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PERÍODO 2022.2
TEXTO 04
1
FURTDO DA CUNHA, Maria Angélica; COSTA, Marcos Antonio & CESÁRIO, Maria Maura.
Pressupostos teóricos fundamentais. In: FURTADO DA CUNHA, Maria Angélica; RIOS DE
OLIVEIRA, Mariângela; MARTELOTTA, Mário Eduardo (Orgs.). Linguística Funcional. Teoria e
Prática. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2003, p. 17-28.
Iconicidade e marcação
2
Não parece haver uma correspondência estrita entre naturalistas vs. convencionalistas, por um lado, e
analogistas vs. anomalistas, por outro. Apesar de algumas afinidades, eles possuíam preocupações
distintas e, de certa forma, independentes. Enquanto naturalistas e convencionalistas discutiam a relação
entre as “coisas do mundo” e suas designações, analogistas e anomalistas discutiam as regularidades do
sistema linguístico. Tomemos Saussure como exemplo. Com relação à conexão entre significado e
significante, ele se alinha aos convencionalistas (arbitrariedade do signo linguístico); quanto ao caráter
regular e sistemático da língua, ele se posiciona junto aos analogistas (a língua é um sistema).
correlação transparente entre forma e função, não é absoluto, mas moderado.
Na codificação sintática, princípios icônicos (cognitivamente motivados)
interagem com princípios mais simbólicos (cognitivamente arbitrários), que
respondem pelas regras convencionais.
Peirce estabeleceu dois tipos de iconicidade: a imagética e a
diagramática. A primeira diz respeito à estreita relação entre um item e seu
referente, no sentido de um espelhar a imagem do outro (ex. pinturas,
estátuas); já a segunda refere-se a um arranjo icônico de signos, sem
necessária intersemelhança. Ambos os tipos de relação icônica têm
interessado pesquisadores de orientação funcionalista.
É com Bolinger (1977) que o isomorfismo linguístico revela sua face
radical, quando postula que a condição natural da língua é preservar uma
forma para um sentido e vice-versa. Estudos sobre os processos de variação e
mudança linguísticas, ao constatar a existência de duas ou mais formas
alternativas de dizer "a mesma coisa", levaram à reformulação dessa versão
forte. Na língua que usamos diariamente, especialmente na língua escrita,
existem por certo muitos casos em que não há uma relação clara, transparente,
entre forma e conteúdo. Há contextos comunicativos em que a codificação
morfossintática é opaca em termos de sua função. Tomadas sincronicamente,
determinadas estruturas exibem um acentuado grau de opacidade em relação
aos papéis que desempenham. Assim, encontramos correlação entre uma
forma e várias funções, ou entre uma função e várias formas. O uso do sufixo
–inho ilustra o primeiro caso. Essa forma, que originalmente indica tamanho
diminuto, como em criancinha, desenvolveu-se para marcar afetividade, como
em paizinho, pejoratividade, como em gentinha, ou ainda um valor de
superlativo, como em devagarzinho (Silva, 2000). Por outro lado, a função de
impessoalização do agente da ação verbal pode ser codificada, em português,
por vários recursos: verbo na 3a pessoa do plural (Construíram uma ponte na
cidade), partícula se apassivadora (Construiu-se uma ponte na cidade), voz
passiva (Uma ponte foi construída na cidade), pronome indefinido (Alguém
construiu uma ponte na cidade), pronome de 3a pessoa do plural sem referente
explícito (Eles construíram uma ponte na cidade), entre outros.
Em sua versão mais branda, o princípio de iconicidade se manifesta
em três subprincípios, que se relacionam à quantidade de informação, ao grau
de integração entre os constituintes da expressão e do conteúdo e à ordenação
linear dos segmentos.
Segundo o subprincípio da quantidade, quanto maior a quantidade
de informação, maior a quantidade de forma, de tal modo que a estrutura de
uma construção gramatical indica a estrutura do conceito que ela expressa.
Isso significa que a complexidade de pensamento tende a refletir-se na
complexidade de expressão (Slobin, 1980): aquilo que é mais simples e
esperado se expressa com o mecanismo morfológico e gramatical menos
complexo.
O subprincípio da integração prevê que os conteúdos que estão mais
próximos cognitivamente também estarão mais integrados no nível da
codificação – o que está mentalmente junto, coloca-se sintaticamente junto.
O subprincípio da ordenação linear diz que a informação mais
importante tende a ocupar o primeiro lugar da cadeia sintática, de modo que a
ordem dos elementos no enunciado revela a sua ordem de importância para o
falante.
