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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES


DEPARTAMENTO DE LETRAS

PERÍODO 2022.2

COMPONENTE CURRICULAR: Texto e Discurso


CÓDIGO: LET 0577 – T01
CARGA HORÁRIA: 60 HORAS (04 Créditos)
HORÁRIO DAS AULAS: 3N1234 - Local: 2B3
PROFESSOR: Marcos Antonio Costa

TEXTO 04

FUNCIONALISMO: pressupostos teóricos fundamentais1

O funcionalismo linguístico contemporâneo difere das abordagens


formalistas – estruturalismo e gerativismo – primeiro por conceber a linguagem
como um instrumento de interação social e segundo porque seu interesse de
investigação linguística vai além da estrutura gramatical, buscando no contexto
discursivo a motivação para os fatos da língua. A abordagem funcionalista
procura explicar as regularidades observadas no uso interativo da língua
analisando as condições discursivas em que se verifica esse uso. Os domínios
da sintaxe, semântica e pragmática são relacionados e interdependentes. Ao
lado da descrição sintática, cabe investigar as circunstâncias discursivas que
envolvem as estruturas linguísticas, seus contextos específicos de uso.
Segundo a hipótese funcionalista, a estrutura gramatical depende do uso que
se faz da língua, ou seja, a estrutura é motivada pela situação comunicativa.
Nesse sentido, a estrutura é uma variável dependente, pois os usos da língua,
ao longo dos tempos, é que dão forma ao sistema. A necessidade de investigar
a sintaxe em termos da semântica e da pragmática é comum a todas as
abordagens funcionalistas atuais.

1
FURTDO DA CUNHA, Maria Angélica; COSTA, Marcos Antonio & CESÁRIO, Maria Maura.
Pressupostos teóricos fundamentais. In: FURTADO DA CUNHA, Maria Angélica; RIOS DE
OLIVEIRA, Mariângela; MARTELOTTA, Mário Eduardo (Orgs.). Linguística Funcional. Teoria e
Prática. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2003, p. 17-28.
Iconicidade e marcação

Em linguística, iconicidade é definida como a correlação natural entre


forma e função, entre o código linguístico (expressão) e seu designatum
(conteúdo). Os linguistas funcionais defendem a ideia de que a estrutura da
língua reflete, de algum modo, a estrutura da experiência. Como a linguagem é
uma faculdade humana, a suposição geral é que a estrutura linguística revela
as propriedades da conceitualização humana do mundo ou as propriedades da
mente humana.
As discussões em torno da motivação entre expressão e conteúdo na
língua remontam à antiguidade clássica, com a famosa polêmica que dividiu os
filósofos gregos em convencionalistas e naturalistas. Enquanto os primeiros
defendiam que tudo na língua era convencional, mero resultado do costume e
da tradição, os naturalistas afirmavam que as palavras eram, de fato,
apropriadas por natureza às coisas que elas significavam. Essas especulações
filosóficas têm seus desdobramentos no debate posterior entre anomalistas e
analogistas acerca da (ir)regularidade da estrutura linguística.
No início do século XX, essa controvérsia foi retomada por Saussure,
que adotou posição favorável à concepção convencionalista, reafirmando o
caráter arbitrário da língua: não existe relação natural entre a “imagem
acústica” do signo linguístico (o significante) e aquilo que ele evoca
conceptualmente (o significado).2
O filósofo Peirce (1940) discorda parcialmente da ideia de total
arbitrariedade, recuperando, em certa medida, a posição adotada pelos antigos
naturalistas e conjugando-a com a postura dos convencionalistas. Segundo ele,
a sintaxe das línguas naturais não é totalmente arbitrária, e sim isomórfica ao
seu designatum mental. No entanto, esse isomorfismo da sintaxe, ou

