alfabetização têm te, contudo, que ganhe relevo a variável «sexo». Sobressaem as assinaturas al-
sido estudados, as variáveis geográficas têm-se revelado determinantes na avalia- fabéticas apostas pelas mulheres na área do tribunal que inclui a corte, mais
ção da capacidade dos indivíduos, os homens sobretudo, para assinar do- de 14 pontos percentuais acima das testemunhas femininas das cidades e vilas
cumentos 99. Não se trata, é claro, de uma questão topográfica, mas antes da urbanas do sul e do norte. Sobressaem os homens dos aglomerados urbanos
associação entre a variável urbanismo e as variáveis do desenvolvimento cultural. da jurisdição do tribunal de Coimbra, que excepcionalmente ultrapassam os
Nas cidades concentravam-se os serviços administrativos, credores do domí- resultados do tribunal de Lisboa. Já com a soma dos dados masculinos e fe-
nio da escrita, havia maior oferta de ensino e maior produção tipográfica, nelas mininos, recupera-se a imagem [armada a partir da leitura dos quadros ante-
morava mais gente abastada e eram necessários mais clérigos para as suas múl- riores: a de uma sistemática superioridade das testemunhas que depuseram
tiplas igrejas, tudo condições fomentadoras de níveis elevados de alfabetização 100. frente ao tribunal de Lisboa, e de um comportamento pior, mas aqui relativa-
mente equilibrado, das testemunhas do norte e do sul.
Capacidade para assinar em função da geografia humana
I
Aglomerado urbano (continente) Espaço rural (continente) Convento Div. *" 4.4. Repartição socioprofissional
\
Coimbra, Coirnbra,
lng. lng. lng. lng. Inq, Ing.
Coimbra Lisboa Évora Coimbra Lisboa Évora
Lisboa, Lisboa, Os dados do corpus dos depoimentos inquisitoriais portugueses do século
Évora Évora
XVII apresentam, em relação à categorização socioprofissional, um obstáculo
Assinaturas 181/289 615/905 546/867 7021r433 350/630 316/631 205/213 - que exige ponderação, e que é o de 25% dos depoimentos não conterem a
alfabéticas. (62,6%) (6709%) (62,9%) (48,9%) (55,5%) (50,0%) (96,2%) identificação sociológica de quem o pronunciou. Os Inquisidores portugueses,
H 91,1% H 89,3% H 80,8% H 67,9% H 74,1% H 66,5% H 98,{% quando passavam uma comissão para que fossem interrogadas testemunhas na
M 6,1% M 20,8% M 6,6% M 3,5% I M 7>9% M 3,6% 1M 72,2% periferia dos tribunais, tinham de sujeitar-se ao zelo com que cada notário ad
t hoc (normalmente um clérigo da freguesia a que pertencia o comissário) iden-
Totais ... 134212061 (65,1%) 136812694 (50,7')'0) 96,2% 3II tificava os citados que depunham. Como o texto judicial destas comissões
* Ilhas. Brasil, África, Espanha e suas possessões, casos de residência não declarada. vinha depois integrar os cadernos do promotor, vai avolurnar-se o número de
depoimentos sem testemunhas exaustivamente descritas, sobretudo no tribu-
nal com a periferia mais lata - o de Coimbra.
9
8
Cf. Rodríguez e Bennassar, 1978: 26. Do ponto de vista da representatividade social da amostra, esta deficiên-
99 Cf., por todos, Houston, 1988: 137-145. cia não parece contudo ter séria gravidade. Se nada era dito sobre uma teste-
100 Cf. id ibid.: 141-Qj. munha para além do seu nome, idade e local de residência, parece legítimo
• .... ·1
,
que não houvesse menção do hábito envergado, qualquer testemunha eclesiás- '2i561i68 ".'314/317:. ,i]rFi7IY,'
tica tinha direito ao título de "padre», "frei » , "madre» ou «soror». E o mesmo . <.' '(9~(I.%)'::.(9Q"8gíoY;;( ··.~iooo/<i):..,
vale para os títulos de "dom» e "dona», merecidos pelos nobres, ou ainda para 1511r61
2. Nobres, cidadãos, criados dê grandes famí- 1331r52 312/338
outros pergaminhos, como os de quem ocupava cargos honoríficos. Estes 25% lias, letrados, estudantes, profissões liberais, (87,5%) (92,3%) (93,7'!ú)
de incógnitos terão saído daquelas camadas sociais que não suscitavam defe- ofícios elevados da administração central,
rência por parte de quem lhes escutava o testemunho, facto que em vez de senhorial, corporativa e periférica da coroa,
estigmatizar a amostra como selectiva lhe confere solidez representativa 101. Será mercadores, familiares do Santo Ofício.
