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Emanuele Coccia – A vida das plantas Prólogo

Maria Francisca Venâncio Abreu Bastos 2º Ano Atelier de Leitura

O “nosso mundo é um fato vegetal antes de ser um fato animal”1.

Este texto pretende ser uma introdução a um novo modo de ver o mundo.
Pretende fazer-nos questionar se o modo como entendemos e vemos o mundo que nos
rodeia será o mais correto e se da mesma forma que apreendemos sobre e com o
mundo animal sobre o mundo físico, não poderíamos aprender com o mundo vegetal
sobre o nosso modo de encarar o viver e maneira de estar-no-mundo. Se realmente
queremos entender o mundo em que vivemos necessitamos de olhá-lo pelos olhos das
suas criadoras.

I
O ser humano nasceu da natureza e morrerá nela tal como tudo o que existe e
conhecemos neste mundo. Contudo há que levar em conta uma diferença entre o
mundo e o Humano. Com a sua evolução constante o Homem começou a criar uma
distância imaginária, simplesmente porque o quis, porque se achou superior em
relação a tudo o resto. Por possuir um outro tipo de consciência, por conseguir
construir, criar.

Acabou por ganhar um falso sentido de superioridade em relação ao resto do


mundo, tendo cada vez mais a tendência a exilar-se, tanto do mundo animal como do
vegetal, com enfâse no vegetal. Um tipo de vida que o ser humano não consegue
compreender na sua plenitude e por não o conseguir acaba por ser desprezada.
Minimizada e inferiorizada. Não constam em maior parte do conhecimento humano
“Pouco falamos delas e mal sabemos os seus nomes. A filosofia as negligenciou
desde sempre, com desprezo mais do que por distração”2 focando-se no homem e o
homem como o centro de todas as coisas e “As ciências da vida também as
negligenciaram”3 como a biologia que “concebida com base no que sabemos sobre o
animal, praticamente não leva em conta as plantas”4. A vida vegetal leva o 2º lugar
no pódio, depois da vida animal. “parece que ninguém jamais quis contestar a
superioridade da vida animal sobre a vida vegetal e o direito de vida e de morte da
primeira sobre a segunda: vida sem personalidade e dignidade.”5 mas são
escorraçadas do ambiente sofisticado que fomos construindo e aperfeiçoando ao fim
de alguns anos neste mundo ou então simplesmente desfrutamos da sua beleza “As
metrópoles as consideram os bibelôs supérfluos da decoração urbana. Fora dos
muros da cidade, são parasitas – ervas daninhas – ou objetos de produção em
massa.” 6 Contudo estas não se deixam afetar. Continuam a fazer o que sempre
fizeram, ignorando os humanos “como extraviadas num longo e surdo sonho
químico”7.
Emanuele Coccia – A vida das plantas Prólogo
Maria Francisca Venâncio Abreu Bastos 2º Ano Atelier de Leitura

Não escolhem onde nascem, o acaso é responsável por isso. “O mundo se


condensa no pedaço de chão e céu que ocupam”8. Aceitam e adaptam-se, vivem em
constante comunhão com o mundo. “Diferentemente da maioria dos animais
superiores, elas não têm nenhuma relação seletiva com o que as rodeia: estão, e só
podem estar, constantemente expostas ao mundo que as circunda. A vida vegetal é a
vida enquanto exposição integral, em continuidade absoluta e em comunhão global
com o ambiente.”9 As plantas vivem numa interminável relação de simbiose, dai não
se poderem mexer, estão paradas pois estão em constante comunicação e contacto
com o mundo e ambiente em que se encontram, estão literalmente “coladas” ao chão
“Não se pode separar – nem fisicamente nem metafisicamente – a planta do mundo
que a acolhe. (...). Interrogar as plantas é compreender o que significa estar-no-
mundo.”10 Não se mexem, não falam, parecem não ter uma consciência, mas talvez
seja através destes seres que possamos entender melhor o mundo em que vivemos e
partilhamos com elas. “Ela é o observatório mais puro para contemplar o mundo na
sua totalidade (...). Nunca poderemos compreender uma planta sem ter compreendido
o que é o mundo”11.