2
Não parece haver uma correspondência estrita entre naturalistas vs. convencionalistas, por um lado, e
analogistas vs. anomalistas, por outro. Apesar de algumas afinidades, eles possuíam preocupações
distintas e, de certa forma, independentes. Enquanto naturalistas e convencionalistas discutiam a relação
entre as “coisas do mundo” e suas designações, analogistas e anomalistas discutiam as regularidades do
sistema linguístico. Tomemos Saussure como exemplo. Com relação à conexão entre significado e
significante, ele se alinha aos convencionalistas (arbitrariedade do signo linguístico); quanto ao caráter
regular e sistemático da língua, ele se posiciona junto aos analogistas (a língua é um sistema).
correlação transparente entre forma e função, não é absoluto, mas moderado.
Na codificação sintática, princípios icônicos (cognitivamente motivados)
interagem com princípios mais simbólicos (cognitivamente arbitrários), que
respondem pelas regras convencionais.
Peirce estabeleceu dois tipos de iconicidade: a imagética e a
diagramática. A primeira diz respeito à estreita relação entre um item e seu
referente, no sentido de um espelhar a imagem do outro (ex. pinturas,
estátuas); já a segunda refere-se a um arranjo icônico de signos, sem
necessária intersemelhança. Ambos os tipos de relação icônica têm
interessado pesquisadores de orientação funcionalista.
É com Bolinger (1977) que o isomorfismo linguístico revela sua face
radical, quando postula que a condição natural da língua é preservar uma
forma para um sentido e vice-versa. Estudos sobre os processos de variação e
mudança linguísticas, ao constatar a existência de duas ou mais formas
alternativas de dizer "a mesma coisa", levaram à reformulação dessa versão
forte. Na língua que usamos diariamente, especialmente na língua escrita,
existem por certo muitos casos em que não há uma relação clara, transparente,
entre forma e conteúdo. Há contextos comunicativos em que a codificação
morfossintática é opaca em termos de sua função. Tomadas sincronicamente,
determinadas estruturas exibem um acentuado grau de opacidade em relação
aos papéis que desempenham. Assim, encontramos correlação entre uma
forma e várias funções, ou entre uma função e várias formas. O uso do sufixo
–inho ilustra o primeiro caso. Essa forma, que originalmente indica tamanho
diminuto, como em criancinha, desenvolveu-se para marcar afetividade, como
em paizinho, pejoratividade, como em gentinha, ou ainda um valor de
superlativo, como em devagarzinho (Silva, 2000). Por outro lado, a função de
impessoalização do agente da ação verbal pode ser codificada, em português,
por vários recursos: verbo na 3a pessoa do plural (Construíram uma ponte na
cidade), partícula se apassivadora (Construiu-se uma ponte na cidade), voz
passiva (Uma ponte foi construída na cidade), pronome indefinido (Alguém
construiu uma ponte na cidade), pronome de 3a pessoa do plural sem referente
explícito (Eles construíram uma ponte na cidade), entre outros.
Em sua versão mais branda, o princípio de iconicidade se manifesta
em três subprincípios, que se relacionam à quantidade de informação, ao grau
de integração entre os constituintes da expressão e do conteúdo e à ordenação
linear dos segmentos.
Segundo o subprincípio da quantidade, quanto maior a quantidade
de informação, maior a quantidade de forma, de tal modo que a estrutura de
uma construção gramatical indica a estrutura do conceito que ela expressa.
Isso significa que a complexidade de pensamento tende a refletir-se na
complexidade de expressão (Slobin, 1980): aquilo que é mais simples e
esperado se expressa com o mecanismo morfológico e gramatical menos
complexo.
O subprincípio da integração prevê que os conteúdos que estão mais
próximos cognitivamente também estarão mais integrados no nível da
codificação – o que está mentalmente junto, coloca-se sintaticamente junto.
O subprincípio da ordenação linear diz que a informação mais
importante tende a ocupar o primeiro lugar da cadeia sintática, de modo que a
ordem dos elementos no enunciado revela a sua ordem de importância para o
falante.
Vejamos algumas aplicações da versão branda do princípio de
iconicidade. No estudo da negação (Furtado da Cunha, 1996), a negativa dupla
fornece evidência favorável ao princípio icônico da quantidade:

(1) ... e um motorista dele ... nesse tempo ele ... num era ... num era um
motorista dele não ... era do hotel ... porque ele ficou sem motorista ...
(Corpus D&G/Natal, p. 244).