Vejamos algumas aplicações da versão branda do princípio de
iconicidade. No estudo da negação (Furtado da Cunha, 1996), a negativa dupla
fornece evidência favorável ao princípio icônico da quantidade:
(1) ... e um motorista dele ... nesse tempo ele ... num era ... num era um
motorista dele não ... era do hotel ... porque ele ficou sem motorista ...
(Corpus D&G/Natal, p. 244).
(3) ... o pai dele tava ... tava tomando banho ... o gato apareceu na ... na janela
lá do ... do ... do banheiro... ele tava tomando banho na banheira ... ele pulou
dentro e rasgou o ... o ... o pai dele todinho num matou não ... só fez arranhar
né ... depois ele pegou um cabo de vassoura ... meteu no gato e o gato foi
embora ... (Corpus D&G/Natal, p. 28).
Há uma tendência geral, nas línguas, para que esses três critérios de
marcação coincidam. Admite-se que a correlação entre marcação estrutural,
marcação cognitiva e baixa frequência de ocorrência é o reflexo mais geral da
iconicidade na gramática, dado que representa o isomorfismo entre correlatos
substantivos (de natureza comunicativa e cognitiva) e correlatos formais da
marcação. Assim, as categorias que são estruturalmente mais marcadas
tendem também a ser substantivamente mais marcadas.
Givón (1995) admite que uma mesma estrutura pode ser marcada num
contexto e não-marcada em outro, e acrescenta que, desse modo, a marcação
é um fenômeno dependente do contexto, devendo, portanto, ser explicada com
base em fatores comunicativos, socioculturais, cognitivos ou biológicos. Cita,
como exemplo, que a tendência para a colocação do agente como sujeito e
tópico da oração transitiva, que representa o caso não-marcado,
provavelmente reflete uma norma cultural de se falar egocentricamente mais
acerca de seres humanos volitivos do que sobre objetos inanimados.
Outra observação importante feita por Givón é que a marcação não se
restringe apenas às categorias linguísticas, mas pode estender-se a outros
fenômenos, tais como a distinção entre o discurso formal e a conversação
espontânea. Por tratar de assuntos mais abstratos e complexos, o discurso
formal é mais marcado em relação à conversação informal, que é
cognitivamente processada com mais rapidez e facilidade, por referir-se, em
geral, a assuntos comuns e fisicamente perceptíveis do cotidiano social.
A título de exemplo, o contraste afirmação/negação ilustra bem a
atuação dos critérios de marcação. Como afirmar algo é cognitivamente
mais simples e esperado, portanto mais frequente na interação verbal, isto se
reflete também na estrutura linguística, representando a forma não-marcada. A
negação, ao contrário, por ser mais complexa em termos cognitivos e menos
esperada, é também menos frequente e estruturalmente maior (tem, no
mínimo, um morfema a mais que a afirmativa), constituindo-se no caso
marcado. Entretanto, essa marcação será relativizada se considerarmos as
diferentes estruturas negativas em português (Furtado da Cunha, 2000), tais
como:
(4) ... a nova regente ... ela não tava sabendo reger direito ... a regente do coral
... tava errando lá um monte de coisas ... né ... (Corpus D&G/Natal, p. 278).
(5) ... e teve uma pessoa que chegou pra mim e perguntou ... “Gerson ... você
aceita ficar no cargo e tudo” num sei que ... eu disse ... não ... num aceito não
... (Corpus D&G/Natal, p. 178).
(6) ... tudo eu faço ... sabe? tem isso comigo não ... (Corpus D&G/Natal, p.
264).
(8) ... meu primo estava dirigino uma camionete que estava sem freio ...
(Língua escrita, 4a série, Corpus D&G/Niterói).
Gramaticalização e discursivização
(09) ... quando ele vai atrás ele vê apenas um gato ... ele pega o gato ... entra no
carro e vai embora ... (Corpus D&G/Natal, p. 308).
(10) Bem, a minha opinião sobre o namoro é que está muito avançado, porque
esses rapazes de hoje não pensa do amanhã que vai ser. (Corpus D&G/Natal, p.
363).
(11) ... no banheiro nós vamos encontrar ... uma prateleira ... onde fica os
utensílios pessoais ... (Corpus D&G/Natal, p. 309).
(12) ... depois disso ... teve a noite onde foi escolhido o grupo de cinco pessoas
mais ou menos ... (Corpus D&G/Natal, p. 304).
(13) ... eu acho que ao invés das pessoas sair na rua ... pedindo para ... ser
implantado a pena de morte no Brasil ... deveria estar lutando por outras ... por
outros métodos ... outros objetivos ... de melhores condições de vida ... de
melhor educação para os seus filhos ... onde as pessoas poderiam viver num
país bom ... certo? (Corpus D&G/Natal, p. 314).