II
As plantas vivem com os restantes viventes, animais “superiores” e “inferiores”
separados dos humanos, não tanto por escolha, mas mais por imposição mesmo sendo
essenciais para a sobrevivência de tudo o que seja vivo. “Essa segregação não é uma
simples ilusão cultural, é de natureza mais profunda”12 São a base de qualquer
ecossistema, as criadoras do mundo como o conhecemos. Por mais que o humano não
queira, não sobreviveríamos sem elas. Elas são a origem da vida e a vida como nós a
conhecemos não existe onde não tiver existido previamente. A vida superior não
conhece um mundo onde nunca tenha existido vida, o mundo criou-se a ele próprio e
alimenta-se dele próprio. “É por isso que a vida parece só poder se explicar a partir
de si mesma (...). A vida parece dever ser seu próprio meio, seu próprio lugar” 13. É
“Uma espécie de parasitismo, de canibalismo universal”14.

As plantas são as únicas que fogem a esta “regra topológica de autoinclusão.


Não precisam da mediação de outros seres vivos para sobreviver. Nem a desejam.” 15
apenas necessitam do mundo, do que o universo lhes oferece “os componentes mais
elementares: pedras, água, ar e luz.”16. Estas criam vida onde ela ainda não existe,
preparam um espaço físico para que a vida seja capaz de existir. “A autotrofia (...) é
sobretudo a capacidade que elas têm de transformar a energia solar dispersada do
mundo em realidade coerente, ordenada e unitária”17. Elas pegam na matéria dispersa
pelo universo e transformam-na em algo real e físico em vez de meramente
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metafísico. Criam vida a partir do nada, tal como diz a expressão em inglês out of thin
air.

O mundo em que vivemos é o resultado da adaptação das plantas ao local em


que se encontram, o mundo é “o produto da colonização do planeta pelas plantas,
desde tempos imemoráveis”18. Tudo o que temos “(os alimentos, o mobiliário, as
roupas, o combustível, os medicamentos)”19 até ao ar que respiramos origina de algum
modo nas plantas. São as criadoras de tudo tal como a base das cadeias alimentares
“Sua chegada à terra firme e a sua multiplicação permitiram produzir a quantidade
de matéria e de massa orgânica de que a vida superior se compõe e se alimenta. (...)
é ainda graças às plantas e a sua vida que os organismos animais superiores podem
produzir a energia necessária à sua sobrevivência.”20 Todos pertencemos ao mundo,
cada ser tem o seu papel, por mais insignificante que possa ser, por mais pequeno que
seja o seu impacto irá sempre gerar alguma ressonância, algum tipo de impacto no
universo “As plantas, sua história, sua evolução, provam que os viventes produzem o
meio em que vivem, em vez de simplesmente serem obrigados a adaptarem-se a ele.
Elas modificam para sempre a estrutura metafísica do mundo.” 21 Estas não se limitam
a presenciar, elas entranham-se no mundo e fazem dele algo. Este dá-lhes tudo o que
elas precisam e elas dão de volta tudo o que este precisa, acabando por tecer uma
trama que caso desfeita significaria o fim de ambos. “Quando há vida, o continente
jaz no conteúdo (e é, portanto, contido por ele) e vice-versa.”22 Talvez viver não seja
apenas sobre o efeito que causamos no mundo, mas talvez sobre o efeito que este tem
em nós. Se não sabemos o que vem depois porque não emergir no agora ao máximo.
“estar imerso num meio que nos penetra com a mesma intensidade que nós o
penetramos”23