No discurso falado, a pronúncia do não tônico que precede o verbo


frequentemente se reduz para num átono, ou até mesmo para uma simples
nasalização. Para reforçar a ideia de negação, o falante utiliza um segundo não
no fim da oração, como uma estratégia para suprir o enfraquecimento fonético
do não pré-verbal e o consequente esvaziamento do seu conteúdo semântico.
Assim, o acréscimo do segundo não tem motivação icônica: quanto mais
imprevisível se torna a informação, mais codificação ela recebe.
Em seu trabalho sobre os procedimentos de manifestação do sujeito,
Costa (2000) utiliza o princípio icônico da proximidade para explicar a ausência
de concordância verbal em orações em que sujeito e verbo se encontram
estruturalmente distanciados. A introdução de material de apoio entre o sujeito
e o verbo, como o aposto do exemplo abaixo, enfraquece a integração entre
sujeito e predicado no plano do conteúdo, o que resulta na não flexão verbal:

(2) Há pouco tempo atrás, dois bárbaros assassinatos, o da atriz Daniela


Perez e o da menina que foi queimada pelos sequestradores ressuscitou a
polêmica da Pena de Morte. (Corpus D&G/Natal, p. 321).

Em relação ao princípio da ordenação linear, o clássico exemplo citado


é: “Vim, vi, venci”, cuja distribuição das palavras na oração corresponde à
sequência cronológica das ações descritas. Ainda outro exemplo: o trecho a
seguir foi retirado de uma narrativa recontada, em que o falante reproduz o
filme Cemitério maldito. Note-se que a apresentação dos eventos narrados
obedece à ordem cronológica e lógica em que eles se deram na trama:

(3) ... o pai dele tava ... tava tomando banho ... o gato apareceu na ... na janela
lá do ... do ... do banheiro... ele tava tomando banho na banheira ... ele pulou
dentro e rasgou o ... o ... o pai dele todinho num matou não ... só fez arranhar
né ... depois ele pegou um cabo de vassoura ... meteu no gato e o gato foi
embora ... (Corpus D&G/Natal, p. 28).

Do que foi exposto, conclui-se que a língua não é um mapeamento


arbitrário de idéias para enunciados: razões estritamente humanas de
importância e complexidade se refletem nos traços estruturais das línguas. As
estruturas sintáticas não devem ser muito diferentes, na forma e organização,
das estruturas semântico-cognitivas subjacentes. Como opção teórica, o
princípio da iconicidade, em sua formulação atenuada, permite uma
investigação detalhada das condições que governam o uso dos recursos de
codificação morfossintática da língua.
O princípio de marcação, herdado da linguística estrutural
desenvolvida pela Escola de Praga, estabelece três critérios principais para a
distinção entre categorias marcadas e categorias não-marcadas, em um
contraste gramatical binário:

a) complexidade estrutural: a estrutura marcada tende a ser mais complexa (ou


maior) que a estrutura não-marcada correspondente;
b) distribuição de frequência: a estrutura marcada tende a ser menos frequente
do que a estrutura não-marcada correspondente;
c) complexidade cognitiva: a estrutura marcada tende a ser cognitivamente
mais complexa do que a estrutura não-marcada correspondente. Incluem-se,
aqui, fatores como esforço mental, demanda de atenção e tempo de
processamento.

Há uma tendência geral, nas línguas, para que esses três critérios de
marcação coincidam. Admite-se que a correlação entre marcação estrutural,
marcação cognitiva e baixa frequência de ocorrência é o reflexo mais geral da
iconicidade na gramática, dado que representa o isomorfismo entre correlatos
substantivos (de natureza comunicativa e cognitiva) e correlatos formais da
marcação. Assim, as categorias que são estruturalmente mais marcadas
tendem também a ser substantivamente mais marcadas.
Givón (1995) admite que uma mesma estrutura pode ser marcada num
contexto e não-marcada em outro, e acrescenta que, desse modo, a marcação
é um fenômeno dependente do contexto, devendo, portanto, ser explicada com
base em fatores comunicativos, socioculturais, cognitivos ou biológicos. Cita,
como exemplo, que a tendência para a colocação do agente como sujeito e
tópico da oração transitiva, que representa o caso não-marcado,
provavelmente reflete uma norma cultural de se falar egocentricamente mais
acerca de seres humanos volitivos do que sobre objetos inanimados.
Outra observação importante feita por Givón é que a marcação não se
restringe apenas às categorias linguísticas, mas pode estender-se a outros
fenômenos, tais como a distinção entre o discurso formal e a conversação
espontânea. Por tratar de assuntos mais abstratos e complexos, o discurso
formal é mais marcado em relação à conversação informal, que é
cognitivamente processada com mais rapidez e facilidade, por referir-se, em
geral, a assuntos comuns e fisicamente perceptíveis do cotidiano social.
A título de exemplo, o contraste afirmação/negação ilustra bem a
atuação dos critérios de marcação. Como afirmar algo é cognitivamente
mais simples e esperado, portanto mais frequente na interação verbal, isto se
reflete também na estrutura linguística, representando a forma não-marcada. A
negação, ao contrário, por ser mais complexa em termos cognitivos e menos
esperada, é também menos frequente e estruturalmente maior (tem, no
mínimo, um morfema a mais que a afirmativa), constituindo-se no caso
marcado. Entretanto, essa marcação será relativizada se considerarmos as
diferentes estruturas negativas em português (Furtado da Cunha, 2000), tais
como:

(4) ... a nova regente ... ela não tava sabendo reger direito ... a regente do coral
... tava errando lá um monte de coisas ... né ... (Corpus D&G/Natal, p. 278).

(5) ... e teve uma pessoa que chegou pra mim e perguntou ... “Gerson ... você
aceita ficar no cargo e tudo” num sei que ... eu disse ... não ... num aceito não
... (Corpus D&G/Natal, p. 178).

(6) ... tudo eu faço ... sabe? tem isso comigo não ... (Corpus D&G/Natal, p.
264).

Essas três estruturas negativas não se opõem binariamente, mas sim se


distribuem num contínuo, exibindo diferentes graus de marcação, quer quanto
à frequência de uso, quer quanto à complexidade estrutural, quer quanto à
complexidade cognitiva. Considerando esses três critérios de distinção entre
estruturas marcadas e não-marcadas, podemos estabelecer a seguinte
hierarquia que ordena as orações negativas de acordo com o seu grau de
marcação: negativa padrão (ex. 4) > negativa dupla (ex.5) > negativa final (ex.
6). Apesar de a negativa padrão ser marcada com relação à afirmativa, está
claro que, das três, ela é a menos marcada, sob todos os aspectos: (i) quanto à
frequência, é a que registra maior ocorrência; (ii) quanto à complexidade
estrutural, é a morfologicamente mais simples; (iii) quanto ao contexto de uso,
é a menos marcada pragmaticamente pois pode ocorrer nos contextos que
favorecem tanto a negativa dupla quanto a final. Dado o caráter fluido e criativo
da língua, é necessário adotarmos parâmetros de gradualidade na análise da
marcação, ao invés de considerarmos as categorias linguísticas em termos
discretos ou binários.
A necessidade de superar a dicotomia marcado x não marcado,
redefinindo o princípio de marcação, também é questionada por Oliveira (2000)
em seu trabalho sobre as orações adjetivas. Exemplos como (7) e (8), em que
se combinam informatividade do núcleo SN (menor integração) e definição da
adjetiva (maior integração) são os de maior frequência nos corpora
pesquisados:

(7) As pessoas que o acusam confundem o ato de governar com disposição e


honradez. (Carta de leitor, JB).

(8) ... meu primo estava dirigino uma camionete que estava sem freio ...
(Língua escrita, 4a série, Corpus D&G/Niterói).

Os resultados preliminares a que Oliveira chegou na pesquisa sobre a


cláusula adjetiva levaram-na a um impasse, assim expresso por ela: se a
frequência é o parâmetro de maior visibilidade e saliência perceptual para a
aferição da marcação, então teremos que admitir que as adjetivas restritivas,
que são mais integradas, configuram-se como as não-marcadas. Por outro
lado, seu maior vínculo semântico-sintático é traço caracterizador de
complexidade estrutural e cognitiva, o que as classificaria como formas
marcadas face às explicativas.