esta certamente a causa de as taxas de assinaturas do grupo dos socialmente
anónimos os colocarem em quinto lugar na escala dos alfabetizados, atrás do
~3
•
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clero, dos nobres, dos mesteirais, dos lavradores e apenas à frente dos positi- 4. Lavradores, os que vivem de sua fazenda, 165/341 1431210 1831277
vamente discriminados como humildes. ofícios elevados da adrninis- (48,3%) (68,0%) (66,0%)
Antes da apresentação do quadro socioprofissional das assinaturas alfabé-
ticas, devo recordar ainda que os números nele contidos remetem não só para
os efectivos profissionais e para os detentores de cargos e títulos, como tam-
bém para os seus parentes.
Na Inquisição de Lisboa foram arquivados depoimentos de testemunhas 6. Classe social ou profissão não especificadas 235/689 941290
(34,1%) (5404%) (32,,4%)
que pertenciam sobretudo ao grupo dos mesteirais, pequenos comerciantes e
ofícios subalternos (453 testemunhas), seguindo-se o grupo dos não-identificados __ .'.········f~tdl.<.i~
.F::)(~ii5t~1:7Q\(Q~;I(Vof;;~>·,.",i•.·.'·
~..~':':::"':::'::::'::":~.:....:.2.~~~-:--"-"-----"-'--
(347). O grupo integrado por nobres, letrados, profissões liberais, ofícios eleva-
dos da administração não-local e familiares é o terceiro (338 testemunhas) e o
do clero e religiosos segue-o de perto (317). Menos numerosos são os depoimen- dos, profissões liberais, ofícios elevados da administração ~ão-local e fam~liares
tos prestados por criados, soldados, aprendizes, trabalhadores (da terra e do mar) do Santo Ofício (152). Abaixo da centena estão os depoimentos dos cnados,
e escravos (260) e, por outro lado, por lavradores, proprietários e gente da soldados e outros servidores (89). O superior ruralismo da população coberta
governança (210). O facto de a maioria dos testemunhos arquivados por esta pela jurisdição do tribunal de Coimbra está na base da escass::z.de testemunh~
Inquisição provir de classes urbanas explica a insignificância relativa dos lavra- pertencentes a profissões urbanas (domésticos, escra:os, mesteirais) e do excessi-
dores e altos oficiais locais e, ao mesmo tempo, o peso significativo dos rnesteres vo peso dos lavradores. Estes não tinham, economicamente, o estatuto do~ la-
e do pequeno comércio. Precisamente o contrário do que se passa na Inquisição vradores a que respeitam os tribunais do centro-sul, facto que transparec~ Ime-
de Coimbra, onde o grupo 4 (lavradores, pequena nobreza e altos oficiais locais) diatamente na sua capacidade para assinar, inferior a 50%. Houves~em emigrado
I
é, a seguir ao dos de profissão não-especificada (certamente integrado por mui- para sul, passariam muitos destes lavradores para o g~upo dos cn~dos e traba~
tos indivíduos ocupados em lavrar a terra e suas mulheres), o mais importante: lhadores: na verdade, muitos dos seus filhos e filhas sao surpreendidos a depor
, . d ,. 102
grupo 4 (341 depoimentos), grupo 6 (689 depoimentos). Na Inquisição de junto da Inquisição de Lisboa, onde alegam ocupar-se no serviço omesnco .
Coimbra seguem-se, por ordem de importância, o grupo eclesiástico (268), o
dos mesteres, pequeno comércio e pequenos ofícios (242) e o dos nobres, letra-
IOZ Retenha-se o contraste com os lavradores de uma comunidade mais. meridi~nal,
já estudada quanto à articulação entre família, propriedade e trabalho no Antigo ~eglme.
