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A potência pictórica
da deformação na
produção sensível de
devires-outros
Débora Curti¹
Roberta Stubs²
PALAVRAS-CHAVE
Deformação; Devir; Sensação; Pintura; Fotografia.
ABSTRACT
Is it possible to create other-becomings through the deformation of the subject’s image? By
exploring the mixture between the languages of painting and photography, we investigated
this possibility artistically through creations of deformations in transparencies. Here, the
deformation is a disruptive pictorial power – a powerful means of suspending the subject in
favor of becoming, based on the Logic of Sensation proposed by Gilles Deleuze in his book
about the painter Francis Bacon. As a process, deformations are created in transparent acetate
sheets and glass, experiencing its photographic developments through overlaps in different
and multiple subjects. Photography is proposed here as poetry as it follows in the footsteps of
Adolfo Montejo Navas, pushing the boundaries between reality and fiction, bringing art and
life closer together as the artist Helena de Almeida did. Those crossings between different
artistic languages and between subjects pursue the movement of becoming-other through
the image. Philosophy and art are articulated in this search for thoughts and sensations that
displace us from ourselves. It is a search with no end, as it is always in the transformation
process.
KEY-WORDS
Deformation; Becoming; Sensation; Painting; Photography.
PALABRAS-CLAVE
Deformación; Convirtiéndose; Sensación; Cuadro; Fotografía.
3 O “sujeito” aqui é entendido como ser-humano, campo existencial. Optamos por manter a palavra para não
complicar a compreensão geral do texto em relação às referências e citações trazidas, porém a utilizamos em
um sentido que busca ultrapassar as dicotomias de gênero presentes em sua construção etimológica/social
predominantemente masculina.
Poderíamos também falar em habitar a obra, assim como fez Helena de Almeida
com seu trabalho. Ela foi uma artista contemporânea que também explorou esses
atravessamentos entre corpo e obra no seu trabalho. As fotografias de Helena Almeida
confundem as fronteiras entre espaço e tempo vividos pela artista e por quem observa
a obra, podemos ver um exemplo disso na obra Estado para um enriquecimento
interior, de 19764. Para Adolfo Montejo Navas (2017, p. 72), ela é uma artista que
centraliza parte do seu imaginário na imagem fotográfica, abrindo espaço também
para produção de imaginários outros. Helena entende que sua obra é pintura, pintura
habitada, tendo a fotografia apenas como registro. Compreendemos que a pintura
habitada seria então como uma espécie de contaminação e dissolução de fronteiras
entre espectador e obra.
Tentar abrir um espaço, custe o que custar, é um sentimento muito forte nos
meus trabalhos. Passou a ser uma questão de condenação e de sobrevivência.
Sinto-me quási (sic) sempre no limiar onde esses dois espaços se encontram,
esperam, hesitam e vibram. É uma tentação aí ficar e assistir ao meu próprio
processo, vivendo um sonho com duas direcções (sic). Mas isso é intolerável
e com urgência, qualquer coisa se liberta em mim como se quisesse sair para
a frente de mim própria. De toda a maneira já consegui sair pela ponta dos
meus dedos (ALMEIDA, 1978, s.p.).
Essa incerteza sobre o real dialoga com a noção de dissolução do sujeito que veio
se desenvolvendo com a modernidade, anunciando o contemporâneo. Dissolução
explorada nessas imagens através das forças de deformação da imagem do sujeito,
atravessadas por múltiplas contradições. A contradição entre a representação e a
deformação da representação, que pode também ser entendida como contradição
entre figuração e desfiguração; a contradição entre a vontade de se fixar em formas
pré-estabelecidas e a vontade de se deformar/dissolver, fugir dessas formas; a
contradição entre as forças reacionárias e as forças revolucionárias que pedem
passagem (pensando uma micropolítica dos afetos). Contradições e contradições,
questões e questões. Entre uma coisa e outra há tanto a se pensar, a se experimentar.
E isso leva à reflexão: por que teríamos que escolher entre uma coisa e outra, se
há tanto a se explorar nesse território do entre? O território onde as coisas não são
definidas, onde não precisam ser de modo fechado e identitário, uma espécie de
(não)lugar onde habitam impessoalidades em devir. É sobre a potência do entre que
recorremos ao pensamento de Stubs que nos diz:
Que gosto tem essa obra na sua boca, nos seus ouvidos, na sua pele? Que
sensações te desperta essa cor? Não é preciso de fato comer, ouvir ou sentir a obra,
mas sim estar aberto a experimentá-la, a nível de sensações. Substituindo a lógica
racional que se traduz na representação clássica, abrimo-nos à “razão empenhada
no sentir, capaz de flertar com as forças desestabilizadoras da vida, [...] Uma razão
muito singular, que ambicionaria se desformar” (SEQUEIRA, 2002, p. 30). Ao invés
de buscar um sentido representacional, algo que indique uma verdade na obra, uma
explicação que a descreva, é preferível seguir o mapa de sensações que nos guia
no instante em que nos relacionamos com a obra. É esse o instante de abertura às
suas intensidades e devires. Os devires dizem dos afetos que nos atravessam quando
estamos em movimento de troca de intensidades, eles estão para além da nossa
percepção ordinária, se fazem no campo do imperceptível (DELEUZE; GUATTARI,
1997, p. 63). É preciso aprender a ser todo mundo, no sentido de um devir-outro. “Não
estamos no mundo, tornamo-nos com o mundo, nós nos tornamos, contemplando-o”
(DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 220). Pensando em uma dimensão do sensível, o
devir mundo pode também ser entendido como a criação de novos mundos, mundo
de possibilidades. Esse acolhimento da diferença, em um pensamento que funciona
por vias múltiplas, não se restringe a um rosto, a uma identidade fixa. Ele traduz
esse ser que é o ser do estar no mundo, o ser do devir-outro, devir-mundo, devir-
ninguém. “É nesse sentido que devir todo mundo, fazer do mundo um devir, é fazer
mundo, é fazer um mundo, mundos, isto é, encontrar suas vizinhanças e suas zonas
de indiscernibilidade” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 64).
Considerações Finais
ALMEIDA, Helena. Helena Almeida. Porto: Modulo. 1978. Disponível em: <https://
fasciniodafotografia.wordpress.com/2016/12/06/helena-almeida-helena-almeida-1978/>.
Acesso em: 25 de set. de 2022.
ANJOS, Moacir dos. Helena Almeida e a sedução do impossível. Zum: revista de fotografia.
2018. Disponível em: <https://revistazum.com.br/colunistas/helena-almeida/>. Acesso em:
25 set. 2022.
DANTO, Arthur C. Após o fim da arte: arte contemporânea e os limites da história. São
Paulo: Odysseus Editora, 2006.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia?. Trad. Bento Prado Jr. e Alberto
Alonso Muñoz. São Paulo: 34, 1992.
DELEUZE, Gilles. Francis Bacon: lógica da sensação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.
GALLO, Sílvio. Algumas notas em torno da pergunta: “o que pode a imagem?”. Revista
Digital do LAV, Santa Maria, vol. 9, n. 1, p. 16 - 25, jan./abr. 2016.
JUSTO, José Miranda. O fundo comum do pintar e das palavras. In: Francis Bacon – Lógica
da sensação. Lisboa: Orfeu Negro, 2011.
NAVAS, Adolfo M. Fotografia e poesia: afinidades eletivas. São Paulo: Ubu Editora, 2017.
Submissão: 28/01/2023
Aprovação: 07/03/2023