III
Não braços, nem pernas, nem cabeça ou um cérebro. Não se pode mexer, quase
parece nem ter vontade própria. Mas foram elas que deram forma a tudo o que existe,
direta ou indiretamente. Sabem exatamente o que tem de fazer e como o fazer. “As
plantas não são apenas os artesãos mais finos de nosso cosmos, são também as
espécies que abriram para a vida o mundo das formas (...). A ausência de mãos não
assinala uma falta, mas antes por consequência de uma imersão sem resto na própria
matéria, que elas modelam incessantemente”24. Formas são variações de ser, não de
fazer ou de agir. E ser é emergir-se nisso, deixar-se evoluir, não apenas mudar porque
uma planta não muda, transforma-se, evolui. Ela é o ponto de fusão entre o sujeito,
matéria e imaginação. Elas podem ser tudo o que conseguirem imaginar e “imaginar
é se tornar o que se imagina”25.
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No mundo animal quando um ser atinge o seu pique, a maturidade sexual, o seu
crescimento (físico) estagna e começa um novo processo, o de envelhecimento. No
mundo vegetal, contudo, não existe o envelhecer pois uma planta está em contante
regeneração “não param de se desenvolver e crescer, mas, sobretudo, não param de
construir novos órgãos e novas partes de seu próprio corpo (folhas, flores, parte do
tronco, etc.) de que foram privadas ou de que elas próprias se livram” 26. Uma planta
é aquilo que esta queira ser, ou o que precise de ser quando lhe for exigido. “Um
espírito que se exerce na modelagem de si mesmo”27. Elas melhoram-se e adaptam-se.
“Para existir, a planta deve se confundir com o mundo, e só pode fazer isso na forma
da semente: o espaço em que o ato da razão coabita com o devir da matéria”28 e “Se
existe uma razão é a que define a génese de cada uma das formas de que o mundo se
compõe.”29

Tudo começa como semente. A semente é o potencial. A semente é nada


porque o nada é tudo, só no nada é que ela poderá imaginar no que se poderá vir a
tornar. Mas não imagina que se vai ter um tronco largo, que as suas raízes terão uma
certa forma, que as suas folhas serão daquela cor ou que a sua flor terá um exato
número de pétalas, a semente irá evoluir de acordo com o mundo, não se prendendo a
ideias fixas. Ela segue o que nos animais chamaríamos de instinto, a razão. A razão é
imaginada. A razão é o arquétipo, uma imagem que se pretende atingir, é uma ideia
não um molde. Ela mergulha-se entre as rochas e absorve tudo o que necessitar do
universo.

“Imaginar não significa colocar uma imagem inerte e imaterial diante dos olhos,
mas contemplar a força que permite transformar o mundo (...). A razão é o que
permite a uma imagem ser um destino, espaço de vida total, horizonte espacial e
temporal. É necessidade cósmica e não capricho individual” 30.

IIII
“Este livro pretende reabrir a questão do mundo a partir da vida das
plantas.”31

Pensar as plantas e o mundo, o mundo e o universo como um, porque o são.


Um é o resultado do outro. E repensar a nossa posição enquanto elemento e não
somente espectador em relação a este.

“Fazer da natureza e do cosmos os objetos privilegiados do pensamento


significa afirmar implicitamente que o pensamento só se torna filosofia ao se
confrontar com esses objetos. É em face do mundo e da natureza que o homem pode
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verdadeiramente pensar.”32. Aceitar que a hipótese de que a natureza é o nosso


elemento de ligação ao universo exterior implica aceitar que o que tentamos durante
tanto tempo recalcar e afastar-nos de é, na realidade, a chave que abrirá o baú do
conhecimento. É necessária uma nova maneira de pensar o mundo, não apenas focada
no mundo animal pois é impossível existir um mundo animal sem um mundo vegetal.
O vegetal não pode ser ignorado, ele faz parte de nós tal como nós fazemos parte dele.
A humanidade precisaria de se libertar do seu ego e admitir que poderia estar á
procura das respostas forma errada. Iria ser necessária uma transformação intrínseca
do Homem, uma mudança na sua filosofia de vida.

“A filosofia é intrínseca à condição humana, não é um conhecimento, mas


uma atitude natural do homem em relação ao universo e seu próprio ser.” a Como
poderá a filosofia saber falar sobre a relação do homem com o mundo e o universo se
este despreza aquelas que tornaram possível o mundo em que vivemos existir?
“Forçada a não tratar do mundo, mas das imagens mais ou menos arbitrárias dele
que os homens produziram no passado, ela se tornou uma forma de centrismo,
amiúde normalizado e reformista”33. Prendeu-se no que os posteriores achavam ser o
mundo e não no que ele se mostra ser atualmente.