No concelho de Oeiras, Álvaro Ferreira da Silva encontrou, entre 1738 e 18u, "dOIS siste-
101 Sobre profissões indiscriminadas equivalerem certamente (em documentos fiscais
- izaçâo dos g-upc,s
mas d e O.Lganlz r
domésticos consoante o seu chefe de família [fosse] lavrador
dos séculos XVI-XVII) a categorias sociais mais baixas, cf. Oliveira, 1971, vol. I: 350. t >
A FACULDADE DAS LETRAS 125
124 RlTA Mp.RQUILHAS
Clero e religiosos que depuseram perante a Inquisição Capacidade masculina e feminina para assinar
ao longo do, século XVII (perspectiva diacrónica)
106 Cf id., ibid.:34, havendo-se somado as categorias de assinatura superior (A), mé-
!O) Cf Rodríguez e Bennassar, 1978. dia (B) e inferior (e).
'°4 Cf id., ibid.: 25. '°7 Para uma reflexão sobre a forçosa importância de uma capital (ibérica) nas taxas
'°5 Cf id., ibid.: 2), 32, 37, 39. de alfabetização dos SéUS habitantes, cf. Larquié, 1980: 230.
'30 R1TA MARQUILHAS A FACULDADE DAS LETRAS '31
casos (contra os 12,1% das toledanas), em ambiente rural, temos junto da Inqui- Deparamos com taxas de assinaturas alfabéticas quase sistematicamente
sição de Évora um nível de 46,8% de assinaturas alfabéticas masculinas e 1,2% mais baixas na Inquisição de Toledo, comparadas com as oferecidas- pela
de femininas (em Toledo, os números eram, respectivamente, de 55,7% e 0%). Inquisição portuguesa. E essa divergência acentua-se mesmo nos níveis infe-
riores da escala social: se nas categorias I e 2 há um desequilíbrio menor, de
poucas unidades, estando até as testemunhas do nível 2 do tribunal de
c) Repartição socioprofissional Coimbra um pouco abaixo das toledanas, já à escala dos pequenos ofícios
públicos, dos ofícios mecânicos e do pequeno comércio as testemunhas de
Ao contrano do que acontece com a amostra portuguesa, a espanhola Toledo estão abaixo das portuguesas numa medida que vai de II a 18 unida-
não apresenta o problema de não estar socialmente identificada uma larga des percentuais. No estrato dos servidores rurais, mecânicos e domésticos há
fatia de testemunhas consideradas. Ao lidarem com informação colhida em também, contra os 12,5% de alfabetizados toledanos, 15,7% (Coirnbra), 21,6%
processos, elaborados por notários efectivos da Inquisição, Rodríguez e (Évora) e mesmo 30,iVo (Lisboa) de alfabetizados portugueses. O facto não
Bennassar pouco se tiveram de preocupar com os raros casos de anonimato suscita estranheza porque os servidores masculinos, sobretudo os domésticos,
sociológico. tinham o seu nível de alfabetização solidamente articulado com o dos respec-
Por uma questão de clareza, antes de proceder ao comentário contrastivo tivos amos, e qualquer inflação de assinaturas nos níveis sociais superiores se
dos dados toledanos, incluo a respectiva tabela: reflectiria naqueles que lhes estavam fisicamente próximos (mais de metade
das testemunhas masculinas inequivocamente identificadas na fonte portugue-
sa como «criados», com exclusão até dos criados de famílias ilustres, sabem
Inquisição de Toledo (1625-1817)
assinar - num total de 62, 36 assinam).
Assinaturas dos grupos socioprofissionais, segundo Marie-Christine Rodríguez A razão para esta divergência de resultados, favorável a uma teórica supe-
e Bartolomé Bennassar
rioridade da alfabetização portuguesa, não é muito aparente. Talvez se deva à
Categoria socioprofissional Capacidade para assinar grande percentagem de dados quinhentistas que integra a amostra toledana
(57,6% do corpus total, que se estende, aliás, de 1525 a 1817); ou talvez se trate
I. Clero e religiosos 98,5%
de uma questão geográfica e seja necessário proceder a outros contrastes ibé-
2. Nobres, letrados, criados de grandes famílias, familiares do 89,0% /08 i'
ricos em busca de taxas de alfabetização espanholas mais meridionais e com "
Santo Ofício, profissões liberais, ofícios elevados da admi-
maior peso de urbanismo. Estão disponíveis os dados relativos à Inquisição de "I'
nistração e do comércio. 1
Córdova, colhidos em assinaturas de depoimentos feitos entre 1595 e 1632 em
3. Pequeno comércio, mesteirais, ofícios s~balternos
quatro cidades da Andaluzia interior, também analisados por Rodrígucz e
i
4. Lavradores, ofícios elevados da administração local Bennassar /09. O problema está em se tratar de uma amostra pequena (468
5. Cfia<:los,jbriíal~iiôs, testemunhos), onde figuram poucas mulheres (13,7%). Mas os números rela-
'éScfâvos~··'· .. .... .