Gramaticalização e discursivização

Entre os linguistas, o debate sobre a origem e o desenvolvimento das


categorias gramaticais não é recente. No século XIX, por exemplo,
acompanhando a orientação diacrônica e comparada do período, encontramos
importantes estudos nessa área. Dentro do quadro da linguística funcional, a
gramaticalização e a discursivização são fenômenos associados aos
processos de regularização do uso da língua. Ou seja, relacionam-se à
variação e mudança linguísticas. Esses processos manifestam o aspecto não-
estático da gramática, demonstrando que as línguas estão em constante
mudança em consequência da incessante criação de novas expressões e de
novos arranjos na ordenação vocabular. A compreensão é a de que, do ponto
de vista de sua evolução, a gramática está num contínuo fazer-se, o que nos
permite falar de uma relativa instabilidade da estrutura linguística. É sob esse
aspecto que se deve a Hopper (1987) a noção de “gramática emergente”, no
sentido de que a gramática de uma língua natural nunca está completa. Do
ponto de vista sincrônico, entende-se por gramática o conjunto de
regularidades decorrentes de pressões cognitivas e, sobretudo, de pressões de
uso.
O termo discurso está relacionado às estratégias criativas utilizadas
pelo falante para organizar funcionalmente seu texto para um determinado
ouvinte em uma determinada situação comunicativa. Por um lado, o discurso é
tomado como o ponto de partida para a gramática; por outro lado, é também
seu ponto de chegada. Quando algum fenômeno discursivo, em decorrência da
frequência de uso, passa a ocorrer de forma previsível e estável, sai do
discurso para entrar na gramática. No mesmo sentido, quando determinado
fenômeno que estava na gramática passa a ter comportamentos não
previsíveis, em termos de regras selecionais, podemos dizer que sai da
gramática e retorna ao discurso.
Assim, na trajetória dos processos de regularização do uso da língua,
tudo começa sem regularidade, exatamente por estar no seu começo, mas se
regulariza com o uso, com a repetição, que passa a exercer uma pressão tal
que faz com que, o que no começo era casuístico, se fixe e se converta em
norma, entrando na gramática (gramaticalização). No momento de
estabilização, verifica-se o nível de iconicidade maior, isto é, relação
transparente entre expressão e conteúdo, o que resulta no máximo de
economia comunicativa e no máximo de rentabilidade sistemática. Essa
estabilidade, entretanto, é relativa e aparente. O que foi sistematizado entra em
um processo de desgaste, com liberdade progressiva da expressão em termos
de restrição de ocorrência, e com liberdade progressiva do conteúdo em
termos de desbotamento e esvaziamento semântico. Assim, as unidades
migram para um nível não-gramatical, no sentido de que elas deixam de
obedecer às restrições de seleção, e literalmente retornam ao discurso
(discursivização).
O processo de gramaticalização privilegia:

a) a trajetória dos elementos linguísticos do léxico à gramática (Ex.: verbo


pleno > verbo auxiliar);
b) a trajetória de categorias menos gramaticais para categorias mais
gramaticais, como o de categorias invariáveis para categorias flexionais (Ex:
menos > menas).

O termo gramaticalização, portanto, é tomado em dois sentidos


relacionados: a gramaticalização stricto sensu se ocupa da mudança que
atinge as formas que migram do léxico para a gramática; a gramaticalização
lato sensu busca explicar as mudanças que se dão no interior da própria
gramática, compreendendo aí os processos sintáticos e/ou discursivos de
fixação da ordem vocabular.
Como exemplo de gramaticalização stricto sensu, podemos citar a
pesquisa de Silva (2000) sobre a trajetória de mudança de ir, que acumula as
funções de verbo pleno e auxiliar, conforme signifique deslocamento espacial
ou deslocamento temporal, como nos exemplos (09) e (10), respectivamente:

(09) ... quando ele vai atrás ele vê apenas um gato ... ele pega o gato ... entra no
carro e vai embora ... (Corpus D&G/Natal, p. 308).

(10) Bem, a minha opinião sobre o namoro é que está muito avançado, porque
esses rapazes de hoje não pensa do amanhã que vai ser. (Corpus D&G/Natal, p.
363).

O estudo de Oliveira (2000) exemplifica a gramaticalização lato sensu.


A autora investiga o deslizamento de sentido do item onde, cuja mudança se
dá dentro da própria gramática. De pronome relativo, com sentido de espaço
físico (ex. 11), onde passa a designar também espaço de tempo (ex. 12),
evoluindo até a categoria de marcador discursivo, desprovido de significado
lexical e utilizado como um recurso coesivo para organizar e planejar
internamente o turno (ex. 13):

(11) ... no banheiro nós vamos encontrar ... uma prateleira ... onde fica os
utensílios pessoais ... (Corpus D&G/Natal, p. 309).