(14) ... mas que adianta um casamento tão lindo ... gastam tanto ... pra no final
eh ... viv/ fica dois ... três dias ... depois se separam ... entendeu? eu acho isso
aí um absurdo ... porque ... poxa... eu sei lá ... sabe? num ... né? a vida::/ tudo
bem ... tá tudo difícil ... mas a pessoa ... eu acho que a pessoa tem que saber ...
diretamente aquilo que quer ... (Corpus D&G/Rio de Janeiro).
Costa (1995) trabalha com a hipótese de o português estar sofrendo
um processo de discursivização no sentido de que a categoria sintática sujeito
estaria retornando da gramática ao discurso, na forma de tópico. Essa
hipótese se fundamenta no pressuposto de que a categoria sujeito emerge a
partir da categoria tópico. Para Givón (1979), a linguagem humana teria
evoluído do modo pragmático para o sintático e, por isso mesmo, a sintaxe
teria evoluído a partir do discurso. A trajetória tópico > sujeito > tópico nos
remete ao caráter cíclico da trajetória linguística sugerida por Givón (1979),
que toma como marco de partida o discurso, passa pela sintaxe, pela
morfologia, pela morfofonologia até retornar ao discurso, completando o
círculo.
A hipótese da trajetória sujeito > tópico tem como base a observação
de que a estrutura tópico-comentário pode ser vista como o resultado do
enfraquecimento progressivo das relações entre sujeito e verbo, tanto em
termos morfossintáticos quanto semânticos, que faz com que o sujeito deixe
de ter uma função intra-oracional e se desloque para fora da oração, passando
a exercer o papel de tópico.
Para Costa (1995), qualquer classificação sintática tanto para o SN
esse acampamento (ex. 15) como para o SN a casa de minha avó (ex. 16)
parece um tanto forçada. O autor observa que esses SNs se mostram
relativamente independentes da oração-comentário que os segue, sem
desempenharem nela qualquer função sintática. Antes, são tomados como
ponto de partida da porção do discurso que os seguirá. O informante os
seleciona como o elemento central a partir do qual a informação será
transmitida. Trata-se, portanto, de SNs marcadamente discursivos que
recebem o rótulo de “tópico”.
(15) ... esse acampamento todos os meus amigos foram ... (Corpus
D&G/Natal, p. 303).
(16) ... a casa de minha avó ... ela é grande sabe? (Corpus D&G/Natal, p. 347).
Ciclo funcional e unidirecionalidade
(17) ... quando ele vai atrás ele vê apenas um gato ... ele pega o gato ... entra no
carro e vai embora ... (Corpus D&G/Natal, p. 308).
(18) Bem, a minha opinião sobre o namoro é que está muito avançado, porque
esses rapazes de hoje não pensa do amanhã que vai ser. (Corpus D&G/Natal, p.
363).
Em (17), ir está sendo usado como verbo principal, com o seu sentido
primário de movimento físico. Em (18), por outro lado, ir se comporta como um
verbo auxiliar marcador de tempo futuro, o que é enfatizado pelo uso do
advérbio amanhã. Constata-se, portanto, que a trajetória de mudança de ir
evolui do sentido mais concreto para o mais abstrato, representada pelo
estágio espaço > tempo na escala de Traugott e Heine (1991).
O segundo desdobramento dessa escala diz respeito à abstratização
progressiva de significado de um dado elemento linguístico sem que haja,
necessariamente, mudança de categoria gramatical. Para este caso, servem de
exemplo os fragmentos em (19-21), retomados abaixo:
(19) ... no banheiro nós vamos encontrar ... uma prateleira ... onde fica os
utensílios pessoais ... (Corpus D&G/Natal, p. 309).
(20) ... depois disso ... teve a noite onde foi escolhido o grupo de cinco pessoas
mais ou menos ... (Corpus D&G/Natal, p. 304).
(21) ... eu acho que ao invés das pessoas sair na rua ... pedindo para ... ser
implantado a pena de morte no Brasil ... deveria estar lutando por outras ... por
outros métodos ... outros objetivos ... de melhores condições de vida ... de
melhor educação para os seus filhos ... onde as pessoas poderiam viver num
país bom ... certo? (Corpus D&G/Natal, p. 314).
Referências bibliográficas
CHAFE, Wallace. 1977. The recall and verbalization of past experience. In: COLE,
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ILARI, Rodolfo e GERALDI, João Wanderley. 1985. Semântica. São Paulo: Ática.
PEIRCE, Charles Sanders. 1940. The philosophy of Pierce. In: BUCHLER, John. (ed.)
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