tivos aproximam-se já bastante dos portugueses: assinam 45 em 46 membros
6. Diversos (classe exígua, representando 2,75% do total, e do clero, 52 em 60 nobres, letrados e familiares, 62 em 72 titulares de altos II
«dernasido heterogénea para ser significativa,,). ofícios, profissões liberais e grandes comerciantes. Ao nível dos pequenos ofi-
ciais, pequenos comerciantes e mesteirais, metade das 83 testemunhas assinam
~,
(42 assinaturas) e entre os 21 lavradores e seus assimilados, também há meta-
de (rr) com capacidade para assinar. Já dos 45 servidores que testemunham,
j~
)",
'08 Uma vez que Rodríguez e Bennassar distribuíram a élite laica por dois estratos
apenas 7 assinam. Por esta amostra, Rodríguez e Bennassar são levados a con- I
"
socioprofissionais, um deles constituído apenas por nobres, letrados e assimilados, e outro
pelas profissões liberais, pelos altos ofícios e pelo grande comércio, teve de achar-se a média
entre as percentagens de assinaturas de cada um (85,5% de assinaturas alfabéticas para o
primeiro caso e 92,6% para o segundo). 109 Rodríguez e Bennassar, 1978: 39-40.
132 RITA MARQUILHAS A FACULDADE DAS LETRAS 133
cluir que pelo menos 50% da população masculina das cidades andaluzas na Contudo, uma comparação ao nível da estratificação social entre os da-
primeira metade do século XVII saberia, tal como em França e Inglaterra, ler dos inquisitoriais portugueses e dados ingleses da mesma época, colhidos numa
e escrever; haveria «uma unidade fundamental na Europa ocidental por essa fonte também ela judicial (depoimentos prestados ao tribunal eclesiástico na
época» 110, apesar de o analfabetismo feminino espanhol dever ser mais grave. diocese de Norwich entre I580 e 1700) 1I3, revela considerável equilíbrio de
O contraste com os resultados de Toledo estaria no urbanismo dos dados taxas de alfabetização. A classificação socioprofissional a que Oavid Cressy
andaluzes e no arranque que as cidades meridionais proragonizavarn na altura, sujeitou o seu corpus é diferente daquela aqui adoptada, o que impede a com-
com um importante ensino jesuítico, ao contrário das cidades castelhanas que, paração desavisada das tabelas portuguesa e inglesa. O facto de as mulheres
exceptuando Madrid, estariam em plena decadência llI. de Norwich estarem segregadas das outras categorias, e de as portuguesas
O raciocínio de Rodríguez e Bennassar parece ser o de eleger os estratos acompanharem os maridos e os pais na profissão ou no estado social a que
sociais medianos (mesteirais e lavradores, abaixo do privilégio, acima da servi- eles pertenciam, contribui para inflacionar as percentagens inglesas nos dife-
dão) e de intuir, a partir da sua capacidade para assinar, o nível de alfabetiza- rentes escalões socioprofissionais, que são, por conseguinte, grupos exclusiva-
ção da comunidade masculina da época. É uma operação arriscada, sobretudo mente masculinos. Mesmo assim, só ao nível da nobreza é que o fosso entre
quando se ignora, como é o caso português, qual o verdadeiro significado os dados de Norwich e os das três Inquisições portuguesas é maior. Em rela-
demográfico destes estratos. Também parece imprudente embarcar numa aven- ção aos outros estratos, a conclusão geral é a de que, no século XVII, a popu-
tura de generalização à escala da sociedade quando se usa uma fonte sem a lação abrangi da pela Inquisição de Coimbra estava menos capaz de assinar
universalidade do censo. Nos documentos afloram os denunciantes e os cita- que a de Norwich, a de Lisboa estava mais capaz e a de Évora (pondo de
dos pelo tribunal do Santo Ofício; nada nos autoriza a promover esta amos- lado as mulheres que, recorde-se, não assinavam em 92,6% dos casos) atingia
tra de testemunhas judiciais a delegação proporcionalmente idêntica à com- um nível quase idêntico ao inglês.