(12) ... depois disso ... teve a noite onde foi escolhido o grupo de cinco pessoas
mais ou menos ... (Corpus D&G/Natal, p. 304).

(13) ... eu acho que ao invés das pessoas sair na rua ... pedindo para ... ser
implantado a pena de morte no Brasil ... deveria estar lutando por outras ... por
outros métodos ... outros objetivos ... de melhores condições de vida ... de
melhor educação para os seus filhos ... onde as pessoas poderiam viver num
país bom ... certo? (Corpus D&G/Natal, p. 314).

No ponto extremo do contínuo de mudança, localiza-se o processo de


discursivização, que focaliza a trajetória de retorno dos elementos da gramática
ao discurso. Estudando a trajetória de mudança semântica que caracteriza os
usos da partícula né? (não é verdade? > não é? > né?), Martelotta e Alcântara
(1996) observam que essa partícula, após perder os traços semânticos básicos
dos seus componentes e, concomitantemente, sofrer redução fonética,
distancia-se de seu sentido original como pergunta referencial ou pergunta não-
retórica e passa a desempenhar o papel de preenchedor de pausa causada
pela perda da linearidade do discurso. No exemplo (14), abaixo, o informante
parece perder, por um momento, a linha de raciocínio e usa o né? (ao lado de
outros elementos: poxa ... eu sei lá ... sabe?) para preencher o vazio causado
por essa perda, enquanto tenta solucionar seu problema comunicativo:

(14) ... mas que adianta um casamento tão lindo ... gastam tanto ... pra no final
eh ... viv/ fica dois ... três dias ... depois se separam ... entendeu? eu acho isso
aí um absurdo ... porque ... poxa... eu sei lá ... sabe? num ... né? a vida::/ tudo
bem ... tá tudo difícil ... mas a pessoa ... eu acho que a pessoa tem que saber ...
diretamente aquilo que quer ... (Corpus D&G/Rio de Janeiro).
Costa (1995) trabalha com a hipótese de o português estar sofrendo
um processo de discursivização no sentido de que a categoria sintática sujeito
estaria retornando da gramática ao discurso, na forma de tópico. Essa
hipótese se fundamenta no pressuposto de que a categoria sujeito emerge a
partir da categoria tópico. Para Givón (1979), a linguagem humana teria
evoluído do modo pragmático para o sintático e, por isso mesmo, a sintaxe
teria evoluído a partir do discurso. A trajetória tópico > sujeito > tópico nos
remete ao caráter cíclico da trajetória linguística sugerida por Givón (1979),
que toma como marco de partida o discurso, passa pela sintaxe, pela
morfologia, pela morfofonologia até retornar ao discurso, completando o
círculo.
A hipótese da trajetória sujeito > tópico tem como base a observação
de que a estrutura tópico-comentário pode ser vista como o resultado do
enfraquecimento progressivo das relações entre sujeito e verbo, tanto em
termos morfossintáticos quanto semânticos, que faz com que o sujeito deixe
de ter uma função intra-oracional e se desloque para fora da oração, passando
a exercer o papel de tópico.
Para Costa (1995), qualquer classificação sintática tanto para o SN
esse acampamento (ex. 15) como para o SN a casa de minha avó (ex. 16)
parece um tanto forçada. O autor observa que esses SNs se mostram
relativamente independentes da oração-comentário que os segue, sem
desempenharem nela qualquer função sintática. Antes, são tomados como
ponto de partida da porção do discurso que os seguirá. O informante os
seleciona como o elemento central a partir do qual a informação será
transmitida. Trata-se, portanto, de SNs marcadamente discursivos que
recebem o rótulo de “tópico”.

(15) ... esse acampamento todos os meus amigos foram ... (Corpus
D&G/Natal, p. 303).