“Esse impasse é o resultado de um recalcamento obstinado: o do vivente, e o


facto de que todo o conhecimento é já uma expressão do ser e da vida. Nunca
podemos interrogar e compreender o mundo de modo imediato, pois o mundo é o
sopro dos viventes”34 e “para conhecer o mundo é preciso escolher em que grau da
vida, em que altura e a partir de que forma se quer olhá-lo e, portanto, vivê-lo.” 35
Compreender o mundo e a vida não é apenas olhar para estes, é tentar escuta-los e ver
as suas diferentes formas de comunicação. Mas para o fazer é necessário saber de que
perspetiva vamos olhar o mundo, pois existem variadas perspetivas do mundo, não
apenas a do ser humano. Existem os animais, como muitos outros abaixo desses
(animais inferiores). Mas as plantas possuem uma visão de criadoras “As plantas são
os verdadeiros mediadores: são os primeiros olhos que se colocaram e abriram para
o mundo, são o olhar de quem consegue percebê-los em todas as suas formas. O
mundo é antes de tudo o que as plantas souberem fazer dele.”36 Elas deram vida a
tudo o que nos rodeia. “Os microscópios, os telescópios, os satélites, os aceleradores
de partículas são os olhos inanimados e materiais que lhes permite observar o
mundo, ter um olhar nela”37 Nós, seres humanos, procuramos numa escala muito
pequena ou numa escala muito grande. Se o big bang foi a origem do universo a partir
do nada, o nosso planeta existe devido a ele. Até ao aparecimento das plantas não
existia nada, então pode afirmar-se que as plantas são o big bang em escala menor,
que deram origem á vida como a conhecemos.
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Maria Francisca Venâncio Abreu Bastos 2º Ano Atelier de Leitura

Se somos os criadores das nossas próprias vidas, porque não aprender com elas.
Olhar para o mundo como um todo, olhar para nós como parte deste, e apercebermo-
nos que o que lhe acontecer ele acontecerá a nós. E para viver melhor nele é
necessário saber como é que funciona. As plantas criam vida, produzem o oxigénio,
sustentam-se. Ao sustentarem-se sustentam todo o resultado que nasce por
consequência. Criam um ecossistema que sem elas não existe. O ser humano e todas
as outras formas de vida superior que pertencem a esses ecossistemas não conseguem
produzir oxigénio, precisam das plantas para o fazer. Mas se por acaso as plantas
morrerem, sem nada para comer e sem oxigênio, toda a existência e vida que
conhecemos vai com estas, levando-nos também. “As plantas são a ferida sempre
aberta do esnobismo metafisico que define nossa cultura. O retorno do recalcado, de
que é necessário nos livrarmos para nos considerarmos diferentes: homens,
racionais, seres espirituais. Elas são o tumor cósmico do humanismo, os dejetos que
o espírito absoluto não consegue eliminar.”38

Bibliografia:
Todas citações foram retiradas do livro:
Emanuelle Coccia – La vie de les plantes: une métaphysique du mélange/A vida das
plantas: uma metafisica da mistura – 2018

1. Ibid. pag16
2. Ibid pag11
3. Ibid pag11
4. Ibid pag11
5. Ibid pag12
6. Ibid pag11
7. Ibid pag12
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Maria Francisca Venâncio Abreu Bastos 2º Ano Atelier de Leitura

8. Ibid pag13
9. Ibid pag13
10. Ibid pag13
11. Ibid pag13
12. Ibid pag14
13. Ibid pag14
14. Ibid pag14
15. Ibid pag15
16. Ibid pag15
17. Ibid pag15
18. Ibid pag15
19. Ibid pag 15/16
20. Ibid pag16
21. Ibid pag17
22. Ibid pag17
23. Ibid pag17
24. Ibid pag 18
25. Ibid pag 19
26. Ibid pag19
27. Ibid pag19
28. Ibid pag20
29. Ibid pag21
30. Ibid pag21
31. Ibid pag22
32. Ibid pag22
33. Ibid pag24/25
34. Ibid pag25
35. Ibid pag25
36. Ibid pag26
37. Ibid pag25
38. Ibid pag11

Webgrafia:

a - https://www.significados.com.br/filosofia/

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