posição social da época. Fiquemo-nos pois pela parcelar observação de que, Ao lado das campanhas protestantes de alfabetização e do dinamismo econá-
considerado um mesmo universo documental, há grande proximidade entre mico, parece pois ter havido factores alternativos que explicam o reduzido anal-
os níveis de alfabetização das classes socioprofissionais portuguesas, tanto da
cidade como do campo, e as dos ambientes urbanos, culturalmente florescen- Analfabetismo dos grupos socioprofissionais da diocese de Norwich (1580-1700),
tes, do sul de Espanha. segundo David Cressy 114
110 Cf. id., ibid.: 41. li) Norwich correspondia a uma diocese rural, mas era, possivelmente, uma das zonas
lU Cf. id., ibid.: 39 inglesas com melhor nível de instrução; cf. id., 1986 (1977): 152.
112 Cressy, 1980: 179, 18I. "4 Id., ibid.: !50.
RITA MARQUILHAS
A FACULDADE DAS LETRAS 135
134
fabetismo nas comunidades do Antigo Regime. Mas não é a partir de uma aumento de alfabetização da sociedade, já o mesmo se não poderá dizer do
avaliação quantitativa como a que se desenrola acima que esses factores se protagonismo alcançado pelo grupo dos pastores de almas. Para o exemplo
podem identificar; ela apenas permite afirmar que, ao interrogar-se a capa- português, António Nóvoa também contou com o factor do protagonisrno
cidade dos portugueses para assinar depoimentos inquisitoriais durante o sé- eclesiástico ao referir o ensino em Portugal) a partir da segunda metade do
culo XVII, se registaram níveis de desempenho surpreendentemente altos, ape- século XVI, e durante o século seguinte, como uma missão de objectivos
sar de algumas desigualdades que prejudicavam sobretudo o norte do reino e dogmáticos:
as mulheres e beneficiavam a zona da corte. No quadro da acção contra-reformista, a Igreja, depois de ter definido o
Para se chegar às estruturas que terão gerado estes resultados portugue- tempo e o lugar apropriados para o ensino, vai ser rigorosa na vigilância
ses, é preciso largar testemunhos manuscritos, como são as assinaturas, e abor- dos agentes e das práticas pedagógicas. As autoridades eclesiásticas por um
dar o estado do ensino das primeiras letras. lado, e as congregações por outro, vão beneficiar do assentimento real
para transformar o ensino num meio contra todas as formas de heresia lI6.
6. Aspectos rridentinos do ensino das primeiras letras Desenha-se assim a hipótese de um clero omnipresente, cada vez mais
numeroso e melhor preparado, mandatado para catequisar e controlado nessa
Ao especular sobre a hipótese de uma boa alfabetização espanhola duran- missão, ter constituído um «corpo docente» eficaz na utilização da carrinha
te a época moderna, paralela à francesa e à inglesa, Bartolomé Bennassar su- para a difusão do dogma católico e, de caminho, para.a das primeiras letras.
i geriu três causas: Confirmada esta hipótese, a empresa ortodoxa da Contra-Reforma ter-se-ia
saldado numa campanha de alfabetização que, pelo menos ao nível da capaci-
A vontade cedo manifestada pela autoridade política e religiosa de ensinar
dade para assinar, havia gerado resultados positivos.
o povo a ler e a escrever e assim melhor o instruir em matéria de reiigião.
Para tal, seria necessário provar que na era pós-tridentina o ensino da
fixa dos clérigos e no controle hierárquico. Que a aprendizagem da leitura e escrita devia ser acompanhada da ini-
o papel essencial dos «letrados» nos séculos XVI e XVII como meio de ciação ao catolicismo, isso está claro na legislação eclesiástica, se bem que
promoção social num país que, apesar de uma importante regressão no só na seiscentista. As constituições do século XVI, posteriores a 1564 (data
século XVU, foi em grande parte por eles governado e administrado lIS. da promulgação em Portugal dos decretos e cânones de Trento), não in-
'I cluíam esse preceito: mas na época já circulavam carrinhas cujos textos de
I Reformulando a interpretação deste autor, a alfabetização espanhola na iniciação à leitura eram sempre de natureza dogmática 117. Foi nas constitui-
i
Idade Moderna terá ultrapassado o nível geral de desenvolvimento da popula- ções do século XVII que passou a recomendar-se insistentemente aos agentes
ção do reino porque o grupo dos letrados engrossou rapidamente e o grupo de ensino, os seculares sobretudo, que tivessem um empenho paralelo na
dos padres foi incumbido (e vigiado nessa incumbência) de uma doutrinação formação cristã dos discípulos e que dessem uma orientação moralizante à
entendida
interiorização
em sentido lato, incluindo
literal dos textos dogmáticos.