(16) ... a casa de minha avó ... ela é grande sabe? (Corpus D&G/Natal, p. 347).
Ciclo funcional e unidirecionalidade

O desenvolvimento de novas estruturas gramaticais é motivado quer por


necessidades comunicativas não satisfeitas, quer pela ausência de
designações linguísticas para determinados conteúdos cognitivos. Dessa
forma, a gramaticalização é interpretada como um processo diacrônico e um
contínuo sincrônico que atingem tanto as formas que vão do léxico para a
gramática como as formas que mudam no interior da gramática.
O caráter cíclico da evolução linguística é postulado por Givón (1979),
que formula o seguinte esquema processual para representar os processos
diacrônicos de regularização do uso da língua, desde o ponto mais imprevisível
até a fase terminal: discurso > sintaxe > morfologia > morfofonologia > zero. De
acordo com essa trajetória unidirecional de gramaticalização, alguns itens
lexicais passam a ser utilizados, no discurso, em contextos nos quais
desempenham certa função gramatical, ainda não totalmente fixada.
Progressivamente, via repetição, seu uso vai se tornando mais previsível e
regular, resultando numa nova construção sintática com características
morfológicas especiais, podendo, posteriormente, desenvolver-se para uma
forma ainda mais dependente, como um clítico ou um afixo, com eventuais
adaptações fonológicas. Com o aumento da frequência de uso, essa
construção tende a sofrer desgaste formal e funcional que poderá causar seu
desaparecimento, dando início a um novo ciclo.
Alguns teóricos funcionalistas propõem que, semanticamente, a
trajetória de gramaticalização se manifesta na passagem do concreto para o
abstrato. Entidades abstratas emergem da experiência humana com o mundo
concreto. Traugott e Heine (1991), por exemplo, propõem a seguinte escala
para representar o processo de abstratização gradativa no percurso de
gramaticalização dos elementos linguísticos: espaço > (tempo) > texto. Essa
escala apresenta dois desdobramentos possíveis: num dos casos, descreve a
emergência de categorias gramaticais, que têm sua origem em itens lexicais de
sentido concreto. Serve de exemplo, aqui, o processo de gramaticalização de
ir, conforme ilustrado nos fragmentos (17) e (18) transcritos acima e repetidos
abaixo:

(17) ... quando ele vai atrás ele vê apenas um gato ... ele pega o gato ... entra no
carro e vai embora ... (Corpus D&G/Natal, p. 308).

(18) Bem, a minha opinião sobre o namoro é que está muito avançado, porque
esses rapazes de hoje não pensa do amanhã que vai ser. (Corpus D&G/Natal, p.
363).

Em (17), ir está sendo usado como verbo principal, com o seu sentido
primário de movimento físico. Em (18), por outro lado, ir se comporta como um
verbo auxiliar marcador de tempo futuro, o que é enfatizado pelo uso do
advérbio amanhã. Constata-se, portanto, que a trajetória de mudança de ir
evolui do sentido mais concreto para o mais abstrato, representada pelo
estágio espaço > tempo na escala de Traugott e Heine (1991).
O segundo desdobramento dessa escala diz respeito à abstratização
progressiva de significado de um dado elemento linguístico sem que haja,
necessariamente, mudança de categoria gramatical. Para este caso, servem de
exemplo os fragmentos em (19-21), retomados abaixo:

(19) ... no banheiro nós vamos encontrar ... uma prateleira ... onde fica os
utensílios pessoais ... (Corpus D&G/Natal, p. 309).

(20) ... depois disso ... teve a noite onde foi escolhido o grupo de cinco pessoas
mais ou menos ... (Corpus D&G/Natal, p. 304).

(21) ... eu acho que ao invés das pessoas sair na rua ... pedindo para ... ser
implantado a pena de morte no Brasil ... deveria estar lutando por outras ... por
outros métodos ... outros objetivos ... de melhores condições de vida ... de
melhor educação para os seus filhos ... onde as pessoas poderiam viver num
país bom ... certo? (Corpus D&G/Natal, p. 314).

Em (19), o onde desempenha sua função padrão de pronome relativo,


com sentido de espaço físico, remetendo à prateleira. No exemplo (20), o
referente de onde é a noite, que não é espaço físico, mas espaço de tempo, ou
melhor, é o tempo representado como se fosse espaço. O onde, então, por se
referir a a noite, funciona como uma metáfora, representando, assim, um
conceito mais abstrato a partir de um mais concreto. Em (21), o onde funciona
como um mero marcador de pausas, ou seja, como meio de organizar e
planejar internamente o turno. Por não ter referente recuperável, apresenta-se
como um conector que é vazio de significado, podendo, portanto, ser omitido,
sem qualquer prejuízo semântico para o enunciado.

Referências bibliográficas

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