o ensino da leitura, capacidade útil na
(
Se se torna duvidoso identificar o aumento do número de indivíduos Nóvoa, 1987: ro8.
lI6
com formação em leis (porque os «letrados» eram isso mesmo) com um «É curioso notar que esse aspecto ideológico [a doutrinação católica] se mantém
117
sem diferenças sensíveis, desde a mais antiga cartinba conhecida, a de 1534, quando ainda a
Contra-Reforma não imperava entre nós, e nas restantes, já posteriores à inrrodução do
Santo Ofício e da Companhia de Jesus»; Castelo-Branco, 1971: 1)1.
RlTA MARQUILHAS A FACULDADE DAS LETRAS 137
actividade didáctica, a qual, por exemplo, não deveria nunca apoiar-se em da Cruz, que todos faram tambem em o mesmo tempo, e assentados
materiais impudicos. O texto de todas elas aproxima-se bastante do das cons- depois lhes ensinara as orações abaixo escritas, nam accrecentando, nem
tituições do bispado de Viseu: diminuindo nellas palavras algúas, e procurarà, que fiquem todos, depois
de ensinados, não sõ sabendo de memoria as taes orações, mas entenden-
Pelo muyto, que importa serem os meninos instruidos, em nossa santa Fê do, o que em ellas se contem, e conhecendo, segundo sua capacidade, os
catholica, e bons costumes, mandamos a todos, os que em escolas, e fora mysterios de nossa Fê, e as obrigações de Christãos [... ] 1I9.
dellas ensinarem a ler, escrever, ou grammatica, que a seus discipulos
ensinem os mysterios de nossa santa Fê, conforme a sua capacidade: [... ] Por outro lado (e aqui é que há uma possibilidade de entrever aulas,
e os criem em toda a virtude, e bom ensino, [... ] e não consentindo, que ainda que apenas de leitura, 'na frequência da «doutrina»), algumas constitui-
tenhâo livros lacivos, nem leam por elles, porque podem aprender erros, ções demonstram a preocupação em que se exibissem aos alunos da catequese,
ou maos costumes, nem os ensinem a ler por feitos, em que se contenhão
em suporte escrito bem iegível, os rudimentos da cultura católica .. As mais
casos crimes, e se trate de homicidios, adulterios, furtos, e perjuros, e
antigas a referir este reforço visual do ensino da doutrina são as constituições
outros casos feos, com cuja liçam os moços se podem inclinar a seme-
de Portalegre:
lhantes males: e assi os treslados, que Ihes derem pera escrever, sejam ti-
rados de bons livros, e conrenhão boa doctrina, e outrosi conformandonos E porque por negligmcia dos que tem officio de ensinar, podem os mo-
com o sagrado concilio Tridentino, e com o Provincial Bracharense [Brac. ços aprender alguns erros, ou palavras indecentes, ou fora do sentido, em
act. p. 5 c. 21]; mandamos, que nenhum dos ditos mestres ponha escola que a sane ta Madre Igreja as tem, e ensina. Mandamos que em todas as
de ler, escrever, ou gramatica, porquanto nellas se costuma ensinar a Igrejas do nosso BIspado aja taboas em que esteja posta toda a Doutrina
doctrina chrisrãa, sem licença nossa, [Sess.y c. I acr. 5 capo 19.20.] ou do Christã, pelo modo que está composta, e approvada pella Igreja Catholica,
nosso Provisor nesta cidade, e aro: ou dos Aciprestes em seus destrictos, e pera que os moços tenhão mais occasião de a aprender, e os que a ensi-
sem primeyro fazer a profissam da Fê nas nossas, ou suas mãos 1I8. narem tenhão diante d:JS olhos regra por onde o fação sem erro: pera este
effeito mandaremos imprimir ás orações da Doutrina em folhas de papel
Mas uma coisa era recomendar que se não ensinasse a ler e escrever fora soltas, que se podo nas ditas raboas no.
do registo cristão, outra pressupor que da cura de almas fizesse parte a alfabe-
tização. Ora essa é uma implicação que se não encontra claramente confirma- Nas «ditas tábuas>' deviam figurar os seguintes textos: sinal da 'cruz; sím-
da nas constituições sinodais de nenhum bispado português. Encontram-se, bolo da fé, artigos da fé, oração do Senhor, salvação angélica, Salve Rainha,
por um lado, referências à repetição de orações e dos principais dogmas, orien- mandamentos da lei de Deus, mandamentos da Santa Madre Igreja, sacra-
tada para a mernorização dos seus textos cujo sentido devia ser simultanea- mentos, dons do Espírito Santo, virtudes teologais, virtudes cardeais, obras de
mente clarificado: misericórdia, inimigos da alma, pecados mortais e virtudes contrárias, novíssi-
mos do homem, bern-aventuranças e acto de contrição.
Quando, e em que forma se hà de ensinar a Santa Doutrina,
É possível que se haja criado assim a familiaridade com o texto escrito
e das penas, em que encorreràm os que faltarem a esta obrigaram
entre os meninos da doutrina, e que por aqui se tenha aberto uma via de
E juntos todos na Igreja o Parocho os farà por com ambos os joelhos no alfabetização. Mas esta via, repita-se, apenas aponta para a aprendizagem da
cham, e elle com a cabeça descuberta, e em pê, farà em voz alta o sinal leitura.
118 Constituições sinodaes do bispado de Viseu feitas e ordenadas em synodo pelo illustrissimo,
e reuerendissimo senhor dom João Manoel bispo de Viml, e do conselho de sua magestade. 119 Ld., ibid.: liv. IV, tu. 1, const. 3.
Coirnbra, Nicolau Carvalho, 1617 (sínodo celebrado em 1614): liv. I, tit, I, const. 5: «Dos no Constituicões synodais do bispado de Portalegre. Ordenadas e feitas pelo illustrissimo, e
mestres, que ensinam meninos, que lhes ensinem a Santa Fe catholica, orações, e bons reuerendiso, soro D. Fr. Lopo de Sequeira Pereira bispo de Portalegre do conselho de sua magestade.
costumes». Ponalegre, Jorge Rodrigues, 1632 (sínodo celebrado em 1622): liv. I, tiro 1, capo 11, § I.
/ ~I
r:
Note-se ainda como é contemplada a educação feminina no texto das christãa da autoria do jesuíta Marcos Jorge, acrescentada por Inácio Martins,
constituições. As de Lisboa, ainda assim, são as mais explícitas; mencionam as também jesuíta 123. A preceder o texto da doutrina cristã propriamente dito,
aulas de «costura e bordados», onde a tábua das orações também devia marcar este manual inclui um prólogo de natureza pedagógica, as Lembranças fera
presença; e mencionam o perigo que os clérigos corriam ao dar aulas parti- quem ensinar a Saneia Doctrina, feitas pelo padre Inácio Martins, em que há
culares a alunas crescidas: uma referência, uma só, à capacidade de leitura dos meninos; trata-se da quarta
«lembrança»:
Como os Adestres de ler, e escrever, e as Mestras das mininas,
lbes devem ensinar as orações. Mande subir dous moços de boa fala em lugar alto, com dous livros da
doctrina Christãa nas mãos, os quacs leam hum capitulo aquelle dia, e
o mesmo mandamos, e encarregamos a todas as pessoas ecclesiasticas, e
elle và ponderando alguns passos. Outro dia leam o seguinte capitulo, e
seculares, que neste nosso Arcebispado ensinarem meninos a ler, e a es-
assi continuem os mais capitules, avisos e tratados, ate acabar o livro,
crever, hora seja em eschola publica, hora em casa particular. E da mesma
porque assi sendo as doctrinas varias nam averà fastio, pera o qual tambem
maneira às molheres que ensinarem meninas cozer, e lavrar, por haver
servirà em algúas festas do anno dizerem os mininos algum dialogo da
nesta cidade de Lisboa, pella grandeza della, muitas casas de ensino de
festa 124.
meninas: ordenando que os ditos mestres de ler, e escrever, e as mestras
de meninas, tenhão particular cuidado de lhes ensinar a doutrina christãa,
Encontra-se aqui um indício mais claro de que os alunos da catequese
e as sobreditas oraçoens, fazenclolhas dizer, e repetir: quando não puder
ser todos os dias, ao menos muitas vezes na somam" e tendo pera esse sabiam ler. O pormenor sobre a qualidade dos catecúmenos eleitos para
effeito hüa taboa, em que estejão escriptas 121. verbalizarern os diálogos do manual ser a "boa fala», e não a capacidade de
leitura, parece autorizar a inferência de que toda a classe estava potencialmen-
Que os C/erigos não conversem, nem fo!!em com molhares sõs te habilitada para soletrar a doutrina. Até que ponto se trata de uma situação
por sós, nem as ensinem a ler, nem escrever, tanger. ou cantar, idealizada pelo autor das lembranças, ou até que ponto essa faculdade de lei-
sem nossa licença, nem vão frequentemente aos rios, fontes, tura, a ter existido, fora adquirida no quadro da doutrinação é uma dúvida
e outrõs lugares aonde as molheres costumão ir. que fica por esclarecer 125. Só uma investigação concentrada na actividade
catequética da época (que deve estar sobejamente testemunhada na documen-
Por tirarmos aos Clerigos toda a occasião do peccado, e escandallo nesta
tação resultante das visirações das paróquias) poderá adiantar alguma resposta.
materia: encarregamos muito a todos nossos subdiros, que não fallem com
molheres, especialmente moças, estando sós, nem lhes dem entradas em Mas, pelo exposto, não há razões para não aceitar a «difusão capilar do
suas casas, e fujão de ter com ellas communicação; e pefa assim se conse- modelo da cultura católica» 126, programada pela Contra-Reforma, como um
guir, prohibirnos, que nenhum Clerigo de Ordens sacras, ou Beneficiado, dos factores de alfabetização, tal como sugeria Bennassar.
ensine molheres a ler, escrever, tanger, ou cantar, sem nossa licença, ou
de nosso Provizor, que lha daremos, tomando primeiro informação cie
sua idade, e procedimento 122.
12) Doctrina christãa. Ordenada ti maneira de dialogo pera ensinar os mininos, pelo padre
Marcos Jorge da Companhia de JeS1/.,doctor em theologia. Acrecêtada pelo padre Ignacio Miz, da
Variando de perspectiva, pode imaginar-se (: decurso das lições de mesma Companhia, doctor theo!cgo. A versão acrescentada por Inácio Martins recebeu pela
catequese no manual mais utilizado pelos párocos do século XVIl, a Doctrina primeira vez licença de impressão em 1600. As citações que aqui se farão são da 2.a edição:
Lisboa, Pcdro Crasbeeck, J 602.
12
4 id. ibid.: [A6Jr.
l7.1Constituições synodaes do arcebispado de Lisboa. Novamente [eiras no svnodo diocesano, 125 Não se poderá assim fazer uma afirmação como a que Xenio Toscani adianta para
que celebrou na Sé metropolitana de Lisboa o illustrissimo, e reucrendisimosenhor D. Rodrigo da a Lombardia do Antigo Regime. Segundo o autor, o mapa. da alfabetização lornbarda re-
Cunha arcebispo da mesma cidade [. . .]. Lisboa, Paulo Craesbceck, 1656 (2.a edição; sfnodo flecre o da implantação das escolas da doutrina cristã que seguiam o modelo de renovação
celebrado em I6+0): liv. r, tiro }, decr. I, § I. catequética traçado por Carlos Borrorneo: cf Toscani, 1984: 762, 78I.
l22 Id., ibid.: liv, JIl, rir. .1., § 2. '"" Biondi, I981: 276.
1
~&.i."..
RlTA MARQUILHAS
I
i
I Cf., entre os trabalhos rnars importantes, os de Baião, 19°7, 1915 e 1918, Révah, I
1960, Pereira. 1976 e 1988, Sá, 1983, Mea, 1989, I: 370-395, Bethencourr, 1994 (1992): I
173-185 e Domingos, 1993.
, Cf. Freire, 1918 e 1920, Révah, 196o, Dias, 1969: 953-999, Curto, 1988 (1986):
127 Reis, 1988: 77-78.
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